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OIL & GAS<br />
A antevisão do Africa Oil & Power<br />
2021 que terá lugar em maputo<br />
Entrevista<br />
idah Pswarayi-riddihough, a Nova<br />
Directora do BM em Moçambique<br />
Finscope 2019<br />
os avanços (e Recuos) dos serviços<br />
financeiros no País desde 2014<br />
Novo Normal?<br />
em que medida a utilização massiva<br />
da tecnologia ameaça a Democracia<br />
moçambique<br />
De quem é a<br />
terra, afinal?<br />
Constitucionalmente, pertence a todos os moçambicanos,<br />
mas em 45 anos de independência poucas vezes foi possível<br />
promover um sistema que alavanque a iniciativa privada<br />
AGOSTO <strong>2020</strong> • ano 03<br />
n o 28 • 15/08 - 15/09<br />
Versão ePaper
Sumário<br />
6 Observação<br />
Cabo Delgado<br />
A imagem da insegurança que perdura há três anos<br />
devido aos ataques que fizeram milhares de vítimas<br />
8 Radar<br />
Panorama <strong>Economia</strong>, Banca, Finanças,<br />
Infra-estruturas, Investimento, País<br />
65 ócio<br />
66 Escape Uma viagem até à Ilha de Moçambique 68 Gourmet<br />
À descoberta dos sabores do Jacarandá 69 Adega Um brinde<br />
aos novos Bourbons 71 Arte “O Resgate”, o primeiro filme<br />
moçambicano na Netflix 72 Ao volante Conheça o Cadillac<br />
Lyriq, o primeiro carro eléctrico da General Motors<br />
14 oil & gas<br />
Africa Oil & Power<br />
James Chester fala dos objectivos da realização,<br />
em 2021, da reunião de investidores em Maputo<br />
22 nação<br />
O que tem de mudar na política de Terra<br />
22 Reforma Legal Estudiosos apresentam visões<br />
divergentes quanto ao caminho que se deve seguir<br />
30 Exploração da terra Alda Salomão defende a<br />
manutenção da Política de Terras e clarificação da Lei<br />
42<br />
34 Gestão de Conflitos Banco Mundial entende que a<br />
Lei deve reconhecer a existência do mercado da terra<br />
38 A terra lá fora Um overview sobre como é conduzida<br />
a política de terras em alguns países africanos<br />
mercado e FinanÇas<br />
Serviços Financeiros<br />
Carteira móvel foi determinante na expansão do<br />
acesso perante um crescimento modesto da banca<br />
48 eMPRESAS<br />
Pro-lar 3D<br />
Uma iniciativa impulsionada pelo talento na pintura<br />
faz “milagres” na decoração de interiores<br />
50 Megafone<br />
Marketing<br />
O que está a acontecer no mundo das<br />
marcas em Moçambique e lá por fora<br />
52 SOCIEDADE<br />
60<br />
Tecnologia<br />
Uma análise sobre como a adopção massiva das<br />
tecnologias é uma ameaça global à democracia<br />
lÁ fora<br />
Etiópia<br />
Adiamento das eleções gerais alegadamente<br />
por causa do Covid-19 gera crise constitucional<br />
www.economiaemercado.co.mz | Julho <strong>2020</strong><br />
3
Editorial<br />
Política de Terras —<br />
Antecipando os resultados<br />
da auscultação pública<br />
Celso Chambisso •Editor da <strong>Economia</strong> & <strong>Mercado</strong><br />
alei de terras de moçambique é internacionalmente conhecida<br />
por ter sido bem concebida, principalmente pela forma vincada<br />
como procura assegurar a equidade na distribuição e<br />
a posse segura pelas comunidades. Ainda assim, ao longo dos<br />
23 anos de vigência, e apesar das revisões pontuais que foram<br />
tendo lugar no sentido de ajustá-la em nome da promoção<br />
das boas práticas de administração e gestão de terras, a legislação não<br />
foi capaz de evitar conflitos nas relações sociais e de poder aos diferentes<br />
níveis. Conflitos esses, em grande medida, inspirados pela confusão que se<br />
cria em torno da interpretação do poder do Estado sobre a terra.<br />
Por várias ocasiões, durante muitos anos, o tema alimentou diversas pesquisas<br />
e debates de ideias, na sua maioria, divergentes sobre como a administração<br />
da terra deve ser conduzida, não só para evitar disputas como<br />
para maximizar a sua utilidade enquanto recurso mais importante de<br />
que o País dispõe. Hoje, com o lançamento no passado mês de Julho da auscultação<br />
pública para a revisão da Política Nacional de Terras e da respectiva<br />
Lei, o País prepara-se para inaugurar uma nova etapa neste capítulo.<br />
Mas antes mesmo que este processo se efective e traga resultados que inspirem<br />
as transformações que se vão assistir, a E&M antecipou-se e partiu<br />
para uma auscultação que deixará o leitor a par dos problemas e dos possíveis<br />
cenários futuros. A diferença, porém, é que enquanto a auscultação<br />
lançada pelo Presidente Nyusi é mais abrangente, podendo incluir as comunidades,<br />
a realizada pela E&M foi buscar a visão de estudiosos, representantes<br />
de Organizações Não Governamentais, da Sociedade Civil, do sector<br />
privado, bem como a recém-nomeada directora-geral do Banco Mundial<br />
para Moçambique, Idah Pswarayi-Riddihough, que nesta edição dá a<br />
sua primeira entrevista, um mês após assumir o cargo.<br />
Importa destacar, de forma particular, que apesar da comunhão de ideias<br />
quanto aos méritos da legislação vigente, prevalecem, entre os intervenientes,<br />
opiniões muito divergentes no que diz respeito aos aspectos a serem<br />
levados em conta na revisão cujo processo acaba de dar o primeiro<br />
passo. Isto faz prever que os consensos serão difíceis de alcançar. No fundo,<br />
são três questões em torno das quais se vai desenrolar todo este movimento,<br />
nomeadamente: se a Lei é boa, por que mudá-la ao invés de apertar<br />
com a fiscalização do seu cumprimento? O que será feito ao nível do fortalecimento<br />
das instituições para garantir o cumprimento da Lei? O que há<br />
por mudar se o Governo já avisou que a terra não deixará de ser propriedade<br />
do Estado e que continuará a proteger a sua posse pelas assinatura comunidades?<br />
Se a auscultação antecipada não conseguiu trazer consensos, vamos<br />
digitalizada<br />
torcer para que a que o Governo acaba de lançar o faça!<br />
MÊS<br />
AGOSTO<br />
ano<br />
<strong>2020</strong><br />
• Nº 01<br />
• Nº 28<br />
propriedade Executive Mocambique<br />
DIRECTOR Liquatis nienis EXECUTIVO doluptae velit Pedro et Cativelos magnis<br />
pedro.cativelos@media4development.com<br />
enis necatin nam fuga. Henet exceatem<br />
EDITOR seque cus, EXECUTIVO sum nis nam Celso iu Qui Chambisso te nullant<br />
JORNALISTAS adis destiosse iusci Emídio re in Massacola, prae voles Cristina<br />
Freire, sant laborendae Elmano Madaíl, nihilib Rogério uscius Macambize,<br />
sinusam<br />
Rui rehentius Trindade eos resti dolumqui dolorep<br />
PAGINAÇÃO reprem vendipid José que Mundundo ea et eumque non<br />
FOTOGRAFIA nonsent qui officiasi Mariano Silva<br />
REVISÃO lorem ipsum Manuela Executive Rodrigues Mocambique dos Santos<br />
Direcção Liquatis nienis Comercial doluptae velit Ana et Esteves magnis<br />
ana.esteves@media4development.com<br />
enis necatin nam fuga. Henet exceatem<br />
conselho seque cus, sum CONSULTIVO nis nam iu Qui te nullant<br />
Alda adis destiosse Salomão, Andreia iusci in Narigão, prae voles António<br />
Souto; sant laborendae Bernardo Aparício, nihilib uscius Denise sinusam Branco,<br />
Fabrícia rehentius de eos Almeida resti dolumqui Henriques, dolorep Frederico<br />
Silva, reprem Hermano vendipid Juvane, que ea Iacumba et eumque Ali Aiuba, non<br />
João nonsent Gomes, qui officiasi Narciso Matos, Rogério Samo<br />
Gudo, lorem Salim ipsum Cripton Liquatis Valá, nienis Sérgio doluptae Nicolini<br />
ADMINISTRAÇÃO, velit et magnis enis necatin REDACÇÃO nam fuga.<br />
E Henet PUBLICIDADE exceatem seque Media4Development<br />
cus, sum nis nam<br />
Rua iu Qui Ângelo te nullant Azarias adis Chichava destiosse nº iusci 311 A re — in<br />
Sommerschield, prae voles sant laborendae Maputo – Moçambique;<br />
nihilib uscius<br />
marketing@media4development.com<br />
sinusam rehentius eos resti dolumqui<br />
IMPRESSÃO dolorep reprem E ACABAMENTO<br />
vendipid que ea et<br />
Minerva eumque Print non nonsent - Maputo qui - Moçambique<br />
officiasi<br />
Tiragem lorem ipsum 4 500 Liquatis exemplares nienis doluptae<br />
Propriedade velit et magnis enis dO necatin Registo nam fuga.<br />
Executive Henet exceatem Moçambique seque cus, sum nis nam<br />
Exploração iu Qui te nullant Editorial adis destiosse e iusci re in<br />
Comercial prae voles sant em laborendae Moçambique nihilib uscius<br />
Media4Development<br />
sinusam rehentius eos resti dolumqui<br />
Número dolorep reprem de Registo vendipid que ea et<br />
01/GABINFO-DEPC/2018<br />
eumque non nonsent qui officiasi<br />
lorem ipsum Liquatis nienis doluptae<br />
velit et magnis enis necatin nam fuga.<br />
Henet exceatem seque cus, sum nis nam<br />
iu Qui te nullant adis destiosse iusci re in<br />
prae voles sant laborendae nihilib uscius<br />
sinusam rehentius eos resti dolumqui<br />
dolorep reprem vendipid que ea et<br />
eumque non nonsent qui officiasi<br />
4<br />
www.economiaemercado.co.mz | Abril 2019
observação<br />
Cabo Delgado, <strong>2020</strong><br />
Quando e de onde<br />
virá a solução para<br />
Cabo Delgado?<br />
Já lá vão três anos desde o primeiro<br />
dos ataques insurgentes no norte da<br />
província de Cabo Delgado. Até hoje, não<br />
há luz sobre as razões do que aconteceu,<br />
só escuridão. Ao contrário disso, cresce<br />
o número de vítimas estimado em<br />
mais de 1000 mortos e mais de 200<br />
mil deslocados, e não há clareza sobre<br />
a estratégia que o Governo pensa em<br />
pôr em prática para acabar com a<br />
instabilidade. Perante a dificuldade das<br />
Forças de Defesa e Segurança (FDS) em<br />
combater os insurgentes, já se fala na<br />
possibilidade de envolver, no conflito,<br />
o exército sul-africano e a Comunidade<br />
para o Desenvolvimento da África<br />
Austral (SADC).<br />
Do exterior vão chegando sinais a ter em<br />
consideração. Num artigo de opinião<br />
veiculado no “O Jornal Económico” de<br />
Portugal, o Major-General e pesquisador<br />
do Instituto Português de Relações<br />
Internacionais, Carlos Branco, refere que<br />
“independentemente da ajuda externa<br />
que possa vir a ser prestada, é bom que<br />
as autoridades moçambicanas tenham<br />
presente que o problema terá de ser<br />
resolvido por elas, e não por outrem”.<br />
Mas, enquanto a solução efectiva não<br />
chega, a destruição vai tomando conta<br />
de Cabo Delgado. Até quando?<br />
fotografia D.R<br />
6<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> 2019<br />
7
RADAR<br />
PwC discorda das demonstrações<br />
financeiras do Banco de Moçambique<br />
O auditor independente das contas do Banco de Moçambique<br />
discorda das demonstrações financeiras de 2018 publicadas<br />
sexta-feira na Internet, mas o Banco Central considera<br />
que estão correctas. “O Banco de Moçambique não consolidou<br />
as demonstrações financeiras da subsidiária Kuhanha<br />
– Sociedade Gestora do Fundo de Pensões” do Banco de<br />
Moçambique, como mandam as normas internacionais, refere<br />
a firma auditora PwC.<br />
Segundo o relatório de auditoria independente, “as demonstrações<br />
financeiras individuais e consolidadas não<br />
apresentam de forma apropriada a posição financeira do<br />
banco e das subsidiárias”. “A consolidação da Kuhanha originaria<br />
impactos materiais em muitos dos elementos destas<br />
demonstrações financeiras”, aponta, acrescentando<br />
que “não foram determinados os efeitos desta não consolidação”.<br />
No documento, a administração do BM considera<br />
que “não existe um sentido económico relevante que justifique<br />
a consolidação” da Kuhanha.<br />
“No perímetro da consolidação foi considerada apenas a<br />
subsidiária Sociedade Interbancária de Moçambique (SI-<br />
MO), uma vez que o seu objecto de actividade (a rede de<br />
caixas automáticas do País) está enquadrado nas funções<br />
do banco central”, refere. A Kuhanha é classificada “como<br />
uma entidade de interesse público”, “enquadrada num sector<br />
de actividade regulado pelo Instituto de Supervisão de<br />
Seguros de Moçambique e, como tal, sujeita a auditorias independentes<br />
regulares”, acrescenta.<br />
ECONOMIA<br />
Cabo Delgado. Numa reunião<br />
recente com o Presidente<br />
da República, Filipe Nyusi, o<br />
Banco Mundial manifestou-<br />
-se disponível para apoiar<br />
a reconstrução de infra-estruturas<br />
e a criação de empregos<br />
na província de Cabo<br />
Delgado, afectada pela violência<br />
desde 2017. “O Banco<br />
Mundial encorajou e mostrou-se<br />
favorável a apoiar<br />
a promoção da reconstrução<br />
de infra-estruturas e de<br />
actividades de desenvolvimento<br />
económico e criação<br />
de emprego para os jovens”,<br />
refere um comunicado de<br />
imprensa da Presidência<br />
da República, que cita o<br />
presidente do Banco Mundial,<br />
David Malpass.<br />
O responsável falava durante<br />
uma reunião virtual<br />
de trabalho com o Chefe do<br />
Estado moçambicano. Além<br />
de manifestar a disponibilidade<br />
em apoiar aquela província,<br />
o dirigente do Banco<br />
Mundial felicitou o Governo<br />
pelas medidas que tem<br />
tomado para fazer face aos<br />
ataques, defendendo a definição<br />
de “projectos concretos”<br />
na região para garantir<br />
a inclusão dos jovens.<br />
Aviação. Em comunicação à<br />
Nação, recentemente, o Presidente<br />
da República (PR), Filipe<br />
Jacinto Nyusi, falou da<br />
necessidade de se agilizar<br />
a retoma de voos internacionais,<br />
mas sem precisar a<br />
data, embora a 28 de Junho<br />
passado tenha anunciado a<br />
retoma de ligações aéreas<br />
com países seleccionados<br />
(não mencionados) em regime<br />
de reciprocidade.<br />
Na comunicação de Junho,<br />
lembre-se, o Chefe de Estado<br />
justificou a pertinência<br />
da retoma de voos internacionais<br />
para permitir<br />
a deslocação de “especialistas,<br />
gestores e investidores<br />
para dinamizar o turismo e<br />
negócios” no País.<br />
Nos dias subsequentes, o<br />
Instituto de Aviação Civil de<br />
Moçambique (IACM) avançou<br />
à imprensa que, até ao<br />
dia 10 de Julho passado, ter-<br />
-se-ia País ia fazer ligações<br />
aéreas (embora a sua aprovação<br />
devesse ter o aval<br />
do Governo), mas até ao fecho<br />
desta edição não havia<br />
informação nova a este<br />
respeito.<br />
Receitas do Estado. O Estado<br />
moçambicano arrecadou<br />
receitas de pouco mais de<br />
110 mil milhões de meticais<br />
no primeiro semestre do<br />
presente ano, um aumento<br />
de 5,4% em relação ao período<br />
homólogo, refere o balanço<br />
do Governo. O resumo<br />
do balanço, analisado recentemente<br />
pelo Conselho<br />
de Ministros, assinala que,<br />
de Janeiro a Junho, a despesa<br />
total do Estado cresceu<br />
2%. A inflação média situou-se<br />
em 2,81% no primeiro<br />
trimestre deste ano contra<br />
3,83% de igual período<br />
do ano passado e o Estado<br />
constituiu reservas internacionais<br />
líquidas capazes<br />
de cobrir seis meses de<br />
importação de bens e serviços<br />
face aos 5,8 meses inicialmente<br />
projectados. De<br />
um modo geral, os indicadores<br />
de desempenho estiveram<br />
melhores que no primeiro<br />
semestre do ano passado,<br />
não obstante os efeitos<br />
negativos da pandemia<br />
do novo Coronavírus.<br />
Inflação. Depois de Maio e<br />
Junho, os preços de diferentes<br />
produtos e serviços continuaram<br />
a baixar em Julho<br />
último. Dados recolhidos pelo<br />
Instituto Nacional de Estatística<br />
(INE), nas cidades<br />
de Maputo, Beira e Nampula,<br />
ao longo do mês passado,<br />
concluíram que o País registou,<br />
face ao mês anterior,<br />
uma desaceleração da inflação<br />
na ordem de 0,20%.<br />
“A divisão de alimentação<br />
e bebidas não alcoólicas<br />
foi a de maior impacto,<br />
ao contribuir no total<br />
da variação mensal com<br />
8<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
cerca de 0,22 pontos percentuais<br />
(pp) negativos”, refere<br />
o comunicado.<br />
em 2018. Em termos de vendas<br />
por produto, as exportações<br />
agrícolas situaram-<br />
-se nos 427,6 milhões de dólares,<br />
mais do dobro que em<br />
2018 (cerca de 203,4 milhões<br />
de dólares), indica o INE.<br />
EXTRACTIVAS<br />
Pescas. Mais de 3 500 toneladas<br />
de pescado diverso<br />
foram capturadas no primeiro<br />
semestre do ano em<br />
curso nas águas marítimas<br />
e interiores da província<br />
de Maputo, representando<br />
uma produção avaliada em<br />
314 milhões de meticais. Entretanto,<br />
o Conselho Executivo<br />
Provincial manifesta<br />
preocupação em relação ao<br />
fraco nível de licenciamento<br />
dos pescadores, segundo<br />
afirmou o governador Júlio<br />
Parruque, na cerimónia de<br />
lançamento da campanha<br />
de produção pesqueira.<br />
O governante indicou que<br />
a proliferação de pescadores<br />
artesanais, que actuam<br />
de forma ilegal, lesa o Estado<br />
e atrasa o desenvolvimento<br />
do País e da província,<br />
em particular. Salientou<br />
que um dos benefícios<br />
do licenciamento é o direito<br />
de uso e aproveitamento<br />
do recurso pesqueiro e<br />
de acesso ao financiamento<br />
para o apetrechamento das<br />
embarcações.<br />
Exportações. O Instituto Nacional<br />
de Estatística (INE) indica<br />
que Moçambique exportou<br />
mais do dobro de<br />
produtos agrícolas no ano<br />
passado, ao atingir cerca de<br />
427,6 milhões de dólares.<br />
O volume das exportações<br />
moçambicanas foi no valor<br />
total de 4 668,9 milhões de<br />
dólares em 2019, equivalentes<br />
a uma queda de 6,9%, face<br />
aos cerca de cinco mil milhões<br />
de dólares registados<br />
Gás natural. O financiamento<br />
em cerca de 15,8 mil milhões<br />
de dólares norte-americanos<br />
ao projecto de gás<br />
natural liquefeito da área<br />
1 (GNL) em Moçambique assegura<br />
o futuro do país como<br />
fornecedor de energia<br />
globalmente significativo,<br />
de acordo com a Economist<br />
Intelligence Unit (EIU),<br />
a propósito da divulgação,<br />
pelo Banco Africano de Desenvolvimento<br />
(BAD), de um<br />
comunicado a confirmar<br />
que foi assinado um financiamento<br />
naquele montante<br />
para o projecto de GNL da<br />
Área 1, com um consórcio<br />
de 20 bancos e instituições<br />
financeiras. O projecto é liderado<br />
pela Total, principal<br />
petrolífera francesa, que<br />
segue em frente apesar dos<br />
ventos negativos que surgem<br />
no horizonte, designadamente<br />
a “fraca procura<br />
global de GNL, a crescente<br />
insurgência na província<br />
de Cabo Delgado, no Norte,<br />
o surto do novo Coronavírus<br />
na Área 1 e a crise da dívida<br />
de longo prazo do País”,<br />
lê-se no documento.<br />
Financiamento. O Absa vai<br />
apoiar, com 300 milhões de dólares,<br />
o projecto de Gás Natural<br />
Liquefeito (GNL), na Bacia<br />
do Rovuma, em Cabo Delgado.<br />
O projecto, implementado<br />
pela gigante francesa Total,<br />
vai explorar cerca de 65 triliões<br />
de pés cúbicos de reservas<br />
de gás em Moçambique,<br />
num investimento avaliado<br />
em 24 mil milhões de dólares.<br />
O projecto vai apresentar<br />
oportunidades para os fornecedores<br />
nacionais.<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
OPINIÃO<br />
Ruralidade Versus Urbanidade: Dois Pólos<br />
Antagónicos ou Complementares? (I)<br />
Salim Cripton Valá • PCA da Bolsa de Valores de Moçambique<br />
profundas e rápidas mudanças estão a ocorrer<br />
no mundo, nos países e dentro dos países.<br />
A partir da segunda metade da década de 1990,<br />
os estudos a respeito da questão rural-urbana<br />
destacaram-se especialmente na Sociologia,<br />
<strong>Economia</strong> e Geografia, para compreender melhor<br />
as novas características do campo, as relações entre<br />
o campo e a cidade, a intensificação da pluriactividade, o<br />
aumento de actividades não agrícolas em áreas rurais, a<br />
mecanização crescente da actividade agro-pecuária, o dinamismo<br />
do agro-negócio, as cidades como pólos de crescimento<br />
regional, os movimentos socioterritoriais, entre<br />
outras temáticas. A tendência global de crescente industrialização,<br />
modernização e urbanização não faz perder<br />
de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações<br />
de fome, pobreza, falta de acesso aos serviços básicos, desigualdades<br />
sociais e reduzidas oportunidades económicas e<br />
de empregos, e que a problemática da segurança alimentar<br />
e nutricional está na “agenda do dia”.<br />
É muito provável que o mundo em 2050 seja mais rico, mais<br />
saudável, mais interconectado, mais produtivo e inovador,<br />
com melhor educação, menos desigual entre ricos e pobres<br />
e entre homens e mulheres, mais solidário, mais sustentável,<br />
com mais estabilidade e com mais oportunidades para<br />
milhares de milhões de pessoas. Mas não tenhamos ilusões:<br />
o mundo não será a “Comunidade Imaginada” (pedindo emprestada<br />
a expressão de Benedict Anderson, 1911) global<br />
idílica e harmónica, desprovida de tensões, disrupções, contradições<br />
e de velhas e novas conflitualidades.<br />
O mundo está a assistir a uma mudança em grande escala<br />
e em distintos domínios, que ocorre a uma velocidade impressionante<br />
e nunca antes vista. A tecnologia expande-se<br />
incrivelmente depressa, a economia global está a pender<br />
para o lado da Ásia, a demografia está a sofrer alterações<br />
de grande amplitude, as mudanças climáticas são uma problemática<br />
omnipresente nos vários quadrantes do mundo,<br />
o desafio energético está visível e foi relativamente contido<br />
com o advento da COVID-19 e novas crises económicas e<br />
financeiras estão à espreita e ameaçam derramar os seus<br />
efeitos nos países, empresas e famílias. Os espaços, rurais<br />
e urbanos vão ressentir-se certamente das crises globais,<br />
nacionais e dentro dos países.<br />
Por volta de 2050, o mundo será mais urbano, será consideravelmente<br />
mais velho (a idade média aumentará de 29<br />
para 38 anos) e será mais africano (cerca de metade dos<br />
2,3 milhares de milhões de pessoas que ainda estão para<br />
nascer serão habitantes de África). Mudanças sociais disruptivas<br />
surgirão como consequência do rápido desenvolvimento<br />
dos países emergentes, reformas vão tornar<br />
os Estados mais eficazes e transparentes, e a ciência vai<br />
continuar a expandir incessantemente os seu horizontes,<br />
em decorrência de uma economia global baseada no conhecimento<br />
e assente nas novas tecnologias de informação<br />
e comunicação.<br />
Temos pela frente enormes desafios como lidar com as alterações<br />
climáticas e as crises epidemiológicas, controlar<br />
conflitos por recursos escassos como a água, alimentar os<br />
9 mil milhões de pessoas que existirão em 2050 e gerir a<br />
multiplicidade de novas ameaças à nossa segurança e estabilidade.<br />
O mundo vai testemunhar, como afiança Nassim<br />
Taleb (2007), a passagem de bandos sucessivos de “Cisnes<br />
Negros”, sobretudo pela natureza aleatória, contexto de incertezas<br />
e marcada por desenvolvimentos imprevisíveis.<br />
As áreas rurais e a agricultura vão ter de estar preparadas<br />
para alimentar uma população em rápido crescimento<br />
e o agro-negócio vai assumir-se como uma actividade que<br />
gera riqueza e prosperidade.<br />
Nos países ainda pobres, registam-se melhorias significativas<br />
na gestão macroeconómica, na implantação de<br />
infra-estruturas, na diversificação das estratégias comerciais<br />
e na provisão de alguns serviços essenciais.<br />
Persistem, porém, nos países e dentro dos países, desafios<br />
relacionados com a erradicação da fome, elevada taxa<br />
de pobreza e desnutrição crónica, baixo índice de desenvolvimento<br />
humano e de competitividade económica, elevado<br />
peso da economia informal, deficiente ambiente de<br />
A tendência global de crescente industrialização, modernização e urbanização, não faz perder<br />
de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações de falta de acesso aos serviços básicos<br />
10<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Países pobres estão a registar melhorias significativas na implantação de infra-estruturas, mas persistem desafios relacionados com a fraca competitividade económica<br />
negócios, elevada taxa de desemprego, fardo pesado do endividamento<br />
e ainda significativas desigualdades sociais,<br />
espaciais e de género (BAD, 2018; Lopes, 2019; Valá, 2019).<br />
Novas doenças vão surgindo, as demandas do sector produtivo<br />
nem sempre se ajustam ao perfil de saída dos graduados,<br />
surgem novas profissões e novas modalidades de<br />
trabalho, a mendicidade e a pobreza urbana têm-se mostrado<br />
mais duras e ásperas, o acesso à água potável e à<br />
energia para todos é ainda um desafio, como o é a disponibilidade<br />
de habitação condigna e mais empregos, particularmente<br />
para os jovens. Os assuntos antes aflorados,<br />
embora tenham manifestações, dimensões e consequências<br />
distintas em cada espaço, estão presentes nas áreas<br />
rurais e nas áreas urbanas.<br />
Este artigo procura explorar a dicotomia “rural-urbano”,<br />
a dialéctica existente entre os dois espaços e as suas possibilidades<br />
de desenvolvimento, tendo em conta que não é<br />
possível compreender as relações “campo-cidade” separadamente.<br />
Ele argumenta que o rural e o urbano correspondem<br />
a representações sociais sujeitas a reelaborações<br />
e ressemantizações que vão variar conforme o universo<br />
simbólico a que se refere, e que a ruralidade se caracteriza<br />
por ser um conceito cuja natureza é territorial e não<br />
sectorial, como o é igualmente a noção do urbano. Assim,<br />
o campo não é definido apenas pela ligação com a terra, a<br />
natureza e a agricultura, assim como a cultura material<br />
da cidade não está exclusivamente vinculada à indústria<br />
e serviços. Compreender melhor essas problemáticas e<br />
endereçar políticas públicas compreensivas, focalizadas e<br />
sustentáveis vai ser necessário e urgente, sobretudo porque<br />
há uma agenda da globalização a ter em conta, e porque<br />
aqueles que tomam as grandes decisões vivem em cidades.<br />
1. Pode-se entender o rural como sinónimo de vulnerabilidade<br />
e pobreza?<br />
Conceptualmente, o espaço rural é habitado por pequenas<br />
comunidades humanas, com valores mútuos e história comum,<br />
que giram ainda em torno da fidelidade e da pertença<br />
a um meio e a um território, em que se reencontra uma<br />
dinâmica distinta e práticas sociais, culturais e económicas<br />
fundadas sobre a proximidade, a convivialidade, a ajuda e<br />
a cooperação, associado ao território, às relações e à coesão<br />
social. Porém, esta definição sofre ajustes constantes,<br />
em razão das mudanças e das diversificações do rural, em<br />
que as actividades socioeconómicas se alteram, as paisagens<br />
se transformam, a gestão dos territórios muda, bem<br />
como a distribuição do povoamento e as relações sociais e<br />
de vizinhança. A ruralidade é um modo de vida ligado intimamente<br />
ao campo e às práticas e hábitos rurais, ou seja,<br />
dedicação principalmente, às actividades socioprodutivas<br />
relacionadas com o trabalho da família na terra e, assim,<br />
garantir a sua reprodução biológica e social (Veiga, 2000;<br />
Graziano da Silva, 1999 e Abramovay, 2003).<br />
É fundamental superar a concepção negativista e a visão<br />
estigmatizada acerca do espaço rural e da agricultura<br />
como sinónimos de atraso, do arcaico e do subdesenvolvimento.<br />
Não se pode deixar de reconhecer que é a própria<br />
administração que gera essa perspectiva preconceituosa,<br />
ao denominar o rural como o espaço que não é urbano,<br />
sendo definido a partir das suas carências e não das suas<br />
próprias características. Os espaços rurais possuem múltiplas<br />
valências, entre elas o seu elevado potencial económico,<br />
o património cultural e natural, as amenidades rurais,<br />
ou seja, o ar puro, as belas paisagens, o contacto com os<br />
animais e as plantas, que permitem atrair investimentos<br />
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11
OPINIÃO<br />
da indústria de lazer. Isso tem permitido deslocar a base<br />
da economia rural da exportação de produtos primários e<br />
manufacturados para a oferta, também, de serviços e importação<br />
de pessoas, dinheiro público e renda de origem<br />
urbana. O desenvolvimento do capitalismo e a industrialização<br />
da agricultura podem desencadear a urbanização<br />
do campo, pela proliferação de actividades não agrícolas<br />
no campo, como o turismo, comércio e prestação de serviços,<br />
transportes, construção, serviços financeiros, entre outros,<br />
bem como a paulatina ocupação do campo pelos “neo-<br />
-rurais”, servindo como residência de fim-de-semana para<br />
os amantes da vida bucólica.<br />
Nos anos 1950, a teoria económica predominante sustentava<br />
que os pequenos produtores era atrasados, sem espírito<br />
empreendedor, e que por consequência deveriam ser<br />
incentivados a mudarem-se para as áreas urbanas, a fim<br />
de suprirem o sector industrial de mão-de-obra.<br />
As terras assim ocupadas pelos migrantes deveriam ser<br />
organizadas em grandes propriedades mecanizadas e<br />
administradas por gerentes como empresas industriais<br />
modernas.<br />
A História demonstrou que essa mecanização era inapropriada<br />
quando se tinha mão-de-obra abundante e de baixa<br />
remuneração, exigindo pesados subsídios para a operacionalização<br />
desses empreendimentos, provando inclusive<br />
ser insustentável. Ficou evidenciado que os pequenos agricultores<br />
aos quais são negados acesso à capacitação, ao<br />
crédito, aos mercados, as infra-estruturas e a tecnologias<br />
são também menos produtivos.<br />
Durante longo tempo acreditou-se que para incentivar o<br />
desenvolvimento rural bastaria simplesmente o desenvolvimento<br />
agrícola. A ideia dominante era que a transformação<br />
social e económica e a melhoria das condições de<br />
vida das populações rurais seria um resultado natural do<br />
processo de mudança produtiva decorrente da introdução<br />
da tecnologia agrícola. Essa visão teve a sua máxima expressão<br />
na chamada “Revolução Verde”, que apostando na<br />
modernização agrícola (introdução de máquinas agrícolas,<br />
fertilizantes inorgânicos, agro-químicos, sementes melhoradas,<br />
instrumentos de produção adequados à pequena escala,<br />
fomento da irrigação, etc.) pretendia aumentar a produção<br />
e a produtividade permitindo, desse modo, o aumento<br />
da renda familiar e, portanto, o desenvolvimento rural.<br />
Os resultados dessas estratégias nas áreas rurais foram<br />
globalmente decepcionantes pois, apesar de as novas tecnologias<br />
terem permitido o aumento da produção agrícola<br />
em diversas regiões do mundo, provocaram simultaneamente<br />
o agravamento das condições de vida das populações<br />
que aí habitavam. Uma grande parcela da população<br />
não pôde ter acesso ao capital necessário para a modernização<br />
agrícola, registou-se uma descapitalização daqueles<br />
que contraíram dívidas para lograr essa modernização,<br />
registaram-se graves problemas de poluição da água,<br />
uma redução das áreas florestais, redução do potencial<br />
hídrico, empobrecimento dos solos devido ao uso de agro-<br />
-tóxicos, graves problemas de distribuição da terra, etc., e<br />
em geral não se conseguiu reduzir a pobreza.<br />
A adopção dos programas de ajustamento estrutural e de<br />
medidas de austeridade, em muitos países, foi marcado<br />
pelo desinvestimento do Estado na agricultura, por massivos<br />
e apressados programas de privatização, redução<br />
dos subsídios à produção e comercialização, remoção das<br />
barreiras para a entrada de produtos estrangeiros, bem<br />
Há estudos que mostram que as famílias<br />
que mais diversificam as suas actividades<br />
económicas nas áreas rurais contam-se entre<br />
as que fugiram da “armadilha da pobreza”<br />
como foram favorecidos os produtos para exportação em<br />
detrimento da produção de alimentos. Paralelamente, registou-se<br />
uma maior dependência dos pequenos produtores<br />
às grandes empresas (de grande capital, através de<br />
empresas de fomento de certas culturas de rendimento),<br />
níveis muito baixos de poupança dos pequenos produtores<br />
(vulnerabilidades essas agravadas pelas calamidades naturais<br />
cíclicas), o que fez com que o êxodo rural ganhasse<br />
novos ritmos e contornos mais complexos.<br />
Quando se refere erroneamente que o rural é sinónimo do<br />
agrícola está a fazer-se confusão entre um espaço geográfico<br />
e um sector de actividade. Um número significativo de<br />
pessoas que residem em áreas rurais desenvolvem actividades<br />
extra-agrícolas, bem como existem famílias rurais<br />
ligadas à agricultura que desenvolvem também outras<br />
actividades económicas, como produção e venda de carvão,<br />
pequenos negócios, mineração artesanal, pesca, trabalho<br />
assalariado, etc., como estratégia de sobrevivência,<br />
aversão ao risco ou de acumulação.<br />
Há estudos que mostram que as famílias que mais diversificam<br />
as suas actividades económicas nas áreas<br />
12<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
urais contam-se entre as que fugiram da “armadilha da<br />
pobreza”.<br />
Embora se reconheça que a actividade agrícola continue<br />
a ser vital para a economia rural, o seu peso tem vindo<br />
a reduzir-se gradualmente e ela já não determina, isoladamente,<br />
os rumos da demografia no campo (Valá, 2012;<br />
Valá, 2017; MEF, 2016; MPD, 2012). José Negrão (2005 & 2008)<br />
dá uma importante contribuição ao questionar alguns<br />
pressupostos relacionados com o comportamento económico<br />
da família rural, que influenciam e condicionam as<br />
decisões dos pequenos agricultores moçambicanos, como:<br />
a) a substituição do conceito de economia de subsistência<br />
pelo de economia familiar, pois as famílias rurais estão<br />
integradas no mercado e têm como objectivo reforçar as<br />
redes sociais minimizadoras de riscos e multiplicar a produtividade<br />
marginal de cada factor; b) para os habitantes<br />
rurais, a agricultura representa uma indispensável, mas<br />
não exclusiva, fonte de rendimento e a especificidade do<br />
comportamento de cada unidade singular é parte de um<br />
todo no qual reside a garantia da reprodução social e de<br />
seguro contra riscos; c) a adjudicação do tempo de trabalho<br />
disponível da família na agricultura para o consumo<br />
não é substituível pelo trabalho fora do sector agrário e<br />
para o mercado, gerando padrões de divisão de trabalho<br />
no seio da família que muitas vezes revelam relações de<br />
género não equilibradas; d) a terra para a produção de<br />
rendimento em espécie não é arrendada, hipotecada ou<br />
alienada, sob o risco de comprometer a reprodução física<br />
da família, daí a necessidade de garantir o acesso e pos-<br />
se da terra para todas as famílias rurais moçambicanas)<br />
a adjudicação dos recursos pela família nuclear tem em<br />
consideração a sua pertença às redes de segurança social,<br />
tornadas praticáveis através de meios de coacção das linhagens<br />
do marido e da mulher.<br />
Assim sendo, Negrão chama a atenção para a relação<br />
entre a utilização do tempo na agricultura e noutras actividades<br />
económicas, a adjudicação de tempo para a produção<br />
para o mercado e para fora do mercado, a relação<br />
entre o uso da terra para a produção em espécie e o uso<br />
para a obtenção de dinheiro e a adjudicação de recursos<br />
pela família nuclear e pela linhagem, que são elementos<br />
vitais para compreender os processos de tomada de decisões<br />
das famílias rurais africanas em relação à adjudicação<br />
de recursos.<br />
Essa visão toma em conta as mudanças que ocorrem no<br />
campo, a relação entre a cidade e o campo e como as estratégias<br />
económicas das famílias rurais levam em conta<br />
a dinâmica de mudança em curso.<br />
Importa, pois, clarificar os termos de desenvolvimento<br />
agrícola, agrário e rural, que muitas vezes são usados de<br />
forma ambígua, confusa e difusa. O desenvolvimento agrícola<br />
refere-se as condições da produção agrícola e às suas<br />
características, no sentido estritamente produtivo, identificando<br />
as suas tendências num dado período de tempo. O<br />
desenvolvimento agrário diz respeito às interpretações<br />
acerca do “mundo rural” nas suas relações com a sociedade<br />
maior, em todas as suas dimensões, e não apenas à estrutura<br />
agrícola. Refere-se às condições de produção (o desenvolvimento<br />
agrícola, pecuário e florestal) não apenas<br />
numa faceta, mas centrando-se a análise também nas instituições,<br />
nas políticas adoptadas, nas disputas entre classes,<br />
nas condições de acesso e uso da terra, nas relações de<br />
trabalho e suas mudanças, nos conflitos sociais e nos mercados.<br />
A expressão “desenvolvimento rural” diferencia-se<br />
das duas anteriores por se tratar de uma acção previamente<br />
articulada que induz mudanças num determinado<br />
ambiente rural. Em consequência, o Estado sempre esteve<br />
presente à frente de qualquer proposta de desenvolvimento<br />
rural como seu agente principal.<br />
A determinação do que seja exactamente desenvolvimento<br />
rural tem variado ao longo do tempo, embora<br />
normalmente nenhuma das propostas deixe de destacar<br />
a melhoria do bem-estar das populações rurais como o<br />
objectivo final.<br />
As diferenças surgem nas estratégias seleccionadas, na<br />
hierarquização das prioridades e nas ênfases metodológicas<br />
(Navarro, 2001; MPD, 2007; Valá, 2006; Valá, 2009).<br />
Em muitos casos, o lento desenvolvimento rural se deve<br />
à combinação da falta de desenvolvimento agrícola e também<br />
do não agrícola.<br />
Na verdade, se uma determinada região possui cidades<br />
com dinâmicas geradoras de emprego e renda, essas mesmas<br />
dinâmicas tendem a reflectir-se no seu entorno rural,<br />
daí a necessidade de superar-se a dicotomia “rural-urbano“<br />
e agrícola-não agrícola, e pensarmos no desenvolvimento<br />
do local, do território, da região.<br />
E as cidades têm de fazer parte desse movimento, pois o<br />
desenvolvimento não pode ser encarado como apenas rural<br />
e, muito menos, como exclusivamente agrícola. O rural,<br />
longe de ser um espaço diferenciado pelas relações exclusivamente<br />
com a terra, natureza e ambiente, está profundamente<br />
relacionado com o urbano que lhe é contíguo.<br />
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13
oil & Gas<br />
“Consolidar o lugar<br />
de Moçambique na elite<br />
mundial da Energia”<br />
Sandra Jeque<br />
International Conference Director na Africa Oil & Power<br />
Com a contagem já em modo decrescente para o início da exploração de gás,<br />
Maputo recebe alguns dos principais players do sector no próximo mês de Março<br />
a<br />
africa oil & power é um<br />
evento do sector energético<br />
que, de 8 a 11 de Março<br />
de 2021, reunirá em<br />
Maputo um conjunto de<br />
investidores e decisores<br />
políticos mundiais nas áreas do petróleo,<br />
gás e energia. Na sua primeira<br />
edição em Moçambique — sob o tema<br />
‘Leveraging LNG: Building a Prosperous<br />
Mozambique’ — irá perspectivar-se<br />
o futuro do LNG numa era de<br />
pandemia, o impacto ambiental, as caceias<br />
de valor ou o tão necessário conteúdo<br />
local. O evento será desenvolvido<br />
em parceria com a Câmara Africana<br />
de Energia, a Atitude HR, a revista<br />
<strong>Economia</strong> & <strong>Mercado</strong> e o portal de economia<br />
e finanças Diário Económico,<br />
Texto Rogerio Macambize • Fotografia Mariano Silva<br />
Falemos sobre esta summit que<br />
se vai realizar, em Março de 2021,<br />
num contexto muito específico.<br />
Será um evento inteiramente<br />
online?<br />
O evento vai combinar as funcionalidades<br />
online e presencial, tendo em<br />
mente as novas condições impostas<br />
pela pandemia e a necessidade de<br />
desenvolvimento contínuo dos negócios.<br />
O evento principal será realizado<br />
em Moçambique, de 8 a 11 de Março<br />
de 2021, e vai contar com a presença<br />
de dignitários e líderes da indústria.<br />
Será transmitido em live stream para<br />
todo o mundo através do website da<br />
organização, e através da plataforma<br />
dos nossos parceiros regionais e<br />
internacionais.<br />
Ao nível dos convidados e oradores,<br />
da concepção do próprio programa,<br />
o que se pode esperar deste evento<br />
enquanto factor diferenciador<br />
de outros do mesmo género que se<br />
têm realizado no País?<br />
Uma vez que estamos entre os mais<br />
significativos fóruns do mundo nesta<br />
área, esperamos contar com um consórcio<br />
de líderes políticos — chefes<br />
de Estado e líderes regionais, figuras-<br />
-chave da indústria, gestores empresariais<br />
de topo, especialistas técnicos,<br />
fornecedores, fabricantes, investidores<br />
e traders de commodities. A Africa<br />
Oil & Power abrange toda a cadeia de<br />
valor do GNL e o programa reflecte isso<br />
mesmo, e contará com apresentações<br />
de dignitários de alto nível, painéis de<br />
discussão, as mais recentes novidades<br />
sobre actualizações de projectos e assinatura<br />
de acordos de investimento.<br />
Depois, haverá tópicos específicos que<br />
merecerão destaque, que vão desde<br />
o conteúdo local, da temática das mulheres<br />
na energia às aplicações desta<br />
indústria na agricultura sustentável.<br />
Uma oferta complementada com cursos<br />
de formação, soluções inovadoras<br />
de segurança e mitigação de riscos,<br />
uma especial atenção sobre a conservação<br />
da biodiversidade e a restauração<br />
dos ecossistemas.<br />
O objectivo da conferência passa<br />
por criar uma voz moçambicana<br />
na área da energia?<br />
Procuramos olhar e posicionar o lugar<br />
de Moçambique como estando entre<br />
os pólos energéticos de elite ao nível<br />
mundial. E todos os tópicos alinhados<br />
estão orientados precisamente nesse<br />
sentido, do desenvolvimento de ideias<br />
concretas que vão moldar o futuro<br />
das indústrias do petróleo, GNL, energia<br />
e renováveis. Não estamos apenas<br />
à procura de realizar um evento essencial<br />
ou marcante, mas também de<br />
criar um impacto duradouro na comunidade<br />
de Oil & Gas dentro e fora do<br />
País. E daremos uma atenção especial<br />
aos programas de desenvolvimento<br />
para a região de Palma, envolvendo<br />
os jovens e as mulheres no sector da<br />
energia para garantir que os cidadãos<br />
de Moçambique desfrutem de todo o<br />
crescimento que se espera para o País.<br />
14<br />
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ENERGIA<br />
“Não estamos apenas à procura de realizar um evento<br />
essencial ou marcante, mas também de criar um impacto<br />
duradouro na comunidade de Oil & Gas dentro e fora do País”<br />
Qual é a sua visão relativamente<br />
ao potencial de Moçambique nesta<br />
área específica?<br />
As oportunidades são inúmeras. No<br />
Norte, na bacia do Rovuma, há 180 biliões<br />
de pés cúbicos de gás. Na Bacia Moçambique-Pande<br />
e Temane há 6 tcf. Moçambique<br />
está actualmente sentado<br />
numa verdadeira mina de ouro e a<br />
sua localização geográfica proporciona<br />
vantagens estratégicas para a exploração<br />
comercial. Os compradores<br />
estabelecidos do Extremo Oriente, da<br />
costa atlântica da Europa e dos mercados<br />
asiáticos estão ao seu alcance<br />
directo, assim como os mercados potencialmente<br />
emergentes do Médio<br />
Oriente e também da Índia. Moçambique<br />
está prestes a tornar-se uma potência<br />
global de comércio de energia.<br />
No geral, a área do Oil & Gas alterou-se<br />
substancialmente nos últimos meses.<br />
Ainda assim, grandes investimentos,<br />
como aconteceram com o financiamento<br />
do projecto da Área 1,<br />
não deixaram de avançar. Gostaria<br />
de ter um overview da sua parte<br />
sobre tudo isto.<br />
A pandemia teve um impacto devastador<br />
sobre a indústria como teve com<br />
tantas outras. A procura de produtos<br />
petrolíferos caiu, como seria de esperar.<br />
A redução da actividade económica<br />
ao nível mundial conduziu a um excesso<br />
de oferta que impactou no preço<br />
do petróleo como no do gás. Com a pandemia<br />
ainda a ser combatida, permanecem<br />
as incertezas. No entanto, o potencial<br />
é tremendo e a indústria está<br />
a reinventar-se. Moçambique é um<br />
exemplo disso.<br />
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15
OPINIÃO<br />
Indústria do petróleo e do gás —<br />
Será o fim da era do ouro negro?<br />
d<br />
Sergio Nicolini • EY Mediterranean Energy Lead<br />
emorei algum tempo a tentar explicar à minha<br />
filha de 18 anos, em Abril, como o preço<br />
do petróleo poderia estar negativo quando o<br />
WTI caiu para -37 dólares por barril, e nem<br />
sei se consegui responder à sua questão! Esse<br />
dia marcou o início de uma nova Era para a<br />
indústria petrolífera e do gás, ou, pelo menos, o fim da era<br />
que conhecíamos até àquele dia.<br />
Estávamos habituados a um mercado baseado num equilíbrio<br />
entre a oferta e a procura, onde o fosso mais anormal<br />
seria na gama de 1 mln barris por dia. Mas a procura<br />
entre o 1º e 2º trimestre deste ano diminuiu mais de 10<br />
vezes. Estávamos habituados a lidar com a volatilidade<br />
dos preços, mas em Março a OPEP+ reuniu-se para chegar<br />
a acordo sobre as reduções de produção e saiu com um<br />
aumento da produção de 1,5 milhões de barris. Estávamos<br />
acostumados, desde a última crise, a ter uma rápida recuperação<br />
dos preços do petróleo após uma queda, com a<br />
tendência crescente até o pico do petróleo. Mas ninguém,<br />
neste momento, espera, tão cedo, uma recuperação total<br />
nem dessa tendência nem dos preços.<br />
Para ser honesto, a indústria petrolífera já havia recebido<br />
sinais de mudança muito antes do COVID-19, quando a<br />
jovem Greta Thunberg deu o pontapé de saída nas campanhas<br />
e protestos sobre as alterações climáticas. A questão<br />
que se colocava nessa altura era se estávamos prestes a<br />
atingir o pico da procura de petróleo. Agora parece que o<br />
pico do petróleo já veio e se foi.<br />
Embora os fundamentos da economia baseada em combustíveis<br />
fósseis não tenham mudado nos últimos dois trimestres<br />
(os aviões ainda voam utilizando querosene e os<br />
navios porta-contentores navegam utilizando petróleo de<br />
bunker), é provável que as fontes de procura futura de<br />
hidrocarbonetos se desloquem para uma menor demanda<br />
de combustíveis de transporte e que qualquer aumento venha<br />
da procura de produtos plásticos em países emergentes,<br />
assumindo que o PIB global não será afectado por novos<br />
bloqueios. Os actuais preços baixos do petróleo podem<br />
retardar o “empate” entre o custo dos veículos eléctricos e<br />
o desempenho igual aos dos motores de combustão interna<br />
que prolongam a vida útil dos combustíveis fósseis como a<br />
fonte de energia mais eficiente e barata para o transporte.<br />
Perante este cenário, vimos todas as companhias petrolíferas<br />
anunciarem uma espécie de Estratégia de Transição<br />
Energética e de Descarbonização que aponta para 2050<br />
como destino. No mundo pós-COVID-19, essas estratégias<br />
requerem uma remodelação difícil. Após os resultados<br />
do Q2, os analistas de mercado e os accionistas esperam<br />
ouvir a história da Transição Energética no EBITDA e nos<br />
termos de dividendos, ao invés da história da capacidade<br />
instalada renovável ou adopção de soluções de sequestro<br />
de carbono e do número de árvores plantadas na floresta<br />
tropical. Possivelmente a história terá um impacto positivo<br />
neste ou no próximo ano, em vez de 2050, seguindo um<br />
plano de execução claro e um compromisso de liderança<br />
comprovado. Os elementos que caracterizam a jornada de<br />
execução para a Transição Energética girarão em torno<br />
de uma série de tópicos. Organizações mais novas, mais<br />
ágeis, capazes de se adaptarem a uma multiplicidade de<br />
modelos de negócio, desde hidrocarbonetos a hidrogénio,<br />
desde as renováveis até ao nuclear. Uma nova mentalidade<br />
e um novo modelo de gestão de desempenho para<br />
conduzir a mudança da lógica do “volume” para a lógica de<br />
“valor”, e longe do equivalente ao barril de petróleo. Uma<br />
nova e renovada liderança, apaixonada pela inovação, baseada<br />
em dados e adversa a estruturas estáticas.<br />
Ao fazê-lo, as companhias petrolíferas deixarão de ser<br />
referidas como Empresas Petrolíferas Internacionais ou<br />
Nacionais – IOCs ou NOCs –, mas sim como Empresas de<br />
Energia e, portanto, têm a oportunidade de se tornarem<br />
um empregador atraente para a geração da minha filha<br />
e para as futuras. As companhias petrolíferas enfrentam<br />
o desafio mais dramático da sua história e a única que lhes<br />
permitirá sobreviver.<br />
Os elementos que caracterizam a jornada para a Transição Energética girarão em torno de uma<br />
série de tópicos. Organizações mais ágeis, capazes de se adaptarem a uma multiplicidade de<br />
modelos de negócio, desde hidrocarbonetos a hidrogénio, desde as renováveis até ao nuclear<br />
16<br />
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Números em conta<br />
As grandes Explosões de Nitrato<br />
de Amónio desde o início do século<br />
no início de <strong>Agosto</strong>, uma enorme explosão<br />
provocada por nitrato de amónio<br />
abalou a cidade de Beirute, capital do Líbano,<br />
propagando ondas de choque através<br />
dos meios de comunicação de todo<br />
o mundo. Ficámos todos a saber o que é<br />
e qual a perigosidade do nitrato de amónio<br />
que, no caso, até era, ao que se sabe,<br />
destinado a Moçambique, em 2013. Nunca<br />
chegou ao País, tendo ficado depositado<br />
no Líbano.<br />
A confirmação surgiu da própria Fábrica<br />
de Explosivos de Moçambique (FEM) que<br />
já afirmou que as 2,7 toneladas de nitrato<br />
de amónio que estiveram na origem das<br />
explosões em Beirute foram adquiridas à<br />
empresa Savaro, da Geórgia, e o local de<br />
descarga previsto era o Porto da Beira, em<br />
Moçambique.<br />
No entanto, aquela carga “nunca foi entregue”,<br />
uma vez que o navio ficou retido na<br />
capital Libanesa por ordem das autoridades<br />
locais, tendo repousado à espera de,<br />
um dia, explodir, e causar 158 mortos e<br />
mais de 6 000 feridos.<br />
Apesar de devastadora, não é a primeira<br />
vez que este perigoso composto químico<br />
causa danos generalizados.<br />
Toneladas de nitrato<br />
de amónio<br />
As maiores explosões convencionais<br />
Embora tenha havido vários acidentes com nitrato de amónio ao longo da História, a<br />
recente tragédia em Beirute é uma das maiores explosões acidentais jamais registadas,<br />
com mais de 170 mortos e 5.000 feridos (até à data de fecho desta edição). Em termos<br />
do equivalente TNT, uma medida utilizada para medir o impacto de uma explosão,<br />
ocupa o top 10 das maiores explosões acidentais da história:<br />
A laranja estão os incidentes em que o nitrato de amónio é a causa primária da explosão<br />
Porto de<br />
Beirute<br />
Líbano<br />
Pepcon<br />
EUA<br />
Base<br />
Naval<br />
Evangelos<br />
Florakis<br />
Chipre<br />
Cidade do<br />
Texas<br />
EUA<br />
Halifax<br />
Canadá<br />
Raf Fauld<br />
Reino Unido<br />
Porto de<br />
Chicago<br />
EUA<br />
Oppau<br />
Alemanha<br />
Dupont<br />
EUA<br />
Lançamento<br />
N1<br />
Rússia<br />
Porto de<br />
Tianjin<br />
China<br />
Q&A O que é o nitrato de amónio?<br />
Forma-se quando o gás amoníaco é combinado com ácido nítrico<br />
líquido. O composto químico é amplamente utilizado na agricultura<br />
como fertilizante, mas também em explosivos mineiros.<br />
É altamente inflamável quando combinado com óleos e outros<br />
combustíveis, mas não é inflamável por si só, a menos que seja<br />
exposto a temperaturas extremamente elevadas.<br />
Na verdade, é relativamente difícil um incêndio provocar uma<br />
explosão a partir do nitrato de amónio. Todavia, isso não foi impedimento<br />
para algumas grandes explosões que abalaram o mundo<br />
nas últimas décadas.<br />
18<br />
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Em 2004, uma mega explosão<br />
ocorreu na cidade de Ryongchon,<br />
vitimando 160 pessoas e<br />
destruindo 2 000 edifícios.<br />
As autoridades norte-coreanas<br />
não divulgaram, como é hábito,<br />
muitos detalhes, mas sabe-se<br />
que a explosãoo foi causada por<br />
nitrato de amónio cuja ignição<br />
adveio de um acidente entre dois<br />
comboios de carga.<br />
Nitrocelulose — um químico utilizado no polimento de<br />
unhas — incendiou-se e espalhou-se para um conjunto<br />
de armazéns de nitrato de amónio nas redondezas.<br />
Uma infra-estrutura<br />
de armazenamento e<br />
distribuição de nitrato<br />
de amónio explodiu<br />
arrasando 500 habitações<br />
na comunidade mais<br />
próxima.<br />
O impacto e os destroços<br />
devastaram quatro<br />
quilómetros ao redor do<br />
local da explosão.<br />
A recente explosão na<br />
capital do Líbano é já<br />
considerada um dos<br />
maiores acidentes alguma<br />
vez registados. A onda<br />
de choque resultante<br />
que se propagou por<br />
uma cidade densamente<br />
povoada com dois milhões<br />
de habitantes arrasou as<br />
casas de 300 000 pessoas<br />
e destruiu 85% dos silos de<br />
armazenamento de grãos<br />
que alimentam o País.<br />
FONTE Visual Capitalist, Han,<br />
Zhe (2016), The Guardian<br />
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19
OPINIÃO<br />
Transformação Económica através<br />
da Implementação de Políticas de<br />
Conteúdo Local<br />
o<br />
Hermano Juvane • Head of Oil & Gas Coverage do Absa Bank<br />
sector petrolífero em moçambique tem um<br />
imenso potencial para contribuir para a<br />
transformação económica da Nação, uma vez<br />
que se prevê que o PIB aumente em mais $15.4<br />
mil milhões nas próximas duas décadas. Na<br />
última década, vislumbrámos a posição geopolítica<br />
de Moçambique mudar após a descoberta de mais<br />
de 180 trilhões de pés cúbicos (TCF) de gás natural na Bacia<br />
do Rovuma. Esta descoberta elevou o país da 61ª para a 8ª<br />
posição no ranking mundial das reservas de gás natural.<br />
Para se ter uma ideia, 180 TCF de gás natural é suficiente<br />
para satisfazer toda a procura mundial de energia durante<br />
dois anos consecutivos.<br />
No entanto, existem preocupações quanto ao saber se o<br />
valor económico destas reservas será suficiente para<br />
transformar a paisagem económica de um país do terceiro<br />
mundo. A questão pertinente é se a implementação de<br />
políticas de conteúdo local de facto catapultariam Moçambique<br />
para uma economia de classe média.<br />
Moçambique ocupa o 3º lugar na lista dos 12 maiores países<br />
africanos no que tange a reservas comerciais de Petróleo<br />
e Gás, com mais de 8 mil milhões de barris equivalentes<br />
de petróleo (BOE), seguindo a Nigéria e Angola com 55 e 19<br />
BOE, respectivamente. Em Junho de 2017, vimos a decisão<br />
de investimento estrangeiro (FID) sancionar o projecto de<br />
Gás Natural Flutuante (FLNG) Coral South da ENI, no valor<br />
de $8 mil milhões, seguido do projecto de gás natural liquefeito<br />
(LNG) da Total E&P, no valor de $25 mil milhões, em<br />
Junho de 2019. O valor de investimento da ExxonMobil está<br />
estimado em cerca de $30 mil milhões. Este último projecto<br />
sofreu o adiamento da sanção do FID devido ao actual ambiente<br />
desfavorável dos preços do petróleo e do gás.<br />
No total, trata-se da potencial sanção de projectos no valor<br />
de $63 biilhões no espaço de cinco anos, excluindo as expansões<br />
das plantas de LNG. Tendo em conta o valor total de<br />
investimento de uma economia de $15 mil milhões, o que<br />
poderia fazer com que Moçambique não experimentasse<br />
uma transformação económica? A resposta está na aptidão<br />
para implementação da política de conteúdo local.<br />
O nosso Governo tem uma oportunidade extraordinária<br />
de aprender com os êxitos e os fracassos de outras economias<br />
africanas com imensas reservas de petróleo e gás. É<br />
importante reconhecer que a economia está em risco de<br />
uma elevada dependência do gás natural. Vejamos alguns<br />
indicadores económicos como exemplos. Em 2018 e 2019<br />
a Autoridade Tributária Moçambicana recolheu MT 191<br />
mil milhões ($3,1 mil milhões) e MT 288 mil milhões ($4,8<br />
mil milhões), respectivamente. Em 2029, os projectos Coral<br />
FLNG, Mozambique LNG, e Rovuma LNG deverão contribuir<br />
com mais de $3 mil milhões em receitas adicionais para o<br />
Governo, sob a forma de imposto sobre as sociedades, participação<br />
nos lucros e royalties. Este valor exclui o efeito<br />
multiplicador.<br />
Em 2018 e 2019, Moçambique registou um total de $5.19 mil<br />
milhões e $4.7 mil milhões, respectivamente, em exportações.<br />
Os projectos Mozambique LNG, Rovuma LNG e Coral<br />
FLNG deverão gerar cerca de $4,2 mil milhões, $5,3 mil milhões<br />
e $1,2 mil milhões, respectivamente, em receitas de<br />
exportação em 2029, o que totaliza $10,7 mil milhões, que<br />
representa pelo menos o dobro do actual nível de receitas<br />
de exportação.<br />
O Gana é um grande exemplo a ser seguido pelo Governo<br />
moçambicano. Em 2009, o PIB do País era de cerca de $34.3<br />
mil milhões. Os sectores de Serviços, Agrícola e Industrial<br />
contribuíam respectivamente 32%, 19% e 49% para o PIB<br />
da economia. Em 2010, o campo petrolífero Tullow Oil-led<br />
Jubilee, de 3 mil milhões de barris, iniciou a produção três<br />
anos após a descoberta da reserva. Em 2018, o PIB do Gana<br />
quase duplicou para $65,2 mil milhões, com os sectores de<br />
Serviços, Agrícola e Industrial a contribuírem com 46%,<br />
20% e 34% da composição do PIB, respectivamente. O valor<br />
da sanção do FID da Tullow Oil era de $8 mil milhões de<br />
O Governo tem uma oportunidade extraordinária de aprender com os êxitos e os fracassos<br />
de outras economias africanas que têm imensas reservas de petróleo e de gás natural<br />
20<br />
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Não se sabe se o valor económico destas reservas será suficiente para transformar a paisagem económica do País<br />
dólares (um terço do valor do projecto Mozambique LNG).<br />
No entanto, a economia duplicou num espaço de oito anos.<br />
É possível observar também que a composição do PIB por<br />
sector permaneceu sustentável e proporcional. Portanto,<br />
quais são alguns dos passos que o Governo moçambicano<br />
pode seguir? Aqui está uma lista resumida:<br />
i) Estabelecimento de um memorando de entendimento<br />
com a Noruega para rever as políticas e<br />
a legislação - O Governo do Gana colaborou com a<br />
Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento<br />
(NORAD) e a Fundação de Construção do<br />
Sector Petrolífero (Petrad), para revisões de políticas,<br />
leis, legislação subsidiária e quadro institucional.<br />
ii) Apoio do Banco Mundial - O Banco Mundial apoiou<br />
a gestão pública e a capacidade reguladora e forneceu<br />
$57 milhões para programas de formação e capacidades<br />
técnicas. Os fundos foram utilizados para<br />
a criação do centro de dados na Comissão Petrolífera<br />
do Gana (PCG, o regulador do petróleo) e o Laboratório<br />
de equipamento para a Agência de Protecção Ambiental<br />
(EPA).<br />
iii) Inclusão dos Cidadãos na Gestão das Receitas Petrolíferas<br />
- Em 2011, foi estabelecida a Lei de Gestão das<br />
Receitas Petrolíferas (PRMA), que fornece um quadro<br />
para a recolha, distribuição e alocação de ganhos petrolíferos.<br />
As Organizações da Sociedade Civil do Petróleo<br />
e Gás (OSC) debatem exaustivamente e fazem<br />
recomendações ao Governo sobre a afectação das receitas<br />
petrolíferas.<br />
iv) Metas Assertivas e Inclusivas de Conteúdo Local - Em<br />
2013, o Parlamento promulgou o Regulamento sobre<br />
Conteúdo Local Petrolífero e Participação Local, que<br />
entrou em vigor em 2014. Este regulamento foi concebido<br />
para dar às empresas locais um tratamento<br />
preferencial e exigia que pelo menos 5% do capital<br />
de todas as empresas fornecedoras fossem propriedade<br />
dos habitantes locais.<br />
Em conclusão, e confiantes na inclusão e transparência do<br />
Governo moçambicano no processo de desenvolvimento<br />
de políticas, seguem algumas directrizes ideais a adoptar:<br />
Urgência na implementação de políticas - Moçambique<br />
deve evitar atrasar a implementação das políticas e leis<br />
de conteúdo local, com vista a maximizar o desenvolvimento<br />
económico. Uma vez implementadas as políticas de<br />
conteúdo local, é fundamental que sejam feitos esforços<br />
para educar a população sobre o mesmo para que o Governo<br />
beneficie do envolvimento dos cidadãos no sector.<br />
Seria ideal incluir a NORAD e Petrad no processo de revisão<br />
das políticas e da legislação; Investir em sectores<br />
que suprem o sector petrolífero - Para além de investir<br />
no desenvolvimento de competências no sector petrolífero,<br />
a mão-de-obra e as empresas locais devem também<br />
ser qualificadas e habilitadas para trabalhar em sectores<br />
que abastecem aquele sector. O efeito a longo prazo seria<br />
o de evitar que os sectores fornecedores contribuíssem<br />
negativamente para o equilíbrio do comércio do País. A<br />
centralização dos pagamentos de fornecimentos internos<br />
reforçaria a contribuição de outros sectores para o PIB;<br />
transparência e Envolvimento das Organizações da Sociedade<br />
Civil (OSC) - É fundamental que o Governo seja<br />
transparente em questões concernentes à declaração e a<br />
afectação das receitas petrolíferas. Informar as OSC para<br />
que o Governo beneficie dos seus contributos sobre a afectação<br />
ideal das receitas, com vista a maximizar o desenvolvimento<br />
económico. Isto também significaria o aumento<br />
da confiança no governo local por parte dos cidadãos<br />
e da comunidade internacional; introdução de uma Lei de<br />
Distribuição de Receitas Petrolíferas - Sob o conselho de<br />
parceiros internacionais, o Governo de Moçambique pode<br />
elaborar uma legislação transparente para a gestão dos<br />
recursos de hidrocarbonetos. Como nação democrática, é<br />
crucial que as preocupações e opiniões do público sejam<br />
consideradas durante o processo de gestão e tomada de<br />
decisão sobre a distribuição das receitas do petróleo.<br />
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21
Nação<br />
22<br />
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lEI DE TERRAS<br />
Lei de Terras. É de reformas que o<br />
país precisa? Ou do cumprimento?<br />
O Presidente da República lançou, recentemente, o processo de auscultação da revisão da Política<br />
Nacional de Terras, em que se persegue o “acesso equitativo, a posse segura e o uso sustentável<br />
ao serviço da sociedade e da economia moçambicana”. É o reacender de um debate antigo que<br />
dificilmente encontra consenso entre os vários actores e em todos domínios da vida da sociedade,<br />
mas que agora parece decidido a concretizar, na prática, a ideia inicial, fazendo jus ao título de uma<br />
das melhores leis de terra do mundo. Mas o que fazer para aí chegar?<br />
Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.<br />
“<br />
há duas questões sobre a terra em moçambique<br />
que todos conhecem, mas<br />
quase nunca são assumidas. A primeira<br />
é que pertence ao Estado e também<br />
àqueles que fazem parte e controlam<br />
este aparelho. A segunda é que,<br />
por Lei, a Terra não pode ser vendida. No entanto, é comprada,<br />
por vezes, com a cumplicidade de quem deveria<br />
garantir que isso não acontecesse”. Esta citação – publicada<br />
há quatro anos pelo Observatório do Meio Rural (OMR)<br />
numa obra de pesquisa com o título “Discursos à Volta do<br />
Regime de Propriedade da Terra em Moçambique” – é uma<br />
das várias formas de fazer uma contextualização que vá<br />
ao encontro das diversas vozes que, vezes sem conta, questionam<br />
a “perfeição” atribuída à Lei de Terras. Segundo a<br />
pesquisadora Uacitissa Mandamule, os fenómenos que se<br />
verificam em torno da gestão da terra espelham (aquilo<br />
a que chama de) “desordem política e social, na qual o País<br />
está mergulhado desde a independência. Essa desordem é<br />
caracterizada por uma gestão, em grande medida patrimonial<br />
e clientelista do Estado e dos seus recursos naturais,<br />
mas também pelo facto paradoxal de a terra constituir<br />
propriedade última do Estado que, por sua vez, não reconhece<br />
a propriedade privada sobre a mesma, muito menos<br />
a sua venda, ainda que, actualmente, de maneira (in)formal<br />
e generalizada, ela exista, envolvendo diferentes actores, a<br />
diferentes níveis (central e local) da hierarquia político-administrativa<br />
e social, e assumindo dimensões inquietantes”.<br />
No fundo, é difícil encontrar quem não tenha a mesma opinião<br />
a este respeito. A E&M ouviu o director-geral do Centro<br />
de Integridade Pública (CIP), Edson Cortez, que revelou que<br />
“levanta-se a suspeição de que se tenta ‘tapar o sol com a<br />
peneira’, porque a forma como foi desenhada a lógica do<br />
aproveitamento de terra beneficia os mais fortes. Porquê?<br />
Se a terra é do Estado, a qualquer altura este tem o poder de<br />
requisitar qualquer parcela que já esteja ocupada evocando<br />
que o seu interesse é maior do que o do usuário. O problema<br />
é que por detrás do conceito abstracto do Estado há pessoas<br />
que utilizam o próprio conceito para realizar interesses individuais,<br />
que podem ir em contramão com o interesse dos<br />
usuários da terra”, constatou. Para o pesquisador, este fenómeno<br />
acaba por legitimar uma situação de ambiguidade<br />
que invariavelmente vai favorecer a quem tem poder, e<br />
que geralmente se aproveita do fácil acesso a informação<br />
privilegiada sobre, por exemplo, o interesse de investidores<br />
estrangeiros para instalar determinado empreendimento.<br />
“Sem querer dizer que, a vinda de investidores para o País<br />
não seja benéfica, o que quero explicar é que há pessoas que<br />
têm de ser ressarcidas e a compensação deve ser justa”, esclareceu<br />
Edson Cortez referindo-se às comunidades.<br />
O Governo assume os problemas…<br />
Legítimas ou não (até porque há muitas posições divergentes),<br />
as constatações daqueles pesquisadores indicam<br />
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23
Nação<br />
As actualizações que Lei sofreu com o tempo<br />
De um modo geral, foram ligeiras as alterações que se foram realizando desde a sua aprovação, em 1997, para adequá-la<br />
ao contexto social e económico do País. A maior parte foi à procura de melhorar a salvaguarda da posse segura, sobretudo pelas<br />
comunidades. E porque esta meta ainda não foi alcançada, a busca pelo “ponto óptimo” ainda não cessou.<br />
1997<br />
Lei n. o 19/1997<br />
de 01 de Outubro<br />
1998<br />
Decreto n. o 66/1998 -<br />
Regulamento<br />
Acesso à terra por<br />
investidores<br />
2003<br />
Alteração dos artigos<br />
20. o e 39. o do Regulamento<br />
É criada a Lei de Terras que<br />
revoga a Lei n.° 6/79, de 03 de<br />
Julho, que procura garantir o<br />
acesso e a segurança de posse<br />
da terra pelos camponeses<br />
moçambicanos e pelos<br />
investidores nacionais e<br />
estrangeiros. O princípio geral é<br />
o de que “a terra é propriedade<br />
do Estado e não pode ser<br />
vendida ou, por qualquer outra<br />
forma, alienada, hipotecada ou<br />
penhorada”.<br />
Enquanto a Lei de 1997 apenas<br />
estabelecia que pessoas<br />
singulares que, de boa-fé,<br />
estejam a utilizar a terra<br />
há, pelo menos, dez anos,<br />
adquirem o direito do seu<br />
uso e aproveitamento, o novo<br />
Decreto acrescentou que este<br />
privilégio não é aplicável a áreas<br />
reservadas legalmente para<br />
qualquer fim. Também passou<br />
a incluir estes terrenos no<br />
Cadastro Nacional de Terras.<br />
Na Lei de 1997, o direito de uso<br />
e aproveitamento da terras<br />
para a actividade económica<br />
está sujeito a um prazo máximo<br />
de 50 anos renovável por igual<br />
período. O decreto n.º 66/1998<br />
acrescentou a identificação<br />
prévia do terreno envolvendo<br />
os serviços de cadastro, as<br />
autoridades e as comunidades.<br />
Além disso, o terreno deve ser<br />
documentado no esboço e na<br />
memória descritiva.<br />
Foram alterados os artigos 20<br />
e 39 do Regulamento da Lei de<br />
Terras aprovado pelo Decreto<br />
nº 66/98. Quanto ao artigo<br />
20, as alterações trouxeram<br />
maior rigor no registo dos<br />
serviços de cadastro de terras.<br />
Já em relação ao artigo 39,<br />
que diz respeito a infracções<br />
e penalidades, veio agravar<br />
as multas que incidem sobre<br />
diversos tipos de infracção à Lei<br />
de Terras.<br />
que há muita coisa por arrumar neste contexto, e isso foi<br />
reconhecido pelo Presidente Nyusi no seu discurso de lançamento<br />
do Processo de Auscultação da Revisão da Política<br />
Nacional de Terras, a 16 de Julho passado, quando revela<br />
que “a nova política de terras em elaboração e a subsequente<br />
legislação devem preencher as actuais lacunas da<br />
ligação entre o uso e aproveitamento da terra e o acesso<br />
aos recursos naturais e a sua exploração sustentável”.<br />
… E sabe por onde atacar<br />
Nessa ocasião, o Presidente da República também demonstrou<br />
conhecimento profundo das questões por corrigir: “Os<br />
arranjos institucionais de gestão e administração da terra<br />
devem adequar-se aos actuais processos de descentralização<br />
da administração do País. O processo deve fornecer<br />
respostas sobre como desburocratizar a administração<br />
da terra, tanto ao nível das entidades do Governo central<br />
como das entidades provinciais, distritais e municipais. Temos<br />
de enquadrar o processo de gestão e administração<br />
da terra no contexto do novo figurino da descentralização.<br />
Queremos conviver com um quadro legal e operacional<br />
que estanque o açambarcamento de terras, a especulação<br />
e a corrupção, que reduza o risco de conflitos, que combata<br />
a existência de terras ociosas e que reforce, em particular,<br />
a protecção dos direitos das comunidades locais, em<br />
especial da mulher nas zonas rurais e dos jovens”. Ficavam<br />
assim resumidas as questões que geram toda a confusão<br />
que se testemunha no que à gestão da terra diz respeito.<br />
Na fase de auscultação recentemente lançada, o Governo procura<br />
que haja equilíbrio das diferentes forças da sociedade<br />
para que se possa atacar de frente os problemas da terra.<br />
Daí que a Comissão encarregada de conduzir o processo -<br />
Comissão de Revisão da Política Nacional de Terras – inclui<br />
“Queremos conviver com um quadro legal e<br />
operacional que estanque o açambarcamento<br />
de terras, a especulação e a corrupção”<br />
representantes da Sociedade Civil, sector privado, académicos,<br />
as próprias comunidades, entre outras entidades à<br />
escala nacional, tudo para que cada um dos intervenientes<br />
aborde as questões sob o seu particular ângulo de vista.<br />
Mas como se vai operar a mudança?<br />
Na comunicação do Presidente, ficou claro que a revisão<br />
será feita respeitando três princípios que devem permanecer<br />
intactos, nomeadamente: o Estado continuará a ser o<br />
proprietário da terra e dos outros recursos naturais; todos<br />
os moçambicanos têm direito de acesso à terra; e os direitos<br />
adquiridos pelas famílias e comunidades locais deverão<br />
sempre ser protegidos. Estes princípios, entre outros, são<br />
os que fazem da Lei de Terras uma das mais elogiadas do<br />
mundo. Então, porque é que, mesmo assim, tem de ser revista?<br />
E em que aspectos se deve mexer?<br />
Não uniformizar as regras sobre a terra<br />
É o caminho proposto pelo economista António Francisco<br />
cujo percurso profissional já o colocou no centro destas<br />
questões. O académico recorda que quando esteve a coordenar<br />
a Estratégia de Desenvolvimento Rural, a ideia era<br />
não dar o mesmo tratamento a toda a terra, como se faz<br />
actualmente, mas discriminar as zonas comunitárias das<br />
zonas públicas, por isso entende que não faz sentido abordar<br />
a questão sem esta divisão, como se tem feito nos dias<br />
que correm. Esta ideia vai um pouco ao encontro do que foi<br />
24<br />
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LEI DE TERRAS<br />
2006<br />
2007<br />
2010<br />
2011<br />
Aprovado o regulamento<br />
do solo urbano<br />
Altera o artigo 35. o<br />
do Regulamento da Lei<br />
Actualização<br />
das taxas de acesso<br />
Consulta<br />
às comunidades<br />
À luz do Decreto n.º 60/2006,<br />
as regras técnicas a observar<br />
na elaboração dos planos de<br />
ordenamento são objecto de<br />
regulamentação específica<br />
nas áreas de cidades e vilas.<br />
Os órgãos locais do Estado<br />
e os autárquicos ganharam<br />
poder de emissão de licenças<br />
especiais para diferentes tipos<br />
de actividade, incluindo nas<br />
chamadas zonas de protecção<br />
parcial.<br />
O Decreto n.º 50/2007 altera<br />
o artigo 35. o da Lei de Terras.<br />
Impunha-se a necessidade de<br />
alterar os requisitos relativos<br />
ao processo de titulação do<br />
DUAT adquirido por ocupação<br />
pelas comunidades locais.<br />
Assim, os requisitos passavam<br />
a ser decididos pela entidade<br />
competente em função da área.<br />
No ordenamento anterior, eram<br />
exigidos vários requisitos neste<br />
processo.<br />
O Diploma Ministerial n.º<br />
144/2010 actualizou os valores<br />
das taxas a pagar pelos<br />
requerentes ou titulares do<br />
DUAT. A nova tabela estabeleceu<br />
que a autorização provisória<br />
passava a custar 1 500 meticais,<br />
a autorização definitiva 750 Mt,<br />
a taxa anual por hectare para 75<br />
Mt, e o Turismo, habitação de<br />
veraneio (lazer) e comércio com<br />
extensão de três quilómetros<br />
para 500 Mt por hectare.<br />
Através do Diploma Ministerial<br />
n.º 158/2011, os ministros da<br />
Agricultura e da Administração<br />
Estatal determinaram que a<br />
consulta à comunidade deve<br />
compreender duas fases: a<br />
primeira, que consiste numa<br />
reunião pública para informar<br />
a comunidade local sobre<br />
o pedido de aquisição; e a<br />
segunda, até 30 dias após<br />
a primeira, para o<br />
pronunciamento da comunidade.<br />
feito em Angola, onde a reforma permitiu que haja, actualmente,<br />
parcelas de terra não vendável geridas pelo Estado,<br />
e parcelas que o Estado pode vender para a utilização de<br />
privados, ficando assim salvaguardados os interesses soberanos<br />
da Nação e a independência dos privados.<br />
Para o economista, “é tudo muito difícil de entender porque,<br />
muitas vezes, ouvem-se grupos a reclamar que lhes foi retirada<br />
a terra, e a questão é: quem é que tem terra afinal?<br />
Temos um sistema legal que não reconhece o direito legítimo<br />
à terra. Até do ponto de vista da dignidade, como é que um<br />
camponês se pode sentir com auto-estima quando o Estado<br />
diz que a terra não é dele? Somos todos inquilinos do Estado”,<br />
critica o economista. Também defende que “o não reconhecimento<br />
do direito privado sobre a terra desvaloriza tudo,<br />
daí que o conflito está institucionalizado e não há volta a dar”.<br />
Na opinião do académico, “o sistema colonial de gestão da<br />
terra era muito melhor do que o actual porque respeitava<br />
as comunidades, mesmo reconhecendo a discriminação das<br />
chamadas melhores terras. Em Chókwè, por exemplo, havia<br />
negros que detinham terra produtiva. O Estado tinha<br />
um grande intervencionismo, mas havia a preocupação de<br />
garantir um certo respeito pelas comunidades”, concluiu.<br />
A resposta está na fiscalização da Lei...<br />
O director-geral do CIP, Edson Cortez, considera que a chave<br />
está no fortalecimento das instituições, já que não é só<br />
em relação à terra que se tem uma legislação impecável,<br />
mas também uma fraca capacidade de a fazer cumprir.<br />
Em relação à Lei de Terras, Cortez defende que, primeiro,<br />
deve reflectir os problemas que forem apurados no processo<br />
de auscultação pública. Depois, será necessário que<br />
haja uma fiscalização rigorosa do seu cumprimento para<br />
garantir que, efectivamente, mesmo depois de aprovada,<br />
haja quem penalize as violações independentemente da<br />
posição política, social ou qualquer tipo de privilégio de que<br />
a pessoa goze. “Aquilo a que assistimos, hoje, é que não há<br />
força suficiente para sancionar os ‘poderosos’. As próprias<br />
instituições públicas têm desapropriado pessoas sem que<br />
tenham o DUAT. Não cumprem com os trâmites previstos<br />
na Lei evocando que pretendem construir algo que é de<br />
interesse público. A situação é pior quando em causa está<br />
o Investimento Directo Estrangeiro. Assim, a fiscalização<br />
deve desempenhar um papel que faça a diferença neste<br />
processo que acaba de iniciar”, repisou.<br />
A Lei é mal interpretada ou será mesmo preciso mexer-lhe?<br />
Alda Salomão, assessora jurídica do Centro Terra Viva,<br />
também com domínio da Lei e das discussões que há em<br />
torno do tema, faz uma abordagem contrária à de Edson<br />
Cortez e de António Francisco sobre a protecção dos direitos<br />
das comunidades relativos à terra. Para a jurista e<br />
ambientalista, o verdadeiro sentido da reforma está na interpretação<br />
da Lei. Explica que o princípio de que a terra e<br />
outros recursos naturais são propriedade do Estado tem, na<br />
própria Lei, a clarificação de que a titularidade da propriedade<br />
de recursos sobre a terra pelo Estado é feita em nome<br />
e a favor dos cidadãos. “Portanto, clarifica também que o<br />
Estado é uma entidade subordinada aos cidadãos. Aliás, o<br />
conceito de Estado integra cidadãos e instituições no território<br />
nacional. Ou seja, a propriedade pública da terra e<br />
dos recursos naturais pelo Estado, no nosso contexto, significa,<br />
necessariamente, a propriedade colectiva dos cidadãos<br />
sobre a terra e os seus recursos. Isto está claro na Constituição<br />
da República, Política e Lei de Terras, mas muitas<br />
vezes há uma confusão conceitual. Pensa-se que o facto de<br />
a terra ser do Estado, este faz o que quiser sem precisar de<br />
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25
Nação<br />
“Enquanto o Estado assumir a posição de<br />
que a governação é participativa, temos de<br />
reconhecer como um aspecto positivo”<br />
consultar ninguém porque, por um lado, confunde-se o<br />
conceito de Estado e confunde-se o princípio que ditou o<br />
estabelecimento da propriedade do Estado sobre a terra”,<br />
esclarece a responsável, defendendo, também, maior fiscalização<br />
do cumprimento deste princípio legal.<br />
Outros méritos da Lei de Terras<br />
Mesmo a reforçar a ideia de que a Lei é segura, Alda Salomão<br />
faz menção a outros aspectos que carecem de melhor<br />
interpretação para resolverem as ineficiências de gestão<br />
e dos conflitos. Refere-se, por exemplo, ao poder e peso que<br />
se atribui aos cidadãos no processo de tomada de decisões<br />
respeitantes ao acesso e o uso da terra.<br />
“Temos um princípio de que o processo de tomada de decisões<br />
é participativo. Isto é, os cidadãos e as comunidades<br />
têm um papel, um lugar a ocupar e alguma coisa a dizer,<br />
contribuindo para as decisões que são tomadas sobre como<br />
é que a terra é usada, por quem, quando e como”, elogiou.<br />
E acrescenta que “enquanto o Estado assumir a posição e<br />
a opção de que a governação será feita de forma participativa<br />
e faz todo o esforço nesse sentido, então isso é um<br />
aspecto a notar, a destacar e a reconhecer como positivo”.<br />
Além do mais, o quadro político-legal estabelece que os<br />
recursos devem ser usados para a promoção do desenvolvimento<br />
nacional e o papel de destaque é atribuído ao<br />
sector privado, que também tem de aceder à terra e aos<br />
seus recursos para a geração de rendimentos e de lucros.<br />
Mas... se a Lei for de facto alterada?<br />
A E&M não traz a voz do sector privado a propósito do<br />
que quer ver mudado ao seu favor no novo figurino da<br />
Lei de Terras, porque o presidente do Pelouro da Terra e<br />
Ambiente na CTA (entidade que representa, oficialmente,<br />
o sector privado nacional), Bruno Vedor, integrado na missão<br />
da auscultação pública, não tinha reagido à solicitação<br />
da E&M para se pronunciar até ao fecho desta edição. Mas,<br />
recorrendo ao já conhecido anseio do empresariado, basta<br />
avançar que a maior queixa reside na dificuldade de<br />
acesso à terra, daí a necessidade de definir regras que ajudem<br />
a equilibrar as disputas entre o sector privado e as<br />
comunidades.<br />
O director-geral do CIP, Edson Cortez, lança uma crítica<br />
importante em relação ao timing em que todo este movimento<br />
acontece: “É contraditório ter de começar um<br />
processo de auscultação de pessoas numa altura em que<br />
não as podemos reunir e aqui prevemos que possamos entrar<br />
em choque, porque as pessoas geralmente lesadas em<br />
casos de conflito de terra são, na sua maioria, camponeses,<br />
nativos que detêm parcelas de terra durante vários anos<br />
e cuja posse vai transitando de geração em geração, e que<br />
têm conhecimento profundo sobre a maneira como o processo<br />
de desapropriação se desencadeia. São pessoas que<br />
deviam ser ouvidas sem quaisquer limitações, neste caso<br />
impostas pela pandemia do Covid-19, para que se possa fazer<br />
uma reforma da Lei que resolva os reais problemas<br />
das comunidades”, alertou o pesquisador.<br />
26<br />
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OPINIÃO<br />
A revisão da política da Terra em<br />
Moçambique — desafios e oportunidades<br />
Paula Duarte Rocha & Ana Berta Mazuzes • HRA Advogados<br />
em julho do corrente ano, o Presidente da República<br />
de Moçambique, Filipe Jacinto Nyusi, lançou<br />
a auscultação pública para a revisão da política<br />
da terra em Moçambique, que culminará<br />
com a revisão da Lei n.º 19/97 de 1 de outubro,<br />
Lei de Terras e demais legislações que regulam<br />
o processo de gestão de terra no país.<br />
Moçambique é um país marcado por uma forte herança do<br />
regime socialista que vigorou entre 1975 e 1990, e a aprovação<br />
da actual política nacional de terras, em 1996, constituiu<br />
uma consagração dos princípios já em vigor desde<br />
essa era, que se desdobram nas seguintes linhas mestras:<br />
A propriedade do Estado sobre a terra, já consagrada na<br />
Constituição de 1975 e 1990;<br />
A protecção do direito das comunidades locais sobre a terra; e<br />
O Direito de acesso à terra a todos os moçambicanos.<br />
A Lei de Terras, aprovada pela Lei n.º 19/97 de 1 de outubro<br />
Lei de Terras, consagrou o regime de acesso e transmissão<br />
da terra, respeitando os limites já estabelecidos pela Constituição<br />
da República e política nacional de terras, tendo<br />
sido igualmente aprovado o seu Regulamento, através do<br />
Decreto n.º 66/98 de 8 de Dezembro, que estabelece de forma<br />
minuciosa os procedimentos para o acesso a terra e a<br />
sua transmissão. No entanto, o Regulamento da Lei de Terras<br />
aplica-se apenas as zonas não abrangidas pelas áreas<br />
sob jurisdição dos Municípios. Para estas áreas, é aplicado<br />
o Regulamento do Solo Urbano, aprovado através do Decreto<br />
n.º 60/2006 de 26 de dezembro.<br />
Nos termos da Lei de Terras e do seu Regulamento, tanto<br />
as pessoas singulares e colectivas nacionais e estrangeiras,<br />
podem ser titulares Direito de Uso e Aproveitamento<br />
da Terra “DUAT”. As pessoas singulares nacionais podem<br />
adquirir o DUAT por ocupação de boa-fé ou ocupação pelas<br />
comunidades locais, e por via da autorização do pedido<br />
pelas autoridades competentes. Já as pessoas colectivas<br />
e pessoas singulares estrangeiras, podem adquirir o<br />
DUAT por via da autorização do pedido pelas autoridades<br />
competentes.<br />
Para além das formas de acesso previstas nos instrumentos<br />
referidos anteriormente, o Regulamento do Solo Urbano<br />
prevê outras formas de aquisição do DUAT dentro dos<br />
espaços urbanos, nomeadamente: o sorteio, a hasta pública<br />
e a negociação particular.<br />
Quanto as formas de transmissão do DUAT, a Lei e os respectivos<br />
regulamentos estabelecem duas principais formas:<br />
(i) por via de herança ou (ii), por via da transmissão<br />
de prédios urbanos que resulta na transmissão automática<br />
do DUAT.<br />
A propriedade exclusiva do Estado sobre a terra, assim<br />
como as formas de aquisição e transmissão, sempre foram<br />
apontadas como factores que influenciam de forma<br />
negativa o ambiente de negócios em Moçambique, dada<br />
a elevada insegurança por parte dos agentes económicos,<br />
principalmente os investidores estrangeiros, pois resulta<br />
numa elevada burocracia no processo de aquisição<br />
do DUAT, na intervenção de diferentes entidades, numa<br />
elevada discricionariedade da administração pública e,<br />
em limitações quanto à transmissão do direito. A título<br />
de exemplo, a aquisição do DUAT para implementação de<br />
projectos de investimento carece de uma autorização pela<br />
entidade competente, que deve ser antecedida por uma<br />
consulta das comunidades locais, para o caso de espaços<br />
que se situam fora das áreas municipais. A obrigatoriedade<br />
de consulta pelas comunidades locais visa evitar que<br />
sejam concedidos DUATs em espaços já ocupados pelas comunidades<br />
locais; no entanto, os investidores por vezes enfrentam<br />
resistência por parte destas comunidades, o que<br />
vem a constituir um entrave para o processo de aquisição.<br />
Por outro lado, há uma dualidade de critérios entre o regime<br />
aplicado para as zonas urbanas e para as zonas que<br />
não são abrangidas pelas áreas municipais. Enquanto a Lei<br />
de Terras e o seu Regulamento prevêem duas formas de<br />
A Lei de Terras prevê apenas duas formas de aquisição do DUAT: a ocupação<br />
e a autorização do pedido. No entanto, o seu Regulamento acaba por prever<br />
outras formas que não estão previstas na Lei, o que não deveria acontecer<br />
28<br />
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A propriedade exclusiva do Estado sobre a terra, assim como as formas de aquisição e transmissão são, muitas vezes, um entrave ao ambiente de negócios em Moçambique<br />
aquisição, a ocupação ou autorização do pedido, o Regulamento<br />
do Solo urbano vai mais além, ao prever outras formas,<br />
designadamente: sorteio, hasta pública e negociação<br />
particular. A Lei de Terras prevê apenas duas formas de<br />
aquisição do DUAT, a ocupação e a autorização do pedido; no<br />
entanto, o seu Regulamento vem a prever outras formas<br />
que não estão previstas na Lei, o que não deveria acontecer.<br />
As condições impostas às pessoas colectivas quanto à existência<br />
de um projecto e prazos para implementação dos<br />
projectos concedem à administração pública maior discricionariedade<br />
tanto na atribuição do DUAT como na revogação<br />
do mesmo. Por outro lado, Moçambique é um país<br />
caracterizado por um elevado número de conflitos de terra<br />
devido à falta de um sistema que permita às entidades<br />
terem controlo sobre as atribuições ou aquisições de DUAT,<br />
o que leva à existência de múltiplas atribuições do DUAT<br />
sobre as mesmas parcelas.<br />
A sociedade civil, assim como o sector empresarial, tem<br />
vindo a lançar apelos para uma revisão da Lei de Terras,<br />
do modo a eliminar barreiras no acesso à terra tanto pelas<br />
populações assim como pelos agentes económicos. Na<br />
comemoração dos 20 anos da Lei de Terras, foi lançado<br />
oficialmente o processo de revisão da Lei de Terras, e recentemente<br />
o Presidente da República lançou oficialmente<br />
o processo da auscultação pública da revisão dessa Lei.<br />
Nessa ocasião, reiterou que a revisão “não deixará cair<br />
os princípios da propriedade do Estado sobre a Terra e<br />
da protecção as comunidades locais”, eliminando assim as<br />
expectativas em torno do debate sobre a possibilidade de<br />
privatização da terra com vista à melhoria do ambiente<br />
de negócios. Não obstante este facto, durante os mais de 20<br />
anos em que a Lei de Terras está em vigor, vários outros<br />
problemas foram identificados que carecem de cobertura<br />
legal nesta revisão. Para alem dos já mencionados, questões<br />
como a possibilidade e procedimentos para desanexação<br />
da terra e a possibilidade de transmissão de DUAT por<br />
via da cessão de exploração são alguns pontos-chave que<br />
não poderão ser negligenciados nesta revisão.<br />
Embora o Estado tenha optado por manter o regime actualmente<br />
em vigor – o que se entende, tendo em conta<br />
os problemas que a privatização da terra poderia trazer<br />
uma vez que a maior parte da população é pobre e teria<br />
dificuldades de ter acesso à terra se esta fosse comercializada<br />
— esta revisão é uma oportunidade para melhorar<br />
todos os aspectos que constituem uma barreira ao acesso<br />
e aproveitamento da terra por parte das pessoas singulares<br />
e colectivas.<br />
Por outro lado, é uma revisão desafiante, uma vez que as<br />
linhas mestras até aqui lancadas não vão ao encontro das<br />
expectativas do sector empresarial, que vinha defendendo<br />
a tese da privatização da terra. Nisto, o governo deverá<br />
encontrar um balanço entre os princípios que pretende<br />
manter e a eliminação dos procedimentos e as limitações,<br />
tanto no acesso como na transmissão do DUAT.<br />
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Nação<br />
“Não precisamos de mexer na Política<br />
de Terras, temos é de clarificar a Lei”<br />
Alda Salomão<br />
Assessora jurídica do Centro Terra Viva<br />
Texto Celso Chambisso • Fotografia Mariano Silva & D:R:<br />
a<br />
jurista,<br />
ambientalista<br />
e fundadora do Centro<br />
Terra Viva – uma<br />
Organização Não Governamental<br />
criada em 2002<br />
para colmatar lacunas de<br />
educação, informação, preservação e<br />
aplicação de legislação ambiental – já<br />
vem acompanhando a discussão sobre<br />
a exploração da terra há vários anos.<br />
Alda Salomão integrou, inclusive, um<br />
grupo de peritos que produziu o Relatório<br />
de Avaliação da Governação<br />
de Terras em Moçambique 2015-2016,<br />
encomendado pelo Banco Mundial e<br />
pela FAO com o objectivo de avaliar o<br />
desempenho interno sobre a matéria.<br />
Mesmo reconhecendo os problemas<br />
que há, Alda Salomão não vê razões<br />
para se alterar a legislação, mas apon-<br />
ta uma série de outros campos de<br />
intervenção a serem considerados para<br />
assegurar uma melhor exploração<br />
da terra. A preparação dos Recursos<br />
Humanos das instituições públicas em<br />
termos de capacidade jurídica é um<br />
deles.<br />
Quando falamos na legislação em<br />
Moçambique ouvimos sempre dizer:<br />
“Fizemos um bom trabalho no<br />
alinhamento dos nossos princípios<br />
e valores às disposições legais, políticas,<br />
etc., mas a implementação<br />
deixa muito a desejar”. Com a Lei<br />
de Terras não é diferente. Afinal, o<br />
que é que falhou no processo da sua<br />
formulação?<br />
Há duas dimensões de análise. Uma<br />
tem que ver com os aspectos intra-legais,<br />
isto é, relacionados com o conteúdo<br />
dos instrumentos político-legais. Ou<br />
seja, quais são as deficiências que encontramos<br />
no texto da política ou no<br />
texto da Lei ou dos regulamentos sobre<br />
a terra, e que impedem a sua implementação.<br />
A outra dimensão de<br />
análise tem que ver com questões extra-legais.<br />
Dizem respeito aos problemas<br />
que estamos a enfrentar no quadro<br />
da implementação da Lei mas que<br />
não têm que ver com o seu conteúdo.<br />
Como tal, é importante esmiuçarmos<br />
estes aspectos todos para evitar<br />
que embarquemos num processo de<br />
revisão de uma política que não tem<br />
quaisquer problemas. Ou seja, os problemas<br />
que constatamos no âmbito da<br />
implementação da legislação não decorrem<br />
de fragilidades ao nível da po-<br />
30<br />
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Lei de Terras<br />
Em concreto, o que é que deve mudar?<br />
O que há por melhorar e de<br />
que maneira?<br />
Tenho defendido que é importante que<br />
a fundamentação da revisão da Lei seja<br />
muito clara. Há problemas de interpretação<br />
do seu conteúdo e dificuldades<br />
extra-legais. Por isso é que me parece<br />
que a prioridade, neste momento,<br />
é rever a Lei de terras e não a política.<br />
Por exemplo, o conceito do Estado e a<br />
sua propriedade sobre a terra e os recursos<br />
naturais precisa de estar muito<br />
claro. A legislação não contém este<br />
conceito porque penso que se concluiu<br />
que não era necessário que essa definição<br />
fosse incluída ao nível da Lei de<br />
Terras, mas na verdade há uma série<br />
de problemas decorrentes da má interpretação<br />
e confusão sobre o conceito<br />
de Estado. Os representantes do Estado,<br />
por exemplo, confundem Governo<br />
com Estado, por um lado e, por outro,<br />
não percebem os objectivos para<br />
os quais a propriedade pública foi instituída.<br />
Também há a questão do conceito<br />
de comunidade local. Nós dizemos<br />
que as comunidades locais têm o<br />
direito à Terra com base em normas<br />
e práticas costumeiras, mas há muito<br />
debate e controvérsia à volta da entidade<br />
a que chamamos comunidade local<br />
que é uma entidade jurídica titular<br />
de direitos reconhecidos pelo Estado.<br />
É por aqui que se deve explicar a<br />
origem da ineficácia na gestão da<br />
terra enquanto fonte de riqueza e<br />
a dificuldade de arbitrar e conter<br />
os crescentes conflitos?<br />
Veja: questiona-se o que é comunidade<br />
local, quem é membro ou não desta<br />
comunidade. A relação entre comunidade<br />
local enquanto entidade jurídica<br />
e outros actores é muito pouco clara.<br />
Isto é, enquanto actor no processo<br />
de gestão e administração de terras, a<br />
comunidade local não está muito bem<br />
posicionada apesar de a constituição<br />
poderes e responsabilidades institucionais<br />
sobre os limites de poder do Governo<br />
central, das autoridades tradicionais,<br />
dos governos distritais, etc., e a<br />
relação entre todos estes actores bem<br />
como a destes com o sector privado nacional<br />
e/ou estrangeiro.<br />
E quando se diz que é obrigação do<br />
Estado e das empresas consultar os<br />
cidadãos e as comunidades locais<br />
sobre os processos relativos à exploração<br />
da terra, o que significa?<br />
Qual é o valor da consulta?<br />
Isso também não está claro. Uma leitura<br />
integrada de todas as disposições<br />
da constituição da Política e da Lei permitem<br />
facilmente chegar à conclusão<br />
de que o consultado tem o direito de<br />
dizer “não”. Mas não está claro na Lei,<br />
e muitas vezes não se dá ao consultado<br />
a prerrogativa de dizer “não”. Geralmente,<br />
o Governo leva às comunidades,<br />
por exemplo, investidores com<br />
projectos de investimento e impõe que<br />
estas cedam parcelas de terra, sem<br />
mesmo explicar-lhes sobre os seus direitos<br />
e obrigações nem informá-las<br />
sobre as opções de posicionamento,<br />
previstas na Lei, que podem tomar.<br />
Assim, há uma percepção generalizada,<br />
sobretudo no meio rural, de que a<br />
terra é do Estado e que se o Governo a<br />
É preciso clarificar conceitos, poderes e responsabilidades institucionais<br />
sobre os limites de poder do Governo central, das autoridades tradicionais,<br />
dos governos distritais, etc. e a relação entre todos estes actores, e destes<br />
com o sector privado nacional e estrangeiro<br />
lítica (entenda-se política como a base<br />
operacionalizada pela Lei). E esta é a<br />
situação em que nos encontramos.<br />
lhe atribuir direitos e poderes de intervenção<br />
na administração de terras<br />
e no acesso e uso de recursos. Quando<br />
se chega à questão da tomada de decisões<br />
sobre processos ou intervenções<br />
que acontecem em terras comunitárias<br />
nunca fica claro quem é que deve<br />
tomar as decisões. Afinal, até onde<br />
é queasas as entidades que gerem a<br />
terra com base em práticas costumeiras<br />
têm poder decisório? Se uma entidade<br />
externa pretender ocupar terras<br />
comunitárias, quem é que determina<br />
se a sua terra é ocupada ou não?<br />
Qual é o peso da decisão da autoridade<br />
comunitária perante o Governo? Pode<br />
o líder comunitário dizer que não precisa<br />
de um determinado investimento<br />
em razão de existirem outras prioridades?<br />
É preciso clarificar conceitos,<br />
requerer para quaisquer fins, não<br />
há o que fazer senão ceder. Ao adoptar<br />
instrumentos legais desta natureza,<br />
que têm impacto muito profundo<br />
na vida das pessoas e das comunidades,<br />
uma das principais obrigações<br />
do Estado deveria ser assegurar que<br />
todos os cidadãos e famílias deste país<br />
conheçam pelo menos as disposições<br />
legais da Lei de Terras que é a base<br />
da vida social, cultural e económica da<br />
Nação. Os cidadãos têm de saber onde<br />
se posicionam de ponto de vista legal<br />
no que diz respeito à terra, o seu principal<br />
meio de subsistência. Têm de saber<br />
como agir perante as instituições<br />
do Estado e do sector privado, conhecerem<br />
as suas responsabilidades e direitos.<br />
Por muito boa que a legislação<br />
seja, se os cidadãos não a conhecem e<br />
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31
Nação<br />
cos ou privados com as comunidades.<br />
E teremos os agentes do Estado a<br />
essa imposição. Isto para dizer que o<br />
nível de consciência, de integridade<br />
pública e de internalização da importância<br />
do conceito do Estado de Direito<br />
é fundamental. Neste momento, ainda<br />
não atingimos o ponto em que todos os<br />
agentes do Estado conhecem e dominam<br />
a legislação e actuam nos termos<br />
prescritos pela mesma. Temos ministros,<br />
governadores, directores provinciais,<br />
administradores distritais, etc.,<br />
que não conhecem o quadro legal sobre<br />
terras. É preciso preparar os Recursos<br />
Humanos das instituições públicas<br />
em termos de capacidade jurídica.<br />
Mesmo que a Lei seja revista, se os agentes do Estado não prestarem<br />
atenção à obrigatoriedade de actuarem permanentemente nos termos da<br />
Lei, continuaremos a ter problemas de a Lei impor que haja negociações<br />
entre investidores públicos ou privados com as comunidades<br />
não sabem usá-la, não chegaremos onde<br />
queremos chegar.<br />
Então coloca-se, também, a necessidade<br />
de adoptar mecanismos de<br />
controlo do cumprimento da Lei,<br />
medida que tem sido defendida por<br />
várias entidades. Entende ser este<br />
o caminho a seguir na revisão que<br />
se está a preparar?<br />
A capacidade de resposta do Governo<br />
está muito aquém de atender às solicitações<br />
dos cidadãos, daí resultarem os<br />
conflitos entre as comunidades, entre<br />
estas e os investidores, etc., por falta de<br />
fiscalização cuidada. É importante que<br />
as instituições e o Governo, a todos os<br />
níveis, tenham esta preocupação como<br />
prioridade. Por exemplo, em 2015 o<br />
Presidente tinha anunciado cinco milhões<br />
de títulos e o resultado, no fim do<br />
quinquénio, está muito aquém disso.<br />
A pergunta que se impõe é: porque<br />
é que estamos a falhar em relação a<br />
uma prioridade tão grande quanto a<br />
protecção de direitos? Porque é que<br />
não conseguimos delimitar terras para<br />
todas as comunidades do País? Qual<br />
é a dificuldade, desde 1997, de termos o<br />
território dos distritos organizados do<br />
ponto de vista sociojurídico se todas as<br />
comunidades estão sob alguma legislação<br />
administrativa que pode fazê-<br />
-lo? A questão da clarificação da ocupação<br />
territorial e do seu mapeamento<br />
para prevenir conflitos não está a<br />
ser prioridade. A administração pública<br />
deve ter a capacidade de emitir títulos<br />
de uso e aproveitamento de terras<br />
sempre que for solicitado ou requerido,<br />
porque está escrito na Política<br />
e na Lei. Mas não é o que está a<br />
acontecer.<br />
Sente que estes pontos todos estão a<br />
ser tomados em conta pelo Governo<br />
no processo de reforma agora na<br />
fase de auscultação pública? Existe<br />
ou não a consciência dos reais<br />
problemas?<br />
É fundamental avaliar a maneira como<br />
os agentes do Estado se conformam<br />
com a legislação na sua actuação diária.<br />
Mesmo que a Lei seja revista, se<br />
os agentes não prestarem atenção à<br />
obrigatoriedade de actuarem permanentemente<br />
nos termos da mesma,<br />
continuaremos a ter problemas<br />
na imposição, prevista legalmente, de<br />
negociações entre investidores públi-<br />
É esta a lacuna que explica os problemas<br />
ao nível do ordenamento<br />
territorial que se têm testemunhado<br />
a todos os níveis?<br />
Em parte, sim. Não estamos a organizar<br />
o território e as populações para<br />
termos uma gestão pacífica de terras<br />
e recursos naturais. Não estamos a<br />
adoptar instrumentos que foram criados<br />
pela Política e pela Lei que deveriam<br />
ajudar a orientar não só a tomada<br />
de decisões ao nível político, mas<br />
também ao nível económico como, por<br />
exemplo, os planos de ordenamento<br />
territorial e os planos de uso de terras.<br />
Até hoje, com 45 anos de independência,<br />
os distritos não têm planos de ordenamento<br />
de terra para assegurar<br />
a prevenção de conflitos. E este, mais<br />
uma vez, não é um problema relacionado<br />
com a própria Lei.<br />
Há quem fale em fragilidades ao<br />
nível da responsabilização como<br />
caminho para reorientar as<br />
boas práticas de gestão da terra…<br />
De acordo! A ligeireza com que se trata<br />
a questão da violação de direitos<br />
tem de ser resolvida e a responsabilização<br />
é aqui chamada. Neste momento,<br />
quando os direitos dos cidadãos são<br />
violados, os espaços de recursos para<br />
requerer protecção são complicadíssimos.<br />
A maior parte da população não<br />
sabe sequer por onde começar para<br />
resolver um problema de violação dos<br />
seus direitos. Os que podem até vão<br />
queixar-se às televisões, mas não é assim<br />
que devia ser. Há, igualmente, que<br />
considerar a logística de implementação<br />
deste quadro político-legal. É preciso<br />
ter recursos materiais e financeiros.<br />
Se isto não acontece como é que faremos<br />
a fiscalização dos processos?<br />
32<br />
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Nação<br />
“É necessário fortalecer os<br />
mecanismos que garantem a função<br />
social e económica da terra”<br />
Idah Pswarayi-Riddihough<br />
Directora do Banco Mundial para Moçambique<br />
Texto de Celso Chambisso• Fotografia de Mariano Silva<br />
numa das primeiras entrevistas<br />
que concede à<br />
comunicação social desde<br />
que assumiu a pasta<br />
de directora do Banco<br />
Mundial para Moçambique,<br />
há pouco mais de um mês, Idah<br />
Pswarayi-Riddihough junta-se aos que<br />
elogiam a Lei moçambicana de Terras,<br />
mas admite que há muito espaço ainda<br />
para ajustar a estrutura legal e institucional.<br />
O Banco Mundial é uma das<br />
organizações multilaterais mais presentes<br />
em assuntos ligados à gestão de<br />
terras em diversos países.<br />
Em Moçambique, a instituição também<br />
tem um grande envolvimento estando<br />
ligado a diversos projectos e estudos<br />
que visam aperfeiçoar a legislação nacional<br />
de terras e a maximização do<br />
seu aproveitamento enquanto recurso<br />
capaz de promover o desenvolvimento<br />
económico, com destaque para a realização<br />
da “Avaliação da Governação<br />
de Terras em Moçambique Relatório<br />
2016”, que envolveu uma equipa de peritos<br />
nacionais de várias instituições<br />
na avaliação dos desafios internos.<br />
Uma pesquisa do Observatório do Meio<br />
Rural, intitulada “Discursos à volta do<br />
regime de propriedade da Terra em<br />
Moçambique”, e que foi publicado há<br />
cinco anos, recorda que uma tendência<br />
recorrente em muitos países é que<br />
ainda que a compra e venda da terra<br />
não sejam formalmente permitidas, estas<br />
existem e constituem preocupação<br />
para muitas Organizações da Sociedade<br />
Civil, populações e administrações<br />
de Estados como o Burquina Fasso, Mali,<br />
Ruanda, Costa do Marfim e Moçambique,<br />
por exemplo. Em relação a este<br />
último, ainda de acordo com a publicação,<br />
o valor da terra é influenciado<br />
pela presença ou não de um título de<br />
cadastro e pelos custos de acesso, sendo<br />
os preços nos mercados de terras rurais<br />
os mais baixos. O Relatório desta<br />
mesma pesquisa diz ainda que “para o<br />
Banco Mundial, a existência dos mercados<br />
de terra é desejável visto que estes<br />
podem melhorar a eficácia das transferências<br />
de terras e facilitar o acesso<br />
ao crédito para realizar investimentos.<br />
Reduzindo a assimetria de informação<br />
sobre a terra, as transacções<br />
tornam-se menos custosas de implementar,<br />
aumentando assim a liquidez<br />
do mercado de terras e permitindo a<br />
transferência das terras dos agricultores<br />
menos produtivos para os mais<br />
produtivos”.<br />
Ao contrário deste posicionamento, a<br />
directora do Banco Mundial apresenta<br />
uma visão neutra e pró-desenvolvimento,<br />
isto é, não atribui relevância ao<br />
tipo de regime de gestão da terra, mas<br />
sim ao alcance que pode ter no bem-estar<br />
geral.<br />
Em que medida o Banco Mundial está<br />
envolvido nas iniciativas, para a<br />
nova reforma legal, já iniciadas, nomeadamente<br />
a auscultação agora<br />
lançada pelo Presidente Nyusi?<br />
O Banco Mundial está a apoiar o processo<br />
de revisão da Política Nacional<br />
de Terras e de reforma legal como<br />
A Lei atribui poderes significativos de gerenciamento de terras às<br />
comunidades, mas não fornece uma orientação para o estabelecimento<br />
de uma entidade local que não seja a própria comunidade conforme a Lei<br />
parte do Projecto de Administração de<br />
Terras financiado pelo Banco através<br />
do Projecto MozLand. O apoio é direccionado<br />
especificamente para garantir<br />
um processo de consulta amplo, inclusivo<br />
e transparente, que inclua todas<br />
as partes interessadas dos sectores<br />
público e privado, e líderes da Sociedade<br />
Civil e da comunidade, nos níveis<br />
nacional, local e comunitário, e<br />
utilizando plataformas de consultas<br />
formais e informais. Esse esforço inclui<br />
o apoio ao Fórum Consultivo da<br />
Terra à Conferência Nacional da Terra<br />
e à Reunião Nacional de Autoridades<br />
Tradicionais e Outros Líderes Comunitários<br />
em Terra, a serem organizados<br />
no processo de consulta pública.<br />
O Banco Mundial, por meio do Projecto<br />
MozLand, fornece ainda assistência<br />
técnica especializada no contexto<br />
da revisão da política nacional e da legislação<br />
de terra por meio da elaboração<br />
de estudos técnicos, conforme solicitado<br />
e acordado com a Comissão para<br />
a Revisão da Política Agrária Nacional,<br />
que é a entidade responsável por<br />
coordenar, preparar e conduzir o processo<br />
de consulta.<br />
Uma breve avaliação dos aspectos<br />
relevantes, negativos e positivos<br />
da Lei de Terras em Moçambique, a<br />
que conclusões leva?<br />
É importante ressaltar que a Lei de Terras<br />
é bastante progressista em termos<br />
de reconhecimento dos direitos costumeiros<br />
da terra. Acreditamos que o<br />
País é amplamente considerado como<br />
tendo uma das políticas de terra e estruturas<br />
legislativas mais progressistas<br />
para uma governança da terra sustentável<br />
e equitativa em África.<br />
De acordo com a Lei de Terras de 1997<br />
34<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Lei de terras<br />
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35
Nação<br />
e a Constituição de 2004, os cidadãos e<br />
as comunidades locais têm reconhecimento<br />
estatutário dos seus direitos de<br />
usar e se beneficiar da terra que ocupam<br />
(DUAT), com base na ocupação costumeira<br />
e de boa fé. Os DUAT obtidos<br />
por meio da ocupação costumeira e de<br />
boa fé são reconhecidos e protegidos<br />
por Lei. Essas formas costumeiras e de<br />
boa fé de ocupação ainda são as principais<br />
maneiras pelas quais os pobres<br />
rurais obtêm direitos relativamentes<br />
à terra.<br />
No entanto, a Lei e os regulamentos ainda<br />
apresentam lacunas significativas,<br />
particularmente no que diz respeito à<br />
representação legal das comunidades e<br />
ao gerenciamento de terras comuns e<br />
recursos naturais. Não obstante os progressos<br />
alcançados até agora, Moçambique<br />
ainda tem espaço para ajustar a<br />
estrutura legal e institucional.<br />
A Lei de Terras atribui poderes e responsabilidades<br />
significativos de gerenciamento<br />
de terras e recursos naturais<br />
às comunidades, mas não fornece uma<br />
estrutura ou orientação para o estabelecimento<br />
de uma entidade local, além<br />
da “comunidade local”, conforme definido<br />
vagamente na Lei.<br />
Que implicações tem a herança socialista<br />
na eficácia da actual política<br />
e legislação de terras no País. Ou<br />
seja, de que forma impacta no seu<br />
uso sustentável, quer para a actividade<br />
económica, quer na salvaguarda<br />
da posse segura?<br />
Um dos legados do passado de Moçambique<br />
é a sua legislação progressista<br />
e actual em relação à terra. O Banco<br />
Mundial apoia esse processo consultivo<br />
que visa rever a eficácia da política<br />
e legislação actual, com vista a<br />
abordar questões relacionadas com a<br />
sustentabilidade e segurança da posse,<br />
e aguarda com expectativa o resultado<br />
desse processo.<br />
Que conjunto de mais-valias o País<br />
poderia colher se a terra fosse privatizada,<br />
o que garantidamente<br />
não vai acontecer, segundo avisou o<br />
Presidente da República no acto do<br />
lançamento da auscultação pública<br />
para a sua revisão?<br />
O Banco Mundial considera que o importante<br />
é que a revisão da Lei de<br />
Terras aperfeiçoe mecanismos para,<br />
de um lado, garantirem o interesse<br />
público da terra e, de outro, assegurarem<br />
que o uso e aproveitamento<br />
da terra pelo sector privado (indivíduo,<br />
empresas, etc.) seja feito de forma<br />
transparente, eficiente e justa.<br />
Não podendo ser privatizada, e estando<br />
garantido que haverá a protecção<br />
da posse pelas comunidades,<br />
que outros factores devem fazer<br />
parte do novo figurino da Lei para<br />
garantir uma exploração mais<br />
sustentável?<br />
Moçambique, à semelhança de muitos<br />
países, pode continuar com o quadro<br />
actual onde a terra é um bem público,<br />
mas reconhecer na Lei que existe<br />
esse mercado da terra sem assim<br />
estar a privatizá-la. É, portanto, necessário<br />
fortalecer os mecanismos para<br />
garantir a função social e económica<br />
da terra, seja ela sob direito público<br />
ou privado. O Banco considera que<br />
o importante é proteger os direitos de<br />
diferentes titulares de posse, incluindo<br />
usos alternativos da terra, com regulamentação<br />
clara sobre direitos e<br />
responsabilidades, uso, acesso fácil a<br />
informações e mecanismos transparentes<br />
para a resolução de disputas<br />
para todos os detentores de posse e<br />
para todos usuários da terra.<br />
Uma das preocupações do Banco<br />
Mundial, expressas no Relatório de<br />
“Avaliação da Governação de Terras<br />
em Moçambique 2016”, tem que<br />
ver com a resolução dos conflitos<br />
de terra. Um trecho do documento<br />
revela que, em 2006, o Banco Mundial<br />
fazia um diagnóstico sobre a<br />
questão do acesso à terra em Moçambique<br />
que concluiu que a Lei de<br />
Terras não promoveu investimentos<br />
de longo prazo na agricultura,<br />
nem há evidências de que tenha<br />
36<br />
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Lei de terras<br />
empoderamento e desenvolvimento<br />
da comunidade local, pelo que o projeto<br />
MozLand precisa de ser complementado<br />
por outros programas para<br />
estimular ainda mais o investimento e<br />
o desenvolvimento económico.<br />
E quanto à possibilidade de tanto os<br />
pequenos como os grandes agricultores<br />
usarem a terra como garantia<br />
para empréstimos, que posicionamento<br />
o Banco Mundial defende?<br />
A experiência internacional mostra<br />
que a formalização da posse da terra<br />
através da emissão de títulos é um<br />
elemento importante das políticas de<br />
desenvolvimento rural, pois pode trazer<br />
segurança fundiária e incentivar<br />
investimentos.<br />
A experiência internacional mostra,<br />
igualmente, que o uso da terra como<br />
garantia para empréstimos depende<br />
de uma série de factores que são<br />
específicos a cada circunstância, como<br />
sejam a oferta de linhas de crédito<br />
adequadas, uma demanda efectiva<br />
para tais serviços financeiros e<br />
a capacidade das famílias de pagar<br />
as suas dívidas. Como tal, pode beneficiar<br />
alguns agricultores, mas eventualmente<br />
não será bom para todos,<br />
pelo que carece de mais análises para<br />
um posicionamento mais preciso.<br />
mercado da terra urbana. Feito isso, o<br />
estudo comparou a fórmula actual de<br />
cálculo do IPRA, que não incorpora o<br />
valor da terra, com modelos praticados<br />
na maioria dos cidades no mundo<br />
onde o cálculo do imposto da propriedade<br />
urbana é feito sobre o valor<br />
de mercado. Isso levou a concluir que<br />
cidades como Maputo e Matola poderiam<br />
aumentar a arrecadação do<br />
IPRA em até dez vezes se seu cálculo<br />
levasse em conta o valor já praticado<br />
nessas cidades. Outra conclusão do estudo<br />
foi que por não levar em conta<br />
a terra na cobrança do IPRA, as cidades<br />
ficam sem um instrumento muito<br />
importante para incentivar um uso<br />
mais produtivo do solo urbano. Muitas<br />
cidades no mundo não apenas cobram<br />
um imposto sobre propriedade de terrenos<br />
subaproveitados, como também<br />
têm mecanismos de progressividade<br />
que aumentam em até dez vezes a<br />
alíquota da cobrança sobre essas terras<br />
improdutivas. Se essas reformas<br />
fossem implementadas, os municípios<br />
fortaleceriam muito a sua base de receitas,<br />
e assim teriam mais capacidade<br />
para investir em infra-estruturas<br />
urbanas e habitação que hoje é insuficiente<br />
para a maioria da população.<br />
Isso também daria mais incentivo ao<br />
sector privado para construir, ao in-<br />
O importante é proteger os direitos de diferentes titulares de posse,<br />
incluindo usos alternativos da terra, com regulamentação clara sobre<br />
direitos e responsabilidades, uso, acesso fácil a informações...<br />
proporcionado uma distribuição<br />
equitativa da terra… O Banco acredita<br />
que o Governo detém, agora,<br />
instrumentos para resolver os conflitos<br />
recorrentes?<br />
A adopção de um programa sistemático<br />
e bem direccionado de delimitação<br />
de terras comunitárias pode gerar investimentos<br />
mais eficientes, tanto na<br />
esfera pública quanto na privada, com<br />
impactos positivos associados. Os processos<br />
de delimitação da comunidade<br />
e formalização dos direitos relativos à<br />
terra (actualmente apoiados por vários<br />
projectos financiados pelo Banco<br />
Mundial) fornecem bases sólidas para<br />
investimentos privados inclusivos<br />
nos sectores agrícola e florestal para<br />
o benefício de várias partes interessadas.<br />
A delimitação e certificação de<br />
terras pela comunidade devem ser<br />
vistas como um aspecto integrante do<br />
Um estudo do Banco Mundial, publicado<br />
em <strong>Agosto</strong> de 2017, dava conta<br />
de que a terra urbana não está a<br />
ser bem aproveitada para a construção<br />
de habitações e de infra-estruturas.<br />
Por isso, os municípios estão<br />
a perder dinheiro. Da autoria<br />
de um especialista urbano do Banco<br />
Mundial, André Herzog, o estudo<br />
sugeriu que, se distribuída de forma<br />
equitativa, a terra urbana poderia<br />
aumentar oito vezes as receitas<br />
dos municípios. Que instrumentos<br />
suportam esta conclusão?<br />
Qual é o aspecto particular do mau<br />
aproveitamento da terra que ocasiona<br />
este subaproveitamento do<br />
potencial?<br />
O estudo do Banco Mundial levantou<br />
o valor real praticado nas transacções<br />
imobiliárias em Maputo e Matola<br />
para entender melhor o valor do<br />
vés de especular com a terra urbana,<br />
aumentando em muito a produção<br />
habitacional, comercial e industrial<br />
na cidade.<br />
Sendo o Quadro de Avaliação da Governação<br />
de Terras (LGAF) um instrumento<br />
de diagnóstico participativo,<br />
sente que as recomendações<br />
da equipa de peritos envolvida na<br />
sua elaboração estão a ser tomadas<br />
em consideração?<br />
O Quadro de Avaliação da Governança<br />
da Terra, concluído em 2016, foi um<br />
esforço participativo liderado por vários<br />
stakeholders e especialistas nacionais<br />
e resultou em várias recomendações<br />
que devem ser consideradas<br />
e actualizadas conforme apropriado,<br />
como uma contribuição importante<br />
para o processo de consulta recentemente<br />
lançado.<br />
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37
Nação<br />
Políticas de terra lá fora.<br />
Como é que o assunto é tratado?<br />
Em África, muitas preocupações em torno da exploração de terra são semelhantes, sobretudo a<br />
necessidade de evitar conflitos assegurando a posse segura pelas comunidades. O Ruanda é um<br />
dos exemplos a seguir, mas há outras experiências, boas e más, sobre as quais vale a pena reflectir<br />
Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.<br />
angola tem uma história<br />
semelhante à de Moçambique,<br />
até mesmo no que<br />
diz respeito a questões<br />
relativas à gestão de terras.<br />
Mas o percurso nas<br />
reformas tem estado a ditar um rumo<br />
diferente. Um artigo publicado no<br />
portal Angola Press, a 14 de Junho passado,<br />
faz uma resenha do percurso do<br />
País e dá a entender que os angolanos<br />
estão, de certa forma, confortáveis<br />
com os resultados das reformas que<br />
foram realizando nos últimos anos na<br />
sua legislação que data de 1992.<br />
De acordo com o artigo, “o Estado angolano<br />
continua a dar particular atenção<br />
à questão do acesso à terra, com actualizações<br />
periódicas da legislação, com<br />
vista a permitir um melhor aproveitamento<br />
dos terrenos, fundamentalmente<br />
para efeitos agrícolas e habitacionais”.<br />
Embora a base da construção da Política<br />
e Lei de Terras tenha sido semelhante,<br />
ao contrário do que acontece<br />
em Moçambique, em Angola, um olhar<br />
atento, baseado num estudo comparado,<br />
demonstra que enquanto a Lei de<br />
1992 era reduzida apenas a fins agrários,<br />
a actual Lei de Terras (Lei n.º 9/04,<br />
9 de Novembro) trouxe uma visão integradora<br />
e multidisciplinar e passou<br />
a abarcar funções agrárias, económicas,<br />
sociais e urbanísticas, que permitem<br />
aos particulares e às sociedades<br />
serem titulares de diversos direitos sobre<br />
terrenos.<br />
Assim, hoje, com a mudança de paradigma<br />
suportada em fundamentos da<br />
Lei Magna (2010), a terra passou a ser<br />
propriedade originária do Estado, que<br />
tem uma parte considerada de domínio<br />
público, isto é, que não se pode vender<br />
a pessoas singulares e colectivas,<br />
e outra de domínio privado, ou seja,<br />
vendável.<br />
Para os angolanos, “a Lei em vigor está<br />
mais enriquecida, tratando a problemática<br />
da terra na perspectiva da<br />
habitação, do uso e do aproveitamento<br />
das riquezas naturais, relevando, inclusive,<br />
o direito mineiro, agrário, florestal<br />
e de ordenamento do território.<br />
Também dá suporte ao exercício de<br />
actividades económicas, agrárias, industriais<br />
e de prestação de serviços”.<br />
Com as mudanças na legislação, a<br />
aquisição de direitos é por contrato.<br />
Os interessados podem requerer uma<br />
parcela, para fins diversos, aos governos<br />
provinciais, ministérios de tutela<br />
e Conselho de Ministros, desde que tenham<br />
capacidade de aquisição dos direitos<br />
sobre bens imóveis.<br />
Mas este conforto não é de todo generalizado.<br />
Há quem defenda uma nova<br />
revisão da Lei, com o argumento<br />
de que, apesar dos avanços, a maioria<br />
dos terrenos em posse dos cidadãos é<br />
desprovida de título ou documento legal.<br />
Além disso, muitos cidadãos não se<br />
preocupam em legalizar os espaços.<br />
Continuam a erguer residências em<br />
terrenos pertencentes ao Estado, sem<br />
falar na ociosidade de grandes porções<br />
de terra nas mãos dos cidadãos.<br />
Mesmo com o reconhecimento dos<br />
avanços, estes factores vão adiando o<br />
alcance do ponto óptimo na gestão da<br />
terra em Angola, o que vai suscitando<br />
a necessidade de reformas adicionais.<br />
38<br />
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lei de terras lá fora<br />
Aprender com o Ruanda e o Leste Europeu<br />
O Banco Mundial apoiou os esforços de<br />
muitos governos na transição das economias<br />
centralmente planificadas para<br />
economias de mercado, que envolveram<br />
acções como o registo de direitos<br />
de terra, modernização de registos<br />
e cadastros fundiários, a criação/modernização<br />
de sistemas de informação<br />
fundiária, entre outros. Segundo a instituição,<br />
Moçambique pode, certamente,<br />
aprender com essas experiências e<br />
o Banco está pronto para apoiar consultas<br />
e intercâmbios sobre as lições<br />
aprendidas. Um exemplo notável em<br />
África é a experiência do Ruanda, que<br />
levou à emissão massiva de títulos de<br />
propriedade sobre a terra e o registo<br />
de direitos fundiários, bem como a<br />
incorporação destes num sistema moderno<br />
de administração fundiária.<br />
De notar ainda que muitos países do<br />
Leste Europeu foram dos primeiros a<br />
reformarem as suas economias, o que<br />
levou a mudanças profundas no quadro<br />
legal e institucional. Essas mudanças<br />
ajudaram estes países a se desenvolverem<br />
economicamente e a melhorarem<br />
as condições de acesso à habitação<br />
e investimento para aumentar<br />
a produtividade da terra.<br />
Alguns não fizeram essa transição de<br />
forma transparente, eficiente e justa,<br />
e acabaram por piorar ainda mais o<br />
uso e aproveitamento da terra. “Por<br />
isso é muito importante para Moçambique<br />
esse debate público, informado<br />
por estudos profundos, e que envolva<br />
todos os sectores da sociedade para<br />
garantir que essas reformas, tragam<br />
os benefícios esperados para o desenvolvimento<br />
do país”, sugere o Banco<br />
Mundial.<br />
A dura batalha da África do Sul<br />
e do Zimbabué<br />
O rumo traçado por estes países divide<br />
opiniões. Há quem o considere correcto<br />
e quem o critique. A E&M não<br />
assume qualquer posição a respeito,<br />
mas pretende recordar ao leitor as<br />
consequências de uma lógica de política<br />
de expropriação de terras que ambos<br />
seguem ao tentarem estabelecer<br />
o que chamaram de justiça social, podendo<br />
contribuir, eventualmente, para<br />
tirar ilações do que se pode ou não<br />
fazer no contexto interno.<br />
O economista António Francisco recorda<br />
que o Zimbabué imitou Moçambique<br />
e fez ao fim de 20 anos o que aqui<br />
foi feito em um ano ou dois, quando o<br />
O que se faz lá fora?<br />
Dois exemplos de reformas na Lei de Terras,<br />
o de Angola e o do Ruanda, apresentam<br />
resultados positivos. Já o Zimbabué trouxe<br />
resultados nefastos à economia e a África<br />
do Sul vai seguir o mesmo, mas tentará<br />
“inovar” para evitar o abismo.<br />
Angola<br />
A terra passou a<br />
ser propriedade<br />
originária do Estado,<br />
que tem parte da<br />
terra considerada de<br />
domínio público, isto é,<br />
que não se pode vender<br />
a pessoas singulares e<br />
colectivas, e outra de<br />
domínio privado, ou<br />
seja, vendável.<br />
África do Sul<br />
Desde o princípio de<br />
2018, o Governo vem<br />
manifestando interesse<br />
em expropriar terras<br />
da minoria branca para<br />
a maioria negra sem<br />
indemnizá-la.<br />
No Zimbabué a<br />
experiência não<br />
resultou, a ver vamos<br />
como será na África<br />
do Sul.<br />
Ruanda<br />
Mobilizou uma<br />
campanha que levou<br />
à emissão massiva de<br />
títulos de propriedade<br />
sobre a terra e o registo<br />
de direitos fundiários<br />
e a incorporação<br />
dos mesmos num<br />
sistema moderno<br />
de administração<br />
fundiária.<br />
Zimbabué<br />
Há quase 20 anos, o<br />
já falecido Presidente<br />
Robert Mugabe retirou<br />
dos experientes<br />
farmeiros brancos<br />
grandes extensões de<br />
terra produtiva para as<br />
atribuir aos produtores<br />
negros, alegando<br />
restabelecer a justiça<br />
na posse e mergulhou o<br />
país na crise.<br />
País expulsou os colonos. Para o economista,<br />
ao fazer isso, o Presidente Robert<br />
Mugabe tinha motivações meramente<br />
políticas, nomeadamente a de<br />
tentar salvar o seu Governo colocando<br />
os rurais contra os urbanos, perante<br />
os quais já estava a perder poder.<br />
Mas os resultados disso sobre a economia<br />
foram avassaladores: o País precipitou-se<br />
para uma crise económica<br />
sem precedentes, porque na mão dos<br />
farmeiros negros, a terra ficou praticamente<br />
improdutiva face ao fraco<br />
domínio das técnicas de produção<br />
em comparação com os agricultores<br />
brancos. Por isso, “o actual Presidente<br />
do Zimbabué anda à procura<br />
dos farmeiros brancos para os indemnizar”,<br />
recorda o economista, dando<br />
a entender que se trata de um assumir<br />
de erros por parte do Governo<br />
zimbabueano.<br />
Enquanto isso, a África do Sul vem ensaiando<br />
o mesmo caminho do Zimbabué<br />
e, desde princípios de 2018, fala<br />
na alteração da legislação, no sentido<br />
de expropriar a terra dos farmeiros<br />
brancos sem os indemnizar. Ciente das<br />
consequências que esta medida trouxe<br />
ao Zimbabué, o Presidente sul-africano,<br />
Cyril Ramaphosa, diz ser “uma<br />
questão que vamos continuar a tratar<br />
com cuidado e com responsabilidade”.<br />
O certo é que a Lei de Terras Nativas<br />
da África do Sul, aprovada em 1913<br />
deu direito de posse de 90% das terras<br />
aos brancos, que constituíam à época<br />
menos de um terço da população.<br />
Uma fórmula única para a África<br />
Um relatório do Banco Mundial intitulado<br />
“Como África pode Transformar<br />
a Posse da Terra, Revolucionar a<br />
Agricultura e Acabar com a Pobreza”,<br />
publicado há sete anos, já referia que<br />
mais de 90% dos terrenos rurais de<br />
África estão indocumentados, o que os<br />
torna extremamente vulneráveis a<br />
usurpações e expropriações com compensação<br />
muito baixa. No entanto, e<br />
com base em experiências piloto encorajadoras<br />
em alguns países, incluindo<br />
Moçambique, o relatório sugere um<br />
plano de acção que aponta que o continente<br />
poderia, finalmente, concretizar<br />
a grande promessa de desenvolvimento<br />
das suas terras, no decorrer<br />
da próxima década, se adoptasse medidas<br />
que incluíssem, entre várias outras,<br />
a realização de investimento para<br />
cadastrar todas as terras comunitárias<br />
e as mais férteis.<br />
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39
OPINIÃO<br />
Necessidade ou Rigor?<br />
Denise Branco • Investigadora e Consultora em Comunicação<br />
Intercultural e Tradução para Fins Empresariais, Técnicos e Científicos<br />
“P<br />
Para quem (re)conhece a informação que a abordagem<br />
reciso” é uma palavra intrigante e<br />
provocadora pelas opções interpretativas<br />
que nos proporciona pois dá<br />
vida a duas atitudes de dinâmicas<br />
opostas: (1) a da necessidade e da carência<br />
e (2) a da exactidão e do rigor.<br />
da Programação Neurolinguística (PNL) faculta sobre o<br />
processo de tomada de decisão e de comunicação do indivíduo,<br />
– e na verdade das colectividades -, muito estará a<br />
aprender no actual clima mundial de necessidade versus<br />
precisão. Num momento de incertezas que comprometem<br />
e questionam veementemente o rigor e a exactidão de<br />
previsões – porque implicam responsabilização –, a análise<br />
do discurso demonstra uma fuga para a “necessidade”.<br />
Os discursos alternam entre acção e passividade: responsabilidade<br />
e dependência. Pelo meio, a inflexibilidade e intolerância<br />
de quem receia o desconhecido.<br />
O campo da educação – no que esta noção encerra enquanto<br />
forma de estar na vida e não apenas a limitação<br />
ao espaço físico que representa a visão de um país – tem<br />
sido o lugar onde “necessidade” e “rigor” se têm digladiado<br />
internacionalmente pelas mais diversas razões: económicas,<br />
políticas, de saúde pública, entre outras, infelizmente,<br />
nem sempre educacionais, nem sempre honrando o ser<br />
humano no seu todo. Neste terreno, aparentemente mais<br />
neutro, colhem-se dados fundamentais sobre a resiliência<br />
e agilidade do Agora e do Amanhã de cada indivíduo e de<br />
cada colectividade. Neste reflexo encontram-se ampliadas<br />
as vulnerabilidades e as mais-valias que ilustram claramente<br />
as escolhas de cada Estado. É nesse reflexo que, em<br />
tempos de incerteza, se pode encontrar certezas sobre a<br />
sustentabilidade de qualquer decisão, em qualquer área<br />
da vida: pessoal ou profissional. Porquê deter-nos neste<br />
aspecto? Porque é por via da educação – e da prioridade<br />
que lhe é dada – que se constroem narrativas. Narrativas<br />
cuja repetição diária reforça a programação de comportamentos.<br />
Esgotada da sua essência mais nobre por se ter<br />
tornado numa buzzword que serviu – e serve – variados<br />
propósitos, é a educação que determina o lado para o qual<br />
o pêndulo cai. É na linguagem da educação – pessoal ou<br />
organizacional – que reside a programação para a acção<br />
ou a passividade. As escolhas feitas na área da educação<br />
são hoje bem visíveis num mundo que vive refém de uma<br />
incerteza pandémica.<br />
A abordagem PNL visa equipar o indivíduo com as competências<br />
e ferramentas necessárias para atingir o seu<br />
potencial máximo. Assim, convido o leitor a realizar um<br />
eficaz exercício que, num convite passado, tinha como<br />
objectivo conhecer-se melhor para comunicar melhor.<br />
Hoje, o exercício consiste em conhecer-se melhor para<br />
poder agir com um propósito mais claro e mais eficaz na<br />
construção da sua narrativa pessoal ou organizacional.<br />
Detenha-se sobre as seguintes questões: ouve ou escuta?<br />
Vê ou observa? Pensa ou reflecte? Reage ou age? Tem “necessidade”<br />
de ou “quer fazer”? Num momento de incerteza,<br />
as respostas a estas questões irão trazer-lhe maior clareza<br />
sobre o que pode escolher fazer por si/pela sua organização<br />
ou, por outro lado, compreender melhor as opções<br />
que outros lhe oferecem. Ou não. Aí encontrará a motivação<br />
e energia para a narrativa que pretende continuar a<br />
escrever, ou a oportunidade para transformá-la.<br />
Convido o leitor a realizar um eficaz exercício que, num convite passado, tinha como objectivo<br />
conhecer-se melhor para comunicar melhor. Hoje, o exercício consiste em conhecer-se melhor<br />
para poder agir com um propósito mais claro e mais eficaz na construção da sua narrativa...<br />
40<br />
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<strong>Mercado</strong> e finanças<br />
Em que medida é inclusiva...<br />
... a inclusão financeira?<br />
Até 2022, 60% da população deverá estar inserida no sistema financeiro e, nessa medida, as carteiras móveis têm<br />
sido decisivas, a avaliar pelo seu contributo nos resultados do Finscope 2019. Mas a banca só cresceu 1% desde 2014<br />
Texto Celso Chambisso • Fotografia D.R.<br />
ra está distorcida e jamais vai possibilitar<br />
o alcance da meta que as autoridades<br />
perseguem desde 2016, de expandir<br />
a cobertura para 60% da população<br />
economicamente activa até<br />
2022”.<br />
Souto apresenta um conjunto de argumentos<br />
que conduzem a este posicionamento,<br />
e que se resumem, basicamente,<br />
na situação económica e social<br />
do País.<br />
Primeiro, sugere que se visite o discurso<br />
que a administradora do Banco<br />
de Moçambique, Gertrudes Tovela,<br />
proferiu por ocasião da divulgação<br />
do Relatório de Inquérito aos Consumidores<br />
Finscope 2019, no qual revelou<br />
que “todos os intervenientes no<br />
sistema são chamados a implementar<br />
acções que melhorem o actual estado<br />
de inclusão financeira no País. A título<br />
ilustrativo, os resultados indicam que o<br />
acesso aos serviços bancários cresceu<br />
o<br />
acesso aos serviços financeiros<br />
melhorou significativamente<br />
nos últimos<br />
cinco anos, com os níveis<br />
de exclusão a reduzirem<br />
de 60% em 2014 para<br />
46% em 2019, lembrando que em 2009<br />
estava nos 18%, graças ao papel relevante<br />
que a carteira móvel vem desempenhando<br />
na melhoria do acesso,<br />
tendo registado um aumento impressionante<br />
de 3% para 29% da população<br />
adulta no mesmo período, embora<br />
o número de contas bancárias tenha<br />
aumentado apenas um ponto percentual,<br />
de 20% para 21%. Os resultados<br />
estão no Relatório do Inquérito aos<br />
Consumidores Finscope 2019, divulgado<br />
em intervalos de cinco anos pela Financial<br />
Sector Deepening Mozambique<br />
(FSD Moç.).<br />
A E&M ouviu o CEO do Gapi-SI, António<br />
Souto, para quem “a inclusão financeiapenas<br />
um ponto percentual em cinco<br />
anos, passando a percentagem da<br />
população adulta com conta bancária<br />
de 20%, em 2014, para 21%, em 2019”<br />
(dos 14,2 milhões de pessoas com idade<br />
superior a 16 anos). Para António Souto,<br />
este é o assumir de que “o actual estado<br />
não é bom”.<br />
Indo aos pontos concretos<br />
De acordo com o gestor, os próprios documentos<br />
apresentados sobre a evolução<br />
da inclusão financeira de 2014 a<br />
2019 apresentam pontos que provam<br />
que o País não está no caminho da inclusão<br />
financeira, a justificar pelo fraco<br />
poder económico das pessoas. O primeiro<br />
aspecto é que o uso dos telemóveis<br />
cresceu de 48% para 53% o que<br />
não pode ser considerado relevante<br />
para o intervalo de cinco anos a que<br />
se refere a pesquisa; em termos de comunicação,<br />
a rádio diminuiu de 47%<br />
42<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Serviços financeiros<br />
“Estes dados todos são ilustrativos de<br />
que não chegaremos à inclusão”, justificou<br />
o gestor.<br />
Fraca qualidade da bancarização?<br />
Outra questão que o gestor coloca é o<br />
facto de o crescimento da bancarização<br />
ter sido de apenas um ponto percentual,<br />
o que é muito pouco para o volume<br />
do investimento feito nestes últimos<br />
cinco anos.<br />
António Souto questiona também a razão<br />
para se “aplaudir” o crescimento<br />
da população servida pelos serviços<br />
financeiros formais de 23% para 43%<br />
com o argumento de que estes serviços,<br />
grosso modo, referem-se ao mobile<br />
money através de transacções que<br />
se resumem a transferências que, sem<br />
deixarem de ser importantes, deixam<br />
de fora transacções fundamentais no<br />
mercado como o acesso aos depósitos e<br />
ao crédito.<br />
Já o informal, que cresceu de 27% para<br />
32%, significa que as pessoas “fugiram”<br />
do sistema financeiro formal, aumentando<br />
o número de pessoas que opta<br />
por outras vias. E isso é também confirmado<br />
pelos dados da poupança formal<br />
que, no geral, caiu de 8% para 7%<br />
entre 2014 e 2019, e a população banca-<br />
de o País insistir estrategicamente na<br />
disponibilização de pontos de acesso<br />
aos serviços financeiros, é tempo de<br />
voltar as atenções para o facto de as<br />
pessoas usarem ou não estes pontos<br />
de acesso. Ou seja, é preciso que haja<br />
uma verificação atenta que apure se<br />
não serão as mesmas pessoas que já<br />
tinham acesso ao banco a usufruírem<br />
dos novos pontos de acesso por razões<br />
diversas, levando a que tal expansão<br />
tenha impacto reduzido ou nulo na promoção<br />
da inclusão. “É necessário questionarmos<br />
como poderemos ter mais<br />
pessoas abrangidas. Portanto, não<br />
falemos apenas do acesso, que já nos levou<br />
a um estágio relativamente avançado.<br />
É muito importante começarmos<br />
a falar do uso, sob pena de, até 2022,<br />
haver uma regressão por haver pessoas<br />
que não estão a usar os diferentes<br />
pontos de acesso expandidos. Temos<br />
de passar do acesso para o uso”, sugere.<br />
A directora da FSD Moç. defende<br />
que uma expansão dos serviços financeiros<br />
que seja mais abrangente só será<br />
possível se o mercado for capaz de<br />
trazer produtos e serviços que respondam<br />
às necessidades específicas<br />
das pessoas. Isto é, “os provedores dos<br />
diferentes serviços devem estar aptos<br />
“A distorção da inclusão financeira não vai poder ser resolvida<br />
só com políticas monetárias. Este é o meu argumento central,<br />
porque há aqui reflexos de políticas económicas e sociais”<br />
para 41%; a televisão só aumentou nas<br />
regiões urbanas (de 21% para 25%); o<br />
uso do computador aumentou só de 4%<br />
para 5%; o acesso à internet é de apenas<br />
9%; a leitura de jornais e de revistas<br />
é baixíssima. Ou seja, estes indicadores<br />
de acesso à informação mostram<br />
que há dificuldades no poder económico<br />
das pessoas.<br />
Para agravar, os dados mostram que<br />
52% da população tem rendimentos<br />
que variam entre mil e 5 mil meticais,<br />
representando uma deterioração<br />
em comparação com 2014, se a condição<br />
das pessoas tiver de ser “dolarizada”<br />
(lembrando que houve uma acentuada<br />
depreciação do metical ao longo<br />
deste período).<br />
Além disso, houve muitas pessoas que<br />
perderam rendimentos: em 2014 eram<br />
só 2% e no ano passado subiram para<br />
18% e só 9% da população adulta tem<br />
emprego formal, antes do Covid-19.<br />
rizada caiu de 7% para 3% no mesmo<br />
período. Além disso, ao nível da região,<br />
Moçambique é o terceiro país com<br />
maior nível de exclusão financeira. E<br />
as perspectivas com esta perda de capacidade<br />
e poder de compra das pessoas<br />
vai pôr em sérias dúvidas o objectivo<br />
da cobertura de 60% dos adultos<br />
financeiramente incluídos até 2022.<br />
Todos estes pormenores levam António<br />
Souto à conclusão de que “a distorção<br />
da inclusão financeira não vai poder<br />
ser resolvida só com políticas monetárias.<br />
Este é o meu argumento central,<br />
porque há aqui reflexos de políticas<br />
económicas e sociais”.<br />
Disponibilidade vs utilização dos serviços<br />
A E&M também ouviu a directora-executiva<br />
da FSD Moç., Esselina Macome,<br />
que lançou, igualmente, um debate interessante<br />
sobre a matéria.<br />
De acordo com a economista, em lugar<br />
a entenderem estas necessidades utilizando<br />
as técnicas apropriadas, sendo<br />
requisito fundamental que se aproximem<br />
das pessoas e conheçam a fundo<br />
a realidade do seu dia-a-dia, para daí<br />
desenharem soluções mais ajustadas”,<br />
sublinhou.<br />
O papel da literacia financeira<br />
Para a economista, a literacia será<br />
fundamental no processo de expansão<br />
da utilização dos serviços financeiros.<br />
Esselina Macome entende que<br />
o mais importante, neste contexto,<br />
não é o domínio dos termos da área,<br />
mas a capacidade de usar os diferentes<br />
produtos e serviços de que o mercado<br />
dispõe. Ou seja, há aspectos que<br />
as pessoas já conhecem no mundo das<br />
finanças, e muitos outros que não conhecem.<br />
Por exemplo, desta vez o estudo<br />
considerou indicadores indirectamente<br />
ligados ao sector financeiro<br />
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43
Inclusão financeira<br />
deu grande salto...<br />
Nos últimos cinco anos, a inclusão<br />
cresceu graças ao aumento acentuado da<br />
utilização das soluções móveis<br />
Em % da *população adulta<br />
inclusão financeira<br />
carteira móvel<br />
bancarização<br />
*O estudo considera como população adulta a indivíduos<br />
acima dos 16 anos de idade, portanto, em idade activa.<br />
Serviços formais cresceram<br />
abaixo do esperado<br />
Mais uma vez, este resultado<br />
é impulsionado pelo crescimento<br />
da carteira móvel<br />
Em % da população adulta<br />
serviços formais<br />
bancarizado<br />
outros serviços formais<br />
excluídos<br />
Opções estão<br />
mais diversificadas<br />
Maior parte usa em simultâneo as<br />
soluções móveis e a banca, mas há mais<br />
pessoas a preferirem só a carteira móvel<br />
Em % da população adulta<br />
só conta bancária<br />
dinheiro móvel e conta bancária<br />
Só dinheiro móvel<br />
excluídos<br />
2014 2019<br />
40<br />
54<br />
3<br />
29<br />
20<br />
21<br />
23<br />
43<br />
20<br />
21<br />
10<br />
41<br />
60<br />
46<br />
6<br />
15<br />
14<br />
65<br />
... e É mais fácil aceder<br />
ao dinheiro móvel<br />
Este fenómeno pode explicar a razão<br />
por que a carteira móvel está a crescer<br />
acentuadamente<br />
Acesso em minutos, a maioria a pé e a minoria de táxi ou de “chapa”<br />
agente de dinheiro móvel<br />
mercearia<br />
agência bancária<br />
atm<br />
empréstimo informal<br />
Moçambique entre os piores<br />
De um conjunto de países recentemente<br />
avaliados no continente, Moçambique<br />
ainda apresenta um dos mais elevados<br />
índices de exclusão financeira<br />
Em % da população adulta<br />
seichelles<br />
áfrica do sul<br />
ruanda<br />
quénia<br />
eswathini<br />
uganda<br />
namíbia<br />
tanzânia<br />
nigéria<br />
moçambique<br />
15<br />
10<br />
15<br />
22<br />
45<br />
45<br />
45<br />
45<br />
25<br />
FONTE Relatório do Inquérito aos Consumidores<br />
Finscope 2019<br />
Nota: inclusão financeira considera todos os que possuem e/<br />
ou usam serviços financeiros formais ou informais; exclusão<br />
considera pessoas que não usam qualquer destes serviços;<br />
serviço formal é o que é prestado por uma instituição<br />
financeira, seja bancária ou não; serviço informal são os não<br />
regulados; bancarizados são os serviços regulados pelo Banco<br />
Central; e os serviços de outras instituições financeiras<br />
são os prestados por instituições financeiras não-bancárias<br />
reguladas pelo Banco Central.<br />
3<br />
7<br />
7<br />
11<br />
13<br />
13<br />
13<br />
13<br />
13<br />
13<br />
Fraca cobertura no meio<br />
rural e mulheres excluídas<br />
Dados indicam que há muito por fazer<br />
para criar serviços específicos<br />
para o meio rural e para as mulheres.<br />
Em % da população adulta<br />
exclusão urbana<br />
exclusão rural<br />
exclusão masculina<br />
exclusão feminina<br />
como a capacidade de planificar as<br />
suas necessidades financeiras e concluiu<br />
que a maioria não tem esta prática,<br />
incluindo as pessoas que utilizam<br />
os serviços financeiros formais<br />
e conhecem os termos da área. Esselina<br />
Macome suspeita que este fenómeno<br />
pode ser reflexo da redução dos<br />
níveis de poupança que, entre 2014 e<br />
2019 caiu de 35% para 16%. Mas para<br />
reforçar a literacia, felizmente, há<br />
já iniciativas em curso. O sector da<br />
Educação já assumiu programas específicos<br />
a serem leccionados a partir<br />
da 4ª classe. Trata-se de um trabalho<br />
que foi desenvolvido pelo Banco<br />
de Moçambique e pela Bolsa de Valores<br />
de Moçambique (BVM). Além disso,<br />
a própria FSD Moç. está a preparar<br />
um jogo digital para as crianças<br />
aprenderem, enquanto brincam, a lidar<br />
com instrumentos da área financeira<br />
e deixa a promessa de disponibilizar<br />
esses meios em breve.<br />
21<br />
60<br />
43<br />
48<br />
44<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Serviços financeiros<br />
Indo ao estudo: peso da carteira móvel<br />
é o destaque<br />
Em 2014, só 3% da população adulta<br />
utilizava os serviços financeiros por<br />
telemóvel, uma proporção que passou<br />
para 29%, em 2019. “Procurámos saber<br />
qual terá sido o maior factor impulsionador<br />
do salto que se verificou<br />
e concluímos que foi o aumento da utilização<br />
dos meios digitais, com peso<br />
substancial das carteiras móveis, contribuindo,<br />
em grande medida, para<br />
que tivéssemos um aumento dos 40%<br />
que tínhamos em 2014 para 54% em<br />
2019 da cobertura de acesso aos serviços<br />
financeiros por pessoas economicamente<br />
activas (a partir dos 16 anos<br />
de idade)”, explicou a directora-executica<br />
da FSD Moç. De acordo com Esselina<br />
Macome, a outra área que evoluiu<br />
bastante foi a dos seguros. A economista<br />
explicou também que se verificou<br />
um crescimento tangencial da banca<br />
tradicional, do ponto de vista de utilizadores.<br />
“Se olharmos apenas para a<br />
banca, a evolução foi de apenas um<br />
ponto percentual para 21%. Em termos<br />
percentuais parece pouco, mas<br />
em termos de número absoluto é significativo.<br />
Porquê? Se tentarmos ver<br />
quantas pessoas tinham conta bancária<br />
dentro do grupo economicamente<br />
activo de 2014 até 2019, concluímos<br />
que há um grande aumento, já que ultrapassa<br />
190 mil pessoas. Também verificamos<br />
que as pessoas fazem muitos<br />
serviços utilizando mais do que uma<br />
plataforma financeira. São poucas as<br />
pessoas que utilizam apenas a banca.<br />
Geralmente utiliza-se, em simultâneo,<br />
a banca, as carteiras móveis e<br />
até os serviços financeiros informais.<br />
Portanto, há uma intercepção”, esclareceu.<br />
O que explica esta mistura de<br />
opções pelos usuários dos serviços financeiros<br />
é a acessibilidade e o tempo<br />
necessário para alcançar cada um<br />
dos provedores. Por exemplo, o tempo<br />
para chegar a uma agência bancária<br />
(ver gráfico) é muito superior ao<br />
necessário para chegar a um agente<br />
de carteira móvel, mesmo porque, em<br />
cinco anos, não houve qualquer evolução<br />
na média dos 45 minutos necessários<br />
para chegar a um banco ou a<br />
uma caixa ATM, enquanto que o tempo<br />
para chegar ao dinheiro móvel reduziu<br />
de 15 para dez minutos. Ao contrário<br />
da ideia de António Souto a este<br />
respeito, e a avaliar pela evolução<br />
dos indicadores da pesquisa, Esselina<br />
Macome acredita que “se o ritmo<br />
com que se conseguiu avançar nos últimos<br />
cinco anos se mantiver, seguramente,<br />
o País não falhará a meta dos<br />
60% de cobertura da população activa<br />
em termos de acesso aos serviços<br />
financeiros físicos ou electrónicos formais”.<br />
Verdade ou não, o importante é<br />
que as ferramentas de análise estão<br />
lançadas e o tempo encarregar-se-á<br />
por confirmar.<br />
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45
OPINIÃO<br />
YES, Boss.<br />
o<br />
ambiente de trabalho na sua organização é<br />
psicologicamente seguro? Se fizer esta pergunta<br />
a um dos seus Colaboradores e a resposta<br />
chegar pronta, e com um “YES, Boss”… bem,<br />
talvez o seu ambiente de trabalho não seja<br />
psicologicamente seguro. E vejamos porquê.<br />
A produtividade do trabalho é uma medida que resulta<br />
da interacção, numa dada unidade de tempo, do seguinte<br />
conjunto de variáveis: Produtividade do Trabalho = (Esforço<br />
+Competência+Motivação+Ambiente de Trabalho)/(Unidade<br />
de Tempo). Nesta crónica pretendo analisar a variável<br />
“Ambiente de Trabalho”, e aquele que é um dos seus<br />
principais condicionadores — a “segurança psicológica<br />
do trabalhador”. Por segurança psicológica, entenda-se<br />
a crença na qual, numa dada organização, a equipa é um<br />
espaço seguro para que o colaborador possa, no exercício<br />
da sua actividade, assumir riscos de interacção interpessoal<br />
sem medo de ser julgado, embaraçado ou punido.<br />
E vem este tema a propósito de uma expressão comum<br />
em Moçambique, e que pode muito bem ser considerada<br />
como um “teste rápido” do nível de segurança psicológica<br />
de uma organização: “YES, Boss”.<br />
Proponho analisar o verdadeiro significado desta sub-cultura<br />
organizacional, o “YesBossismo” (expressão acabada<br />
de inventar!), considerando três perspectivas:<br />
1) Submissão: associada à perspectiva do Colaborador.<br />
2) Autoridade: tipicamente associada à perspectiva dos<br />
Gestores & Dirigentes.<br />
3) Remediação: soluções possíveis para combater o<br />
“YesBossismo”.<br />
1) Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva da<br />
submissão, e em face do excessivo nível de autoridade<br />
exercido pelos Gestores & Dirigentes, o Colaborador reflecte<br />
um nível de medo que se manifesta através de: não<br />
pergunta, com medo de ser visto como ignorante; não<br />
critica construtivamente a acção ou omissão dos seus colegas<br />
e/ou da equipa, com medo de ser considerado mau<br />
colega; não admite e esconde os seus erros, com medo<br />
de ser considerado incompetente; não se socorre dos colegas,<br />
com medo de ser considerado não autosuficiente.<br />
Tudo sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente<br />
inseguro e demonstrativo de baixa produtividade.<br />
João Gomes • Partner @ JASON Moçambique<br />
2) Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva<br />
da autoridade, e em face da baixa produtividade manifestada<br />
pela força de trabalho dos Yes Man que gerem<br />
(e que são produto da sua fraca liderança, diga-se em<br />
abono da verdade), os Gestores & Dirigentes reflectem<br />
uma atitude de desconfiança, muitas vezes traduzida em<br />
linguagem e atitudes abusivas e ofensivas, e que se manifesta<br />
através dos seguintes sinais: consideram que as suas<br />
equipas são preguiçosas e sem vontade de trabalhar; valorizam<br />
o Presencismo; têm a certeza de que são capaz de<br />
responder com maior rapidez e qualidade do que as suas<br />
equipas seriam capazes (Cultura do super-herói); tendem<br />
a considerar que as suas equipas, por aquilo que são pagos,<br />
deveriam trabalhar mais arduamente; deixam-se cair na<br />
armadilha da gestão por impressão e não por factos.<br />
Todos sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente<br />
inseguro e de baixa produtividade.<br />
3) Na perspectiva da remediação e combate ao “YesBossismo”<br />
proponho que os Gestores & Dirigentes em Moçambique<br />
iniciem uma caminhada em direcção à Liderança<br />
Ágil. Sendo esta uma caminhada longa, sugiro que se comece<br />
por um pequeno passo: que as reuniões que se vão<br />
realizar doravante sejam “psicologicamente seguras”.<br />
Nestas, os Líderes Ágeis combatem o medo através: do<br />
encorajamento de TODOS a contribuir na reunião; da escuta<br />
activa, perguntando e mostrando-se curiosos; de evitar<br />
não dominar, ou interromper, ou “falar por cima”; da repetição,<br />
pela sua própria voz, dos pontos de vista dos Colaboradores,<br />
dando importância à diversidade de opiniões e valorizando<br />
pontos de vista diferentes dos seus; da assunção<br />
dos seus erros e fragilidades, e contando histórias de insucessos;<br />
não julgamento; valorização do trabalho em equipa.<br />
Tudo sintomas de um ambiente de trabalho psicologicamente<br />
seguro e, consequentemente, de alta produtividade.<br />
Em conclusão, o YesBossismo reflecte um ambiente de trabalho<br />
psicologicamente inseguro, onde prolifera o medo, o<br />
presencismo, os ‘Yes Man’, a gestão por impressão, conduzindo<br />
à infelicidade pessoal e à redução da produtividade.<br />
A Liderança Ágil é um caminho longo, mas eficaz, de combate<br />
ao ambiente de trabalho psicologicamente inseguro.<br />
As reuniões psicologicamente seguras são o primeiro passo<br />
da Liderança Ágil e do fim da cultura do “YES, Boss”.<br />
Analisando a expressão “YES, Boss”, na perspectiva da submissão, e em face do excessivo nível<br />
de autoridade exercido pelos Gestores & Dirigentes, o Colaborador reflecte um nível de medo<br />
46<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
empresas<br />
48<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Dar dimensão ilusória<br />
mas luxuosa à realidade<br />
Uma ilusão tangível em espaços reais parece que ganha uma nova dimensão<br />
em habitações e instituições, por via da criatividade de um grupo de jovens que<br />
descobriu na arte do design tridimensional uma solução para o desemprego<br />
pro-lar 3d é uma empresa<br />
singular. Gerida por um<br />
grupo de jovens moçambicanos,<br />
dedica-se à deco-<br />
a ração de interiores (casas,<br />
Texto Emídio Massacola • Fotografia Mariano Silva<br />
escritórios, restaurantes<br />
ou hotéis constam do seu portefólio<br />
de clientes), através da pintura<br />
em três dimensões. Fundada em 2018,<br />
por Nelson Massingue, a ideia é simples,<br />
se bem que de execução complexa:<br />
tornar real ao olho humano<br />
um ambiente gravado numa parede.<br />
“O nosso propósito inicial era dar uma<br />
ideia de espaço, profundidade e luxo<br />
em habitações de pessoas sem grandes<br />
posses”, conta o fundador da empresa.<br />
Os desenhos são baseados em técnicas<br />
de ilusão de óptica, feitos com tinta<br />
lavável e aplicados nas mais diversas<br />
superfícies, explica Massingue. “Apesar<br />
de as aplicações serem feitas, na<br />
maioria das vezes, em paredes, também<br />
decoramos outras superfícies de<br />
gesso, carros e até sanitas, imagina.<br />
Podemos fazer isto em qualquer objecto<br />
que o cliente pretenda”, diz.<br />
Com apenas o nível médio de ensino<br />
concluído, Nelson Massingue considera<br />
que a arte de desenhar é uma habilidade<br />
inata que lhe foi dada “por Deus”,<br />
exclama, enquanto recorda a descoberta<br />
do prazer do desenho, feita ainda<br />
em tenra idade.<br />
Foi, por isso mesmo, desde bem cedo,<br />
solicitado para decorar fachadas de<br />
pequenos bares e barracas de venda<br />
de diversos produtos.<br />
Com a evolução das plataformas digitais,<br />
Nelson, o caso provado de alguém<br />
que aprendeu à custa da sua própria<br />
vontade, pôde aprimorar as técnicas<br />
e tornar-se, segundo ele mesmo,<br />
no primeiro a implementar tal ideia<br />
em Moçambique. “Este tipo de pintura<br />
resiste por muito mais tempo do que o<br />
papel-parede que muitas vezes as pes-<br />
soas utilizam para revestir as suas<br />
casas. E é, como se pode ver, inovador”,<br />
revela, sem esconder o orgulho.<br />
No espaço entre o talento natural e<br />
a prática concreta de uma actividade<br />
profissional, foi a demanda que<br />
lhe mostrou o seu lugar no mercado<br />
há pouco mais de um ano. Já com esse<br />
propósito optou por “recrutar” jovens<br />
desempregados.<br />
“Dei-lhes a mão. E agora somos<br />
11, mas ainda preciso de mais.<br />
Requisitos? (sorri) Basta a vontade de<br />
trabalhar, aprender e dedicação porque<br />
na vida só se aprende fazendo”.<br />
Apesar de a Pro-lar 3D actuar num<br />
nicho bastante específico onde os serviços<br />
muitas vezes são solicitados quando<br />
existe uma “folga financeira”, há já um<br />
crescimento assinalável. “A facturação<br />
é algo difícil de dizer porque não funcionamos<br />
de forma linear, depende dos<br />
trabalhos que apareçam, mas temos<br />
estado a crescer regularmente e a nossa<br />
média mensal é dez encomendas de<br />
trabalhos por mês”, revela.<br />
Hoje, os trabalhos da Pro-lar 3D podem<br />
ser encontrados em oito províncias do<br />
País, sendo que, maioritariamente, as<br />
solicitações surgem das grandes cidades,<br />
como Maputo, Matola, Beira ou<br />
Nampula. Fora do País, já houve trabalhos<br />
realizados na África do Sul, Zimbabué<br />
e Maláui. E não pára por aí. Recentemente,<br />
conta, houve duas solicitações<br />
– ainda pendentes – para Portugal e<br />
outra para o Brasil, havendo, entretanto,<br />
uma confirmada para as Honduras,<br />
que ficou suspensa e adiada para uma<br />
fase pós Covid-19.<br />
No imediato, um dos planos estratégicos<br />
para levar a Pro-lar 3D a outras<br />
dimensões de negócio passa por organizar<br />
o seu portefólio de trabalhos em<br />
plataformas digitais de modo a que<br />
chegue a vários cantos do mundo, com<br />
aquele detalhe de Moçambique.<br />
B<br />
Empresa<br />
PRO-LAR 3D<br />
Ano de criação<br />
2018<br />
FUNDADOR<br />
Nelson Massingue<br />
Colaboradores<br />
11<br />
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49
megafone<br />
MULTICHOICE ADICIONA<br />
CANAIS DESPORTIVOS DA<br />
ESPN À DSTV E GOTV<br />
A MultiChoice Group e a The<br />
Walt Disney Company Africa assinaram<br />
um memorando para a<br />
inclusão de canais desportivos<br />
da ESPN – 1 e 2, respectivamente<br />
– nas plataformas da Multi-<br />
Choice, DSTV e GOtv. Desde 29<br />
de Julho que estas plataformas<br />
exibem, 24 horas por dia, o melhor<br />
do desporto dos EUA e do<br />
futebol europeu. “Esforçamo-<br />
-nos por fornecer conteúdo internacional<br />
de classe mundial<br />
oferecendo aos nossos clientes<br />
fiéis uma selecção interminável<br />
de entretenimento excepcional”,<br />
afirmou Calvo Mawela, CEO da<br />
MultiChoice Group.<br />
BRITAM SEGUROS<br />
REGISTA LUCRO<br />
NEGATIVO EM 2019<br />
A Britam Companhia de Seguros<br />
de Moçambique, S.A. registou,<br />
no ano passado, prejuízos de 16<br />
milhões de meticais, depois do<br />
lucro de 1,1 milhão de meticais<br />
no ano anterior.<br />
As causas da queda, de acordo<br />
com a seguradora, foram as indemnizações<br />
que teve de pagar<br />
advindas do impacto dos ciclones<br />
Idai e Kenneth sobre os<br />
bens assegurados, bem como<br />
da aplicação de IFRS 16 (a regra<br />
mais recente das Normas Internacionais<br />
de Relato Financeiro,<br />
implementado desde Janeiro de<br />
2019), que obrigou a companhia<br />
a reconhecer activos e passivos<br />
de Leasing de Direito de Uso<br />
Adicionais no montante de 18,9<br />
milhões de meticais.<br />
STANDARD BANK CAPACITA<br />
PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS<br />
O foco do programa é dotar as Pequenas e Médias<br />
Empresas de ferramentas que as possam apoiar<br />
na validação dos seus modelos de negócio<br />
a incubadora do standard bank, em parceria com a<br />
Eni Rovuma Basin, promoveu um programa de capacitação<br />
para 50 PME no âmbito da promoção de ligações comerciais<br />
e de oportunidades para aquelas. Realizado virtualmente, o<br />
programa teve por objectivo apoiar as PME na validação dos<br />
seus modelos de negócio de modo a que possam garantir a<br />
sua sustentabilidade.<br />
Na visão do administrador-delegado da instituição bancária,<br />
um crescimento económico sustentável e inclusivo só será<br />
possível se se trabalhar em conjunto no mesmo ecossistema<br />
com as PME e os empregadores. “Moçambique oferece inúmeras<br />
oportunidades, particularmente no sector de Petróleo e<br />
Gás, onde estas empresas podem dar o seu contributo, devendo,<br />
para tal, estar preparadas, qualificadas e capacitadas”.<br />
Por sua vez, o director da Eni Rovuma Basin, Roberto<br />
Dall’Omo, disse que, a longo prazo, as PME podem alavancar<br />
a economia. “Por isso, decidimos investir na sua promoção,<br />
capacitação e desenvolvimento”, descrevendo-as como “um<br />
pilar importante na nossa Estratégia de Desenvolvimento e<br />
Conteúdo Local”. Tatiana Pereira, que representa a IdeaLab,<br />
a parceira implementadora da iniciativa, disse que o programa<br />
foi uma oportunidade para conectar as diferentes PME do<br />
País, dando oportunidade àquelas que não estão em Maputo.<br />
O Grupo Standard Bank é uma instituição financeira que<br />
oferece serviços bancários e financeiros a indivíduos,<br />
empresas, instituições e corporações na África e no exterior.<br />
É a maior instituição bancária e financeira em África no<br />
sector dos serviços financeiros. A rede do Standard Bank é<br />
uma das maiores do País. Cobre todas as principais cidades e<br />
aglomerações urbanas de Moçambique, tendo 44 agências.<br />
NIKE DESTRONA MARCAS<br />
DE LUXO GRAÇAS À<br />
PANDEMIA<br />
A Nike, gigante norte-americana<br />
do calçado e vestuário e<br />
equipamentos desportivos, lançou<br />
uma linha de máscaras de<br />
protecção individual que já se<br />
tornou no principal produto<br />
da marca durante a pandemia<br />
do novo Coronavírus, segundo<br />
apurou o ‘Lyst Index’, plataforma<br />
que analisa os hábitos<br />
de compra de mais de nove milhões<br />
de utilizadores, por mês,<br />
em mais de 12 mil marcas e lojas<br />
online.<br />
A marca registou um crescimento<br />
de 75% nas vendas digitais,<br />
responsáveis por 30% da receita<br />
total da empresa.<br />
O pódio deste ranking, divulgado<br />
recentemente, é ainda dividido<br />
com a Off-White em segundo<br />
lugar, seguindo-se a Gucci.<br />
BCI INAUGURA AGÊNCIA<br />
BANCÁRIA EM METUGE<br />
O Presidente da República, Filipe<br />
Nyusi, inaugurou, recentemente,<br />
a agência do Banco<br />
Comercial e de Investimentos<br />
(BCI), no distrito de Metuge,<br />
província de Cabo Delgado, o<br />
primeiro balcão naquela região<br />
do norte do País.<br />
Segundo o administrador do BCI,<br />
Mukhtar Abdulcarimo, a obra,<br />
cuja construção durou cerca de<br />
dois meses, custou 29,6 milhões<br />
de meticais, e prevê-se que venha<br />
a beneficiar 89 192 habitantes,<br />
incluindo os 758 funcionários<br />
públicos que vão passar a<br />
levantar os seus salários naquele<br />
balcão.<br />
50<br />
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sociedade<br />
52<br />
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digital<br />
Silicon Valley Face à Democracia<br />
O digital new deal — por analogia à política de Roosevelt após a Grande Depressão — concebido pelos<br />
gigantes de Silicon Valley foi amplamente experimentado durante a pandemia e pode estar para ficar.<br />
Até que ponto dele resultam ameaças à democracia?<br />
Texto Naomi Klein , jornalista, escritora e activista canadiana, correspondente sénior do The Intercept<br />
e autora de best-sellers como “A batalha pelo paraíso”. • Fotografia D.R.<br />
esta é a questão posta pela<br />
ensaísta canadiana Naomi<br />
Klein. Não enjeitando a utilidade<br />
destes instrumentos<br />
digitais, a autora encoraja-<br />
-nos a olhar, de uma forma<br />
crítica, para a distopia de alta tecnologia<br />
que lhes pode estar subjacente. Ou<br />
seja: não é prudente deixarmos o campo<br />
completamente livre para os gafam<br />
[Google, Apple, Facebook, Amazon<br />
e Microsoft]. Em vez disso, temos de repensar<br />
a internet como um serviço<br />
público ao serviço dos cidadãos.<br />
Num instante fugaz, durante o briefing<br />
diário de Andrew Cuomo, governador<br />
de Nova Iorque, sobre a situação<br />
do coronavírus, no dia 6 de Maio,<br />
os rostos sérios que há semanas enchem<br />
os ecrãs deram lugar ao que parecia<br />
um sorriso. “Estamos prontos, entramos<br />
com tudo”, proclamou. “Somos<br />
nova-iorquinos, por isso somos dinâmicos<br />
e ambiciosos (...). Compreendemos<br />
que a mudança não só é iminente como<br />
também pode ser nossa aliada, se<br />
for feita da maneira certa.”<br />
A inspiração para este tom atipicamente<br />
positivo estava na aparição<br />
em vídeo do antigo CEO da Google, Eric<br />
Schmidt, que se juntou ao briefing de<br />
Imprensa do governador para anunciar<br />
que acabara de receber a missão<br />
de liderar um grupo de especialistas<br />
encarregado de inventar o futuro pós-<br />
-covid, no estado de Nova Iorque [o primeiro<br />
epicentro da epidemia covid-19<br />
nos EUA], pondo ênfase na integração<br />
sistemática da tecnologia em todas as<br />
áreas da vida local. “A prioridade”, disse<br />
Eric Schmidt, “é a telemedicina, o ensino<br />
à distância e a banda larga de alta<br />
velocidade... Temos de procurar soluções<br />
que possam ser propostas agora,<br />
implementá-las o mais depressa<br />
possível e utilizar esta tecnologia para<br />
melhorar a situação”. Para aqueles<br />
que ainda tinham dúvidas sobre as intenções<br />
do antigo chefe da Google, podiam<br />
ver-se, no vídeo, atrás dele, duas<br />
asas de anjos dourados numa moldura.<br />
No dia anterior, Andrew Cuomo havia<br />
anunciado uma parceria semelhante<br />
com a Fundação Bill e Melinda Gates,<br />
com vista a criar um “sistema educativo<br />
conectado”.<br />
Andrew Cuomo explicou que a pandemia<br />
tinha aberto “uma janela histórica<br />
de oportunidade para a integração<br />
e promoção das ideias” [de Bill Gates],<br />
apelidando-o de visionário. “Todos<br />
estes edifícios, todas estas salas de aula,<br />
para que servem face a toda a tecnologia<br />
que temos à nossa disposição?”,<br />
perguntava. Uma questão aparentemente<br />
retórica.<br />
Levou algum tempo, mas algo que se<br />
assemelha a uma “doutrina de choque”<br />
em versão pandémica começa a<br />
ganhar forma (de acordo com a “doutrina<br />
de choque” teorizada por Naomi<br />
Klein, os defensores do capitalismo<br />
aproveitam as grandes catástrofes<br />
para fazerem passar reformas ultraliberais).<br />
Chamemos-lhe o Screen New<br />
Deal, segundo o modelo do New Deal, a<br />
política intervencionista do Presidente<br />
Roosevelt, lançada em 1933, após a<br />
crise de 1929, e o Green New Deal ecológico,<br />
defendido por uma parte dos<br />
democratas norte-americanos. Muito<br />
mais tecnológico do que tudo aquilo<br />
que já vimos depois de catástrofes<br />
anteriores, o modelo para o qual estamos<br />
a avançar a um ritmo acelerado,<br />
enquanto a hecatombe contínua, considera<br />
estes meses de isolamento físico<br />
não como um mal necessário (salvar<br />
vidas) mas como uma experiência<br />
em tamanho real, a qual nos permite<br />
encarar um futuro sem contacto<br />
físico e altamente lucrativo.<br />
Máquinas sem risco biológico<br />
Anuja Sonalker, CEO da Steer Tech,<br />
uma empresa sediada em Maryland<br />
que desenvolve software de estacionamento<br />
automático, resumia recentemente<br />
a nova argumentação, revista<br />
e adaptada à luz do covid-19: “Constata-<br />
se um forte entusiasmo por tecnologias<br />
sem contacto que não passam<br />
pelo humano”, disse. “Os seres humanos<br />
representam um risco biológico. A<br />
máquina não.” É um futuro em que as<br />
nossas casas nunca mais serão locais<br />
totalmente privados e que também<br />
servirão, graças a tudo o que é digital,<br />
de escolas, de consultórios médicos, de<br />
ginásio e, se o Estado o decretar, até de<br />
prisão. Claro que, para muitos de nós,<br />
a casa já era uma extensão do escritório<br />
e o nosso primeiro lugar de entretenimento,<br />
mesmo antes da pandemia,<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong><br />
53
sociedade<br />
e a monitorização dos prisioneiros em<br />
ambiente aberto [graças particularmente<br />
à pulseira electrónica] já estava<br />
em vias de se generalizar. No entanto,<br />
com o frenesim da pandemia, todas<br />
estas tendências deverão conhecer<br />
uma aceleração fulgurante.<br />
Trata-se de um futuro em que, para<br />
os privilegiados, quase tudo é entregue<br />
em casa, quer virtualmente, através<br />
da cloud e do streaming, quer fisicamente,<br />
através de veículos autónomos<br />
e drones, em acções que serão depois<br />
“partilhadas” através de um ecrã<br />
numa rede social. É um futuro que emprega<br />
muito menos professores, médicos<br />
e motoristas, que não inclui nem dinheiro<br />
nem cartões de crédito (a pretexto<br />
de evitar a propagação de vírus),<br />
onde os transportes públicos e as<br />
artes do espectáculo são reduzidos à<br />
sua expressão mais simples.<br />
Ameaça à democracia<br />
É um futuro que pretende funcionar<br />
graças à Inteligência Artificial, mas<br />
que, na realidade, se mantém graças<br />
a dezenas de milhões de empregados<br />
anónimos que trabalham à porta fechada<br />
em armazéns, em centros de<br />
tratamento de dados, em plataformas<br />
de moderação de conteúdos, em fábricas<br />
de electrónica, em minas de lítio,<br />
em explorações agrícolas gigantes,<br />
em fábricas de processamento de carne<br />
e em prisões, vulneráveis à doença<br />
e à sobre-exploração. É um futuro<br />
em que cada gesto nosso, cada palavra<br />
nossa, cada interação nossa com os outros<br />
é geolocalizável, rastreável e<br />
analisável devido à colaboração, sem<br />
precedentes, entre o Estado e os gigantes<br />
do digital.<br />
Se esta imagem lhe parece familiar<br />
é porque este mesmo futuro, em que<br />
tudo é conduzido por aplicações e assenta<br />
em empregos precários, já nos<br />
era vendido antes do covid-19, em nome<br />
da fluidez, do conforto e da personalização.<br />
Mas muitos de nós já estávamos<br />
preocupados com os problemas<br />
de segurança, de qualidade e de<br />
desigualdade, levantados pela telemedicina<br />
ou pelo ensino à distância.<br />
Preocupados com os veículos de condução<br />
autónoma, que corriam o risco<br />
de ceifar os peões, ou com os drones,<br />
que ameaçavam danificar as encomendas<br />
(ou ferir pessoas). Preocupados<br />
com a geolocalização e a desmaterialização<br />
dos meios de pagamento,<br />
que nos iriam tirar a nossa privacidade<br />
e reforçar a discriminação étnica<br />
e sexual. Preocupados com as redes<br />
sociais sem escrúpulos, que poluem<br />
a nossa ecologia de informação<br />
e a saúde mental das nossas crianças.<br />
Preocupados com as “cidades inteligentes”<br />
cheias de sensores, que substituem<br />
as autoridades locais. Preocupados<br />
com os “bons empregos”, que estas<br />
tecnologias iriam fazer desaparecer.<br />
Preocupados com os “maus” empregos,<br />
que elas iriam produzir em série.<br />
Mas, acima de tudo, estávamos preocupados<br />
com a ameaça à democracia<br />
que a acumulação de poder e de<br />
riqueza por alguns gigantes digitais<br />
representa.<br />
Futuro arrepiante<br />
Mas isto era num passado distante: estávamos<br />
em Fevereiro. Actualmente,<br />
a maioria destas preocupações legítimas<br />
está a ser varrida por uma onda<br />
de pânico [causada pela pandemia], e<br />
esta distopia está a sofrer uma rápida<br />
transformação. Hoje, num cenário de<br />
grande destruição, ela é-nos vendida<br />
acompanhada da promessa suspeita<br />
de que estas tecnologias seriam a única<br />
forma de nos protegermos de pan-<br />
demias – a condição sine qua non de segurança<br />
para os nossos entes queridos<br />
e para nós próprios. Graças a Andrew<br />
Cuomo e às suas várias parcerias com<br />
bilionários (incluindo uma com o antigo<br />
presidente da câmara de Nova Iorque<br />
e bilionário Michael Bloomberg<br />
sobre o rastreio e a localização), o estado<br />
de Nova Iorque é a montra deste<br />
futuro arrepiante – mas as ambições<br />
estendem-se muito para além<br />
das fronteiras de qualquer estado<br />
norte-americano ou de qualquer país.<br />
Tudo gira à volta de Eric Schmidt.<br />
Muito antes de os norte-americanos<br />
abrirem os olhos para a ameaça<br />
do covid-19, já Schmidt conduzia uma<br />
agressiva campanha de lobby e de comunicação<br />
para promover esta visão<br />
da sociedade “à Black Mirror” que Andrew<br />
Cuomo acaba de autorizar. No<br />
centro desta visão está uma estreita<br />
associação entre o Estado e alguns<br />
gigantes de Silicon Valley, em que escolas<br />
públicas, hospitais, consultórios<br />
médicos, Polícia e Exército subcontratarão<br />
(com custos elevados) uma<br />
boa parte das suas funções a empresas<br />
tecnológicas privadas. É uma visão<br />
que Eric Schmidt está a promover<br />
54<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
digital<br />
Andrew Cuomo, mayor de Nova Iorque e Eric Schmidt, ex-Ceo<br />
da Google, no momento do anúncio de que acabara de receber<br />
a missão de “inventar” o futuro pós-covid’ em Nova Iorque<br />
na presidência do Defense Innovation<br />
Board [Conselho de Inovação para a<br />
Defesa], que aconselha o Pentágono sobre<br />
o crescimento da Inteligência Artificial<br />
no sector militar, mas também<br />
na presidência da poderosa National<br />
Security Commission on Artificial Intelligence,<br />
NSCAI [Comissão de Segurança<br />
Nacional sobre Inteligência Artificial],<br />
que aconselha o Congresso sobre<br />
“os avanços da Inteligência Artificial,<br />
da aprendizagem automática e<br />
das tecnologias relacionadas”, com vista<br />
a responder “às exigências de segurança<br />
nacional e económica dos Estados<br />
Unidos, nomeadamente ao risco<br />
económico”. Ambos os organismos incluem<br />
nas suas fileiras um grande número<br />
de capitães da indústria de Silicon<br />
Valley e quadros superiores de<br />
empresas como Oracle, Amazon, Microsoft,<br />
Facebook e, claro, os antigos<br />
colegas de Eric Schmidt na Google.<br />
Estratégia de Eric Schmidt<br />
Na sua qualidade de presidente, Schmidt,<br />
que ainda detém mais de 5,3 mil<br />
milhões de dólares em acções da Alphabet<br />
(a empresa-mãe da Google),<br />
bem como participações substanciais<br />
noutras empresas do sector, está a fazer<br />
o que parece ser uma campanha<br />
de extorsão de fundos em Washington<br />
em nome da Silicon Valley. O objectivo<br />
número uma das duas organizações<br />
[o Defense Innovation Board e a NS-<br />
CAI] é um aumento em flecha da despesa<br />
pública em Inteligência Artificial<br />
e nas infraestruturas necessárias para<br />
implementar tecnologias como o 5G<br />
– investimentos que beneficiariam directamente<br />
as empresas em que Eric<br />
Schmidt e outros membros destes organismos<br />
têm grandes participações.<br />
Exposta inicialmente em apresentações<br />
à porta fechada, frente aos parlamentares,<br />
e depois em artigos e entrevistas<br />
destinados ao grande público,<br />
a ideia principal dos argumentos de<br />
Schmidt é a de que a posição dominante<br />
dos EUA na economia global está directamente<br />
ameaçada pela política<br />
da China, que gasta sem limites para<br />
se doptar de infraestruturas de vigilância<br />
de alta tecnologia – permitindo<br />
que empresas chinesas, como Alibaba,<br />
Baidu e Huawei, embolsem os benefícios<br />
das suas aplicações comerciais.<br />
O Electronic Privacy Information Center<br />
(Epic) [Centro de Informação sobre<br />
Informática e Liberdades] acedeu recentemente,<br />
através de um pedido ao<br />
abrigo da lei de acesso à informação,<br />
a uma apresentação feita pela NSCAI<br />
de Eric Schmidt, em Maio de 2019. Descobre-se<br />
aí uma série de afirmações<br />
alarmistas, nomeadamente a referência<br />
a que o quadro regulamentar mais<br />
permissivo da China e a que o seu gosto<br />
desmesurado pela vigilância permitirão<br />
que a China ultrapasse os EUA<br />
em várias áreas, incluindo “a Inteligência<br />
Artificial ao serviço do diagnóstico<br />
médico”, os veículos autónomos,<br />
as infraestruturas digitais, as “cidades<br />
inteligentes”, a partilha de carros e o<br />
pagamento sem papel.<br />
As razões citadas [pela NSCAI] para<br />
explicar esta vantagem competitiva<br />
da China são múltiplas, a começar pelo<br />
número considerável de consumidores<br />
que faz compras online, a “falta<br />
de um sistema bancário tradicional na<br />
China”, que permitiu a Pequim contornar<br />
o dinheiro e os cartões de crédito<br />
para “criar um mercado gigantesco<br />
de comércio electrónico e de serviços<br />
digitais”, através do “pagamento sem<br />
papel”, mas também a grave escassez<br />
de médicos, o que levou o Estado a trabalhar<br />
em estreita colaboração com<br />
empresas como a Tencent, para utilizar<br />
a Inteligência Artificial em benefício<br />
da medicina “predictiva”.<br />
A apresentação destacava também<br />
que as empresas chinesas “têm a possibilidade<br />
de ultrapassar rapidamente<br />
as barreiras regulamentares, enquanto<br />
as iniciativas norte-americanas<br />
encalham nos procedimentos de<br />
conformidade à lei HIPAA [sobre a<br />
confidencialidade dos dossiers médicos]<br />
e nos de homologação da Food and<br />
Drug Administration [a agência de segurança<br />
sanitária e alimentar].<br />
Mas a NSCAI explicava esta vantagem<br />
competitiva principalmente em<br />
termos das parcerias público-privadas,<br />
que a China não se faz rogada de<br />
assinar, nas áreas de vigilância em<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong><br />
55
sociedade<br />
massa e de recolha de dados. A apresentação<br />
sublinhava o “forte envolvimento<br />
do Estado chinês, por exemplo,<br />
na implementação do reconhecimento<br />
facial”, precisando que “a vigilância<br />
é um cliente óbvio da Inteligência<br />
Artificial” e, mais à frente, que “a vigilância<br />
em massa é uma das aplicações<br />
emblemáticas do deep learning”<br />
[aprendizagem profunda, assente em<br />
algoritmos e na qual se baseia o reconhecimento<br />
facial].<br />
Concorrência estratégica com a China<br />
Numa das páginas da apresentação,<br />
intitulada Recolha de Dados: Vigilância<br />
= Cidades Inteligentes, salientava-<br />
-se que a China, graças ao Alibaba – o<br />
principal concorrente chinês do Google<br />
– estava a liderar a corrida. O que é interessante,<br />
porque a Alphabet, a empresa-mãe<br />
da Google, está a vender-<br />
-nos exactamente o mesmo através da<br />
sua filial [dedicada à inovação urbana]<br />
Sidewalk Labs, escolhendo o centro de<br />
Toronto para estabelecer o seu protótipo<br />
de “cidade inteligente”. Só que o<br />
projecto de Toronto acaba de ser abandonado,<br />
após dois anos de controvérsia<br />
reiterada sobre a enorme quantidade<br />
de dados pessoais que a Alphabet<br />
iria recolher, além da falta de salvaguardas<br />
na protecção da privacidade<br />
dos residentes e dos benefícios questionáveis<br />
para a cidade como um todo.<br />
Cinco meses após esta apresentação,<br />
em Novembro de 2019, a NSCAI apresentou<br />
ao Congresso um relatório preliminar<br />
no qual alertava: os Estados<br />
Unidos da América precisavam de alcançar<br />
a China nestas tecnologias controversas.<br />
“Encontramo-nos numa situação<br />
de concorrência estratégica”,<br />
repetia-se no relatório, obtido pelo<br />
Epic ao abrigo da lei de acesso à informação.<br />
“A Inteligência Artificial é uma<br />
questão central. O futuro da nossa segurança<br />
e o da nossa economia dependem<br />
disso.” No final de Fevereiro, Eric<br />
Schmidt decidira concentrar a sua<br />
campanha no grande público, talvez<br />
percebendo que os investimentos em<br />
massa, que a sua comissão estava a<br />
pedir, não seriam aprovados sem um<br />
forte apoio. Num artigo publicado pelo<br />
New York Times [a 27 de Fevereiro] e<br />
intitulado I was the boss of Google: China<br />
could pass Silicon Valley, Eric Schmidt<br />
apelava “a parcerias inéditas<br />
entre o Estado e o sector privado” e,<br />
mais uma vez, alertava para a ameaça<br />
do perigo: “A Inteligência Artificial<br />
irá empurrar as fronteiras em todos<br />
os domínios, da biotecnologia à banca,<br />
e já constitui também uma prioridade<br />
no domínio da Defesa... Se a tendência<br />
actual se confirmar, o investimento<br />
total da China em investigação<br />
e desenvolvimento poderá ultrapassar<br />
o dos Estados Unidos da América<br />
dentro de dez anos, mais ou menos ao<br />
mesmo tempo que se espera que a sua<br />
economia ultrapasse a nossa. A menos<br />
que esta tendência se inverta, encontrar-nos-emos,<br />
nos anos 2030, em concorrência<br />
com um país que tem uma<br />
economia mais forte, que investe mais<br />
em investigação e desenvolvimento,<br />
que tem, portanto, uma melhor investigação,<br />
que implementa mais tecnologias<br />
novas e que tem uma infraestrutura<br />
informática mais forte. Em suma:<br />
os chineses pretendem tornar-se<br />
a principal força inovadora do planeta,<br />
e os Estados Unidos da América não<br />
estão equipados com os meios necessários<br />
para os vencer.”<br />
56<br />
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digital<br />
Novos anjos da guarda<br />
A única solução, para Eric Schmidt, seria<br />
uma campanha em massa de investimentos<br />
públicos. Aplaudindo a Casa<br />
Branca por ter pedido a duplicação<br />
do financiamento para a Inteligência<br />
Artificial e a investigação em computação<br />
quântica, escrevia: “Seria conveniente<br />
duplicar uma vez mais os financiamentos<br />
atribuídos a estes domínios,<br />
reforçando-se as capacidades institucionais<br />
dos laboratórios e dos centros<br />
de investigação... Ao mesmo tempo, o<br />
Congresso deveria satisfazer o pedido<br />
do Presidente para rever em alta o financiamento<br />
da investigação e desenvolvimento<br />
da Defesa (para proporções<br />
inéditas em 70 anos), e o Departamento<br />
de Defesa deveria utilizar estes<br />
recursos para se doptar de capacidades<br />
de ponta nos domínios da Inteligência<br />
Artificial, da computação quântica,<br />
da tecnologia hipersónica e de outras<br />
áreas tecnológicas prioritárias.”<br />
Isto foi exactamente duas semanas antes<br />
de a epidemia do covid-19 ter sido<br />
elevada à categoria de pandemia, e em<br />
parte alguma Eric Schmidt mencionou<br />
que este desenvolvimento de alta tecnologia<br />
tinha como objectivo proteger<br />
a saúde dos norte-americanos. Apenas<br />
nos foi dito que era necessário não<br />
sermos esmagados pela China. Mas,<br />
claro, o discurso iria mudar em breve.<br />
Nos dois meses seguintes, Schmidt trabalhou<br />
para ripostar as exigências<br />
formuladas anteriormente – aumento<br />
massivo da despesa pública em infraestruturas<br />
tecnológicas, multiplicação<br />
de parcerias público-privadas na<br />
área da Inteligência Artificial, flexibilização<br />
de muitas das salvaguardas<br />
que visam garantir a nossa segurança<br />
e proteger a nossa privacidade. Hoje,<br />
todas estas medidas (e muitas mais)<br />
estão a ser-nos vendidas como a única<br />
esperança para nos protegermos<br />
de um vírus que se espera que continue<br />
a atormentar-nos durante os próximos<br />
anos. Os gigantes digitais com os<br />
quais Eric Schmidt tem laços estreitos<br />
e que povoam os influentes conselhos<br />
consultivos a que ele preside reposicionaram-se<br />
para aparecer como anjos<br />
da guarda da saúde pública e geneum<br />
verdadeiro know-how no fornecimento<br />
e na distribuição. No futuro, terão<br />
de fornecer serviços e aconselhamento<br />
aos decisores políticos que não<br />
possuam os sistemas de informação e<br />
a experiência necessários. Será igualmente<br />
conveniente desenvolver o ensino<br />
à distância, que nunca antes foi<br />
experimentado a tal escala. A internet<br />
elimina a exigência de proximidade<br />
física, o que permite aos estudantes<br />
frequentar os cursos dos melhores<br />
professores, independentemente da<br />
área geográfica em que vivem. A necessidade<br />
de uma experimentação rápida<br />
em larga escala irá também acelerar<br />
a revolução biotecnológica... Em<br />
suma, a necessidade de uma infraestrutura<br />
digital digna desse nome há<br />
muito tempo que se faz sentir no nosso<br />
país... Se quisermos construir uma<br />
economia e um sistema educativo baseados<br />
na desmaterialização, precisamos<br />
de uma população totalmente conectada<br />
e de infraestruturas de elevado<br />
desempenho. Para tal, o Estado<br />
O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, disse que a<br />
empresa, “orgulhosamente americana”, não teria tido sucesso<br />
sem “leis que encorajam a concorrência e a inovação”<br />
rosos defensores dos “heróis quotidianos”,<br />
sem os quais a economia não funcionará<br />
(muitos deles, como os motoristas<br />
de entregas, perderiam os seus<br />
empregos, se estas empresas forem<br />
bem-sucedidas).<br />
Uma visão de futuro<br />
Menos de 15 dias após o início do confinamento<br />
do estado de Nova Iorque,<br />
Eric Schmidt publicou [a 27 de Março]<br />
outro artigo no Wall Street Journal,<br />
em que anunciava esta mudança<br />
de base e transmitia claramente a intenção<br />
de Silicon Valley aproveitar a<br />
crise para provocar mudanças duradouras.<br />
“Tal como outros norte-americanos,<br />
os actores do sector das novas<br />
tecnologias estão a trabalhar para desempenhar<br />
o seu papel no apoio aos<br />
que estão na linha da frente da pandemia...<br />
Mas a pergunta que todos devem<br />
fazer é: como queremos que seja<br />
este país quando a pandemia desaparecer?<br />
Como podem as tecnologias<br />
emergentes, que actualmente estão a<br />
ser utilizadas para enfrentar a crise,<br />
fazer com que o futuro seja melhor?<br />
Empresas como a Amazon possuem<br />
deve fazer investimentos consideráveis<br />
– talvez como parte de um plano<br />
de recuperação – para transformar<br />
as infraestruturas digitais nacionais<br />
em plataformas desmaterializadas<br />
(nuvem) e associá-las à rede 5G.”<br />
Durante esta mesma vídeo-conferência,<br />
o seu comentário mais eloquente<br />
foi, porém, o seguinte: “Estas empresas<br />
que temos prazer em denegrir trazem<br />
benefícios notáveis nas áreas da<br />
comunicação, da saúde pública e da difusão<br />
de informação. Imagine como seria<br />
a sua vida nos EUA sem a Amazon.”<br />
Acrescentava que as pessoas deviam<br />
“demonstrar um pouco mais de gratidão<br />
para com as empresas que dispunham<br />
dos capitais necessários, que investiram,<br />
que conceberam as ferramentas<br />
que usamos hoje e que foram<br />
uma ajuda preciosa”.<br />
Um discurso que nos lembra que, até<br />
há muito pouco tempo, a desconfiança<br />
da opinião pública em relação a estas<br />
empresas aumentava dia para dia.<br />
Os candidatos presidenciais debatiam<br />
abertamente a ideia de desmantelar<br />
os gigantes digitais. A Amazon foi forçada<br />
a abandonar o seu projecto de<br />
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57
sociedade<br />
instalar a sua sede em Nova Iorque,<br />
devido à forte oposição local. O projecto<br />
Sidewalk Labs da Google estava em<br />
crise crónica, e os próprios funcionários<br />
da Google recusavam- se a apoiar<br />
ferramentas de vigilância com aplicações<br />
militares. Por outras palavras, a<br />
democracia – ou seja, a participação<br />
inoportuna do grande público na organização<br />
das grandes instituições e<br />
do espaço público – estava a revelar-<br />
-se o principal obstáculo à visão que<br />
Schmidt pretendia impor.<br />
O “travão” do poder público<br />
Hoje, em plena hecatombe, e no clima<br />
de medo e de incerteza que a acompanha,<br />
estas empresas veem nesta pandemia<br />
uma clara oportunidade de porem<br />
fim a este compromisso democrático,<br />
de forma a beneficiarem do mesmo<br />
tipo de poder que os seus concorrentes<br />
chineses, que se dão ao luxo de<br />
fazer o que querem sem serem impedidos<br />
pelos recursos intempestivos ao<br />
direito do trabalho ou do cidadão.<br />
O Governo australiano assinou um<br />
contrato com a Amazon que lhe permite<br />
registar dados da sua controversa<br />
aplicação de rastreio do vírus, e o<br />
seu homólogo canadiano fez o mesmo<br />
para a entrega de equipamento médico,<br />
contornando (perguntamo-nos porquê)<br />
o serviço postal público.<br />
E, no espaço de apenas alguns dias, no<br />
início de Maio, a Alphabet lançou uma<br />
nova iniciativa do Sidewalk Labs para<br />
repensar a infra-estrutura urbana,<br />
com a atribuição de 400 milhões de dólares<br />
[365 milhões de euros]. Josh Marcuse,<br />
administrador do Defense Innovation<br />
Board presidido por Eric Schmidt,<br />
anunciou que vai deixar o seu<br />
cargo para trabalhar a tempo inteiro<br />
na Google, como chefe de estratégia<br />
e inovação para o sector público mundial<br />
– por outras palavras, vai ajudar<br />
a Google a explorar algumas das muitas<br />
oportunidades que ele e Schmidt<br />
trabalharam para criar através de<br />
campanhas de lobby.<br />
Sejamos claros: a tecnologia irá certamente<br />
desempenhar um papel importante<br />
na protecção da saúde pública<br />
nos futuros meses e anos. A questão<br />
é se esta tecnologia estará sujeita ao<br />
controlo da democracia e dos cidadãos,<br />
ou se será imposta no frenesim de um<br />
estado de excepção, sem que sejam levantadas<br />
as questões de fundo que determinarão<br />
a forma das nossas vidas<br />
nas décadas vindouras.<br />
Perguntas como estas, por exemplo:<br />
uma vez que estamos a constatar que<br />
a tecnologia digital é indispensável<br />
em tempos de crise, estas redes – e os<br />
nossos dados – deverão permanecer<br />
nas mãos de actores privados, como a<br />
Google, a Amazon ou a Apple? Se eles<br />
são largamente financiados por fundos<br />
públicos, então não deveriam os<br />
cidadãos ser também seus proprietários<br />
e controlá-los? Se a internet tem<br />
um lugar assim tão grande nas nossas<br />
vidas como claramente tem, não deveria<br />
ser considerada um serviço público<br />
sem fins lucrativos?<br />
E embora não haja dúvida de que a<br />
vídeo-conferência proporciona uma<br />
ligação vital ao mundo exterior em<br />
tempos de contenção, a questão reside<br />
em se saber se investir nas pessoas<br />
não será a forma mais sustentável de<br />
nos protegermos, e é esta questão que<br />
merece um verdadeiro debate. Vejamos<br />
o caso da educação. Eric Schmidt<br />
tem razão em dizer que as salas de<br />
aula superlotadas são um risco para a<br />
saúde, pelo menos até encontrarmos<br />
uma vacina. Mas, nesse caso, porque<br />
não duplicar o número de professores<br />
e diminuir o tamanho das turmas<br />
para metade? Porque não assegurar<br />
que todas as escolas tenham uma enfermeira?<br />
Isto permitiria criar empregos<br />
num contexto económico digno<br />
da Grande Depressão [a pior crise económica<br />
do século XX] e daria um pouco<br />
mais de espaço ao pessoal e aos utilizadores<br />
de ensino. E se os edifícios são<br />
demasiado pequenos, porque não dividir<br />
o dia em turnos e dar mais espaço<br />
às actividades educativas ao ar livre,<br />
apoiando-se nos muitos estudos<br />
que demonstram que o tempo passado<br />
na Natureza melhora a capacidade de<br />
aprendizagem das crianças?<br />
Como melhorar a Educação<br />
A implementação de tais medidas levaria<br />
tempo, obviamente, mas não são<br />
tão arriscadas como fazer tábua rasa<br />
de métodos testados: humanos adultos,<br />
qualificados, que ensinam os jovens<br />
58<br />
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digital<br />
Além da discriminação étnica e social<br />
óbvia que este ensino cria em relação<br />
a crianças que não têm internet<br />
ou computadores em casa (problemas<br />
que os gigantes digitais sonham em<br />
resolver através da compra em massa<br />
de equipamento com financiamento<br />
público), levantam-se sérias questões<br />
sobre a capacidade de o ensino à distância<br />
satisfazer as necessidades dos<br />
estudantes com deficiências, tal como<br />
exigido por lei. E não há solução tecnológica<br />
para o problema da aprendizagem<br />
num ambiente doméstico sobrelotado<br />
e/ou violento.<br />
Falta de debate público<br />
A questão não é se as instituições devem<br />
evoluir para se adaptar a este vírus<br />
altamente contagioso para o qual<br />
não existe cura ou vacina. Como todas<br />
as outras instalações de acolhimento,<br />
elas irão mudar. O problema, como<br />
sempre nestes tempos de trauma colectivo,<br />
é a falta de debate público relativamente<br />
às formas que estas mudanças<br />
devem assumir e quem deve<br />
beneficiar delas. Empresas privadas<br />
tir que todos terão os recursos materiais<br />
e a assistência necessários para<br />
passar a quarentena em segurança.<br />
Em qualquer caso, estamos perante<br />
uma escolha concreta e difícil entre,<br />
por um lado, investir nas pessoas<br />
e, por outro lado, investir na tecnologia,<br />
porque a verdade cruel é que, na<br />
situação actual, é pouco provável que<br />
invistamos em ambos. A recusa de<br />
Washington em transferir os recursos<br />
necessários para os estados e cidades<br />
significa que a crise sanitária dará<br />
muito rapidamente lugar a uma austeridade<br />
orçamental. Escolas públicas,<br />
universidades, hospitais e operadores<br />
de redes de transportes enfrentam<br />
questões existenciais quanto ao seu futuro.<br />
Se a implacável campanha de lobby<br />
dos gigantes digitais sobre ensino<br />
à distância, tele-medicina, 5G e veículos<br />
autónomos (o seu Screen New Deal)<br />
der frutos, simplesmente não haverá<br />
mais dinheiro nos cofres para lidar<br />
com outras emergências, incluindo o<br />
tão necessário Green New Deal. Pelo<br />
contrário: o preço a pagar por todas<br />
estas engenhocas vistosas será uma<br />
“Porque não duplicar o número de professores<br />
e diminuir o tamanho das turmas para metade,<br />
ao invés de se mudar todo o paradigma do ensino?”<br />
humanos que estão à sua frente, em locais<br />
onde aprendem a socializar.<br />
Ao tomar conhecimento da nova parceria<br />
do estado de Nova Iorque com a<br />
Fundação Gates, Andy Pallotta, presidente<br />
do sindicato estatal dos professores,<br />
respondeu inequivocamente:<br />
“Se quisermos reinventar a educação,<br />
comecemos por satisfazer as necessidades<br />
dos assistentes sociais, psicólogos,<br />
enfermeiros escolares, por propor<br />
actividades artísticas enriquecedoras,<br />
cursos de aperfeiçoamento e por reduzir<br />
o tamanho das turmas em toda<br />
a academia.” Uma federação de associações<br />
de encarregados de educação<br />
também fez questão de salientar que,<br />
embora os pais tivessem, de facto, tido<br />
uma “experiência de aprendizagem<br />
à distância” (para usar a expressão<br />
de Eric Schmidt), as conclusões foram<br />
alarmantes: “Desde o encerramento<br />
das escolas, em meados de Março,<br />
a nossa preocupação com as deficiências<br />
óbvias do ensino baseado no ecrã<br />
não cessa de aumentar.”<br />
de tecnologia ou estudantes? A mesma<br />
questão aplica-se à saúde. Evitar<br />
os consultórios médicos e os hospitais<br />
durante uma pandemia é uma questão<br />
de bom senso. Mas a tele-medicina<br />
tem sérias lacunas. Seria conveniente<br />
lançar um debate informado sobre os<br />
prós e contras da atribuição de recursos<br />
públicos preciosos à tele-medicina<br />
– e não ao recrutamento de enfermeiros<br />
mais bem formados, munidos com<br />
todo o equipamento de protecção necessário,<br />
que podem deslocar-se a casa<br />
dos doentes para fazerem um diagnóstico<br />
e tratá-los.<br />
Talvez o mais urgente seja a necessidade<br />
de se encontrar o equilíbrio justo<br />
entre as aplicações de rastreio do vírus,<br />
que podem desempenhar um papel<br />
importante se acompanhadas por<br />
protecções apropriadas da privacidade,<br />
e os apelos à criação de um “corpo<br />
de saúde de proximidade”, que empregaria<br />
milhões de norte-americanos,<br />
não só para rastrear a cadeia de<br />
infecção mas também para garanonda<br />
de despedimentos na educação e<br />
de encerramentos de hospitais.<br />
Oportunidade perfeita<br />
A tecnologia fornece-nos ferramentas<br />
poderosas, mas nem todas as soluções<br />
são tecnológicas. E o maior inconveniente<br />
de se confiar a homens como<br />
Bill Gates e Eric Schmidt decisões cruciais<br />
sobre como “reinventar” as nossas<br />
cidades e estados é que eles passaram<br />
as suas vidas a demonstrar que<br />
não há nem um problema que a tecnologia<br />
não consiga resolver. Para eles, e<br />
para muitos outros em Silicon Valley,<br />
a pandemia é a oportunidade perfeita<br />
para receber não só gratidão, mas<br />
também a consideração e o poder de<br />
que eles sentem ter sido injustamente<br />
privados. Ao escolher o antigo chefe<br />
do Google para ficar frente da comissão<br />
que irá determinar os termos<br />
de desconfinamento no estado de Nova<br />
Iorque, Andrew Cuomo deu-lhe algo<br />
que se parece muito com um cheque<br />
em branco.<br />
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59
lá Fora<br />
A HORA DA DESILUSÃO<br />
Oficialmente, foi devido à pandemia que as eleições foram adiadas na Etiópia, mas a verdade é que Abiy Ahmed,<br />
o primeiro-ministro e Nobel da Paz, que tem vindo a prometer o início de uma nova era para o País, começa<br />
a dar sinais preocupantes, segundo um antigo membro do partido no poder<br />
Texto Mulugeta G. Berhe • Fotografia D.R.<br />
adecisão do primeiro-ministro<br />
Abiy Ahmed em<br />
adiar as eleições na Etiópia<br />
causou uma crise constitucional.<br />
A Covid-19 serve-lhe<br />
de pretexto, mas não é a causa.<br />
Evocando a pandemia, o Governo de<br />
Addis Abeba decidiu adiar indefinidamente<br />
as eleições agendadas. No entanto,<br />
esse adiamento está na origem<br />
de um problema excepcional que as<br />
autoridades definem, hoje, como uma<br />
crise constitucional. O mandato de<br />
cinco anos das legislaturas federais e<br />
regionais, bem como o das suas administrações,<br />
termina a 30 de <strong>Setembro</strong>,<br />
o que pressupõe uma dificuldade específica.<br />
Depois dessa data, quem estará,<br />
afinal, autorizado a governar até à<br />
realização de novas eleições?<br />
O partido no poder apresenta quatro<br />
cenários possíveis para contornar<br />
esta crise constitucional: dissolver<br />
o Parlamento; declarar o Estado de<br />
Emergência; alterar a Constituição; ou<br />
concordar numa interpretação desta<br />
última. Das quatro opções, a última é a<br />
preferida do Governo. E foi a que o Parlamento<br />
aprovou a 5 de Maio de <strong>2020</strong>.<br />
O partido no poder solicitou ao Conselho<br />
da Federação [a Câmara Alta<br />
do Parlamento da Etiópia] uma inter-<br />
pretação no espaço de um mês. Uma<br />
decisão rejeitada pelos partidos da<br />
oposição que detêm, na sua maioria, o<br />
poder em circunscrições importantes.<br />
O Congresso Federalista Oromo, uma<br />
coligação de seis partidos, denunciou-a<br />
e apelou a um diálogo no sentido de se<br />
alcançar uma solução política. A Frente<br />
de Libertação do Povo do Tigré alegou<br />
que a medida era inconstitucional<br />
e que iria preparar eleições regionais<br />
para impedir que o regime permanecesse<br />
em funções de maneira ilegítima.<br />
Dadas as tensões que atravessam o cenário<br />
étnico e político da Etiópia, estas<br />
eleições só podiam ser complicadas.<br />
60<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Etiópia<br />
A comissão eleitoral e o seu novo presidente<br />
garantiram que tinham iniciado<br />
os preparativos para o escrutínio. Mas<br />
foi só em Fevereiro deste ano que o calendário<br />
eleitoral foi tornado público.<br />
Tal vai contra o processo habitual que<br />
prevê que a comissão anuncie o calendário<br />
nove meses antes do dia da<br />
votação. Segundo as informações comunicadas<br />
em Fevereiro, as eleições<br />
teriam lugar a 29 de <strong>Agosto</strong> de <strong>2020</strong>.<br />
Várias organizações e grupos políticos<br />
manifestaram preocupação relativamente<br />
a esta data. Devido à estação<br />
das chuvas, trata-se de uma época do<br />
ano em que grande parte das áreas<br />
rurais é de difícil acesso. Isso limitaria<br />
a participação da maioria dos etíopes.<br />
A comissão eleitoral, no entanto, permaneceu<br />
determinada nesta data de<br />
<strong>Agosto</strong>, alegando que qualquer adiamento<br />
causaria uma crise constitucional,<br />
porque seria um governo não<br />
eleito que passaria a estar em funções.<br />
A julgar por esta sucessão de acontete.<br />
Quando se substitui a Frente Democrática<br />
Revolucionária do Povo Etíope<br />
(FDRPE) pelo Partido da Prosperidade,<br />
pode dizer-se que se perde toda a legalidade.<br />
O Partido da Prosperidade<br />
só tem uma legalidade de fachada,<br />
porque os representantes eleitos sob<br />
a bandeira do FDRPE ingressaram ilegalmente<br />
no Partido da Prosperidade.<br />
Adiar eleições sem um acordo político<br />
apropriado pode ser a última gota que<br />
fará transbordar o copo. O País corre<br />
o risco de vir a ser balcanizado em<br />
função de linhas de fractura étnicas.<br />
A região do Tigré declarou que planeia<br />
realizar as suas eleições regionais.<br />
Nem a comissão eleitoral nem o<br />
Governo de Ahmed estão legalmente<br />
em posição de impedir que a população<br />
do Tigré organize essa eleição.<br />
Qualquer tentativa de impedimento<br />
pela força poderá dividir os etíopes<br />
conforme a sua etnia. Esse facto poderia<br />
levar a população do Tigré a<br />
invocar o Artigo 39 da Constituição<br />
O International Crisis Group observou que as tácticas usadas<br />
por Ahmed eram uma reminiscência dos métodos autoritários<br />
do passado. Aqueles a que ele tinha jurado renunciar<br />
A Comissão Nacional de Eleições foi<br />
reorganizada em 2018. Birtukan Mideksa,<br />
uma ex-líder da oposição, ficou<br />
como responsável. Apesar destes<br />
desenvolvimentos, o Governo sempre<br />
mostrou relutância em cumprir<br />
o prazo previsto para as eleições.<br />
O primeiro-ministro Ahmed disse que<br />
o seu Governo tinha de consultar todos<br />
os grupos políticos do País antes de determinar<br />
se convinha ou não manter<br />
o prazo.<br />
Métodos do passado<br />
No seu relatório mais recente, o International<br />
Crisis Group observou<br />
que as tácticas de Ahmed eram uma<br />
reminiscência dos métodos autoritários<br />
do passado, a que ele tinha jurado<br />
renunciar, e que incluíam a prisão e<br />
a perseguição de activistas e de opositores.<br />
Somente em Outubro de 2019<br />
(quando o Comité Nobel havia acabado<br />
de anunciar que Ahmed era o laureado<br />
com o prémio Nobel da Paz) é que<br />
o primeiro-ministro declarou explicitamente<br />
que qualquer adiamento das<br />
eleições podia afectar a legalidade e a<br />
legitimidade do seu Governo.<br />
cimentos, é óbvio que a crise constitucional<br />
já se estava a formar antes dos<br />
problemas adicionais causados pelo Covid-19.<br />
Os preparativos tardios e a escolha<br />
de uma data irrealista já ameaçavam,<br />
na prática, a realização dessas<br />
eleições, bem como a sua legitimidade.<br />
A pandemia ofereceu às autoridades o<br />
pretexto ideal para novos adiamentos.<br />
Especialistas na Etiópia, como René Lefort,<br />
jornalista e autor de Éthiopie, La<br />
Révolution Hérétique [Maspéro, 1981],<br />
realçam o facto de Ahmed estar a personalizar<br />
cada vez mais o poder. Na<br />
opinião deste escritor, Ahmed mostrou<br />
que aspirava, a todo custo, tornar-se o<br />
“grande homem” do País – se necessário,<br />
saindo do quadro da legalidade.<br />
Negociações políticas<br />
O Governo reverteu o progresso feito<br />
no domínio da liberalização do espaço<br />
político. A intimidação e o encarceramento<br />
em massa dos opositores regressaram,<br />
prova de um retorno aos<br />
antigos métodos autoritários. O regime<br />
de Ahmed falha no cumprimento<br />
das suas promessas e a sua legitimidade<br />
está a desmoronar-se rapidamene<br />
a proclamar a independência. Vários<br />
dos grandes grupos da oposição,<br />
incluindo a maior coligação de partidos<br />
oromos (grupo étnico da Etiópia),<br />
disseram igualmente que planeiam<br />
seguir o próprio caminho após 30 de<br />
<strong>Setembro</strong>. Recusam-se a reconhecer<br />
um governo ilegítimo. A solução passa,<br />
portanto, mais por negociações políticas<br />
do que por uma “interpretação” da<br />
Constituição. Independentemente das<br />
contorções a que sejam submetidas<br />
para interpretá-las num sentido favorável,<br />
nenhuma das cláusulas da Constituição<br />
prevê a extensão do mandato<br />
do primeiro-ministro cessante para<br />
lá de 30 de <strong>Setembro</strong> [o que acaba de<br />
ser feito, já que o seu mandato foi prorrogado<br />
“até ao final da pandemia”].<br />
Um acordo quanto à data das próximas<br />
eleições, bem como quanto à<br />
forma que tomaria um governo provisório,<br />
entre o mês de <strong>Setembro</strong> e as<br />
próximas eleições, só pode resultar<br />
de um diálogo entre todos os partidos<br />
políticos e os principais agentes da sociedade<br />
civil. Caso contrário, a Etiópia<br />
corre o risco de sofrer a pior crise da<br />
sua História moderna.<br />
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61
NOVOS ÂNGULOS<br />
Saltar em frente ou back to basics<br />
Pedro Cativelos • Director-Executivo da Media4Development<br />
dizem-nos as notícias que a economia de Moçambique<br />
contraiu 3,25% no segundo trimestre<br />
do ano, face ao mesmo período do ano<br />
passado, segundo o Instituto Nacional de Estatística<br />
(INE).<br />
O desempenho negativo da actividade económica<br />
é atribuído, em larga medida, ao fraco desempenho do<br />
sector dos serviços, que regrediu em 4,06%, com maior destaque<br />
para o ramo de Hotelaria e Restauração com uma variação<br />
de menos 35,84%. Já a Indústria Extractiva, caiu 25,55%.<br />
Novidade é que a Agricultura teve um variação positiva de<br />
3,53% sendo, na prática, dos poucos ramos de actividade a<br />
demonstrar crescimento. Não é difícil de perceber porquê.<br />
Ao contrário do que se chegou a temer, o País não entrou<br />
em lockdown, o que levou a que a actividade económica<br />
que sustenta a economia nacional, porque é, ainda hoje, a<br />
agricultura que mais contribui para o total da riqueza nacional,<br />
se mantivesse nos eixos.<br />
Num mundo que se fechou em casa nos primeiros meses do<br />
ano, com a circulação de pessoas limitada, estrangulando<br />
negócios, cadeias de distribuição e indústrias, Moçambique,<br />
por características específicas da economia nacional, acaba<br />
por apresentar alguns traços diferentes da tendência<br />
mundial mesmo que, na globalidade, os sectores mais afectados<br />
sejam essencialmente os mesmos. Turismo, Transporte<br />
Aéreo e Eerviços são os grandes afectados.<br />
No entanto, com as exportações a travarem e, até pelo peso<br />
que têm no dia-a-dia económico, a produção interna ganhou<br />
um (ainda que pequeno) novo fôlego numa altura em que o<br />
ar é potencialmente perigoso, um pouco por toda a parte.<br />
Não deixo de olhar para o modo como Moçambique tem lidado<br />
com a pandemia, como a evidência de uma bem estruturada<br />
decisão, tomada de forma equilibrada e ponderada<br />
de acordo com a realidade existente no País.<br />
E como só um processo conduzido dessa forma pode,<br />
mesmo numa época de confusão global, em que muito<br />
está ainda está por descobrir, trazer benefícios. E, neste<br />
caso, até revelador de uma sugestão para reflectir sobre<br />
algo que não tenho visto suficientemente debatido.<br />
Olhando ao panorama do mundo, não deixa de parecer<br />
ilógico como uma das mais antigas actividades humanas<br />
acabe por emergir do tal novo normal figurando a par<br />
(bem menos visível, é certo) da ascensão da tecnologia.<br />
Afinal, o tal admirável novo mundo que nos traçam desde o<br />
final de 2019 não é assim tão novo. Ou tão admirável.<br />
Porque sugere caminhos distintos para problemas idênticos.<br />
O que fazer perante os constrangimentos que têm sido<br />
colocados ao modelo de sociedade que temos vindo a construir,<br />
de forma mais ou menos alinhada, em todo o mundo,<br />
assentes na exploração de recursos naturais, na sua transformação<br />
e comercialização, baseada na massificação dos<br />
canais de informação. Agir sobre eles, consciencializando?<br />
Ou optando pela solução que passa por deixar de sair de<br />
casa para ficar o resto da nossa existência a olhar para o<br />
computador ou para o telemóvel? Se perguntarmos a um<br />
agricultor ele sabe a resposta.<br />
Muito se tem escrito nos últimos meses sobre o papel da<br />
tecnologia e de como ela se constituiu rapidamente como a<br />
única solução para um problema que ainda não sabemos,<br />
na realidade, qual é verdadeiramente.<br />
Ao mesmo tempo que se noticiam tratamentos em fase de<br />
testes, e com sucesso, ou se anuncia a iminência da invenção<br />
de vacinas, somos constantemente inundados por uma<br />
torrente de certezas absolutas sobre como é que vai ser o<br />
mundo que sempre conhecemos. E vai ser digital, dizem-nos.<br />
O que é tão ridículo e exagerado como dizer que alguém que<br />
vê mal não pode ler nunca um livro. Ou que um outro alguém<br />
que teve uma indigestão nunca mais deveria comer.<br />
Sendo mais concreto, recordo que, sempre que se registaram<br />
ataques terroristas em países europeus, especialmente<br />
atentatórios de um modelo de liberdade social construído<br />
ao longo de séculos, uma das retóricas que prevaleceram<br />
foi a da resistência positiva, em nome de um modo de vida<br />
que levou gerações a ser alcançado. E em que Liberdade,<br />
mais do que uma palavra maiúscula, era a base para nos<br />
elevar e distanciar das acções minúsculas.<br />
Com a pandemia, nada disso se passou. Há uma ameaça mas,<br />
desta vez, foi diferente e em poucos meses abdicámos, todos<br />
no mundo, de coisas que demoraram séculos a conseguir.<br />
Haverá razões para tal e, mais do que debater porque assim<br />
Aceitar as restrições impostas pelas entidades competentes é, tão só, uma questão de bom senso<br />
e de respeito. Já acatar, sem questionar, o novo normal digital, não parece ser um bom caminho<br />
62<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Do crescimento na agricultura à quebra, em dois, de um navio. A pandemia e a nova sociedade fazem-nos pensar sobre o que nos move. Ilustração de Sebastien Thibault<br />
foi, interessa-me perceber se ainda pode voltar a ser.<br />
Passados quase nove meses do primeiro caso chinês do coronavírus,<br />
já terá passado tempo suficiente para reflectirmos<br />
sobre algumas coisas do antigo normal. Do que era<br />
bom nele e do que que não estava, de facto, bem na forma<br />
como habitávamos o planeta e nos relacionávamos.<br />
Casos como o da brutal explosão de uma carga abandonada<br />
ao longo de anos no Porto de Beirute, ou o do navio japonês<br />
que se partiu em dois, pintando com 800 toneladas de<br />
óleo negro sujo os recifes do mar da Maurícia, parecem<br />
dar força à razão de que é urgente mudar algo na forma<br />
de fazer muitas das coisas que suportaram o que foi normal<br />
para nós nas últimas largas décadas. A forma de fazer<br />
negócios, de comerciar, de cultivar, de trabalhar. E de<br />
aprender. Mas que repensemos todos esses modelos, pelas<br />
razões certas. Não por medo.<br />
Porque ainda estamos a tempo de reciclar o antigo normal,<br />
antes de o enviarmos para o lixo e nos fecharmos em<br />
casa a fingir que, com esse novo mundo, tudo o que estava<br />
errado desaparece, só porque está mais longe. E assim<br />
possamos, no conforto do isolamento social permanente,<br />
fazer compras pela Amazon, twittar sabedorias inócuas,<br />
postar poses no Instagram, ou tentar ser pais, filhos ou irmãos,<br />
professores ou companheiros, ao mesmo tempo que<br />
trabalhamos, imitando imagens que nos chegam de lugares<br />
arrumados, fingindo não estar confusos entre as reais<br />
vantagens de se tentar ser profissional no espaço em que<br />
se devia procurar ser indíviduo e família.<br />
Aceitar as restrições impostas por todas as entidades<br />
competentes é, tão só, uma questão de bom senso e de<br />
respeito pela Liberdade do próximo que todos devemos<br />
ao que chamamos de sociedade democrática. E zelar<br />
para que isso aconteça à nossa volta. Já acatar serenamente<br />
todas as mudanças sociais que, em todo o<br />
mundo, estão há meses a ser promovidas pelos grandes<br />
interessados no negócio do mundo tecnológico, da inteligência<br />
artificial ao retalho online, a quem, natural<br />
e legitimamente, interessa enquanto modelo de<br />
negócio que a sociedade deixe de ser pessoal e passe a<br />
ser unicamente digital, parece-me um salto virtual para<br />
um vazio bem real. Ser Humano pressupõe existir e para<br />
isso, tem de haver coexistência. Com distanciamento, claro,<br />
e cuidados com um vírus que ainda estamos a descobrir.<br />
O crescimento da agricultura mostra-nos, afinal, que ainda<br />
há um velhinho mundo, bastante simples, no qual, se<br />
semearmos, colhemos e até comemos. Nem que seja só<br />
para conseguir digitar mais depressa. Que não seja apenas<br />
isso o ser Humano daqui para a frente.<br />
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63
ócio<br />
(neg)ócio s.m. do latim negação do ócio<br />
66<br />
Nesta edição<br />
visitamos<br />
o Feitoria<br />
Boutique Hotel,<br />
na Ilha de<br />
Moçambique<br />
e<br />
g<br />
68<br />
O Jacarandá<br />
e o lugar onde<br />
Moçambique<br />
se junta, no<br />
prato, com a<br />
gastronomia<br />
portuguesa<br />
69<br />
A escolha da<br />
adega recai<br />
na nova vaga<br />
de Bourbons
Feitoria<br />
Boutique<br />
Hotel<br />
Preço médio<br />
7 500 MZN<br />
+258<br />
849696963o<br />
info@feitoria.<br />
com.mz<br />
e<br />
Feitoria Boutique Hotel<br />
a um ritmo<br />
doce<br />
as belas histórias têm belas<br />
atmosferas e belos protagonistas.<br />
Levam tempo.<br />
Esta história tem pelo menos<br />
sete anos, os que foram<br />
necessários para reestruturar<br />
uma antiga ruína e torná-la<br />
num boutique hotel.<br />
Foram anos de grande trabalho.<br />
Muitos contentores de<br />
materiais vindos de Portugal,<br />
da Índia, da África do Sul.<br />
Foram dezenas os trabalhadores<br />
envolvidos, muitos<br />
dos quais estão agora a<br />
trabalhar como funcionários<br />
da Feitoria, o boutique<br />
hotel que abriu as portas<br />
há alguns meses, na Ilha<br />
de Moçambique, fruto do<br />
sonho, do amor e da capacidade<br />
de entrega de Mário<br />
Gomes e de Ângela Freitas.<br />
Acolhe hóspedes nacionais<br />
e internacionais que<br />
chegam à Ilha em lazer,<br />
em trabalho ou para assistir<br />
a conferências. Tem 20<br />
quartos que oferecem uma<br />
linda vista sobre o rendilhado<br />
(como o belo logo do<br />
Feitoria) das ruelas da cidade,<br />
das estrelas no céu e<br />
das águas do canal da Ilha,<br />
onde levemente cruzam os<br />
dhows. Os quartos têm nome<br />
de especiarias que os<br />
feitores comercializavam<br />
antigamente naquele lugar.<br />
Os antigos armazéns<br />
são quartos que dão para a<br />
piscina, a antiga loja e a casa<br />
do feitor são outros quartos,<br />
uma sala de conferências<br />
e a recepção do hotel.<br />
Cores suaves, típicas da Ilha<br />
– branco, amarelo, cor-de-<br />
-rosa e azul claro –, são iluminadas<br />
à noite pela luz ténue<br />
de candeeiros de latão<br />
vazado, acompanhando o<br />
ritmo doce das ondas do mar.<br />
Quando Ângela e Mário<br />
decidiram reestruturar a<br />
antiga ruína não ficaram<br />
assustados com o grande<br />
trabalho que iriam ter.<br />
Procuraram manter a traça<br />
arquitectónica, usando<br />
as técnicas de construção<br />
e os materiais de há quatro<br />
séculos, quando esta<br />
feitoria foi construída,<br />
em 1780. Ao lado da pura<br />
(e árdua!) necessidade de<br />
reabilitação, a motivação<br />
era de natureza prática e<br />
ambiental: poupança energética<br />
com painéis solares,<br />
gerador, estação de tratamento<br />
da água (a água e<br />
a energia são as grandes<br />
dores de cabeça na Ilha) e<br />
materiais de primeira classe<br />
para enfrentar a corrosividade<br />
do sal e do mar. O<br />
hotel conta com um sistema<br />
fiável e eficiente, instalado<br />
num edifício em frente – a<br />
casa técnica –, com baixo<br />
impacto ambiental e com toda<br />
a vantagem para os hóspedes<br />
e para o ecossistema<br />
frágil da Ilha.<br />
texto Paola Rolletta<br />
fotografia Mauro Pinto<br />
66<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Os quartos têm nome de especiarias que os feitores<br />
comercializavam antigamente naquele lugar<br />
ROTEIRO<br />
Como ir<br />
A LAM voa de Maputo para<br />
Nampula e/ou Nacala (a partir<br />
de 16 000 MZN ida e volta). Em<br />
Nampula e/ou Nacala, aluga-se<br />
um carro e segue-se para a Ilha<br />
por estrada, cerca de 180 km de<br />
Nampula e 120 Km de Nacala<br />
(aluguer de carro custa cerca<br />
de 4 500 MZN. Um dos taxistas<br />
mais conhecidos é Fatahe).<br />
O que fazer<br />
Roteiro de dhow até às ilhas<br />
de Goa, Sete Paus, Cobra e às<br />
praias da Carrusca e Cabaceira<br />
Pequena. Pode-se ainda fazer<br />
snorkeling e ver as baleias.<br />
Onde comer<br />
O restaurante Karibu, no bairro do<br />
Museu, serve óptimo peixe, atum<br />
fresco com gengibre, deliciosas<br />
saladas de polvo. Tudo pelas<br />
mãos da cozinheira D. Maria<br />
Amélia que prepara uma óptima<br />
matapa de siri siri e um guloso<br />
pudim de abóbora. Preço médio<br />
por refeição é de 700 MZN.<br />
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67
Todos<br />
reconhecemos,<br />
sem dificuldade,<br />
os elementos<br />
de base que<br />
constituem a<br />
essência de um<br />
bom restaurante.<br />
O menu do<br />
“Jacarandá”<br />
reflecte uma<br />
tradição<br />
culinária<br />
Jacarandá<br />
Preço médio<br />
1 000 MZN<br />
Av. Armando<br />
Tivane<br />
nº 65<br />
Maputo<br />
+258 82 323 5180<br />
todos reconhecemos, sem<br />
dificuldade, os elementos de<br />
base que constituem a essência<br />
de um bom restaurante:<br />
a qualidade da matéria-<br />
-prima, isto é, a excelência<br />
dos produtos que são o fundamento<br />
da oferta gastronómica.<br />
Mas sem o saber, ou<br />
melhor, sem a arte capaz de<br />
os transformar numa iguaria<br />
cujo desfrute os torna<br />
memoráveis, é óbvio que<br />
só a qualidade não basta.<br />
Existem certamente outras<br />
componentes, ainda que<br />
num plano subsidiário, que<br />
ajudam a fazer a diferença:<br />
um serviço competente e<br />
atencioso e uma atmosfera<br />
acolhedora. É a combinação<br />
de tudo isto que distingue os<br />
bons restaurantes e transforma<br />
a degustação num ritual<br />
que convida à constante<br />
repetição da experiência.<br />
Mas se esta constelação de<br />
factores são os traços distintivos<br />
de todos os bons<br />
restaurantes, o que verdadeiramente<br />
traça uma linha<br />
divisória entre estes e<br />
aqueles que se encontram<br />
num patamar superior<br />
de excelência é o “suplemento<br />
de alma” que neles<br />
encontramos. Ou seja, é a<br />
g<br />
Jacarandá, onde a comida<br />
percepção de que a qualidade<br />
da experiência vivida<br />
(em todas as suas dimensões)<br />
resulta de um investimento<br />
afectivo incondicional e<br />
reflecte, mais do que um<br />
“saber fazer”, uma entrega<br />
que faz do “acto culinário”<br />
um elemento existencial<br />
constitutivo da própria vida<br />
e não, tão só, uma “prática”<br />
meramente “profissional”.<br />
E é isto que encontramos<br />
no “Jacarandá”. Mas de onde<br />
vem este “suplemento<br />
de alma”? Porventura do<br />
facto de este ser, assumidamente,<br />
um projecto familiar<br />
e, enquanto tal, tecido<br />
pelas memórias profundas<br />
do que, para as três mulheres<br />
que são os pilares desta<br />
aventura (Florinda, Carla e<br />
Sandra Costa), marcaram<br />
a sua história “culinária”, e<br />
os gostos e os sabores que<br />
alimentaram o seu percurso.<br />
É, sem dúvida, por isso que<br />
Carla Costa gosta de definir<br />
a oferta do “Jacarandá” como<br />
“aquilo que gostávamos<br />
de comer em casa: o medalhão<br />
com natas e cogumelos,<br />
o strognoff, o arroz de pato,<br />
o bacalhau com natas ou à<br />
braz....”. E, nesse sentido, o “Jacarandá”<br />
é, essencialmente,<br />
‘comida de casa’. “Nós queremos<br />
que as pessoas que aqui<br />
vêm comer se sintam como<br />
se estivessem em sua casa<br />
ou na dos pais ou dos avós...”. O<br />
menu do “Jacarandá” reflecte,<br />
em larga medida, a tradição<br />
culinária portuguesa.<br />
Apesar de Carla e Sandra<br />
terem nascido na Zambézia,<br />
as suas raízes (e a longa<br />
estadia que tiveram em<br />
Portugal antes de regressar<br />
ao País), levaram-nas,<br />
compreensivelmente, a de-<br />
tem alma<br />
senhar uma ementa mais<br />
“portuguesa”, mesmo que<br />
dela constem pratos como o<br />
arroz de garoupa à zambeziana,<br />
ou o caril de camarão.<br />
E ainda bem, pois a qualidade<br />
da oferta é insuperável.<br />
Experimentem, por<br />
exemplo, o pernil de porco<br />
com castanhas portuguesas,<br />
acompanhado de grelos salteados<br />
e batata frita, o arroz<br />
de garoupa e camarão, o arroz<br />
de pato ou o medalhão<br />
com natas e cogumelos e<br />
verão que esta é, genuinamente,<br />
a “comida da casa”<br />
que qualquer um desejaria<br />
poder desfrutar.<br />
texto rui Trindade<br />
fotografia Jay Garrido<br />
68<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>
Maker’s Mark<br />
País<br />
EUA<br />
Região<br />
Kentucky<br />
Aroma<br />
Frutas vermelhas, calda<br />
de caramelo e baunilha<br />
Sabor<br />
Xarope de maple, caramelo,<br />
especiarias, baunilha,<br />
frutas vermelhas<br />
Teor Alcoólico<br />
45%<br />
Wild Turkey Rare Breed<br />
País<br />
EUA<br />
Região<br />
Kentucky<br />
Aroma<br />
Baunilha, caramelo,<br />
laranja e notas florais<br />
Sabor<br />
Chocolate, baunilha, especiarias<br />
e notas de madeirao<br />
Teor Alcoólico<br />
56,4%<br />
FEW Bourbon<br />
País<br />
EUA<br />
Região<br />
Illinois<br />
Aroma<br />
Caramelo, malte,<br />
especiarias, canela.<br />
Sabor<br />
Caramelo, pimenta do reino,<br />
cravo e canela; final longo e floral<br />
Teor Alcoólico<br />
46,5%<br />
Woodford<br />
Reserve<br />
Distiller’s<br />
Select<br />
País<br />
EUA<br />
Região<br />
Kentucky<br />
Aroma<br />
Laranja e<br />
caramelo.<br />
Ao contrário<br />
de outros<br />
bourbons,<br />
o aroma de<br />
baunilha é<br />
muito subtil,<br />
ainda que<br />
presente<br />
SABOr<br />
Levemente<br />
picante, com<br />
bastante<br />
caramelo<br />
e açúcar<br />
mascavo.<br />
Baunilha e<br />
laranja subtis<br />
Teor alcoólico<br />
43,2%<br />
A história do bourbon quase<br />
se confunde com a própria<br />
história dos estados Unidos<br />
Bourbon<br />
a nova vaga<br />
dos whiskies americanos<br />
o bourbon é considerado por muitos a bebida<br />
nacional dos EUA. Na verdade, a sua história<br />
quase se confunde com a do País, pois o início<br />
do seu fabrico está ligado à chegada, em finais<br />
do século XVIII, de imigrantes alemães,<br />
escoceses e do norte da Irlanda que trouxeram<br />
consigo não apenas a tradição do consumo<br />
do whisky mas também os conhecimentos<br />
de destilação que estão na sua base. Porém, enquanto<br />
os whiskies do Velho Continente são essencialmente<br />
feitos com centeio, os norte-americanos<br />
são feitos a partir do milho. Um bourbon,<br />
para se poder assim chamar, tem de ter<br />
no mínimo 51% de milho. Existem muitas marcas<br />
que são bem conhecidas dos apreciadores<br />
(Jim Beam, o Wild Turkey, o Elijah Craig,<br />
etc.), mas um facto interessante, em anos recentes,<br />
tem sido o destaque dado a bourbons<br />
com características particulares e distintivas.<br />
Um facto que atesta bem como os factores de<br />
diferenciação pesam cada vez mais no mercado.<br />
Um exemplo notório é o Maker’s Mark.<br />
Promovido como o “único bourbon artesanal do<br />
mundo”, é feito de trigo doce e vermelho, milho<br />
e cevada. O Maker’s Mark é, certamente, um<br />
pioneiro mas a verdade é que a tendência para<br />
a produção artesanal, enquanto garante de<br />
“autenticidade”, vem ganhando força e seria<br />
de admirar se, também no que diz respeito aos<br />
bourbons, ela não se verificasse. Daí que não<br />
possamos deixar de mencionar o Few, um bourbon<br />
relativamente seco e apimentado feito de<br />
70% de milho, 20% de centeio e 10% de cevada.<br />
A nossa sugestão principal deste mês vai, no<br />
entanto, para o Woodford Reserve Distiller’s<br />
Select que tem sido incluído, de forma consistente,<br />
no lote dos melhores bourbons actualmente<br />
disponíveis no mercado.<br />
Feito de forma 100% artesanal, é produzido<br />
por uma das mais antigas destilarias dos Estados<br />
Unidos. Um dos aspectos que lhe confere<br />
uma personalidade muito particular<br />
é o facto de ser composto de 72% de milho,<br />
18% de centeio e 10% de malte de cevada,<br />
com uma fermentação mais demorada. As<br />
barricas virgens de carvalho onde matura<br />
são produzidas na Brown Forman Cooperage,<br />
também responsável por fabricar as usadas<br />
pela Jack Daniel’s. Isso permite que a destilaria<br />
escolha apenas as melhores barricas para<br />
maturar o seu bourbon por sete anos, quase<br />
três anos a mais do que a sua maioria .<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong><br />
69
Resgate<br />
Já em<br />
exibição<br />
no Netflix<br />
“RESGATE”. UM FILME MOÇAMBICANO<br />
“resgate” é um filme moçambicano,<br />
que já se estende<br />
para o mundo, cumprindo<br />
um objectivo preconizado<br />
pela produtora moçambicana<br />
“Mahla Filmes”.<br />
Para surpresa de todos, incluino<br />
os autores, o filme<br />
moçambicano tornou-se no<br />
primeiro dos PALOP com<br />
os direitos adquiridos pela<br />
gigante mundial do streaming,<br />
a Netflix. Mas este<br />
voo não é, de todo, obra do<br />
acaso. Afinal, durante vários<br />
anos, desde 2011, intercalados<br />
pela realização<br />
de vídeos, documentários<br />
e eventos, os resultados<br />
da produção iam deixando<br />
clara a possibilidade<br />
de realizar um dia o sonho<br />
de ir mais longe, uma ambição<br />
tomada a sério pelos<br />
produtores. De acordo com<br />
o cinematografista e realizador<br />
de “Resgate”, Pipas<br />
Forjaz, “houve vários desafios<br />
para levar o filme à Netflix<br />
no que diz respeito à<br />
adaptação da própria história,<br />
às técnicas de filmagem.<br />
Filmar um documen-<br />
“Resgate” é a realização de um sonho<br />
“o de produzir um filme independente,<br />
que conta ‘histórias’ locais<br />
www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong><br />
QUE ABRE UM NOVO MERCADO PARA OS PALOP<br />
tário não é o mesmo que filmar<br />
uma ficção, neste caso,<br />
as exigências de ficção são<br />
muito maiores”, diz.<br />
Apesar das carências do<br />
País e da particular falta de<br />
apoios ao cinema nacional,<br />
a produção moçambicana<br />
pode ser vista em mais de<br />
190 países do mundo, entre<br />
os “10 Mais” da Netflix, particularmente<br />
nos ecrãs dos<br />
países falantes da língua<br />
portuguesa. “Esta nossa entrada<br />
na Netflix acarreta<br />
muita responsabilidade de<br />
encarar outros estilos e de<br />
fazer superar o que agora<br />
conseguimos com ‘Resgate’,<br />
melhorar a qualidade...”,<br />
complementa Mickey Fonseca,<br />
o realizador do filme.<br />
Mas como pega a Netflix<br />
num filme moçambicano,<br />
pensamos todos? “Creio que<br />
a ideia de eles começarem<br />
com ‘Resgate’, um produto<br />
novo no mercado, é para<br />
avaliarem o mercado PA-<br />
LOP e depois começarem a<br />
incluir outros filmes falados<br />
em português”. O filme, que<br />
estreou a 29 de Julho passado<br />
sob o título “Redemption”,<br />
conta as vicissitudes<br />
do quotidiano moçambicano<br />
através de um personagem<br />
que faz de tudo para<br />
ter uma vida melhor que<br />
aquela que parece ter-lhe<br />
sido negada pelo destino.<br />
“Um dos segredos do ‘Resgate’<br />
é o facto de não só se<br />
passar aqui dentro da cidade<br />
de Maputo, mas também<br />
de abordar esses vários<br />
pontos: o problema da banca,<br />
do acesso ao emprego, do<br />
crime… e por detrás de tudo<br />
isso há outras mensagens”,<br />
contou Mickey Fonseca.<br />
O “Resgate” é igualmente a<br />
realização de um sonho “o<br />
de produzir um filme independente,<br />
que conta ‘histórias’<br />
locais, interpretada<br />
por actores moçambicanos,<br />
produzido por moçambicanos”,<br />
assinalou.<br />
Como que a resgatar os<br />
poucos incentivos que existem<br />
à indústria cinematográfica<br />
de Moçambique, o<br />
apelo surge natural, para<br />
que “as entidades competentes<br />
se alinhem junto do<br />
sector privado” e apoiem a<br />
sétima arte.<br />
71
CADILLAC<br />
LYRIQ<br />
Marca:<br />
Cadillac<br />
Modelo:<br />
Lyriq<br />
Bateria: 100<br />
kWh<br />
Velocidade:<br />
500 km<br />
autónomos<br />
Preço<br />
estimado:<br />
75 a 90 mil<br />
dólares<br />
v<br />
CADILLAC LYRIQ<br />
a primeira aposta da General<br />
Motors (GM) para o O PRIMEIRO ELÉCTRICO DA GM<br />
segmento dos eléctricos é<br />
um luxuoso SUV, o Cadillac<br />
Lyriq, totalmente construído<br />
numa plataforma eléctrica<br />
modular e alimentado<br />
pelas novas baterias de longo<br />
alcance Ultium criadas<br />
na própria fabricante.<br />
Embora um pouco atrasado<br />
no rol de lançamentos de<br />
modelos eléctricos de luxo, o<br />
crossover da GM foi projectado<br />
para competir no mesmo<br />
patamar de modelos como<br />
o Tesla Model Y, o Ford<br />
Mustang Mach-E, o Volvo<br />
XC40 Recharge, o Audi Q4 E-<br />
-Tron e o BMW iNext.<br />
O concept apresentado este<br />
mês representa já cerca<br />
de 80% a 85% do que vai ser<br />
a versão final para o mercado<br />
a uma “redefinição do luxo<br />
americano”.<br />
Com cerca de 4,80 metros de<br />
comprimento, o interior espaçoso,<br />
que proporciona um<br />
ambiente mais arejado, tem<br />
apenas quatro assentos e<br />
uma consola central que divide<br />
os bancos dianteiros e<br />
traseiros, com um ecrã sensível<br />
ao toque para os passageiros<br />
de trás.<br />
Entretanto, os bancos dianteiros,<br />
dão acesso a um painel<br />
dinâmico com um ecrã<br />
OLED curvo de 33 polegadas,<br />
também sensível ao toque.<br />
Espera-se que o Apple<br />
CarPlay, Android Auto e um<br />
hotspot Wi-Fi sejam recursos<br />
padrão quando o Lyriq<br />
trica do grupo GM, sendo<br />
que os clientes poderão optar<br />
por versões de tracção<br />
traseira ou integral. A tracção<br />
integral será opcional e<br />
adiciona um segundo motor<br />
na frente para conduzir essas<br />
rodas. O Lyriq será o primeiro<br />
de muitos modelos<br />
eléctricos da fabricante automóvel,<br />
destinados a transformar<br />
a mítica marca norte-americana,<br />
que sempre<br />
foi conhecida pelos elevados<br />
consumos que os seus<br />
carros ostentavam. Eram<br />
quase um símbolo do poder<br />
americano sobre os recursos<br />
naturais.<br />
Não deixa de ser interessante<br />
que seja este Lyriq a quete<br />
e, segundo o presiden-<br />
chegar aos showrooms brar o lirismo, sendo o pri-<br />
da General Motors, Steve<br />
Carlisle, que falava na apresentação<br />
deste Cadillac, com<br />
o modelo Lyriq, dará início<br />
da Cadillac.<br />
O Lyric será o primeiro Cadillac<br />
que terá como base a<br />
plataforma modular elécmeiro<br />
passo de uma estratégia<br />
que, até ao final desta<br />
década, tornará a GM numa<br />
marca totalmente eléctrica,<br />
aumentando a produção para,<br />
segundo anuncia, um milhão<br />
de veículos eléctricos<br />
por ano até 2025.<br />
A primeira aposta da GM no segmento<br />
dos eléctricos é um luxuoso SUV<br />
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www.economiaemercado.co.mz | <strong>Agosto</strong> <strong>2020</strong>