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CRÓNICA
Do nosso cantinho para o vosso cantão
A praia onde morrem
as baleias
Ou uma braçada para fora da depressão
ARAGONEZ MARQUES
Eu sou a praia onde morrem as baleias. Não
sei porque me escolhem as baleias para mor-
rer. Nem sei sequer se é isso que desejam, sei
apenas que é a mim que chegam e que ao longo
dos anos, é em vão que luto, dia a dia, para
guiá-las de novo ao oceano, o que é difícil.
Uma baleia pesa muito, e se permitem, por-
que inofensivas, o meu contato com elas na
água, torna-se muito dificultosa a tarefa de
as desencalhar dos meus baixios.
São poucas as que conseguem recuperar os
seus rumos e muitas, depois de o conseguir,
regressam de novo para agonizarem defini-
tivamente.
As minhas areias, embora doiradas ao sol e
cobertas de mil gaivotas que deixam as suas
marcas no chão húmido, pouco duradouras
que a água apaga quando sobe a maré, não
passa de terra leve e triste que oculta cadá-
veres tapados.
Dantes chegavam mais espaçadamente no
tempo e eu, pensando ainda ser uma coinci-
dência, esforçava-me com uma maior ilusão
em salvá-las; depois, com o passar dos anos,
transformei em rotina passar os dias a abrir
valas, à mão, enormes, para onde as arrasta-
va e cobria, tentando mais salvar a imagem
paradisíaca da minha baía dourada que os
turistas aplaudiam, do que a vida destes gi-
gantescos mamíferos que me procuravam,
vá-se lá saber porquê.
Às vezes acordava envolto em medos e dormia
mal com pavor aos pesadelos.
Na minha pressa, agora objetiva, de manter
superficialmente a praia limpa, duvidava se
alguma vez enterrara alguma daquelas cria-
turas viva.
Este pensamento arranhava-me como o frio
cortante que enfrento no Inverno e. porque
constante, passou a arranhar-me durante
todo o ano, transformando-me em praia
com Inverno permanente, com marés vivas,
ondas altas e ventos que dobravam as pal-
meiras, outrora belas sempre, tanto calmas
como promessas com as suas novas folhas
na Primavera, como acolhedoras nas suas
espraiadas sombras no Verão, como poéticas
nos pores-de-sol de Outono ou dançarinas no
Inverno, impedindo o vento nesse entreter de
baile, de consumir as dunas.
É neste Inverno permanente, agora sem músi-
ca para o baile ou palmeiras para dançar, que
hoje continuo a assistir à vinda das baleias e
à destruição das dunas.
Deixei de acreditar que as posso salvar e con-
sumo meses inteiros a abrir covas e a enterrar.
Algumas dessas covas nem sequer têm ainda
baleias mortas. Hoje já não me preocupo com
a paisagem e muito menos com os turistas,
sou, no entanto, mais sensível aos cheiros.
Abro buracos para evitar os cheiros. Cavo e
tapo porque as baleias cheiram mal. Perdi a
ilusão de poder salvá-las.
A última vez que o fiz, levei quase um mês
envolto em suores e canseiras, empurran-
do uma baleia resistente perante os olhares
dos turistas, mar adentro. Assim que virava
costas, ela aí vinha, boiando, atrás de mim,
aproveitando as ondas calmas para me im-
pregnar de odores.
- Deixa-me! Segue o teu caminho! Eu só te
posso dar uma cova, nada mais. Ainda por
cima, uma cova pequena, que tenho os dedos
feridos de tanto escavar com eles. Dedos que
quase não têm impressões digitais, dedos
quase sem identidade. Deixa-me! Para ti te-
nho uma cova pequena, nada mais.
Nunca fui dos melhores nos meus entendi-
mentos dialogantes com as baleias, e talvez
este “nada mais” fosse entendido como uma
forma do verbo “nadar”, ela continuava a
perseguir-me.
- Deixa-me! - e pedi por favor.
Ignorou este meu último queixume. Não sei
porque mistério continuava a escolher-me a
mim, trocando pelas minhas águas baixas
e sufocantes a liberdade das profundezas
do mar, onde, com a barbatana horizontal,
desenhava o azul dos céus e pelo seu orifício
atirava repuxos mais altos do que metade da
cova de areia escaldante que a esperava comi-
go. Ajustada ao tamanho do seu corpo. Nada
mais ali cabia. Apenas o seu corpo, nunca a
imensidão do seu espírito.
- Vai-te! Deixa-me! - e batia ferozmente na
água tentando afugentá-la, ruído e mais ruí-
do, que a fizesse renunciar à morte nem que
fosse pelo medo.
Parece que finalmente se foi.
Deixei-me eu agora arrastar na espuma das
minhas ondas que me enrolaram cansado
na areia.
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