Gestão Hospitalar N.º 21 2020
Despacho não, despachem-se! Tudo mudou. Portugal recomeçou Recuperar, reorganizar e reconstruir: saúde de novo a prioridade Uma visão sustentável da saúde com bem-estar Retoma do sistema de saúde: antigas e novas preocupações Planeamento: uma necessidade premente! Resposta à Covid-19: o que foi feito e o que há para fazer O laboratório militar no apoio ao SNS e à sociedade civil A resposta da emergência médica e os impactos no tempo com a Covid-19 SNS24: a porta aberta do SNS Utopia ou não utopia, eis a questão Arrumar a casa depois do tsunami Covid Covid-19 e doença cardiovascular: da pandemia, um olhar para o futuro? A integração de cuidados pós-Covid-19: do “novo normal” a um “normal novo” “Fique em casa” tornou-se viral e resultou Diabetes e Covid-19: cronologia de uma relação pouco feliz Operação Luz Verde: hospitais mais próximos dos doentes Persistir em devir. Do Éden ao purgatório? A oportunidade dos CRI no pós-Covid-19 Contributos da Coordenação Nacional de Emergência da Cruz Vermelha na resposta à pandemia Estimativa de custos dos internamentos potencialmente evitáveis em Portugal Modelos de acesso ao sistema de saúde em situações de urgência 7ª edição do prémio vai distinguir projetos desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia Participação do cidadão na era da Covid-19 APAH lança academia de formação em formato digital
Despacho não, despachem-se!
Tudo mudou. Portugal recomeçou
Recuperar, reorganizar e reconstruir: saúde de novo a prioridade
Uma visão sustentável da saúde com bem-estar
Retoma do sistema de saúde: antigas e novas preocupações
Planeamento: uma necessidade premente!
Resposta à Covid-19: o que foi feito e o que há para fazer
O laboratório militar no apoio ao SNS e à sociedade civil
A resposta da emergência médica e os impactos no tempo com a Covid-19
SNS24: a porta aberta do SNS
Utopia ou não utopia, eis a questão
Arrumar a casa depois do tsunami Covid
Covid-19 e doença cardiovascular: da pandemia, um olhar para o futuro?
A integração de cuidados pós-Covid-19: do “novo normal” a um “normal novo”
“Fique em casa” tornou-se viral e resultou
Diabetes e Covid-19: cronologia de uma relação pouco feliz
Operação Luz Verde: hospitais mais próximos dos doentes
Persistir em devir. Do Éden ao purgatório?
A oportunidade dos CRI no pós-Covid-19
Contributos da Coordenação Nacional de Emergência da Cruz Vermelha na resposta à pandemia
Estimativa de custos dos internamentos potencialmente evitáveis em Portugal
Modelos de acesso ao sistema de saúde em situações de urgência
7ª edição do prémio vai distinguir projetos desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia
Participação do cidadão na era da Covid-19
APAH lança academia de formação em formato digital
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ABRIL MAIO JUNHO 2020
Edição Trimestral
Nº 21
GESTÃO
HOSPITALAR
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA aSSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ADMINISTRADORES HOSPITALARES
Confiança no presente
esperança no futuro
GH OPhghgh
GESTÃO
HOSPITALAR
PROPRIEDADE
APAH - Associação Portuguesa
de Administradores Hospitalares
Parque de Saúde de Lisboa Edíficio, 11 - 1º Andar
Avenida do Brasil, 53
1749-002 Lisboa
secretariado@apah.pt
www.apah.pt
DIRETOR
Alexandre Lourenço
DIRETORA-ADJUNTA
Bárbara Sofia de Carvalho
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Catarina Baptista, Miguel Lopes
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Alexandra Santos
EDIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Bleed - Sociedade Editorial e Organização
de Eventos, Ltda
Av. das Forças Armadas, 4 - 8B
1600 - 082 Lisboa
Tel.: 217 957 045
info@bleed.pt
www.bleed.pt
PROJETO GRÁFICO
Sara Henriques
DISTRIBUIÇÃO
Gratuita
PERIODICIDADE
Trimestral
DEPÓSITO LEGAL N.º
16288/97
ISSN N.º
0871- 0767
TIRAGEM
2.000 exemplares
IMPRESSÃO
Grafisol, Lda
Rua das Maçarocas
Abrunheira Business Center, 3
2710-056 Sintra
Esta revista foi escrita segundo as novas regras
do Acordo Ortográfico
Estatuto Editorial disponível em www.apah.pt
Capa:
Alexandre Farto aka Vhils
Linha da Frente
Projecto Scratching the Surface
Parede esculpida em baixo-relevo
Centro Hospitalar Universitário de São João
Porto, Portugal
Junho de 2020
GH SUMÁRIO
ABRIL MAIO JUNHO 2020
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Editorial
#Futuro
Visão | Médicos
Despacho não, despachem-se!
Visão | Enfermeiros
Tudo mudou. Portugal recomeçou
Visão | Farmacêuticos
Recuperar, reorganizar e reconstruir: saúde de novo a prioridade
Visão | Psicólogos
Uma visão sustentável da saúde com bem-estar
Visão | Nutricionistas
Retoma do sistema de saúde: antigas e novas preocupações
Saúde Pública
Planeamento: uma necessidade premente!
Cuidados de Saúde Primários
Resposta à Covid-19: o que foi feito e o que há para fazer
Saúde Militar
O laboratório militar no apoio ao SNS e à sociedade civil
Emergência
A resposta da emergência médica e os impactos no tempo com a Covid-19
E Saúde
SNS24: a porta aberta do SNS
Reflexão
Utopia ou não utopia, eis a questão
Medicina interna
Arrumar a casa depois do tsunami Covid
Opinião
Covid-19 e doença cardiovascular: da pandemia, um olhar para o futuro?
Atividade Assistencial
A integração de cuidados pós-Covid-19: do “novo normal” a um “normal novo”
Comunicação
“Fique em casa” tornou-se viral e resultou
Voz do Cidadão
Diabetes e Covid-19: cronologia de uma relação pouco feliz
Gestão
Operação Luz Verde: hospitais mais próximos dos doentes
Direito Biomédico
Persistir em devir. Do Éden ao purgatório?
Inovação Organizacional
A oportunidade dos CRI no pós-Covid-19
Resposta de Emergência
Contributos da Coordenação Nacional de Emergência da Cruz Vermelha
na resposta à pandemia
Espaço ENSP
Estimativa de custos dos internamentos potencialmente evitáveis em Portugal
Serviços de Saúde
Modelos de acesso ao sistema de saúde em situações de urgência
Iniciativa APAH | Prémio Healthcare Excelence
7ª edição do prémio vai distinguir projetos desenvolvidos no âmbito
da resposta à pandemia
Iniciativa APAH | Webinar Participação do cidadão na era da Covid-19
Participação do cidadão na era da Covid-19
Iniciativa APAH | APAH Go Digital
APAH lança academia de formação em formato digital
3
GH editorial
Alexandre Lourenço
Presidente da APAH
#futuro
Seis dos dez rostos dos profissionais de saúde
esculpidos à porta do Hospital de São
João por Vhils são a capa desta RGH.
Entre os profissionais, a gravidade da situação
e o propósito partilhado aproximou-nos.
Nesta edição, os bastonários das Ordens dos
Médicos, Enfermeiros, Farmacêuticos, Psicólogos e Nutricionistas,
falam da necessidade de recuperar o tempo
perdido e da reconstrução do SNS. Miguel Guimarães
apela à ação, Ana Rita Cavaco à mudança, Ana Paula
Martins à reconstrução, Francisco Miranda Rodrigues à
saúde bem-estar, e Alexandra Bento a novas estratégias
públicas sem negligenciar os problemas antigos.
A estrutura nacional de emergência médica foi colocada
sobre pressão adicional durante a fase inicial de resposta
da Covid-19. Luís Meira avalia a resposta do INEM e
oferece aprendizagens para o futuro. O Administrador
Hospitalar Carlos Alberto Silva contribui para esta discussão
através do artigo de revisão sobre modelos de
acesso aos sistemas de saúde em situações de urgência.
Pela Cruz Vermelha, Gonçalo Órfão fala do papel da
Cruz Vermelha na resposta à pandemia. Margarida de
Sá Figueiredo de Almeida elabora sobre o papel do Laboratório
Militar no apoio ao SNS.
Ricardo Mexia fala-nos dos desafios que esta pandemia
representa e da necessidade de planear a resposta para
o médio-prazo. Maria Isabel Pereira dos Santos e colegas
falam-nos do que ainda está por fazer ao nível dos
cuidados de saúde primários. Na medicina interna, João
Araújo Correia procura arrumar a casa depois do ‘tsunami’.
Pela integração de cuidados, Adelaide Belo procura
aproveitar a janela de oportunidade para um “normal
novo”. Francisco Velez Roxo fala-nos em repensar e
reinventar a dimensão comunitária/social/saúde enquanto
alicerce integrador da resposta às necessidades do
cidadão: assumir a utopia?
Os doentes crónicos têm sido bastante negligenciados
pelo sistema de saúde. São já milhões de consultas médicas
e mais de uma centena de milhar de cirurgias que
ficaram por realizar. Victor Machado Gil aborda o impacto
no controlo da doença cardiovascular e José
Manuel Boavida da diabetes. O espaço ENSP elabora
sobre os custos dos internamentos evitáveis em Portugal.
Apesar de apresentar dados pré-Covid, diz-nos que
perto de 10% de todos os internamentos em hospitais
públicos são potencialmente evitáveis, estimando-se um
custo superior a 250 milhões de euros.
No campo das soluções, Ricardo Mestre propõe os
centros de responsabilidade integrados para a melhoria
do acesso. Luís Goes Pinheiro oferece-nos um vislumbrar
das potencialidades do SNS24 como centro
de contacto, incluindo o acompanhamento remoto de
doentes crónicos. Humberto Martins apresenta os ensinamentos
da dispensa de medicamentos hospitalares
em farmácias de oficina. Dulce Salzedas da importância
da boa comunicação.
Na APAH continuamos a procurar inovar e a acreditar
no futuro. A Academia APAH apresenta agora um formato
digital com vários cursos disponíveis. Ao juntarmos
o canal de gestão em saúde no YouTube, são centenas
de horas de formação disponíveis de forma gratuita.
Entre os sócios da APAH, a discussão sobre a proposta
de revisão de estatutos está a gerar bastante interesse. A
Direção está a promover a discussão da proposta, tendo
já sido organizadas várias sessões de discussão que
se encontram gravadas e disponíveis aos sócios. Pela sua
importância, todos têm o direito de ser esclarecidos,
pedir alterações ou mesmo apresentar alternativas. A
Direção ouve, apresenta os argumentos e, em consciência,
apresentará uma proposta à Assembleia Geral.
Como não poderia deixar de ser, os sócios decidirão o
futuro da sua associação. Importa que todos estejamos
cientes do caminho proposto e da sua importância para
a profissionalização da gestão de serviços de saúde
em Portugal.
Confiança no Presente, Esperança no Futuro.
Até porque, até prova em contrário, somos nós que
o construímos. Ã
4
GH VISÃO MÉDICOS
DESPACHO NÃO,
DESPACHEM SE!
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos
Debates, ciclos de debates. Visitas e
roteiros. Grupos de trabalho, coordenações.
Livros brancos, livros amarelos,
livros de todas as cores. Decretos,
portarias, despachos. A recolha
de informação, o contacto com o terreno e com os
profissionais podem ser essenciais quando queremos
conhecer melhor e atuar com conhecimento de causa,
seja qual for o setor de atividade - mas, para isso, é essencial
que se passe das palavras aos atos. Os estudos
e diagnósticos sobre o Serviço Nacional de Saúde são
inúmeros. E não são de hoje. Arrisco-me a dizer que
se republicarmos agora, praticamente ipsis verbis, um
qualquer relatório com 20 anos, quase ninguém notará.
Quiçá, nem os protagonistas fará falta alterar, ora
vigorando mais acima ou mais abaixo nos autores. Infelizmente,
tem sido necessário que alguma coisa mude
para que tudo fique na mesma, evocando Giuseppe
Tomasi di Lampedusa.
O Serviço Nacional de Saúde está doente. Já todos
o sabemos. Já todos lemos e estudámos sobre este
doente. O diagnóstico também não suscita grandes
dúvidas. Apesar de existirem vários tratamentos possíveis,
pasme-se, pois nem aí os caminhos apontados
são assim tão diferentes. Não precisamos de mais um
diploma, de mais um “vamos ver, vamos estudar, vamos
analisar”. Não precisamos de um despacho, precisamos
que se despachem a implementar no terreno
as decisões urgentes que a saúde em Portugal exige.
Este grito de alerta é recorrente, mas com a pandemia
que atravessamos tornou-se ainda mais notória a necessidade
de termos serviços públicos fortes, nomeadamente
na área da saúde, até pelo impacto direto
que tem na economia. A saúde é o motor da economia
e deve ser entendida como um investimento em
todos nós e não como um gasto. Mais: com a resposta
à Covid-19 muitos atos, como consultas, cirurgias e
exames, foram cancelados ou adiados. Muitos doentes
nem sequer conseguiram aceder aos cuidados de saúde
para um primeiro contacto, necessário para virem a
integrar as listas de espera.
As primeiras contas possíveis são assustadoras. Entre
março e maio de 2020, por comparação com os
mesmos meses de 2019, fizeram-se menos 378.638
primeiras consultas hospitalares e menos 518.014
consultas subsequentes. Depois, 93.301 doentes não
foram operados. Nos cuidados de saúde primários registaram-se
menos 3.045.495 consultas presenciais e
menos 30.005 domicílios. A isto podemos ainda juntar
a quebra de 591.137 episódios de urgências, com um
impacto de menos 29% nos doentes triados com pulseira
vermelha, 37% nos laranjas, 45% nos amarelos e
45% também nos verdes.
Tenho-me referido a este facto como a outra pandemia,
a pandemia dos outros doentes que nem sequer
conseguimos contabilizar, mas que têm doenças
tão ou mais urgentes, com inevitável impacto na
morbilidade e mortalidade. Mais grave, em muitos casos
estamos a falar de doentes sem nome e sem rosto.
Se podemos saber que uma cirurgia marcada não
se realizou, muito mais difícil será identificar quem
ficou pelo caminho por nem sequer entrar nas listas
de espera ou de cancelamentos.
Tudo isto agudizou a necessidade de olharmos para
a saúde como a joia da coroa, sem esquecer também
a importância de se apostar mais do que nunca numa
resposta para a saúde mental e para todas as patologias
que em cenário de crise sabemos que se agravam.
É urgente um plano de retoma sem preconceitos ideológicos,
que se foque tão só e apenas em resolver o
problema dos doentes, que crie novas estratégias para
recuperar os sem rosto que ficaram para trás e que só
voltarão a ter uma oportunidade se o SNS for pró-ativo
a tentar encontrá-los.
Infelizmente não foi esta preocupação que encontrámos
no orçamento suplementar apresentado e que
deixa o Serviço Nacional de Saúde, literalmente, a ver
aviões. Para a saúde foram destinados 504,4 milhões
de euros, para a TAP 1200 milhões. O valor destinado
à saúde não permite recuperar o que se perdeu nestes
três meses e o que se continuará a perder, tanto
por via da pandemia propriamente dita como de todas
as medidas de proteção adicionais que continuarão a
vigorar e que implicam mais espaçamento de doentes
e mais despesa em equipamentos de proteção individual.
Já para não relembrar a suborçamentação crónica
existente há largos anos.
O que foi destinado à saúde não vai ao encontro do
que os portugueses entendem como prioritário para
as suas vidas e que têm vindo a reportar em várias
sondagens. O que foi destinado à saúde não contribui
para a valorização dos profissionais e da qualidade,
apesar de ser neles que os cidadãos confiam. Atente-se
à mais recente sondagem publicada pela Intercampus
e em que os portugueses reconheceram o
trabalho do primeiro-ministro na pandemia - e bem,
mas em que colocaram no topo os profissionais de
saúde, que receberam a avaliação mais elevada, com
77% dos portugueses a dizerem que os médicos,
enfermeiros e auxiliares de saúde estiveram “muito
bem” na luta contra o novo coronavírus e com 21%
a dizerem que estiveram “bem”, o que perfaz um total
de 98% de avaliações positivas. Os profissionais de
saúde foram, aliás, os únicos a merecer a nota máxima
de forma tão expressiva.
Mesmo o SNS, que recebeu a segunda maior taxa de
resposta de “muito bem”, só obteve 32%. O “bem”
fixou-se nos 56%, perfazendo um total de 88% de reconhecimento
ao trabalho das unidades de saúde. O
terceiro lugar foi para o Primeiro-Ministro, com 27%
de “muito bem” e 58% de “bem” (total de 85% de
avaliações positivas). O Presidente da República surgiu
em quarto lugar, com um total de 81% de avaliações
positivas (27% muito bem e 54% bem). Em quinto
lugar os portugueses colocaram a Ministra da Saúde,
com 21% de “muito bem” e 51% de bem (total de
72%). O último lugar coube à Diretora-Geral da Saúde,
que recolheu apenas 18% de “muito bem” e 47%
de “bem”, num total de 65%.
Sem populismos e demagogias - a saúde é demasiado
importante para ser arma política, ouçamos o que nos
pedem os portugueses e o que corroboram os profissionais
que estão no terreno todos os dias a fazer
o SNS acontecer. Não há números mágicos e a tarefa
não se esgotará nunca. Mas há 10 medidas urgentes e
que permitiriam recolocar o SNS no caminho certo
e que foram recentemente integradas no movimento
SOS SNS, ao qual a Ordem dos Médicos se associou
com a Ordem dos Farmacêuticos, pelo amplo
consenso que geram e pela forma como permitiriam
continuar a honrar a história de sucesso da saúde em
Portugal. Sintetizemo-las:
1. Garantir médico de família e equipa de saúde para
todos os cidadãos;
2. Aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde
e através de Programa Excecional resolver as listas de
espera para cirurgias, consultas e exames complementares
de diagnóstico e terapêutica, num exercício de
apuramento real das necessidades e de aproveitamento
dos recursos existentes;
3. Desenvolver Vias Verdes Clínicas abertas e Vias Verdes
com o apoio da telemedicina promovendo uma
melhor articulação entre os cuidados de saúde primários
e os cuidados hospitalares;
4. Integrar e expandir a hospitalização domiciliária, promovendo
a telemedicina e desenvolvendo serviços específicos
para assistência no domicílio, em articulação
com o sistema de saúde e as associações de doentes;
5. Equipar as unidades de saúde e integrar aplicações móveis
para aperfeiçoar e desenvolver a medicina à distância
na monitorização e seguimento de doentes crónicos;
6. Garantir proximidade na dispensa de medicamentos;
7. Garantir o acesso à inovação terapêutica e tecnológica;
8. Projeto 10 milhões de Portugueses - mais literacia,
mais prevenção, mais participação;
9. Reforçar a governação clínica das unidades de saúde,
valorizar os profissionais e reorganizar os serviços
hospitalares em unidades de cuidados integrados e
centros de responsabilidade integrados;
10. Evoluir para um orçamento público da Saúde em
% PIB equivalente à média da UE, com uma lei de
meios e orçamentação plurianual.
É hora de fazer acontecer. Despachemo-nos enquanto
é tempo. Se fizer falta um despacho, que se publique
com efeitos retroativos, justificando-se que o doente
era grave e corria risco iminente de vida. Ã
6 7
GH VISÃO ENFERMEIROS
TUDO MUDOU.
PORTUGAL RECOMEÇOU
Ana Rita Cavaco
Bastonária da Ordem dos Enfermeiros
Tudo mudou nos últimos meses. O mundo
transformou-se radicalmente. Alteraram-se
as relações sociais, profissionais
e económicas. Mudaram-se hábitos ancestrais
de relacionamento humano e,
pela primeira vez na história da humanidade, temos um
mundo inteiro a falar sobre o mesmo tema, a discutir
as mesmas preocupações e a procurar uma saída comum.
Dito de outra forma, o vírus colocou o debate
sobre a Saúde no centro das nossas angústias coletivas
e obrigou-nos a parar para pensar. E agora?
A pergunta é suficientemente vaga. Seria preferível,
apesar da urgência, perguntar: E amanhã? A verdade é
que vivemos na ditadura do agora e a memória nem
sempre resiste às tentações da atualidade. A melhor
forma de não esquecer aquilo que nos aconteceu
passa por concretizar transformações de fundo, impor
mudanças que corrijam problemas estruturais e combatam
injustiças antigas. É esse o primeiro grande desafio.
Vou chamá-lo de desafio da vontade.
As gerações futuras não nos perdoariam se deixássemos
estar tudo como estava antes desta pandemia.
Em Portugal, este vírus colocou a nu as fragilidades do
sistema, mas também a sua centralidade na vida de todos
nós. Percebemos, à força, que nada vale se não
tivermos saúde. Mais. Percebemos, com uma violência
que marcará as nossas vidas para sempre, que trememos
perante a dúvida sobre a capacidade de resposta
do nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS). A pandemia
desmontou os nossos medos e as nossas dúvidas.
Mostrou que não há Liberdade sem um efetivo acesso
aos cuidados de saúde. Não há Democracia. Assim
sendo, é preciso começar por ter vontade para mudar
as regras do jogo na saúde. Aceitar que agora começa
um tempo novo. Recusar voltar a ceder à vaidade, ao
egoísmo e ao compadrio na gestão da coisa pública.
Os governos não poderão voltar a olhar para a Saúde
como a prateleira onde se arrumam os amigos, nem
onde se justificam cativações.
É aqui que surge o segundo grande desafio. O da clareza.
É necessário dizer de forma clara, preto no branco,
sem espaço a interpretações duvidosas, qual o lugar
da Saúde na hierarquia das prioridades políticas destes
novos tempos. Isso significa reforço do investimento
e os primeiros sinais não foram positivos. O Governo
vacilou no momento em que deveria ter mostrado
que tinham aprendido alguma coisa com aquilo que
nos aconteceu. Quando, no Orçamento Suplementar,
se dedica ao SNS menos de metade do investimento
que se prepara para fazer na TAP, o Governo dá um
sinal errado para o futuro e falha estrondosamente no
desafio da clareza. Aprendemos, ou não, alguma coisa
com tudo isto? Percebemos, ou não, que a Saúde deve
ser a prioridade máxima de qualquer Democracia? Se
sim, chegou a hora de dotar o SNS de todos os meios
capazes de combater não só esta pandemia, como de
enfrentar os desafios crescentes do dia-a-dia. Quando
a manta é curta, tapar a cabeça significa destapar os
pés, e isso em saúde paga-se com vidas.
É bom não esquecer como estávamos antes desta
pandemia. Mário Centeno congratulava-se com o facto
de o país dar lucro e António Costa sorria, como se
estivesse a acreditar que foi para isso que construímos
o Estado Social. Não foi. O problema não veio com o
“
PORTUGAL TEM NESTE MOMENTO
20 MIL ENFERMEIROS EMIGRADOS.
E QUE FALTA NOS FAZEM!
PARTIRAM PRECISAMENTE POR
FALTA DE RECONHECIMENTO.
”
vírus. Já cá estava. Um país que dá lucro não tem milhares
de pessoas que morrem em listas de espera para
cirurgias, nem outras tantas à espera por uma consulta,
ou exame de diagnóstico. Tínhamos, portanto, antes
desta pandemia, um País ao serviço do orçamento e
não o contrário. É bom não nos esquecermos disto
para evitar, agora, que os mais audazes queiram sobrecarregar
as costas largas do vírus.
Assim, depois da vontade e da clareza, o terceiro
grande desafio deve ser o da valorização dos recursos
humanos. Ao longo destes 40 anos, os portugueses
habituaram-se a confiar no SNS porque confiam nos
seus profissionais, sendo testemunhas da sua dedicação,
profissionalismo e constante espírito de sacrifício.
Confiar é acreditar. Este vírus veio confirmar aquilo
que os portugueses já sabiam: são os profissionais que
mantêm o SNS vivo.
Portugal tem neste momento 20 mil enfermeiros emigrados.
E que falta nos fazem! Partiram precisamente
por falta de reconhecimento. Que ninguém tenha dúvidas
de que os incentivos, monetários e não monetários,
são decisivos na hora de fazer escolhas. Mas esses
incentivos, mais do que quantitativos, trazem consigo
uma mensagem política. Veja-se, por exemplo, o que
aconteceu na Suécia, Malásia, Indonésia, Alemanha ou
França. Todos estes Governos decidiram valorizar o
trabalho dos enfermeiros através de incentivos. Nestes
casos, não se trata de prémio, mas de reconhecimento
de valor, de justiça pelo trabalho de quem cuida. Na
Suécia, o Governo decidiu mesmo duplicar o vencimento
dos enfermeiros durante a pandemia.
Quando queremos contratar enfermeiros para a Linha
da Frente por pouco mais de 900 euros líquidos por
mês, e nos lares ainda menos, e garantir-lhes um contrato
de quatro meses, estamos a dizer que esse é o
valor de quem cuida quando mais ninguém quer cuidar.
Que esse é reconhecimento que damos a quem
deixa os seus para ir salvar os outros. Foi esse desinvestimento
na Saúde que nos fez chegar aqui com o
coração nas mãos.
Portugal parece que tem pouco para oferecer aos enfermeiros
portugueses para além de aplausos, palavras
bonitas e palmadas nas costas. Corrijo. Oferecemos salários
indignos, quatro meses de contrato e um vazio,
uma incógnita em relação à carreira, que é como quem
diz, ao futuro. A Ordem dos Enfermeiros tem recebido
vários pedidos internacionais para ajudar no recrutamento
de enfermeiros portugueses. Holanda, Alemanha
e Espanha estão na linha da frente, à espera de recrutar
o profissionalismo e a excelência que caracteriza
os enfermeiros formados em Portugal. Querem levá-
-los, pagam-lhes o triplo do que recebem por cá, prometem-lhes
uma carreira, formação e segurança. Tudo
aquilo que, mesmo depois de tudo o que vivemos, o
nosso Estado teima em não ser capaz de garantir.
Os problemas estruturais do SNS não desapareceram
com este vírus. A concentração de meios e esforços
numa única batalha não podem comprometer a guerra.
Continuamos a precisar de soldados motivados para
a linha da frente. Nunca, como agora, foi tão fácil
perceber que é imperativo apostar e valorizar as pessoas
que cuidam das pessoas. É essa a grande revelação
dos novos tempos.
Se aceitamos que as pessoas devem estar no centro
das prioridades políticas, temos de ser capazes de
perceber a dimensão do desafio que se segue: cuidar
dos mais velhos. Este vírus destapou um inferno que
andava escondido. Já ninguém pode dizer que desconhece
as condições em que sobrevivem milhares de
idosos em muitos lares que as autoridades deveriam
investigar. Um país define-se pela forma como trata os
idosos, como preserva os seus saberes, valoriza a sua
sabedoria e é capaz de lhes garantir cuidados de saúde
dignos até ao último dia das suas vidas. Dito de outra
forma: estamos a falhar. O Estado está a falhar.
O cenário de terror vivido em muitos lares era, perdoem-me
a honestidade, expectável. E acontece porque
o Estado se demitiu de zelar pela proteção dos mais
velhos. Ao não fiscalizar o cumprimento da Lei, o Estado
abriu a porta ao abuso, à desumanidade, à tragédia. É
preciso garantir que os cuidados de enfermagem são
prestados por enfermeiros e que estes existem em número
suficiente. Neste caso, vou mais longe: defendo
que a direção dos lares deve ser entregue aos enfermei- }
8 9
GH VISÃO ENFERMEIROS
“
AS NOVAS GERAÇÕES QUEREM
MUDANÇA PORQUE JÁ NÃO
ACEITAM OS MÉTODOS ANTIGOS,
OS VÍCIOS QUE DURANTE ANOS
OUVIRAM OS PAIS E OS AVÓS
CRITICAREM SEM EFEITOS
PRÁTICOS. O MUNDO MUDOU
E PORTUGAL TEM DE MUDAR.
”
ros e que a tutela possa ser partilhada entre a Segurança
Social e a Saúde. É urgente colocar o cuidado dos idosos
como um dos grandes desafios da comunidade. Hoje
são os nossos pais e avós. Seremos nós amanhã.
A reflexão sobre o trabalho que há a fazer junto dos
mais velhos ajuda-nos a perceber a importância dos
esforços multidisciplinares. É uma boa forma de lançar
outro desafio que considero essencial: a coesão. Nos
tempos em que vivemos, o País precisa, mais do que
nunca, que as Ordens Profissionais do sector da saúde
sejam o garante da segurança e qualidade dos serviços
prestados, assim como da dignidade dos seus profissionais.
É urgente sermos capazes de unir esforços num
sentido de identificarmos um caminho comum.
A história política do SNS está repleta de desejos de
pactos prometidos, pactos envergonhados ou falhados.
Acredito que estamos de acordo em relação ao
essencial. É preciso mais investimento e mais rigor na
gestão. É preciso mais valorização do mérito e menos
compadrio. É preciso mais ação e menos política. O
que fica para trás, como efeito da pandemia, é uma
fatura muito pesado ao nível dos cuidados gerais de
Saúde. Adiaram-se consultas, cirurgias e exames. O
medo forçou milhares de portugueses, doentes crónicos,
a recusarem tratamentos. Perante este cenário, vai
ser necessário um esforço suplementar para combater
alguns atrasos e voltar a cuidar das pessoas dentro do
tempo clinicamente viável. Isso pressupõe um plano,
um caminho que as Ordens devem ajudar a definir, em
conjunto, com ambição e sem medos.
Chegados a este ponto, o próximo desafio só pode
ser o da ação. Chegou a hora da verdade. Se por um
lado é necessário um plano claro, com objetivos e
compromissos ambiciosas para os próximos dez anos,
por outro, é preciso deixar as folhas de papel e saltar
para o terreno. É imperioso colocar um ponto final
no eterno subfinanciamento do sector e deixar de
arranjar desculpas para que o dinheiro tome outras
direções. É urgente ser eficaz no combate às listas de
espera das consultas, cirurgias e exames, nem que para
isso seja necessário encontrar um novo modelo de
organização. É imperativo avançar para o reforço do
quadro de pessoal no respeito pelas dotações seguras,
ao mesmo tempo em que se concretizam, de uma vez
por todas, as carreiras e as remunerações dignas para
os profissionais, assim como a aprovação do subsídio
de risco. Mas é preciso mais neste desafio da ação. É
urgente uma revolução na forma como se nomeiam
as administrações hospitalares, porque o cartão do
partido é manifestamente incompetente. E numa altura
em que muito se fala sobre a ajuda comunitária, é
fundamental que o dinheiro de Bruxelas, desta vez, seja
colocado ao serviço das pessoas e não das clientelas
que gravitam na esfera do Estado.
Esta não pode ser mais uma oportunidade perdida para
fazermos o que tem de ser feito. Chegou o momento
de virar a página e começar a construir um tempo
diferente. As novas gerações querem mudança porque
já não aceitam os métodos antigos, os vícios que durante
anos ouviram os pais e os avós criticarem sem
efeitos práticos. O mundo mudou e Portugal tem de
mudar também.
Chegámos então ao último desafio. Vou chamar-lhe
rutura, fazendo justiça ao trabalho que estou a desenvolver
com a minha equipa deste que cheguei à Ordem
dos Enfermeiros. É preciso recomeçar. Andámos
durante vários anos com as prioridades trocadas, a fazer
favores, a pagar compromissos e a desvalorizar as
verdadeiras funções do Estado. Aqui chegados, deixaremos
de salvar bancos para proteger vidas. Deixaremos
de garantir rendas suspeitas a parcerias de betão
para investir nas pessoas que cuidam de pessoas. Chegados
a este momento de viragem, recusaremos, de
uma vez por todas, fazer da Saúde um negócio, percebendo
que ela é nosso bem mais valioso. Será assim o
amanhã. Será esta história que contaremos aos nossos
netos: Era uma vez um vírus que mudou, para sempre,
a nossa forma de estar, de sentir, enfim, de sonhar.
Depois dele, tudo mudou. Portugal recomeçou. Ã
10
GH VISÃO FARMACêUTICOS
RECUPERAR, REORGANIZAR
E RECONSTRUIR: SAÚDE
DE NOVO A PRIORIDADE
Ana Paula Martins
Bastonária Ordem dos Farmacêuticos
A
saúde já era a principal preocupação
dos portugueses, pelo que a pandemia
da Covid-19 só a veio acentuar.
Há números impressionantes quem
mostram o impacto da pandemia
nos cuidados de saúde prestados aos portugueses nos
últimos meses. O Ministério da Saúde já reconheceu
publicamente que os hospitais do Serviço Nacional de
Saúde (SNS) fizeram menos 85.000 cirurgias e menos
902 mil consultas, das quais 371 mil eram primeiras
consultas, durante os primeiros meses de pandemia.
Mais do que nunca, é urgente recuperar, reorganizar
(inovando) e reconstruir. Não há tempo a perder. Se
não conseguirmos retomar a atividade assistencial na
saúde, condenaremos o crescimento e o progresso
económico em Portugal por muitas décadas.
Vários estudos nacionais e internacionais apontam também
para um aumento da mortalidade não associada
à Covid-19, que parece ser explicada pela ausência de
cuidados de saúde aos doentes agudos graves, pela
progressão de algumas doenças do foro oncológico,
pela eventual descontinuação da cadeia de diagnóstico
e de tratamento ou pela descompensação de doentes
crónicos, com consequente mortalidade evitável. Não
podemos assistir impávidos e serenos ao crescimento
destes números. Pelo contrário, temos o dever cívico,
ético e moral de alertar, planear e participar num
regresso à atividade regular, na retoma das atividades
assistenciais do nosso SNS.
Esta crise sanitária tem de devolver ao país o contexto
necessário para um reforço do investimento na Saúde.
O contexto para reconstruir o nosso futuro, um futuro
assente na transição digital, na economia verde, na
ciência. O facto do SNS apresentar um bom desempenho,
mesmo nestes tempos de enorme exigência,
mostra a sua resiliência, mas mostra, acima de tudo,
a capacidade de resposta técnica, científica e humana
dos seus profissionais, com a sua natural dedicação aos
portugueses, e uma resposta efetiva que, através da
ciência, da inovação e das tecnologias, temos sido capazes
de incorporar no cluster da saúde em Portugal.
O SNS sofre de uma crónica insuficiência de financiamento.
Todos os indicadores nacionais e internacionais
o comprovam. Portugal investe em Saúde menos do
que devia, e para o desempenho que, apesar de tudo,
consegue manter. Não há investimento novo nem sequer
de reposição. Não há planeamento a médio e a
longo prazo. A inovação tende a entrar mais tarde em
Portugal e os orçamentos das unidades de saúde são
insuficientes, incumpríveis. Há mais de uma década que
não há reposição de equipamentos básicos nem obras
no edificado. As dívidas acumulam-se e quem paga, como
sempre, são os portugueses, os contribuintes e os
utentes de um serviço que vai apresentando mais ineficiências.
A despesa corrente em saúde aumenta todos
os anos, conforme refere o INE, mas esse aumento é
sempre mais acentuado na despesa privada, ou seja, suportado
pelas famílias, pelos seguros e subsistemas de
saúde privados. Portugal ocupou o 9.º lugar no ranking
europeu do peso relativo da despesa corrente em saúde
no PIB, com 1,9 p.p acima da média europeia.
Por tudo isto a prioridade, de entre as prioridades, é
colocar em marcha um plano de emergência para a
recuperação da atividade do SNS, tarefa simultaneamente
exigente e complexa, que obriga a uma liderança
política forte e ao envolvimento e participação
de todos os agentes: utentes, profissionais de saúde,
gestores e operadores da área da Saúde.
E esta prioridade e urgência revela-se em medidas simultaneamente
eficazes e transformadoras, que tornem
o sistema de saúde mais eficiente e humano. O
programa do Governo para esta legislatura prometeu
dar resposta a esta preocupação e concretizar muitas
das medidas já pensadas, algumas ensaiadas, outras em
ainda desenvolvimento: reforço e valorização do capital
humano na saúde; expansão de modelos de governação
autónomos sensíveis a uma governação clínica
orientada para os resultados; financiamento através de
uma Lei de Meios no SNS; e planeamento plurianual
dos investimentos, tal como previsto na Lei de Bases
da Saúde (LBS). São transformações fundamentais que
urge concretizar, a que se associam várias outras propostas
dos parceiros e movimentos cívicos na área da
Saúde. De entre essas medidas, salientam-se as que
foram apresentadas pelo movimento #sossns:
• Um médico de família e uma equipa de saúde para
todos os portugueses;
• Programa excecional para resolver listas de espera
para cirurgias, consultas e exames e cumprimento dos
Tempos Médios de Resposta Garantidos (TMRG) em
todas as especialidades;
• Vias Verdes clínicas com apoio da telemedicina e articulação
entre cuidados de saúde primários e cuidados
hospitalares;
• Promover a hospitalização domiciliária e serviços específicos
de assistência ao domicílio em articulação com
as associações de doentes;
• Desenvolver a medicina à distância para monitorização
e seguimento de doentes crónicos;
• Reforçar os serviços de proximidade de dispensa de
medicamentos, em articulação com os hospitais;
• Garantir o acesso à inovação terapêutica e tecnológica,
aproximando o país da média;
• Promover a literacia em saúde, a prevenção e participação
em saúde, com acesso gratuito a plataformas e
fontes de informação digitais para profissionais de saúde
e cidadãos;
• Novos modelos de gestão e governação clínica das
unidades e serviços de saúde, com valorização os profissionais
e das suas carreiras e reorganização dos serviços
hospitalares em unidades de cuidados integrados
e centros de responsabilidade integrados;
• Aumentar o financiamento público anual do SNS (na
ordem dos 7,5%), aproximando da média europeia em
percentagem do PIB.
Não podemos também esquecer a necessidade de
reforço da rede nacional de cuidados continuados, a
implementação de um plano de promoção da melhoria
dos lares e de proteção dos mais velhos, aspetos
fundamentais da reconstrução da nossa vida, neste regresso
ao futuro.
“
NUNCA, COMO HOJE, FOI
TÃO CLARO QUE PRECISAMOS
ENCONTRAR UM CAMINHO
COMUM PARA GARANTIR
O REFORÇO DO NOSSO SNS.
”
E, finalmente, de uma vez por todas, temos o dever de
ser realistas, de fazer acontecer, reforçando o SNS, na sua
atividade assistencial, para que os 10 milhões de portugueses
a ele possam aceder, mesmo assumindo que, uma
parte da prestação que o Estado tem de lhes garantir, pode
ser feita em estruturas não públicas, com uma regulação
forte e que sirva os interesses do País, livre de quaisquer
conflitos e interesse e separando claramente funções
de financiamento, de regulação e assistenciais.
Vivemos uma época extraordinariamente exigente. A
pandemia de covid-19 modificou os nossos hábitos, a
forma como nos relacionamos, como trabalhamos, como
socializamos, como vivemos o nascimento e a morte.
Modificou os nossos sonhos e os nossos planos enquanto
sociedade. Nunca, como hoje, estivemos tão
conscientes do esforço de reconstrução que temos
pela frente. Nunca, como hoje, a Saúde foi tão prioritária.
E nunca, como hoje, foi tão claro que precisamos
encontrar um caminho comum para garantir o reforço
do nosso SNS.
O acesso à saúde é um direito humano. É um fator de
coesão social. É uma dimensão fundamental da confiança
no nosso futuro coletivo. É para a Europa, e para
Portugal, neste momento particular da sua e da nossa
história, um desígnio de todos, para preservação de
valores e princípios do nosso contrato social. A história
jamais nos perdoará se não estivermos à altura das
decisões que temos de tomar. Coragem e realismo,
são atitudes fundamentais que os nossos líderes terão
de garantir para que a democracia se reforce, ao invés
de se enfraquecer, que a confiança regresse ao futuro
que teremos de reconstruir, num clima de cooperação
para recuperar para um tempo novo. Ã
12 13
GH VISÃO psicólogos
UMA VISÃO SUSTENTÁVEL
DA SAÚDE COM BEM ESTAR
Francisco Miranda Rodrigues
Bastonário da Ordem dos Psicólogos
O
Mundo está a confrontar-se com
a necessidade de enfrentar vários
desafios sociais complexos para os
quais são precisas análises e intervenções
multidisciplinares, diferentes
abordagens e uma aplicação da evidência científica
que deve explorar as potencialidades de campos ainda
pouco utilizados no domínio da melhoria das políticas
públicas. O nosso país não é exceção mas poderia tentar
ser exemplar, na prevenção e no desenvolvimento
das pessoas, sendo que para isso tem que alterar os
seus modelos de decisão política e planear muito mais,
e mais para além do ciclo político eleitoral.
A redução da pobreza e das desigualdades, a excelência
na educação, mais acesso a melhor saúde, comunidades
mais sustentáveis, o combate à crise climática e
uma sociedade mais envelhecida são apenas exemplos
que comportam tarefas que temos civilizacionalmente
a nosso cargo e das quais somos responsáveis, provisoriamente,
em nome das gerações vindouras. O
conhecimento da Psicologia, enquanto ciência que
estuda o comportamento e os processos mentais é
assim essencial e até central. Os psicólogos trabalham
transversalmente em toda a sociedade, desde a intervenção
precoce e educação, até à justiça, passando
pelas organizações, em todas contribuindo para a saúde,
num conceito de "saúde" como preconizado pela
OMS, “mais do que ausência de doença, representa
uma situação de completo bem-estar físico, psíquico
e social”, e fazem-no ao longo de todo o ciclo de vida.
No contexto mais específico da saúde, os psicólogos
podem trabalhar para: o desenvolvimento saudável, o
bem-estar e a saúde física e psicológica da população;
a adoção de comportamentos e estilos de vida mais
saudáveis (e a alteração de comportamentos de risco
para a Saúde); a melhoria da adaptação à doença, adesão
terapêutica, da recuperação após a doença e da
gestão da dor ou das doenças crónicas; a diminuição
da mortalidade e morbilidade; a melhoria dos cuidados
de saúde, diminuindo o tempo e frequência de
hospitalização, o número de consultas médicas e idas
às urgências; a humanização dos cuidados de saúde.
Estes são alguns exemplos do papel dos psicólogos.
O país tem cerca de 23.000 psicólogos, cerca 10.000
dos quais especialistas em diversas intervenções. Deste
modo, face às necessidades e aos recursos existentes,
defendemos que o Governo assuma uma Agenda da
Prevenção e do Desenvolvimento das Pessoas para
Coesão Social. Para a concretização deste instrumento
estratégico, a governação deve garantir que o trabalho
de desenvolvimento de competências das crianças e
jovens, promoção da inclusão e da sua autonomia é
apoiada por técnicos especializados no contexto educativo,
como os psicólogos, ao mesmo tempo que assume
medidas promotoras de uma efetiva avaliação
dos riscos psicossociais e de implementação de planos
de prevenção dos mesmos como uma realidade
dentro e fora do sistema de saúde, abrangendo assim
todos os trabalhadores portugueses e as lideranças das
organizações, para além de desenvolver um centro de
competências transversal a toda a administração pública
que desenvolva intervenções comportamentais de
melhoria da eficiências das políticas públicas de acordo
a evidência da ciência psicológica.
Especificamente no contexto da saúde deixo alguns
exemplos de medidas que preconizamos: manter, em
continuidade, a Linha de Aconselhamento Psicológico
SNS24, aumentar progressivamente o número de psicólogos
no SNS, incidindo prioritariamente na duplicação
do número de psicólogos nos Cuidados de Saúde
Primários (de 250 para 500), de modo a permitir o
diagnóstico e a intervenção precoce nos problemas
de saúde psicológica, bem como introduzir atempadamente
programas de literacia (em saúde psicológica)
e de promoção de hábitos de vida saudáveis e de
prevenção, assim como mudança de comportamentos
de risco, transversais à saúde; criar a carreira especial
de Psicólogo no SNS, a regularização das situações de
contratualização de Técnicos Superiores e Técnicos
Superiores de Saúde como forma de redução de iniquidades
e garantir a sua articulação com a atribuição
do título de especialista pela Ordem; reforçar as equipas
de saúde pública com psicólogos, potenciando a vigilância
epidemiológica dos fenómenos de Saúde e dos
seus determinantes, que podem aumentar os comportamentos
de risco ou os comportamentos protetores,
para além da melhoria da comunicação e gestão de
risco; investir no Programa Nacional de Prevenção da
Depressão; garantir o cumprimento integral da autonomia
dos serviços de psicologia enquanto modelo de
“
OS PSICÓLOGOS SÃO
NECESSÁRIOS PARA UM FUTURO
DE SUSTENTABILIDADE DE UM
SISTEMA DE SAÚDE.
”
gestão eficiente para maior acessibilidade aos serviços
prestados pelos psicólogos; criar vagas para a integração
de Psicólogos Estagiários (Psicólogos Júnior) de
modo construir também aqui o futuro do SNS. Mas o
acesso aos serviços dos psicólogos também precisa da
redução dos obstáculos no acesso à comparticipação
e redes dos seguros de saúde e especificamente também
da ADSE.
Os psicólogos são necessários para um futuro de sustentabilidade
de um sistema de saúde num contexto
de progressiva coesão social. Ã
14 15
GH VISÃO NUTRICIONISTAS
RETOMA DO SISTEMA
DE SAÚDE: ANTIGAS
E NOVAS PREOCUPAÇÕES
Alexandra Bento
Bastonária da Ordem dos Nutricionistas
O
novo coronavírus gerou alterações
na atividade quotidiana do sistema
de saúde, para responder a este
desafio pandémico. Numa primeira
fase, para mitigar a pandemia, o serviço
de saúde desviou os seus recursos para o tratamento
dos doentes com Covid-19.
No caso dos nutricionistas, nesta fase estiveram numa
linha menos visível, mas indispensável. Nos hospitais enfrentaram
vários desafios, quer na adaptação do acompanhamento
nutricional, quer na reestruturação de todo
o circuito de fornecimento de refeições hospitalares,
quer ainda na reorganização das consultas de nutrição,
maioritariamente à distância. No que respeita à intervenção
nos doentes com Covid-19 esta é fundamental,
em particular, naqueles em estado mais grave e crítico,
nos cuidados intensivos. Estes doentes apresentam um
elevado risco de desnutrição, pelo que o seu acompanhamento
precoce, com o estabelecimento de um suporte
nutricional adequado revela-se determinante para
a melhoria do prognóstico desta doença. Nos cuidados
de saúde primários, efetuaram por contacto remoto as
consultas de nutrição urgentes e prioritárias, analisaram
o perfil das necessidades da comunidade com a equipa
de saúde pública, prestaram apoio às equipas de família
dos utentes com necessidades especiais e prioritárias
e às equipas de cuidados continuados integrados,
bem como às unidades de cuidados na comunidade,
mantendo o contacto com os utentes e as respostas
às equipas através da referenciação, tendo ainda articulado
com as instituições locais para apoio dos cidadãos
carenciados com dificuldades em adquirir alimentos e
suplementos alimentares. Toda esta intervenção foi alinhada
com a estratégia do Programa Nacional para a
Promoção da Alimentação Saudável.
Numa pandemia como a que estamos a viver era impossível
manter toda a atividade normal e responder
aos doentes com Covid-19. Mas, no momento atual, é
essencial retomar - e intensificar! - os cuidados a todas
as outras doenças, em todo o sistema de saúde com o
Serviço Nacional de Saúde como "espinha dorsal", mas
articulado com os sectores privado e social.
Nesta nova fase de desconfinamento, onde se pretende
gerir as transições entre diferentes estádios na
saúde pública do país, não se pode esquecer o impacto
tremendo que esta situação gerou em toda a atividade
assistencial, descurando os doentes crónicos que são
um dos grupos mais afetados pela Covid-19 e também
os que pode fazer aumentar a mortalidade por esta
doença infeciosa.
O sistema de saúde conseguiu reorganizar-se na fase
de confinamento, mas este período terá resultado num
aumento de algumas doenças crónicas, pelo que após o
primeiro impacto da pandemia de Covid-19 temos novos
desafios, existindo agora um sentido de urgência na
retoma da prestação de cuidados de saúde, de forma
a garantir o acesso de todos os doentes não Covid-19
aos melhores cuidados de saúde de forma atempada.
Nesta nova fase é importante que se adote uma nova
estratégia de saúde pública para o presente e para o
futuro próximo, cientificamente fundamentada, integrando
as múltiplas dimensões de uma resposta à pandemia,
contando com a participação de todos para a
concretização dos resultados esperados, sem descuidar
todas as outras doenças que não a Covid-19.
Neste contexto de mudança de paradigma na intervenção
em saúde pública é imperiosa a centralidade
da alimentação adequada como fator determinante na
manutenção do estado de saúde das populações.
Sabemos que esta pandemia apanha Portugal num
contexto demográfico marcado pelo envelhecimento
da população com reflexos no estado da nossa saúde,
com destaque para a elevada prevalência de doenças
crónicas e para um elevado número de pessoas portadoras
de múltiplas patologias.
A par disto, sabemos, hoje, que a Covid-19 afeta preferencialmente
os idosos com doenças crónicas, mas
também sabemos que na origem da maioria destas
doenças crónicas, que provoca a morte ou a perda de
qualidade de vida, estão fatores de risco passíveis de
ser modificados, como é o caso dos maus hábitos alimentares
e, consequentemente, evitados. Tal exigem
uma complexidade de cuidados inquestionável, onde
a aposta na promoção da saúde e na prevenção da
doença terá que ser uma prioridade.
Uma população com melhores hábitos alimentares é
um fator crítico de sucesso para uma sociedade mais
produtiva, sustentável e economicamente competitiva.
E um melhor estado nutricional é determinante para a
melhoria do prognóstico de qualquer doença.
Esta crise pandemia torna mais saliente a necessária
centralidade da alimentação adequada e o papel dos
nutricionistas no sistema de saúde português. Contudo,
a carência de acessibilidade dos cidadãos a serviços
de nutrição, nos cuidados hospitalares (onde existem
pouco mais de 300 nos hospitais públicos!), mas principalmente
nos cuidados de saúde primários (onde só
existem 100 nutricionistas!), dificultam um adequado
suporte nutricional para um melhor combate à doença
nos utentes internados nas unidades de saúde e inviabilizam
medidas enérgicas de promoção da saúde
através da alimentação. Mas, pedir ao sistema de saúde
que se responsabilize isoladamente pelos resultados ou
ganhos em saúde é pedir de mais. A evidencia científica
demonstra que o desenvolvimento económico e social,
o rendimento e a escolaridade assumem uma enorme
importância na saúde da população. As pessoas com
menos instrução ou rendimentos tendem a estar mais
expostas a fatores de risco comportamentais, com particular
destaque para os riscos alimentares. Em Portugal
o inquérito nacional de saúde com exame físico, referente
a 2015, identificava que o grupo dos indivíduos
que não possuía nenhum nível de escolaridade, ou que
possuía apenas o primeiro ciclo do ensino básico, apresentava
uma prevalência de obesidade (43,1%) mais
do dobro comparativamente aos grupos de indivíduos
com maior escolaridade (ensino superior).
Mas, em Portugal os erros alimentares continuam a ter
um importante impacto nos resultados em saúde. Em
2017, cerca de 14% das mortes registadas estiveram
associadas a riscos alimentares, incluindo baixa ingestão
de fruta e hortícolas e elevado consumo de açúcar e
sal. E os mais expostos a estes riscos alimentares são os
que gozam de pior situação económica e social.
Entretanto, outra face que esta pandemia apresenta é
a da segurança alimentar. Para que os alimentos sejam
seguros, é preciso que não possam colocar a nossa
saúde em risco, através de perigos biológicos, químicos
ou físicos (food safety). Mas, em simultâneo, é necessário
que eles estejam disponíveis e que tenhamos capacidade,
física e económica, para os adquirirmos com o }
16 17
GH VISÃO NUTRICIONISTAS
“
PARA MELHOR VENCERMOS
AS ANTIGAS E AS NOVAS
PREOCUPAÇÕES É IMPERIOSA
UMA NOVA ESTRATÉGIA DE SAÚDE
PÚBLICA QUE NÃO NEGLIGENCIE
OS ANTIGOS PROBLEMAS.
”
objetivo de satisfazer as necessidades em nutrientes e
as preferências alimentares, permitindo uma vida ativa
e saudável (food security).
Há cinco anos, 10% das famílias em Portugal experimentaram
insegurança alimentar, ou seja, tiveram dificuldade
de fornecer alimentos suficientes a todo o
agregado, devido à falta de recursos financeiros. Hoje,
de acordo com dados de um estudo da Direção-Geral
da Saúde que pretendeu conhecer os comportamentos
alimentares em contexto de contenção social, um
terço dos portugueses manifesta preocupação com
uma eventual dificuldade no acesso a alimentos e 8,3%
relata mesmo ter dificuldades económicas para os adquirir.
São dados que nos devem preocupar. Acresce
que o risco de agravamento da situação é significativo,
dada a situação de crise que se avizinha.
Assim, a problemática da insegurança alimentar poderá
agravar-se ainda mais no tempo, pelo que é essencial
conjugar esforços para o desenvolvimento de uma estratégia
que articule setores e atores sociais relevantes
por forma a garantir o direito humano a uma alimentação
adequada. Tal exige medidas que promovam o
acesso de toda a população a uma alimentação adequada
como fator determinante para a redução das
desigualdades em saúde.
O assunto não diz respeito somente ao sistema de saúde,
deve ser uma responsabilidade compartilhada em
que todos têm um papel a desempenhar, como sugere
a estratégia formalmente aprovada pela União Europeia
no passado mês de maio, “do prado ao prato”, para um
sistema alimentar justo, saudável e amigo do ambiente.
A Organização Mundial da Saúde apresenta uma visão
abrangente de sistema de saúde incluindo “todas as
atividades que têm como finalidade essencial a promoção,
a recuperação ou a manutenção da saúde”. Entre
nós, utiliza-se uma visão mais restritiva, compreendendo
os estabelecimentos que prestem cuidados de
saúde, com um “papel central do Serviço Nacional de
Saúde enquanto garante do cumprimento do direito
à saúde”, tal como previsto na Lei de Bases da Saúde.
Há muito que sabemos que a escola é um local privilegiado
para a promoção da saúde e para a modulação
de comportamentos alimentares, visto proporcionar
aos alunos conhecimentos e competências para a adoção
de comportamentos saudáveis. Mas em Portugal a
ação nestes domínios tem merecido nota insuficiente.
Este ano fomos brindados com a boa notícia da possível
contratação de nutricionistas para as escolas (que
não os há!), prevista no Orçamento do Estado, esperando-se
que ela se efetive, pois, o regresso às aulas
este ano vai trazer novos desafios.
Mas, há outros setores em que a necessidade de uma
nova abordagem ficou patente no decurso desta pandemia,
como é o caso das instituições do setor social
que necessitam de uma aposta urgente em matéria
de saúde, particularizando as questões nutricionais,
pela sua ação junto das populações mais vulneráveis,
incluindo os mais idosos.
Igualmente as autarquias locais, devem intensificar a
sua intervenção na modulação de comportamentos
saudáveis dos seus munícipes e reforçar a sua colaboração
com as instituições de saúde.
Esta pandemia deve constituir uma oportunidade para
se articular melhor setores e atores sociais relevantes,
cuja necessidade foi evidente nos últimos meses
que vivemos.
Temos um grande desafio em termos de saúde pública
pois estamos perante uma doença transmissível
que afeta as pessoas de idade mais avançada que têm
doenças não transmissíveis crónicas, como as doenças
cardíacas e oncológicas, a hipertensão arterial e a diabetes,
fortemente associadas à alimentação. Estes eram
os antigos problemas de saúde, com destaque para
uma outra pandemia, a obesidade, que continuam a
marcar o perfil epidemiológico atual, o que traz grandes
desafios à sociedade e ao sistema de saúde. Tudo
somado à presença de um vírus pandémico entre nós.
Este cenário é e continuará a ser o “novo normal”.
Para melhor vencermos as antigas e as novas preocupações
é imperiosa uma nova estratégia de saúde
pública que não negligencie os antigos problemas, sublinhando
as questões alimentares como um grande
determinante de saúde pública e os nutricionistas como
o seu agente. Ã
18
GH saúde pública
PLANEAMENTO:
UMA NECESSIDADE PREMENTE!
Ricardo Mexia
Médico especialista em Saúde Pública, Presidente da ANMSP
Vamos entrar numa fase particularmente
importante do combate à
pandemia e é necessário planear um
período que se afigura complicado.
Seguramente que toda esta situação
da pandemia gera particular preocupação, sendo certo
que só será possível ultrapassar a situação de forma definitiva
de uma de três maneiras: encontrando uma solução
terapêutica eficaz e segura; desenvolvendo uma
vacina; atingindo imunidade de grupo. Como aparentemente
nenhuma das opções se afigura particularmente
próxima, provavelmente devemos preparar-nos para
ter de manter contacto com o vírus durante mais algum
tempo. E isso implica uma adaptação de todos os
sectores para o médio-longo prazo.
O Outono/Inverno, com a epidemia sazonal de gripe
irá representar desafios adicionais, e é fundamental antecipar
problemas, encontrar as soluções e implementá-las
agora para que tenhamos já capacidade agilizada
quando vier a ser necessário. Passar de uma situação
reativa para um cenário de maior proatividade poderá
ser a chave que nos permita ultrapassar as dificuldades
com mais agilidade.
Há um texto que se tornou famoso, da autoria de
Tomas Pueyo, com o título “The Hammer and the
Dance” 1 que descreveu, em março, a necessidade de
uma intervenção inicial mais abrangente e disruptiva (o
martelo), seguida de uma abordagem mais longa, com
medidas mais direcionadas e limitadas, ajustadas à evolução
da situação (a dança). Importa ter a capacidade
de comunicar esta “dança”, feita de avanços e recuos
e incutir nas pessoas a perceção de que a evolução e
controlo da situação está nas suas mãos e nas atitudes
que forem tomando. Sem ignorar o papel dos operadores
económicos (e a adaptação das suas atividades
para minimizar o risco) ou do Governo (dotando o
país da capacidade de resposta necessária), seguramente
que aquilo que todos individualmente formos
fazendo terá uma influência determinante na evolução
da situação epidemiológica.
Portanto a defesa das medidas individuais é fundamental.
Correndo o risco de ser repetitivos não podemos
deixar de insistir na necessidade de manutenção de
uma boa etiqueta respiratória e higienização frequente
das mãos, reforçadas pelo distanciamento físico e utilização
de máscara sempre que haja proximidade com
outras pessoas fora do nosso agregado familiar. Outro
aspeto, enraizado na nossa cultura, que importa mudar
é o presentismo, ou seja as pessoas continuarem
a frequentar a escola ou apresentarem-se ao trabalho
quando estão doentes.
Sabemos que muitos dos casos identificados ocorrem
em contextos sócio económicos particularmente desiguais
e, portanto, há aspetos que têm de ser tidos em
conta. Em contextos de enorme precariedade laboral,
muitas pessoas não têm proteção social e, portanto,
apenas obtêm rendimentos mediante trabalho efetivo.
Ou seja, se ficarem em isolamento (o doente) ou
quarentena (os restantes coabitantes) perdem qualquer
fonte de rendimento, o que inviabiliza a sustentabilidade
do seu agregado familiar. Adicionalmente,
no contexto de desigualdade social é também mais
frequente que as habitações tenham um número elevado
de coabitantes, o que também implica limitações
importantes à capacidade de manter um isolamento
ou quarentena de forma eficaz.
Portanto a resposta do ponto de vista social tem de
ser reforçada, para permitir uma intervenção de Saúde
Pública. A existência de equipas mistas que respondem
a esta realidade é uma boa solução e maximiza a capacidade
de identificar os problemas e uma solução mais
atempada dos mesmos.
Uma das questões que tem sido levantada prende-se
com a necessidade de prestar atenção ao que se passa
com as outras doenças que não o Covid-19. Não é
plausível que essas doenças tenham sido colocadas em
pausa pela existência da pandemia e, portanto, o mais
provável é que exista uma evolução silenciosa que não
pode deixar de nos preocupar. Existem sinais diretos e
indiretos que podem dar alguns indicadores para perceber
o problema. A suspensão da atividade assistencial
normal levou ao cancelamento de um número elevado
de consultas médicas, de exames complementares de
diagnóstico e de intervenções cirúrgicas, por exemplo.
De acordo com dados revelados pela Ordem dos Médicos
“nos três meses de maior confinamento - março,
abril e maio - houve menos 900 mil consultas hospitalares,
numa quebra de 38% em termos homólogos;
uma redução de 93 mil cirurgias, numa redução de
57%, menos 3 milhões de consultas presenciais dos
centros de saúde e uma redução de 44% no recurso
aos serviços de urgência, em termos homólogos” 2 .
De acordo com a Sociedade Portuguesa de Transplantação
(SPT), a pandemia de Covid-19 obrigou ao cancelamento
ou à suspensão de vários transplantes, representando
uma diminuição de 52% neste tipo de operações
entre março e junho de 2020, em comparação
com o período homólogo (147 comparado com 207) 3 .
Esta situação tenderá a agravar-se se não houver uma
rápida inflexão e existirem mecanismos que permitam
recuperar o que foi sendo atrasado. Há aqui um efeito
“escondido” que é o facto de as listas de espera cirúrgicas
não terem aumentado de forma significativa. Como
houve uma quebra também nas consultas e exames
complementares, o diagnóstico e consequente inclusão
na indicação para cirurgia ficou também prejudicado.
A quebra nos episódios de urgência é também difícil de
explicar, pois não poderá apenas representar a diminuição
de atividades e consequente diminuição de acidentes
e lesões. Há seguramente um receio da população }
20 21
GH saúde pública
“
OUTRO ASPETO QUE NÃO PODE
DEIXAR DE NOS PREOCUPAR
PRENDE-SE COM A VACINAÇÃO
E A QUEBRA NA COBERTURA
VACINAL. DADOS DO PORTAL
DO SNS REVELAM QUE
“O NÚMERO DE VACINAS
ADMINISTRADAS EM MAIO
CAIU MAIS DE 40%
EM COMPARAÇÃO COM
O MESMO MÊS DE 2019.
”
em aceder às unidades de saúde o que pode ter impactos
importantes na evolução das dinâmicas da doença.
Já estamos a verificar um impacto importante na mortalidade.
De acordo com dados revelados pelo Ministério
da Saúde, “morreram mais 2973 pessoas (mais 9%) em
Portugal, por todas as causas, entre março, no início
do estado de emergência devido à Covid-19, e junho,
em comparação com o mesmo período de 2019” 4 .
Atendendo a que a mortalidade atribuída ao Covid-19
representa menos de metade destes números, há um
excesso de mortalidade por outras causas que é preocupante.
Importa estudar estes aspetos em maior detalhe
para identificar as causas e intervir sobre elas.
Outro aspeto que não pode deixar de nos preocupar
prende-se com a vacinação e a quebra na cobertura
vacinal. Dados do Portal do SNS revelam que “o número
de vacinas administradas em maio caiu mais de
40% em comparação com o mesmo mês de 2019, fixando-se
em 300.693, (…) e em maio de 2019 tinham
sido administradas 519.234 vacinas” 5 .
De acordo com a coordenação do Programa Nacional
de Vacinação “a maior parte da quebra registada no
número de vacinas administradas nos meses atingidos
pela pandemia de Covid-19 tem a ver com a vacinação
de adultos e adolescentes" 6 .
Esta quebra na cobertura, caso não seja recuperada,
poderá vir a originar surtos, o que será de todo evitável.
Importa também realçar com a chegada do Inverno,
da necessidade de implementar uma iniciativa
robusta de vacinação contra a gripe. O Governo já
anunciou o reforço do número de vacinas da gripe disponíveis
e a antecipação da campanha de vacinação 7 .
É fundamental que também se aposte numa melhor
cobertura em profissionais de saúde, grupo com cobertura
vacinal tipicamente baixa.
Face a tudo isto é importante ter a perceção que o
funcionamento do SNS e do nosso Sistema de Saúde
deve retomar o seu funcionamento normal, para fazer
face à carga de doença existente. E que deveremos ter
recursos para responder às necessidades causadas pela
existência da pandemia.
Mais uma vez, o planeamento da recuperação das diversas
atividades assistenciais é essencial e tem que acomodar
o normal funcionamento, mais essa produção
adicional. Há diversos mecanismos pré-existentes nesse
sentido, mas face à dimensão do problema talvez sejam
necessárias novas soluções, mais abrangentes, para que
se possa ser bem sucedido numa escala aceitável.
Soluções concretas que podem ser reforçadas são a
criação de equipas de resposta rápida que, perante
o surgimento de casos num determinado contexto
(empresa, escola, lar ou estabelecimento prisional,
por exemplo) de forma célere são mobilizadas para
realizar todas as atividades necessárias à contenção do
problema. Outra questão que já tem vindo a ser sinalizada
é a necessidade de dimensionar a estrutura
de rastreio de contactos para conseguir responder ao
previsível aumento da procura. A existência de profissionais
dedicados a esta tarefa, treinados e disponíveis
para responder rapidamente é fundamental e devem
estar capacitados antes do mais que provável embate
do Outono/Inverno. Atendendo a que estes profissionais
desempenham as suas funções principalmente à
distância (usando meios eletrónicos ou telefónicos) a
sua localização acaba por ser irrelevante e podem dar
resposta a situações em todo o território nacional.
Um aspeto que talvez não tenha merecido atenção e
que vale a pena sinalizar é a necessidade de atualização
e formação dos profissionais. Perante a pandemia, que
deixou muitos dos serviços assoberbados por esta nova
realidade, a formação acabou por ficar descurada. E seguramente
que seis meses é um tempo demasiado longo
para esta situação, que é até provável que se prolongue.
Assim, importa identificar esta lacuna e encontrar
soluções para a sua resolução. As oportunidades para
a formação á distância não são novas e ganharam uma
relevância adicional neste período, sendo fundamental
encontrar maneira de as incluir nas rotinas dos serviços
e simultaneamente manter a operacionalidade. Isto é
particularmente importante em questões conexas com
a pandemia, com uma evolução constante do conhecimento
e da abordagem do doente. Mas é também
extensível para outras questões, cabendo às entidades
empregadoras reforçar os meios disponíveis nesta área.
Assim, o planeamento desempenha um papel central
na resposta à pandemia. Importa que esse planeamento
acautele a resposta para cenários previsíveis e que
haja também aqui a preocupação de treinar estes cenários
com exercícios de simulação. Pode haver uma perceção
que perante a situação difícil que atravessamos,
“perder tempo” a fazer exercícios é desperdiçar tempo
que não temos, mas os ganhos em identificar as lacunas
e fragilidades proporcionados, serão seguramente uma
vantagem importante no médio/longo prazo. Ã
1. https://medium.com/@tomaspueyo/coronavirus-the-hammer-and-the-dance-be9337092b56
2. https://www.jornaldenegocios.pt/economia/saude/detalhe/ha-muitos-doentes-por-tratar-bastonario-propoe-programa-para-recuperar-consultas-cirurgias-e-exames
3. https://tvi24.iol.pt/sociedade/transplantes/transplantacao-de-orgaos-recuperacao-da-atividade-esta-a-ser-feita-de-forma-algo-lenta
4. https://www.publico.pt/2020/07/03/sociedade/noticia/ine-excesso-mortalidadereverteu-segunda-semana-junho-1922951
5. https://www.publico.pt/2020/06/03/sociedade/noticia/vacinas-administradasmaio-cairam-40-1919202
6. https://tvi24.iol.pt/sociedade/coronavirus/quebra-na-vacinacao-durante-pandemia-de-covid-19-deve-se-sobretudo-a-adultos-e-adolescentes
7. https://sicnoticias.pt/pais/2020-06-24-Reforco-de-38-nas-encomendas-da-vacina-da-gripe-para-este-ano
22 23
GH CUIDADOS DE SAúDE PRIMÁRIOS
RESPOSTA À COVID 19:
O QUE FOI FEITO
E O QUE HÁ PARA FAZER
Maria Isabel Pereira dos Santos
Colégio de Medicina Geral e Familiar
Paulo Santos
Colégio de Especialidade de Medicina Geral
e Familiar - Faculdade de Medicina da Universidade
do Porto
Victor Ramos
Colégio de Especialidade de Medicina Geral
e Familiar - Escola Nacional de Saúde Pública
- NOVA (UNL)
*
Gonçalo Envia
Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Familiar
- Ordem dos Médicos; Coordenador da Equipa Regional
de Apoio da ARS Lisboa e Vale do Tejo; Assistente de Medicina
Geral e Familiar - USF Lapiás - ACeS Sintra - ARSLVT
A
pandemia de coronavírus apanhounos
de surpresa. Uma doença infeciosa
voltou a criar o pânico entre a
população e profissionais de saúde:
não existe vacina disponível nem
tratamento eficaz. Os dados iniciais mostraram uma taxa
de letalidade de 4% e em alguns países europeus
ainda maior 1 . É um padrão que nos recorda as históricas
epidemias da peste negra e dos grandes surtos
de gripe, com elevada incidência e mortalidade. Em
2009/10, os Cuidados de Saúde Primários (CSP) tiveram
de se organizar para combater a gripe A, mas
Joana Monteiro
Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Familiar
- Ordem dos Médicos; Assistente de Medicina Geral e Familiar
-USF Odisseia - ACeS Maia-Valongo ARSNorte
Os autores descrevem a reorganização que foi necessária fazer em função do conhecimento sobre a doença, no contexto
do surgimento da epidemia Covid-19 em Portugal. Identificam as alterações introduzidas na prestação de Cuidados de
Saúde Primários, as aprendizagens a partir das disfunções apresentadas e fazem propostas para melhorar a capacidade
de resposta estratégica e governativa, neste nível de cuidados, para o presente e futuro do SNS.
quando a epidemia se declarou na Europa já tínhamos
vacina disponível e reservas suficientes de antivírico eficaz
2 . Os serviços prepararam-se mas pouca necessidade
houve de alterar o modo de prestação de cuidados.
A Covid-19 é uma doença infeciosa de predomínio respiratório
com amplo espetro de apresentação clínica,
desde casos paucissintomáticos em cerca de 80% dos
doentes até uma pneumonia severa com falência multiorgânica
em 6%, potencialmente fatal 3 . A suspeita depende
dos contactos e da clínica, e a certeza diagnóstica
é o teste confirmatório da presença do vírus SARS-
-CoV-2. Além dos doentes temos um número indeter-
minado de casos de pessoas assintomáticas, porém capazes
de transmitir a infeção 4 , e que permanecerão assintomáticas
na sua maioria 5 .
Esta pandemia afasta-nos uns dos outros, e afasta-nos
do perfil e da organização de cuidados a que estamos
habituados. Sentimos medo nas pessoas e sentimos
medo nos profissionais de saúde.
As respostas e as aprendizagens dos Cuidados de
Saúde Primários durante a pandemia
A melhor resposta a uma epidemia é a antecipação. Perante
uma doença desconhecida, temos de observar os
acontecimentos nos focos iniciais da infeção, identificar
os fatores facilitadores da disseminação, perceber as estratégias
para cada contexto e avaliar a eficácia das respostas
encontradas.
A primeira fase teve como objetivo a contenção da
transmissão da infeção. Apesar da informação disponível
internacionalmente, não dispúnhamos do equipamento
de proteção individual adequado e suficiente
para o funcionamento de toda a rede de saúde pública,
nem dos testes necessários para diagnóstico. A atuação
dos CSP centrou-se em assegurar respostas mínimas,
mas eficazes, para identificar, delimitar e diminuir as cadeias
de contágio, isolar e acompanhar os casos suspeitos
na comunidade, manter as unidades de saúde e os
profissionais sem infeção e assegurar a manutenção dos
cuidados de saúde essenciais. Reorganizou-se a estrutura
assistencial, num esforço para identificar os casos
suspeitos que seriam orientados no protocolo vigente,
tentando manter a filosofia e os princípios de trabalho
da MGF no compromisso de prestação de cuidados
abrangentes e em continuidade à população. Esta
visão clínica permite uma adaptabilidade local dentro
de objetivos estratégicos que tem sido basilar no Serviço
Nacional de Saúde (SNS). Exige uma liderança forte,
confiável, capaz de definir metas, criar dinâmicas para
a sua concretização e agregar as pessoas à volta das
melhores estratégias para as alcançar.
Tivemos o acaso de ser um dos últimos países europeus
com casos prevalentes, o que poderia ter sido benéfico
se tivéssemos sabido incorporar precocemente
a informação disponível. As áreas dedicadas à Covid-19
6 (ADC) poderiam ter sido implementadas antecipadamente,
garantindo uma visão estratégica nacional
e deixando à autonomia de cada ACeS a sua organização
local, permitindo otimizar respostas e poupando
stress escusado aos profissionais de saúde, à semelhança
do que havia ocorrido na pandemia da gripe
A. Os processos de contratualização deveriam ter sido
suspensos, libertando os serviços para a necessária reorganização.
Sem testes em número suficiente, faltou
uma estratégia clara de testagem 7 aplicável ao caso concreto,
levando à bizarria de ter doentes com critério
clínico e epidemiológico a aguardar um telefonema (de
barragem) para aceder ao teste confirmatório.
Na ausência de uma estratégia abrangente para os CSP, }
24 25
GH CUIDADOS DE SAúDE PRIMÁRIOS
“
INSTITUIU-SE UM MODELO
DE TRABALHO MAIS ABERTO
E COLABORATIVO, PERMITINDO
OS AJUSTAMENTOS NECESSÁRIOS
EM CADA MOMENTO E A CRIAÇÃO
DE NOVOS PROTOCOLOS
E FLUXOGRAMAS DE DECISÃO.
”
a Ordem dos Médicos /Colégio de Medicina Geral e
Familiar propôs um conjunto de princípios gerais que
visavam orientar a ação e o exercício profissional, influenciar
as administrações a flexibilizar horários de trabalho
e a permitir trabalho de retaguarda e teletrabalho, garantindo-se
o acesso remoto aos registos clínicos pelos
profissionais em quarentena 8 . Mais do que simplesmente
definir serviços mínimos para a atividade assistencial
presencial, procurou-se garantir vias alternativas
e eficientes para manter o contacto dos utentes com a
equipa de saúde, com atenção especial aos mais vulneráveis,
promover a proatividade na reorganização dos
serviços, simplificar procedimentos relativos à prescrição
de medicamentos e exames de diagnóstico, reforçar
o papel do médico de família, e da equipa de saúde
familiar, na introdução das medidas de distanciamento
social, e garantir a existência dos equipamentos de proteção
adequados ao contexto. No geral, procurou-se
proporcionar condições organizativas para manter pessoas
e doentes afastados dos serviços de saúde, exceto
quando estritamente necessário, diminuindo a probabilidade
de contágio, e proteger os profissionais de
saúde para poderem assegurar os cuidados de saúde
à população.
Os utentes foram informados das alterações e intensificaram-se
os contactos telefónicos e por e-mail. Reorganizaram-se
escalas de serviço e horários de trabalho
para evitar a presença física, em simultâneo, de toda a
Figura 1: Distribuição dos doentes Covid-19 pelo internamento hospitalar, unidades de cuidados intensivos e ambulatório em Portugal até 27 de junho (fonte: DGS, 2020).
equipa na mesma unidade de saúde. O contacto à distância
substituiu uma parte significativa do normal agendamento
presencial. Os espaços foram adaptados para
criar circuitos alternativos para utentes e profissionais
e salas de isolamento para os doentes. Instituiu-se um
modelo de trabalho mais aberto e colaborativo, permitindo
os ajustamentos necessários em cada momento
e a criação de novos protocolos e fluxogramas de decisão.
Os utentes foram estratificados por níveis de risco
e necessidade de cuidados para assegurar o atendimento
à doença aguda não-Covid-19, e o acompanhamento
da doença crónica. Foi colocada grande ênfase
nas medidas de proteção individual e coletiva, no arejamento,
limpeza e fardamento, adequando os procedimentos
de higiene e de contenção de propagação
de infeção.
Neste enquadramento, é fundamental uma comunicação
eficaz, capaz de compensar os constrangimentos
da restrição à presença física. Na ausência dos recursos
nos serviços, os profissionais disponibilizaram voluntariamente
equipamentos pessoais, superando deficiências
e insuficiências dos equipamentos, linhas telefónicas
e sistemas de comunicação. Nunca os médicos dos
CSP telefonaram tanto e enviaram tantos e-mails. Os
“Diários de uma pandemia” do Instituto de Saúde Pública
da Universidade do Porto têm mostrado que o
contacto telefónico com os médicos de família tem suplantado
o recurso à Linha Saúde 24. Não sendo a melhor
opção, foi a necessária para abordar rapidamente
o problema, mas a prazo requer um reforço rápido dos
recursos existentes.
Inevitavelmente, houve também atingimento dos recursos
humanos, ao nível dos profissionais que foram
colocados em quarentena por doença, por contacto
próximo, ou por situação de risco de gravidade. Novamente
a iniciativa partiu dos profissionais no terreno.
Em alguns locais foi necessário juntar unidades existentes
num modelo de group practice, garantindo a continuidade
de cuidados por partilha do processo clínico
eletrónico. Uma parte importante dos procedimentos
de seguimento dos doentes pode, e deve, ser realizada
por outros grupos profissionais nomeadamente a enfermagem,
na sua dimensão de acompanhar e cuidar,
e outros, incluindo os secretários clínicos, assegurando
a gestão da comunicação, a acessibilidade e a proximidade
à equipa de saúde.
As ADC na Comunidade (ADC-C) trouxeram novos
circuitos, fluxogramas e aplicações informáticas. Deslocalizaram-se
das unidades de saúde, criando um circuito
externo dos doentes entre as unidades de saúde
onde recorriam e o local para serem observados. Os
protocolos respondiam ao combate ao Covid-19, dicotomizando
a decisão clínica em positivo ou negativo,
e deixando um número significativo de doentes sem
resposta assistencial concreta. Obrigaram a um atendimento
distinto da regular consulta em MGF, pelo que
deveriam estar baseadas em equipas estáveis principalmente
formadas por voluntários, em regime rotativo,
com previsão dos necessários reforços e separadas dos
restantes profissionais, permitindo implementar fluxogramas
de procedimento claros para a receção e encaminhamento
dos doentes em ambulatório, e com
formação específica 9 .
Por último, nesta gestão da pandemia surge o Trace-
-Covid 6 , um instrumento de vigilância epidemiológica
desgarrado do sistema e das aplicações informáticas
em uso no SNS. Esta plataforma poderá ter vantagens
no seguimento de utentes com necessidade de potencial
monitorização. Porém, os registos efetuados não
migram diretamente para o registo clínico eletrónico
do doente, obrigando a duplicar o trabalho de registo
com desperdício de tempo, atenção e esforço numa
repetição inexplicável de gestos, claramente ineficiente.
Nem sequer é um instrumento adequado para
investigação sobre acompanhamento clínico, pois os
dados da história atual e pregressa não-Covid estão
naturalmente, e bem, registados no processo clínico
individual do utente. Mais do que um repositório de
dados estruturados, as aplicações informáticas devem
ser uma forma de comunicação efetiva entre os níveis
de cuidados, suficientemente plásticas para permitir
uma adaptação à realidade local, e continuamente auditáveis
e auditadas para incorporar os inputs dos utilizadores
no terreno.
Apesar dos problemas, a rede de CSP funcionou no
apoio à população, mantendo um acompanhamento
próximo de todas as pessoas com receio, suspeita ou
infeção confirmada por SARS-CoV-2, permitindo manter
em ambulatório mais de 95% dos casos, gerir os
níveis de ansiedade social e reforçar a confiança da população
no SNS. Em 18 de março, mais de 80% dos
doentes encontravam-se orientados em ambulatório,
tendo este valor ultrapassado os 90% a partir de 24 de
março. A proporção de 80-14-6, descrita nas primeiras
séries da China, foi em Portugal de 95-4-1 (ambulatório -
internamento - cuidados intensivos), o que permitiu aliviar
a pressão sobre a rede hospitalar, contribuindo para
uma taxa de letalidade inferior a 4%, menor do que
muitos outros países, e para uma gestão mais equilibrada
dos recursos (Figura 1).
Propostas de reorganização e reformulação nos
Cuidados de Saúde Primários
As propostas para reorganização dos CSP surgem antes
da pandemia 10 e abrangem diversas áreas: o tamanho
adequado das listas de utentes, a organização do
trabalho em group practice, a alocação de recursos humanos
às reais necessidades dos serviços, a redução da
carga burocrática através de informatização eficiente e }
26 27
GH CUIDADOS DE SAúDE PRIMÁRIOS
“
OS CSP TÊM EVOLUÍDO COMO
BASE DE UM SNS QUE APESAR
DO DESINVESTIMENTO E DA
FRAGMENTAÇÃO DE QUE FOI ALVO,
COLOCOU O PAÍS ENTRE OS
MELHORES DO ESPAÇO EUROPEU
NO QUE À SAÚDE DIZ RESPEITO.
”
da transferência de tarefas técnicas, burocráticas e administrativas
para outros grupos profissionais, sem prejuízo
da manutenção da integridade do ato médico.
É necessário disponibilizar dados real-time que possibilitem
uma avaliação da qualidade assistencial nas diferentes
vertentes, capaz de gerar conhecimento para a
melhoria contínua dos processos assistenciais, organizacionais,
de gestão e de avaliação epidemiológica e racionalizar
os recursos existentes. A Covid-19 veio evidenciar
esta necessidade. A realocação dos recursos
afetados às ADC-C, com reduzido número de atendimentos,
e até sem atendimentos, tem sido disso um
exemplo. Na reformulação da norma 004/2020, é fundamental
assumir que a gestão diagnóstica, do seguimento
e da terapêutica do doente Covid-19 não depende
de um protocolo de aplicação cega, mas que
se rege pela decisão clínica personalizada, de quem é
elegível para ser testado, quando o fará, e como será
acompanhado em ambulatório ao longo do tempo até
ser dado como curado ou ter de ser referenciado a
outro nível de cuidados.
Será fundamental que as tecnologias de informação
estejam ao serviço do processo. É urgente parar com
a enxurrada de aplicações e exigir dos produtores dos
sistemas informáticos que respeitem a relação médico-
-doente, em vez de obrigar todos a adaptarem-se
constantemente a modelos que poderão servir muitos
objetivos, mas que, na prática, se distanciam de um
formato orientado para o doente e para a clínica: que
sejam sistemas de apoio à clínica e não barreiras à realização
da consulta 11,12 .
Da mesma forma, é crucial garantir eficiência na possibilidade
do doente contactar a sua equipa de saúde
familiar em caso de dúvida ou necessidade.
Para o futuro ficam algumas lições.
É necessária formação em medicina de catástrofe com
planos de contingência atualizados e treinados na prática
dos CSP; é necessário aperfeiçoar a rede informática,
nos equipamentos e nas aplicações, e criar condições
duradouras que permitam dinamizar a telemedicina
nas suas múltiplas dimensões; é necessário equipar
os centros de saúde com material adequado de proteção
individual, de fardamento, de equipamento de
apoio para higienização, etc.
É fundamental que os profissionais confiem nas cadeias
hierárquicas e clínicas e que estas sejam baseadas no
mérito, tecnicamente competentes, encurtadas e simplificadas,
ao nível de coordenações de unidades de
saúde, de ACeS e das ARS.
Apesar da emergência do combate ao Covid-19, não
podemos deixar de atender a doença aguda, doença
crónica, cuidados domiciliários, a prevenção nas diferentes
fases da vida, e restantes solicitações a que normalmente
os médicos de família são chamados a resolver.
Para isso é necessário repor o funcionamento dos
laboratórios e imagiologia, da Medicina Dentária, dos
profissionais paramédicos com formação, da Medicina
Física e Reabilitação, das consultas hospitalares para onde
referenciamos os doentes, de todo um sistema de
saúde que não se pode fechar com medo de ser infetado.
Os CSP têm evoluído como base de um SNS que,
apesar do desinvestimento e da fragmentação de que
foi alvo, colocou o País entre os melhores do espaço
europeu no que à Saúde diz respeito. Podem ser a base
do combate a esta epidemia mesmo enquanto não
temos uma vacina disponível. Temos profissionais motivados
e eficazes, capazes de usar os dados de saúde
para a decisão em benefício da população, promovendo
o acesso e a equidade aos serviços de saúde. É importante
que sejam devidamente valorizados para não
deixar escapar este potencial, provendo-os com os
meios necessários para realizar o seu trabalho. Os CSP
são a base da organização da saúde e não podem continuar
a ser sujeitos ao desinvestimento que se tem assistido
nos últimos anos através de suborçamentações
crónicas, justificadas em contratualizações forçadas de
indicadores meramente financeiros. É preciso olhar para
os CSP como um investimento em saúde e um fator
chave de sustentabilidade de todo o SNS.
Presos num agora, que veio alterar toda a nossa vida
pessoal, social e laboral nunca estivemos tão conscientes
do valor que a nossa ação individual tem para o
coletivo: é altura de preparar hoje o pós-Covid. Ã
EVAC
Unidades Higiénicas
Certificadas
Tem sido grande a recetividade do mercado nacional e estrangeiro, desde 2015, à gama
certificada de Unidades de Tratamento de Ar, UTA-H, que satisfazem todos os requisitos de
higiene aplicáveis especificados nas principais normas europeias, nomeadamente nas normas
DIN 1946-4, EN 13053 e VDI 6022-1.
1984
Há 35 anos a pensar em Unidades de Tratamento de Ar.
1999
Primeiro fabricante nacional com Certificação EUROVENT.
Atualmente, a nível mundial, são mais de 100 as empresas certificadas. A EVAC foi a 12ª.
2015
Primeiro fabricante nacional com Certificação Higiénica DIN 1946-4.
UTA-H
1. WHO. Coronavirus disease 2019 (Covid-19). Situation Report-41. https://
www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200301-
sitrep-41-covid-19.pdf?sfvrsn=6768306d 2. Date: March 1, 2020. Acedido: 5
de março de 2020.
2. MS. Relatório da Pandemia da Gripe em Portugal 2009. DGS, junho de 2010.
https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/relatorio-da-pandemia-da-gripe-ah1n12009-em-portugal-pdf.aspx
3. Li PJ et al. Intensive care management of coronavirus disease 2019 (Covid-19):
challenges and recommendations. The Lancet Respiratory Medicine.
Available online 6 April 2020. Acedido a 10 de abril. https://www.thelancet.
com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30161-2/fulltext
4. UpToDate. Coronavirus disease 2019 (Covid-19). Acedido: 11 de março
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5. Sakurai A. et al. Natural History of Asymptomatic SARS-CoV-2 Infection.
Correspondence. The New England Journal of Medicine. June 12, 2020 DOI:
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https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2013020
6. DGS - Norma 004/2020. Covid-19: Fase de Mitigação Abordagem do Doente
com Suspeita ou Infeção por SARS-CoV-2, data de 23/03/2020 atualizada
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7. ECDC. Technical Report. Novel coronavirus (SARS-CoV-2) Discharge criteria
for confirmed Covid-19 cases - When is it safe to discharge Covid-19 cases
from the hospital or end home isolation? https://www.ecdc.europa.eu/sites/
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8. Colégio de Medicina Geral e Familiar. Reorganização de serviços em Medicina
Geral e Familiar no contexto de exceção do combate à Covid-19 em 17 de
março de 2020. https://ordemdosmedicos.pt/reorganizacao-de-servicos-emmedicina-geral-e-familiar-no-contexto-de-excecao-do-combate-a-covid-19/
9. Colégio de Medicina Geral e Familiar. Recomendação do Colégio de MGF
sobre organização de "mini-equipas" exclusivamente destinadas ao serviço em
ADC nos CSP, 25/03/2020. https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/
2020/03/recomenda%C3%A7%C3%A3o-CMGF-26-2020-2vs.pdf
10. Colégio de Medicina Geral e Familiar. Desafios de hoje à gestão da prática
clínica de Medicina Geral e Familiar, 20/12/2019 https://ordemdosmedicos.pt/
wp-content/uploads/2020/06/2019.071-Desafios-de-hoje-a%CC%80-gesta%C-
C%83o-da-pra%CC%81tica-cli%CC%81nica-e-Medicina-Geral-e-Familiar.pdf
11. Colégio de Medicina Geral e Familiar. Efetividade e segurança dos Cuidados
de Saúde Primários para a redução da Covid-19 na comunidade, 30/03/2020.
https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2020/04/2020.027-Efetivi-
dade-e-seguran%C3%A7a-dos-Cuidados-de-Sa%C3%BAde-Prim%C3%A-
1rios-na-redu%C3%A7%C3%A3o-da-Covid-19-na-comunidade.pdf
12. Colégio de Medicina Geral e Familiar. Reorganização da atividade assistencial
e pandemia Covid-19 - Retoma faseada da resposta às restantes necessidades
de saúde, 05/05/2020. https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/
uploads/2020/03/Reorganiza%C3%A7%C3%A3o-de-servi%C3%A7os-em-M-
GF-_-Covid-19.pdf
www.evac.pt
28
Acreditamos na engenharia Portuguesa e no nosso trajeto. Acredite também.
A ENGENHARIA DO AR
GH saúde militar
O LABORATÓRIO MILITAR
NO APOIO AO SNS
E À SOCIEDADE CIVIL
Margarida de Sá Figueiredo de Almeida
Coronel Farmacêutica, Diretora do Laboratório Militar
de Produtos Químicos e Farmacêuticos
LMPQF: fachada principal do edifício.
Há mais de um século a servir Portugal
e os portugueses, o Laboratório
Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos
(LMPQF) é muito mais
que um laboratório.
Um longo caminho a garantir a logística sanitária, a produção
de medicamentos e de produtos farmacêuticos,
quer a nível nacional a todas as Unidades, Estabelecimentos
e Órgãos (UEO) do Exército, quer em teatros
de operações às Forças Nacionais Destacadas (FND),
assim como ações de sanitarismo e desinfestação.
Na tradução do conceito de uso dual nas Forças Armadas
(FFAA) o LMPQF utiliza sinergicamente e em
economia de escala, recursos humanos, materiais, financeiros
e de infraestruturas, cuja missão de cariz militar
se une à de cariz civil e de interesse público, mantendo
ainda um elevado conhecimento técnico e científico.
O LMPQF tem como missão “assegurar a logística
sanitária militar necessária ao sistema de saúde militar
(SSM) e às FFAA, aos seus familiares e aos deficientes
militares, e responder às necessidades dos serviços do
Ministério da Saúde, nomeadamente na produção e
manipulação de medicamentos”.
No apoio ao dispositivo territorial do Exército são
operadas sete sucursais que garantem um apoio logístico-farmacêutico
de proximidade muito significativo
em medicamentos e dispositivos médicos.
De acordo com a sua missão, são ainda atribuições
do LMPQF “produzir e manipular medicamentos, de
acordo com o disposto no regime jurídico dos medicamentos
de uso humano, e outros produtos de saúde
necessários ao abastecimento do SSM e das FFAA”,
“produzir medicamentos que não se encontrem autorizados
ou comercializados em Portugal e que sejam
imprescindíveis na prática clínica e a distribuir pela rede
hospitalar do SNS” e ainda “produzir medicamentos
para fazer a situações de emergência, de epidemia ou
pandemia” (como por ex. antídotos).
No âmbito do apoio à sociedade civil e em resposta
ao solicitado pela rede hospitalar do SNS, o Laboratório
Militar produz medicamentos manipulados e medicamentos
para doenças raras (como por ex. a histidina
cobre, utilizada na Síndrome de Menkes; citrato de cafeína,
usado em pneumologia neonatal) e outros que
por desinteresse da indústria farmacêutica deixaram
de ser produzidos, mas que, no entanto, são cruciais
no tratamento dos doentes que deles necessitam. Dos
medicamentos inexistentes no mercado nacional, quer
temporariamente quer de forma permanente, são cerca
de cinquenta os que estão a ser produzidos em
resposta ao solicitado pelos hospitais do SNS, como
por ex.: Carbonato de cálcio (Hemodiálise), Isoniazida
(Tuberculose), Xarope comum, Hidrato de cloral (Pediatria),
Pasta de Cocaína (Anestesia), etc.
Na produção dos medicamentos, nomeadamente nos
utilizados nas doenças raras, que afetam 5 em cada
10.000 cidadãos da União Europeia, o LMPQF pode
atuar como ferramenta de regulação ativa e de normalização
do mercado, à semelhança do que já acontece
nas FFAA de outros países.
Em toda a área de produção é fundamental assegurar a
qualidade quer das matérias-primas quer dos medicamentos
ou outros produtos acabados, que no LMPQF
é avaliada pelo laboratório de controlo de qualidade
de acordo com as especificações regulamentares;
As análises físico-químicas e microbiológicas de amostras
são outras das áreas importantes da capacidade
instalada no LMPQF;
Esta vertente da atividade farmacêutica, nomeadamente
no campo das análises de águas, tem particular
relevância em ambiente operacional e inclusive no âmbito
de programas de cooperação técnico-militar em
processos que, em parceria com a Engenharia Militar,
permitam a purificação e controlo da qualidade da
água, garantindo o acesso a água de qualidade para as
populações diminuindo a mortalidade, morbilidade e
controlando a disseminação de doenças;
Exemplo deste apoio à população foi o caso mais recente
em março de 2019 em Moçambique aquando
do ciclone Idai, em que integrado na Força de Reação
Imediata, o LMPQF desenvolveu ações de purificação
e desinfeção da água em aldeias isoladas, em coordenação
com o módulo de Engenharia.
Em apoio do Ministério da Saúde, o LMPQF, desde
há 20 anos que em colaboração com o serviço de
intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências
(SICAD) integra o projeto de produção }
Missão do LMPQF: Dec. Lei 102 de 2019.
LMPQF: Carregamento de material para FND.
LMPQF: Farmácia militar dos Olivais.
30 31
GH saúde militar
Produção: Área de manipulados.
Laboratório de microbiologia.
e distribuição de metadona por todo o país com mais
de dois milhões de saquetas/ano e mais de 10.000
frascos/1L, com cerca de 25.000 toxicodependentes
a serem apoiados.
No início de março, perante o surto de COVID19 a
Direção Geral de Saúde ativou a Reserva Estratégica
do Medicamento (REM) e solicitou ao Exército que,
através do Laboratório Militar, e conforme previsto no
DL 102/2019, fizesse o armazenamento, gestão e distribuição
da reserva nacional de medicamentos e de equipamento
de proteção individual nas suas instalações.
No atual contexto da Pandemia Covid19, o LMPQF,
em paralelo a toda a sua atividade, passou a exercer o
seu esforço no reabastecimento de equipamentos de
proteção individual (EPI) e produção de desinfetante
(SABA) para as FFAA e SNS, sendo que comparativamente
à atividade habitual a capacidade de produção
de SABA foi quadruplicada.
Face ao período pré-pandemia a atividade do Laboratório
Militar aumentou significativamente e diversificou-se.
Foram adaptadas instalações e efetuadas
alterações necessárias no sentido de melhorar as condições
de trabalho e segurança, não só para acomodar
o conjunto de equipamentos adquiridos para aumento
da produção de SABA como para fabrico de produtos
químicos cuja produção tem subjacente o risco de deflagração
e/ou explosão; nestas instalações estão a ser
Produção: Área de de sólidos.
“
FACE AO PERÍODO PRÉ-PANDEMIA
A ATIVIDADE DO LABORATÓRIO
MILITAR AUMENTOU
SIGNIFICATIVAMENTE
E DIVERSIFICOU-SE.
”
REM: Armazém.
REM: Descarregamento para armazém.
produzidos, entre outros produtos, descontaminantes
usados pelas equipas do Exército que têm atuado por
todo o país na descontaminação de instalações; estes
produtos podem também ser utilizados na resposta a
situações de incidentes/acidentes biológicos, químicos
ou radiológicos.
É assim com a motivação do contributo para a garantia
da soberania nacional, na capacidade de resposta a
situações de crise e emergência para produção de medicamentos
para doenças raras, bem como da constituição
de reservas estratégicas, que o Laboratório Militar
nunca esquecendo o passado, faz do agora um presente,
encarando com confiança e entusiasmo o futuro
sempre cientes da nobre missão de Semper et Vbiqve,
continuar a servir Portugal na defesa da saúde na salvaguarda
do cidadão. Ã
Metadona: Enchimento de frascos.
Metadona: Máquina de embalamento em saquetas.
32
GH emergência
A RESPOSTA DA EMERGÊNCIA
MÉDICA E OS IMPACTOS
NO TEMPO COM A COVID 19
Luís Meira
Presidente do INEM
No final de dezembro de 2019, foi reportado
um surto de pneumonia de
causa desconhecida na cidade chinesa
de Wuhan. A 9 de janeiro de 2020, a
Organização Mundial de Saúde (OMS)
revelou que as autoridades chinesas tinham identificado
a causa daquele surto: um novo vírus da família coronaviridae,
capaz de provocar doença na espécie humana.
Este novo coronavírus foi, posteriormente, designado
SARS-CoV-2 e a doença por ele causada, Covid-19.
A rápida propagação deste vírus fez com que a OMS,
a 30 de janeiro, declarasse o estado de emergência de
saúde pública internacional, seis dias depois dos três
primeiros casos serem reportados num país europeu
(França, 24 de janeiro).
A 11 de março, nove dias depois de ser confirmado
o primeiro caso de infeção por SARS-CoV-2 em Portugal,
a disseminação global do SARS-Cov-2 levou a
OMS a declarar a situação de pandemia, reconhecendo
formalmente as implicações da Covid-19 a nível
mundial e o seu forte impacto nos serviços de saúde.
Em poucos meses, um novo agente patogénico evidenciou
a impreparação de praticamente todos os
países para lidarem com esta pandemia e demonstrou
a pouca atenção que os decisores políticos prestaram
aos alertas feitos desde há vários anos por muitos especialistas
sobre a ameaça das designadas doenças infecciosas
emergentes 1 .
Infelizmente, muito pouco se aprendeu com alguns
“avisos” recentes feitos por outros membros da família
Equipa de transporte especializado.
coronaviridae (SARS 2 , em 2002 e 2003, e MERS 3 , em
2012), o que poderá ser atribuído à forma como esses
surtos evoluíram e que conduziu a uma falsa sensação
de segurança baseada na perceção de que a capacidade
instalada e as medidas implementadas permitiram o
seu controlo com facilidade.
Contudo, não se deve cair no erro de considerar que
o risco biológico tem sido completamente ignorado,
atribuindo a situação atual apenas à impreparação e falta
de planeamento e desvalorizando a capacidade de
diversos agentes patogénicos submicroscópicos para
provocar doença na espécie humana, originando verdadeiras
catástrofes.
Efetivamente, após os ataques terroristas de 11 de setembro
de 2001, a maior parte dos governos dos países
ocidentais tomaram subitamente consciência do
risco de novos ataques terroristas com recurso a meios
“não convencionais”, incluindo agentes biológicos. Essa
tomada de consciência, suportada por uma opinião
pública traumatizada que exigia a tomada imediata de
medidas, levou ao aumento do investimento e ao reforço
das capacidades de resposta, onde a colaboração
internacional e a vigilância epidemiológica passaram a
ter papeis mais relevantes. No entanto, esse esforço
focou-se essencialmente nos agentes patogénicos cuja
potencialidade para serem weaponized, isto é, convertidos
em “Armas de Destruição em Massa”, é bem conhecida,
relevando para segundo plano as doenças infecciosas
emergentes.
A trágica situação vivida em alguns países europeus,
com destaque para Itália e Espanha, onde o aumento
exponencial dos doentes com Covid-19 rapidamente
ultrapassou a capacidade instalada nos serviços de saúde,
serviu de alerta para países onde a entrada do vírus
ocorreu mais tardiamente.
Os ecos do colapso dos serviços de saúde italianos e
espanhóis facilitaram a adesão da sociedade portuguesa
às medidas de combate ao SARS-Cov-2 implementadas
pelas autoridades. Essas medidas, juntamente com
uma resposta inicial muito positiva da população e o
contributo exemplar dos profissionais de saúde, criaram
as condições para se controlar a situação, afastando
os cenários mais catastrofistas.
No entanto, a ameaça não desapareceu e a necessidade
de retomar a normalidade perdida implica um duro
processo de aprendizagem para podermos conviver
com este vírus com um mínimo de segurança, sem deixar
de aumentar a resiliência das populações e a capacidade
de reação a novos surtos, epidemias e pandemias
que, inevitavelmente, o futuro trará.
A resposta do Instituto Nacional de Emergência
Médica, I. P., à Covid-19
O Instituto Nacional de Emergência Médica, I. P. (INEM),
é a entidade do Ministério da Saúde responsável por
coordenar o funcionamento, no território de Portugal
continental, de um Sistema Integrado de Emergência
Médica (SIEM), de forma a garantir aos sinistrados ou
vítimas de doença súbita a pronta e correta prestação
de cuidados de saúde.
A gestão das chamadas de emergência na área da saúde,
realizadas para o 112, a assistência médica no local da
ocorrência, o transporte assistido das vítimas para o hospital
adequado e a articulação entre os vários intervenientes
do Sistema, são as principais atribuições do INEM.
Para garantir o funcionamento articulado do SIEM, o
Instituto dispõe de centrais com supervisão médica per-
manente, os Centros de Orientação de Doentes Urgentes
(CODU), responsáveis pela triagem dos pedidos
de socorro encaminhados pelas centrais 112, pelo
despacho de todos os meios de emergência médica
pré-hospitalar, pela sua coordenação no terreno e pela
preparação da receção hospitalar das vítimas.
A resposta do INEM à pandemia de Covid-19, assentou
em quatro grandes eixos:
• Garantir a operacionalidade dos meios e a continuidade
do cumprimento da sua missão;
• Garantir a assistência médica pré-hospitalar imediata
aos doentes suspeitos ou com Covid-19 com sinais
de gravidade;
• Apoiar as entidades do Ministério da Saúde e o próprio
Ministério na resposta nacional e internacional (no
âmbito da cooperação bilateral com os países de língua
oficial portuguesa) à Covid-19;
• Apoiar serviços essenciais de outras áreas governativas
na resposta à Covid-19.
Um aspeto fundamental passou, necessariamente, por
garantir a proteção adequada dos operacionais do
INEM. A este propósito refira-se que o Instituto teve
14 trabalhadores infetados com SARS-CoV-2, não registando
novos casos desde 7 de abril.
Antecipando futuras dificuldades de aquisição de Equi- }
34 35
GH emergência
pamentos de Proteção Individual (EPI), o INEM procurou
reforçar a aquisição dos componentes habitualmente
utilizados nos seus meios. No entanto, as entregas
destes equipamentos, sobretudo a partir de finais
de fevereiro, confirmaram os receios iniciais: algum
material foi entregue em quantidades muito inferiores
aos pedidos e, nalguns casos, pura e simplesmente não
foi entregue.
Durante os meses seguintes, o aumento brutal das necessidades
em EPI a nível mundial, e a quebra marcada
do fornecimento, condicionaram uma escassez global
de EPI e o aumento dos custos de aquisição para valores
absolutamente astronómicos, num mercado completamente
desregulado.
Esta realidade obrigou à criação de uma Reserva Estratégica
Nacional (REN) de EPI, com recurso à centralização
das aquisições no Ministério da Saúde, com o
INEM a contribuir de forma absolutamente essencial
para garantir a liquidez necessária para grande parte
destas aquisições, ao canalizar o seu saldo de gerência
para o esforço nacional de constituição da REN e, também,
para a aquisição de ventiladores.
Ainda sem casos positivos confirmados, a preparação
do INEM incidiu na identificação das medidas mais importantes
para garantir a continuidade da operação e o
cumprimento da sua missão, tendo sido desenvolvidas
várias ações, nomeadamente:
1. A revisão e atualização do Plano de Contingência do
INEM para Resposta a Agentes Biológicos, em março
de 2020, passando a incorporar todo o conhecimento
entretanto produzido sobre esta doença.
2. A produção e atualização de Normas e Orientações
Técnicas.
2.1. O desenvolvimento de diversas recomendações
Colheita.
Equipa de colheitas em Coimbra.
e orientações técnicas foi fundamental para garantir a
segurança dos operacionais e dos doentes assistidos.
2.2. As principais matérias abordadas estavam relacionadas
com a vigilância epidemiológica dos operacionais,
a utilização adequada de EPI, os procedimentos de Suporte
Básico de Vida e Desfibrilhação Automática Externa,
Suporte Imediato e Avançado de Vida, oxigenoterapia
e abordagem da via aérea e, ainda, com aspetos
específicos da atividade pré-hospitalar, como a limpeza
e higienização de viaturas e a utilização segura dos
sistemas de ventilação e ar condicionado das ambulâncias.
3. Ajustamento dos fluxos de triagem telefónica do
CODU.
3.1. A criação de um fluxo de triagem especifico para a
Covid-19, com base na definição de caso e respetivas
atualizações, emitidas pela Direção Geral da Saúde (DGS),
de modo a identificar casos suspeitos na triagem telefónica
(identificando sintomas e links epidemiológicos).
3.2. Ajustamentos em todos os fluxos de triagem onde
fosse possível identificar situações suspeitas, como o fluxo
Dispneia e em todos onde a febre e as queixas de tosse e
dificuldade respiratória estivessem contempladas.
3.3. Introdução de uma pergunta em todos os fluxos
questionando sobre contactos prévios com doentes
com Covid-19.
4. A criação da capacidade de transporte pré-hospitalar
especializado de casos suspeitos/doentes com Covid-19.
4.1. A implementação de ambulâncias especializadas dedicadas,
com equipas com formação e treino adequado.
4.2. O número de ambulâncias especializadas em funcionamento
simultâneo, incluindo ambulâncias da Cruz
Vermelha Portuguesa, atingiu as duas dezenas.
5. O reforço dos stocks próprios de EPI e o acesso à Reserva
Estratégica Nacional:
5. 1. Em contexto de grande escassez e aumento crescente
do consumo de EPI, a capacidade para garantir a
existência destes equipamentos nos meios de emergência
revelou-se fundamental para manter a confiança
e a segurança dos operacionais.
6. A articulação com diversos organismos do Ministério
da Saúde, nomeadamente a DGS, o Instituto Nacional
de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), os Serviços Partilhados
do Ministério da Saúde (SPMS) e os Hospitais, bem
como com os vários parceiros do SIEM (Corpos de
Bombeiros e Cruz Vermelha Portuguesa), e entidades
como a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos.
O SNS 24, com o seu papel de aconselhamento e encaminhamento
de situações não urgentes para os cuidados
primários de saúde e hospitais, garantiu o tratamento
dos casos suspeitos de Covid-19 que não apresentavam
sinais de gravidade. Juntamente com a Linha
de Apoio ao Médico (LAM), um serviço telefónico dirigido
a médicos, para apoio na gestão de situações de
saúde pública e responsável pela validação dos casos
suspeitos, o SNS 24 garantiu a primeira linha de resposta
na maior parte dos casos, cabendo ao INEM a
resposta às situações mais graves e o transporte dos
casos suspeitos validados.
Quando surgiram os primeiros casos suspeitos, foram
ativadas quatro ambulâncias especializadas para transporte
aos hospitais de referência, com o objetivo de
garantir uma resposta mais especializada e reduzir o
número de profissionais expostos a doentes com Covid-19,
permitindo que os restantes operacionais do
pré-hospitalar recebessem formação sobre a abordagem
destes doentes, o uso adequado de EPI e os procedimentos
de limpeza e higienização das ambulâncias.
No dia 12 de março, o aumento do número de casos
conduz à ativação da Sala de Situação Nacional (SSN),
de modo a garantir o acompanhamento permanente
da atividade operacional e o apoio clínico às situações
relacionadas com a Covid-19.
No dia 13 de março, o Governo português declarou o
estado de emergência, impondo a adoção de medidas
de confinamento de doentes, a proibição de ajuntamentos
e restrições à circulação que alteraram profundamente
o nosso quotidiano. É neste contexto que o
INEM implementa medidas adicionais para reforçar a
prevenção e controlo da infeção e garantir a continuidade
do funcionamento da Instituição.
Entre as medidas mais importantes, salientam-se a
promoção do teletrabalho para elementos com tarefas
de apoio e de backoffice; a promoção do recurso
a soluções de trabalho à distância, com diminuição das
deslocações e do contacto laboral; a implementação do
Projeto CODU Virtual para reforço da sua capacidade
de gestão de chamadas de emergência, através da operacionalização
de 10 postos de atendimento remotos
(com capacidade de escala), prontos a funcionar em
qualquer localização; a realização de reuniões diárias
(por teleconferência) dos dirigentes da estrutura operacional
para acompanhamento permanente da situação.
Uma vez que ainda não existia capacidade para realizar
testes na comunidade e antevendo dificuldades
para garantir o transporte de um número crescente
de doentes, o INEM foi pioneiro na criação de equipas
especializadas para Colheita de Amostras Biológicas
(CAB) para realização de testes para deteção de SAR-
S-CoV-2 por RT-PCR 4 .
Estas equipas de enfermeiros com formação específica
ministrada pelo INSA, realizam as CAB deslocando-se
a instituições ou estruturas de elevada sensibilidade, como
os lares de idosos, os estabelecimentos prisionais,
comunidades de migrantes a residir em condições de
habitabilidade precária e outros clusters, além de forças
de segurança e altas entidades, evitando a necessidade
de transporte ao hospital.
Até à data, foram realizadas mais de 21 mil colheitas.
O Centro de Atendimento Psicológico e Intervenção
em Crise (CAPIC) do INEM, desenvolveu um conjun- }
36 37
GH emergência
Sala de Situação Nacional (SSN).
to de ações para melhor adaptar o apoio psicossocial
ao contexto da pandemia.
Particularmente relevante foi o reforço da capacidade de
atendimento telefónico e a criação do Plano de Resposta
Psicossocial e Saúde Mental para Profissionais INEM
de modo a melhorar o apoio prestado aos operacionais.
O CAPIC produziu ainda um folheto sobre gestão
emocional dirigida a doentes Covid-19 e seus familiares,
um folheto explicando a pandemia às crianças e
um vídeo com adaptação da informação psicoeducativa
para a comunidade surda.
No âmbito da iniciativa Emergency Medical Teams da
OMS, através do seu módulo de emergência médica
(Pt-EMT), certificado pela OMS, o INEM empenhou
uma equipa médica para acompanhamento de vários
cidadãos portugueses repatriados da China.
Ainda no âmbito da iniciativa EMT e respondendo a
um pedido de apoio do governo de São Tomé e Príncipe,
o Instituto enviou, a 15 de maio, uma equipa de
quatro elementos para aquele país, para apoio das autoridades
locais no combate à Covid-19.
O INEM apoiou ainda o Hospital de São João, no Porto,
e o Hospital Pediátrico Dona Estefânia, em Lisboa,
através da cedência de ventiladores e da montagem
de várias tendas para criação de zonas de receção de
doentes Covid-19.
Em Ovar, o Instituto apoiou a montagem de um Hospital
de Campanha na Arena Dolce Vita, para reforço
da capacidade do Hospital Dr. Francisco Zagalo.
Conclusão
Nunca antes foi gerado tanto conhecimento científico
como o produzido sobre o SARS-CoV-2, nem de forma
tão rápida (em menos de um mês foi possível identificar
e mapear geneticamente o agente causador de
um surto de uma pneumonia de causa desconhecida).
No entanto, um dos principais problemas levantadas
por este novo coronavírus resulta da dificuldade que a
comunidade científica tem sentido para encontrar armas
eficazes e produzir conhecimento em tempo útil,
que permita a tomada de melhores decisões para um
combate mais eficaz à pandemia.
Apenas a monitorização permanente de toda a atividade
assistencial e o acompanhamento muito próximo e
atento da evolução da situação permitirão antecipar a
necessidade de ajustamentos na capacidade de resposta
do SIEM, de acordo com a procura de cuidados que
se verifique em cada momento. Só deste modo será
possível proteger os operacionais e garantir condições
para que o seu desempenho se paute pelos mais elevados
padrões de qualidade e segurança.
A propósito da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida,
o vencedor do prémio Nobel de Fisiologia e Medicina
de 1958, o Dr. Joshua Lederberg, numa conferência
de laureados, realizada em Paris há mais de 30
anos (janeiro de 1988), afirmou:
“Voltaremos a enfrentar catástrofes semelhantes e ficaremos
cada vez mais confusos ao lidar com elas, se
não compreendermos a realidade do lugar da nossa
espécie na natureza. Uma grande parte do progresso
da humanidade tem sido dedicada à subordinação da
nossa própria natureza humana a ideais de perfeição
e autonomia individuais. A inteligência, a cultura e a
tecnologia humanas deixaram todas as outras espécies
de plantas e animais fora da competição.
Podemos legislar o comportamento humano. Mas temos
muitas ilusões que podemos, por escrito, governar
os reinos vitais remanescentes, os micróbios, que continuam
sendo os nossos maiores concorrentes pelo
domínio do planeta. As bactérias e vírus nada sabem
sobre as soberanias nacionais…” Ã
1. Segundo a OMS, as doenças infecciosas emergentes são aquelas que afetam
uma população pela primeira vez ou que, existindo previamente, se disseminam
rapidamente, seja pelo número de pessoas infetadas, seja pelo atingimento
de novas áreas geográficas.
2. SARS: Severe Acute Respiratory Syndrome ou Síndroma Respiratória Aguda Grave.
3. MERS: Middle East Respiratory Syndrome ou Síndroma Respiratória do Médio Oriente.
4. RT-PCR: Reverse Transcriptase - Polymerase Chain Reaction. Teste de biologia
molecular para deteção de componentes do SARS-CoV-2, sendo considerado
o teste mais fiável para deteção do vírus.
38
GH esaúde
SNS24: A PORTA ABERTA
DO SNS
Luís Goes Pinheiro
Presidente do Conselho de Administração
da Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE
“
Bem-vindo ao SNS24! Por uma questão
de segurança, a sua chamada irá ser gravada.
Por favor, selecione uma das seguintes
opções.”
Esta mensagem, escutada por quem liga
para o centro de contacto do SNS, o SNS24, entrou no
dia a dia do País. Quem não conhece o 808 24 24 24?
A verdade é que, ao longo da pandemia da Covid-19,
este apoio telefónico passou a ser a primeira linha de
auxílio daqueles que têm procurado ajuda clínica.
Ontem foi a vez da Maria, que descobriu a linha num
“conselho da DGS”, reforçado pela experiência que
lhe transmitira o João, o vizinho da frente. Ligou para o
SNS24 por causa daquela tosse seca que a afligia desde
a véspera. Foi atendida pelo enf.º Franco. Este, com
serenidade e profissionalismo, transmitiu-lhe que devia
permanecer em casa, isolada do resto das pessoas, e
que, entretanto, seria contactada pelo seu médico de
família. Ficou muito mais calma. Não queria ir àquela
hora para as urgências…
O SNS24 não nasceu com a Covid-19. Esta modalidade
de teletriagem, com atendimento telefónico por
profissionais de saúde, tem estado ao serviço dos residentes
em Portugal há mais de duas décadas. Tudo começou
em 1998, com o serviço “Dói Dói Trim Trim”,
destinado a pais e cuidadores de crianças, lembram-se?
A que se somou, em 2002, a Linha de Saúde Pública,
criada para informar e apoiar a população em matéria
de saúde pública. A junção destes dois serviços esteve
na génese da Linha Saúde 24, criada, simbolicamente,
no dia 25 de abril de 2007. Uma década volvida e
mais de oito milhões de chamadas depois, em 2017,
na sequência da política de consagração da marca SNS,
a Linha Saúde 24 mudou de nome, para SNS24, ampliando
o catálogo de serviços, mas mantendo a natureza:
um serviço de triagem telefónica, assegurado, essencialmente,
por enfermeiros, a qualquer hora, todos
os dias, que procura evitar deslocações desnecessárias
aos serviços de urgência.
Entre 2017 e 2019 a previsibilidade marcou o quotidiano
da linha, sendo a habitual tranquilidade, resultante
de uma capacidade de resposta muito superior à procura,
apenas interrompida, ciclicamente, pela agitação
das épocas gripais. Nessa altura, a linha raramente recebia
mais de 100 mil chamadas por mês, apesar das
sucessivas campanhas promocionais ou da notoriedade
conferida por um call center, pouco discreto, situado
no centro de Lisboa.
Todavia, nos primeiros dias de março deste ano tudo
mudou. Bastou a notícia do primeiro caso de Covid-19
em Portugal, no dia 2, para o SNS24 ser imerso por
um furacão de chamadas. Chegaram a ser mais de 50
mil num só dia. E, se é certo que, à tempestade, ainda
não se seguiu a bonança, também aqui, no SNS24,
passámos a ter um “novo normal”, com a boa resposta
a depender da monitorização atenta, de uma gestão
muito mais flexível do número de operadores e do
recurso a diversas soluções tecnológicas que tornaram
o serviço mais eficiente e eficaz.
Assim, para conseguir dar resposta a esta procura
muito alta e instável foi necessário: elevar em cerca de
50%, acima de 1400, o número de profissionais de saúde
disponíveis para atendimento; instalar um novo
call center no Algarve - tirando partido dos recursos
especializados aí disponíveis; criar postos de trabalho
móveis; disponibilizar um serviço informativo sobre
Covid-19 prestado por psicólogos, libertando os enfermeiros
para o serviço de triagem; suspender os
serviços administrativos no momento de maior procura;
racionalizar o atendimento, mediante o aperfeiçoamento
das entradas do Interactive Voice Response
(IVR) e através da criação de um canal exclusivo para
a triagem de Covid-19; transformar, tecnologicamente,
o sistema de atendimento para permitir passar de 200
para 2000 chamadas em simultâneo; e utilizar um sistema
robotizado de atendimento que possibilita acelerar
o atendimento pessoal e tratar automaticamente as
questões mais simples.
Hoje, em plena pandemia, o SNS24 atende, praticamente,
todos os seus utentes. A taxa de abandono é
muito baixa, o que se explica pelo facto de o tempo de
espera por atendimento ser, em regra, inferior a 30 segundos.
Olhando para o que se passou desde o início
de março, verificamos que já foram atendidas mais de
1 milhão de chamadas, o que se aproxima dos valores
anuais registados antes da pandemia.
Não foi apenas a Covid-19 a motivar o contacto com
a linha. Bem pelo contrário. O medo da pandemia incentivou
muitos utentes, com suspeitas de outras doenças,
a ligar para o SNS24 antes da ida ao hospital
ou ao centro de saúde, beneficiando de uma triagem
prévia que dispensou, em muitos casos, deslocações
desnecessárias. O mês de março foi o único em que
o peso da (nova) pandemia foi mais expressivo, chegando
a representar cerca de 50% da procura da linha,
se somarmos a triagem aos serviços informativos. Nos
meses seguintes, esta realidade alterou-se: em maio e
junho, por exemplo, a Covid-19 não chega sequer a
ocupar 20% das chamadas atendidas.
Além do mais, os serviços do SNS24 foram ampliados
durante a pandemia da Covid-19. Desde o dia 1 de abril
que está disponível um serviço de aconselhamento
psicológico, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian
e construído com o apoio da Ordem dos Psicólogos
Portugueses: a Linha de Aconselhamento Psicológico
(LAP). Este serviço, assegurado por psicólogos
especialmente formados para este efeito, tem permitido
apoiar todos aqueles que têm sentido maior
ansiedade, angústia e depressão nesta época de confinamentos
e de incertezas. São já mais de 20 mil as pessoas
que beneficiaram deste serviço, entre as quais se
encontram mais de 1.800 profissionais de saúde que,
como sabemos, têm enfrentado, com bravura, um período
especialmente exigente e stressante.
Foi também no mês de abril, mais precisamente no dia
21, que os cidadãos surdos viram uma reivindicação
histórica ser atendida: passaram a poder aceder a uma
plataforma de videoconferência, disponível no site do
SNS24, beneficiando da triagem telefónica intermediada
por um intérprete de língua gestual portuguesa.
Hoje, podemos dizer que há mais igualdade na resposta
aos cidadãos. Que são menores as diferenças no
acesso à saúde. E não é apenas no acesso ao SNS24, já
que que esta intermediação tem igualmente servido os
cidadãos surdos que recorrem aos hospitais e centros
de saúde. Muito para lá deste serviço de interpretação
e em complemento ao serviço de triagem telefónica,
importa também referir o sucesso do sítio na Internet
do SNS24, disponível em www.sns24.gov.pt. Este portal,
criado em janeiro de 2019, era pouco conhecido,
tendo sido verificado um crescimento muito acelerado
da sua utilização durante a pandemia. O número de utilizadores
mais do que decuplicou, se compararmos o
primeiro semestre deste ano com o período homólogo,
e funcionalidades automáticas, como o “Avaliar Sintomas”,
passaram a ser de utilização corrente por todos
aqueles que querem examinar o seu estado de
saúde. Ainda não conhece? Vá experimentar.
Por todas estas razões, o SNS24 é, hoje, um dos pilares
da telessaúde em Portugal. Mas ainda há um longo
caminho a percorrer. Na verdade, com exceção dos
casos mais graves, o acesso ao serviço de urgência deveria
estar condicionado à triagem prévia do SNS24.
No futuro, em vez de esta linha encaminhar apenas
os cidadãos para se deslocarem, pelo seu pé, a um
centro de saúde, poderia, em certos casos, referenciar
os utentes para que estes sejam contactados pelo seu
médico de família ou por quem o substitua, dispensando
o contacto pessoal.
Este centro de contacto tem também todas as condições
para se tornar um dos principais postos de monitorização
dos doentes no seu domicílio, seja por via
de chamadas automáticas, seja por meio de contactos
efetuados na sequência de alarmes acionados por
equipamentos usados pelos utentes.
Enfim, as possibilidades são praticamente infinitas. Resta-nos,
agora, abrir ainda mais esta porta que já é, de
todas, a mais acessível. Ã
40 41
GH reflexão
UTOPIA OU NÃO UTOPIA,
EIS A QUESTÃO
Francisco Velez Roxo
Economista Gestor,
Docente Universitário em temas de Gestão da Saúde
“
TO BE, OR NOT TO BE, THAT IS THE QUESTION:
WHETHER 'TIS NOBLER IN THE MIND TO SUFFER
THE SLINGS AND ARROWS OF OUTRAGEOUS FORTUNE,
A
frase “Ser ou não ser, eis a questão”
(em inglês “to be, or not to be, that
is the question”) vem da peça “A
tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”,
de William Shakespeare,
(escrita entre 1599 e 1601), Ato III, Cena I e é frequentemente
usada com um fundo filosófico profundo mas
que, na verdade, é em meu entender, muito simples de
descodificar: ser ou não ser é exatamente “existir ou
não existir” e, em última instância, “viver ou morrer”.
Tive o prazer de assistir a uma bela encenação desta
peça em início de fevereiro, antes da pandemia, no
Teatro do Bairro e com a descoberta do que o encenador
chamou de “um Hamlet unplugged e sem efeitos”.
Que hoje, curiosamente, associo em momento
reflexivo sobre a pandemia que estamos a viver, ao
conteúdo temático do livro “Utopia” de Thomas Mo-
OR TO TAKE ARMS AGAINST A SEA OF TROUBLES
”
re (1516) que reli durante o confinamento. Pensando
no que no SNS (Serviço Nacional de Saúde) e no
SNSS (Sistema Nacional de Segurança Social) estava a
acontecer. E o que era (e é) preciso mudar para não se
“ser ou não” e muito menos, “ser utópico” perante o
que se desenha para o futuro. Que pode “ser ou não
ser, utopia ou não utopia”.
A ver vamos como será possível uma nova encenação
para velhas peças e escritos. Velhos temas e objetivos
Nacionais.
Por origem e paixão de vida, gosto muito do sentido
comunitário da pequena e media dimensão nos aglomerados
populacionais. Mesmo reconhecendo que é
nas grandes urbes que o mundo tem assentado o seu
desenvolvimento depois da segunda guerra mundial.
Porque “small is beautiful” mas “big is powerful”, fomos
penetrando e consolidando as nossas vidas no
mundo da Segunda Vaga de Alvin Toffler. Mas que
agora, mais do que nunca, foi atropelada pela Terceira
Vaga de mudança informacional que o mesmo autor
também previra e identificou para o futuro.
Na vida comunitária das pequenas cidades em que
se organizaram as grandes urbes, a complexidade demográfica
e sociológica tornou muito semelhantes as
necessidades, preferência e exigências dos cidadão,
aquelas que tinham nas suas regiões de origem (caso
das migrantes nacionais) ou imigrações (caso dos imigrantes)
mas com um nível de exigência crescente nas
questões relativas ao trabalho, habitação, alimentação,
educação, segurança, saúde e bem estar. Sobretudo na
Saúde e no Apoio Social.
Num País pequeno e muito heterogéneo como é o
nosso, com as melhorias a que temos assistido, principalmente
desde o inicio do século XXI, nos meios
de informação e comunicação, nos meios e formas de
circulação de pessoas e bens, no gosto das novas gerações
pela mobilidade e novos desafios profissionais,
pareceria lógico que os modelos organizativos das diferentes
regiões (pese embora não termos um modelo
de Estado descentralizado e muito menos regionalizado)
teriam podido evoluir positivamente e, em especial
na Saúde e na Segurança Social, para não estarmos hoje
a interrogarmo-nos em permanência sobre “ser ou
não ser”, “cumprir ou não cumprir”, a utopia que nos
têm sistematicamente prometido. E temos de continuar
a querer ver na realidade. No concreto.
Em especial na saúde e nas suas formas organizativas
em Portugal (como de resto em muitos outros Países do
mundo e com diferentes graus de evolução) o que está
hoje em causa e muito por causa da “fragmentação pandémica”
é o superar o presente e repensar o futuro “out
of the box”, principalmente nos seguintes vetores:
• Mais Literacia em Saúde e Bem Estar (integrar educação
para a saúde, para alem de belos textos);
• Nova Medicina (para além da boa Medicina Humanista);
• Participação crescente dos doentes e famílias na prestação
de cuidados;
• Humanismo na prestação de cuidados (para alem do
só “da saúde”);
• Elevada tecnicidade crescente em todas as tecnologias
da saúde;
•Multidisciplinaridade gestionária “para alem da saúde
e do saudês”;
• Inovação socio técnica na relação entre Saúde e Social
(para além das Leis, Decretos Leis, Portarias, Despachos
e Normas);
• Digital Transformation (para além do hardware e software
são precisos novos processos de trabalho).
Mas claramente o desafio maior, para que estes veto-
res sejam linhas de força consistentes dinameicamente,
é o de assumir “a complexidade” que os Sistemas de
Saúde (e os Sistemas de Ação Social com eles intimamente
conectados) têm.
De acordo com Lissack, M. (1997). “Mind your Metaphors:
Lessons from Complexity Science” in Long Range
Planning, Vol. 30/2 pp294, “Complexity refers to the
condition of the universe which is integrated and yet
too rich and varied for us to understand in simple, mechanistic
or linear ways. We can understand many parts
of the universe in these ways, but the larger and more
intricately related phenomena can only be understood
by principles and patterns-not in detail. Complexity deals
with the nature of “emergence, innovation, learning
and adaptation.”
Assim e na linha do que pretendo evidenciar, as lições
derivadas da questão chave “complexidade” no mo- }
42 43
GH reflexão
“
TAL COMO NA ECONOMIA
DEVE EVITAR-SE PARA ENCONTRAR
NOVAS SOLUÇÕES, A LINGUAGEM
DO “ECONOMÊS”, NA SAÚDE
EVITAR O “SAUDÊS” E NO SOCIAL
O “SOCIÊS". PORQUE JÁ SENDO
O MUNDO TÃO COMPLEXO NÃO
VALE A PENA COMPLICAR MAIS.
”
mento atual e para o futuro nos Sistemas de Saúde e
Social pós pandémicos, não poderão deixar de ser,
emergência, inovação, aprendizagem e adaptação (em
contexto de digital transformation).
Passo a ser mais concreto.
Num país pequeno mas complexo, fragmentado por
tradições históricas e não organizado por razões genéticas
e culturais, com um SNS que teve excelente desempenho
na pessoa dos seus Profissionais na pandemia,
com um povo “que se confinou serenamente” (e
muita coisa sobre o seu comportamento haverá a rever
na teoria do medo), com um sistema de apoio social
a idosos (que se aguentou muitas vezes só a rezar)
numa situação económica geral ainda á espera, mais
uma vez, da “solidariedade” dos mais ricos da Europa,
as exigências individuais e coletivas, muito ficou evidente
que no pós pandemia, muita coisa tem de mudar
(para melhor) no SNS do futuro. E na sua articulação
como Sistema Social.
E, procurando ser ainda mais concreto, as formas organizativas
adotadas ao longo dos anos: nos Centros Hospitalares,
Unidades Locais de Saúde, Agrupamentos de
Centros de Saúde, Unidades de Saúde Familiares, Equipas
Coordenadoras Regionais, Centros Distritais de Segurança
Social, sendo estruturas consolidadas na complexidade
e onde a pandemia na articulação com as Autarquias
Locais (mediaticamente tão visível nos últimos
quatro meses, umas vezes caraterizada pelo desenrasca
e outras pelo voluntarismo fantástico) evidenciou-se
uma complexidade burocrática excessiva e impõem-se
no curto e medio prazo, maiores capacidade de resposta
em emergência, mais inovação em processos de trabalho,
muita aprendizagem com os erros e rapidíssima
adaptação aos novos tempos. Ao futuro imediato e de
medio prazo.
Tal como na economia deve evitar-se para encontrar
novas soluções, a linguagem do “economês”, na saúde
evitar o “saudês” e no Social o “sociês”. Porque já sendo
o mundo tão complexo não vale a pena complicar
mais. Em situação pandémica o mundo chega a tornarse
colérico e desmotivante. Não o irritemos mais.
Será que alguém de bom senso e experiência de vida
não conseguirá ver e debater (levando à ação simples
e prática) que num mundo internético, de redes, de conexão
instantânea, de medo e desconfianças, de comparações
sistemáticas nacionais e internacionais mais ou
menos bem fundamentadas, não reconhece que é necessário
repensar se ainda se justifica a tradicional abordagem
de separação entre cuidados de saúde primários
secundários e terciários, quando já se fala há anos em
“integração de cuidados” como objetivo fundamental
do SNS na sua articulação com a Segurança Social, e
depois o doente é empurrado de burocracia em burocracia
desgastante (com apesar de tudo alguns bons mas
demorados resultados) ate á exaustão?
Ou antes, devemos passar para o novo desafio da
integração efetiva “human digital-based”, que permita
otimizar a resposta aos novos tempos, ás expectativas,
preferências e exigências dos cidadãos com
simplicidade e humanismo? Passar para o que alguns
Sistemas integrados Nacionais assumiram e procuram
praticar: “Healthcare is an expansive industry that ranges
from preventative care, to emergency services, to
follow-up and rehabilitation”. E para o que tem sido o
movimento de integração comunitária entre Saúde e
Social (com boas experiências na Holanda, Dinamarca,
Inglaterra, Alemanha, para só referir casos europeus)?
Ou, mais ainda, como conseguir otimizar a Rede das
Instituições de Solidariedade Social, de longa tradição e
resultados em Portugal, com o trabalho das Autarquias
ainda em começo de assumir novas competências nas
áreas da saúde? Como desenvolver nos Sistemas Nacionais
Integrados (pós pandemia), uma “nova onda”
de “Complex Transformation” englobando com gestão
efectiva e eficaz: “managerial and leadership skills clinical
and information technology, that ensure the optimal delivery
of social healthcare”, como há muito fui ouvindo
de uma grande profissional com forte experiencia de
trabalho no NHS e em Países do Médio Oriente (Liz
Thebe) com quem tenho tido o privilégio de trabalhar.
“Sickcare vs Healthcare, High Tech vs High Touch. Value
based solutions, new integration wave” são os temas
que mais me ficam reforçados depois de passar
por muitas experiências profissionais em Saúde, mas
sobretudo marcantes nesta nova experiência de quatro
meses “impensáveis” depois de 67 anos de vida e
45 de atividade profissional. E, já agora, como ator autárquico
desde 2013 com intervenção permanente na
defesa dos princípios atrás referidos e dos desafios que
apenas na pandemia ouvi comos ecos de concordância,
porque “as populações estão e vão sofrer imenso.”
Para concluir, e na prática com um exemplo de coisas
simples e só para a saúde: a integração dos Registos
Nacionais dos Utentes só em 2018 a ULSLA (Unidade
Local de Saúde do litoral Alentejano) foi anunciada como
“a primeira instituição a integrar o sistema informático
no RNU (Registo Nacional de Utentes).” Convém
não esquecer que o SNS foi criado em 1979.
O objetivo era simples, super atrasado e assim comunicado:
“… com o objetivo de integrar a informação disponível
no RNU com a base de dados das instituições,
como hospitais, centros de saúde, o Sistema de Informação
dos Certificados de Óbito (SICO), entre outros,
a ULSLA torna-se, assim, na primeira unidade de saúde,
em Portugal, a implementar e a manter esta integração.
O caso da ULSLA é um exemplo de sucesso, com diversos
benefícios associados, quer para as entidades que
fazem parte desta Unidade Local de Saúde, quer para
os utentes. Maior qualidade nas comunicações e, consequentemente,
ganhos de eficiência para o Serviço Nacional
de Saúde constituem algumas das vantagens da
integração da base de dados das instituições de saúde
no RNU. Sob a coordenação da SPMS, o Registo Nacional
de Utentes é um dos pilares do sistema de informação
da saúde (SIS), constituindo a base de dados nacional
de identificação dos utentes do SNS.”
Basta pensar que as ULS, enquanto processo de integração
vertical em saúde por regiões, foram iniciadas
com a criação da ULS de Matosinhos, em 1999 e só
quase uma década depois, em 2007, se prosseguiu com
a criação da ULS do Norte Alentejano, no ano seguinte
com a ULS do Alto Minho, a ULS do Baixo Alentejo e
a ULS da Guarda, e em 2009 com a ULS de Castelo
Branco; passados dois anos surge a ULS do Nordeste
e, por último, em 2012, foi constituída a ULS do Litoral
Alentejano (documento da ERS de fevereiro de 2015),
para se perceber a grande vitória que foi o ato integrador
informático sobre o RNU na ULSLA em 2018…
Se concatenarmos estas situações, as fundamentais bases
de trabalho administrativo para uma boa eficiência
de prestação de cuidados, com o conteúdo do Decreto-Lei
n.º 23/2019 - Diário da República n.º 21/2019,
Série I de 2019-01-30 diploma que concretiza o quadro
de transferência de competências para os órgãos municipais
e para as entidades intermunicipais no domínio
da saúde em que se dá enfase á “… manutenção, conservação
e equipamento das instalações de unidades de
prestação de cuidados de saúde primários. E onde se
refere que “são também transferidas para os municípios
as competências de gestão e execução dos serviços de
apoio logístico das unidades funcionais dos Agrupamentos
de Centros de Saúde (ACES) que integram o SNS,
excluindo-se, porém, todos os serviços de apoio logístico
relacionados com equipamentos médicos, que se
mantém na esfera da Administração central. E que “é,
ainda, transferida para os municípios a competência de
gestão dos trabalhadores inseridos na carreira de assistente
operacional das unidades funcionais dos ACES
que integram o SNS, assegurando-se a esses trabalhadores
a manutenção dos direitos adquiridos, nomeadamente
o direito de mobilidade para quaisquer serviços
ou organismos da Administração central ou local, o direito
à avaliação de desempenho ou o direito à ADSE.”
E, mais ainda, é decidido que “tal sucede também no
que respeita à transferência das já mencionadas competências
de gestão e execução dos serviços de apoio
logístico. Contudo, não se transferem para os municípios
apenas competências de gestão, prevendo-se também
o estabelecimento de uma parceria estratégica entre os
municípios e o SNS relativa aos programas de prevenção
da doença, com especial incidência na promoção
de estilos de vida saudáveis e de envelhecimento ativo.”
Porque “trata-se de uma antiga reivindicação dos
municípios, prevendo-se assim que estes possam vir a
participar e influenciar o plano das políticas de saúde a
nível dos respetivos territórios.”
Fica-se obrigatoriamente perante tanta ponta desgarrada,
com a pergunta de base deste escrito: será que, agora
que estamos a passar por um dos maiores desafios
nacionais e mundiais “pandemia crise social e económica”
do último século, somos capazes de construir uma
base sólida de reflexão ação sobre o “ser ou não ser ”, o
“existir ou não existir e, em última instância, o “viver ou
morrer” com dignidade num mundo turbulento”?
Quiçá estarmos perante, para a integração de esforços
de reconstrução, a urgência de enfrentarmos o desafio
dos desafios? Reviver saudavelmente.
Assumir utopia ou não utopia, é pois a questão chave
para repensar e reinventar a dimensão comunitária/social/saúde
enquanto alicerce integrador da resposta às
necessidades do cidadão, identificando e resolvendo em
permanência os novos e renovados desafios e oportunidades
(atuais e futuras) dos processos holísticos da
saúde e do social, nas novas comunidades que a pandemia
esta a delimitar.
The bill comes due. always. (Mordo in Doctor Strange). Ã
44 45
GH medicina interna
ARRUMAR A CASA
DEPOIS DO TSUNAMI COVID
João Araújo Correia
Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
É
indiscutível o êxito da resposta do SNS
na primeira vaga da pandemia Covid-19.
Agora, que tudo correu bem, posso dizer,
sem parecer agoirento, que houve
vários factos nas políticas de saúde dos
últimos anos, que me fizeram temer o pior:
• O desinvestimento no SNS em meios humanos e
materiais;
• A redução contínua do número de camas hospitalares
por 100.000 habitantes (395), muito abaixo da média
europeia e metade da Alemanha (800);
• O agravamento das condições sociais, numa população
cada vez mais envelhecida e doente, acarretando um
enorme número de internamentos inapropriados nos
Serviços Hospitalares, atingindo 25% das camas disponíveis
nos Serviços de Medicina Interna (ver Barómetro
dos Internamentos Sociais 28-02-2020 parceria APAH/
SPMI - Índice de inapropriação do internamento = 8,7%).
Há algumas explicações para que tivéssemos registado
tão bom desempenho nos meses de março a maio,
que alguns apelidaram de “milagre português”:
• Houve coragem política para declarar o Estado de
Emergência a 19-03-2020, numa altura em que Portugal
tinha apenas seis dezenas de casos e nenhum falecido. Isto
resultou no aplanamento da curva pandémica, fazendo
com que o SNS tivesse tempo para adequar a resposta,
sem nunca termos corrido o risco de soçobrar;
• Em mais de vinte hospitais designados para receberem
doentes Covid, operou-se uma completa revolução
da logística operacional, com suspensão generalizada
da atividade cirúrgica, remetida apenas para a cirurgia
oncológica ou de urgência. Com esta estratégia, foram
libertadas as camas dos serviços cirúrgicos e muitas
de Cuidados Intensivos. Os doentes médicos não
Covid foram deslocados para as enfermarias cirúrgicas
libertadas, convertendo-se as Unidades Médicas em
enfermarias Covid;
• A Medicina Interna, como especialidade hospitalar
mais numerosa no hospital (14%), com cerca de mil
internos em formação específica, contribuiu para uma
resposta estruturada, competente e rápida do SNS. Os
doentes Covid de pior prognóstico, são os idosos com
múltiplas doenças crónicas, que são aqueles para os
quais os internistas estão treinados para tratar. De facto,
a 29 de abril de 2020 estavam em dedicação exclusiva
ao tratamento dos doentes Covid, 327 especialistas e
248 internos de Medicina Interna (total = 579), nas enfermarias
e nos Cuidados Intensivos (Inquérito SPMI).
Entramos agora numa nova fase do combate à pandemia,
em que temos de retomar a atividade, sem
desbaratar o que aprendemos e termos defesas para
uma eventual segunda vaga. A primeira coisa em que
pensamos é na digitalização aplicada à saúde. É, sem
dúvida, uma boa aposta, mas que devemos dar-lhe a
sua real dimensão, sem a considerar uma panaceia para
tudo. Provavelmente, com ela podemos manter cerca
de 50% das consultas como não presenciais.
Isto tem reflexo óbvio na diminuição do risco de infeção
nas salas de espera, mas não resulta em acréscimo
de eficiência e tem um limite temporal razoável. Não é
admissível que um doente em consulta de especialidade
hospitalar, tenha mais do que duas consultas não presenciais
consecutivas, a não ser que possa ter alta clínica.
A segunda atitude determinada deve ser a utilização
criteriosa das camas hospitalares, reservando-as para os
doentes mais graves, que não possam ser assistidos em
regime de hospitalização domiciliária. E, mais do que tudo,
temos de reduzir ao mínimo a manutenção do internamento
hospitalar de doentes com alta clínica, que aguardam
colocação na RNCC ou em lar da Segurança Social.
Não nos podemos esquecer de que será muito mau para
a qualidade assistencial prestada, se nos virmos obrigados
a suspender de novo a atividade cirúrgica, como fizemos
antes para conseguir as camas de que necessitávamos.
Outro ensinamento que a pandemia Covid nos trouxe,
é a de que a doença ligeira deve ser lidada no centro
de saúde, sem o recurso ao Serviço de Urgência
do Hospital. Espero que este bom hábito perdure,
também para os doentes não Covid.
Por último, penso que seria útil voltar a definir alguns
(poucos) hospitais disponíveis para receberem pequenos
surtos de doentes Covid, que naturalmente continuarão
a ocorrer. É evidente que estes hospitais terão de ver revistas,
em baixa, as suas metas de produção, pois não é
possível não haver reflexo duma crise desta dimensão. Ã
46
GH OPinião
COVID 19 E DOENÇA
CARDIOVASCULAR:
DA PANDEMIA, UM OLHAR
PARA O FUTURO?
Victor Machado Gil
Presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia
A
pandemia Covid-19 afeta, à data
em que escrevo este artigo (05/
/07/2020), mais de 11 milhões de
pessoas, com mais de 528.000
mortes em 188 países ou regiões 1 .
Globalmente, os números mantêm-se em curva ascendente,
sobretudo à custa do Brasil e Estados Unidos,
mas também com novas e significativas contribuições
como as da Índia e da Rússia.
O vírus SARS-CoV-2 é o sétimo coronavírus conhecido,
não se aparentando a alguns coronavírus que
causam quadros de vulgar constipação, mas assemelhando-se
mais a formas como as que provocam síndroma
de dificuldade respiratória grave (SRAS-CoV)
e a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS).
A taxa de letalidade, embora variando muito de país
para país, era de 2,3% nos reportes originais da China,
mas aumentado progressivamente com a idade (< 1%
para doentes com menos de 50 anos e quase 15%
para octogenários) e comorbilidades como a doença
cardiovascular (10,5%), diabetes, DPOC, hipertensão e
cancro (variando entre 7,3% e 5,6%).
A infeção é causada pela ligação da proteína espiculada
que reveste o vírus a um recetor humano (ACE-2) cuja
ativação contribui, entre outras coisas, para o estado
de dilatação e contração das artérias. Nos humanos,
o ACE-2 é expresso sobretudo no pulmão (células
alveolares), mas também no coração balanceando os
efeitos da ativação excessiva do sistema renina-angiotensina,
como sucede na hipertensão, insuficiência cardíaca
e aterosclerose. A expressão do ACE-2 ocorre
também no rim, vasos sanguíneos e intestino, donde se
infere que, tendo uma expressão pulmonar dominante,
o coração seja frequentemente afetado e nos casos
graves haja atingimento multiorgânico.
A prevalência de doença cardiovascular, de hipertensão
e de diabetes entre os doentes afetados por Covid-19
é elevada em todas as séries, com diferentes
ordens de grandeza, conforme a prevalência de base
nas diferentes populações em diferentes regiões do
mundo. Assim sucedeu, por exemplo, com uma prevalência
muito elevada de hipertensão reportada em
Wuhan, na China, e na Lombardia, em Itália.
É igualmente comum a todas as séries que os doentes
portadores de doença cardiovascular são dos que têm
mais elevada letalidade (a seguir ao grupo etário dos
octogenários, na primeira série publicada) e parece-me
importante dissecar um pouco esta realidade.
A designação de “doença cardiovascular” é ampla e
não é claro, na maior parte dos casos, o que contém.
Num estudo de grande dimensão 2 em que foram analisados
dados de 8910 doentes com Covid-19 internados
em 169 hospitais da Ásia, Europa e EUA, 11,3%
tinham doença das coronárias, 2,1% história de insuficiência
cardíaca congestiva e 3,4% história de arritmia.
Quanto aos fatores de risco cardiovasculares, 30,5%
tinham dislipidemia, 26,3% tinham hipertensão arterial,
14,3% tinham diabetes e 22,3% fumavam ou tinham
sido fumadores. Como sublinhado num recente artigo
divulgado online e a aguardar publicação na Revista
Portuguesa de Cardiologia 3 , a prevalência de comorbilidades
parece ser semelhante à da população geral,
não traduzindo necessariamente maior suscetibilidade
à infeção Covid-19.
Quanto ao risco associado às várias patologias, na série de
Mehra, os fatores que se associaram de forma independente
a um aumento da mortalidade hospitalar foram a
idade > 65 anos (10% vs 4,9%, odds ratio 1,93), a doença
coronária (10,2% vs 5,2%, OR 2,7), a insuficiência cardíaca
(15,3% vs 5,6%, OR 2,48), a presença de arritmias (11,5%
vs 5,6%, OR 1,95), a DPOC (14,2% vs 5,6%, OR 2,96) e
o tabagismo atual (9,4% vs 5,6%, OR 1,79).
É de há muito sabido que a incidência de síndromas coronárias
agudas, disritmias e agudização de insuficiência
cardíaca aumenta em situações de infeção respiratória, tal
como sucede nos surtos de gripe comum 4 e o mesmo
se tem vindo a constatar na doença Covid-19. Nestas situações,
existe uma ativação da inflamação e das vias da
coagulação, bem como disfunção endotelial.
A ocorrência de lesão miocárdica foi reconhecida desde
a publicação das séries iniciais de doentes da China. De
facto, em 7% da globalidade desses doentes e em 20%
dos doentes que necessitaram de cuidados intensivos,
ocorreu evidência de lesão miocárdica evidenciada por
elevação da troponina I de alta sensibilidade ou de alterações
eletrocardiográficas ou ecocardiográficas de novo 5 .
Estas alterações estão em geral relacionadas com atingimento
miocárdico, por mecanismo ainda não completamente
conhecido e estão descritos casos de miocardite
franca. Parece haver dois padrões de lesão miocárdica:
um em que a elevação da troponina I é progressiva,
acompanhando a elevação de biomarcadores
inflamatórios, possivelmente em consequência de uma
“tempestade” de citocinas; o outro, o de doentes com
sintomas cardíacos associados possivelmente a miocardite
viral ou miocardiopatia de stress.
Além disso, o ambiente proinflamatório e pró-trombótico
é favorável à ocorrência de enfarte do miocárdio
quer no contexto do estado infeccioso e respiratório
(tipo 2) quer por instabilização de placa aterosclerótica
coronária pré-existente 6 .
Mesmo não havendo clínica e imagiologicamente desenvolvimento
de doença cardíaca aguda, a ocorrência
de lesão miocárdica associa-se a pior prognóstico 7 e
temem-se consequências a prazo nesses doentes, com
alguma evidência suportando a possibilidade de maior
risco de virem a desenvolver insuficiência cardíaca. Do
mesmo modo, teme-se que o millieu pro-trombótico
possa igualmente repercutir-se em patologia subsequente
ao episódio agudo.
Em Portugal, a confirmação dos primeiros dois casos
ocorreu em 2 de março de 2020, 12 dias depois a ministra
da Saúde anunciava que o surto tinha entrado em
fase de crescimento exponencial e a 18 de março foi
decretado o estado de emergência. impondo medidas
de confinamento obrigatório.
Em 2 de julho estão referenciados 43.897 casos, com
1.614 mortos 8 . O sistema nacional de saúde reagiu inicialmente
concentrando recursos no combate à pan- }
48 49
GH OPinião
“
O NÚMERO DE URGÊNCIAS
HOSPITALARES DIMINUIU
EM FLECHA NA FASE
DE CONFINAMENTO.
”
demia, o que incluiu reorientação da atribuição de camas
hospitalares, criação de zonas de internamento
e corredores de circulação protegidos para doentes
Covid-19, suspensão da atividade não urgente, cancelamento
da atividade ambulatória.
Atendendo à sua vulnerabilidade e risco, os doentes cardiovasculares
foram fortemente aconselhados a permanecer
em casa. O cancelamento de consultas e de exames
programados provocou disrupção no seguimento
de doentes crónicos e montaram-se sistemas de telemedicina
que permitissem retomar a ligação dos doentes
às equipas.
Em grupos especiais, como os doentes após enfarte do
miocárdio, sobretudo se tratados com stents coronários,
nos doentes hipocoagulados e nos doentes com
insuficiência cardíaca, a consciência do perigo da interrupção
da medicação e da não sinalização dos sinais de
descompensação, foi uma preocupação constante e as
sociedades científicas, muitas vezes em parceria com
associações de doentes, lançaram múltiplas ações de
educação da população.
O número de urgências hospitalares diminuiu em flecha
na fase de confinamento 9 . E se podíamos argumentar
que essa diminuição se deveu ao desaparecimento das
“falsas urgências”, o facto é que envolveu também o enfarte
do miocárdio, fenómeno ainda mal explicado mas
que se verificou em diversas latitudes 10 (Figura 1).
Uma das razões da diminuição das admissões por enfarte
poderá ter sido um retraimento exagerado dos
doentes, adiando o pedido de socorro com medo de
contágio por coronavírus no hospital. Alguns desses
casos poderiam evoluir para morte no domicílio e,
entre os sobreviventes, outros poderiam evoluir mais
lentamente para quadros de disfunção ventricular progressiva
e insuficiência cardíaca.
Não obstante, com assinalável esforço de todas as
partes envolvidas, com destaque para o INEM e as
unidades de cardiologia de intervenção, as vias verdes
mantiveram-se em funcionamento, com dificuldades
pontuais de disponibilidade de meios, mas assegurando
os tratamentos invasivos em fase aguda de enfarte
como na época pré-pandemia.
As equipas de cardiologia de intervenção terão sido dos
primeiros a promover a alternância de equipas, de forma
a assegurar a continuidade da resposta. Uma vez mais as
sociedades científicas (Sociedade Portuguesa de Cardiologia
- SPC, e a sua associação especializada - APIC)
vieram a terreiro, alertando para a indispensabilidade
de socorro urgente em caso de sintomas suspeitos e
progressivamente a situação tem vindo a recuperar. Os
próximos meses mostrarão se o excessivo resguardo de
doentes em situações agudas é ou não acompanhado
de aparecimento de situações graves, iniciadas na fase
de maior confinamento e medo.
Muitos desafios organizativos se colocaram às equipas,
desde logo a preocupação em manter as respostas
adequadas em situações de urgência e assegurar
a continuidade de cuidados a doentes crónicos. Estes
desafios interpelaram também a criatividade, a entrega
e disponibilidade dos profissionais e das chefias pois,
apesar de reflexões prolixas iniciadas há mais de uma
década, na verdade não existem modelos adequados
e generalizados de seguimento de doenças crónicas,
de que são exemplo muitas situações cardiovasculares,
com a particularidade de que aqui a descompensação
não corresponde apenas a agravamento sintomático,
mas pode acarretar perigo para a própria vida.
Entretanto, merece aprofundada reflexão as informações
que vão surgindo sobre excesso de mortalidade
em relação ao histórico por causas supostamente não
relacionadas com Covid 11 . É certo que algumas destas
mortes podem ser de doentes com SARS-CoV-2 não
identificado, mas também é verdade que algumas das
mortes em que se identificou a presença de coronavírus
poderiam não ter sido causadas pela Covid-19.
Vivemos hoje uma fase de retoma da atividade clínica
que se pretende mais próxima da de antes da pandemia,
condicionada por cuidados extra para evitar a
transmissão do vírus, que aumentam os tempos atribuídos
aos atos médicos, o que contribuirá para acentuar
o congestionamento do sistema, agravado pela
remarcação dos atos suspensos durante a fase mais
aguda. Conseguiu-se, até agora, evitar a rotura do sistema
de agudos; veremos se as circunstâncias não virão a
provocar o colapso do sistema para os crónicos.
Estamos ainda a viver a pandemia, nela envolvidos sem
ainda o distanciamento necessário para uma análise
independente e continuamos numa fase em que a
prioridade continua a ser a gestão dos recursos para
dar resposta a esta calamidade. No entanto, depois da
surpresa e tempestade inicial, o sistema de saúde tem
de se reforçar de forma a enquadrar adequadamente
a resposta às situações não Covid-19, em tantos casos
mais graves que a própria infeção.
Uma crise gera perplexidade e desafios adaptativos permanentes,
mas das crises nascem sempre oportunidades,
assim consigamos manter o discernimento e a lucidez
necessária. O primeiro dos desafios é a focalização
no doente e não na doença ou na instituição, de forma a
usar os meios adequados para o seu acompanhamento
e tratamento em todas as fases da sua evolução.
O médico de medicina geral e familiar (MGF) tem,
evidentemente, um papel do maior relevo, pois é nele
que assenta a plataforma de gestão das comorbilidades
que frequentemente o doente apresenta, sobretudo o
doente idoso. Mas a cooperação e complementaridade
interinstitucional e multidisciplinar tem de ser garantida
e não obstaculizada, como sucede atualmente. Se
pudéssemos isolar um grupo, o modelo da insuficiência
cardíaca (IC) pode ser paradigmático.
Na fase diagnóstica complementar após identificação
dos casos, nas fases de descompensação e nas diversas
intervenções, o hospital (MH) tem um papel indispensável,
mas a medicina de proximidade pode (e deve
em minha opinião) ser o braço longo dos serviços hospitalares
no acompanhamento dos doentes estáveis,
no cumprimento dos protocolos e na identificação dos
sinais de descompensação que justifiquem o retorno
aos cuidados hospitalares.
As vias de comunicação entre MGF e MH têm de se
manter abertas e proporcionar um contacto fácil e bilateral.
Não é apenas o acesso às consultas hospitalares
que tem que ser propiciado aos MGF (sistema
ALERT), mas também o inverso, a referência ao médico
de proximidade, que garante a continuação dos
cuidados iniciados na fase hospitalar.
É de todos conhecida a situação de excessiva procura
dos serviços de urgência hospitalares por doentes com
situações que podiam ser tratadas em medicina de proximidade
(como aliás se demonstrou uma vez mais durante
a fase de confinamento), mas o excesso de consumo
de consultas, meios de diagnóstico e até terapêutica
é igualmente uma realidade que não podemos ignorar.
Parte desse consumo é suscitado pelos próprios profissionais
em contexto duma medicina defensiva que
secundariza o juízo clínico, em favor da proliferação de
múltiplos exames de diagnóstico, por vezes redundantes
ou mesmo fúteis. Mantém-se a prática generalizada de
testes diagnósticos obsoletos à luz das guidelines internacionais
e mesmo de tratamentos invasivos sem vantagem
adicional em relação à terapêutica medicamentosa.
O recentemente publicado estudo ISCHEMIA 12 , como
exemplo, derrubou muitos dados tidos como adquiridos
para o tratamento das síndromas coronárias crónicas,
mas demorará tempo até que mude a prática clínica.
Nos últimos anos, generalizou-se a publicação de guidelines
e documentos de consenso, mas é preciso ir muito
mais longe. Outros já iniciaram o processo de elaborar
documentos sobre adequação de diagnósticos e terapêuticas,
de forma a prevenir o seu uso fútil e excessivo,
mas também de os proporcionar a quem tem
potencial para deles beneficiar. Formas mais modernas
de tratamento estão a substituir as tradicionais, como
é o caso no tratamento da estenose aórtica com as
próteses implantadas por via percutânea.
Por outro lado, muitos tratamentos vasculares, antes
feitos por cirurgia convencional, são hoje realizados por
via endovascular. O desafio é também o de repensar os
modelos tradicionais dos serviços hospitalares e promover
a fusão e integração efetiva, operacional e não apenas
retórica em verdadeiros centros cardiovasculares.
Finalmente, o desafio é o de ampliar a escala e pensar
efetivamente numa perspetiva de Europa. Vozes autorizadas,
que acompanho com interesse, defendem
que depois da já anunciada União Energética, é preciso
avançar no sentido de uma União para a Saúde. Se
assim for, a pandemia Covid-19 será, no reverso da
calamidade, uma verdadeira forja de oportunidades. Ã
1. https://covid19.who.int/
2. Mehra MR. Cardiovascular Disease, Drug Therapy, and Mortality in Covid-19.
N Engl J Med. DOI: 10.1056/NEJMoa2007621.
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9. Afonso Félix-Oliveira et al. Caring for cardiac patients amidst the SARS-CoV-
-2 pandemic: the scrambled pieces of the puzzle. Rev Port Cardiol. 2020;39(5):
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10. Solomon MD et al. The Covid-19 Pandemic and the Incidence of Acute
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Disease. N Engl J Med 2020; 382:1395-1407. DOI: 10.1056/NEJMoa1915922.
50 51
GH ATIVIDADE ASSISTENCIAL
A INTEGRAÇÃO DE CUIDADOS
PÓS COVID 19: DO "NOVO
NORMAL" A UM "NORMAL NOVO"
Adelaide Belo
Presidente da Portuguese Association for Integrated Care - PAFIC
A
pandemia por que estamos a passar,
alterou vários aspetos da nossa vida
e terá consequências na sociedade
que ainda não conhecemos totalmente.
Para quem tinha dúvidas,
tornou bem evidente a necessidade de os países terem
um Serviço Nacional de Saúde (SNS) capacitado
para responder aos desafios que lhes são colocados,
por mais desconhecidos que sejam.
As notícias que nos chegavam de outros países com
quem nos identificamos e com serviços de saúde considerados
mais robustos - Inglaterra, França, Itália, Espanha
- eram muito preocupantes.
Temia-se que o nosso debilitado SNS soçobrasse perante
a procura dos seus serviços, principalmente os
considerados “mais diferenciados”.
Por isso no início da pandemia o foco esteve em ter
camas hospitalares e aumentar a capacidade das UCI,
nomeadamente de mais ventiladores.
Isto foi o que suportou a decisão da Tutela de suspender
a atividade assistencial programada, quer a nível
dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), quer dos
Cuidados de Saúde Hospitalares (CSH).
Rapidamente se constatou que o que acontecia noutros
sítios - lares, escolas, transportes, locais de trabalho,
era tão importante como o que se passava na saúde.
Tornava-se cada vez mais claro que cada setor dependia
dos outros para atingir os objetivos.
Em todo este processo era para nós evidente a ana-
logia com a “Cadeia de Sobrevivência” da resposta a
uma emergência.
Para aumentar a probabilidade de êxito na abordagem
de uma situação crítica, os elos da cadeia devem estar
alinhados e coordenados. E lembramo-nos do que é
importante reter no final de uma aprendizagem sobre
a cadeia de sobrevivência: qual é o elo mais importante?
Todos. Por onde quebra a cadeia? Pelo elo mais
fraco. No geral, os elos da cadeia de resposta à pandemia
funcionaram.
Os nossos políticos - Presidente da República, Primeiro-ministro,
Assembleia da República e oposição, estiveram
alinhados numa postura coerente e tendencialmente
tranquilizadora para o País e para a sua imagem
externa. Os diversos ministérios transmitiram-nos a
ideia de que colaboravam entre eles para encontrar
soluções eficientes para as necessidades que ocorriam.
O Ministério da Saúde assumiu a gestão da resposta
na saúde, emitindo normas, centralizando informação
e coordenando esforços com outras instituições - militares,
forças de segurança, proteção civil, bombeiros.
Mas foi ao nível das estruturas locais de saúde que
houve de facto uma gestão partilhada e coordenada
dos problemas que iam surgindo.
A organização dos cuidados de Saúde Pública e dos
Cuidados de Saúde Primários e a sua coordenação com
os cuidados Pré-Hospitalares e Hospitalares, foi determinante
para que, em média, entre 80% a 90% dos
doentes infetados com Covid-19, fosse seguida/tratada
no domicílio. A literatura sobre “gestão da mudança”
salienta a dificuldade da sua implementação nas organizações
de saúde, mormente quando as condições
de trabalho não são as melhores e há deficit de capital
humano. Os profissionais do SNS demonstraram
o contrário - apesar da falta de recursos humanos e
materiais, do excesso de trabalho e do risco que por
vezes corriam, focaram-se no que era verdadeiramente
prioritário: tratar/cuidar dos que precisavam.
Estamos convencidos que o exemplo dos profissionais
de saúde, com a sua disponibilidade e profissionalismo,
foi um dos gatilhos para alavancar a resposta que
houve da sociedade civil. A mobilização que aconteceu,
envolvendo todas as áreas da sociedade foi muito
enriquecedora e gratificante - o poder autárquico foi
para o terreno defender as suas populações; as IPSS e
o setor privado participaram na resposta; a academia
juntou-se a empresas e estudaram soluções técnicas
para problemas que surgiram, tais como o fabrico de
ventiladores ou de material de proteção; as unidades
hoteleiras adaptaram espaços para receber doentes e
profissionais impedidos de ir para casa e disponibilizaram
refeições; vizinhos ajudaram vizinhos, principalmente
os mais frágeis, cantaram-se parabéns das varandas
e motivámo-nos com murais, a comunicação e
as redes sociais mantiveram-nos unidos.
Qual foi o elo mais importante? Todos.
Esta é a essência da Integração de Cuidados. Isto é
o que a PAFIC defende. E aconteceu, de uma forma
mais ou menos organizada, como resposta de todos à
situação que todos vivemos.
É habitual dizer-se que, enquanto sociedade, somos
muito bons na resposta a crises, mas que depois... A
PAFIC considera que a atual crise representa uma
oportunidade para melhorar o que fazemos. Tememos
“o novo normal”, queremos um “normal novo”.
Tivemos uma capacidade incrível de nos adaptarmos
aos desafios que surgiram diariamente, neste período
de tempo, reorganizando o trabalho, distribuindo tarefas,
partilhando informação, passando a utilizar ferramentas
de que antes muitos desconfiavam, tais como
as de telesaúde e falámos uns com os outros, dentro
e fora da saúde, tendo um objetivo comum: prevenir,
diagnosticar, tratar, recuperar, encontrar soluções que
respondessem às necessidades das pessoas.
Importa refletir sobre o que se passou e aproveitar as
dinâmicas criadas, para alavancar a reorganização dos
cuidados em algo novo que se torne normal - o “normal
novo”, numa altura em que se torna urgente recomeçar
a atividade programada em todos os setores.
Estarão para chegar, seguramente mais pandemias, que
ainda não conhecemos. Mas temos uma “pandemia”
instalada com a qual ainda não lidamos bem: a transição
demográfica para uma sociedade envelhecida e o
consequente aumento de pessoas com doenças crónicas
e multimorbilidade, que requerem mais cuidados
de saúde e respostas sociais.
Esta situação é já um fardo para os orçamentos dos
serviços de saúde e social, que põe em causa a sua
sustentabilidade. Ao contrário da pandemia que se instalou
em semanas, esta realidade tem avançado lenta
e progressivamente.
Há-de haver uma vacina e medicamentos para travar o
Covid-19. Mas a transição para sociedades mais envelhecidas
não vai parar. A uma realidade diferente não
podemos continuar a responder com as mesmas soluções
organizativas que não respondem nem às necessidades
das pessoas, nem dos profissionais.
Assim como enfrentámos a pandemia de Covid-19
com uma resposta rápida, focada e integrada, temos
de enfrentar a “pandemia” do envelhecimento da população
com uma resposta integradora, adaptada a
uma situação que está para ficar.
É determinante promover a integração funcional entre
os vários níveis de cuidados do setor da saúde, mas
também entre estes e o setor social e as estruturas
existentes na comunidade, de modo a potenciar respostas,
ouvindo sempre as pessoas, para saber o que
é verdadeiramente importante para o seu bem-estar
e capacitando-as para que possam ser um parceiro no
processo de cuidar.
Só quando os doentes e cuidadores participarem na
co-produção dos programas de organização dos cuidados,
se ganhará a batalha da centralidade nas pessoas.
Mas além de capacitar os doentes e cuidadores
há necessidade de capacitar os profissionais - gestores
e clínicos - sobre esta nova forma de organização dos
cuidados. Isto só será possível fazer-se de “baixo para
cima”, com autonomia das estruturas de proximidade
para encontrarem os caminhos mais eficientes para a
sua implementação e sustentação.
O que se espera da Tutela é um sinal enquadrador
(mas não castrador) de que a integração de cuidados é
o caminho, deixando espaço às iniciativas locais e não
desperdiçando as que já existem. E que seja repensado
o financiamento que tem de desfocar da gestão da
doença e da quantidade para promover a integração e
avaliar resultados em saúde.
A PAFIC enquanto associação, constituída por um
conjunto multidisciplinar de profissionais - académicos,
administradores hospitalares, médicos, enfermeiros, assistentes
sociais, farmacêuticos e outros, quer ser parceira,
acreditando que também pode acrescentar valor
neste percurso. Ã
52 53
GH comunicação
"FIQUE EM CASA" tornou se
viral e resultou
Dulce Salzedas
Jornalista
Olhando quatro meses para trás, a
frase "fique em casa" é muito provavelmente
o que melhor caracteriza
a forma como vivemos os
meses de fevereiro, março e abril.
As autoridades de saúde pediram-nos para nos afastarmos
uns dos outros e nós cumprimos
Os louros desse confinamento, que ajudaram a diminuir
o número de infetados e a encontrar o tal
planalto de que tantas vezes ouvimos falar, deve-se
única e exclusivamente aos portugueses. E não foi
porque, por sua iniciativa, decidissem ficar confinados.
Foi porque o chavão comunicacional de "fique
em casa" tornou-se de tal forma viral que resultou.
O desconfinamento deveria também ter sido acompanhado
de outros chavões, de outras mensagens fortes.
Diferentes das que foram usadas na primeira fase da
pandemia, mas igualmente eficazes para tornar fácil a
compreensão do que estava e está a acontecer.
Mas ao contrário do que aconteceu com o "fique em
casa", ninguém se lembrará agora de nenhuma mensagem
decorrente do desconfinamento. E não se
lembra, pura e simplesmente porque ela não aconteceu.
A única mensagem que tem passado e que
está em cartazes, painéis informativos é o "protejase".
Mas proteger pode querer dizer muitas coisas.
A comunicação feita pelas autoridades de saúde durante
o desconfinamento é confusa: fala-se em proibição
de ajuntamentos de 10 ou 20 pessoas, mas
depois os transportes públicos estão sobrelotados.
E não se diz por exemplo que esses ajuntamentos
obrigam ao uso de máscara e à distância social. Até
os apelos iniciais à lavagem das mãos e à higienização
dos teclados, telefones, mesas e outros objetos foram
sendo abandonados.
E já não falo da confusão gerada à volta do uso ou
não de máscara. Com uns a dizerem que ela era imprescindível,
outros a negligenciarem o seu uso.
Por outro lado, há as dúvidas geradas sobre os números
diários de infetados e as diferenças entre
dados nacionais e dados por concelho. Não tenho
qualquer dúvida de que não há nenhuma intenção
da Direção Geral da Saúde ou até do Ministério em
esconder números. Mas sei também que esta espécie
de desarmonia entre uns e outros dados geram
desconfiança e incerteza que desmotivam qualquer
um a tomar medidas de redução de riscos.
Sabemos que em Portugal os dados em saúde nunca
foram o nosso melhor atributo: sempre houve atrasos
e discrepâncias. De certa forma, sempre houve
uma espécie de desarrumação nos dados, quer
porque quem os devia notificar - centros de saúde,
hospitais, administrações regionais de saúde, laboratórios
- não tem tempo para o fazer, dada a complexidade
dos formulários, quer porque quem os colige
os recebe tarde e a más horas.
É uma imperfeição do nosso sistema informação em
saúde que tem de ser reconhecida e assumida.
O Serviço Nacional de Saúde merece um sistema de
informação simples, eficaz e capaz.
Comunicar de outra forma valerá a pena? Trará ganhos?
Sim porque é de ganhos em saúde que se trata
quando se fala em comunicar saúde.
Aliás, comunicação, prevenção e literacia estão profundamente
ligadas quando se fala em saúde. E o
capital investido numa comunicação adequada e diferenciada
consoante o público/alvo que se pretende
atingir é capital ganho na adesão a medidas de prevenção
e de redução de riscos.
A forma como comunicamos é essencial na obtenção
de bons resultados.
E numa pandemia, é mais do que essencial: pode
mesmo salvar vidas. Ã
Obrigado a todos
pela partilha e troca
de experiências nos últimos
cinco meses, foram:
+ de 30 parceiros envolvidos
+ de 40 temas em discussão
+ de 60 sessões de partilha conhecimento online
+ de 200 peritos nacionais e internacionais
+ de 500 mil visualizações no
em + de 40 países
Parceiros institucionais:
Com o apoio:
54
GH voz do cidadão
DIABETES E COVID 19:
CRONOLOGIA DE UMA
RELAÇÃO POUCO FELIZ
José Manuel Boavida
Presidente da APDP - Associação Protetora dos Diabéticos
de Portugal
Mudaram-se os tempos, alteraramse
os hábitos e a normalidade ficou
suspensa por tempo indeterminado.
Desde o dia 2 de março,
data em que a Ministra da Saúde
anunciou os dois primeiros casos de pessoas infetadas
em Portugal por SARS-CoV-2, que a vida mudou. E
desde aí, passando pelo Estado de Emergência até ao
desconfinamento atual, a diabetes e a Covid-19 andaram
sempre lado a lado, numa relação pouco feliz e
ainda com muito por compreender.
Foi há cerca de 4 meses que as capas dos jornais faziam
manchete com as declarações da Diretora-Geral
da Saúde, anunciando que um milhão de portugueses
poderiam vir a ser infetados com o novo coronavírus.
Nesta altura, estávamos longe de imaginar o que
iria acontecer, pois não conhecíamos a dimensão da
pandemia. Ainda hoje não a conhecemos. Atualmente,
há mais de 40 mil casos confirmados de infeção, mas
há investigadores que suspeitam que o número de infetados
possa ser 10 vezes superior, cerca de 4% da
população portuguesa.
Dia 16 de março é anunciada a primeira morte no
país, de um homem de 80 anos com várias patologias
associadas, entre as quais um cancro do pulmão
e diabetes. A 18 de março, o Presidente da República
decreta o Estado de Emergência, com confinamento
obrigatório e restrições à circulação na via pública. Dois
dias depois é publicado o decreto governamental que
define as medidas excecionais e temporárias de resposta
à pandemia. Dentro destas medidas, as pessoas
com diabetes, por representarem uma população de
risco, passam a estar incluídas nos grupos com “dever
especial de proteção”.
A 30 de abril, o Governo aprova em Conselho de Ministros
um plano de transição do Estado de Emergência
para uma situação de calamidade. A 1 de maio, dois
dias antes de iniciar a situação de calamidade, o artigo
25-A do decreto-lei 20/2020 vem determinar que as
pessoas imunodeprimidas e com doenças crónicas podem
justificar a falta ao trabalho mediante declaração
médica, “desde que não possam desempenhar a sua
atividade em regime de teletrabalho ou através de outras
formas de prestação da atividade”.
Mas eis que, numa retificação publicada a 5 de maio, o
Governo exclui a diabetes e a hipertensão do regime
excecional de proteção, sem qualquer fundamentação
científica que sustentasse a decisão. Esta, felizmente,
é uma questão ultrapassada, pois o diploma foi chamado
ao Parlamento e, a 26 de junho, foi aprovada
em plenário a alteração que devolveu às pessoas com
diabetes e hipertensão o direito de voltarem a estar
incluídos nesse regime.
No início do mês, também a Associação Protetora dos
Diabéticos de Portugal (APDP) havia reiterado o apelo
ao Governo para que reconsiderasse a exclusão das
pessoas com diabetes do regime de teletrabalho, lembrando
o risco acrescido destas pessoas face à Covid-19.
Com o país recolhido, começam a destacar-se as respostas
da sociedade civil para fazer face à pandemia.
Antecipando as medidas de confinamento em todo o
País e as restrições de movimento, mesmo quando a
pandemia da Covid-19 ainda estava num estágio inicial
em Portugal, a APDP rapidamente reorganizou os seus
serviços para garantir que o acompanhamento às pessoas
com diabetes não fosse interrompido.
Implementou-se um sistema de teleconsultas e criouse
uma linha de atendimento telefónico para prestar
aconselhamento especializado a todas as pessoas com
diabetes, sem nunca descurar o atendimento presencial
a primeiras consultas ou consultas que implicam uma
observação presencial, como é o caso da oftalmologia,
tratamentos de pé diabético, ou intercorrências. Após
assegurar, através do INFARMED, a existência de reservas
de medicamentos, o envio domiciliar de medicamentos,
telefonemas de motivação e uma presença
ativa nas redes sociais, complementaram estas práticas.
Durante o confinamento, foram aparecendo evidências
científicas que chegaram de países em estádios de
pandemia mais precoces, confirmando que as pessoas
com diabetes são, de facto, uma população de risco,
mais vulnerável ao desenvolvimento de complicações
graves com a infeção por coronavírus e com um risco
de morte três vezes superior ao da população em geral.
Um artigo do jornal inglês The Guardian 1 refere que, segundo
dados do Serviço Nacional de Saúde no Reino
Unido, entre 31 de março e 12 de maio, uma em cada
4 mortes por Covid-19, ocorridas nos hospitais ingleses,
foi de uma pessoa com diabetes. A diabetes foi a
doença mais recorrente na identificação das condições
pré-existentes das mortes por Covid-19 no Reino Unido.
Na China, 20% das pessoas que morreram de coronavírus
tinham diabetes 2 e, segundo informações vindas
de Itália, a percentagem de mortes entre pessoas com
diabetes é de 35% . Tal como em Portugal, a comorbilidade
mais frequente, a seguir à hipertensão, é a diabetes.
O quadro não é otimista, mas nem tudo são más notícias.
Um artigo publicado pela Cell Metabolism 4 , relata
um estudo retrospetivo feito com pessoas com diabetes
internadas nos hospitais da província de Hubei, }
56 57
GH voz do cidadão
“
SÓ NO CASO DA DIABETES,
ESTIMA-SE QUE ENTRE 10 A 20 MIL
PESSOAS TERÃO FICADO POR
DIAGNOSTICAR, POIS QUER PELOS
DADOS DO INSA-MÉDICOS
SENTINELA, QUER PELOS REGISTOS
DOS CUIDADOS PRIMÁRIOS, EXISTEM
60.000 NOVOS CASO/ANO.
”
em Wuhan, na China. As pessoas com diabetes foram
divididas em dois grupos: 282 pessoas com a diabetes
bem controlada e 528 cuja diabetes foi considerada
como mal controlada. A determinação de um bom e
de um mau controlo foi feita com base nos níveis de
A1c e na variabilidade glicémica.
Assim, a média de A1c do grupo considerado como
“bem controlado” foi de 7,3%, enquanto que no grupo
“mal controlado” foi de 8,1%. Ao analisaram os resultados,
verificaram que todos os parâmetros de avaliação
foram melhores no grupo dos “bem controlados”.
Estes dados são demonstrativos de como uma boa
gestão da diabetes é fundamental para prevenir formas
mais graves de progressão da Covid-19.
São quatro as doenças crónicas que a Organização
Mundial da Saúde (OMS) reconhece como prioritárias,
pela sua dimensão, pelo seu impacto e pela associação
perigosa à Covid-19: a diabetes, a doença cardiovascular,
o cancro e a doença respiratória. Estas doenças são
aquelas que precisam de uma resposta mais imediata,
prevendo-se um aumento das complicações nos próximos
tempos pela falta de cuidados nos últimos meses.
Só no caso da diabetes, em Portugal, estima-se que
entre 10 a 20 mil pessoas terão ficado por diagnosticar,
pois quer pelos dados do INSA-Médicos Sentinela,
quer pelos registos dos cuidados primários, existem
cerca de 60.000 novos caso/ano de diabetes 5 , mas os
atrasos dos rastreios da retinopatia, da nefropatia ou do
pé diabético não auspiciam boas notícias. O alarme sobre
o aumento de amputações dos membros inferiores
já soou através de várias administrações hospitalares. A
Covid-19 veio destabilizar todos os níveis de cuidados
e o apoio continuado que as doenças crónicas exigem.
Houve consultas e tratamentos adiados que podem vir
a ter desfechos dramáticos num futuro próximo.
As orientações publicadas pela OMS no guia “Manutenção
dos serviços essenciais de saúde: orientações
operacionais para o contexto da Covid-19” 6 referem
que, a nível internacional, houve uma interrupção
generalizada nos cuidados de saúde às pessoas com
doença crónica, à medida que os países passavam de
casos esporádicos de Covid-19 para a fase de transmissão
comunitária. A OMS reforçou a importância da
implementação progressiva de programas que recuperem
os cuidados de saúde nas doenças crónicas, no
contexto da pandemia da Covid-19. No caso específico
da diabetes, a OMS salienta a retoma gradual de:
• Atividades de promoção da saúde e estratégias para
a mudança comportamental e adoção de estilos de vida
saudável (por exemplo, atividade física e alimentação
saudável), adaptadas aos meios de comunicação à distância,
por telefone, mensagens SMS, ou recursos online;
• Rastreios de retinopatia em adultos com diabetes, e
observação das pessoas com retinopatia proliferativa
estabelecida e pessoas com nefropatia diabética;
• Monitorização da falta de medicamentos, complicações
da doença, pessoas com Covid-19, episódios de
urgência, internamentos hospitalares, ativando linhas
de apoio dedicadas, de triagem e de atendimento;
• Monitorização das taxas de admissão e de mortalidade
hospitalar.
A 21 de maio, o Parlamento aprova as propostas de lei
do Governo sobre o processo de desconfinamento. A
APDP, não só não tinha parado, como tinha retomado,
aos poucos, a sua atividade normal. Aos utentes
com consultas de seguimento é dada a hipótese de
escolha entre o presencial e o online. A experiência
destes últimos meses provou que, efetivamente, a telemedicina
resulta numa boa alternativa no acompanhamento,
e que veio para ficar em alguns casos, desde
que a relação médico/enfermeiro com o utente esteja
estabelecida. O que não pode falhar é o acompanhamento
e o suporte continuado às pessoas.
Esta nova realidade de vida com a Covid-19 contribuiu
para o aumento de ansiedade e de dúvidas relacionadas,
quer com a gestão da diabetes, quer com a prevenção
da infeção. A complexa gestão da diabetes tornou-se
agora mais exigente, perante a necessidade de
assegurar continuamente um bom controlo, para que
o risco das complicações originadas pela Covid-19, seja
o mais próximo possível do da população em geral.
Mas a relação entre a diabetes e a Covid-19 não fica
por aqui. Recentemente, numa carta publicada no The
New England Journal of Medicine, um grupo de 17 investigadores
alerta para o risco de se desenvolver diabetes
após infeção por SARS-CoV-2, salientando a existência
de uma possível relação bidirecional entre a Covid-19
e a diabetes. Por um lado, a diabetes está associada a
um risco aumentado de complicações graves por Covid-19.
Por outro lado, foi observado em pessoas com
Covid-19, o aparecimento de uma diabetes recente
em pessoas saudáveis e o desenvolvimento de complicações
metabólicas graves em pessoas com diabetes
preexistente, “incluindo a cetoacidose diabética e
situações de hiperosmolaridade grave, que necessitam
de doses excecionalmente altas de insulina” 7 . Os casos
que acompanhamos na APDP também o confirmam:
em dois/três dias passamos de antidiabéticos orais, a
mais de 50 U/dia de insulina.
O SARS-CoV-2 liga-se ao recetor ACE2, uma das
portas de entrada nas células, que está localizado nos
pulmões e nas vias respiratórias, mas que também se
encontra nos principais órgãos e tecidos metabólicos,
como o pâncreas, intestino delgado, tecido adiposo,
fígado e rins. Assim, segundo os investigadores, é possível
que a SARS-CoV-2 possa causar alterações no
metabolismo, originando complicações na diabetes
preexistente ou novos mecanismos da doença 8 .
Depois do The New England, também a revista Nature
abordou esta relação entre a diabetes e a Covid-19.
Há várias hipóteses em aberto e não se sabe de que
tipo de diabetes estamos a falar, ou mesmo se é um
novo tipo por investigar. Se a doença se instala para
sempre ou se é temporária. Estas e outras dúvidas merecem
uma atenção especial para o aprofundamento
do estudo desta relação entre a diabetes e a Covid-19.
Entretanto, chegamos ao mês de junho, às portas de
julho e, em Portugal, os números não param de aumentar,
em particular na região de Lisboa. Ao contrário
do que proclamávamos de início, agora já não
estamos todos no mesmo barco. A Covid-19 atinge,
desproporcionalmente, as populações mais desfavorecidas
e com maior prevalência de doenças crónicas. A
pandemia está a forçar-nos a encarar a realidade de
que o progresso em direção aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável é frágil, pois as populações que
se encontravam com possibilidade de melhoria das
suas condições de vida, estão agora mais vulneráveis e
em risco de ficar ainda mais para trás.
A classificação de risco já não será pelas patologias que
atingem as pessoas, mas essencialmente pelos determinantes
sociais, tanto mais que são também eles os
principais implicados nas doenças crónicas em geral,
e na diabetes em particular. É tempo de evoluir de
uma abordagem universal, que a todos serve, para uma
mais centrada nos que apresentam um maior risco,
com maiores necessidades, melhorando os cuidados
de saúde primários, tornando-os ainda mais próximos,
aumentando os cuidados domiciliários, integrando assistentes
sociais a monitorizar as necessidades sociais,
para além das de saúde, envolvendo as pessoas, as
estruturas comunitárias locais, as autarquias e as organizações
da sociedade civil na resposta à pandemia.
A organização e estruturação do combate às doenças
crónicas, não só reforçará a sua prevenção, controlo e
acompanhamento, como contribuirá para o combate
à Covid-19, pela maior participação dos cidadãos, o
aumento da literacia e o reforço da coesão social. Ã
1. https://www.theguardian.com/world/2020/may/14/one-in-four-people-whodied-in-uk-hospitals-with-covid-19-had-diabetes
2. https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30243-7/
fulltext
3.https://www.epicentro.iss.it/coronavirus/bollettino/Report-Covid-
-2019_17_mar-zo-v2.pdf
4. Zhu, Lihua et al. Association of Blood Glucose Control and Outcomes in
Patients with Covid-19 and Pre-existing Type 2 diabetes, in “Cell Metabolism”
(junho, 2020).
5. Observatório Nacional da diabetes. “diabetes: Factos e Números - O Ano
de 2015”. Sociedade Portuguesa de Diabetologia (2016).
6. World Health Organization. “Maintaining essential health services: operational
guidance for the Covid-19 context” (junho, 2020).
7. https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMc2018688
8. Idem.
58 59
GH gestão
OPERAÇÃO LUZ VERDE:
HOSPITAIS MAIS PRÓXIMOS
DOS DOENTES
Neste momento, decorrem diversos estudos económicos
sobre estas dimensões da intervenção farmacêutica,
quer hospitalar, quer comunitária. Apresentam-se,
de seguida, os resultados da operação realizada até 31
de maio, a partir de um estudo do Centro de Estudos
e Avaliação em Saúde (CEFAR), a uma amostra representativa
de 600 doentes, selecionados aleatoriamente.
As farmácias comunitárias garantiram 14.743 dispensas
de medicamentos, por solicitação de 33 hospitais. Cada
doente poupou, em média, 100 km de deslocações
aos hospitais. Globalmente considerados, os doentes
pouparam mais de 1,7 milhões de quilómetros, o que
corresponde a 43 voltas ao planeta.
Automóvel e transportes públicos são os meios de deslocação
predominantes aos hospitais. Na sua maioria, os
doentes deslocam-se às farmácias a pé.
Humberto Martins
Diretor da área profissional da Associação Nacional das Farmácias
A
pandemia de Covid-19 pôs o sistema
de saúde à prova, como nunca
antes tinha acontecido. Os serviços
de saúde, em particular os hospitais,
tiveram de implementar transformações
radicais na sua organização e procedimentos,
quase de um dia para o outro.
Todos os estudos de opinião aos portugueses mostram,
de forma objetiva, que o desafio foi superado
com distinção. Os profissionais de saúde são agora
ainda mais valorizados pela população. A necessidade
de maior investimento público na Saúde deixou de ser
discutível, para se apresentar como uma urgência e um
imperativo nacional.
As soluções encontradas para responder à pandemia
devem ser avaliadas com transparência e objetividade,
para determinar o seu valor em Saúde Pública e económico.
Devemos avaliar se as respostas criadas agora,
para responder às necessidades
dos cidadãos no contexto pandémico
que ainda atravessamos, se
mantêm eficientes quando ultrapassarmos
esta crise.
Com a liderança institucional da Ordem
dos Farmacêuticos e da Ordem
dos Médicos, a Operação Luz Verde
(OLV) foi a resposta articulada entre
farmacêuticos hospitalares e comunitários
para garantir a continuidade te-
rapêutica aos doentes medicados em ambulatório hospitalar.
Concebida, desenhada e implementada em menos
de duas semanas, a OLV arrancou no dia 24 de março,
com uma duração prevista até 31 de maio. Contudo, este
prazo foi ampliado, para além do estado de emergência,
pelo Despacho da Ministra da Saúde nº 5315/2020,
de 7 de maio, que ainda vigora. De 1 a 25 de junho foram
asseguradas pelas farmácias comunitárias, gratuitamente,
3.817 dispensas de medicamentos a solicitação
dos hospitais. As farmácias continuam diariamente a assegurar
o serviço de forma gratuita, disponibilizando os
seus recursos técnicos, tecnológicos e profissionais, com
a transparente expectativa de que este seja avaliado e
valorizado para uma contratualização transparente.
A OLV contou com a participação ativa de 20 associações
de doentes, procurando também ser um exercício
para uma futura maior participação dos cidadãos na
gestão de programas de Saúde Pública.
Os doentes oncológicos e os portadores de VIH/SIDA
lideram o ranking de patologias mais frequentes.
O recurso às farmácias comunitárias para a dispensa de
medicação hospitalar de ambulatório poupa, em média,
1H44 aos doentes em deslocações, o que têm impacto
no absentismo de 28,2%. }
60 61
GH gestão
O serviço de dispensa é avaliado muito positivamente
em ambos os ambientes, com particular destaque para
a disponibilidade do farmacêutico, indicador onde as diferenças
registadas se podem considerar marginais.
A intervenção da farmácia comunitária é valorizada pela
quase totalidade (97,9%) dos doentes que experimentaram
o serviço.
A liberdade de escolha é valorizada pelo mesmo universo
de cidadãos.
Conclusões
Seria também interessante estimar os ganhos em saúde
(em infeções e mortes evitadas) da OLV, e a redução de
custo para os utentes e outros financiadores das deslocações
aos hospitais, como os governos regionais.
A elevada satisfação e a vontade dos doentes de manter
este serviço são já evidentes.
Os resultados alcançados num contexto de particular
desafio, apenas foram possíveis pela articulação entre
profissionais, centrada no interesse de doente, bem como
pelo suporte das associações profissionais - Ordem
dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos e Associação
Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) -
e das associações representativas dos agentes do medicamento
- Associação de Distribuidores Farmacêuticos
(ADIFA), Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica
(APIFARMA), Associação Nacional das Farmácias
(ANF) e Associação de Farmácias de Portugal (AFP).
O momento que atravessamos questiona muitos dados
adquiridos na nossa convivência em sociedade.
“
O INTERESSE DO CIDADÃO DOENTE
INTERPELA-NOS A PROSSEGUIR
UM CAMINHO DE COLABORAÇÃO
E DE TRANSPARÊNCIA.
”
Regressar acriticamente ao modelo pré-Covid-19 de
dispensa de medicamentos hospitalares seria transformar
um paradigma, que produziu os seus efeitos no
passado, em paradoxo.
O interesse do cidadão doente interpela-nos a prosseguir
um caminho de colaboração e de transparência. Ã
Em sentido oposto, a perceção de segurança dos doentes
regista diferenças muito significativas entre a farmácia
e o ambiente hospitalar.
Nove em cada dez doentes preferem continuar a usufruir
deste serviço depois da pandemia.
62
GH direito biomédico
PERSISTIR EM DEVIR.
DO ÉDEN AO PURGATÓRIO?
João Vaz Rodrigues
Universidade de Évora, Centro de Direito Biomédico da FDUC
Entre a redação e a publicação verificarse-á
a “mobilidade” e a “dispersão” que
caracterizam os “tempos que correm”.
Eis o novo da novidade (em cada dia,
as notícias das horas de “laudes” são
anacronismos pelas de “vésperas”). Mais: o que se insiste
para o SARS-Cov-2 mostrou-se imperativo desde
2003 e materializado a partir de 2005 no Regulamento
Sanitário Internacional 1 justificando a teimosia do que
designarei por "alicate": pela "haste" do Mundo - uma
tutela supraestadual da saúde - OMS, atuação isenta,
planificada e equânime; solidariedade integral: científica
e de meios; monitorização e transparência de dados,
prevenção de recursos.
Pela "haste" individual: "informação sem confusão" (recíproca),
aceitação das restrições individuais dos direitos
fundamentais, recato, distância, empenho, pertinácia
e confiança. Existem receios, tais como a regulação
do "trânsito" no cruzamento com o setor farmacêutico.
O alicate permite multiplicar a força, é necessário ainda
ser flexível, anotar e corrigir erros.
A "perspetiva doméstica" anunciada em abstrato.
Da catástrofe a um caos atualizado no anúncio
que denuncia o seguinte.
Coube ao Presidente Xi Jinping no dia 24-01-2020 a primeira
declaração mediática sobre o Covid-19 (SARS-
Cov-2). Dou crédito à notícia de Sam Knight na sua
coluna no New Yorker, de 27-06, Letter from UK. É inesquecível
a "revolução" social mundial subjacente. Segundo
a mesma fonte, o editor da vetusta e prestigiada
Lancet (1823), Richard Horton, formulou desde janeiro
de 2020 (sabor a século) balanços contínuos da ciência
à política, em moldes desabridos e acutilantes, mercê
de muitos artigos controversos, com impacte também
nos costumes, valores, ética e direito 2 . Uma emergência
calculada, em balanço de experiência ponderada
desde o HIV.
"O Lancet não é o The Economics", afirma Horton. Está
lançado o repto entre os dois lados da briga, as duas
trincheiras. Faça o favor de se sentar; tarde ou cedo
também ficará zangado: afinal, foi - fomos - expulso(s)
de um Éden! A defesa da saúde dá por adquirido e
eficaz a adoção do maior isolamento e distanciamento
possíveis. A defesa da subsistência económica afirma ser
urgente assumir riscos cautelosos na(s) reabertura(s).
Coexistem opções mais ou menos afoitas, dislates e
afirmações contraditórias, ridículas não fora a gravidade.
As posições radicais que cegam a realidade cobram
alto, muito alto. O curso do antropoceno inclui as derrotas
infligidas pelo poder da "pobreza de mundo do
animal" (Heideggar, Agamben) 3 . A pandemia é "decretada"
pela OMS no dia 11de março de 2020, após o
PECHS de 30 de janeiro 4 .
Um dos adágios que cunha as personalidades admiráveis
é o de que "a sorte protege os audazes" (Virgílio,
Eneida, X). Sendo invectiva, pois que mereça tempero
de prudência. Sobretudo, que não afaste a humildade
da visita ao campo da batalha, não largando ao olvido
os cadáveres da refrega. Aprende-se muito com a recordação
reflexiva que processa o registo da memória.
É mais fácil apontar os êxitos do que escrutinar a fatura.
E, paradoxalmente, é sobre faturas que escrevo. Já
lereis. Primeiro, o óbvio: a ciência médica atingiu desenvolvimentos
extraordinários, com exercício em
equipas multidisciplinares e no seio de estruturas sofisticadíssimas.
Ora, estas estruturas necessitam - além de
recursos - técnicas e regras que acarretam burocracias
impostas pelos contrastes das formações técnicas múltiplas.
Tudo obedece a entes enigmáticos: "legisladores"
(no nosso caso, democrático: uf!). Os burocratas estão
apostados em dar segurança à liberdade (cientistas e
profissionais), mas, cuidado: recebem "ordens" e são
pressurosos em formulários e formalismos.
Seguindo os (des)governos anunciados pelos Estados
"vizinhos" do Mundo, muitos legislam o fim da pandemia.
Não resulta, está bem de ver. Um singelo princípio,
assumido como essencial para a Vida e para a
"vidinha", em menos de nada carreia normas sem fim.
É usual ao ator o desprezo por montantes e jusantes;
aperta o parafuso que lhe cabe e dispara à incompletude:
that's not my job! Está feito o "caldo". Procedimento?
Quero um protocolo! E, depois, quero um formulário
para simplificar (primeiro: "leia, creia e assine"; depois:
"preciso que assine"; e, por fim, "tem de assinar").
Acabamos a ver nas latrinas "regulamentos" plenos de
interpretações complexas de normas como: "puxe o
autoclismo"; "feche a torneira"; "toalhetes no caixote",
etc. Os regulamentos da "vidinha" não raramente banalizam
e entopem, e, claro, o culpado já não é quem
os pede, mas quem os faz. Talvez ambos sejam (ir)
responsáveis. E, ao fim e ao cabo, quando perante imprevisto
procuramos uma norma salvífica, mais céleres
afiguram-se os princípios. É que os legisladores obedecem
sem remédio, apelo ou agravo, ao devir. Explico.
Sonhem a sombra do Titanic. Milagre tecnológico, mas
a "fortaleza" não resistiu ao iceberg que, em abril de
1912, lhe rasgou o costado, ditou naufrágio e matou
quase todos os tripulantes. O espanto residiu na vulnerabilidade.
Após um século, o radar de bordo, regulamentar,
arredaria o desastre. Lição?
É legítimo esperar que se resolvam muitos dos desafios
com que estamos confrontados: que ao desnorte
se substitua a solução, na prática dos profissionais de
saúde, recursos e ação salvífica. Até lá, e lá, teremos
princípios e valores (axiologia). Olhai o horror dos
profissionais de saúde perante a escassez de meios e
o drama das decisões (ventilador a A ou a B?). Um pequeno
gigantesco exemplo dos problemas específicos
(as aporias paradoxais).
É certo que perante o caos, sobram os valores e vale
o decisor. No meu pesadelo ouvi a frase que ditou
a ação (ética) do Comandante R. Salmond da fragata
Birkenhead (naufrágio: 1852), face à escassez de botes:
"mulheres e crianças primeiro". O bom senso contra o
senso comum; eis o que demonstra a inquietude dos
"pontos de perigo" da (intraduzível) governance. Fora
do tempo útil da ação, pensai hoje nos debates possíveis
em torno da opção. Não somos doidos: sabemos
quando pensar e quando agir (Sapiens!?).
Sabemos? Claro que sim, "estamos todos no mesmo
navio", afinal. Persisto no reduto iconográfico.
Um dos primeiros ensaios, escrito em prisão domiciliária
ditada a "privilegiados", pertence a Slavoj Zizek 5 ,
onde presta homenagem a M.Luther King, Jr.: "Podemos
ter chegado em diferentes navios, mas estamos
todos no mesmo, agora". Citação feliz. Podemos ter
vários Estados (em torno de 200), mas um só Mundo.
Reduzo ainda: a pandemia, como tormenta tremenda,
apaga todas as fronteiras, reduzindo o globo a algo que
cabe na palma da mão humana 6 .
A tempestade Covid-19 tem vários pontos críticos. Propaga
em pau de fósforo, debilita, reaparece matrei- }
64 65
GH direito biomédico
“
DOU COMO PONTO ASSENTE,
EM SÍNTESE, QUE OS TEMPOS
DESTA CRISE PERTENCEM A TODOS
E ESTA A TODOS DEMANDA
POR IGUAL O QUE DECORRE
DAS INTERDEPENDÊNCIAS
ACELERADAS. ONDE A TORMENTA
DESPEJA A SUA FÚRIA É ONDE
A UNIÃO SOLIDÁRIA MAIS
SE JUSTIFICA. SÃO AVISADOS
OS QUE NOS APONTAM
CAUTELAS SOBRE O
AGRAVAMENTO DA PANDEMIA.
”
ra, multiplica sequelas colaterais, posta-se sem sintomas;
reduz-se em mortalidade, mas, altamente esquizofrénica,
mata ao ocupar as disponibilidades das estruturas
de saúde, que deixam de poder reagir às demais
patologias. Entre o pânico dos pacientes que recusam
o Hospital e este, que fica atafulhado, sobram mortes
ou outras mortes, com a mesma razão. Correu junho.
Após um "estalo" europeu, sentimos alívio; sabemos
de onde veio a tempestade e percebemos onde está
intensíssima (Américas) e revela agressividade máxima
(Índia, Rússia, e países que, imprecisamente, designo do
Levante alargado).
Já entendemos igualmente que se trata de uma persistência
que se dissemina por todo o lado: uma intempérie
que persiste em porvir. Sendo mal de todos,
ficamos atónitos perante as respostas fragmentadas,
frente a visões domésticas. Continuamos sob um jugo
(intolerável!?) de negação da solução dada pela Lei
da complexidade crescente em matéria das relações
internacionais (A. Moreira). Teremos de atalhar o debate
em espiral e demonstrar o apelo do sentido comum.
Temos o Mundo na mão, vamos esmagá-lo?
Vamos esperar pelo GPS perante o iceberg? Enquanto
esperamos, jogamos à "violeta" 7 com o revólver político?
Como proteger o maior número de pessoas?
Dou como ponto assente, em síntese, que os tempos
desta crise pertencem a todos e esta a todos demanda
por igual o que decorre das interdependências aceleradas.
Onde a tormenta despeja a sua fúria é onde a
união solidária mais se justifica. São avisados os que
nos apontam cautelas sobre o agravamento da pandemia
(étimo: do povo todo). Existem casos "felizes",
em que as preocupações que antecedem se dissolvem
em inteligência, como nos relata Vera L. Raposo ter já
ocorrido em Macau 8 . Certo é que também a inteligência
exige recursos e autodisciplina (sempre o alicate).
Mulheres e crianças primeiro?
Todos no mesmo navio, mas os nossos "maiores" 9
estão terrivelmente expostos. As estatísticas revelamse
dramáticas a vulneráveis. Os da trincheira do front
mortal (dificuldades respiratórias, cardíacas, imunitárias,
etc.) estão ainda expostos a cuidados de "profissionais
ativos", pelo que, mesmo isolados, convivem com
quem os cuida. Consequentemente, anunciamos-lhes
que vão viver "cerceados de liberdades" e ainda assim
em risco: "a mão que lhes dá o pão não se assegura sã".
Os do Mundo que não tiverem meios médicos disponíveis
(modelos de Beveridge ou de Bismarck, etc., respetivos
desenvolvimentos e convergências) encontram
o bote salva-vidas na OMS. Atenção. Serão menos de
50% os Estados com estruturas organizadas de intervenção
em caso de emergência 10 ; e, entre estes (penso
em Itália, Espanha e Reino Unido), viveram-se nos rigores
de março, abril e maio, desespero e impotência.
Dói ver os Estados em kindergarden na competição das
faturas, cegos e surdos à "registadora" que fatura ainda.
Os heróis da orquestra do Titanic continuaram a tocar.
A grande maioria da população mundial encontra-se
na dependência dos porta-moedas dos ricos. É impressionante
como somos ricos em perspetiva comparada,
ainda que otimista 11 . Voltarei à ampulheta.
"É a Economia, estúpido!"
A frase do assessor de Clinton, James Carville (eleições
de1992), deixou rasto na História. Tirada eficaz, precedeu
outra: "o resto é conversa”. É bom estarmos cientes
de que a vertigem inevitável da consubstanciação
da fórmula, constitui pomo crítico de discórdia ao equilíbrio
da balança. A "sentença" tem agora um eco radicalmente
oposto: vai a transformar-se em ordem ditada
aos condenados à exposição enquanto soldados: homo
laborens 12 .
O sacrifício da ausência de alternativas, tanto pior que
a adversativa, fica construído em requisitos materiais.
Nomes de notáveis como Trump e Bolsonaro afiguram-se
já com lugar cativo nos autos dos julgamentos
na galeria dos "insustentáveis" da História. Cuidado. Os
países do Mundo mostram ganas em desrespeitar as
regras internacionais assumidas e ou a aberturas sustentadas.
Sobrevêm riscos sérios em ressuscitar amargos
de boca.
A velocidade da circulação das pessoas é alucinante,
mas parece menor do que a da propagação da doença.
Notícias tão singelas e inocentes como as "efémeras"
que alumiam rodapés dos jornais (companhias aéreas
ponderam abolir malas de viagem ou análises a águas residuais
no Guadiana revelam contaminação) constituem
os imprevistos evidentes: "como não pensei nisso?"
O mercado mundial, ao cunho destas linhas: 06 de
2020, encontra um número de infetados que se cifra
em 10 milhões e o "relógio” mundial da população
(worldometters.info) chora meio milhão de falecidos
por Covid-19 13 , mas quantos foram e quantos serão
ainda, até por omissão de cuidados?
A população cresce aos 8 "biliões", previstos aos meados
do século; os nascimentos diários são mais do
dobro das mortes. Em suma, os números globais parecem
reiterar que a economia, muito doente, causa
piores problemas, também mortais. Mas que mal
pergunte no desenrolar das premissas do raciocínio
sobre o desastre económico resultante da imobilidade:
o que fazer com uma multidão de trabalhadores e de
consumidores doentes, eventualmente endossados a
infraestruturas de saúde incapazes de tratar? Que novo
tipo de risco é este?
Em síntese, no caleidoscópio, interdependentes, complicam-se
saúde e economia. Dou primazia àquela. A
economia multiplica riqueza e bem-estar; a saúde é um
bem estranho, escasso, precário, que, falhando, gera a
nostalgia de ser radicalmente irrepetível: por mais que
nos empenhemos em dar-lhe guarda, preservando-a,
sempre se deteriora sem necessidade de qualquer auxílio.
Na coexistência de sapiens e econs, o curso singular
ordinário da dignidade humana é espelho de Magritte
onde parafraseio: celui ci n'est pas un homme.
O caleidoscópio das modificações e o "pesadelo
de Harari":
A aceleração máxima mensurada no nosso Universo
está em 300 mil km/segundo, afirma Jim Al-Khalili (a
velocidade do tecido do espaço-tempo). Olhamos o
Universo em torno e queremos aceder-lhe; estamos
no alter space (em comunicações, por exemplo) e queremos
"ocupar" o espaço lunar, com as utilidades possíveis.
A tecnologia aproxima-nos em comunicações 14 .
Nesta voragem não corremos para o suicídio nem ponderamos
morrer sem assistência; piscamos os olhos à
vertigem tecnológica e ao acesso a bens, serviços, riqueza.
A fatura tem uma nova "parcela": os dados.
Os anos têm ditado modificações significativas no reduto
mínimo "adquirido" da esfera individual da autonomia;
nessa que Orlando de Carvalho, no seu rigoroso ensino,
sintetizou: noli me tangere (não me toques, João: 20:17),
enquanto ponto axial da Dignidade Humana. A primeira
é a da recolha dos dados de saúde, o preço para a
circulação das pessoas; a segunda é a monitorização dos
infetados, para a salvaguarda da saúde individual e coletiva,
com as restrições inerentes (vg Declaração individual
de saúde, in Raposo, VL); a terceira, que não forçosamente
a última, será o acesso tendencial à totalidade
das informações: a banalidade da visibilidade. O pesadelo
de "Harari" vaticinou-lhe a expressão "dataísmo": previsto
a arco de tempo de décadas, atalha-se para hoje 15 .
O exercício da excecionalidade, da prudência e do mínimo
necessário são fundamentais (cf. Raposo, VL). O
processamento dos dados não necessita de ser um
monstro, precisa sim, pelo contrário, de ser arredado
do lado negro da Força 16 . }
66 67
GH direito biomédico
“
POR LEI, JÁ NÃO EXISTIA
PANDEMIA: VERDADE É
QUE TODOS JÁ OUVIMOS
OS CANDIDATOS A ARGUIDOS
DESTE EPISÓDIO DA HISTÓRIA
DO MUNDO AFIRMAR QUE,
SEM A INFORMAÇÃO SOBRE
OS INFETADOS, REDUZEM-SE
OS PROBLEMAS.
”
Fidedignidade! Os tempos do antes pelo contrário.
Certificação dos factos.
Escrevi que, por Lei, já não existia pandemia: verdade
é que todos já ouvimos os candidatos a arguidos deste
episódio da História do Mundo afirmar que, sem
a informação sobre os infetados, reduzem-se os problemas
(eufemismo). É formula análoga para camuflar:
decreta-se que não é aquela doença; ninguém sabe se
está doente da doença que não sabe se está a matar
tanto quanto, porque, cientificamente, não se sabe 17 .
Aqui entra um valor fulcral: fidedignidade. A certificação
dos factos das notícias dadas e a liberdade de acesso
não apenas às conclusões, mas às fontes.
O dia seguinte: o purgatório! O iter irónico da
Divina Comédia: Dante, Beatriz e Virgílio.
Perdi a conta às contrições recentes ditadas pelas doenças
análogas. Todas ditaram como virtudes o isolamento.
Nos ínterins existe uma nostalgia do Éden primevo
onde se multiplicam as macieiras. Não vislumbro
paraíso, mas água do Letes. "Diga lá outra vez: 33!".
Acredito que se não existirem traições, se a axiologia
for solidária e universal, entenderei a decisão casuística
da oportunidade, ie, a lex artis ad hoc. Sei que a novidade
afasta, suspende (existem outras traves para a
nova Ética). O possível é neste momento a superação
da impossibilidade, derribando já as fronteiras, queimar
papel, seja de formulários seja de crédito. Não tolero;
aceito, quero e ajo. Quero Beatriz, não quero esquecer.
Não quero que esqueçam. Tenho anos pela frente
e esta ou outras pandemias mais que prováveis. Não
toco, não cuspo, lavo as mãos. Vamos lá, juntos. Ã
1. Cf. Fidler, David: SARS. Governance and the Globalization of Disease, Ed.
Palgrave Macmillan, 2004, pp 42, 68 e 132, 155. Também: https://youtu.be/qIA-
54lzSkWY (07-12-2018). A pandemia rompe as fronteiras de Vestfália. RSI: Av.
12|2008, DR, I, n.º 16, 23-01-2008), preceptivo em 196 países (mais do que os
194 da OMS).
2. VG a investigação de Mehra sobre a hidroxicloroquina, cf. https://observador.
pt/2020/06/04/revista-the-lancet-retira-artigo-polemico-sobre-hidroxicloroquina/,
ou, com ironia cultural, o paralelo com o "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago,
por D.Marchalik e D.Petrov, From literature to medicine | Seeing Covid-
-19 through José Saramago"s Blindness, 395, June 20, 2020, p 1899. Horton, R.,
The Covid 19 Catastrophe (…), Polity Press, 2020 (kindle).
3. Agamben, G: "O Aberto…", Ed. 70, 2014.
4. Cf. https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-openingremarks-at-the-media-briefing-on-covid-19-11-march-2020.
"Public Health Emergency
of International Concern". Cf. art. 12.º RSI (Emergência de Saúde Pública
de Âmbito Internacional) e fluxograma no Anexo 2.
5. Cf. ID Panic - Covid-19 shakes the world, OR Books, NY, London, 2020, lucros
para a Associação Médicos sem Fronteiras.
6. Três referências a pretexto da convergência que aspiro inevitável de todas
as áreas culturais e étnicas: Arnold Toynbee, Adriano Moreira e Teillard de
Chardin Livre de citações, não deixarei, contudo, de mencionar que Chardin
integrou a equipa que, há um século, "escavou" o Homem de Pequim (sinanthropos:
750 000 anos), similitude metafórica com o ponto zero do período de
união perante o mínimo invisível que nos ataca.
7. Variante da roleta russa praticado no contingente espanhol da invasão alemã
na II GM, na URSS. em que os jogadores suicidas vão inserindo uma bala na
câmara, acelerando o desfecho ao sobrevivente.
8. Raposo VL. "Macau, a luta contra a Covid-19 no olho do furação" Cadernos
Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020abr/jun; 9(2): 12-28.
9. O sinónimo para velhos, gerontes, etc. é vulgar no léxico castelhano, portanto,
muito português, sentados que estamos em cima desse tesouro, com
vénia a José R. Pichel apud F.Venâncio, "Assim nasceu uma língua", Ed. Guerra e
Paz, 2020, p 153. Gracia, Diego: La vida de 100 años. "Vivir y trabajar en la era
de la longevidad", 2018, https://youtu.be/qnAf879vqL0 . Cf. ainda Entralgo, La
empresa de envejecer, Galaxia Gutenberg, 2001 e María Blasco,", Morir joven,
a los 140 anos (…), Paidós (Kindle Ed).
10. Kandel et al, "Health Security Capacities…", Lancet, 18-03-2020.
11. Cf. H.Rosling, Factfulness, Temas e Debates, 2019, de 2018; atualização em
gapminder.org.
12. Cf. H. Arendt, "Pensar sem corrimão" (antologia), Relógio d"Água, 2019, pp
198, ss, 229 ss).
13. fCf.WHOcovidDashboard:https://covid19.who.int/?gclid=EAIaIQobChMIqO-p776m6gIVCMqyCh1DDwLYEAAYASAAEgJMpvD_BwE
14. ID, Faster Than The Speed Of Light?, cf. https://www.jimal-khalili.com/blog/
Faster-than-the-speed-of-light). cf ainda "Moontopia competition", TEST LAB /
Monika Lipinska, Laura Nadine Olivier e Inci Lize Ogun, https://aasarchitecture.
com/2017/01/nine-visions-moontopia-competition.html/
15. Cf. Harari, YN: "Homo Deus: História Breve do Amanhã", Elsinore, 2017,
pp 433 e ss.
16. Cf. vg. Autoridade Europeia para a Proteção de Dados; as decisões vinculativas
do Comité Europeu de Proteção de Dados, https://edpb.europa.eu/
about-edpb/board/members_pt )
17. Alves SMC, Delduque MC. Má conduta nas publicações científicas: precisamos
falar sobre isso! Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário.
2020abr./jun.; 9(2): 09-11. Cf. notícia da criação de Comissões de Ética certificadoras
vg: https://publicationethics.org/core-practices.
68
GH INOVAÇÃO ORGANIZACIONAL
A OPORTUNIDADE DOS CRI
NO PÓS COVID 19
Ricardo Mestre
Vogal do Conselho Diretivo,
Administração Central do Sistema de Saúde, IP
Os sistemas de saúde dos países desenvolvidos
enfrentam desafios complexos,
essencialmente relacionados
com o crescimento sustentado das
necessidades em saúde da população,
fruto das tendências de evolução demográfica, social
e cultural. O envelhecimento acelerado da população
e o aumento progressivo das doenças crónicas são
duas das consequências mais visíveis destas tendências,
às quais se juntam expetativas e exigência cada vez
maiores por parte dos cidadãos que, de forma legítima,
pretendem assegurar elevados níveis de qualidade e de
bem-estar ao longo do seu percurso de vida.
Por outro lado, o crescimento económico destes países,
onde se inclui Portugal, tem sido mais moderado
do que o aumento da procura de cuidados, o que
obriga a uma discussão permanente sobre a utilização
rigorosa e responsável dos recursos que estão disponíveis
para o setor da Saúde.
Esta realidade exige a alteração dos tradicionais padrões
de prestação de cuidados de saúde, nomeadamente
nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde
(SNS), com uma forte aposta na desinstitucionalização
e na ambulatorização das respostas, no reforço da integração
e da continuidade de cuidados e na aceleração
do processo de transformação digital na Saúde. Aprofundar
estas alterações estruturais implica desenvolver
novos modelos assistenciais, mais centrados nas reais
necessidades das pessoas, que reconheçam e valorizem
o mérito dos profissionais e das equipas, que induzam
uma gestão eficiente e sustentável dos serviços
de saúde.
A recente pandemia da Covid-19 veio acelerar esta
necessidade de inovação organizacional no setor da
Saúde, não só porque se trata de uma doença emergente,
com grande impacto social e económico, mas,
essencialmente, porque afetou fortemente a capacidade
produtiva dos serviços de saúde, inviabilizando a
realização de milhares e milhares de consultas, cirurgias,
meios complementares de diagnóstico e terapêutica
(MCDT) e episódios de urgência.
Recuperar a atividade assistencial não realizada nos
últimos meses e retomar a trajetória de melhoria do
acesso, da qualidade e da eficiência que estava em curso
no SNS (e que foi interrompida pela chegada da
Covid-19), são objetivos partilhados entre os utentes e
os profissionais saúde.
Para serem alcançados, é necessário adotar medidas
excecionais de curto prazo que incentivem os médicos,
os enfermeiros e todos os profissionais de saúde à
realização de atividade adicional em horários alargados,
durante a semana e aos fins-de-semana, priorizando as
situações com maior risco clínico e assegurando condições
de segurança para todos.
Mas para além disso, e acima de tudo, é imperativo
aproveitar esta oportunidade para introduzir alterações
estruturais no funcionamento dos hospitais, para
reformar a sua organização interna, para descentralizar
o processo de tomada de decisão, para repartir responsabilidades
entre os vários níveis intermédios de
gestão, para reforçar a participação dos profissionais
de saúde na concepção e implementação de soluções
que respondam às reais necessidades em saúde das
pessoas. É preciso fazer diferente!
Uma das formas de impulsionar este movimento de
mudança é promover a criação de Centros de Responsabilidade
Integrados (CRI), alargando este modelo
organizacional a mais áreas assistenciais e a mais serviços
hospitalares, contribuindo decisivamente para:
• Melhorar o acesso e o grau de cumprimento dos
tempos máximos de resposta garantidos (TMRG);
• Promover a autonomia, o envolvimento e a satisfação
dos profissionais e dos utentes;
• Aumentar a produtividade e a eficiência na utilização
dos recursos;
• Rentabilizar a capacidade instalada no serviço público,
fomentando a gestão partilhada dos recursos dentro
do SNS.
Os CRI são estruturas de gestão intermédia dos hospitais
do SNS 1 e a sua criação inicia-se com a apresentação
do projeto assistencial por parte dos profissionais
interessados, seguida de negociação com o
conselho de administração do hospital, resultando daí
a nomeação da equipa multidisciplinar e do conselho
de gestão do CRI, que é composto por um médico
de reconhecido mérito, que dirige, por um administrador
hospitalar (ou outro profissional com experiência
comprovada de gestão em saúde) e por outro profissional
da equipa, devendo ser um enfermeiro no caso
dos serviços médicos e cirúrgicos.
É, pois, um processo de adesão voluntária, que depende
exclusivamente dos profissionais e dos dirigentes dos
hospitais, onde a liderança, a solidariedade e o compromisso
das equipas são aspetos decisivos para o sucesso,
e onde a gestão por objetivos previamente negociados
é um fator central, que permite a atribuição de incentivos
aos profissionais e que influencia a melhoria contínua
das condições de trabalho das equipas. }
70 71
GH INOVAÇÃO ORGANIZACIONAL
“
QUE É DECISIVO É ASSUMIR
QUE ESTA É UMA FILOSOFIA
DE GESTÃO QUE VALORIZA
O DESEMPENHO DOS
PROFISSIONAIS E QUE É MAIS
EXIGENTE, PARTICIPADA
E ESTIMULANTE DO QUE
OS HABITUAIS PROCESSOS
DE “COMANDO-CONTROLE”
TÍPICOS DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA TRADICIONAL.
”
A atual legislação hospitalar tem a flexibilidade necessária
para permitir a formação destas equipas em várias
áreas, existindo atualmente cerca de 20 CRI já em atividade
ou em fase avançada de constituição.
Todos eles têm o mesmo enquadramento geral e objetivos
assistenciais semelhantes, mas todos são diferentes
entre si, funcionando de acordo com o contexto concreto
onde estão inseridos, com o perfil assistencial ajustado
às especificidades locais e com carteiras de serviços
adequadas às necessidades em saúde identificada e aos
recursos disponíveis.
Os resultados que têm sido alcançados são muito positivos
e encorajadores. Basta ouvir os utentes que foram
tratados nestes CRI, ou as suas famílias, e registar a sua
satisfação com os cuidados que receberam. Basta falar
com os profissionais que integram estas equipas, ou que
as lideram, e constatar o seu entusiasmo, orgulho e dedicação.
Basta analisar os ganhos de produtividade dos
profissionais ou quantificar as poupanças geradas pela
melhoria da eficiência operacional dos serviços, resultantes
da diminuição dos custos de produção, da internalização
de MCDT, de cirurgias e de outros serviços
anteriormente efetuadas no exterior ou da redução da
utilização desnecessária de cuidados que são evitáveis,
entre outros ganhos tangíveis e intangíveis.
Muitos outros projetos para a constituição de CRI começam
a surgir nos vários hospitais do SNS, apresentando
as mais diversas formas e configurações, seguindo
habitualmente um racional de resposta assistencial
que está organizado em função de:
• Especialidades cirúrgicas, tais como cirurgia geral,
oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, urologia,
ou outras;
• Especialidades médicas, como medicina interna,
pneumologia, gastroenterologia, e outras;
• Áreas de diagnóstico e terapêutica, como imagiologia,
medicina nuclear, medicina física e de reabilitação,
diálise, e outras;
• Serviços ou modelos organizativos, como é o caso da
psiquiatria, das equipas dedicadas nos serviços de urgência
e emergência, das unidades de hospitalização domiciliária,
ou outras formas de prestação dos cuidados;
• Patologias ou percursos clínicos, como acontece na
área da obesidade, da oncologia, da doença cardiovascular,
da patologia do sono, entre outras.
Seja qual for a sua área de intervenção específica, o
que é importante é perceber que os CRI se constituem
como uma forma inovadora de trabalho em
equipa multidisciplinar, que potencia as aptidões e as
competências dos profissionais de saúde e que permite
a partilha dos ganhos e benefícios resultantes do
desempenho alcançado pelos serviços, avaliados em
função dos objetivos previamente contratualizados e
dos resultados efetivamente obtidos.
O que é relevante é reconhecer que os CRI são um
modelo organizativo que cria condições para os profissionais
de saúde desenvolverem a sua atividade em dedicação
plena nos hospitais públicos, que alia a vertente
assistencial às componentes de ensino e investigação e
que aposta na criação de valor para todo o SNS.
O que é fundamental é compreender que este movimento
de reorganização interna se insere numa lógica
de gestão moderna dos hospitais do SNS, que valoriza
o planeamento sustentado e que prioriza os investimentos
e a alocação dos recursos (humanos, financeiros
e materiais) em função das necessidades em saúde
da população, que promove a gestão por objetivo de
forma transversal a todo o sistema e que reconhece a
missão de cada serviço e de cada hospital no contexto
regional e nacional do SNS.
O que é decisivo é assumir que esta é uma filosofia de
gestão que valoriza o desempenho dos profissionais e
que é mais exigente, participada e estimulante do que
os habituais processos de “comando-controle” típicos
da administração pública tradicional.
Que é uma abordagem organizacional que permite
alinhar os instrumentos de gestão estratégica e operacional
dos hospitais do SNS, nomeadamente os planos
de atividades e orçamento trienais e os contratos-programa
anuais, com os seus instrumentos de governação
interna, ou seja, com os regulamentos internos, os
planos de ação trienais, os contratos-programa anuais
e todos os outros documentos de gestão que suportam
o funcionamento dos CRI.
Que é uma forma de trabalhar que coloca, verdadeiramente,
as pessoas no centro das prioridades do sistema
de saúde, e que se for incentivada a nível nacional e
regional, e bem implementada a nível local, contribuirá
para que os hospitais do SNS continuem a responder
adequadamente à Covid-19 e, principalmente, para que
estejam cada vez mais preparados para enfrentar os
restantes desafios do presente e do futuro. Ã
1. Conforme Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro, que estabelece os
princípios e regras aplicáveis às unidades de saúde que integram o SNS com
a natureza de entidade pública empresarial, ou que estão integradas no setor
público administrativo, e nos termos da Portaria n.º 330/2017, de 31 de outubro,
alterada pela Portaria n.º 71/2018, de 8 de março, que define o modelo
de regulamento interno dos serviços ou unidades funcionais (…) que se organizem
em CRI.
72 73
GH RESPOSTA DE EMERGÊNCIA
CONTRIBUTOS DA
COORDENAÇÃO NACIONAL
DE EMERGÊNCIA DA CRUZ
VERMELHA NA RESPOSTA
À PANDEMIA
Gonçalo Órfão
Coordenador Nacional de Emergência
da Cruz Vermelha Portuguesa
Cruz Vermelha Portuguesa
A Cruz Vermelha é uma instituição
humanitária não governamental, de carácter
voluntário e de interesse público,
que desenvolve a sua atividade devidamente
apoiada pelo Estado, no respeito pelo Direito
Internacional Humanitário, pelos Estatutos do Movimento
Internacional e pela Constituição da Federação
Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Baseado nos seus sete Princípios Humanidade,
Imparcialidade, Neutralidade, Independência, Voluntariado,
Unidade, Universalidade, tem como missão
prestar assistência humanitária e social, em especial aos
mais vulneráveis, prevenindo e reparando o sofrimento
e contribuindo para a defesa da vida, da saúde e da
dignidade humana.
No âmbito do desempenho da sua missão, a Cruz
Vermelha Portuguesa (CVP) possui uma unidade de
Coordenação Nacional de Emergência, responsável pela
gestão e coordenação da emergência a nível nacional,
nomeadamente no apoio e socorro a situações de acidente
e desastres naturais ou provocados pelo homem,
dispondo para o efeito de uma estrutura sedia-
da em Coimbra, no centro de Portugal, com capacidade
de atuação nacional. Assegura a representação
nos circuitos oficiais dos Agentes de Proteção Civil
e Emergência a nível nacional, nomeadamente Autoridade
Nacional de Emergência e Proteção Civil
(ANEPC), Instituto Nacional de Emergência Médica
(INEM), Guarda Nacional Republicana (GNR), Forças
Armadas. Também, a nível internacional, integra o Civil
Protection Working Group do Gabinete da União Europeia
da Cruz Vermelha e o Emergency Health Technical
Working Group da Federação Internacional da
Cruz Vermelha (IFRC). No âmbito das suas funções
diárias, garante o funcionamento ininterrupto 24 horas
por dia/365 dias por ano, e em permanente ligação
nacional aos principais Agentes de Proteção Civil, de
uma Sala de Operações Nacional e gere três Plataformas
Logísticas de Emergência, com armazenamento
dos equipamentos e materiais essenciais para respostas
de apoio à sobrevivência da população em situações
de desastre, bem como respostas diferenciadas
da Cruz Vermelha Portuguesa.
Historicamente, os princípios da CVP estão associados
a uma cultura e tradição intrinsecamente ligados a de-
sastres e catástrofes, com capacidade de atuação e
mobilização internacional. A integração e formação de
base de todos os voluntários e profissionais, bem como
a sua ideologia de ação baseia-se nestes princípios,
com uma aquisição de conhecimento e capacidade
técnica no âmbito da resposta de catástrofe, na consciência
(ou desejo) de não existir necessidade do seu
uso um dia.
No entanto, atualmente é notória a importância do
Movimento Internacional da Cruz Vermelha, com uma
atuação permanente e assídua em diversas catástrofes
naturais a nível internacional. De facto, tem-se verificado
nos últimos anos uma maior consciência perante
o desastre com o desenvolvimento de mecanismos
e respostas centralizadas e fortalecidas com especial
incidência nos países desenvolvidos, como é exemplo
do Mecanismo Europeu de Proteção Civil. A perceção
de risco tem reforçado a prevenção, mas também o
apoio direto a países em desenvolvimento.
Aprendizagem
A Cruz Vermelha Portuguesa teve, no passado, desafios
internacionais que motivaram um planeamento
urgente de resposta. A Operação Embondeiro, de
apoio a Moçambique após o Ciclone IDAI em 2019
demonstrou essa realidade. Em menos de uma semana
a CVP teve de preparar, planear e ativar uma
resposta de emergência baseada em Voluntários, que
consistiu na montagem de um Hospital de Campanha
de apoio ao Centro de Saúde de Macurungo, na Cidade
da Beira.
Com a última emergência internacional há mais de
10 anos, todo o espírito, cultura e conhecimento de
emergência foram colocados em teste. Obstante os
desafios, o resultado foi um sucesso traduzindo-se
num case-study de intervenção internacional, face à
inexistência de equipa previamente formada.
3W: When? Where? What?
A preparação e planeamento de emergência baseiase
numa previsão não objetiva, pelo que por diversas
vezes “preparamos o pior para fazer o melhor”.
O Incêndio de Pedrogão marcou a atuação de emergência
que mudou paradigmas em Portugal. A análise e
aprendizagens, após incêndio, iniciaram-se para a possível
repetição do episódio. Quando? Passado 6 meses,
o Incêndio de 15 de outubro, repetiu o estado de desastre
impensável de (voltar) a acontecer. }
74 75
GH RESPOSTA DE EMERGÊNCIA
Pandemia Covid-19
A Covid-19 mudou severamente o paradigma da resposta
de emergência da Cruz Vermelha Portuguesa.
Importa recordar que os esforços e desenvolvimento
de equipas no âmbito da reposta humanitária focavamse
em respostas direcionadas para exterior, nomeadamente
países dos PALOPs.
2020 seria o ano de aposta da CVP na formação e fortalecimento
de uma equipa de resposta internacional,
com o planeamento de um curso em Public Health in
Emergencies, ministrado pela IFRC em Portugal, e integração
de elemento portugueses em equipas de resposta
internacional (ERU - Emergency Response Unit) de
outras Sociedades Nacionais do Movimento Internacional
da Cruz Vermelha.
A pandemia do SARS-CoV-2 desafiou o paradigma da
ajuda humanitária internacional. Da atuação transfronteiriça,
o desafio era, agora, interno.
A CVP iniciou em janeiro a preparação para uma potencial
epidemia de SARS-CoV-2. A linhas de atuação,
com orçamento limitado (porque ninguém acredita na
factualidade das emergências em território nacional)
basearam-se em:
• Formação dos operacionais em procedimento de
segurança pessoal e na atuação com doentes contaminados,
para proteção dos operacionais, com enfoque,
também, na área da saúde mental;
• Criação de equipas dedicadas à emergência pré-hospitalar
para o transporte de doentes com Covid-19, de
forma a potenciar a atuação na fase de contenção;
• Alargamento e formação específica da rede de transporte
de cadáveres;
• Criação de kits de EPI (Equipamento de Proteção
Individual) para as equipas no terreno, de forma a otimizar
a resposta da rede;
• Educação e formação os elementos da CVP sobre
a doença e problemas inerentes de saúde pública e
social, com o objetivo de potenciar respostas paralelas
e inovadoras em diversas áreas.
Numa estreita atuação com o INEM, foi criada uma
rede complementar de 15 ambulâncias dedicadas em
exclusivo ao transporte de doentes no âmbito do novo
coronavírus; foram formados 700 operacionais nos
procedimentos de segurança pessoal e das vítimas,
com o intuito de assegurar uma cobertura de norte
a sul do país, com posterior transição para formação
e-learning e foram produzidos 1708 kits EPI para a rede
da Cruz Vermelha.
Com o desenrolar do panorama verificou-se que a realidade
ultrapassou o imaginável.
A Epidemia transformou-se numa Pandemia.
A corrida de 100 metros transformou-se numa maratona.
Um mercado completamente disruptivo colocou em
prova a resiliência na manutenção da segurança e capacidade
de atuação das equipas da Cruz Vermelha.
Teve-se, assim, de desconstruir a resposta e inovar.
Inovação
“Inovação”, citando Tedros Adhanom, Presidente da
Organização Mundial de Saúde, quando declarou o estado
de Pandemia, traduz a verdadeira realidade dos
factos e necessidade dinâmica de constante adaptação.
A Cruz Vermelha Portuguesa iniciou o combate à Covid-19
atuando nas suas áreas de excelência. A formação
de elementos, a criação de ambulâncias dedicadas
ou, mesmo, o reforço no apoio social são áreas que a
CVP trabalha diariamente, portanto, com experiência
e conhecimento.
O reforço e a necessidade de otimizar a resposta, prolongada
no tempo, teve em conta dois aspetos fulcrais:
1. Segurança e saúde (mental) das equipas da Cruz
Vermelha
As equipas da Cruz Vermelha assumem-se em diversas
ocasiões como equipas de resposta de primeira linha.
Verifica-se quer no socorro pré-hospitalar quer no
apoio social, onde o contato direto com o indivíduo e
população é inevitável, e com um seguimento posterior
na cadeia de socorro e apoio e interligação a outros técnicos.
Associado a este facto é importante realçar que
muitas das equipas da CVP, principalmente em momentos
de catástrofe, são constituídas por Voluntários. Torna-se,
assim, fundamental controlar e monitorizar esta
exposição promovendo e gerindo o estado de saúde
dos Voluntários e a operacionalidade da Cruz Vermelha.
Neste âmbito, a formação competente e adaptada à nova
realidade (nomeadamente no uso de EPI), mas também a
promoção da saúde mental e física são fulcrais.
Nesta resposta, além da formação desenvolvida já referida,
foram criadas linhas diretas de apoio interno a
profissionais e voluntários, salvaguardadas por médicos
e psicólogos, e com o objetivo de esclarecer, monitorizar
e acompanhar qualquer situação de risco. Paralelamente,
e diretamente com os responsáveis de cada estrutura
local da Cruz Vermelha, foi criado um sistema
de vigilância de elementos infetados com SARS-CoV-2
e realizado aconselhamento interno na gestão de situações
ou contactos de risco.
De notar que a Cruz Vermelha Portuguesa no âmbito
da operação de ambulâncias dedicadas ao Covid-19
não teve qualquer socorrista infetado através de um
trabalho afincado de procedimentos instituídos, distribuição
de EPI e formação.
2. Teste diagnóstico Covid-19
As recomendações da OMS foram objetivas desde
o início da Epidemia: existe necessidade de testagem
para identificação da doença e permitir a devida contenção/mitigação.
A realidade portuguesa, nomeadamente a capacidade
laboratorial e de colheitas de amostras, não apresentava
capacidade para as solicitações de testes verificadas.
O tempo de espera para a realização de teste de diagnóstico
correspondia a uma resposta demorada, com
consequências a nível da gestão e controle da doença.
Neste âmbito, e baseado na experiência e conhecimentos
da CVP na área da saúde na rede de emergência
e da Escola Superior de Saúde de Lisboa da Cruz
Vermelha Portuguesa, iniciou-se um processo para realização
de teste de diagnóstico da Covid-19.
Numa estreita parceria com o Instituto de Medicina
Molecular de Lisboa, que garantia a capacidade laboratorial,
formaram-se equipas para a realização de zaragatoas
e constituiu-se um Posto de Testes fixo no
Hospital da Cruz Vermelha. Numa verdadeira sinergia
da rede, envolvendo elementos das Estruturas Operacionais
de Emergência, mas também professores e
alunos da Escola Superior de Saúde da CVP, criou-se
em tempo record um posto drive-thru para realização
de testes da Covid-19, com funcionamento em tendas
durante 12h por dia, durante 2 meses. No total foram
efetuados 3260 testes com a criação de uma Via Verde
para agentes de Proteção Civil e Forças de Segurança,
com a possibilidade de realizar testes minimizando
o impacto da doença nestes serviços.
Paralelamente, e face à necessidade imperiosa e nacional
de realizar testes em lares e unidades de acolhimento
de idosos, foram criadas equipas móveis para
permitir a realização de testes de forma ágil e permitir
um eficaz rastreio.
A Cruz Vermelha Portuguesa formou até ao presente
13 equipas nacionais para realização de testes de diagnóstico
da Covid-19 e realizou mais de 20.000 testes!
Futuro
A incógnita perante o futuro é uma realidade face à necessidade
premente de mais conhecimento sobre uma
(nova) doença que transbordou em Pandemia. No entanto,
há uma necessidade de atuação imediata e contínua
enquadrada tecnicamente, que dê resposta às necessidades
atuais.
A Cruz Vermelha Portuguesa adaptou-se e inovou nas
respostas à Pandemia de SARS-CoV-2. Criou novos mecanismos,
reformulou a rede de voluntários, apostou e
desempenhou um papel relevante através dos mecenas
e donativos que recebeu, em estreita articulação e suporte
às entidades públicas e Estado Português. Estamos
presentes para ajudar a construir um futuro melhor. Ã
“
DE NOTAR QUE A CRUZ VERMELHA
PORTUGUESA NO ÂMBITO
DA OPERAÇÃO DE AMBULÂNCIAS
DEDICADAS AO COVID-19
NÃO TEVE QUALQUER SOCORRISTA
INFETADO ATRAVÉS DE UM
TRABALHO AFINCADO
DE PROCEDIMENTOS ESCRITOS,
DISTRIBUIÇÃO DE EPI E FORMAÇÃO.
”
76 77
GH espaço ensp
ESTIMATIVA DE CUSTOS
DOS INTERNAMENTOS
POTENCIALMENTE EVITÁVEIS
EM PORTUGAL
João Rocha
Centro de Investigação em Saúde Pública (CISP), Escola Nacional
de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA)
Ana Patricia Marques
Centro de Investigação em Saúde Pública (CISP), Escola Nacional
de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA)
Rui Santana
Centro de Investigação em Saúde Pública (CISP), Escola Nacional
de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA)
Enquadramento e dimensão do problema
Para algumas condições de saúde, o internamento
hospitalar poderia ser potencialmente
evitado por intervenção oportuna,
adequada e efetiva disponíveis em ambulatório. Estas condições
são comumente definidas na literatura internacional
como Ambulatory Case Sensitive Conditions (ACSC).
Os internamentos por ACSC têm sido amplamente utilizadas
em investigações e políticas de saúde para avaliar a
acessibilidade, a qualidade e o desempenho dos cuidados
de saúde primários e cuidados de ambulatório, uma vez
Bruno Moita
Centro de Investigação em Saúde Pública (CISP), Escola Nacional
de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA),
Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E Faro
* Trata-se de um resumo do artigo publicado na revista BMC Health Services Research, disponível em:
https://bmchealthservres.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12913-020-5071-4
que uma intervenção em ambulatório oportuna e eficaz
pode potencialmente evitar o internamento.
A ocorrência de um internamento potencialmente evitável
indica que se perdeu uma oportunidade de intervir
com efetividade no desenvolvimento de uma condição
de saúde do utente. Estes episódios, além de trazerem
consequências negativas para os utentes e sociedade,
podem ter um impacto económico considerável ao sistema
de saúde, tendo em conta o custo dos cuidados
hospitalares em comparação com os cuidados prestados
em ambulatório.
O impacto financeiro dos internamentos potencialmente
evitáveis ao sistema de saúde foi estimado em estudos
anteriores no Brasil 1 , França 2 , Irlanda 3 e Reino Unido
4 , utilizando-se os preços de internamentos definidos
pelo sistema de saúde de cada país. Dois estudos estimaram
os custos diretos de internamentos evitáveis
em Portugal, encontrando custos totais estimados de
€200 milhões 5 e €250 milhões 6 . Ambos os estudos revelaram
que cerca de 10% de todos os internamentos
em Portugal eram potencialmente evitáveis, indicando
que há espaço para melhorias em Portugal na prestação
de cuidados de saúde de ambulatório.
Nenhum dos estudos que estimaram os custos associados
aos internamentos potencialmente evitáveis incluiu
nas suas análises a estimativa de custos de perda
de produtividade, perda de salários e morte prematura.
A análise do impacto económico na sociedade
fornece valiosas informações para o planeamento dos
serviços de saúde e alocação de recursos, indicando
o potencial de economia de custos. Desta maneira, o
objetivo do estudo consistiu em estimar os custos diretos
e de perda de produtividade dos internamentos
evitáveis em Portugal.
Materiais e métodos
Fonte de dados e definição de amostra
Para este estudo foi utilizada a base de dados de morbilidade
hospitalar relativa a hospitais públicos do continente
para o ano de 2015. Estes dados foram fornecidos pela
Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), e
o uso dos dados foi aprovado pela ACSS e pela Escola
Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa
(ENSP-NOVA). Em cada episódio, variáveis do internamento
utilizadas foram idade, sexo, diagnóstico principal
e secundário (de acordo com o código ICD-9-CM),
código de GDH e duração do internamento.
A definição de quais internamentos são potencialmente
evitáveis foi determinada de acordo com a metodologia
Agency of Healthcare Research and Quality (AHRQ), que
utiliza os códigos de diagnóstico principal e secundário.
As condições incluídas nesta lista são pneumonia bacteriana,
infeção do trato urinário, desidratação, hipertensão,
insuficiência cardíaca congestiva, doença pulmonar obstrutiva
crónica (DPOC) ou asma, complicações a curto e
a longo prazo de diabetes, diabetes não controlado e am-
-putação dos membros inferiores em diabéticos. Mais }
78 79
GH espaço ensp
Internamentos totais e evitáveis, Portugal continental, 2015
Número total de internamentos 1.000.670
Número de internamentos evitáveis 99.417
Internamentos evitáveis no total de internamentos 9,93%
Taxa de internamentos evitáveis (por 100.000 habitantes com 18 anos ou mais) 1.253,88
Internamentos por condições evitáveis
Pneumonia bacteriana 35.523 (35,54%)
Insuficiéncia cardíaca 22.753 (22,76%)
Infeção do trato urinário 17.704 (17,71%)
DPOC ou asma 10.735 (10,75%)
Diabetes (complicações a curto e a longo prazo, não controlado e amputação 7.787 (8,32%)
dos membros inferiores)
Desidratação 3.019 (3,02%)
Hipertensão 1.896 (1,90%)
Internamentos evitáveis por grupo etário
18-44 anos 4.455 (4,49%)
45-64 anos 13.573 (13,66%)
65 + anos 81.389 (81,87%)
Idade media dos utentes com internamentos evitáveis (desvio-padrão) 75,84 (14,54%)
Duração média (em dias) do internamento evitável (desvio-padrão) 10,08 (11,22%)
Internamento evitável com morte do utente (% todos os internamentos) 13.453 (3,53%)
Tabela 1
detalhes sobre os códigos de ICD usados na metodologia
utilizada podem ser encontradas no sítio web da AHRQ 7 .
Estimativa de custos
Para a estimação dos custos diretos associados aos
internamentos evitáveis, os preços oficiais dos internamentos
foram utilizados como proxy dos custos. Estes
valores encontram-se na tabela nacional dos GDH, publicada
no Diário da República, 1.ª série - n.º 153 - 7 de
agosto de 2015. Estes preços correspondem apenas
ao internamento e, portanto, não incluem outras despesas
antes ou após o episódio.
Os custos de perda de produtividade foram estimados
nas dimensões de absenteísmo e morte prematura,
de acordo com a abordagem económica do capital
humano. Nesta metodologia, o valor de produtividade
perdida para a sociedade é estimado por valores
do mercado de trabalho. O uso desta metodologia é
comum na análise económica de custos de doenças
para estimar valores por perda de produtividade. Para
todos os internamentos definidos como evitáveis, o
custo estimado de absenteísmo foi estimado como o
valor dos dias de produtividade perdidos, calculado como
o tempo de permanência no hospital multiplicado
pelo salário diário (o salário médio mensal no concelho
de residência do utente, dividido por 30 dias), levando
em consideração se a pessoa tinha idade ativa (entre
18 e 64 anos), a probabilidade de o utente fazer parte
da força de trabalho (com base na participação na força
de trabalho) e estar empregado (com base na taxa
de desemprego).
Para os internamentos evitáveis nos quais o utente acabou
por falecer no hospital, o custo estimado da perda
de produtividade por morte prematura foi calculado de
acordo com os anos de vida produtiva potencialmente
perdidos (diferença entre a idade do utente e a idade
de reforma) e multiplicados pela média do salário local
anual, também de acordo com a participação na força
de trabalho e a taxa de desemprego. Os dados de
salário mensal, desemprego e participação na força de
trabalho foram específicos de acordo com o género do
utente; estes dados foram obtidos ao nível de concelho
no sítio web do Instituto Nacional de Estatística.
Resultados
Foram registados aproximadamente um milhão de internamentos
em Portugal continental em 2015. Destes,
99.417 foram categorizados como potencialmente evitáveis,
representando 10% do total. Este valor representa
uma taxa bruta de 1.254 internamentos evitáveis por
100 mil adultos. A maior parte destes internamentos
ocorreram em utentes com idade mais avançada (mais
Custos dos internamentos evitáveis, Portugal continental, 2015
Total Custos diretos Perda de produtividade
Custos em € 250.064.177 210.026.755 40.037.422
Absenteísmo Morte prematura
2.631.311 37.406.111
% do custo total 83,99% 16,01%
Custo per capita* 31,53 26,49 6,83
Custo por internamento evitável* 2.515,31 2.112,58 2.220,85
* Para custos totais e diretos, o denominador foi a população com mais de 18 anos. Para perda de produtividade, o denominador foi a população entre
18 e 64 anos.
Tabela 2
Distribuição dos custos dos internamentos potencialmente evitáveis por condições, Portugal continental,
2015
Condição Custo total Custo direto Perda
de produtividade
de 80% para pessoas com 65 anos ou mais); a idade
média foi de 76 anos (desvio-padrão 14,5) e o tempo
médio de permanência foi de 10 dias (desvio-padrão =
11,2). Um pouco mais da metade destes internamentos
foram para utentes do sexo feminino (52%). Cerca
de 13,5% dos internamentos evitáveis terminaram
com o falecimento do utente no hospital. A causa mais
frequente de internamento foi pneumonia bacteriana
(35,5%), seguida de insuficiência cardíaca (22,8%) e infeções
do trato urinário (17,7%) (Tabela 1).
O custo total estimado para os internamentos evitáveis
foi de €250 milhões. Cerca de 84% deste valor
é proveniente do custo direto do internamento. Os
custos de perda de produtividade foram estimados em
cerca de €40 milhões. O custo per capita dos internamentos
evitáveis foi de €31,53 (Tabela 2).
A Tabela 3 detalha o custo dos internamentos evitáveis
por condições. A pneumonia bacteriana representou
uma parcela significativa dos custos gerais (€106
Taxa
de mortalidade
Pneumonia bacteriana 106.306.862 80.546.077 25.760.785 21,20%
Insuficiéncia cardíaca 59.334.934 54.247.983 5.086.951 12,12%
Infeção do trato urinário 29.616.268 26.741.082 2.875.186 8,32%
DPOC ou asma 23.063.150 20.406.881 2.656.308 6,70%
Diabetes (complicações 22.720.103 20.565.792 2.154.272 6,05%
a curto e a longo prazo,
não controlado e amputação
dos membros inferiores)
Desidratação 5.913.323 4.565.029 1.348.294 14,08%
Hipertensão 3.109.537 2.953.911 155.626 5,54%
Tabela 3
milhões; 41,9% do custo total). Pela alta taxa de mortalidade
de utentes internados com pneumonia bacteriana,
esta condição apresentou um alto custo por perda
de produtividade (€25 milhões; 64,3% do custo por
perda de produtividade). Insuficiência cardíaca congestiva
e infeção do trato urinário também foram fontes
importantes de custos associados a internamentos potencialmente
evitáveis.
Discussão
O custo de cada internamento potencialmente evitável
em Portugal foi estimado em €2.515, o que mostra que
recursos substanciais poderiam ser poupados. Em 2015
o orçamento total dos hospitais E.P.E em Portugal foi
de €4,5 mil milhões; o custo total dos internamentos
evitáveis representam 6% deste valor. Este custo total
estimado é equivalente a 57% do deficit orçamentário
dos hospitais E.P.E no final de 2015 (€451 milhões). Os
resultados mostram que os internamentos evitáveis representam
importante fonte de pressão para o siste- }
80 81
GH espaço ensp
“
ESTE É O PRIMEIRO ESTUDO
A ESTIMAR CUSTOS DE PERDA
DE PRODUTIVIDADE ASSOCIADOS
AOS INTERNAMENTOS
POTENCIALMENTE EVITÁVEIS.
ENTRETANTO EXISTEM ESCOLHAS
METODOLÓGICAS QUE DEVEM
SER DESCRITAS ACERCA DESTES
RESULTADOS. OS CURSOS DIRETOS
FORAM ESTIMADOS DE ACORDO
COM OS PREÇOS, QUE NÃO
REFLETEM OS CUSTOS REAIS.
para o utente retornar ao trabalho após a alta nem a
possibilidade de o utente não retornar ao mercado de
trabalho por ser declarado permanentemente incapaz
de trabalhar. Estas possibilidades não foram incluídas
na análise pela indisponibilidade de dados. A idade de
reforma foi fixada em 65 anos por este ser um valor
comum em estudos de custos da doença. Existe a possibilidade
do indivíduo se reformar antes desta idade,
ou continuar a trabalhar: dados de 2014 mostram que
20% das pessoas entre 65 e 69 anos continuavam no
mercado de trabalho em Portugal 8 .Estas escolhas metodológicas
levaram a uma subestimação dos dados.
Este estudo mostra que, além da considerável pressão
financeira direta que os internamentos impõem ao sistema
de saúde, eles também representam um impacto
económico considerável para a sociedade. Numa
perspetiva meramente hospitalar, estes episódios não
deverão ser encarados como fonte de receita pela
produção realizada, mas como fonte global de custos
em que todos incorremos. O contributo para a sua redução
através do fortalecimento dos cuidados de saúde
primários e de ambulatório são importantes passos
para alcançar a redução no número de internamentos
potencialmente evitáveis. Ã
”
ma de saúde e para os indivíduos. Esta situação merece
atenção principalmente levando-se em consideração
que estes eventos poderiam ser potencialmente evitados
por cuidados prestados em ambulatório.
Do nosso conhecimento, este é o primeiro estudo a
estimar custos de perda de produtividade associados
aos internamentos potencialmente evitáveis. Entretanto
existem escolhas metodológicas que devem ser
descritas acerca destes resultados. Os cursos diretos
foram estimados de acordo com os preços, que não
refletem os custos reais de um episódio. Os preços
oficiais são úteis para gestores em saúde, pois representam
os valores reembolsados; além disso apresentam
os mesmos valores para pacientes atendidos em
hospitais diferentes, mas com a mesma condição.
Ao estimar os custos perdidos de produtividade, a
abordagem do capital humano mediu a perda potencial
de produtividade, em vez das perdas reais. Esta metodologia
não leva em consideração o tempo necessário
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internações hospitalares por condições sensíveis à atenção primária no Brasil,
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82
GH serviços de saúde
MODELOS DE ACESSO
AO SISTEMA DE SAÚDE
EM SITUAÇÕES DE URGÊNCIA
Carlos Alberto Silva
Centro Hospitalar Universitário de São João
A
consagração da saúde como um direito
implica que o acesso universal
ao sistema de saúde seja indissociável
da realização dos valores da
justiça distributiva e da equidade no
estado de saúde das populações.
Sendo dimensão essencial para o desempenho do sistema
de saúde o respetivo acesso é um fenómeno complexo
e multifacetado, constituído por dimensões formais
e informais, que incluem fatores culturais, económicos,
sociais e organizacionais, que são condicionantes
da perceção das necessidades e da utilização dos serviços
de saúde.
A complexidade do fenómeno do acesso ao sistema de
saúde coloca um conjunto de dificuldades cuja clarificação
é essencial à respetiva conceptualização. Dificuldades
de índole etimológica, uma vez que conceitos como
os de acessibilidade, disponibilidade ou acesso são usados,
indiferentemente, para referir o mesmo fenómeno.
A título de exemplo, o Discursive Dictionnaire of Health
Care (1976) refere que, na prática, acesso, disponibilidade
e aceitabilidade são muito difíceis de distinguir entre
si. Dificuldades relacionadas com a ambiguidade em
considerar o acesso como uma propriedade dos recursos
de saúde, da população de potenciais utilizadores
ou, ainda, como o resultado de uma combinação de ambos
ou fator mediador entre a capacidade de produzir
serviços e o seu real consumo.
Dificuldades relacionadas com o âmbito a que se refere
o fenómeno do acesso ao sistema de saúde. Muitas
vezes usa-se uma conceção de âmbito restrito em que
se assume a existência de certa necessidade de cuidados
de saúde e a vontade de obtê-los, centrando-se
a análise nos fatores que facilitam ou dificultam a sua
procura e obtenção; outras vezes usa-se uma conceção
de âmbito intermédio na qual, para além dos processos
de procura e obtenção de cuidados de saúde,
se inclui, também, a continuidade de cuidados.
Finalmente usa-se uma conceção de acesso de âmbito
alargado que inclui as causas das necessidades de obtenção
de cuidados de saúde, englobando fenómenos
tais como as crenças acerca da saúde e a confiança no
sistema de prestação de cuidados de saúde ou a tolerância
relativamente à dor e à incapacidade.
Outra dificuldade, ainda, resulta do facto de entre a capacidade
de produzir serviços de saúde e o seu uso existirem
barreiras, obstáculos ou fenómenos intermédios,
que fazem com que a disponibilidade efetiva dos recursos
de saúde seja a disponibilidade corrigida pelos obstáculos
subjacentes ao processo de procura e obtenção
de cuidados de saúde. O acesso ao sistema de saúde é,
em consequência, resultado da relação funcional entre
o conjunto de obstáculos e a capacidade dos utilizadores
em ultrapassá-los traduzida pelo conceito de poder
de utilização que designa a habilidade de uma pessoa
ou um grupo obter um bem ou serviço.
Segundo Frank et al. (1993), os obstáculos ao acesso ao
sistema de saúde resultam de fatores, tais como a localização
das unidades de saúde, a organização dos serviços
de saúde ou o seu custo. Numa formulação mais
abrangente, Levesque et al. (2013) classificam-nos como
obstáculos ecológicos, organizacionais e financeiros.
Se o acesso ao sistema de saúde em função das necessidades
dos cidadãos constitui um dos principais fatores
de iniquidades em saúde e obstáculo à realização do direito
à saúde, o modo de acesso não programado, em
situações de doença aguda, pelo grau de complexidade
e imprevisibilidade que o caracterizam, é um dos maiores
desafios que os sistemas de saúde enfrentam.
O estudo HealthCare for London, Quality Indicators to Support
Commissioning of Unscheduled Care (2009) define
o acesso não programado ao sistema de saúde como
sendo qualquer contacto não planeado, feito por alguém
procurando ajuda, cuidados de saúde ou aconselhamento
e requerendo dos serviços prestadores disponibilidade
permanente para os atender.
Na literatura anglo-saxónica distingue-se o acesso não
programado em situação de urgência (aquele em que
acontece uma doença ou lesão inesperada, necessitando
de rápida atenção médica, mas que não representa
risco imediato para a vida ou saúde da pessoa) do
acesso não programado em situação de emergência
(aquele em que se verifica risco imediato para a vida ou
saúde da pessoa). Na prática, o acesso não programado
ao sistema de saúde, refere-se aos casos de doença aguda,
muitas vezes súbita e inesperada, que requerem intervenção
médica, podendo levar à morte ou à incapacidade,
tendo o tempo como fator crítico.
Em resultado da associação de fatores, tais como as necessidades
e perceções individuais de saúde com fato-
res socioeconómicos, tais como o envelhecimento da
população e o apoio social precário, com fatores de ordem
organizacional, tais como a localização e a disponibilidade
das unidades prestadoras de cuidados de saúde
e a cada vez maior gestão da doença em regime de ambulatório,
o número de acessos ao sistema de saúde em
situações de doença aguda tem aumentado significativamente,
alterando o modo de acesso ao sistema de saúde:
o acesso não programado tem substituído, muitas
vezes, o modo de acesso programado com admissões
eletivas enquadradas numa estrutura de saúde existente
e com os procedimentos de priorização estabelecidos.
O acesso ao sistema de prestação de cuidados de saúde
tem sido, cada vez mais, não previsto ou planeado, podendo
ocorrer a qualquer momento e requerer a intervenção
dos serviços de saúde vinte e quatro horas por
dia e sete dias por semana.
Segundo Baier et al. (2019), a taxa de crescimento anual
de acessos não programados ao sistema de saúde no
Reino Unido é de 8,5%, na Bélgica de 5%, na Itália de 5%
a 6% e na Irlanda de 3%.
O relatório Emergency Care Services: Trends, Drivers and
Interventions to Manage the Demand (OECD, 2015) refere
que, entre 2001 e 2011, o crescimento médio anual
de acessos, em situação de urgência, nos países da OCDE
foi de 2,4%, tendo passado de 29,3 acessos por cada 100
pessoas, em 2001, para 30,8 acessos por cada 100 pessoas,
em 2011. Segundo o mesmo relatório, Portugal foi o
país que apresentou o número de acessos mais elevado:
mais de 70 acessos por cada 100 pessoas, em 2011. }
84 85
GH serviços de saúde
“
NA DEFINIÇÃO DO MODO
DE ACESSO AO SISTEMA DE SAÚDE,
EM SITUAÇÕES DE URGÊNCIA,
OS PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA
TOMARAM OPÇÕES ESTRATÉGICAS
QUE VÃO PARA ALÉM
DA CATEGORIA EM QUE
OS RESPETIVOS SISTEMAS
DE SAÚDE SE INCLUEM.
”
Frequentemente apontado como importante fator para
o aumento do número de acessos não programados é
o designado acesso não urgente ou inadequado. Embora
com diferentes critérios de definição, de acordo com o
relatório da OCDE citado, situações de acesso inadequado
têm sido reportadas, com preocupação, por países
como Austrália (32,4% em 2013), Bélgica (56% em
2011), Canadá (25% em 2011), França (19,4% em
2014), Itália (19,6% em 2003), Portugal (31,3% em
2001) e Reino Unido (11,7% em 2013).
Nestas condições, o acesso ao sistema de saúde, em
situações de urgência, não só pelas consequências económicas
negativas que pode gerar, mas também pelo
impacto na organização dos serviços de saúde, na qualidade
dos cuidados prestados e na satisfação dos utilizadores,
pode ser um determinante negativo da saúde das
populações, constituindo-se num verdadeiro problema
de saúde pública associando a resultados de saúde negativos
com elevadas taxas de morbilidade e de mortalidade
e ao peso e à configuração global da doença.
A definição de um modelo de acesso ao sistema de saúde,
em situações de urgência, afigura-se imprescindível e
inadiável. Segundo Hirshon et al. (2013), um modelo de
acesso ao sistema de saúde, em situações de urgência,
deve incluir as ações de promoção, prevenção, tratamento
e reabilitação ou paliativas, tanto as orientadas
para os indivíduos como para as populações. Segundo
Calvelo (2013), visando satisfazer necessidades de saúde
com caráter imprevisível, a necessitar de atendimento
rápido e sustentado num conjunto complexo de recursos,
a definição de um modelo de acesso ao sistema de
saúde, em situação de urgência, deverá ter em conta a
resposta integrada de distintas estruturas do sistema de
saúde, de modo que a respetiva eficácia dependerá das
ligações fortes e oportunas que entre si possam estabelecer.
Para Jéssica et al. (2013) a melhoria da capacidade
de resposta dos sistemas de saúde ao fenómeno do
aumento do acesso não programado passa pela otimização
do doente com a sua adequação aos diferentes
níveis de complexidade do sistema.
Modelos de acesso, em situações de urgência,
aos sistemas de saúde consolidados de países da
União Europeia
Pela Declaração 2006/C 146/01, o Conselho Europeu
define os valores comuns - o acesso, a equidade, a solidariedade
e a universalidade - aos sistemas de saúde dos
países da União Europeia, como orientação para o modo
como se configuram para responder às necessidades
das populações a cujo serviço se encontram.
São diversas as abordagens para traduzir esses valores
na prática. Dependendo do modo como articulam as
dimensões de financiamento, prestação de cuidados e
de regulação, esses sistemas de saúde podem incluir-se
na classificação tripartida clássica: os de tipo universalista,
os mistos baseados na coexistência da medicina liberal
e seguros de doença e os de livre iniciativa baseados na
medicina liberal individualizada e organizada.
Na definição do modo de acesso ao sistema de saúde,
em situações de urgência, os países da União Europeia
tomaram opções estratégicas que vão para além da categoria
em que os respetivos sistemas de saúde se incluem.
Segundo Baier et al. (2019), a análise e comparação
sistemática dos vários modelos de acesso ao sistema
de saúde, em situação de urgência, pode ser feito
em função de quatro dimensões: o modo de acesso, a
localização dos serviços, o tipo de cuidados prestados
e os recursos humanos envolvidos.
Em função destas quatro dimensões é possível agrupar
o modo de acesso, em situações de urgência, aos sistemas
de saúde consolidados dos países da União Europeia
em três modelos diferentes:
Modelos que privilegiam a estruturação dos cuidados
de saúde primários e pré-hospitalares
Enquadram-se neste modelo o modo de acesso, em
situações de urgência, aos sistemas de saúde de países
como a Dinamarca e Holanda.
Tratando-se de sistemas de saúde com filosofias de base
diferentes (especialmente no que respeita à universalidade
no acesso e à compressividade de cuidados), o
respetivo acesso, em situações de urgência, tem um conjunto
de características comuns que permite inclui-los
num mesmo modelo:
• Clínicos gerais nos CSP, clínicos gerais móveis e clínicos
gerais fora de horas;
• Clínicos gerais pagos por capitação;
• Serviços de emergência médica com boa capacidade
resolutiva;
• Centrais de atendimento telefónico e aconselhamento
online operados por clínicos gerais;
• Clínicas de prestação de cuidados de saúde urgentes
localizadas junto aos hospitais;
• Referenciação ou triagem de acesso aconselhada ou
obrigatória;
• Copagamentos aconselhados ou obrigatórios;
• Triagem de priorização.
O European Observatory on Health Systems and Policy Monitor
(2015) refere que, no ano de 2014, os cuidados de
saúde primários e pré-hospitalares holandeses solucionaram
cerca 93% dos casos de acesso em situações de
urgência e apenas 7% dos casos foram referenciados
para os cuidados de saúde de especialidade. Segundo
Baier et al., no ano de 2019, a Dinamarca registou, em
média, 156 acessos às urgências hospitalares por cada
1000 habitantes, a Alemanha 205, a Inglaterra 264 e a
França 279.
Modelos de acesso com estruturação moderada dos
cuidados de saúde primários e pré-hospitalares e incremento
da gestão interna dos SU hospitalares
Cabem neste modelo o modo de acesso aos sistemas
de saúde, em situações de urgência, de países como
Portugal, Espanha, Reino Unido, Suécia e Itália, que têm
as seguintes características comuns:
• Liberdade de escolha (apenas a Suécia admite a possibilidade
de redirecionar utilizadores das unidades especializadas
para os CSP);
• Clínicos gerais nos CSP (em períodos limitados do dia);
• Centrais de atendimento telefónico, aconselhamento
online e serviços de emergência médica 24 h por dia;
• Referenciação ou triagem de acesso aconselhada;
• Copagamentos limitados ou inexistentes;
• Triagem de priorização;
• Gestão dos SU hospitalares:
ü Unidades de observação nos SU hospitalares;
ü Divisão dos SU hospitalares em áreas por níveis de }
86 87
GH serviços de saúde
“
O ACESSO AO SISTEMA
DE SAÚDE NÃO SE REALIZA,
APENAS, PELA DISPONIBILIZAÇÃO
DE RECURSOS NEM PELA
IMPOSIÇÃO DE REGRAS.
”
complexidade dos cuidados a prestar;
ü Adoção de estratégias de gestão interna (“Ver e Tratar”;
Filas Rápidas; Gestão de Camas; Separação dos doentes
mais graves dos menos graves, etc.).
Modelos de acesso com barreiras administrativas e
financeiras
Enquadram-se nestes modelos o modo de acesso, em
situações de urgência, aos sistemas de saúde de países
como a Alemanha e Finlândia:
• Utilizadores afetos a clínicos gerais (que referenciam,
no mesmo âmbito, para os cuidados de saúde de especialidade)
em função do seguro social ou da divisão
administrativa regional;
• Ausência de liberdade de escolha;
• Triagem de acesso obrigatória;
• Possibilidade de reorientação de utilizadores aos CSP.
Conclusão:
A complexidade dos conceitos de saúde e de autoavaliação
do estado de saúde leva a que o sistema de saúde
e o subsistema de prestação de cuidados de saúde a eles
se adaptem pela flexibilidade e conjugação de sinergias.
O acesso ao sistema de saúde não se realiza, apenas,
pela disponibilização de recursos nem pela imposição
de regras. O acesso adequado realiza-se, especialmente,
pela satisfação das necessidades (as percebidas ou não)
dos utilizadores, independentemente da estrutura pela
qual estabeleçam o contacto com o sistema de saúde.
Nesta perspetiva sugerimos um conjunto de características
e serviços que, na combinação apropriada, poderão
proporcionar acesso adequado ao sistema de saúde,
em situações de urgência:
• Liberdade de escolha;
• Serviços de atendimento telefónico para aconselhamento
e referenciação. Segundo a OMS (2008), a função
de referenciação para as unidades de prestação de cuidados
de saúde adequadas faz dos serviços de atendimento
telefónico um elemento importante para a prestação eficiente
de cuidados de saúde;
• Uso de outras tecnologias da informação e comunicação,
tais como a internet ou a telemedicina para informação
e aconselhamento, com acesso incentivado;
• Organizações de clínicos gerais apoiados por equipas
multidisciplinares com elevadas taxas de resolução (Pines
et al., 2011), exercendo funções nas unidades de cuidados
primários e nas comunidades, oferecendo serviços de
saúde, de modo contínuo e centrados nos utentes, com
especial foco na prevenção e na gestão de situações crónicas.
A evidência empírica mostra que estas unidades
são fator de redução do acesso ao sistema de saúde em
situações de urgência;
• Serviços de atendimento fora de horas abertos durante
a semana e aos fins de semana. Muitos estudos
demonstram uma relação negativa existente entre este
tipo de serviços e o número de acessos ao sistema de
saúde em situações de urgência;
• Serviços de atendimento domiciliário, prestados por
médicos clínicos gerais e enfermeiros, especialmente dirigidos
a idosos, doentes crónicos e outros com dificuldades
de transporte;
• Unidades de atendimento urgente anexas aos hospitais,
com cuidados prestados por clínicos gerais, visando
referenciar e resolver situações de doença menos graves.
Estas estruturas de prestação de cuidados pré-hospitalares
constam da literatura internacional (Sjonell,
1986; Piel et al., 2000; Lowe et al., 2005) como reduzindo
significativamente a procura nas unidades especializadas
de prestação de cuidados de saúde. Ã
Baier, N.Geissler, A. Bech,M. Bernestein, D. Cowling, T. Jackson, T. Manen,
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9276-12-18.
OECD, 2015 Emergency Care Services: Trends, Drivers, and Interventions to
Manage Demand, OECD Working Paper nº 83.
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GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
7. A EDIÇÃO DO PRÉMIO
VAI DISTINGUIR
PROJETOS DESENVOLVIDOS
NO ÂMBITO DA RESPOSTA
À PANDEMIA
A
crise sanitária originada pela Covid-19 provocou mudanças ímpares na organização
da nossa sociedade, incluindo as nossas rotinas pessoais e familiares. A consciência
cívica dos cidadãos e as medidas de distanciamento social impostas pelo governo
foram e são essenciais para controlar a propagação do vírus e a sobrecarga do
Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Mais do que nunca, é evidente a importância do SNS e a urgência de termos um sistema de saúde
forte, sustentável e acessível a todos os cidadãos. Não podemos continuar a ignorar a necessidade de
melhor gestão, mais financiamento e valorização dos profissionais de saúde. Em paralelo devem ser
asseguradas sinergias em estreita colaboração entre todos os setores fundamentais e da própria sociedade
civil por forma a assegurar respostas de proximidade em saúde e o bem-estar das populações.
De norte a sul do país, em plena pandemia, multiplicaram-se os projetos desenvolvidos pela academia,
pelas autarquias e juntas de freguesia, organizações não governamentais, associações de doentes, instituições
de solidariedade social… Projetos e boas práticas em saúde que não vieram substituir, mas
sim complementar a resposta do SNS, oferecendo novas soluções para a melhoria da qualidade dos
serviços prestados aos utentes. Muitos destes projetos têm mesmo o potencial de serem replicados
e, sem dúvida alguma, merecem ser mantidos no futuro.
Porque a resposta à pandemia começa na razão, na participação e na solidariedade, o combate temse
feito em várias frentes. Estes esforços coletivos têm sido essenciais e, por essa razão, a Associação
Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) promove, em parceria com a biofarmacêutica
AbbVie, a 7ª. edição do Prémio Healthcare Excellence, que este ano pretende distinguir projetos
nacionais desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia da Covid-19.
O Prémio Healthcare Excellence - Edição Especial Covid-19 surge assim como forma de agradecimento
e reconhecimento a todas as equipas que têm dado o seu melhor contra a pandemia, dando
provas de uma enorme capacidade de resiliência e compromisso com todos. Pela primeira vez, a iniciativa
esteve aberta não apenas a candidaturas de instituições prestadoras de cuidados de saúde, mas
a todas as organizações do país, fossem elas públicas, sociais ou privadas, tendo as mesmas decorrido
até 31 de julho.
Todas as candidaturas serão agora avaliadas por um júri independente a quem cabe a seleção dos
melhores projetos que passam à fase final. O júri da 7.ª edição da iniciativa é presidido por Margarida
França, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Baixo Vouga, e integra
também Ricardo Mestre, vogal da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS); Ricardo Mexia,
presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP) e Dulce Salzedas,
jornalista da Sociedade Independente de Comunicação (SIC).
Nas palavras de Margarida França “A necessidade aguça o engenho, diz o ditado. De facto, ao longo
dos últimos meses vimos nascer múltiplos projetos de elevado valor, de norte a sul do país, que têm
sido fundamentais na luta contra a Covid-19. Projetos que merecem ser reconhecidos, replicados e
que demonstram o profissionalismo e espírito combativo generalizado que se tem sentido durante
a pandemia. Recebemos muitas candidaturas nesta edição especial do Healthcare Excellence, uma
iniciativa que todos os anos tem sido uma montra do que de melhor se faz na Saúde”.
Os projetos finalistas serão apresentados e defendidos pelos autores em sessão pública híbrida (presencial
+ online) a realizar no dia 21 de outubro, no auditório do Hospital Júlio de Matos - Parque da
Saúde de Lisboa. No decurso desta sessão será eleito o vencedor do Prémio Healthcare Excellence
- Edição especial Covid-19, sendo-lhe atribuído um prémio no valor de 5.000 euros.
Pode saber mais sobre a iniciativa e consultar o regulamento do Prémio Healthcare Excellence no
website da APAH em www.apah.pt. Ã
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GH Iniciativa APAH | webinar participação do cidadão na era covid 19
PARTICIPAÇÃO DO CIDADÃO
NA ERA DA COVID 19
Em tempo de pandemia, e adequada ao
novo contexto em que a troca de experiências
e partilha de boas práticas insurgem
a caminhos de mudança, a Associação
Portuguesa de Administradores
Hospitalares (APAH), com o apoio da Sanofi, promoveu
um Ciclo de Conferências online dedicado à “Participação
do cidadão na era Covid-19” no Sistema de Saúde.
A iniciativa, composta por 3 sessões, teve como objetivo
discutir o impacto da Covid-19, através da auscultação
dos utentes e seus representantes, visando a obtenção
de contributos tendo ainda em vista promover uma
coordenação de esforços, tendentes a assegurar soluções
de continuidade da resposta de cuidados de saúde.
A primeira sessão a 18 de maio dedicada ao tema “A
resposta do sistema de saúde”, teve a moderação de
Alexandre Lourenço, Presidente da APAH, e contou
com a participação de Isabel Saraiva, Presidente da
Associação Respira, José Manuel Boavida, Presidente
da Associação Portuguesa dos Diabéticos de Portugal
(APDP) e Alexandre Guedes da Silva, Presidente da
Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM).
Na ocasião Isabel Saraiva recordou as dificuldades iniciais
da pandemia, em que não havia “uma informação
sistematizada sobre o que se está a passar nos hospitais.
A surpresa, o desconhecimento e o medo eram
ingredientes que ajudariam a que corresse muito mal,
mas não correu.”
Em termos gerais, considerou que o tratamento dos doentes
com Covid-19 correu bem e que o acompanhamento
dos serviços de saúde, permitiu conforto aos doentes,
evitando que os mesmos se deslocassem, nomeadamente
os doentes crónicos. Com a colaboração dos
hospitais e farmácias hospitalares, foi possível que os medicamentos
passassem a ser levantados nas farmácias comunitárias,
evidenciando ainda que este cenário de disponibilização
e nova rotina dos serviços farmacêuticos
“é desejável que passe a fazer parte do quotidiano de
quem tem de usar medicamentos hospitalares.”
Também a renovação das receitas e as consultas não
presenciais com o médico ou centro de saúde foram
importantes, expressando a importância de colocar o
doente no centro do sistema. E finalizou reforçando
que “o serviço nacional de saúde foi resiliente, respondeu
ao que foi pedido.”
Já José Manuel Boavida, destacou que a APDP adaptou
o seu plano de contingência para a Covid-19 com
base no plano de contingência da gripe A e destacou
a receção “absolutamente fantástica” às teleconsultas.
Também a linha gratuita de apoio às pessoas com pé
diabético foi “um sucesso”, com uma média de 100
chamadas por dia, por vezes, 300 chamadas por dia.
Os contactos presenciais foram deixados apenas para
emergências e foram implementadas entregas ao
domicílio de medicamentos em todo o país em 24h
ou 48h. Na ocasião reforçou ainda que “a partir do
momento em que se é infetado com o SARS-CoV-2,
a diabetes descompensa e, na grande maioria das vezes,
é preciso parar os medicamentos e iniciar insulina.
A prevenção da infeção deve ser a prioridade assim
como o acompanhamento clínico de proximidade nos
casos em que ela exista”.
Alexandre Guedes da Silva da SPEM ressalvou que “só
conseguimos sair de uma situação difícil como esta se
estivermos todos a remar para o mesmo lado” e “é
impensável que os doentes crónicos não façam parte
de uma solução que pretende ser a melhor possível
nesta fase da pandemia.” A SPEM, nas suas várias delegações,
conseguiu dar uma volta de 180 graus à sua
abordagem analógica do cuidar, passando todos os serviços
a funcionar de forma digital, à exceção do serviço
de apoio domiciliário, permitindo assim assegurar uma
normalidade no dia a dia das pessoas com esclerose
múltipla mantendo-as informadas e confiantes.
A 1 de junho teve lugar a segunda sessão da iniciativa
com o tema “O regresso à normalidade” com moderação
de Bárbara Carvalho, da direção da APAH, e
que contou com o contributo da Associação Portuguesa
da Doença Inflamatória do Intestino (APDI), do
Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) e da Liga
Portuguesa Contra o Cancro (LPCC).
Na ocasião Ana Sampaio, Presidente da APDI defendeu
que “é preciso um plano de recuperação na área
da saúde.” Neste tempo de pandemia, foi preciso encontrar
soluções para processos que vinham a ser adiados
e melhorar alguns procedimentos. E destacou a
importância da dispensa de proximidade da terapêutica
medicamentosa que permitiu um conforto e segurança
adicionais aos doentes. Também as teleconsultas, muito
necessitadas pelos doentes crónicos, foram disponibilizadas
pelos hospitais, assim como a disponibilização
de endereços de e-mails para remarcação de consultas
e exames que permitiu uma melhoria da comunicação
dos utentes com as instituições. Em suma, “começou
a ser identificada a necessidade de o doente ter um
papel central na área da saúde.”
Na perspetiva de Vítor Rodrigues da LPCC, “houve um
mês de susto, um outro de reorganização e ainda um
seguinte de tentativa de retoma.” Segundo o especialista,
as crises são péssimas, mas são alturas ótimas para
se fazer algum tipo de reorganização, nomeadamente
colocar o cidadão no centro do sistema do binómio
“
HÁ UM MANTO DE SILÊNCIO
SOBRE QUESTÕES RELACIONADAS
COM A PREVENÇÃO, TRATAMENTO,
REABILITAÇÃO. É UMA SITUAÇÃO
INTOLERÁVEL PORQUE AS PESSOAS
COM DOENÇA SÃO OS
DESTINATÁRIOS DO SNS. FAZ FALTA
INFORMAÇÃO PARA A ERA PÓS-
-COVID PARA AS PESSOAS
PODEREM RETOMAR COM
CONFIANÇA E SEGURANÇA
OS TRATAMENTOS QUE PRECISAM
DE DESENVOLVER.
”
Isabel Saraiva
procura e oferta de cuidados de saúde e considera que
“importa recuperar tudo o que se perdeu em termos
de diagnóstico precoce, qualidade de tratamento e de
acompanhamento.” Relativamente aos atestados médicos
de incapacidade multiuso, referiu que os mesmos
já estavam parados antes da pandemia e que não se vê
grande possibilidade de eles recuperarem, o que remete
a que seja um problema grande para os doentes oncológicos.
Para Luís Mendão do GAT, a formalização
da participação do cidadão na área da saúde é essencial
assim como a participação organizada através de associações
de doentes. Na sua perspetiva, as crises devem
ser vistas como oportunidades para que possam
acontecer as reformas há muito tempo adiadas e nessa
ótica a pandemia “trouxe algumas novidades que devem
ser mantidas no período pós-Covid.” Para o ativista
é fundamental assegurar a prevenção e o diagnóstico
precoces para que se evite o agravamento de al- }
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GH Iniciativa APAH | webinar participação do cidadão na era covid 19
“
AS CRISES SÃO PÉSSIMAS MAS SÃO
ALTURAS ÓTIMAS PARA SE FAZER
ALGUM TIPO DE REORGANIZAÇÃO,
NOMEADAMENTE COLOCAR
O CIDADÃO NO CENTRO
DO SISTEMA, NO BINÓMIO
PROCURA E OFERTA DE
CUIDADOS DE SAÚDE.
”
Vítor Rodrigues
gumas situações de doença ativa e se assegure o acesso
atempado aos cuidados de saúde.” Em paralelo deixou
o repto para que os hospitais tenham, “cada vez mais”,
cuidados de ambulatório e que os cuidados estejam
cada vez mais próximos e inseridos na comunidade.
A encerrar a iniciativa ocorreu, no dia 15 de junho, uma
sessão dedicada às “Soluções para o futuro” que contou
com a moderação de Eduardo Castela, Administrador
Hospitalar e Tesoureiro da APAH. Foram convidados
desta edição Joana Camilo, Presidente da ADERMAP,
Miguel Crato, Presidente da Associação Portuguesa de
Hemofilia (APH) e Joaquim Brites, Presidente da Associação
Portuguesa de Neuromusculares (APN).
Para Joana Camilo da ADERMAP, todos continuamos
a ter muito a aprender nesta era pós-Covid e destaca
que a resiliência será uma enorme valia para lidar com
este desafio. Muitos dos resultados até agora atingidos
mostram uma capacidade de adaptação e de resposta
que pode e deve ser continuada a vários níveis, “para
obter ganhos em saúde.” Na sua opinião algumas iniciativas,
como a teleconsulta e apoio de proximidade
ao doente permitiram uma menor descompensação e,
projetos-piloto a decorrer em vários hospitais mostraram
que, mesmo consultas de especialidade, podem
ser realizadas à distância, havendo realmente soluções
já implementadas na era pré-Covid e que podem ser
implementadas num futuro pós-Covid. A especialista
sublinhou que “há um potencial humano que não está
a ser capitalizado no sentido de melhorar os resultados
na própria pessoa e em quem o rodeia.” Defendeu
ainda a necessidade de uma medicina preditiva, preventiva,
personalizada e participada, em que cada pessoa
é fundamental na gestão das suas doenças e deve
ser um parceiro ativo do sistema.
Já para Miguel Crato da APH, “o futuro deve passar por
uma maior partilha da decisão clínica e o meio hospitalar
tem de se adaptar a essa realidade.” O doente deve,
de facto, ser o centro do Serviço Nacional de Saúde
e as associações devem fomentar essa autonomia
e ter um poder efetivo de colaboração e propõe a criação
de comissões sobre patologias específicas, especialmente
as crónicas. A Covid-19 que veio trazer-nos
alguns ensinamentos, como também veio mostrar o
que os doentes esperam das associações que os representam
e que as mesmas precisam mudar, seja o
método de gestão, filosofia, relação com o médico,
com a tutela, com a comunidade, enfim - precisam ouvir
os doentes e adaptar-se para que estes se apercebam
que têm uma posição mais direta e estreita em
relação ao sistema de saúde.
Como contributo, Joaquim Brites da APN destaca três
grandes áreas de debate no futuro próximo: Saúde,
Economia e Setor Social. Na sua perspetiva na área da
saúde, há que reaprender o que se passou nos últimos
meses que “foram um grande desafio para que todos
pudéssemos provar que somos capazes de mudar rapidamente
e nos acomodar a coisas que não imaginaríamos.”
Para o presidente da APN, é necessária a criação
de novas formações de técnicos de saúde ou equiparados,
como, por exemplo, os técnicos de geriatria
nos lares. Além disso, é também essencial “profissionalizar
e dar mais capacitação”, olhar para esta nova realidade
“como uma necessidade dos doentes”, pois as
doenças crónicas são um problema com o qual temos
de conviver. Já os doentes “precisam de ser tratados,
uns em ambiente hospitalar e outros em ambiente domiciliário”,
e, por isso, alertou que é preciso apostar em
serviços de enfermagem domiciliária.
Na área económica há que pensar em modelos de financiamento
mais orientados para o utente. “Há estudos
que demonstram que isso pode representar uma
economia de milhares de milhões no orçamento da
saúde” e reclama-se uma avaliação do desempenho
defendendo que um equilíbrio de gestão tem de passar
pelo envolvimento de todos os stakeholders. Já no
“
A COVID-19 VEIO TRAZER-NOS
ALGUNS ENSINAMENTOS,
VEIO MOSTRAR O QUE O PACIENTE
ESPERA DE NÓS ENQUANTO
ASSOCIAÇÃO DE DOENTES.
”
Miguel Crato
que concerne ao setor social, há um grande caminho a
percorrer, pois precisamos obter o devido reconhecimento
destas instituições que devem andar “de mãos
dadas” com o serviço público e devem ser posicionadas
como veículos promissores e efetivos de prestação
de cuidados. Ã
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GH Iniciativa APAH | APAH Go Digital
APAH LANÇA ACADEMIA
DE FORMAÇÃO
EM FORMATO DIGITAL
A
Associação Portuguesa de Administradores
Hospitalares (APAH) decidiu
reformular o seu Programa de
Formação Contínua “Academia APAH”,
para um novo modelo adaptado à
presente realidade, reconvertendo-o num formato digital,
de acesso universal e gratuito a todos os profissionais
de saúde e restantes interessados em adquirir
competências em matérias de gestão e melhoria da
eficiência em saúde.
A nova Academia Digital APAH tem como objetivo disponibilizar
uma oferta formativa diversificada com Programas/Cursos
em formato e-learning com conteúdos
práticos e inspiradores, que visam o desenvolvimento
e consolidação de competências que promovam a mudança
e a continuidade na resposta do sistema de saúde.
Este novo formato que prima pela atualidade e abrangência
de conteúdos formativos, proporciona a todos
os interessados uma flexibilidade de realização e concretização
dos Programas/Cursos disponíveis de acordo
com a disponibilidade individual, uma aposta num
modelo assíncrono, com todos os Programas e cursos
estruturados em áreas temáticas e suportados na partilha
de casos de estudo e boas práticas.
A Academia Digital APAH mantém o alinhamento para a
realidade nacional com o Diretório de Competências para
os Gestores de Saúde desenvolvido sob os auspícios do
Global Healthcare Management Competency Directory, uma
iniciativa da International Hospital Federation (IHF). O Diretório
contempla os seguintes 5 domínios de competências:
A realização dos e-cursos pressupõe uma inscrição
prévia, através do acesso à plataforma, via website da
APAH, e uma vez inscrito, o formando poderá optar
por frequentar o(s) curso(s) que mais se adequar à sua
área de interesse profissional.
O lançamento oficial da Academia Digital APAH ocorreu
a 22 de julho com o Programa “Business As Unusual”
desenvolvido em parceria com a Nobox e com
o apoio da Gilead Sciences.
O Programa inaugural foi desenhado especificamente
para responder aos desafios atuais de formação, promovendo
processos de transformação com um enfoque
especial na dimensão humana e na criação de novas
lideranças.
Constituído por 3 cursos, cada um com duração aproximada
de 1 hora, independentes mas complementares,
focados nos três processos fundamentais para a
recuperação após o início da pandemia:
1. Mudança, agora e sempre
2. Equipas, da crise ao pós-crise
3. Novos problemas, novos talentos Ã
Subscreva a Academia Digital APAH
Tenha acesso gratuito a Programas de desenvolvimento,
num formato totalmente adaptado ao
seu ritmo. Comece com o programa “Business
as Unusual” e não perca as novidades que traremos
em breve.
www.apah.pt
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INICIATIVAS
A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) promove e apoia as seguintes iniciativas:
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Canal APAH - Gestão em Saúde
Este canal é gerido pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)
com o objetivo de promover conteúdos de excelência na área de gestão de serviços de saúde.
Aqui pode encontrar conferências, cursos e webinars de peritos mundiais.
Saiba mais em www.apah.pt
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