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Lusitano de Zurique edição nº 266 e 267

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CRÓNICA

Do nosso cantinho para o vosso cantão

A praia onde morrem

as baleias

Ou uma braçada para fora da depressão

ARAGONEZ MARQUES

Eu sou a praia onde morrem as baleias. Não

sei porque me escolhem as baleias para mor-

rer. Nem sei sequer se é isso que desejam, sei

apenas que é a mim que chegam e que ao longo

dos anos, é em vão que luto, dia a dia, para

guiá-las de novo ao oceano, o que é difícil.

Uma baleia pesa muito, e se permitem, por-

que inofensivas, o meu contato com elas na

água, torna-se muito dificultosa a tarefa de

as desencalhar dos meus baixios.

São poucas as que conseguem recuperar os

seus rumos e muitas, depois de o conseguir,

regressam de novo para agonizarem defini-

tivamente.

As minhas areias, embora doiradas ao sol e

cobertas de mil gaivotas que deixam as suas

marcas no chão húmido, pouco duradouras

que a água apaga quando sobe a maré, não

passa de terra leve e triste que oculta cadá-

veres tapados.

Dantes chegavam mais espaçadamente no

tempo e eu, pensando ainda ser uma coinci-

dência, esforçava-me com uma maior ilusão

em salvá-las; depois, com o passar dos anos,

transformei em rotina passar os dias a abrir

valas, à mão, enormes, para onde as arrasta-

va e cobria, tentando mais salvar a imagem

paradisíaca da minha baía dourada que os

turistas aplaudiam, do que a vida destes gi-

gantescos mamíferos que me procuravam,

vá-se lá saber porquê.

Às vezes acordava envolto em medos e dormia

mal com pavor aos pesadelos.

Na minha pressa, agora objetiva, de manter

superficialmente a praia limpa, duvidava se

alguma vez enterrara alguma daquelas cria-

turas viva.

Este pensamento arranhava-me como o frio

cortante que enfrento no Inverno e. porque

constante, passou a arranhar-me durante

todo o ano, transformando-me em praia

com Inverno permanente, com marés vivas,

ondas altas e ventos que dobravam as pal-

meiras, outrora belas sempre, tanto calmas

como promessas com as suas novas folhas

na Primavera, como acolhedoras nas suas

espraiadas sombras no Verão, como poéticas

nos pores-de-sol de Outono ou dançarinas no

Inverno, impedindo o vento nesse entreter de

baile, de consumir as dunas.

É neste Inverno permanente, agora sem músi-

ca para o baile ou palmeiras para dançar, que

hoje continuo a assistir à vinda das baleias e

à destruição das dunas.

Deixei de acreditar que as posso salvar e con-

sumo meses inteiros a abrir covas e a enterrar.

Algumas dessas covas nem sequer têm ainda

baleias mortas. Hoje já não me preocupo com

a paisagem e muito menos com os turistas,

sou, no entanto, mais sensível aos cheiros.

Abro buracos para evitar os cheiros. Cavo e

tapo porque as baleias cheiram mal. Perdi a

ilusão de poder salvá-las.

A última vez que o fiz, levei quase um mês

envolto em suores e canseiras, empurran-

do uma baleia resistente perante os olhares

dos turistas, mar adentro. Assim que virava

costas, ela aí vinha, boiando, atrás de mim,

aproveitando as ondas calmas para me im-

pregnar de odores.

- Deixa-me! Segue o teu caminho! Eu só te

posso dar uma cova, nada mais. Ainda por

cima, uma cova pequena, que tenho os dedos

feridos de tanto escavar com eles. Dedos que

quase não têm impressões digitais, dedos

quase sem identidade. Deixa-me! Para ti te-

nho uma cova pequena, nada mais.

Nunca fui dos melhores nos meus entendi-

mentos dialogantes com as baleias, e talvez

este “nada mais” fosse entendido como uma

forma do verbo “nadar”, ela continuava a

perseguir-me.

- Deixa-me! - e pedi por favor.

Ignorou este meu último queixume. Não sei

porque mistério continuava a escolher-me a

mim, trocando pelas minhas águas baixas

e sufocantes a liberdade das profundezas

do mar, onde, com a barbatana horizontal,

desenhava o azul dos céus e pelo seu orifício

atirava repuxos mais altos do que metade da

cova de areia escaldante que a esperava comi-

go. Ajustada ao tamanho do seu corpo. Nada

mais ali cabia. Apenas o seu corpo, nunca a

imensidão do seu espírito.

- Vai-te! Deixa-me! - e batia ferozmente na

água tentando afugentá-la, ruído e mais ruí-

do, que a fizesse renunciar à morte nem que

fosse pelo medo.

Parece que finalmente se foi.

Deixei-me eu agora arrastar na espuma das

minhas ondas que me enrolaram cansado

na areia.

Julho/Agosto 2020 | Lusitano de Zurique | WWW.CLDZ.EU

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