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FPF360_N40

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REVISTA OFICIAL DA FEDERAÇÃO

PORTUGUESA DE FUTEBOL

N.º 40 · SETEMBRO-DEZEMBRO 2020

€2 · TRIMESTRAL

A PRENDA MAIS DESEJADA

FC PORTO E SL BENFICA TERMINAM O ANO COM A POSSIBILIDADE

DE CONQUISTAREM UMA SUPERTAÇA QUE “CHEIRA” A NATAL.



EDITORIAL

FERNANDO GOMES

PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL

OLHAR EM FRENTE

Muito próximos do final de um ano de que guardaremos

mais lições do que boas memórias, não poderíamos deixar de

aproveitar esta edição da FPF 360 para reafirmarmos os valores

que continuarão a nortear a Federação Portuguesa de Futebol.

Nesta casa acreditamos no trabalho árduo e em equipa;

no talento, no conhecimento, na imaginação,

na organização ou na disciplina.

Não procuramos a “fezada”, mas temos fé inabalável no

resultado dos nossos esforços. Nunca desistimos dos nossos

objetivos porque, como está escrito nas paredes da Cidade

do Futebol, os desistentes nunca vencem e temos

uma crença inquebrantável no dia de amanhã.

Procuramos ser justos, generosos e bondosos, assumindo

as responsabilidades perante aqueles que, no futebol

e na vida, mais precisam de ajuda.

Nunca viramos costas às nossas responsabilidades

na construção de um país mais rico, saudável

ou sustentável ambientalmente.

Assumimos igualmente como nossa marca de água fundamental

- mesmo sabendo que o futebeol é um desporto coletivo - que

teremos sempre de cuidar, em primeiro lugar, da pessoa, nas

suas dimensões física, mental e até espiritual. Cuidamos da

árvore na esperança de que dela nascerá uma floresta frondosa.

No ano de 2020 fomos confrontados com desafios, obstáculos

e dificuldades que nunca esperámos encontrar. As nossas

respostas, porque os princípios interessam sempre mais do que

as personalidades, foram iguais às que daríamos nos dias de

bonança: foco, persistência,

otimismo e vontade de melhorarmos todos os dias.

Será com este estado de espírito que realizaremos

dois dias antes do Natal mais uma edição da Supertaça

Cândido de Oliveira onde se enfrentarão FC Porto e SL Benfica.

Sabemos das provas de enorme resiliência que os nossos clubes

e adeptos têm dado ao longo da pandemia e queremos e temos

o dever de os homenagear.

Os dois clubes que agora se defrontam foram os melhores

ao longo da época passada, mas só o conseguiram provar

em campo porque muitos outros clubes - de outras divisões,

estatuto ou mesmo historial -, enfrentando condições muito

adversas, conseguiram proteger o futebol e garantir a sua

sobrevivência.

Poderemos não ter ainda público nas bancadas, sabemos até

que o nosso próprio Natal será diferente de todos os anteriores,

mas quando a Final da Supertaça Cândido de Oliveira arrancar

teremos a certeza de que os nossos adeptos e o nosso futebol,

a mais importante das coisas menos importantes, deram ao país

enormes demonstrações de civismo, espírito de sobrevivência,

solidariedade e vontade de vencer e criar novas memórias .

Honrando também esse grande homem do futebol que foi

Cândido de Oliveira, procuraremos, já em 2021, pela parte

da FPF, imaginar uma nova história e acreditar nela.

Bom Natal e Feliz Ano Novo!


É PARA ERGUER

FC PORTO VS SL BENFICA

QUARTA-FEIRA

23 DE DEZEMBRO

20H45

SEJA RESPONSÁVEL. BEBA COM MODERAÇÃO.


O JOGO DOS JOGOS

A SUPERTAÇA CÂNDIDO DE OLIVEIRA VODAFONE 2020, ATÍPICA PELO MOMENTO E PELAS CIRCUNSTÂNCIAS, SERÁ O TEMA CENTRAL

DA 40.ª EDIÇÃO DA FPF360 E TERÁ ABORDAGENS DISTINTAS (UMAS MAIS CONVENCIONAIS QUE OUTRAS, HÁ ESPAÇO PARA TODAS).

OS 10 ANOS DE TRABALHO DE RUI JORGE NA LIDERANÇA TÉCNICA DOS SUB-21, UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA A CARECA

(ANTIGO COMPANHEIRO DE MARADONA NO NÁPOLES) E A REPUBLICAÇÃO DE 40 DAS CRÓNICAS JÁ ASSINADAS NESTA REVISTA

AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS TAMBÉM ESTARÃO EM DESTAQUE.

8 SÉRGIO CONCEIÇÃO E JORGE JESUS EM ENTREVISTA

OS TREINADORES DOS CLUBES FINALISTAS DA SUPERTAÇA FALAM

PELA PRIMEIRA VEZ DESTA PARTIDA NA FPF360.

48 REPORTAGEM – AMOR À DISTÂNCIA

HOMENAGEM AOS ADEPTOS QUE NÃO PODEM APOIAR

OS SEUS CLUBES NO ESTÁDIO DEVIDO À PANDEMIA.

13 JOÃO PINTO E LUIÃO DESFIAM MEMÓRIAS

ANTIGOS CAPITÃES DE FC PORTO E SL BENFICA RECORDAM

MOMENTOS INOLVIDÁVEIS NO HISTORIAL DA SUPERTAÇA.

53 UMA DÉCADA DE TRABALHO EM IMAGENS

O SELECIONADOR NACIONAL SUB-21, RUI JORGE,

ESCOLHEU E LEGENDOU 10 FOTOGRAFIAS MARCANTES DO SEU PERCURSO NA FPF.

22 DESPORTO É CULTURA

DIVERSOS ARTISTAS CONCEITUADOS EXPLICAM EM DETALHE A RELAÇÃO ENTRE MÚSICA

E FUTEBOL. E AINDA FICA A SABER COM QUE GÉNEROS MUSICAIS SE VAI PODER PARECER

O FC PORTO-SL BENFICA NO DIA 23 DE DEZEMBRO.

38 FUTEBOL NO NATAL

HÁ MUITO PARA CONTAR SOBRE JOGOS EM PLENA QUADRA FESTIVA.

64 CARECA – O FIEL ESCUDEIRO DE MARADONA

ENTREVISTA EXCLUSIVA COM O COMPANHEIRO DO MALOGRADO

ASTRO ARGENTINO NO NÁPOLES QUE ENCANTOU A EUROPA.

70 40 CRÓNICAS

PARA ASSINALAR A 40.ª EDIÇÃO DA FPF360, REPUBLICAMOS 40 TEXTOS DAS MAIS DIVERSAS

PERSONALIDADES. PORQUE A PLURALIDADE SEMPRE FEZ PARTE DOS NOSSOS PRINCÍPIOS.

FPF360

Revista oficial da Federação

Portuguesa de Futebol

Registo na ERC N.º

126365

Depósito legal

359066/13

Propriedade/Edição/Redação

Avenida das Seleções

1495-433 Cruz Quebrada - Dafundo

NIF: 500 110 387

Telefone: (+351) 213 252 700

Fax: (+351) 213 252 780

Email: info@fpf.pt · Site: www.fpf.pt

Estatuto editorial disponível em

www.fpf.pt/Institucional/Revista-FPF360

Diretor

Alexandre Pereira

Conceção e textos

Rodrigo Dias, Tiago Sardo, Matilde

Dias, Francisco Trigo de Abreu, Miguel

Vieira, Bruno Henrique, Rúben Silva,

Germano Almeida e Patrícia Tadeia

Design

Nuno Martins

Fotografia

André Sanano/FPF, Diogo Pinto/FPF,

Arquivo Lusa, Shoot Happens, SL Benfica,

Sporting – Centro de Documentação,

Direitos Reservados, Desporto Escolar/

Alexandre Pona, Record

Fecho editorial

24 de julho de 2020

Assinaturas, dúvidas, críticas e sugestões

360@fpf.pt


Numa Supertaça inédita, a ambição habitual

Chegamos, por fim, aos últimos dias de 2020. Um ano

de muitas lutas e não menos perdas. No entanto, entre

múltiplos cenários imprevisíveis, temos pelo menos

uma certeza: o futebol está a resistir a esta verdadeira

tempestade mundial chamada COVID-19. Não está a ser

fácil para ninguém e as consequências estruturais ainda

são desconhecidas, mas continuamos a ver pela televisão

protagonistas de grande qualidade a proporcionarem

espetáculos fantásticos em todo o mundo, apesar da

ausência de adeptos na esmagadora maioria dos países.

É um facto que também a Supertaça Cândido de Oliveira,

que opõe anualmente as duas equipas que mais se

destacaram em Portugal na época anterior, deveria ter

sido realizada em agosto, mas estarmos aqui a escrever

sobre o tema, com o Natal à porta, não deixa de ser um sinal

de esperança, de ânimo e de reconhecimento para todos

aqueles que têm levado o “barco para a frente”, correndo

riscos para que milhões de telespectadores

possam continuar a vibrar desporto que tanto amam

e – não menos importante – que os jovens impedidos

de competir neste momento continuem a ter referências

em quem se possam rever.

A capacidade de adaptação é uma qualidade – mais do

que nunca - exigida a quem faz do futebol a sua vida e as

equipas do FC Porto e do SL Benfica já mostraram que estão

preparadas para grandes exigências num contexto nada

habitual. Espera-se, por isso, que em Aveiro o futebol saia

valorizado, a memória de Cândido de Oliveira honrada

e o desportivismo praticado como exemplo superlativo

para todas as gerações. Sobre o jogo propriamente dito,

a palavra deve ser dada a quem sabe: eis as primeiras

antevisões públicas à edição de 2020 do “jogo dos jogos”,

por Sérgio Conceição (treinador do FC Porto) e Jorge Jesus

(treinador do SL Benfica).

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SÉRGIO

CONCEIÇÃO

TREINADOR FC PORTO

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Terminar um ano de 2020 difícil para todos

com a conquista da Supertaça teria um

significado especial?

Tem um significado especial apenas por ser

mais um título que está em disputa. E todos

os títulos são especiais.

Como prevê este jogo?

Jogo de final, difícil, onde

estão presentes os dois clubes

rivais com historial mais rico. É um jogo

sem favoritos à partida e que, como todos,

terá a sua história, a sua vida própria dentro de

um enquadramento de grande qualidade das

duas equipas que se defrontam.

Jogar perto do Natal adiciona simbolismo a

esta edição?

Acho que quando vamos disputar um título

ninguém está a pensar na época do ano que se

vive. Não tem outro simbolismo que não seja

querer ganhar a supertaça.

As equipas já estão habituadas a jogar sem

adeptos, mas continua a ser estranho não

contar com esse apoio?

É estranho e mau para o futebol. A essência do

jogo é a paixão que os adeptos colocam em cada

jogo que assistem ao vivo. É uma pena não ter

adeptos, ainda mais nestes jogos decisivos onde

seguramente dariam outro colorido à final.

Já venceu uma Supertaça como treinador,

em 2018. Que memórias guarda dessa

partida?

Foi um momento especial, também porque

tive no estádio os meus familiares e entre

eles pessoas que, entretanto, já partiram.

Guardo por isso um carinho especial por essa

supertaça conquistada no mesmo estádio

onde jogaremos agora. Foi uma enorme alegria

por ter perto a minha família desportiva, o FC

Porto, e minha família de sangue.

Como jogador também triunfou na edição

de 1996. As sensações são comparáveis?

Foram momentos diferentes, na altura foi

também muito saboroso conquistar essa

supertaça em casa do rival com uma vitória

algo expressiva. Lembro-me que foi um jogo

fantástico, daqueles em que corre mesmo tudo

bem e merecemos essa conquista, que na altura

abrilhantou ainda mais uma época vitoriosa.

O FC Porto é a equipa com mais vitórias (21)

nesta prova. O que lhe diz este facto?

Que a cada conquista do clube aumenta a

responsabilidade dos que cá estão em busca de

novos títulos.

Qual é a importância da Supertaça no

panorama do futebol nacional?

É mais um título que queremos ganhar

para poder juntar à Taça e ao Campeonato

conquistados, fechando assim um ano tão

difícil, mas ao mesmo tempo fantástico.

A que valores associa a figura

de Cândido de Oliveira?

Cândido de Oliveira terá sempre que ser

associado aos valores mais nobres do desporto

Que mensagem quer deixar

aos portugueses para o ano de 2021?

Quero deixar uma mensagem de muita saúde,

principalmente neste momento que o país e o

mundo atravessam. Espero que cada vez mais

se possa dar valor à família porque, de entre

tudo o que de negativo trouxe este ano de 2020,

houve algo que devemos olhar como positivo

que é apreciar os mais pequenos gestos de

carinho e amor entre a família e o valor da

amizade. Desejo por isso saúde e felicidade

para todos os portugueses.

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JORGE

JESUS

TREINADOR SL BENFICA

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Terminar um ano de 2020 difícil para todos

com a conquista da Supertaça teria um

significado especial?

Ganhar tem sempre um significado especial,

mas neste caso teria ainda mais. 2020 está a ser

um ano difícil e muito exigente para todos e,

por isso, terminar da melhor seria, sem dúvida,

muito gratificante.

Como prevê este jogo?

É um clássico. E, como qualquer clássico, terá

emoção e paixão. Espero aquilo que todos

esperam: um grande jogo de futebol, disputado

por duas equipas com muita qualidade. Tenho

a certeza que assim será. Cabe-nos trabalhar

mais para que seja o Benfica a vencer o primeiro

troféu da temporada.

Jogar perto do Natal adiciona

simbolismo a esta edição?

Acaba por ser isso, sim, até porque nunca houve

uma Supertaça na antevéspera de Natal. Mas

quando o árbitro apitar para o início do jogo,

de certeza que os jogadores não vão pensar em

mais nada que não seja o que ali vai estar em

disputa.

As equipas já estão habituadas a jogar sem

adeptos, mas continua a ser estranho não

contar com esse apoio?

Uma equipa nunca se irá habituar a isto que

estamos a viver. Podemos já não estranhar

tanto como no início, mas nunca um

profissional de futebol estará confortável ao

ver as bancadas vazias. Nunca!

Já venceu duas Supertaças como treinador,

em 2014 e 2015. Que memórias guarda

dessas partidas?

Foram jogos com ambiente próprio de uma

final, com um ambiente especial e a tal emoção

que faz falta ao futebol. Desta vez, infelizmente,

vai faltar esse contexto.

Já venceu as Supertaças da Arábia Saudita

e do Brasil. Que diferenças encontrou

relativamente à experiência que teve na

competição portuguesa?

Um troféu é sempre um trofeu. É para isso que

qualquer treinador trabalha. É aquilo que todos

perseguimos: conquistas. Independentemente

do país em que se disputam essas decisões.

Ganhar no nosso próprio país tem um sabor

especial, é verdade. Mas também é muito bom

ter sucesso além-fronteiras. E eu, felizmente,

já tive a oportunidade de passar por essa

experiência.

Este será o primeiro título que discute neste

regresso a Portugal. Qual é o sentimento

com que o faz?

Com a mesma ambição que sempre tive. Não

muda nada. Claro que é importante voltar a

ter sucesso em Portugal e foi para isso que

regressei ao meu país e ao Benfica, mas a

verdade é que chego a este jogo, como disse,

com a mesma ambição e vontade de vencer que

sempre tive.

Qual é a importância da Supertaça no

panorama do futebol nacional?

É uma prova que conquistou o seu espaço e

que merece ser dignificada. É o que estamos

dispostos a fazer, uma vez mais.

A que valores associa a figura

de Cândido de Oliveira?

Alguém que dedicou a sua vida a causas

importantes. Para além de ter contribuído

de forma decisiva para a evolução do futebol

português, através do Benfica e do Sporting,

foi um homem que lutou pela liberdade e

que também teve um papel importante na

Imprensa nacional. Curiosamente, também

passou pelo futebol brasileiro e por um clube

que conheço bem: o Flamengo. Foi há 70 anos,

ainda eu não tinha nascido…

Que mensagem quer deixar

aos portugueses para o ano de 2021?

Que seja um ano em que possamos voltar a

sorrir e em que nos livremos deste pesadelo

que já dura há longos meses. Saúde para

todos! É o mais importante de tudo. Quanto

ao futebol, o que mais desejo é ver os adeptos

voltarem às bancadas.

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JOÃO PINTO

“A FILOSOFIA

SÓ PODE SER

UMA: AS FINAIS

SÃO PARA SE

GANHAR”

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João Domingos da Silva Pinto tem 59 anos

e uma carreira de nada menos que 21

temporadas ligadas ao clube do seu coração,

o FC Porto, 17 dos quais na equipa principal.

Ao serviço dos dragões, realizou quase sete

centenas de jogos oficiais, marcando 21 golos.

Foi igualmente internacional A por 70 vezes.

João Pinto conquistou 24 títulos, entre os quais

o famoso troféu de campeão europeu, depois

da vitória em 1987 diante do Bayern Munique,

com a braçadeira de capitão de equipa. Ganhou

9 campeonatos, 4 Taças de Portugal e nada

menos que 8 edições da Supertaça Cândido

de Oliveira. O FC Porto conquistou este troféu

em 21 das 42 edições, o que perfaz um sucesso

de 50 por cento. João Pinto participou em 12,

perdeu 4 e venceu as restantes, 7 delas diante

do Benfica e uma frente ao Estrela da Amadora.

O antigo jogador, ainda hoje ligado à estrutura

dos dragões, lembra-se de muitas destas

decisões, algumas delas bem renhidas, com

decisão pela disputa de prolongamentos,

finalíssimas e decisões da marca de penálti.

A primeira Supertaça de João Pinto remonta

a 1981, com Herman Stessl como treinador.

Foi a sua estreia em grandes competições,

com uma derrota na primeira mão,

mas o troféu foi garantido com um triunfo na

segunda mão. A última aconteceu já em 1994,

mais uma vez com recurso a uma finalíssima.

O que lhe vem à cabeça

quando se fala de Supertaça?

É uma final. Entram em campo as equipas que

ganham as duas principais competições do ano

anterior e é sempre uma final, para se ganhar.

Espero que este ano o FC Porto ganhe mais

uma vez.

Em 42 edições, o FC Porto conquistou

nada menos que 21 troféus, o que é uma

excelente média. É uma equipa talhada

para este tipo de competições?

São finais. Tanto vale ser nessa como noutra

competição, as finais são sempre para

ganhar. Nem se pode entrar em campo com

o pensamento noutra coisa qualquer. É claro

que o adversário é o Benfica, que tem bons

jogadores e está a fazer um bom campeonato,

tal como o FC Porto. Falta muito para acabar

a Liga NOS e tudo pode acontecer,

mas tratando-se de uma final, é só um jogo

e o vencedor sai deste jogo. Espero que seja

um bom espetáculo de futebol, estando

frente a frente duas grandes equipas.

Esteve em 12 finais e ganhou por 8 vezes.

Isto tem algum significado especial para si?

Para mim os jogos são todos iguais, seja qual for

o adversário. Quando jogava queria era ganhar,

ainda por cima falando-se de finais. A minha

maneira de ser era essa, a de ajudar o FC Porto

a ganhar os jogos todos, contra adversários

fortes ou menos fortes. Uma final é para ganhar

sempre, não apenas para entrar em campo

e disputar. As duas equipas querem

o mesmo resultado.

O João começou a sua carreira

logo com uma Supertaça, em 1981…

Foi contra o Benfica e perdemos

por 0-2 no Estádio da Luz.

Tem alguma memória especial?

Foi a primeira vez que joguei no Estádio da Luz,

que estava completamente cheio. Perdemos

e lembro-me que entrei na segunda parte.

Vencemos a segunda mão, se não me engano

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por 4-1, e nesse jogo também joguei

alguns minutos no segundo tempo.

Lembro-me de muitos desses jogos

Acha que era mais fácil ganhar

a Supertaça como no seu tempo, em que

havia pelo menos dois jogos, do que agora?

Quando as equipas são boas têm de estar

preparadas para ganhar seja em um ou em

dois jogos. Neste caso são dois grandes clubes,

mas quando são duas equipas e uma delas

é grande, um jogo é mais benéfico para quem

é mais forte. Quando são duas equipas grandes,

como é caso deste ano, com FC Porto e Benfica,

um ou dois jogos não torna mais fácil

ou mais difícil.

Em 1984 teve de ir à finalíssima

e só se definiu ao fim de quatro jogos…

Nesse ano, perdemos um jogo e ganhámos

o outro na final, e na finalíssima ganhámos

os dois jogos, num deles com dois golos

do Gomes. E em 1986 empatámos em

casa e depois fomos à Luz ganhar 4-2.

Lembra-se da Supertaça com o Estrela

da Amadora, em 1990, que o FC Porto

perdeu o primeiro jogo fora por 2-1

e acabou por conquistar o troféu

depois da vitória nas Antas por 3-0?

Esse jogo da segunda mão é inesquecível

para mim porque joguei-o quase todo com

o maxilar metido dentro, já que tinha levado

uma cotovelada no início do jogo. Passei

o tempo inteiro com dores e aguentei quase

até ao fim, acabando por ter se ser substituído.

Mas há mais curiosidades: em 1991 e 1993

o FC Porto ganhou nos penáltis e há uma

das edições em que o João Pinto até falhou

um remate dos 11 metros. Quer falar-nos

sobre isso?

A de 1991 foi em Coimbra e teve uma

particularidade que não posso esquecer.

Estávamos a perder por 1-0 e marquei o golo

de empate de penálti perto do fim, que nos

levou a prolongamento. No desempate, depois

do prolongamento, falhámos os dois primeiros

penáltis e eu fui um deles. O Benfica estava

a ganhar por 2-0 e acabou por perder.

Ganhámos essa edição da Supertaça por 4-3

nos penáltis. A de 1993 foi muto parecida:

perdemos um jogo e ganhámos o outro,

e acabámos por empatar na finalíssima, nesse

caso foi 2-2, depois de 1-1 nos 90 minutos.

Ganhámos outra vez nos penáltis por 4-3.

A última final que ganhou foi em 1994,

e outra vez ao Benfica, e mais uma vez

com recurso a finalíssima, depois

de empates nos dois jogos da final…

Foi essa, sim. Não foi a última que joguei,

mas foi a última que ganhei. A finalíssima

foi em Paris, com um grande ambiente.

A questão com essas decisões num só jogo

fazia-me lembrar as finais da Taça de Portugal

no Estádio Nacional: era um ambiente de festa.

Lembro-me que quando chegávamos umas

duas horas antes do jogo, havia aquele grande

ambiente à volta do estádio, com piqueniques.

As pessoas até vestiam as camisolas do FC

Porto e do adversário, tudo misturado. Era

o futebol que eu desejava que acontecesse

neste momento. Haver rivalidade sim, mas

com respeito uns pelos outros. O futebol tinha

muito a ganhar com isso.

Alguma dessas 8 vitórias foi especial para si?

Recordo todas as finais e ganhá-las é sempre

especial para qualquer jogador. Falo por

mim, porque as finais eram para entrar em

campo e fazer tudo para ganhar. E é claro que

ficava contente quando ganhava. E ganhei

muitas, felizmente. Mas eu entrava em campo

para ganhar sempre. Fazia parte da minha

personalidade.

Ainda por cima era o capitão de equipa

em grande parte delas…

Sim, em quase todas, só não fui nos primeiros

anos, quando ainda jogava o Gomes, porque era

ele o capitão. De resto fui sempre eu.

Recentemente o FC Porto ganhou cinco

Supertaças seguidas, entre 2009 e 2013, mas

nos últimos seis anos só ganhou uma, em

2018, ao CD Aves, já com Sérgio Conceição

como treinador. Isto significa que o futebol

está mais equilibrado hoje em dia?

Acho que temos equipas mais fortes, o futebol

está mais equilibrado. Neste momento,

por exemplo, temos o Sporting de Braga mais

próximo dos chamados “três grandes”.

Mas penso que, em geral, todas as equipas

estão mais próximas hoje em dia, e isso

deve-se às infraestruturas que esses clubes

têm. Antigamente só havia três academias

e hoje quase todos têm um centro de treinos.

As equipas só tinham um campo para treinar

e agora já não é bem assim; há quem tenha dois

e três relvados com boas condições. E isso

acaba por dar resultados desportivos,

uma vez que são proporcionadas melhores

condições de trabalho aos jogadores.

É tudo uma questão de investimento,

e o facto é que muitos clubes têm vindo

a investir ao longo dos anos.

Na altura em que o João Pinto começou,

a ambição de todos os jogadores era chegar

a um grande, não é?

Porque o FC Porto, e falo só nesse caso, porque

é a realidade que conheço melhor, era quem

tinha melhores infraestruturas e dava melhores

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condições para treinar e jogar, e por isso a ambição das crianças e dos

jovens era chegar a um clube com essa dimensão.

Com o crescimento dos clubes como vemos hoje, há condições muito

boas para trabalhar, com autênticas academias. A grande diferença que

há do meu tempo para o atual é que hoje os clubes todos

são profissionais e trabalham muito bem.

Não se pode comparar o percurso do João, que deve ter sentido

muitas dificuldades para ir do Oliveira do Douro para o FC Porto,

para um miúdo de hoje em dia, que chega com maior facilidade

a um patamar mais elevado…

Não se compara, obviamente. Agora é totalmente diferente. Há uma

grande agressividade entre os clubes para contratar os melhores jovens.

Hoje já todos apostam na formação, o que não acontecia no meu tempo.

Hoje já todos têm olheiros a descobrir novos talentos, e isso torna tudo

bastante mais fácil.

Confia que o FC Porto vai ganhar esta edição da Supertaça, por

aquilo que tem visto das equipas ao longo desta temporada?

Acredito que sim. O FC Porto parte para todos os jogos,

como diz o seu treinador, a pensar nisso. Vão estar frente a frente duas

grandes equipas. O Benfica fez um investimento muito grande e terá se

calhar mais responsabilidades, mas o FC Porto vai entrar certamente

para ganhar. Em cada jogo a equipa entra com a disposição de jogar

e ganhar, porque tem de ser mesmo essa a filosofia: as finais são para

se ganhar. E certamente o objetivo é chegar a Aveiro e ganhar o jogo,

conquistando mais uma Supertaça.

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LUISÃO

“VENCER AS

FINAIS PARA

DEIXAR O BENFICA

NUM PATAMAR

SUPERIOR”

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Anderson Luís da Silva é conhecido

como Luisão no mundo do futebol. Brasileiro

de nascimento, o antigo defesa-central

de 39 anos é hoje um assumido apaixonado

pelo SL Benfica, clube que representou

durante 15 épocas e meia. Foram 538 partidas

disputadas de águia ao peito, 47 golos e 20

títulos conquistados, tornando o atual Diretor

Técnico e de Performance dos encarnados

no jogador com o palmarés mais vasto

do historial das “águias”.

Entre todos os troféus conquistados em

Portugal constam seis Ligas Portuguesas, três

Taças de Portugal, sete Taças da Liga e quatro

Supertaças Cândido de Oliveira. A grande

maioria deles enquanto capitão de equipa.

Durante muito tempo, a Supertaça não foi um

troféu de boas recordações para o SL Benfica.

Contudo, nas últimas cinco presenças, as

águias venceram por quatro ocasiões, tantas

quantas as anteriormente conquistadas.

A primeira Supertaça de Luisão foi em 2005,

numa final diante do Vitória FC [triunfo por

1-0]. Era Ronald Koeman o treinador dos

‘encarnados’, atualmente a orientar o FC

Barcelona. Desde então seguiram-se triunfos

diante do Rio Ave (3-2 após desempate por

penáltis, em 2014], SC Braga [3-0, em 2016] e

Vitória SC [3-1, em 2017], bem como duas finais

perdidas diante do FC Porto [0-1 em 2004 e 0-2

em 2010] e uma do Sporting CP [0-1, em 2015].

As memórias destes momentos estão bem

frescas, numa competição que em 2017 se

tornou para sempre especial: foi aí que Luisão

entrou na história do Benfica como o jogador

com mais títulos da história do clube.

Estamos à porta de mais uma edição

da Supertaça Cândido de Oliveira.

Quando falamos nesta competição, qual

é a primeira recordação que lhe ocorre?

Vem-me à cabeça sempre o facto de ser

uma conquista diferente, porque normalmente

é disputada entre duas equipas vencedoras:

a do campeonato e a da Taça de Portugal.

A nível particular marca-me por uma foto

que tenho com a minha filha, na supertaça

de 2017, quando conquistei o meu 20º título

pelo Benfica. A Supertaça vai ser sempre

especial para mim.

Apesar de ser a segunda equipa portuguesa

mais titulada na competição, ex-aequo

com o Sporting, a Supertaça era um troféu

em que normalmente o Benfica não se

dava bem, porque perdia a grande maioria

das finais. Contudo, desde 2014, o Benfica

venceu quatro das cinco finais disputadas,

tantas quanto no resto da sua história.

O que é que mudou, entretanto?

Creio que a partir do momento em que

o Benfica ultrapassou as suas dificuldades

e, nestes últimos anos, começou a retomar

a conquista de troféus, a presença

em momentos de decisão começou a ser

um hábito e os jogadores começaram a estar

mais preparados para esses momentos,

a responderem cada vez melhor. Na década

de 90, inícios dos anos 2000, o clube passou

por dificuldades muito grandes que eu vivi

de perto quando cheguei em 2003, mas agora

consigo ver que muitas coisas mudaram

e isso reflete-se dentro de campo, também.

São os resultados do crescimento de um clube

que se vem a estruturar muito bem, ao longo

dos últimos anos.

É a 12ª final da Supertaça entre Benfica

e FC Porto. Em 11 finais já disputadas,

o Benfica tem uma vitória e o FC Porto tem

10. Isso pode ter impacto no jogo deste ano?

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Pela experiência que tenho, e é lógico que

não ficamos felizes com esses registos. Não

considero que terá impacto naquilo que

será o jogo em si. São jogadores diferentes,

momentos dos clubes diferentes, estruturas

diferentes, etc. No entanto, se esse número

estiver na cabeça dos jogadores será como uma

motivação para encurtar distâncias e fazerem

diferente do que tem acontecido na maioria

dos casos.

Tem quatro supertaças conquistadas,

sendo dos jogadores da história do Benfica

mais galardoados no que a este troféu

diz respeito. Que importância é que

isso tem para si?

É um orgulho imenso… Cheguei ao Benfica,

conquistei tudo aquilo que conquistei…

Tenho uma gratidão muito grande. Tenho

um orgulho pessoal e uma satisfação enorme,

mas sou sobretudo grato pelos jogadores que

conviveram comigo no dia-a-dia, por toda

a estrutura e staff terem permitido que eu

chegasse a este número de títulos. Eu penso

sempre que o número de troféus que venci foi

pouco para aquilo que o clube merece, que

os adeptos merecem e que a grandeza do clube

exige. Quatro supertaças é bom, mas gostaria

de ter conquistado muitas mais.

O Luisão tem um palmarés que fala por si,

tendo disputado inúmeras finais ao longo

da carreira, quer em competições nacionais,

quer internacionais, pelo clube e pela

seleção. Em que é que a final da supertaça

se diferenciava das outras?

A Supertaça era uma competição em que os

clubes já contavam com uma conquista no ano

anterior. Individualmente, considerava este

jogo sempre como um momento de superação,

pela data em que é normalmente disputada.

Início do campeonato, muitas vezes a equipa

que vai jogar não é a mesma que conquistou

o título que lhes dá direito a estar ali, há uma

paragem, há o recuperar a forma, não sabia se ia

ter a mesma performance do ano anterior… era

uma superação diária que tinha que meter na

minha cabeça, para que aquele jogador que fui

no fim da época anterior, estivesse também no

início da seguinte. Com a mesma performance,

a mesma liderança, tudo. Por estes fatores

todos, a supertaça é especial. Depois é também

jogada numa altura em que podemos abrir a

época logo a conquistar um título. O tempo

estava sempre bom, podia levar as minhas

filhas a assistir ao jogo e este ano torna-se ainda

mais especial por ser disputada em tempo de

pandemia e próxima do Natal. Uma conquista

na Supertaça deste ano vai fazer com que a

possamos aproveitar numa altura em que

habitualmente estamos em família.

Foi a final de 2017 que mais o marcou?

Da Supertaça sim, foi essa. Mas todas foram

especiais à sua maneira, lembro-me da final

contra o SC Braga (em 2016), em que jogámos

contra o Rafa, que agora até está no nosso

plantel. Na altura nem nos conhecíamos, mas

eu já sabia que se falava nele vir para o Benfica

pela comunicação social e durante o jogo até

brinquei com ele sobre isso. Depois temos

a final contra o Rio Ave (em 2014), nos

penáltis… as vezes que eu bati penalties

foi sempre num desempate, até porque

não é habitual os centrais baterem grandes

penalidades. Não foi fácil ser central e ter

que mostrar uma tranquilidade enorme para

assumir a cobrança. Felizmente deu golo!

Apesar de ser defesa-central, eu via-o

muitas vezes no desempate por grandes

penalidades a assumir a cobrança. Foi assim

na supertaça em 2014, foi assim na final

da Liga Europa contra o Sevilha, etc. Nestes

casos, até bateu uma das últimas grandes

penalidades. Treinava mesmo os pénaltis ou

era uma questão de confiança no momento?

É uma questão interessante. Marquei em

jogos do Benfica, da Seleção na Copa América

e do Cruzeiro na Libertadores. Neste último

caso até falhei, era muito novo, não tinha

experiência e à última da hora mudei a decisão

para o lado que ia rematar. Na Seleção

por acaso até marquei todos. É assim, eu não

era normalmente marcador de pénaltis. Não

treinava todos os dias, treinava nalgumas fases

da temporada em que prevíamos que podia

vir a acontecer um desempate. Tinha uma

maneira de bater que era sempre igual. Se for

ver, percebe isso e hoje já não teria marcado

praticamente todos os pénaltis que marquei.

Agora já se sabe tudo, já se conhece a qualidade

do Pizzi ou dos batedores de cada equipa.

Lembro-me do Lima bater muito bem,

também. Comigo os adeptos se calhar já

ficavam mais apreensivos quando viam que

ia marcar, mas aí entra também um pouco

da liderança. Nesses momentos, sentia que

era minha função proteger um pouco os

jogadores que estavam ansiosos ou com pouca

confiança, mesmo que à partida batessem

melhor. Envolve tudo isso, puxar mais a

responsabilidade. Era o que eu tentava fazer

e deu certo.

É esse também o trabalho de um capitão…

Sim, também é. E até é curioso que na final

da Liga Europa, por exemplo, eu nem era

um habitual batedor de pénaltis e marquei,

mas depois os nossos melhores marcadores

falharam… o futebol tem coisas destas, mas

é importante o capitão e o líder da equipa

não terem só a braçadeira, mas chegarem-se

à frente para chamar a responsabilidade

e proteger também os outros quando

é necessário.

Continuando nesta onda da liderança,

o que é que passa na cabeça de um jogador,

ainda por cima capitão de equipa,

em alturas de grandes penalidades?

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FPF360


Estou convicto de que os líderes da equipa,

porque a equipa não tem um só, têm que

pensar totalmente ao contrário daquele que

é o ambiente da altura. Se tem que alimentar

ainda mais a confiança ou se estão demasiado

confiantes é hora de colocarmos tudo nos

níveis certos. Um líder, nestes momentos

de decisão tem que estar frio, para saber

qual o caminho que se deve tomar para

motivar e mobilizar os outros.

O Luisão foi capitão de equipa em quase

todas as supertaças que jogou, exceção

feita à de 2005. Ganhou quase todas

as que disputou nessa condição. Sente

que teve um papel ainda mais

preponderante devido a esse aspeto?

Pode ter contribuído, mas o capitão é mais

um jogador com uma braçadeira a representar

os outros, mas que tenta dar o seu pequeno

contributo. Não sei se foi uma contribuição

assim tão preponderante, acho que foi mais

uma coincidência de as ter conquistado,

até porque se não fosse capitão teria que

dar o meu contributo na mesma. Nesse caso

não o faria como um capitão na ficha de jogo,

mas como um líder da equipa.

Então qual a importância que

um capitão de equipa tem nestes jogos?

Costumo defender que um capitão de equipa

é um guardião de valores. O capitão está

muito na linha ténue que é a confiança ou

desconfiança. É uma voz no grupo muito forte,

tem que ter responsabilidade de ter uma vida

regrada, com muitas responsabilidades.

É também a referência do grupo de trabalho

e do treinador, por isso é que ele tem que

defender valores, porque caso contrário

pode ser mal interpretado por alguns jogadores

ou pela equipa técnica. Ele é, sem dúvida,

um guardião de valores. É nos momentos

decisivos que isso vem mais à flor da pele

de um capitão de equipa. Ele tem que olhar

para a equipa e sentir que o clube todo está

mobilizado para uma conquista e para superar

as dificuldades que vão aparecer.

No dia da Supertaça vai procurar dar

alguma palavra especial ao jogador

que entrar com a braçadeira?

Confesso que já estou a sentir a adrenalina

do jogo. Temos jogos ainda pela frente, mas já

estou a viver a adrenalina da Supertaça dentro

de mim, porque se trata de uma final e é disso que

gostamos. A minha função aqui é clara: trabalho

com toda a equipa técnica e com o plantel, não

faço nenhum tipo de trabalho específico com

os capitães. Vou procurar falar com todos. Tenho

a responsabilidade de passar a mensagem do que

é o Benfica, a importância que é quando este clube

chega a uma final, porque acima de tudo eles têm

a obrigação de deixar a camisola do Benfica num

patamar superior ao que a encontraram e uma

das maneiras de fazer isso é ganhando os jogos e

os títulos. Eles evoluem na carreira mas cumprem

com essa obrigação de deixar o Benfica melhor

do que quando entraram no clube.

O Luisão está a colaborar numa posição

mais próxima da equipa. Vai procurar

passar alguma da sua experiência,

nomeadamente a nível psicológico,

para os atuais jogadores antes do jogo?

Tenho que passar. A preparação da partida

é feita nos treinos, com a parte tática e técnica,

que fazemos muito bem através do trabalho

do mister. Depois também temos esse

momento de conversa, essa influência

da minha função, em que falo com os

jogadores, mas mais perto do encontro, há um

determinado momento em que temos que dar

espaço para o jogador se concentrar e fazer

o seu próprio trabalho mental. Construímos

esses alicerces antes, porque depois sabemos

que vamos ser bem representados por eles.

Esta Supertaça é diferente das outras

sobretudo por dois motivos: a ausência

de público e o facto de ser disputada numa

altura diferente da temporada.

Isso pode ter impacto no jogo?

Pode, sobretudo naquilo que é o sentimento

e a beleza do futebol. É um jogo envolvido

em alguma tristeza, também por aquilo que

o mundo está a passar, os casos de infeção,

as mortes, as depressões das pessoas, o facto

de não se poder sair de casa, a preocupação…

O futebol é tão importante numa sociedade

que, mesmo que haja problemas durante a

semana, no trabalho, na vida, na saúde, etc.,

quando se disputa um jogo importante, uma

final como esta, o facto de poder ir ao estádio,

viver aquelas emoções de perto, acaba por

fazer esquecer, durante um período, todos

aqueles problemas. A influência pode vir

sobretudo ao nível do público, aquela grandeza

em questão de sentimentos para as pessoas.

Dentro de campo, os jogadores estão de tal

forma concentrados que cada um vai fazer o

seu melhor. A mim, pensando no jogo, o que

me deixa mais triste é mesmo não poder levar

alegria para as pessoas e ver o estádio cheio,

com os adeptos numa rivalidade saudável,

com uns a comemorar e outros mais tristes.

Para terminar… quem vai ganhar o jogo?

Nós, o Benfica, mas vai ser um jogo muito

difícil! Duas equipas que estão a crescer no

campeonato, que estão em todas as frentes,

com pessoas capacitadas no comando, o mister

Jorge Jesus e o mister Sérgio Conceição, dois

treinadores que se conhecem, que têm pontos

fortes e outros menos fortes. Duas equipas

grandes, rivais. Espero que haja respeito,

com bom futebol e que o Benfica saia vencedor.

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CULTURA

E FUTEBOL

DO MESMO

LADO

São dois dos setores mais prejudicados pela pandemia

de COVID-19, mas não deixaram de ter um papel importante

– simbólico, sim, mas não só – para os portugueses

numa altura tão difícil. Consciente disso, a FPF360 decidiu

falar com artistas fora das quatro linhas que têm um gosto

especial por futebol na generalidade e, em particular,

pelos clubes finalistas de uma Supertaça Cândido de Oliveira

única por todos os motivos. Como atualidade se impõe,

teremos primeiro Fernando Daniel e Valas a fazer uma

antevisão musical do FC Porto-SL Benfica do próximo dia

23 de dezembro, enquanto Herman José, Dino D’Santiago,

Héber e Cristovinho protagonizarão ao artigo seguinte,

contando a forma como o seu percurso artístico está

intimamente ligado ao desporto-rei em Portugal.

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Faça parte da energia deste Natal.

A Galp e a Federação Portuguesa de Futebol uniram esforços

para apoiar os que mais precisam. Junte-se a este movimento solidário

e ajude uma das várias instituições participantes nesta quadra.

O gesto que faz a diferença

1 • Entre em energiadonatal.pt

2 • Selecione a instituição que quer ajudar

3 • Escolha um cabaz para oferecer online

ou produtos para entregar numa loja CTT

4 • Sinta a energia do Natal


A SUPERTAÇA

CANTADA

Futebol e música caminham lado

a lado. Duas artes, duas paixões.

Para uma visão diferente da

Supertaça Cândido de Oliveira,

os artistas Fernando Daniel e Valas

dão voz aos seus amores FC Porto

e SL Benfica, respetivamente.

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Na sua essência mais pura, o futebol é uma

arte. Olhando para ele nessa sua vertente mais

cristalina, o futebol pode assumir-se como um

poema que, nas mãos de quem o sente, pode

dar música. Um golo “sobrenatural”, uma finta

desconcertante, uma defesa impossível. Tudo

isto pode ser açucarado ao piano, ganhar outro

ritmo em acordes de guitarra ou glorificadopor

uma voz terna e vibrante. A criatividade de um

jogador pode ser decalcada instantaneamente

para uma estrofe, um pontapé de bicicleta

transportado de imediato para um solo

de bateria, um desarme em cima da linha

convertido numa banda sonora de suspense.

Um dos golos mais icónicos de sempre,

a célebre “Mão de Deus” do malogrado génio

Diego Armando Maradona, já deu origem

a canções e artistas como Chico Buarque,

Gilberto Gil ou Jorge Ben Jor já deram voz

ao futebol. Este último intérprete brasileiro

tem uma música dedicada a um golo apontado

por Fio Maravilha, avançado brasileiro

da década de 70. Não há imagens do jogo

Flamengo – Benfica (Torneio Internacional

do Rio de Janeiro), mas Jorge Ben Jor estava

no estádio e deu vida ao momento tornando-o

num tema muito popular no Brasil. E foi através

da cantiga que se idealizou o drible,

que se imaginou o golo, que se ensaiou

aquilo que terá sido o festejo.

Neste sentido, e apoiados no jogo entre

FC Porto e Benfica da Supertaça Cândido de

Oliveira Vodafone, reunimos dois intérpretes

portugueses para abordarem esta ligação

futebol/música e para lançarem o encontro

de 23 de dezembro, em Aveiro, de um prisma

diferente. O portista Fernando Daniel

e o benfiquista Valas. Não é um duelo,

não é um confronto. São dois músicos a falar

de duas paixões comuns. Cada um com a sua

cor clubística, com respeito e desportivismo.

Fernando Daniel, reconhecido músico

português, tem crescido a olhos vistos

e tem apaixonado os portugueses pelo ouvido.

Com um percurso sólido construído nos

últimos anos, o cantor natural de Estarreja -

portista de coração – conta que o seu amor

pelo FC Porto intensificou-se ainda mais aos

10 anos, quando o avô lhe ofereceu uma

camisola de Deco, juntamente com o resto

do equipamento oficial da equipa. É justo dizer

que ter um verdadeiro maestro nas costas,

como era o internacional português que

passou seis temporadas mágicas nas Antas e,

posteriormente, no Dragão, foi um momentochave.

“Desde então o Porto é um dos meus

grandes amores”, reconheceu o artista.

Valas, ou João Valido para alguns, vem

colocando a sua alma no hip-hop português.

Com vários temas de sucesso e inclusivamente

conquistando, entre outras coisas, o prémio

de melhor canção na primeira edição dos

“Play – Prémios da Música Portuguesa”,

com a música “Estradas no Céu”, que conta

com a participação da fadista Raquel Tavares.

Nascido em Évora, sempre teve grande

paixão pelo futebol, muito influenciado

pelo pai, tendo mesmo feito curso de

Desporto na Universidade de Évora.

O seu amor pelo Benfica é simples de

explicar e a resposta foi clara: “Nasci Benfica”.

O poema jogado nas quatro linhas. A arte e o

engenho do futebol são verdadeiras rimas que

se escrevem sem caneta, que se fixam no papel

e que têm todo o potencial para ser musicadas.

“O futebol é uma dádiva de 90 minutos que se

vai repetindo vezes sem conta, como um bis

na música. E assim como na música, o futebol

tem o seu crescendo, juntando ali muitas vezes

nos últimos 10 minutos uma emoção incrível

onde nos põe com o coração na boca”, confessa

“O FUTEBOL QUANDO É BEM

PRATICADO LEMBRA UM

POEMA CANTADO”

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“O FC PORTO PODERIA

SER COMPARADO

A UMA ORQUESTRA”

Fernando Daniel, autor de sucessos como

“Recomeçar” ou “Melodia da Saudade”.

Valas estabelece um paralelismo interessante

entre os dois “mundos”: “Compor uma música

tem semelhanças com a formação de uma

equipa de futebol, sendo que cada instrumento

pode ser visto como um jogador específico, que

tem a sua tarefa e responsabilidade na criação

da melodia”, conta o rapper português que

lançou recentemente o álbum “Animália”.

A música está bem presente no futebol.

Os cânticos dos adeptos, os hinos nacionais,

expressões como “maestro”, “carregador

de piano”, “solista”, entre outros. Por outro

lado, o que é que música tem do futebol?

“Tem os adeptos (fãs) que tornam os concertos

e espetáculos ainda mais incríveis, o trabalho

de equipa, a competitividade pelos tops

da música nacional”,

confirma Fernando Daniel.

Valas: “O futebol quando é bem praticado

lembra um poema cantado”

Não existe futebol bonito ou feio. Há futebol

bem jogado e mal jogado. Uma movimentação

defensiva bem articulada que retira espaço

à equipa adversária tem tanto de poético como

uma tabela bem executada no ataque que retira

três oponentes do lance. A explicação de Valas

é também ela simples: “O futebol quando

é bem praticado lembra um poema cantado”.

Alguns artistas celebrizaram as suas paixões

futebolísticas e, em alguns dos casos,

imortalizaram os seus ídolos em canções.

Em Portugal temos um excelente exemplo.

No tema escrito por Carlos Tê na música

“Não Me Mintas” de Rui Veloso, (“Voando

como o Jardel sobre os centrais”), celebra-se

a capacidade de Mário Jardel em superiorizarse

aos defesas adversários, tendo em conta

os inúmeros golos que marcou. Desafiado

a escolher um jogador atual do FC Porto

que merecesse semelhante homenagem,

Fernando Daniel foi apontou um e acrescentou

a importância dos valores do clube: “Dos que

estão neste momento acho que se há alguém

que merece pelo historial na equipa principal

seria o Pepe. Embora valorizando o trabalho

de todos, eu sou aquele tipo de pessoa que se

fosse treinador apostava muito na formação,

portanto também abordaria esse lado. O lado

daqueles que crescem com o símbolo do FC

Porto ao peito e um dia voam, em casa ou não,

mas mostram a qualidade da formação

e os valores deste grande clube”, realça.

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A lista de glórias do Benfica é longa. Eusébio deu origem a várias

canções, entre elas a da banda “Sheiks”, formada pelos ilustres Carlos

Mendes, Fernando Tordo ou Paulo de Carvalho. O grupo compôs

a música em 1966, depois da fantástica prestação da Seleção Nacional no

Mundial de Inglaterra desse ano. Para Valas, o antigo avançado brasileiro

Jonas merecia um reconhecimento “musical” pelo trajeto na Luz.

Fernando Daniel: “O FC Porto poderia ser comparado a uma orquestra”

Os dois artistas vibram de perto com os seus respetivos clubes.

A Supertaça Cândido de Oliveira Vodafone está aí e vai permitir

a conquista do primeiro título da temporada. As equipas são definidas

por um conjunto de fatores. Organização, disciplina, critério, confiança,

atrevimento, pragmatismo, segurança, etc. Apoiados em analogias,

que tipo de instrumentos seriam FC Porto e Benfica?

Fernando Daniel vê um conjunto em que todos têm um papel

fundamental: “O FC Porto poderia ser comparado a uma orquestra.

Cada jogador um instrumento. Por vezes leva tempo a harmonizar,

mas quando harmoniza soa melhor que nunca”, afirma.

Valas, por seu turno, tem uma opinião muito particular relativamente

ao “seu” Benfica: “É uma guitarra muito cara, mas desafinada”,

reconhece o autor de sucessos como “As Coisas” ou “Nuvem”.

Continuando nas analogias entre as duas artes, que género musical

será a Supertaça Cândido de Oliveira Vodafone? Os dois artistas

responderam e as opiniões são curiosas. Fernando Daniel não tem

dúvidas quanto à intensidade. “Será sem dúvida um Hard Rock.

Não será um jogo fácil e é o primeiro troféu da temporada.

A sede é muita e estou confiante na minha orquestra”, atirou.

Valas considera que o jogo será uma música “country”, por vezes

olhado com alguma desconfiança, mas que todos acabarão por

“dançar ao ritmo” da mesma.

Festa azul ou vermelha. Quem irá rimar melhor no dia 23 de dezembro?

Nesse dia é certo, independentemente de quem conquiste o troféu,

haverá festejos ao ritmo da música dos vencedores.

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MÚSICA

E FUTEBOL:

UNIDOS

NUMA SÓ

PAIXÃO

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É ao som do apito do árbitro que se

dá início à leitura da pauta. À melodia

dos festejos de um golo. Às harmonias

do maestro no banco. E aos gritos

de alegria ou de tristeza, consoante

for o resultado. Acrescentar-se-ia

a este enumerar de sons, o “bruaá”

dos adeptos, não fosse a pandemia.

Música e Futebol existem para além

do distanciamento. Existem

no “isolamento” do jogador em equipa

num estádio vazio ou na “solidão”

de um artista com a sua banda num

palco sem público. E é porque existem

e se complementam que as unimos

nesta história. A história do Dino,

do Héber e do “Cristo”. A história

de quem viveu o futebol, antes de ser

totalmente arrebatado pela paixão

da música.

Aos 10 anos Dino era um miúdo franzino

e levezinho, que corria muito dentro de

campo. Jogava a extremo esquerdo. Não

marcava muitos golos, era mais de assistir

para as vitórias do Quarteirense, no Algarve.

Tinha crescido no Bairro dos Pescadores,

na altura “problemático”. E para aquele

miúdo magrinho, que hoje tem milhões de

seguidores por todo o mundo, o futebol foi a

salvação: “O meu treinador era o Amílcar, foi

das pessoas mais importantes para as crianças

e adolescentes de Quarteira dessa década de

80 e 90. Era um bairro problemático, com

drogas… O que salvou muitas daquelas crianças

e adolescentes foi mesmo o futebol. Eram

coisas tão simples quanto o poder tomar banho

lá, quando faltavam condições em casa, ou os

lanches que havia sempre. A nível social, essa

fase do Quarteirense foi determinante para

todos nós, que ainda hoje somos amigos. E já

passaram quase 30 anos.”

É assim que o cantor Dino D’ Santiago recorda

a infância e adolescência. Jogou futebol dos

10 aos 18 anos. “Ainda hoje recordo a voz do

Sr. Alvarinho, um adepto lá de Quarteira que

ia a todos os jogos e que gritava: “Vai Dino, vai

Dino, vai”. Tinha assim uma voz grossa e roca.

É a voz que mais tenho na minha cabeça, da

minha infância”, conta.

Já Dino jogava há 3 anos, quando mais a Norte,

em Cascais, Héber resolveu levar mais a sério

uma paixão que tinha desde criança. “O meu

pai é um amante de futebol. Desde da infança

sempre fui muito estimulado a gostar de

desporto. O primeiro presente que o meu pai

me deu deve ter sido uma bola. Sempre gostei

de jogar. Sempre fui muito ‘fominha’ [risos],

como se diz na gíria. Jogava aquelas peladas

no bairro, até que, aos 10 anos, um amigo meu,

o Afonso, me desafiou para ir ao Fontaínhas,

porque estavam a fazer captações. Ele já tinha

ido duas vezes. Dessa vez levou-me: eu fiquei,

e ele não ficou [risos]”, começa por

contar Héber Marques.

Jogou até aos juniores e chegou a ser

convocado para a seleção de Lisboa. Mas

não foi. Noutra ocasião, chamaram-no para

fazer testes no Belenenses. Também não

compareceu. Contudo, o vocalista dos HMB

tem uma explicação: “Para te ser muito franco,

adorava desporto, mas não tinha grande veia

competitiva. Se eu tivesse a mentalidade do

meu pai, tinha jogado à bola. Eu era aquele

jogador que rendia muito mais nos treinos

do que nos jogos, onde desaparecia um bocado.

Sempre tive uma cabeça de artista. Muitas

vezes estava nos jogos, mas a pensar noutra

coisa [risos].”

Tal como Dino, também Héber era o “rei das

assistências”, mas deixa uma confissão: “Sou

míope desde os 6 anos. E os treinos eram à

noite. A bola vinha, e eu já só a via muito perto!

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Então, desenvolvi uma técnica. Eu via mais ou

menos como é que os meus colegas se estavam

a movimentar e era assim que seguia o jogo.

Era por intuição [risos].” À boa disposição,

Héber acrescenta as memórias: “A minha

mãe ainda me diz ‘Podias ter sido um grande

jogador’, mas mais porque ela, coitada, teve

de lavar muitas vezes os meus equipamentos

cheios de lama.”

Para Héber, a música até surgiu primeiro do

que o futebol. “Eu cresci no seio da igreja. A

música está bem no meio. Na barriga da minha

mãe eu já ouvia música. Comecei a cantar antes

de começar a falar. Mesmo assim, durante

muito tempo a música era uma coisa só minha.

Foi uma surpresa para os meus pais quando

perceberam que eu compunha canções.

Quando eles descobriram já eu tinha

umas cem”, recorda.

Já para Dino, depois do futebol, e antes da

música, veio a pintura. “Aos 18 anos, agarreime

mais ao desenho. Os treinos eram muito

rigorosos. Havia muito a disciplina do treino e

eu já começava a falhar”, recorda. Ainda assim,

admite que foi o futebol que lhe toldou a forma

de estar na música: “Dou sempre o exemplo do

futebol. Eu quero sempre fazer mais. Cada som,

para mim, é um golo. Cada concerto vencido

é conquistar uma taça. Eu vivo muito esse

espírito do futebol, da equipa, na música.

É a herança que me ficou do futebol.”

Uma herança de família. “O meu irmão é

ferrenho do Benfica. Ele consegue fazer o relato

de todas as ligas! Cria hinos para o Benfica. A

minha sobrinha Eva nasceu e a primeira foto

que tenho dela é o berçário com o cachecol

do Benfica por cima. Só via os pés da miúda

[risos]”, lembra Dino D’ Santiago.

E por falar nos encarnados, foi por lá que

começou a paixão pelo futebol para Miguel

Cristovinho. “Comecei nas escolinhas do

Benfica. Quando comecei a jogar, com 8

aninhos, lembro-me que era mesmo mau!

Era o último a ser escolhido. Aprendi a jogar

futebol ali. Não foi aquela coisa do ‘olha o puto

tem jeito para jogar à bola, vamos lá pô-lo no

Benfica’. Não, foi ao contrário, foi mais ‘ele

quer aprender’, vai para o Benfica”, começa por

explicar o músico dos D.A.M.A.

“Cristo” - como é tratado pelos amigos - fez

todos os escalões de formação no Benfica

até aos iniciados, passou pela “seleção do

Benfica, que era uma equipa um pouco mais

competitiva”, e chegou mesmo a competir,

como federado. Mas acabou por sair. Talvez

mais ou menos pela altura em que surgiu a

música, aos 13/14 anos, quando aprendeu a

tocar guitarra. A partir daí ainda formou uma

equipa com amigos, “malta que jogava, mas que

não fazia do futebol a prioridade número um”,

explica Miguel, que chegou ainda a jogar no

Operário FC até aos seniores.

E era um jogador versátil: jogava a médio

centro, a extremo esquerdo, ou a avançado.

“Era rápido, era grande, tinha bons pés. Como

tive formação, se o jogo estivesse a apertar,

o ‘mister’ tanto me punha a 10 como defesa

esquerdo [risos]”. Dos tempos do Benfica

lembra-se de olhar para os mais velhos e de

os ver jogar: Nélson Oliveira, André Almeida,

Cédric Soares, ou mesmo Cristiano Ronaldo

e Nani, nas idas à Academia do Sporting,

em Alcochete.

Também Dino tem muitos amigos que ainda

hoje jogam futebol: “Uns estão no Quarteira,

e outros no Quarteirense. E da nova geração

há alguns a jogar na Primeira Liga, na Grécia,

Alemanha, Inglaterra”, avança.

Para Dino, Héber ou Miguel, a paixão pelo

futebol foi-se mantendo. Mais à distância, mas

com aquele bichinho constante. “Lembro-me

que era muito fã do Barcelona por causa do

Romário, depois veio o Ronaldo Fenómeno, foi

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quando fiquei mais preso ao futebol. Depois

o Rivaldo, o Ronaldinho Gaúcho. Deixei de ser

adepto do Barcelona quando o Figo foi para

o Real Madrid. Mais tarde, tivemos

o Cristiano Ronaldo. Aí sou das equipas em

que o Ronaldo está”, confessa Dino D’Santiago.

E por falar em grandes jogadores, Miguel

Cristovinho já teve a oportunidade de jogar

com um dos melhores de sempre no futsal.

Foi em março de 2019, em Oliveira de Azeméis,

numa iniciativa da Associação de Futebol de

Aveiro. “Pois é, já joguei com o Ricardinho.

É incrível. Somos tão poucos[habitantes em

Portugal], e mesmo assim temos o melhor do

futebol de praia, o melhor do futsal e o melhor

do futebol. Conheci o Ricardinho quando

fomos tocar ao Porto e a seleção estava no

mesmo hotel que nós. Conhecemo-nos e

ficámos amigos ali. Quando ele veio a Portugal

para fazer o Jogo das Estrelas convidou-me. E lá

fui eu. Eu e o Fernando Mendes [risos]”.

Ora dessa tarde a jogar futebol, “Cristo” não

recorda nervos, por jogar com Ricardinho.

Tem, antes, outras memórias: “Já senti aquela

coisa que os mais velhos sentiam quando eu

tinha 16 anos. Vinham jogar à bola e eu jogava

muito melhor do que eles. E eles achavam que

ainda jogavam bem, porque sempre o tinham

feito. Só que depois percebem que já não jogam

há algum tempo. Eu já não faço coisas que o

meu corpo achava básicas. Já estou a ficar velho

[risos].”

Já lá vai mais de ano e meio. Hoje, o cenário

seria outro. Não existiria Jogo das Estrelas, e

muito menos adeptos naquele pavilhão. “É a

mesma coisa que dar concertos sem público. É

triste. Os jogadores motivam-se e superam-se

por toda aquela pressão adjacente à profissão

deles. Sem adeptos parece que é um treino”,

reage o cantor dos D.A.M.A.

Dino acrescenta: “É muito triste. Sempre que

fui a um estádio, tive experiências incríveis,

pelos adeptos. É bonito de sentir. Mesmo

quando as equipas perdem, no final sentes o

apoio. Devíamos aprender com esse exemplo

positivo. A parte ativista social que o futebol

tem é de uma relevância tremenda”. E ainda

para mais quando o convidamos a recordar a

melhor memória que tem do futebol: “Foi em

2016, quando fomos campeões da Europa. Eu

estava em Quarteira, em casa do meu irmão.

Não podia estar em melhor lugar. Quando o

Ronaldo saiu só pensávamos: ‘O que vai ser de

nós agora?’. Só que de repente, quando o golo

do Éder entra… foi o momento mais feliz que

eu vivi até hoje, foi uma explosão de euforia.”

Já Héber Marques confessa que durante o

confinamento até tem “prestado mais atenção

ao futebol”. “Quando deixei de jogar, fui-me

desligando aos poucos. E durante os quatro

anos de concertos dos HMB, não acompanhei

futebol de todo. Este ano, com a quarentena,

curiosamente, tenho prestado bastante

atenção ao futebol”, confessa.

E é essa atenção e apoio que Héber hoje

manifesta, que Dino pede aos adeptos. “Quem

está em casa, do outro lado, está mais presente

ainda. Aquelas pessoas que estão no campo

precisam de sentir o afeto dos adeptos.

As plataformas digitais dos jogadores devem

servir para os fãs mostrarem esse amor aos

jogadores, até os estádios estarem de novo

coloridos. Agora é o momento de provarmos

que somos bons ou maus adeptos”, defende

o autor do disco “Kriola”, que lançou

no último mês de abril.

Um ano atípico em que a Cultura sofreu e está

a sofrer demasiado. “A nível de concertos, a

cultura tem sido muito fustigada neste período,

ignorada até. Para ser fustigada tem de se

olhar para ela, e nem é o caso”, diz Héber que

começa agora a ter mais trabalho. Juntamente

com Tim, Agir, Carolina Deslandes e Bárbara

Tinoco, foi desafiado neste mês de dezembro

a criar o hino do novo projeto do Rock in Rio.

E colaborou ainda recentemente com os Bateu

Matou numa música chamada “Povo”. Quanto

aos HMB, para já, “a banda está mais parada,

até porque vem de 4 anos muito intensos de

estrada”.

Já Dino, confessa que em termos de carreira, “o

ano 2020 foi o pico”. “Por mais contraditório

que pareça, senti a afirmação de qual é a minha

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intenção e o meu desejo na música. E neste

ano, mais pessoas conseguiram perceber qual

é o meu propósito. Essa autorrealização está a

manifestar-se. O ‘Kriola’ foi o meu disco com

mais streamings de sempre. Foi mais partilhado

à volta do mundo. Tenho cada vez mais países

a ouvir a minha música. Sinto o público cada

vez mais perto, com muitas manifestações de

carinho. É o que mais me alimenta a querer

fazer mais e mais”, admite Dino d’Santiago que

– recorde-se – em abril, participou no primeiro

momento “de desconfinamento em pleno

confinamento”, como o próprio refere. Foi no

dia 25 de abril, quando a Avenida da Liberdade,

completamente vazia, acolheu um concerto

com Branko e Dino D' Santiago. “Fiquei

arrepiado desde o momento em que entrei para

cantar o primeiro tema até ao momento em que

saí. Estive ali a conter a adrenalina enquanto

o Branko tocava. Eu, que via sempre aquela

avenida cheia de gente, de repente estava ali,

com aquele cenário que parecia belo, mas que

para mim foi dantesco… A Avenida vazia e o

nosso eco… sabendo que estavam milhões de

pessoas em casa a assistir. Penso que nesse

momento passou a mensagem de que tudo iria

dar certo”, recorda.

E é essa a mensagem que importa. De que

rapidamente voltaremos ao que éramos. É

isso que espera “Cristo” que, com os D.A.M.A.

lançou no final de outubro o quarto álbum

de originais. “É um disco completamente

diferente do que já fizemos até hoje. É um

disco totalmente novo, em que as pessoas

não conhecem nenhuma música e que

queremos que seja, do início ao fim, como

uma banda sonora. No final hás de ter tido

uma experiência. Esse é o objetivo”, explica

Miguel. “Estávamos muito motivados para

ir para a estrada e mostrá-lo às pessoas, mas

tivemos de adaptar os planos e agora estamos

na expetativa de ver quando é poderemos pisar

um palco de novo, ter o público connosco,

à nossa frente. Temos muitas saudades

de o sentir”, conclui.

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“A MARCHA

É MAIS UMA

PROVA DE QUE

CARLOS PAIÃO

É UM GÉNIO”

Falar de futebol e música é falar de hinos

que nos marcam. Músicas que rapidamente

nos vêm à memória quando pensamos

na paixão pelo jogo. E quem não se lembra

da música “Bamos lá cambada”? Estivemos

à conversa com Herman José sobre aquela

que foi uma das mais célebres personagens

que interpretou, o mítico “José Estebes”,

que dava as táticas a quem o ouvia, sempre

bem acompanhado com o seu jarro de vinho.

Quantas saudades lhe deixa

a personagem “José Esteves”

(ou “Estebes”, melhor dizendo)?

Felizmente nunca chego a ter saudades,

porque o Esteves e a sua “Bamos Lá Cambada”

é uma presença obrigatória em todos os meus

espetáculos ao vivo. Não raras vezes, também

o ressuscito no meu programa CÁ POR CASA

da RTP.

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Li que o Herman não era um grande apaixonado por futebol.

Gostava que me confirmasse ou não! E que me dissesse o quão

difícil (ou fácil) foi para si na altura fazer essa personagem?

A minha ignorância sobre o futebol, é proporcional ao gigantesco

respeito que eu tenho pela modalidade, daí me ser tão fácil evocá-la,

desde que devidamente assessorado.

O que foi o mais divertido e o menos de interpretar o “Estebes”?

O mais divertido foi o seu arranque no Tal Canal, em que contraceno

com o imenso José Maria Pedroto, e mais tarde no Hermanias, a mítica

entrevista ao Pinto da Costa, por quem tenho um carinho e respeito

imensos. O pior, foi a notícia da morte de uma das suas “alma mater”,

o histórico jornalista António Tavares-Telles.

Qual a melhor memória/episódio que guarda do Estebes?

Porventura a entrevista ao jovem Futre, também no Tal Canal, ainda

muito novo, muito tímido, a poucos meses de sair do Sporting para

o Porto. Lembro dos seus olhos a brilhar a olhar para o meu Golf GTI -

então carro de sonho para qualquer jovem. Anos mais tarde sentava-se

no seu Porsche amarelo oferecido pelo Jesus Gil. Foi a minha vez

de ficar com os olhos a brilhar. Tempos incríveis e irrepetíveis.

Uma curiosidade: o que é que tinha

no copo e na garrafa durante as gravações?

A princípio groselha. Um dia resolvi assumir o vinho tinto,

e foi uma catástrofe. Desisti imediatamente. Rigor artístico

e álcool não são compatíveis.

A personagem foi inspirada no seu agente do Porto, Cipriano

Costa. Como é que ele encarou/recebeu na altura a personagem?

O querido Cipriano Costa foi responsável pelo meu sotaque nortenho

irrepreensível. Hoje em dia não imito os portuenses. Limito-me a ser

portuense de alma e coração e tenho uma paixão avassaladora pela

cidade e pela grandeza e generosidade das suas gentes.

O “Bamos lá cambada” tornou-se num hino, uma marcha

do futebol que as pessoas ainda hoje sabem de cor. O que sente

hoje quando ouve essa música? Ou quando lhe falam dela?

Sinto sobretudo que a marcha, para além de genial, é mais uma prova -

se preciso fosse - de que o seu autor é um génio: o imortal Carlos Paião.

Que episódio mais caricato é que recorda num estádio de futebol?

Porventura o dia em que o gentilíssimo António Mexia me convidou

para assistir a um jogo do Benfica no camarote da EDP, e eu passei 90%

de tempo mais encantado com o que se passava na mesa do catering

do que com o jogo propriamente dito. Foi nessa altura, que quem me

acompanhava percebeu que eu era um caso perdido para o futebol. [Risos]

Bá lá Cambada

Infantes desportistas

Homens de conquistas

Povo que é do meu

Bola redonda onze jogadores

Em frente sem temores

Que as táticas dou eu

Tragam as gaitas, as bandeiras e o que mata

Vamos dar-lhes uma abada ensinar-lhes o que é bom

Bamos mostrar a esses caracunchosos

Dementes gloriosos quem é a nossa seleção

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

É atacar agora e defender pra fora

Eles são toscos nem dão pr’aquecer

Suar a camisola e até jogar sem bola

E disfarçar pró árbitro não ver

No intervalo solteiros contra casados

Fandangos sulas e fados

Pra aprenderem como é

Durante o jogo qualquer caso lá surgido

Pode ser resolvido à cabeçada e ao pontapé

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

Os portugueses já provaram muitas vezes

Saber ser os bons fregueses das grandes ocasiões

Nesta jornada nem que seja à pantufada

Nos seremos na bancada muitos mais de 10 milhões

(Viva Portugal, Portugal, Portugal)

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

Bamos lá cambada, todos à molhada

Isto é futebol total

Deixem-se de tretas

Força nas canetas e o maior é Portugal

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FUTEBOL

Natal é uma época em que somos

encorajados a cometer excessos de

tudo – comida, prendas para a família,

televisão. Este ano teremos, também,

grandes doses de futebol.

Nas páginas que se seguem, vamos

mostrar-lhe os sítios onde a bola vai

rolar e explicar a tradição que não

deixa o futebol parar em Inglaterra.

Vamos olhar, ainda, para um clube

alemão que festeja a quadra como

nenhum outro e revisitar a Trégua

de Natal de 1914: o momento em

que soldados britânicos e alemães

trocaram a guerra por um jogo de

futebol.

GRANDES JOGOS E

DECISÕES EM PORTUGAL

Chegaram as duas últimas semanas do ano.

Momento para comemorarmos o Natal

em família, com perú, bacalhau ou polvo.

Altura para trocarmos presentes e fazermos

maratonas de filmes em casa. O timing

perfeito para planear o novo ano.

Em anos anteriores, à exceção do Reino

Unido com o seu tradicional ‘Boxing Day’,

da Jupiler Pro League belga, que copia a

tradição britânica desde 2008, e de alguns

campeonatos no norte de África e Médio

Oriente, a maioria das ligas respeitou

a paragem proposta pelo calendário

e programa de festas cristãos. Em 2020,

será ligeiramente diferente.

A paralisação dos campeonatos

e o adiamento de várias partidas devido

à pandemia de Covid-19 sobrecarregaram

com jogos a reta final do ano. Em Portugal

e noutros pontos do mundo, o futebol

não poderá tirar férias no Natal.

No nosso país, haverá grandes jogos e

decisões. A animação começa na antevéspera

do Natal, a 23 dezembro, com a realização da

Supertaça Cândido de Oliveira, a meter frente

a frente o FC Porto, campeão nacional, e o SL

Benfica, finalista vencido da Taça de Portugal.

E continua nos dias 26, 27 e 29 de dezembro,

com seis jogos importantes de futsal,

referentes às meias-finais e finais das Taças de

Portugal de futsal masculino e feminino.

Para 27 de dezembro, estão marcados

quatro encontros da jornada 11 da Liga NOS,

que se estenderá até dia 29. A título

de curiosidade, em período homólogo do ano

passado, o último jogo da liga portuguesa em

dezembro foi disputado no dia 16, e o futebol

só regressou em janeiro de 2020. Também

haverá competição no segundo escalão

nacional, na Liga Portugal Sabseg, a partir

de 28 de dezembro.

No Mundo, vai jogar-se a 25 de dezembro.

Um jogo na Liga 1 da Turquia (segundo

escalão turco), quatro encontros na Bolívia

(Torneio de Abertura), dois na Liga da

Jordânia, sete na II Divisão da Arábia Saudita,

quatro em Marrocos, três encontros no Egito

e vários em Israel e na Palestina.

Em Inglaterra, o dia 26 vai ser preenchido

com jogos de várias divisões e abrirá com

um Leicester City-Manchester United. Com

restrições à presença de público – só entra

um máximo de 2000 adeptos nos estádios

localizados em zonas de baixo risco de

contágio de Covid-19 -, o Boxing Day em

2020 promete bater recordes de audiências

televisivas.

No principal campeonato brasileiro, são dez

os encontros a disputar a 26 e 27. A liga belga

também estará em competição nesses dias,

enquanto que a espanhola vai parar a 23 e

jogará a 29. Mais tranquilo é o calendário de

jogos em Itália, França, Alemanha e Grécia,

que permitirá aos clubes ‘hibernarem’ entre o

Natal e o Ano Novo e jogar só depois do dia 3

de janeiro.

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NO NATAL

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BOXING DAY – UMA

TRADIÇÃO COM 160 ANOS

Conduzir pela esquerda, fidelidade à libra

esterlina… Os britânicos seguem pouco as

tendências dos outros. Na economia como no

futebol. Enquanto a maioria dos campeonatos

europeus fazia paragens de Natal ou de

Inverno no fim do ano, o futebol no Reino

Unido seguia sem interrupções, oferencendo

grandes espetáculos a 26 de dezembro, feriado

nacional para os britânicos, conhecido como

Boxing Day.

Desde finais do século XIX que o Boxing Day

é um dia de culto para os britânicos. É um

dia aproveitado pelas famílias para fazerem

compras e irem aos estádios. São centenas os

jogos dos diversos escalões dos campeonatos

de Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte

disputados nesse feriado, enchendo os

estádios de adeptos, muitos deles de visita às

famílias, em clima de festa.

A origem do nome [‘dia das caixas’, em

português] tem sido alvo de inúmeras teorias.

Uma delas relaciona o feriado com um hábito

instituído na Idade Média: 26 de dezembro era

o dia em que o clero abria as caixas de esmolas

para dar presentes aos mais pobres.

Outra teoria entronca na generosidade de

grupos aristocratas britânicos que, na era

vitoriana, davam folga e presentes em caixas

aos seus criados, um dia após o Natal.

Uma última explicação aponta para uma

caixa com dinheiro levada pelos grandes

velejadores, para dar sorte quando se

lançavam ao mar. Se cumprissem a missão,

seria aberta e o recheio oferecido aos mais

desfavorecidos.

MAIS ANTIGO DO

QUE A LIGA INGLESA

O primeiro jogo de futebol do Boxing Day

foi disputado há 160 anos, em 1860, entre o

Sheffield FC e o Hallam FC. Na verdade, esse

foi o primeiro jogo de futebol jogado a nível

competitivo em toda a história, com a vitória a

sorrir ao Sheffield (2-0). A partida aconteceu

28 anos antes da fundação da Football League

(1888) – nome do principal campeonato

inglês, que se tornaria Premier League em

1992.

Na altura, a jornada do Boxing Day era

utilizada para a realização de dérbis locais que

colocassem mais adeptos nos estádios do que

a média do resto da temporada.

Antes de haver jogos na televisão, o futebol

no Reino Unido também se jogava a 25 de

dezembro. Mas, ao longo da década de 1950,

a prática no dia de Natal começou a ser alvo

de críticas negativas, ficando apenas o Boxing

Day como jornada de futebol por excelência.

O último jogo entre equipas britânicas no dia

de Natal realizou-se em 1959. Uma multidão

de 21 mil adeptos assistiu ao triunfo por 4-2 do

Blackpool.

JOSÉ MOURINHO

EM DESTAQUE

José Mourinho é o treinador com o melhor

desempenho no Boxing Day. O português

segue invicto com oito jogos positivos (seis

vitórias e dois empates), e ao serviço de clubes

diferentes: Chelsea, Manchester United e

Tottenham. No ano passado, Mourinho viu o

seu Tottenham vencer o Brighton por 2-1 no

Boxing Day.

O melhor marcador já não está em atividade: é

Robbie Fowler, antigo avançado do Liverpool,

com nove golos em 10 jogos. Já o Manchester

United é a equipa mais bem sucedida na

história do Boxing Day, tendo vencido 21 dos

26 jogos da Premier League efetuados nessa

data.

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A JORNADA

LOUCA DE 1963

1963 foi o ano com mais golos e mais

espectáculo dentro das quatro linhas no

Boxing Day. Ao todo foram 66 golos em 10

jogos. Houve várias goleadas históricas a 26

de dezembro e 1963, desde o 10-1 do Fulham

ao Ipswich, ao 6-1 do Burnley ao Manchester

United e ao 8-2 do Blackburn ao West Ham.

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EM PORTUGAL

TAMBÉM SE JOGOU

NO DIA DE NATAL

O principal campeonato nacional já teve

jogos no dia 25 de dezembro. Foram dois e

ambos protagonizados pelo Sporting CP. No

primeiro, a contar para a 14.ª jornada da época

de 1948/49, os ‘leões’ golearam o Atlético por

5-1, no antigo campo do Lumiar, com um ‘bis’

de Peyroteo (54’ e 79’) e golos de Vasques

(49’), Jesus Correia (69’) e Albano (83’).

Martinho apontou aos 19 minutos o único

golo do Atlético.

O segundo jogo do campeonato nacional

disputado no dia de Natal aconteceu na época

seguinte, em 1949/50, outra vez no Lumiar [o

Estádio José Alvalade seria inaugurado a 10

de junho de 1956]. O Sporting CP, que chegou

em desvantagem ao intervalo, bateu por 2-1

o Elvas, graças à pontaria de Vasques (80’) e

José Travassos (87’). Casimiro apontou aos 26

minutos o golo alentejano.

Na primeira metade do século XX, houve

mais jogos a 25 de dezembro em Portugal,

uns a contar para campeonatos regionais e

outros com caráter amigável. Duante a década

de 1930, o FC Porto realizou vários jogos

no Natal, convidando equipas de nomeada

portuguesas e estrangeiras para disputarem

aquilo a que chamava de “Jogo de Natal” ou

“Jogo de Boas Festas”. Era um dos eventos

mais aguardados pelos adeptos azuis e

brancos.

Os eternos rivais dos ‘dragões’, Sporting CP

e SL Benfica passaram pelo “Jogo de Natal”.

A revista Stadium de 28 de dezembro de 1932,

descreve, por exemplo, um encontro em que

o FC Porto venceu o Benfica por 4-2 e “Vítor

Silva, capitão da equipe lisboeta, transportava

um lindo ramo de flores, oferecendo-o a

Waldemar – o capitão dos campeões.” A

mesma revista, no final de 1936, descreve

uma visita do SL Benfica ao FC Porto a 25 de

dezembro desse ano. O resultado foi um 3-3.

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QUANDO O NATAL

E O FUTEBOL

PARARAM A GUERRA

Aconteceu a 24 de dezembro de 1914, em

plena véspera de Natal. Nas trincheiras que

se estendiam do Mar do Norte até à Suíça,

na região de Ypres, perto da fronteira entre

França e Bélgica, soldados ingleses e alemães

suspenderam os combates armados para

abraçarem uma trégua.

A história, contada pela imprensa britânica

local e nacional, e alguma alemã, baseia-se em

cartas escritas na época pelos soldados das

duas frentes, que estavam em combate desde

julho de 1914. Descrevem uma noite fria com

queda incessante de neve e um momento em

que, nas posições britânicas, se escuta um

cântico tradicional de Natal.

Eram os alemães a entoar de forma

harmoniosa “Noite Feliz” [“Stille nacht,

heillige nacht”], clássico composto no século

XIX pelo austríaco Franz Xaver Gruber, e

traduzido para um sem número de idiomas.

Nessa noite gélida, soldados ingleses tinham

iluminado com velas as linhas inimigas, a

apenas 60 metros de distância, e os alemães

tinham decorado as suas trincheiras com

lanternas de papel. Ao escutarem cânticos

do lado alemão, os britânicos trautearam

também canções de Natal. Até que um oficial

alemão saiu do esconderijo para propor um

cessar-fogo: “Sou tenente, cavalheiros. Estou

fora do nosso fosso e vou caminhar na vossa

direção. A minha vida está nas vossas mãos.

Algum oficial vosso virá ao meu encontro?”.

Conversa entabulada entre oficiais das duas

fações. Termos da trégua definidos, apesar e

de os altos comandos dos países beligerantes

terem ignorado um pedido de cessar fogo

natalício ao Papa Bento XV.

Ingleses e alemães aceitaram enterrar

primeiro os mortos, que jaziam congelados

em “terra de ninguém”, e trocar presentes

depois – desde tabaco a garrafas de uísque,

passando por cerveja, chocolate, cintos,

diários e comida. No fim, a mais ousada

e inesperada decisão em tempo de guerra:

um jogo de futebol.

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SOPRO DE

HUMANIDADE

Frente a frente num campo improvisado

nas trincheiras, o regimento inglês de

Bedfordshire e tropas da Alemanha

disputaram com afinco um jogo naquele Natal

de 1914, com a vitória a sorrir alegadamente

aos germânicos [por 3-2].

A confraternização impressionou o autor

de Sherlock Holmes, a ponto de Sir Arthur

Conan Doyle descrever a trégua de 1914

como um sopro de humanidade. “Foi o único

episódio humano no meio das atrocidades que

mancham a memória da guerra”, escreveu.

50 JOGADORES

DE CADA LADO

Bertie Felstead, membro da brigada inglesa

que participou no jogo, e que recordou o

momento antes de falecer em 2001, com 106

anos, descreveu como foi: “Não houve um

jogo com regras num sentido tradicional.

Estavam umas 50 pessoas para cada lado.

Eu joguei porque gostava de futebol. Não sei

quanto tempo durou, provavelmente meia

hora, pois ninguém contava os golos”.

SÓ O ARAME

TRAVOU A BOLA

A partida terá sido interrompida quando a

bola murchou, ao bater violentamente contra

uma vedação de arame farpado. A trégua, essa,

terá durado até à meia-noite de Natal, em

alguns setores. E até ao primeiro dia do ano

seguinte, noutros. Seguiram-se mais quatro

anos de guerra sangrenta entre trincheiras.

Morreram acima de dez milhões de pessoas

até 11 de novembro de 1918.

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GORROS, VELAS

E MÚSICA: A TRADIÇÃO

DO UNION BERLIN

É impossível pensar em futebol no Natal

sem mencionar a peculiar tradição do Union

Berlin. O emblema do leste da capitã alemã,

que tem estado a surpreender na presente

edição da Bundesliga, escalão para o qual

subiu em 2019, há muito que é famoso na

Alemanha, pela forma apaixonada como os

seus adeptos vivem o clube e o Natal.

Todos os anos desde 2003, os adeptos do

Union enchem o Estádio An der Alten

Försterei às 19h00 do dia 23 de dezembro,

para aí fazerem a sua festa de Natal. Levam

velas, cachecóis do clube e gorros de Pai Natal,

e recebem, à entrada, um caderno com letras

de músicas e o tradicional vinho quente.

Durante 90 minutos, tempo de um jogo de

futebol, entoam em uníssono cânticos típicos

de Natal, num evento que começou com 89

pessoas e que nos últimos anos rondou as

30 mil. Os que não conseguem bilhete para a

festa, conhecida como ‘Weihnachtssingen’

[cantoria de Natal, em alemão], podem assitir

a tudo em direto na televisão local.

É incomensurável a paixão da massa

associativa do Union Berlin. Adeptos que

chegaram a dar sangue em 2004, quando

o clube correu o risco de falência. Com

uma campanha intitulada “Sangra pelo

Union”, incentivaram as dádivas de sangue,

que na Alemanha são recompensadas

financeiramente, e conseguiram arrecadar

perto de 1,5 milhões de euros, precisamente o

valor de que o clube precisava para se manter

em competição.

Devido às medidas de distanciamento social

em vigor na Alemanha, e pela primeira vez em

17 anos, estes adeptos não poderão invadir

o estádio a 23 de dezembro de 2020. Mas o

Union já disponibilizou nas suas lojas oficiais

um pack gratuito para utilização em casa,

com os objetos que levavam habitualmente

para o estádio. À hora de sempre, todos

poderão cantar em casa, num sinal de união e

esperança em dias melhores.

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SENTIDO

DE MISSÃO

Os internacionais portugueses José Fonte,

Ana Borges e Diogo Queirós falaram à

FPF360 sobre a sua visão do futebol na época

do Natal e há um sentimento unânime: o

profissionalismo tem de imperar em qualquer

altura do ano.

José Fonte: “Jogar no

Boxing Day é especial”

Dezembro é um mês preenchido e feliz

para José Fonte. Além do Natal, tem

três aniversários: o dele, o da filha e o do

casamento. Houve épocas em que o mês

tinha ainda mais brilho para o internacional

português, quando estava em Inglaterra a

jogar no Boxing Day.

“Jogar no Boxing Day é especial. A atmosfera

é diferente de tudo o que já experimentei,

devido ao que se passa antes e durante o jogo”,

começa por dizer, para explicar que, “antes,

há o ritual de chegar ao estádio e ver famílias

inteiras eufóricas e ansiosas por verem a sua

equipa no relvado”. “Estão lá todas as idades,

é lindo!”, frisa José Fonte, que representa o

Lille há dois anos. Depois, durante o jogo, “o

ambiente é de uma envolvência inexplicável

que passa para o campo. Por isso é que há uma

intensidade única neste jogo”.

“Física e mentalmente, é um jogo exigente,

mas para mim sempre foi positivo e especial,

porque tinha os meus familiares no estádio

e marquei algumas vezes”, conta, a sorrir,

o central, conhecido como um dos heróis

do feriado britânico, por ter marcado nesse

dia para o Crystal Palace e também para o

Southampton.

Ana Borges: “Jogaria

no Natal e até na Páscoa”

Ana Borges representou a equipa feminina

do Chelsea de 2013 a 2016, mas nunca teve a

oportunidade de entrar em ação no Boxing

Day. “Na altura em que estive no Chelsea, o

formato da Superliga feminina era diferente:

jogávamos de janeiro a outubro. Não havia

jogos nessa data”, refere a internacional

portuguesa, que se mudou para o Sporting a

meio da época 2016/17.

A jogadora garante que “não teria problemas

em jogar no Natal e até na Páscoa”. “A

partir do momento em que queremos ser

profissionais de futebol, temos de estar

preparadas para jogar, seja em que dia for”,

esclarece, com convicção.

A internacional portuguesa admite que “seria

difícil não passar o Natal com a família”,

de quem é muito próxima, “e pior seria se

estivesse fora do país”. No entanto, tem a

certeza de que iria acostumar-se a jogar a

26 de dezembro: “Adapto-me sempre às

circunstâncias e iria habituar-me a jogar nesse

dia. A verdade é que desfruto de todos jogos

que faço”.

Diogo Queirós: “Não dá

para abusar na comida”

Natal é tempo de pausa para convívio e

televisão em família. Diogo Queirós aprecia

todo os momentos passados em casa na

quadra natalícia, sobretudo quando vê “os

filmes que a TV repete todos os anos e que

fazem sempre rir”, tanto a ele como aos

irmãos mais novos, a Matilde e o Martim.

Na época passada, não pôde viver a quadra

na sua plenitude porque jogou a 26 de

dezembro pelo clube Mouscron. Este ano,

no Famalicão, vai jogar a 27. Nada que tire o

sono ao internacional português: “No ano

passado, joguei a 26 na Bélgica, acho que foi a

primeira vez. Os meus pais e os meus irmãos

foram lá passar a quadra comigo. Não houve

tempo para festas nem excessos na noite

de consoada. Não dá para abusar na comida

quando se joga dois dias depois e eu tinha

treino na manhã de 25”, recorda.

Para o central, o Natal acabou por ter “um

gosto diferente”: “Para ser sincero, como

passei o dia 25 longe da família e a dormir

no hotel de estágio, acabei por não sentir o

verdadeiro espírito de Natal. Mas não me

queixo porque o dever é superior a tudo”. O

jogo em si, recorda, também pareceu “igual

aos outros”. “Foi mais um momento para

me apresentar a cem por cento e dar o meu

contributo à equipa”.

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BPI ELEITO O BANCO DO ANO 2020 EM PORTUGAL,

PELA REVISTA THE BANKER, GRUPO FINANCIAL TIMES.

O vencedor deste prémio é selecionado pela equipa de editores e analistas da revista

The Banker, do Grupo Financial Times, uma conceituada referência editorial do sector

bancário e financeiro a nível mundial.

O BPI agradece esta distinção e tudo fará para continuar a merecer o reconhecimento

do mercado e dos seus Clientes.

Este prémio é da exclusiva responsabilidade da entidade que o atribuiu.

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AM R

A pandemia da Covid-19 afastou

os adeptos dos estádios. A ânsia

de voltar a ver um jogo ao vivo

aumenta a cada dia que passa

e a distância está cada vez mais

difícil de aguentar. Afinal,

futebol também é paixão.

Cachecóis ao pescoço, gargantas afinadas,

passo acelerado em direção aos estádios.

Costumava ser assim um dia de jogo.

Março de 2020 trouxe algo a que

os adeptos de futebol não estavam habituados:

a impossibilidade de irem apoiar as suas

equipas aos estádios, ficando longe dos palcos

de todas as emoções.

A partir desse mês, tudo mudou. A pandemia

da Covid-19 veio trazer mudanças drásticas

no estilo de vida das pessoas. Começaram

a ser pronunciados por todos alguns

termos que até então não eram muito

conhecidos, como “isolamento profilático”,

“confinamento” ou “zaragatoa”. No entanto,

não foi apenas o léxico dos cidadãos que

mudou. Foi também a forma de se viver.

Durante meses, o medo assolou a sociedade e

o distanciamento físico era uma necessidade.

Perto do verão as medidas de confinamento

foram aliviadas, mas o inverno não foi

um fiel amigo e retirou qualquer esperança

de regresso à antiga normalidade,

pelo menos até haver vacina para controlar

a doeça que mudou o mundo.

O futebol teve de se adaptar. Depois de uma

paragem de vários meses nas competições

da maioria dos países europeus, o desportorei

regressou. Mas não como o conhecíamos.

Desta vez não havia romaria aos estádios.

Não havia roulottes cheias antes do apito

inicial, nem os sorrisos nas bancadas de

milhares de adeptos que tinham esperado

uma semana inteira para regressar a um

lugar que lhes trazia liberdade e felicidade.

Não havia cânticos, incentivos ou palavras

de apoio. Não havia gritos de festejo ou tiques

nervosos. Não havia o brilho de outrora,

porque não havia adeptos. Ouviam-se, sim,

vozes isoladas no relvado: as correções

dos treinadores, os incentivos do capitães,

os festejos dos…suplentes. Existia um eco

de gritos num sítio que não foi feito para

estar vazio. O golo passou a ser celebrado

por dezenas, em vez de milhares (pelo menos

presencialmente). Os troféus passaram a ser

festejados longe dos que nunca falham com

o seu apoio. Chamaram-lhe “novo futebol”.

À D

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VOZES DA

SAUDADE

A FPF360 foi tentar perceber de que forma

os adeptos se estão a adaptar aos novos dias,

sem poderem acompanhar de perto um amor

nascido, criado e fomentado ao longo

das suas vidas.

Falámos com quatro adeptos de clubes

diferentes, que disputam três divisões

distintas: FC Paços de Ferreira (Liga NOS),

GD Estoril Praia (Liga SABSEG Portugal),

Amora FC e Clube Oriental de Lisboa

(Campeonato de Portugal).

Qualquer um deles se assume como

um apaixonado pelo seu clube. As razões

dessa paixão são variadas, até porque

um amor nunca nasce da mesma forma.

Joaquim Ferreira Barbosa é conhecido

como “Sr. Barroso”. Podíamos facilmente

encontrá-lo nas bancadas de todos os jogos

no Estádio Capital do Móvel e em muitos

fora de casa, a apoiar o seu Paços de Ferreira.

Hoje, com 66 anos, assume-se como adepto

ferrenho de um clube pelo qual

é apaixonado desde tenra idade.

Francisco Braga, gestor hoteleiro e adepto

do Estoril Praia, é bisneto de um fundador

do clube, pelo que o sentimento pelos

‘canarinhos’ lhe está nos genes. Talvez seja

também por isso que considera os outros

aficionados do clube como se fossem a sua

família. Define-se como um “adepto exigente

com o clube e com a SAD”, fazendo questão

de estar presente em todos as partidas

no Estádio António Coimbra da Mota,

assim como no máximo de jogos quando

a formação estorilista se desloca ao terreno

dos adversários. É um registo que mantém

há muitos anos, quer com o clube

na II Divisão B, quer na Liga Europa.

Já Luís Afonso é orientalista de coração.

Atualmente a trabalhar num restaurante

de um antigo jogador do Oriental, já teve

a seu cargo a missão de servir as refeições

aos atletas do seu clube antes dos encontros.

Sentia-se parte da equipa e gostava de pensar

que tinha a sua quota parte no sucesso da

mesma. Do restaurante seguia para o jogo,

sempre. Ele estava lá, presente em mais

de 80% dos jogos do Oriental na temporada.

Por último, temos o homem mais experiente

deste quarteto. José Manuel Bordonhos

é o atual sócio número 1 do Amora FC.

Do alto dos seus 84 anos, afirma que sente

saudades do “futebol à antiga”, embora

continue a estar atento à realidade do clube.

Alguns problemas de saúde impossibilitaramno

de ser, nos últimos tempos, ser figura

constante no Estádio da Medideira,

embora tenha registos de uma vida inteira a

acompanhar o clube da região de Setúbal e

histórias de deslocações “para dar e vender”.

A sensação é unânime: as saudades de voltar

ISTÂNCIA

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a um estádio “apertam” mais à medida que o

tempo passa. Cada um arranjou as suas formas

de substituir as emoções que só o futebol - ao

vivo - traz. “Custa muito. No verão até fiz algo

de que não gosto, que é assistir a treinos. Era

a minha forma de compensar o facto de não

poder assistir aos jogos!”, conta Francisco

Braga, adepto do Estoril Praia. Contudo,

hoje em dia já arranjou nova estratégia:

“Costumo ir receber a equipa quando joga

em casa. Depois vou ver o jogo a um café

ou a um restaurante. Por norma, escolhemos

um local nas instalações do clube. Assim

sempre posso pensar que estou no estádio,

apesar de ser algo profundamente irritante

- estamos tão perto, mas ao mesmo tempo

não conseguimos ver nada…”

Já o Joaquim Barbosa lamenta que

esta pandemia lhe ter retirado algo que

ele valorizava tanto quanto ver os jogos

no estádio: o convívio com os jogadores

e treinadores do Paços de Ferreira, algo

que para si “era uma emoção muito grande”.

Percebe as medidas, mas não esconde

que lhe custa “mesmo muito”, até porque

“um domingo sem futebol não é domingo”:

“Ainda estou a trabalhar e, como toda a gente,

passo a semana à espera que chegue o fim de

semana por dois motivos: descansar e ir ao

futebol, especialmente a segunda porque

é o que nos dá aquela emoção e aquela alegria.

Infelizmente não tem sido possível…”.

Luís Afonso tem colmatado a ausência do

estádio com os canais dedicados ao desporto.

A sua vida foi alterada de forma substancial,

quanto mais não seja porque o domingo

deixou de ser dia de trabalho e de proximidade

com os protagonistas do seu emblema pelo

qual sempre torceu. Nem todos os jogos são

transmitidos na televisão, no Campeonato

de Portugal, é comum haver transmissões

através de plataformas digitais. O adepto

do Clube Oriental de Lisboa admite que

essa é uma boa ajuda, mas também assume

que a ansiedade aumenta sempre, até porque

de vez em quando lá surgem os habituais

problemas com a internet.

José Manuel Bordonhos, por seu turno,

mostra algum desgosto por ver a situação

prolongar-se tanto tempo. “É uma tristeza,

é muito diferente o futebol. É a mesma coisa

que uma artista estar a cantar o fado e não ter

ninguém para a aplaudir no fim”, compara.

O barbeiro e cabelereiro unissexo não

esconde que muitas vezes utilizava o futebol

como escape, algo que em jovem até lhe

deu “alguns problemas” por se exaltar.

Francisco Braga, por seu turno, concorda

que o futebol era um escape para descarregar

algumas frustrações, mas “no bom sentido”.

E explica: “O jogo era aquela altura em que

nos abstraíamos, fazíamos uma espécie de

limpeza mental”, recorda, ao mesmo tempo

que lamenta não poder acompanhar o bom

momento da equipa mais de perto: “As coisas

até nos estão a correr bem e vivemos a semana

inteira à espera do próximo jogo, mas depois

no dia é uma tristeza enorme porque não

podemos ir ao estádio.”

Também Luís Afonso assume que o futebol

possa ser utilizado para separar a vida pessoal

da profissional para a maioria das pessoas,

apesar de não se rever nas atitudes das

pessoas que optam por fazê-lo criticando

os jogadores adversários ou a equipa de

arbitragem. O orientalista assume-se como

um adepto calmo e racional na grande maioria

das vezes. E frisa que jamais o encontraremos

a injuriar um jogador adversário: “Até penso

que, se calhar, posso estar a criticar um

jogador que um dia defenderá as nossas

cores e temos que o respeitar. Quando

eu estou a atender clientes também

gosto de ser respeitado”, defende.

Quando questionados sobre aquilo de

que sentem mais falta nos dias de jogos,

encontramos novo denominador comum:

o convívio. Os petiscos de pré-jogo,

as previsões de resultados e marcadores

ou as conversas na bancada terminaram,

pois o distanciamento físico tornou-se

imperativo em nome saúde.

E os outros?

Embora o futebol não seja o mesmo sem

adeptos, são igualmente indispensáveis

os jogadores e os clubes. Também eles têm

sofrido com a ausência de público

nas bancadas, pelos mais diversos motivos.

Os adeptos com quem falámos têm noção

disso e opiniões semelhantes. Ninguém

beneficia com estádios vazios. Contudo,

há pequenos momentos do jogo em que

nem tudo é mau. Enquanto José Manuel

Bordonhos e o Joaquim Barbosa defendem

não haver qualquer vantagem para

os futebolistas, Francisco Braga considera

que a ausência de público pode não ser tão

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prejudicial para a sua equipa nos jogos fora

de casa, especialmente contra as melhores

equipas portuguesas. Contudo, o adepto

estorilista preferia sempre que a equipa

“canarinha” jogasse com o apoio dos seus fãs.

Também Luís Afonso aponta um momento

em que a ausência de público pode não ser

tão negativa: não haver a pressão de adeptos

que privilegiam a crítica ao elogio. “A única

vantagem só poderá estar em não ter esse

tipo de pessoas a condicionar as suas ações.

Tirando isso, não acredito que haja

nenhuma vantagem”, diz.

Os problemas que a pandemia trouxe

aos clubes de futebol não estão apenas

relacionados com os seus jogadores.

A ausência de público nos estádios trouxe,

por exemplo, repercussões financeiras

inevitáveis, mas Francisco Braga teme

outras perdas para o “seu” Estoril. “Não

indo ao estádio, as pessoas desassociam-se

mais facilmente. Isso é um desafio que as

estruturas vão ter. Quando isto passar, terá

que se chamar novamente o público. Nós já

tínhamos esta questão antes da pandemia

e até é uma das críticas construtivas que eu

costumo fazer: vivemos num concelho com

muita população e temos um número muito

limitado de sócios e adeptos no estádio.

Todo o trabalho que tínhamos vindo

a fazer, de trazer mais gente, vai ter que

ser recomeçado do zero porque as pessoas

desinteressaram-se do clube”, salienta.

OLHOS

POSTOS

NO FUTURO….

QUE DEMORA

A CHEGAR

Até a situação mudar, resta-lhes sonhar com

o dia do regresso. Esta é uma ocasião bastante

ansiada, pelo que já todos pensaram no que

farão no dia em que puserem de novo um

pé nas suas ‘segundas casas’. Quando foi

questionado sobre isto, Luís Afonso pediu

para prepararmos os ouvidos, inspirou fundo,

ganhou fôlego e, com toda a pujança, soltou

“C.O.L.!!!!!!”. É este o grito de guerra do clube

de Marvila, que o seu pai lhe ensinou e que

repete religiosamente antes de cada jogo

a plenos pulmões. Talvez mais calmo será

Francisco Braga, que diz ter curiosidade para

ver o estado da sua cadeira e se a etiqueta com

o seu nome e número de sócio ainda lá está. No

entanto, independentemente disso, o que mais

quer é poder estar acompanhado, pela primeira

vez, do seu filho de três anos. A pandemia

adiou o desejo de partilhar as emoções de um

estádio e a vontade em conjugar dois dos seus

amores está maior a cada dia que passa. Por

sua vez, Joaquim Barbosa assume que tem

mais vontade de voltar a poder estar ‘perto’

dos jogadores e não esconde que os vai tentar

cumprimentar, além de lhes dar umas palavras

de incentivo. José Manuel Bordonhos garante

que também irá voltar a um estádio.

Os 84 anos não o fazem perder a vontade

nem o amor pelo futebol e pelo clube.

Num dia de jogo há sempre três resultados

possíveis e no final da partida pode haver

expressões faciais mais e menos felizes.

É assim mesmo o mundo do desporto.

Porém, ninguém sai apático, porque um estádio

cheio não é um sítio qualquer. É um local

onde somos ‘engolidos’ pelas emoções: onde

choramos, rimos, gritamos e nos apaixonamos.

Apaixonamo-nos por este desporto tão

emblemático como é o futebol e nos tornamos

adeptos de algo que move milhões. Sendo

a “esperança a última a morrer”, pode ser que

um dia voltemos a estar como há uns meses:

juntos, num estádio de futebol repleto

de pessoas que só por ali estarem já têm algo

em comum connosco. O mais bonito é que essa

causa comum chega a ser tão forte que muitos

de nem as precisam de se conhecer para que

sejam uma espécie de família momentânea.

Futebol é paixão, é emoção, é família.

O futebol é dos adeptos.

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UMA DÉCADA EM

IMAGENS

Dia da minha apresentação como selecionador

nacional sub21, junto daqueles com quem

tenho partilhado este espaço e que têm sido

fundamentais durante todo este trajecto.

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Rui Jorge completou 10 anos como

Selecionador Nacional sub-21 no

passado mês de novembro e a FPF360

desafiou-o a escolher e legendar 10

fotografias marcantes deste período.

O resultado final pode ser visto nas

próximas páginas

Recortes dos jornais

que me foram oferecidos

do primeiro jogo como

selecionador dos sub 21

e que ainda hoje permanecem

no nosso gabinete.

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1º apuramento por nós

conseguido após vencer a

Holanda no Play-off para a

fase final 2015, numa altura

em que apenas 8 equipas

disputavam as fases finais.

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Momento de profunda

tristeza e que custou

e continuará a custar uma

enormidade, mas que penso

ser elucidativo de um valor

que procuramos ter sempre

presente: RESPEITO pelo

adversário.

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Fotografia simples, mas com grande

simbolismo a que tirámos à porta

do nosso gabinete no 1º dia nas

novas instalações da FPF - CIDADE

DO FUTEBOL. Local onde temos passado

muitos dias e muitas

horas desde então. Passo

estruturante na vida da FPF que tivemos a

felicidade de “viver por dentro”.

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Dia em que foi oficializado

o prolongamento da nossa

continuidade por um período

de 4 anos. Marcante, pela

confiança em nós depositada

e pelo facto de por vontade

de ambas as partes,

estabelecermos aquela que é

hoje em dia, uma das 5 mais

duradouras ligações, de todo

futebol sénior Mundial ao

nível de Seleções.

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Uma sonho de miúdo que tive a felicidade

de voltar a viver - disputar uns JO. Depois

de o ter feito como jogador, a presença como

treinador numa prova de muito difícil acesso.

Uma prova que nos obrigou a uma

organização e adaptação distinta,

pois é uma realidade completamente

diferente daquela a que estamos habituados.

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Primeiro dia em que ficamos

na “Casa dos atletas”. Um

momento por si só memorável,

que foi “abrilhantado” com

uma surpresa. No quarto em

que fiquei, um quadro alusivo

ao meu aniversário, com várias

imagens do meu percurso ao

longo dos anos na FPF, quer como

jogador, quer como treinador. Um

“pequeno” gesto com um enorme

valor para mim.

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Para celebrar os 10 anos de ligação com a FPF,

o mais recente apuramento para uma fase final.

Mesmo num ano tremendamente difícil para

todos, continua a ser gratificante e motivador

ver estes sorrisos carregados de ambição.

Chegar à nossa principal seleção é o que os

norteia! Já nós, nestes 10 anos, temos tido a

felicidade de ver muitos destes sorrisos terem

um final feliz... e com isso, poder sorrir também.

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Por serem apenas dez momentos, deixo para terminar

uma das fotografias que mais gosto, e com a qual

gostaria de simbolizar todos os jogadores que nos têm

representado nos sub 21 ao longo destes 10 anos.

Independentemente dos diferentes resultados de várias

gerações, a PAIXÃO, UNIÃO e AMBIÇÃO aqui representadas,

foram, juntamento com o RESPEITO, transversais a todas elas

e serão sempre um alicerce na representação do nosso País.

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CARECA

“NÃO PODÍAMOS ESTAR

À ALTURA DE MARADONA,

MAS SE ESTIVÉSSEMOS

SÓ 30 OU 40% ABAIXO

JÁ O PODÍAMOS

AJUDAR BASTANTE”

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A notícia da morte de Diego Armando

Maradona, “El Pibe” para o mundo do futebol,

apanhou todos desprevenidos no dia 25 de

novembro de um ano de 2020 inesquecível

pelos piores motivos. A FPF 360 não podia

deixar passar em claro o desaparecimento

de uma lenda do jogo e entrevistou uma

das pessoas mais próximas do antigo

internacional argentino: António de Oliveira

Filho. Talvez não esteja a ver quem é, mas se

falarmos de “Careca”, o parceiro de Maradona

na frente de ataque de um Nápoles que

surpreendeu a Europa do futebol no final

da década de 80, será certamente mais fácil

de identificar. Agora com 60 anos, o antigo

internacional brasileiro fala de tudo: desde

a “telepatia” com Maradona nos relvados

até aos churrascos fora deles, passando por

rivalidades míticas entre Brasil e Argentina

ou Nápoles e Juventus. A ligação umbilical

a Portugal – os avós maternos de Careca,

Maria e Augusto, eram madeirenses de gema

– também não foi esquecida numa conversa

descontraída e aberta.

O que é importante que

as gerações mais novas saibam

sobre Diego Armando Maradona?

A diferença dele é que foi sempre uma pessoa

leal. A lealdade dele com os seus amigos, com

as pessoas com quem convivia no dia-a-dia,

com a família que ele constituiu. Acho que

esse é um legado mais importante que ele

deixa. Convivemos muito tempo e sei dessa

paixão dele pela lealdade. Nesse sentido,

não é preciso falar do seu evidente potencial

técnico para o futebol, mas da pessoa que

lutava pelo próximo – o companheiro que

fazia parte da equipa ou o amigo que estava

em maiores dificuldades. O Diego batalhava

para que as pessoas se “levantassem” e fossem

grandes também. A nossa amizade foi muito

verdadeira e continuo a admirá-lo, mesmo

não estando ele mais entre nós.

Nunca esquecerei a pessoa que foi.

Um internacional argentino e outro

brasileiro, companheiros de equipa

e amigos no final da década de 80.

Nenhum de vocês viu aqui

um “conflito de interesses”?

A rivalidade entre Brasil e Argentina sempre

foi grande, mas nós respeitávamo-nos.

Claro que quando representávamos as nossas

seleções ia cada um para seu lado e lutávamos

pelos nossos países até à exaustão, mas

o respeito nunca faltou. Mesmo quando

o Brasil foi eliminado pela Argentina no

Campeonato do Mundo de 1990, em Itália

[1-0 nos oitavos de final, com um golo

de Caniggia]. Depois do jogo ele foi o primeiro

a vir ter comigo para me dar um abraço

e para ser solidário. Vivia intensamente e

queria ganhar sempre, mas entre Brasil e

Argentina nós sabíamos que tudo podia

acontecer. Jogámos várias vezes um contra

o outro e tenho muitas recordações desses

encontros. Houve um até em marquei

um golo lindo, maravilhoso, de pontapé

de bicicleta [5 de maio de 1985, vitória do

Brasil por 2-1 no Estádio Fonte Nova, em

Salvador, no estado da Bahia]. Quando

terminou, só comentávamos isso – “Careca,

o que foi aquilo?!” – e ele não parava de me

elogiar. Nós sabíamos a capacidade que

o Maradona tinha de conduzir a bola em

progressão. Tanto que em 1990 dissemos à

equipa técnica que ele devia ter uma “atenção

especial”, uma marcação individual. Não

foi isso que aconteceu, ele ficou foi apenas

marcado à zona e ficou mais à vontade. Até ao

momento do lance em que ele “costurou” 5

ou 6 jogadores nossos, “achou” o Caniggia e

saímos da competição.

Como foi o início da vossa relação?

A primeira vez que convivemos foi em 1986,

na gala que a FIFA organizou em Paris após

o Mundial do México. Eu fui receber a minha

Bola de Prata, já que fui o segundo melhor

marcador daquela competição, com 5 golos,

só atrás do inglês Gary Lineker, que marcou 6.

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Nós estávamos na mesma mesa, começámos

a conversar enquanto jantávamos e foi aí que

tudo começou. Logo no ano seguinte, em 1987,

transferi-me para o Nápoles e a primeira vez

que eu o encontrei lá foi já na segunda semana

de treinos – deviam ser os mais puxados

fisicamente e ele deixou-me “sozinho” [risos].

Apareceu num domingo à tarde, bateu à

porta do meu quarto e quando entrou…esse

momento foi emocionante para mim. Era um

sonho jogar ao lado do Maradona, eu queria

fazer história com ele e foi isso que se acabou

por passar. Demos um abraço, desejou-me

boa sorte e disse que estava disponível para

tudo o que precisasse. Demo-nos logo muito

bem, sendo que em campo era tudo mais fácil

porque falávamos com os pés e, por vezes,

com o olhar.

Como eram os treinos com Maradona?

Parecia um malabarista. Tinha um alto

domínio da bola, fosse ela de que tamanho

fosse. Escondia o esférico com a sua técnica.

Normalmente uma pessoa com essa

habilidade podia apenas exibir-se, de vez

em quando, sem qualquer objetivo concreto.

Mas ele fazia isso em campo todos os

dias e para ajudar a sua equipa! Saía-lhe

naturalmente, mesmo quando não tinha

espaço, num contexto de maior dificuldade,

muitas vezes marcado impiedosamente.

Tornava o difícil em fácil. Encantava toda

a gente. Era só passar-lhe a bola e ele resolvia.

Saía sempre bem de qualquer situação,

mesmo que o passe fosse mau, que estivesse

a chover, que o campo estivesse pesado,

que os adversários não o largassem. Foi

um fenómeno, um génio. No entanto, eu não

concordo quando me dizem que era fácil

jogar ao lado do Maradona. Pelo contrário!

Era muito mais difícil porque tínhamos

de estar sempre preparadíssimos. Ele tinha

um dom, estava à frente de toda a gente. Para

o acompanharmos…às vezes nem dormíamos!

Não podíamos pisar a bola, cair e passar

uma vergonha. Melhorar a nossa parte

técnica era, por isso, um desafio diário.

Não podíamos estar à altura de Maradona,

mas se estivéssemos só 30 ou 40% abaixo

já o podíamos ajudar bastante.

Qual foi o segredo do sucesso da dupla

atacante que construíram no Nápoles?

Eu era muito rápido e ele tinha uma excelente

visão periférica. Tinha a sensibilidade exata

para fazer o passe sempre antes de eu estar

fora de jogo. Encontrava-me em campo

com muita facilidade e eu também procurava

posicionar-me da melhor forma para que

ele me pudesse achar facilmente. Tínhamos

jogadas ensaiadas, mas eram sempre

imaginadas para que eu pudesse receber

a bola “nas costas” dos defesas. Ele dava-me

algumas no pé, mas treinávamos sobretudo

para que eu pudesse atacar a profundidade.

O Diego sabia que havia uma grande

probabilidade de eu chegar à bola antes

dos adversários. Também tentávamos ao

máximo ganhar faltas perto da área. A partir

daí era só ele ir lá e, com aquela precisão que

sempre teve, cobrar [o livre] direto. Muitas

vezes resultava em golo, claro. Havia uma

telepatia muito forte entre nós, uma interação

enorme nos 90 minutos. Estávamos sempre

a comunicar, mesmo que muitas vezes nem

fosse preciso falar.

Já disse que se divertia em campo com o

Diego Maradona, mas como conseguia isso?

Nós esforçávamo-nos por dar espetáculo!

Sempre com muita objetividade. Ele

inventava bonito! Os toques, as tabelas,

a velocidade de execução, sempre sem

humilhar ninguém. Eram ações simples,

objetivas, que tornavam as jogadas elegantes.

Com bom ou mau tempo, bom ou mau

relvado, tentávamos sempre criar situações

espetaculares. Os golos nasciam a partir

dessa simplicidade de processos. O nosso

simples era muito bonito. Tudo isso

resultava da nossa vontade de encantar

o público. Jogávamos por eles, que nos

acompanhavam sempre. Tentávamos

dar espetáculo para a nossa cidade.

Mas dois apenas dois jogadores não

conseguiam o sucesso que o Nápoles teve

nessas temporadas, com a conquista de dois

campeonatos italianos (1986/87 e 1989/89)

e de uma Taça UEFA (1988/89).

É verdade. Acontece que nós pertencíamos

a uma equipa do Sul de Itália e havia – ainda

há – uma grande rivalidade com o Norte

As pessoas lá são mais pobres, passam

mais dificuldades, muitas vezes não são

reconhecidas. O Maradona conseguiu

transformar o clube e mobilizar o povo

napolitano. Deu alegria, dignidade, e ajudou o

Nápoles a projetar-se mundialmente.

No entanto, era muito difícil porque para

ganhar um “Scudetto” [campeonato italiano]

é preciso ter um plantel pelo menos com 15

jogadores sempre a alto nível. Muitas vezes

nós não “tínhamos” mais que os 11 que

entravam em campo. O Milan, a Juventus,

o Inter…tinham 20 jogadores que eram

verdadeiros fenómenos. Era mesmo muito

difícil, tanto é que nós dizíamos sempre que

um campeonato ganho pelo Nápoles valia por

10. Essas glórias que tivemos foram mesmo

muito suadas. É por isso que ainda hoje somos

valorizados e os adeptos nem nos deixam

caminhar tranquilamente

pelas ruas da cidade. Têm paixão

pela forma como conseguimos mudar

a história de um povo tão caloroso.

Consegue eleger o jogo mais marcante

que teve ao lado de Diego Maradona?

A Juventus sempre foi o nosso grande rival

e tivemos vários confrontos com eles que

foram inesquecíveis. Houve uma eliminatória

mítica da Taça UEFA 1988/89, em que os

eliminámos com uma vitória em casa por

3-0 após prolongamento quando tínhamos

perdido a primeira mão por 0-2 em Turim.

Ultrapassá-los dessa forma, nos quartos

de final de uma competição europeia, foi

sensacional. Claramente um dos jogos que

mais me marcou. Também me recordo de

um triunfo por 5-3 que conseguido em casa

deles, num jogo de campeonato, em que

marquei 3 golos [20 de novembro de 1988].

O guarda-redes da Juventus nesse jogo era o

[Stefano] Tacconi. Nós adorávamos infernizar

os adversários, eles não estavam habituados à

nossa velocidade, à nossa intensidade, sempre

com qualidade técnica.

É público que a vossa relação ia muito

para além dos relvados. O que faziam

nos tempos livres?

Fazíamos churrascos, uma boa feijoada,

por vezes em minha casa, por vezes em casa

do Diego [Maradona]. Havia dias para tudo,

mas não tínhamos muito o lado social porque

o fanatismo dos adeptos não o permitia.

Só estávamos em restaurantes depois das

2h, quando fechavam ao público. A essa

hora é que lá íamos jantar, muitas vezes.

Convivíamos muito com os nossos colegas,

inclusive os italianos, mas sempre em casa.

Talvez por isso, o Diego gostava muito

de ver televisão. Acompanhava campeonatos

de futebol de menor expressão e muitos

outros desportos, como boxe, ténis ou

basquete. Na música adorava tango, claro,

mas também gostava da lambada, do samba

e do sertanejo do Brasil. Admirava também

música italiana e gostava de a cantar. Havia

muitos artistas, como Eros Ramazzotti, que

estavam no início da carreira e iam ver os

jogos do Nápoles. Acabávamos quase sempre

por ter contacto com eles e era fácil seguir

o seu trabalho. No inverno, quando dava,

também viajávamos porque ele gostava

muito de esquiar – em Itália ou no estrangeiro.

Tínhamos de nos esconder dos adeptos, mas

a verdade é que se o Diego viesse connosco

ficava tudo mais complicado, era uma

loucura por onde quer que passássemos.

Ninguém o deixava em paz. Era muito

querido e não havia qualquer possibilidade

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de ter uma vida normal. No entanto, era uma

pessoa simples, de família pobre, criado

num bairro complicado. Por isso sempre

viveu com a alegria de tentar transformar a

vida das pessoas para melhor, pelo menos

momentaneamente, através das suas jogadas

e dos seus golos.

Que tipo de líder era Diego Maradona?

Era muito carismático. Envolvia os adeptos,

a imprensa, o staff, a direção em torno da

equipa. É verdade que também era polémico,

mas foi muitas vezes mal-interpretado.

Procurava sempre o bem, não fazia mal a

ninguém. Em campo usava as artimanhas que

fazem parte do futebol, mas ao mesmo tempo

contagiava toda a gente. Todos iam com ele

para a “guerra”. Fazia a diferença pelo seu

valor e pela atitude que colocava em campo.

Levava muita pancada e nunca protestava com

os árbitros. Era sem dúvida o n.º 1 do mundo.

Como era a relação com dele com

os companheiros e toda a gente

que rodeava a equipa?

Claro que ele decidia sozinho vários jogos,

mas nunca deixou de enaltecer os seus

companheiros. Sempre teve uma relação

excelente com todos. No período em que

jogámos juntos nunca o vi chatear-se

com ninguém. Por vezes, cobrava: pedia

para jogarmos mais, para ninguém se

desconcentrar nos momentos decisivos.

Ele não gostava de perder, nem num jogo

de preparação. Personificava muito

o espírito argentino, tinha muito caráter e

personalidade. Lembro-me que tinha um

treinador pessoal, o Fernando Signorini, com

o qual fazia trabalho de força e velocidade

em sua casa. Na verdade, o Diego só treinava

connosco 2 ou 3 vezes por semana. O contrato

que ele tinha permitia que o fizesse. Sabíamos

que podíamos contar com ele e a relação

com todos foi sempre excelente. Também

me recordo que cobrava ao presidente

Corrado Ferlaini a sua presença mais regular

junto da equipa. Sentia que o apoio do

chefe era importante, mas ele tinha outros

compromissos profissionais para além de ser

presidente do Nápoles – era engenheiro. No

entanto, vi sempre um bom relacionamento

de Diego com todos.

São conhecidas as dificuldades pelas quais

Diego passou fora de campo. Como é que ele

reagia a essas adversidades?

Eu vi-o sempre em constante superação e

até lhe dou exemplos. Claro que o problema

mais grave que teve foi o da dependência de

drogas, apesar de nunca o ter visto “alterado”.

Mas ele também ficava muito incomodado

quando não conseguia controlar o peso.

Tinha tendência para engordar, mas sempre

foi muito dedicado e trabalhava para que isso

não condicionasse o seu rendimento. Todas

as semanas lutava contra o peso em excesso e

conseguiu muitas vezes vencer. Havia sempre

um ou dois adversários “em cima” dele,

tinha de ser forte e proteger bem a bola. Na

maioria das vezes conseguia-o, mas quando

estava sem o peso ideal tinha dificuldade em

jogar os 90 minutos. Isso incomodava-o. Por

vezes estava 1 ou 2 quilos acima do peso, mas

quando vinha de férias podiam ser 6, 7 ou 8.

Era difícil perder tudo em pouco tempo, na

pré-temporada, mas ele tinha determinação.

As pessoas que o acompanhavam de perto

ajudavam-no, mas ele sofria. Queria estar

sempre a 100%.

Quando deixaram de jogar

mantiveram o contacto regular?

Continuámos sempre a falar. Eu e a minha

família chegámos a ir a Sevilha visitá-lo

[Diego Maradona representou o Sevilha FC

logo após a saída do Nápoles, em 1992/93],

mas depois eu aceitei uma proposta do Japão

[Kashiwa Reysol, clube que representou entre

1993 e 1996] e falávamos mais por telefone.

Nessa altura eu convivi muito com o Hugo

Maradona, irmão do Diego, que também

jogava no Japão [foi médio do Sagan Tosu,

do Avispa Fukuoka e do Consadole Sapporo

68

FPF360


durante a sua passagem pelo campeonato nipónico].

Preocupámo-nos sempre em saber se estava tudo bem

um com outro e a amizade prolongou-se.

O Careca também jogou com outros grandes avançados,

tantos nos clubes que representou como no “escrete”,

mas é a dupla com Maradona que perdura na memória

das pessoas. Porque acha que isso acontece?

Porque ganhámos! São as conquistas que ditam a forma como

os desportistas são recordados. Um jogador pode ser mesmo muito

bom…mas se não ganha nada é menos lembrado. São os títulos que

ficam na história do clube, na memória dos adeptos, nos registos

da imprensa. São coisas que marcam, naturalmente, e no nosso

caso o sucesso internacional também contribuiu muito para essa

perceção que as pessoas têm.

Acha justa a homenagem recente do Nápoles, que mudou

o nome do estádio para Diego Armando Maradona?

Essa atitude do clube foi muito nobre, maravilhosa. Os napolitanos

são assim, tão malucos que eu os acho até capazes de mudar o nome da

cidade para “MARANápoles”. Isto é perfeitamente possível. A loucura

pelo Maradona não tem limites. Ele sabia que as pessoas lhe estavam

gratas por tudo o que ele fez enquanto esteve ao serviço do clube.

Tem alguma opinião em relação ao jogador que possa

ser considerado como o melhor de todos os tempos?

Acho que fazer comparações é muito delicado. Os jogadores passam

e brilham em épocas diferentes. O que é importante é desfrutarmos

de toda a qualidade e agradecer os momentos que os melhores nos

proporcionam durante o tempo em que jogam. O que eu tenho a

certeza é que o Maradona foi o melhor do seu tempo e que até os

adversários o admiravam – mas só no fim do jogo.

Acho que as comparações não fazem sentido.

A única vez em que o Maradona e o Careca estiveram em Portugal

foi para jogar uma eliminatória da Taça UEFA com o Sporting,

a 14 de setembro de 1989. Que recordações guarda desse encontro?

Lembro-me que no Sporting estava um dos melhores defesas-centrais

que eu conheci, o Luizinho [internacional brasileiro que representou

os leões entre as épocas de 1989/90 e 1992/93]. Ele esteve no Mundial

de 1982. Admito que não me lembro muito bem do jogo em si, mas ir

a Portugal é sempre especial porque as equipas têm valor, os jogadores

são de altíssimo nível e é sempre difícil sair do vosso país com bons

resultados. Para além disso, os meus avós da parte da minha mãe

eram portugueses, da Madeira, por isso também me sinto

um bocadinho português.

Mas essa não foi a única vez que jogou nos relvados portugueses.

No dia 8 de junho de 1983 representou a sua seleção em Coimbra,

num jogo particular frente a Portugal [vitória da “canarinha”

por 4-0, com um golo de Careca]…

Para me lembrar desse tenho mesmo de ir ao Youtube, sabe que

eu já tenho uma certa idade! [risos] Lembro-me, isso sim, que em

1982 e 1986 ficámos no hotel do Guincho. Fizemos uma digressão

de preparação nesses anos em que havia Campeonatos do Mundo

e as recordações são as melhores. É um país irmão e temos por todos

vocês o maior respeito. O meu neto mais velho, Luca, tem 7 anos

e festeja os golos com os amigos como o Cristiano Ronaldo,

que também é madeirense. E se tivermos aqui jogador?

FPF360 69


A FPF360 assinala a sua 40.ª edição com a republicação

de 40 das crónicas que fizeram, em especial, da rubrica

“Eu e o Futebol” um espaço plural, de diversidade, com

personalidades relevantes da sociedade civil a expressar

sem rodeios a sua ligação a um fenómeno desportivo à escala

global. Vai também ter oportunidade de ler ou recordar

alguns artigos publicados no contexto temático de cada

edição, dando voz aos pugnam pela defesa intransigente

do futebol.

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FPF360


FPF360 71


JORGE

SAMPAIO

Ex-Presidente da República

Relação antiga esta, velha de décadas, entre mim e o futebol. Iniciada

por influência do meu pai, que gostava do dito, do clube da sua terra

(Guimarães) e que tinha imenso fair-play.

Procurei, até hoje, segui-lo nessa característica. Era o tempo

dos “cinco violinos” e, por isso, cheguei ao Sporting CP.

Não se muda de clube durante a vida, e aguentam-se as crises,

atravessam-se tempestades e bonanças, superam-se quaisquer outras

desilusões. Não vale a pena nem lamentos nem lágrimas …

O que gosto mesmo é do jogo, das estratégias e das tácticas;

auto-atribuo-me jeitos de olheiro – e tenho acertado muitas vezes!

Mas, sobretudo, admiro os talentos.

Hoje já tudo é indústria financeira e de grande quilate em que o adepto

real pouco conta. Mas sempre fiz com gosto a minha peregrinação

oficial, discreta, pelas seleções nacionais, que ao menos nos afastam de

qualquer acesso de clubite aguda. Pela minha parte, sempre me poupei

a isso e reconheço a justiça de uma derrota, como igualmente admito

que os árbitros, sozinhos (para lá de todas as conspirações boateiras

a que não ligo), não podem competir com os catedráticos das TVs.

Há um outro ponto que gostaria de focar, o do extraordinário poder

do futebol, a sua universalidade. Ao longo destes últimos anos em que

tenho andado pelo mundo inteiro no quadro das funções que exerço

para as Nações Unidas, pude verificar no terreno a sua capacidade de

unir admiradores e fãs de todas as idades, estratos sociais, culturas,

religiões, tendências e quadrantes. Não raramente fui interpelado

da Arábia Saudita ao Quénia, da Malásia à Argentina, do Egito à China

e ao Brasil, por pessoas que esgrimiam o nome de Figo, Ronaldo

ou Pelé como a palavra mágica ou um passaporte para a afirmação

de uma afinidade intangível, de um traço de união global. Por causa

deste poder incontestado, figuras conhecidas do desporto em geral

e do futebol em particular têm sido convidadas a dar a cara por causas

ao serviço da humanidade. Foi por isso que há uns anos desafiei Luis

Figo para ser o embaixador da OMS para a luta contra a tuberculose,

função que tem desempenhado e que, por exemplo, nos levou a ambos

à Jordânia. Aí assistimos a um extraordinário torneio juvenil

em que participava um clube feminino, que usava o futebol como meio

de educação não formal para sensibilizar os jovens para a identificação

dos sintomas da tuberculose e seu tratamento preventivo.

Quero terminar este breve testemunho, desejando o maior êxito

para a Federação Portuguesa de Futebol: bons sucessos na formação –

em todos os sentidos – dos nossos jovens futebolistas,

bem como votos de um dirigismo desportivo que se dê

ao respeito pela moderação e transparência.

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FPF360


Escritor

JOÃO TORDO

Parece que chorei da primeira vez que fui

a um estádio de futebol. O meu avô materno

e o meu pai, benfiquistas ferrenhos, levaram-

-me, com três anos, para um dos camarotes

da Luz; a multidão desgovernada, o barulho,

os gritos de golo (e, nesses tempos, os

golos eram a rodos) e a atmosfera geral de

apocalipse devem ter-me assustado, pois

dizem-me que tapava os ouvidos e me enfiava

a um canto, protegido pelo meu avô. Talvez

por causa disto não prestei qualquer atenção

ao futebol até aos quinze ou dezasseis anos.

Todo o desporto, aliás, me passou ao lado.

A minha mãe inscreveu-me em aulas de

aikidô, que eu frequentei durante três meses

com o quimono desarranjado e um pavor

do contacto físico; depois veio a ginástica

desportiva, que rapidamente passou a

ginástica de manutenção, onde todos eram

gordinhos ou muito mais velhos do que eu.

Finalmente, os desportos coletivos: enquanto

os meus colegas jogavam basquetebol,

andebol e futebol, em exibições de vaidade

individualista, eu ficava sentado no banco

à espera que a hora acabasse para me libertar

daquele fardo. Mas recordo, quase com

precisão, o momento em que o futebol me

despertou ou em que eu despertei para

o futebol – foi quando vi um jogador

magrinho, poucos anos mais velho do que

eu, a fazer uma jogada genial e a oferecer

a um avançado o golo. Chamava-se Rui

Costa; o avançado era o Isaías; o adversário

era o Parma. Não foi tanto a jogada que me

deslumbrou quanto a parecença do Rui Costa

com uma pessoa normal (ou com aquilo

que eu achava que era uma pessoa normal):

magrinho, desengonçado, ligeiramente

aborrecido com a facilidade com que aquilo

acontecia, mais um funcionário daquele

ofício - embora um funcionário de alta patente

- do que um galifão semelhante aos meus

colegas dos desportos coletivos que nunca

passavam a bola. Disse para mim próprio:

isto interessa-me. Como sou de natureza

obsessiva, passei os anos seguintes a ver

todos os jogos de futebol de que fui capaz

(incluindo torneios amigáveis) munido

de uma certeza estranhíssima: eu era do

Benfica sem que nunca me tivessem dito

que era do Benfica; como um homem que,

acordando na sua cama, descobrisse que

tinha um par de guelras e lhe fosse evidente

que podia respirar debaixo de água. Assim,

comecei a ir ao estádio, fiz-me sócio e passei

anos de infelicidade sob o jugo de direções

desgovernadas, jogadores comprados pela

Internet e derrotas copiosas. Foram os anos

noventa; foram anos para esquecer. Neste

milénio, tudo mudou, até no que diz respeito

à seleção nacional: acompanhei campeonatos

europeus, mundiais e a equipa que, em 2004,

ficou 90 minutos aquém de se sagrar campeã;

nem sequer foi razão para tristeza, pois nesse

mesmo ano, finalmente, ao fim de quase uma

década de paixão futebolística, vi o Benfica ser

campeão. Julguei que iria chorar ou que ficaria

imensamente feliz. Em vez disso, senti-me

normal – magro e desengonçado,

ligeiramente aborrecido, o mesmo de todos

os dias. Compreendi então que não era

a vitória que me movia; que o ambiente onde

eu tinha nascido para o futebol – primeiro,

a chorar num camarote; depois, atravessando

uma década de sonhos perdidos – tinham feito

de mim o adepto quase perfeito, aquele que

tudo aceita. E, por isso, a derrota comove-me

tanto como a vitória. Quando penso

no Benfica, penso naquele lance do Rui Costa.

Até podemos perder cinco a zero, que aquele

ninguém nos tira.

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ANA BACALHAU Cantora

Não posso dizer que tenhamos a relação

mais estreita do mundo, eu e o futebol.

Mas há uma ligação forte que me prende

a ele, que foi sendo construída desde pequena,

em família, e que é recuperada, em primeiro

lugar, pelos sons que lhe associo e, só depois,

pelas imagens que me ficaram na memória.

Parte da história da minha família paterna

passa pelo bairro de Benfica. A ligação que

mantinham ao bairro era tão forte que talvez

tenha contribuído para a escolha do clube de

futebol, o Benfica. O que recordo com nitidez

era o gozo puro de um desporto

que congregava pessoas à sua volta, ao invés

de as separar. Quando era pequena, a minha

família tinha uma pequena horta, lá para

os lados de Carnide e as tardes solarengas

de domingo eram aí passadas. Lembro-me

do rádio a pilhas pousado na mesa e do som

do relato a acompanhar as minhas

brincadeiras. As palavras a atropelarem-se

umas às outras, em ritmo quase rap,

a tensão a acumular-se na voz, que quase

se esquecia de respirar e o grito. Um grito

longo, arrastado, depois um sinal sonoro

e, finalmente, o nome da equipa que tinha

marcado o tão festejado “Golo”. Lá se iam

comentando os acontecimentos do jogo, às

vezes os ânimos exaltavam-se com as decisões

do árbitro ou uma jogada mal executada.

No final, lanchávamos, conversávamos e,

fazendo-se tarde, íamos para casa. Outra

das recordações que guardo é do meu pai

a sofrer pelo seu clube e a cofiar o bigode

com vigor, enquanto ouvia o relato ou via

o jogo na televisão. Quanto pior corresse

o jogo, mais o ouvia a passar os dedos

nervosos pelo bigode. O som distinto que fazia

ficou--me gravado na memória e para sempre

o associarei ao futebol. O nervosismo típico

de um jogo e as estranhas formas de lidar com

ele já vêm de longe, na família. Começaram

com a minha avó paterna. Ficava tão nervosa

quando jogava o seu clube, que era incapaz de

acompanhar o jogo. Fechava-se na cozinha a

comer um pacote de bolachas, isolada de tudo

e acompanhada apenas pelo som das bolachas

a partir entre uma mastigadela e outra. No

final, saía e perguntava pelo resultado. Eu sou

um bocadinho como ela. Sempre que há um

jogo importante, fecho-me no quarto a ouvir

música, até que acabe. De vez em quando,

a curiosidade vence o nervosismo e lá dou

uma espreitadela, mas entre um livre perigoso

e uma falta na zona da grande área, lá me

voltam os nervos e me recolho novamente

ao quarto. Não posso dizer que seja uma

seguidora fiel de futebol. Não acompanho

os resultados da jornada e fui duas vezes

a um estádio, tendo constatado, estarrecida,

que, quando as claques se calam, impera

um silêncio austero no campo. No entanto,

o futebol faz parte da minha vida, porque

faz parte da minha história de família e,

consequentemente, da minha história

pessoal. Embalou-me as brincadeiras

nas tardes de domingo passadas na horta,

lembra-me o meu pai, frente à televisão,

a remexer o bigode, e, apesar de não ter

conhecido muito bem a minha avó, que

morreu quando era pequena, mostra-me

que sou mais parecida com ela do que poderia

supor. Pode não parecer muito, mas para

mim é mais do que se possa imaginar.

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NADINE

CORDEIRO

Internacional

portuguesa

A PRIMEIRA

VEZ QUE FIZ

HISTÓRIA

A nossa vida está cheia de primeiras vezes.

Lembram-se do primeiro beijo ou do primeiro

telemóvel? Claro que sim. As primeiras

vezes têm esse poder de ficarem gravadas na

memória. E não acontece só com as primeiras

vezes de coisas boas: lembramo-nos

da primeira fratura, do primeiro raspanete

na escola, do primeiro cartão vermelho.

Falo nisto porque a minha experiência na

Seleção Sub-17 está marcada pelas primeiras

vezes. Pensei nisso quando me pediram para

arranjar um tema para este cantinho. Era para

escrever sobre o meu início no futsal, onde

joguei cinco épocas, numa equipa de rapazes,

mas achei giro falar nessas primeiras vezes.

Para perceberem melhor, a minha primeira

chamada às Sub-17 coincidiu com o primeiro

teste competitivo da equipa, frente à Hungria.

Começou o jogo, tinha acabado de me

emocionar com o hino, e lá estava eu a marcar.

Só precisei de dois minutos.

No fim, quando fomos para o balneário

e os jornalistas começaram a ligar, é que

percebi a dimensão daquele golo. Fiz história,

foi o primeiro de sempre das Sub-17. Quase

explodi de alegria. Para as minhas colegas,

o jogo também foi especial, apesar de termos

empatado (2-2). A ida para o estádio, o grito

de guerra, tudo. Mandei um monte

de fotografias desse jogo para os meus pais.

Dias mais tarde, voltámos a defrontar

a Hungria, goleámos (por 6-1) e marquei outra

vez. Dessa vez, o golo não foi novidade. O que

me provocou um friozinho

na barriga foi o facto de me

terem dado a braçadeira

de capitã. Que orgulho tão

grande!

Depois vivemos a primeira

experiência no estrangeiro.

Fomos a Telavive jogar a

primeira fase de qualificação para

o Campeonato da Europa. Apurámo-nos para

a segunda ronda e senti que estava a viver um

sonho. Aliás, estou mesmo: sinto-me uma

peça importante do grupo e tenho a confiança

dos professores [treinadores] e das minhas

colegas.

A parte mais engraçada foi ter andado de avião

pela primeira vez. Não tive enjoos nem medo

na viagem para Israel. Fui tranquila. Se jogar

um dia numa liga estrangeira, como espero,

vou andar muitas vezes de avião. Até lá, vou

jogar muito e estudar ainda mais. As aulas

já começaram e tenho que me focar.

Estou no 9.º ano e quero seguir desporto.

Não pensem que é fácil conciliar a escola

com a bola. Há coisas normais nos jovens

de 16 anos que me passam ao lado. Sair à noite

e passar um dia a comer porcarias? Esqueçam.

Namorar ainda posso, desde que não

me distraia muito (risos).

Para terminar, quero dizer que vos escrevo em

modo “relax”, sentada no chão do meu quarto.

E quero pedir, do fundo do coração, o vosso

apoio para a próxima ronda de apuramento,

que será em outubro, frente às seleções de

Itália, Dinamarca e República Checa

(dias 15, 17 e 20).

Torçam pelas Sub-17, torçam por mim

e acompanhem mais o futebol feminino.

Se ainda não o fizeram, façam-no

pela primeira vez.

Um beijo grande para todos,

Nadine Cordeiro

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JOANA VASCONCELOS

Artista plástica

A minha relação com o futebol vem de longe,

apesar de não ser uma fervorosa seguidora

do jogo.

Nasci numa família de sportinguistas - os

meus pais são do Sporting e o meu avô foi

presidente do Sporting Clube de Lourenço

Marques e do Sporting Clube da Beira, em

Moçambique -, casei com um benfiquista,

mas o Futebol Clube do Porto foi o único

clube que inspirou o meu trabalho. E já lá

vão duas obras.

A primeira, Ouro Sobre Azul, foi concebida

para uma grande exposição coletiva em 2001

no âmbito da Porto, Capital Europeia da

Cultura e agora, muito recentemente, tive

o privilégio de responder ao desafio para criar

uma obra especificamente para o novo Museu

do Futebol Clube do Porto, a Valquíria Dragão.

O futebol é, aliás, um tema natural no meu

trabalho. O quotidiano é a primordial fonte de

inspiração e o futebol está omnipresente. Em

2003 criei a peça Ópio, composta por

duas balizas unidas por uma rede em

croché onde o golo se torna impossível.

Mais tarde, em 2006, concebi a peça We Are

the Best Team, uma instalação que mostra

uma mesa e um banco de café característicos

de uma tasca portuguesa. Sobre a mesa,

apresentam-se uma garrafa de cerveja -

uma mini -, uma bola de futebol e o típico

transístor onde se ouve o vibrante relato

do Jorge Perestrello da goleada 7-1 oferecida

à Rússia. Todos estes objetos - mesa

e cadeira incluídos - surgem envolvidos por

uma rede em croché; um mundo de homens

ambiguamente protegido e decorado por

uma realidade tradicionalmente feminina.

Acredito muito no poder e na importância dos

jogos em equipa. Jogar em equipa leva a uma

formação pessoal completa e fundamental

no que toca ao convívio em sociedade - ensina

o sentido de tolerância, humildade, igualdade,

respeito -, e é impossível não falar nos efeitos

que o futebol exerce na autoestima de uma

população. Basta relembrar o período

de euforia e confiança que o país viveu durante

o Euro-2004 - pena aquela final... - um género

de confiança que faz falta, pois gera otimismo

e uma energia muito positiva.

O futebol é aliás um excelente exemplo

da qualidade dos portugueses. Em diferentes

áreas do mundo futebolístico encontramos

um português entre os melhores - o melhor

jogador de futebol, o melhor treinador,

o melhor presidente, o melhor árbitro,

o melhor empresário, etc.

Sendo o futebol o mais popular desporto

do mundo, onde a competição é enorme

e o nível de exigência para estar no topo

é elevadíssimo, mais motivos de orgulho

e de inspiração podemos encontrar.

Fotos das obras citadas em www.fpf.pt

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FPF360


Médico

ANTÓNIO

GENTIL

MARTINS

O meu clube de sempre foi o “Clube

Internacional de Foot-ball” que, após a vinda

para Portugal, entre outros, dos irmãos Pinto

Basto, surgiu em 1902 (antes do Benfica ou

do Sporting) e iniciou o Futebol em Portugal.

Sendo um Clube cem por cento amador,

abandonou a Federação de Futebol em 1924,

quando esse desporto se tornou profissional.

No entanto, nunca abandonou a modalidade,

e a partir de então passou a fazer anualmente

campeonatos internos só para amadores

e tem mantido uma escola para aprendizagem

de novos praticantes.

Sou o seu sócio número um (com 82 anos

de associado) e Presidente do seu Conselho

Consultivo, depois de ter sido Campeão

Nacional de Voleibol da 1ª-Divisão.

No CIF fiquei com o número de meu Pai que,

em 1912, bateu os seus primeiros records

e campeonatos nacionais, no salto em altura

e no lançamento do peso, seguindo-se

depois os recordes nacionais de salto em

comprimento e em largura, os do lançamento

do peso e do dardo, já sem falar do tiro em que

foi campeão do mundo com espingarda

de guerra, na posição de pé, em 1928,

e recordista, campeão de Portugal e

mestre atirador em todas as armas de tiro

desportivo conhecidas à época. Foi duas

vezes Olímpico (1920 e 1924), o primeiro em

duas modalidades diferentes, e falecido por

acidente quando se preparava para o Jogos

de 1932. Sem dúvida o mais completo atleta

português de todos os tempos,

mas que só brincou ao futebol.

O futebol nunca foi a minha modalidade

preferida, embora sobretudo no liceu Pedro

Nunes e no Estoril durante as férias grandes,

o praticasse, como a generalidade dos

rapazes o fazia. Talvez porque o meu Pai

era cultor de muitos desportos assim

procurei fazer e dediquei-me mais ao

voleibol, ao ténis e ao badminton, além

do tiro, em que acabei olímpico em Roma,

em 1960 (no tiro com pistola automática).

Antes da revolução do 25 de Abril falava-se

em Portugal dos 3 F’s: Fado, Fátima e Futebol.

A sigla não mudou, continua a ser FFF.

Só que agora é Futebol, Futebol, Futebol.

Neste desaparecem as diferenças políticas

para só existirem preferências clubistas.

Gosto de ver futebol bem jogado, mas em

regra quase só ia a jogos internacionais. Nunca

me desloquei a cidades diferentes só para ver

um Clube ou um jogo, não me considerando

por isso um adepto fervoroso. Aliás gosto

de ver qualquer desporto bem jogado e,

obviamente, também futebol.

Confesso que, sendo um fervoroso adepto

do amadorismo no desporto e dos ideais

olímpicos, me impressiona negativamente

a loucura que o futebol trás consigo

e por vezes a falta de desportivismo que

alguns atletas ostentam. Mas porque são

comercialmente rentáveis, as suas atitudes

não parecem influenciar as contratações

que atingem verbas absurdas e sobretudo

chocantes e mesmo imorais num mundo

com gravíssimas dificuldades económicas

e grandes níveis de pobreza, mas no qual o

dinheiro e o comércio tudo dominam e se

apresentam como os mais

importantes factores a considerar.

Os actuais futebolistas são efectivamente

profissionais como os artistas de circo,

conseguindo no entanto gerar receitas

fabulosas, que aqueles, com igual ou até

por vezes maior mérito, não atingem. E não

consigo esquecer que os Jogos Olímpicos da

antiga Grécia acabaram ao fim de cerca de mil

anos (agora tudo se passa mais rápido!), por

causa dos lucros dos atletas e promotores,

surgindo o jogo viciado, a manipulação dos

resultados, a compra dos juízes, a dopagem,

etc., etc..

É isso que gostaria de ver banido em todo o

Desporto, nomeadamente entre nós.

António Gentil Martins opta por escrever de acordo

com a antiga ortografia

FPF360 77


MARCELO

REBELO DE SOUSA

Professor, comentador político

1. Pediram-me para escrever umas linhas

sobre futebol. Que não fosse só a saudosa

evocação de Eusébio. Ou a lembrança de

Mundiais ou Europeus onde estive, levando

comigo pontos de exame para corrigir, nos

mais agitados meses de verão da minha vida.

Ou recordações clubistas - de braguista desde

a infância -, recordações essas que ficariam

deslocadas numa revista federativa. Menos

ainda, alusões ao que vai sucedendo, hoje,

na desafiante convivência de uma já antiga

instituição com a mais jovem Liga de Clubes.

Tudo visto e somado, escolhi, então, dedicar

umas linhas a redescobrir na minha memória

os anos loucos em que fui dirigente

da Federação Portuguesa de Futebol.

2. Estávamos num daqueles raros dias

em que março nos oferece sol e céu azul.

Nada de chuva, nem de nuvens. Saía de uma

aula na Faculdade de Direito da Universidade

de Lisboa, ao Campo Grande. Um cavalheiro

baixinho, carregado com uma pasta castanha,

cheia de fivelas, interpelava-me:

vinha de Angra do Heroísmo, representava

a Associação de Futebol, queria convidar-me

para a representar como um dos doze

diretores da Federação Portuguesa de Futebol,

trazia quilos de dossiês com regras, queria ter

a certeza de que eu aceitava para garantir que

um jurista podia garantir o primado do Direito

na Direção federativa.

Apanhado de surpresa, tentei explicar

que nunca estivera em Angra, desconhecia

o futebol angrense, estava a trabalhar

no doutoramento, não entendia a valia de

um jurista num órgão que não o vocacionado

para questões de justiça desportiva, gostava

de futebol mas antevia labores excessivos para

me afeiçoar ao novo cargo.

Nada comoveu o convidante. E persistiu,

e persistiu, e quase me deixou incomodado

com a sua infelicidade se voltasse para casa

de mãos a abanar. E, como tantas vezes

sucedeu na minha vida - e só espero que não

sucedam muitas mais... - deixei-me comover

com a ideia de serviço, de apelo irremovível,

78

FPF360


de pedido irrecusável seu e do destino.

Sim, porque apenas um destino imperativo

iria inventar aquela missão para mim,

apanhado entre duas aulas,

a leste do mundo do futebol.

3. Tomámos posse em março. Presidia Jorge

Fagundes, num tempo em que Sporting

e Benfica rodavam na presidência. Porto

e Setúbal vice-presidiam. Reuníamos na sala

de mesa redonda da Praça da Alegria, com

a alegria ligeira de um grupo de estudantes

excursionistas, à descoberta de um percurso

antes desconhecido. E, claro, eu fiquei logo

com o pelouro mais complicado - o das

relações com a comunicação social. Pois se

eu já andava no Expresso há mais de um ano,

assim teria de ser. E foi. Tendo por braço

direito, lealíssimo, uma escolha minha:

Neves de Sousa. Frontal, corajoso, lutador,

além do mais antifascista militante.

4. Um mês volvido, Portugal mudou. Chegou

o 25 de abril. E cada qual alinhou na sua área.

Fagundes, perto do PRP. Os vices, perto da

direita, entre o CDS e o PPD. Eu,

no PPD. Neves de Sousa, mais PCP.

Os demais dirigentes, na sua maioria, pelo PS.

Mas nada nos separava enquanto Federação.

Mesmo quando a Revolução começou a criar

debates na Federação. Em maio,

com a ameaça dos árbitros de não arbitrarem

por causa da violência nos estádios, obrigando

o Governo a dar poderes policiais aos

diretores federativos, o que me levou - com

25 anos - a ter de enfrentar um jogo dramático

em Marvila, de que dependia

a sorte de Oriental e Atlético. Em junho,

com a recusa do Presidente a ir à final

da Taça de Portugal, por protesto pela prisão

de Saldanha Sanches. Em março de 1975,

com a inauguração do Estádio de Goiânia, no

Brasil, alinhando a nossa Seleção Nacional

contra a seleção do Estado de Goiás, que

substituiu a brasileira, num momento tenso

das relações diplomáticas, e em que me coube

chefiar a delegação portuguesa num jogo que

terminou o pior possível, por choque entre

a consabida teimosia do genial Pedroto

e a inépcia do árbitro do País-irmão.

No geral, foi excelente o relacionamento

dentro da Direção e pacífico o funcionamento

da máquina federativa.

5. Simplesmente, durante a Revolução,

Portugal, por uma vez, esqueceu o futebol.

As duas temporadas foram discretas,

apagadas, sem polémicas visíveis. A Seleção

mereceu a mesma sorte e estava longe de

forma digna de especial realce. As discussões

para revisões de regras não levantaram

quaisquer ondas. A Federação tinha imenso

trabalho, num tempo em que não havia Liga,

mas realizou-o sem controvérsia. Os árbitros

dependiam de uma Comissão Central,

totalmente independente

da Federação e dos clubes.

O mundo do futebol, mesmo o profissional,

era desdramatizado. Com Benfica e Sporting

a refazerem as pazes, com Borges Coutinho

e João Rocha. Os demais clubes sem cortes

de relações ou intervenções

tonitroantes de tomo.

6. Em suma, quando olho para trás, para 1974

a 1976, tenho saudades daquele tempo. E, se de

alguma coisa me arrependo, é de, pressionado

pelo envolvimento político da Revolução, não

ter dado mais de mim à Federação... Aulas,

Expresso, criação de partido, Assembleia

Constituinte e mais Federação eram uma

loucura de vida, apesar da minha idade

e do meu ritmo de vida.

Tenho saudades do tempo em que os grandes

problemas do nosso futebol eram tão simples

e diferentes dos que ocupam as notícias destes

dias...

E até tenho saudade da Praça

da Alegria, porque era com alegria que nós,

amadoristicamente, com carolice,

nos devotávamos à missão de manter viva

a Federação quando milhões se apaixonavam

nas ruas pelos vários MFAS, pelos inúmeros

partidos, pelas múltiplas Revoluções

de que se fez a Revolução portuguesa.

Foram anos loucos, mas inesquecivelmente

enriquecedores!

FPF360 79


Escritora

ALICE VIEIRA

Para dizer a verdade, na minha infância e

adolescência o futebol não existia lá em casa.

O que existia mesmo, mas mesmo a sério era

o hóquei. Todos nós fanáticos apoiantes do Paço

d’Arcos e, evidentemente, ainda mais fanáticos

da selecção nacional. Ganhávamos sempre – ou

quase. Interrompiam-se as sessões de cinema

para dar no écran os resultados. Não me lembro

de alguma vez isso ter acontecido com o futebol.

Mas ganhar sempre também cansa – e, quando

apareceu a televisão, e ninguém conseguia

ver a bola… foi-se o encanto.

Então passámos a dar mais atenção ao futebol.

E um dia vi-me a ser do Benfica, por nenhuma

razão em especial, ou pela mais forte de todas:

porque sim.

O tio com quem então vivia era muito amigo

do Dr. Catarino Duarte – que tinha uma

secretária que, ao ligar lá para casa, dizia sempre,

com voz grave, “é da parte do Sr. Presidente.”

Metia respeito…

Depois casei com um benfiquista. Que tinha

abraçado para sempre a causa do clube desde

o dia em que, pelos anos 30, criança ainda e há

muito tempo doente no Sanatório do Outão,

viu alguns jogadores do Benfica entrarem na

sua enfermaria para animarem um pouco as

crianças internadas. A cada uma perguntavam

se havia alguma coisa que gostassem que o clube

lhes desse. Quando chegou à sua vez, ele disse:

“Gostava muito que me dessem “A Cidade e as

Serras,” gosto muito de ler

mas não tenho livros”.

Dias depois, o Benfica mandava-lhe dois

caixotes, um com a obra completa do Eça

de Queiroz, outro com a do Camilo.

Depois disto, não há como não ser

do Benfica até ao fim da vida.

Mas devo confessar que assisti ao meu primeiro

jogo de futebol, ao vivo e a cores, já mulher feita,

e mesmo no fim de uma gravidez complicada.

Não me lembro de nada – quero eu dizer,

não me lembro de quem é que jogava com quem,

qual o resultado, o nome do campo, nada.

Só me lembro de que estava a chuviscar, e eu

tinha o chapéu-de-chuva (daqueles grandes!)

mesmo ao meu lado, meio aberto, pronto a

entrar em acção.

Não sei que foi que eu disse, não sei que olhar

terá sido o meu, só sei que o meu vizinho de lado,

de repente, murmurou:

“A menina não percebe mesmo nada

de futebol, pois não?”

Gostei que alguém me tivesse chamado menina,

com aquela barriga de quase 9 meses, e lá fui

confessando que aquele era o primeiro jogo

a que eu assistia, sabia que era golo quando a

bola entrava na baliza, e pouco mais.

Vai daí, e até ao fim do jogo, o meu inestimável

vizinho fez tudo, absolutamente tudo, para me

introduzir na nobre arte do futebol.

Se o jogador estava ou não estava fora de jogo

(acho que ainda se dizia off-side…), se tinha

sido canto ou não, se o penalti (com “y”,

evidentemente) tinha sido bem assinalado ,

tudo aquela alma me explicou com o desvelo

de um mestre a preparar a aluna

para um exame final.

Tudo acompanhado por quilos de amendoins,

pevides e tremoços – num tempo em que a

ecologia andava longe das nossas preocupações,

e o chão era o destino final dos despojos.

Terminado o jogo, começou a chover.

Abri imediatamente o chapéu – e uma

extraordinária chuva de cascas de amendoins e

pevides e tremoços cobriu-me da cabeça aos pés.

Lembro-me disso até hoje, porque nunca pensei

que as cascas custassem tanto a limpar – e

porque a minha filha nasceu no dia seguinte.

Ah, e também nunca mais esqueci os

ensinamentos do meu vizinho – que hoje

permitem que eu discuta um jogo, de igual

para igual, com os meus netos. Benfiquistas

ferrenhos, evidentemente.

Mas nunca me lembro de ter assistido a nenhum

jogo de futebol até 1969 – quando fui ao Jamor

para a final da taça entre o Benfica e a Académica.

Alice Vieira opta por escrever de acordo

com a antiga ortografia

80

FPF360


Chef

JOSÉ

AVILLEZ

Ponto prévio: os últimos sete anos da minha

vida foram vividos num só fôlego, numa

corrida quase vertiginosa. Começou com

um estágio no El Gulli e prosseguiu no

Tavares. Vieram dois filhos e uma viagem

inspiradora pelo México. Com a abertura

de seis restaurantes – O Cantinho do Avillez

e, depois, o Belcanto, a Pizzaria Lisboa,

o Café Lisboa, O Mini Bar Teatro e o Cantinho

no Porto, com o take-away e catering JA

pelo meio – passei de uma equipa de 12

colaboradores para me transformar num

chef e empresário responsável por 160. E, pelo

caminho, conquistei quatro estrelas Michelin.

Serve este ponto prévio para explicar,

em grande medida, o facto pelo qual

me fui afastando do futebol. De adepto

incondicional fui-me gradualmente tornando

num observador do fenómeno à distância,

até porque as minhas energias e atenções

se foram centrando na minha atividade

profissional.

Durante a juventude e adolescência sempre

procurei a atividade física. Pratiquei râguebi,

treinei artes marciais e cheguei a jogar

futebol todos os domingos com os meus

amigos, embora de uma forma absolutamente

informal, no rinque que existia perto do

antigo pavilhão do Dramático de Cascais.

Tão informais eram essas partidas que

invariavelmente me apresentava

a jogo de sapatos de vela.

E a minha ligação ao futebol começou

precisamente por aí, na rua, entre amigos,

como tantas outras crianças.

Se então procurava a diversão e a distração,

hoje olho para o futebol de forma diferente.

Vejo-o como um fenómeno agregador.

Gosto muito de ver pessoas felizes e o futebol

permite-o, mesmo que seja apenas por

breves momentos. A sensação de ver alguém

festejar uma vitória, um golo ou um objetivo

alcançado agrada-me. A democraticidade

do futebol – que tanto pode ser apreciado e

debatido com a mesma paixão e propriedade

por um analfabeto como por um doutorado –

torna-o tão popular. Somos, na verdade,

um país de futebol.

A este lado social que me parece interessante,

o futebol junta outras componentes como

a competição e o clubismo. A competição

mantenho-a viva para além das peladinhas

com que me entretinha enquanto criança, mas

direcionei-a para outras vertentes da minha

vida, nomeadamente para a carreira de chef

e de empresário. E a própria veia clubística

foi-se desvanecendo, embora me mantenha

fiel ao meu clube de sempre.

Sou sportinguista e confesso que já levei

o futebol muito a sério. Comprei um lugar

cativo em Alvalade na época em que o Peter

Schmeichel veio para Portugal. Acompanhava

religiosamente os jogos, em casa e fora,

e acabei por testemunhar o regresso do

Sporting aos títulos, 18 anos depois. Lembrome

da felicidade que senti e de ter ido com

amigos esperar a equipa a Alvalade. Foram

momentos únicos que ficaram marcados na

minha memória. Por isso, relativizo quando

oiço dizer que o futebol é um fenómeno

alienante. E mesmo se for, parece-me ser um

bom escape para que as pessoas desliguem por

momentos dos seus problemas e frustrações.

Hoje, confesso que não sei o nome de quase

nenhum jogador do Sporting. E estou de tal

forma desligado que até o meu filho mais

novo, que tem três anos, já me anunciou que

é do Benfica e eu não fiquei minimamente

ralado. O que seria impossível há uns anos.

Apesar de distante, admito que utilizo o

futebol como “ferramenta” para motivar

a minha equipa. Ainda que não promova

discussões futebolísticas na cozinha, gosto,

sempre que posso, de organizar jogos entre

colaboradores. São sempre momentos

de descontração, de puro divertimento

que servem para promover

a união e o companheirismo.

E aí, o futebol cumpre, no meu dia-a-dia

e no da minha equipa, a sua verdadeira função.

FPF360 81


Mesatenista

MARCO

FREITAS

O meu primeiro contacto com o futebol

aconteceu aos oito anos de idade no Grupo

Desportivo do Estreito de Câmara de Lobos,

onde pratiquei a modalidade durante cerca de

três anos em simultâneo com o ténis de mesa.

Estas duas modalidades foram as escolhidas

no início da minha atividade desportiva por

causa do meu pai e também por serem muito

populares tanto a nível de desporto escolar

como federado. Permanecem como boas

memórias de infância os treinos de ténis de

mesa durante a semana e de futebol ao fim de

semana. Com o passar do tempo tornou-se cada

vez mais difícil ir aos treinos de futebol devido

ao avolumar de torneios de ténis de mesa que

se realizavam no fim-de-semana. A paixão pelo

ténis de mesa acabou por se tornar mais forte

e séria e acompanhar o futebol tornou-se

um hobbie.

O meio familiar onde cresci nunca teve grande

ligação ao futebol. Apesar disso é curioso que

lá em casa somos simpatizantes de clubes de

futebol diferentes. O meu pai apoia o Benfica,

a minha mãe o Sporting, o meu irmão gémeo o

Marítimo e eu, embora sem grande entusiasmo,

sou simpatizante do Futebol Clube do Porto.

Em dia de dérbis ou clássicos há sempre

animação doméstica.

Tenho de confessar que não acompanho

os jogos da liga portuguesa por não os

considerar interessantes ou competitivos e

acho preocupante a falta de aposta no jogador

português. No que diz respeito à Seleção

Nacional o caso muda de figura, seja onde for

gosto de assistir aos jogos da nossa Seleção,

ainda mais em fases finais de Europeus e

Mundiais. Grande parte do meu entusiasmo

com esta Seleção de futebol tem a ver com o

respeito e admiração que nutro pelo capitão

da equipa das quinas. O Cristiano Ronaldo, além

de ser meu conterrâneo, também já praticou em

jovem e continua a acompanhar o ténis de mesa.

Apesar de compreender a importância a

nível social e económico do futebol há certos

reparos que não posso deixar de fazer. Tendo

por base o contacto com grandes atletas de

variadíssimas modalidades em provas olímpicas

e campeonatos mundiais, aprendi a dar mais

valor a outras modalidades que a meu ver são

mais espetaculares de assistir e mais exigentes

de aperfeiçoar que o futebol e com folhas de

salários muito mais modestas. Entristeceme

que sejam poucos os portugueses que se

apercebem desta realidade, mas em grande parte

as culpas têm de ser atribuídas aos “media”.

Usando como exemplo outros países onde já

vivi, ao futebol é atribuída a devida importância

mas sem nunca se descurar os desportos com

tradição e resultados de relevo internacional, e

Portugal ainda tem de evoluir a esse nível.

Mesmo tendo em conta esta minha visão mais

crítica sobre o futebol em Portugal continuarei

a apoiar incondicionalmente a nossa Seleção

e a desejar os maiores sucessos para o futebol

português e para a nossa Federação Portuguesa

de Futebol. Em jeito de provocação fica o desafio

à Seleção de futebol para que iguale os feitos do

ténis de mesa já no próximo europeu em França.

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FPF360


PAULO SEGADÃES

SÉRGIO

GODINHO Cantor e Compositor

Para mim, o futebol é coisa de garotos e,

depois, de garotos crescidos.

Escrevo no dia seguinte a Ronaldo ter ganho

a sua terceira Bola de Ouro, e os jornais e a

televisão e a internet enchem-nos do olhar

desse garoto que nunca se esqueceu do primeiro

chuto; e do seu crescimento e da sua vontade

constante de vencer. E também do prazer

especial de o vermos, e aos outros, craques

ou não, nessa geometria variável que liga fios

invisíveis e os arrasta numa teia paciente embora

impetuosa: a teia trespassada por um golo,

momento sempre único e irrepetível.

Aprendi a ver futebol desde garoto,

precisamente. A jogar, nem tanto: apenas

por vezes a guarda-redes, era destemido

e rápido de reflexos, fazia-me às bolas sem medo.

Hóquei em patins, sim, jogava, um mero

amador. Nascido no Porto, vivia perto do Infante

de Sagres, clube de grandes pergaminhos

no hóquei, desporto por esses tempos

extremamente popular. E também a sua

(e nossa) seleção tinha os seus “cinco violinos”,

e quem fazia parte deles? Os primos Jesus

Correia e Correia dos Santos. Jesus Correia, esse

mesmo. Um dos “cinco violinos” do Sporting,

um duplo craque. E aqui voltamos ao futebol,

e à pergunta que por vezes me fazem:

- Então, és natural do Porto e és do Sporting?

Sou sim, e também por causa desses “cinco

violinos” e da sua música afinada ao pormenor.

Porto é a cidade, não é só o clube. Havia também

o Boavista e o Salgueiros (o popular Salgueiral!),

perto de cujo campo vivi até aos sete anos,

clube de bairro por excelência agora

infelizmente quase inerte.

Mas atenção, aprendi a ver futebol sobretudo no

Estádio das Antas. O meu pai era sócio do Porto

(e, liberal como era, nunca se importou

de eu e os meus irmãos sermos sportinguistas),

e uma das sensações fortes e agradáveis da

minha infância era irmos ao futebol juntos,

eu um garoto, ele tornado garoto ao assistir

ao jogo e às suas peripécias. Eram tempos do

Yustrich, um treinador de sangue muitas vezes

demasiado quente, do Hernâni, que se pegava

com ele e com quase todos os árbitros (“O

Hernâni é um insurrecto!”, dizia o meu Pai),

do grande Pedroto, e de outros cujo nome

decorava só porque podiam dar jeito

na hora de trocar cromos.

Voltávamos de carro para casa, a comentar

o jogo e de como ele era importante e não era

importante na nossa vida. Dois garotos, cada um

com a seu clube, cada um com a sua colecção

de cromos da vida de todos os dias, da qual fazia

a parte o futebol, e muitas, tantas outras coisas.

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JORGE MONTEIRO/GESTIFUTE

“VALORIZEI

O TALENTO QUE TINHA”

A conversa improvável

entre Cristiano Ronaldo e

Marcelo Rebelo de Sousa,

com o futebol à porta e

muitas ideias sobre o que

é ser português

A conversa entre Cristiano Ronaldo,

português e melhor jogador do Mundo,

e Marcelo Rebelo de Sousa, comentador

político e professor de Direito, tinha um

ponto de partida: futebol não entrava.

O roteiro foi cumprido.

Sem bola, a conversa começou pelo percurso

de Ronaldo. Primeiro a saída da Madeira,

o tempo em que “chorava todos os dias”.

O mais difícil dos desafios. Tão difícil que

aos 18 anos trocar Lisboa por Manchester, o

português pelo inglês, não pareceu assim tão

complicado. E não foi, longe disso. Cristiano,

30 anos e fama mundial, utiliza a palavra

“polite” (a boa educação) para descrever a

admiração que sente pela maneira inglesa

de ser. O respeito pelas regras, a disciplina, o

gosto pelo trabalho. “A pontualidade”, lembra

Marcelo Rebelo de Sousa.

De Espanha o espanto por tudo ser diferente,

tão diferente, embora vizinhos. A paixão, a

alegria, a felicidade apesar das dificuldades

e a constante valorização do que é seu. Eis

Espanha, vista através do olhar do avançado

do Real Madrid. O jeito que isso daria por

cá, concordaram. “Valorizamos de mais o

estrangeiro e não o produto da casa”, sintetiza

Cristiano. Marcelo concorda, apesar de olhar

para os jovens e perceber algo diferente,

menos pessimista, mais aberto. Talvez mais

do Mundo.

Os dois coincidem no olhar sobre o

português. “Povo sofredor”, que se une

“nas dificuldades”, quando parece que já

nada há a fazer. E há. E faz-se. Também no

futebol. E isso intriga Ronaldo: “Por que não

o fazemos mais vezes?!”. Ir para fora, disse o

internacional, deu-lhe outra perspetiva sobre

Portugal. E sobre a vida.

“Nenhum povo pode viver em harmonia

consigo mesmo sem uma imagem positiva

de si” Eduardo Lourenço, “Psicanálise

mítica do destino português” (in

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FPF360


também quis participar. Neste caso, o filho

de Cristiano Ronaldo, que foi convidado a

cumprimentar Marcelo Rebelo de Sousa e aparece

no vídeo trajado à Super Homem. O pretexto serviu

para lembrar o papel da educação. “Algo que os pais

podem controlar”, sublinhou Ronaldo.

“Alegre”, sobretudo quando está rodeado por

aqueles de quem gosta, Cristiano Ronaldo define-se

como “uma pessoa positiva”, que acredita muito em

si mas também confia “nas ideias dos outros”. Até

porque “sozinhos não chegamos a lado nenhum”,

é importante estar atento ao potencial das pessoas,

“ao que podem trazer de novo”.

Aos 30 anos, Ronaldo vai conhecendo “cada

vez mais pessoas” e acredita que “todas têm

um talento”. Precisam de o descobrir “cedo”,

acrescenta Marcelo. “E de procurar condições

para o aproveitar, porque mesmo na dificuldade

é possível”, remata Ronaldo, que tenta numa frase

a síntese deste diálogo improvável: “Quando a gente

quer a gente consegue encontrar, seja onde for”.

“Labirinto da Saudade”, 1978,

edição Dom Quixote)

A imagem é feliz. Todos os dias uma peça. Todos

os dias. Com trabalho, muito trabalho. Mais a

disciplina. A carreira de Ronaldo como um puzzle,

a imagem feliz de Cristiano sintetiza o percurso

do jogador. Marcelo introduziu a palavra sorte.

O internacional português completou a frase

com “dá muito trabalho”. Ficou

“a sorte dá muito trabalho”.

Ronaldo deixou-o claro: não atribui peso

excessivo à sorte. Faz parte, sim. Mas está longe

de ser suficiente e de nada serve se a acompanhá-la

não existir uma mentalidade forte, a vontade

de fazer sempre mais, de chegar mais longe. Saber

“aproveitar a sorte”. Não desistir. “Por vezes tens

de te desafiar a ti mesmo, já não estás a desafiar

alguém”, revela Cristiano.

Traçar objetivos, sempre novos. Ser persistente.

Perceber que futebol, no início divertimento, hoje

é “trabalho”. Valorizar o talento. “Sim, foi isso que

fiz, valorizei o talento que tinha”, sintetiza Ronaldo.

A conversa entre Cristiano Ronaldo e Marcelo

Rebelo de Sousa foi gravada na casa do jogador

em Madrid, no início de janeiro, e mostrada no

Football Talks, no Centro de Congressos do Estoril.

Muito difundida em Portugal e no Mundo, está

na íntegra no canal oficial da Federação Portuguesa

de Futebol, no Youtube. O vídeo, com pouco mais

de 15 minutos, já foi mostrado mais de 1,2 milhões

de vezes, o que o torna o mais visto de sempre

na conta FPF.

Já perto do final do encontro, o “Super Homem”

“Em princípio, todo o português que sabe ler e

escrever se acha apto para tudo, e o que é mais

espantoso é que ninguém se espante com isso”

Eduardo Lourenço, “Somos um povo de pobres

com mentalidade de ricos” (in “Labirinto da

Saudade”, 1978, edição Dom Quixote)

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Ciclista

RUI

COSTA

ASF

A minha carreira enquanto desportista já passou

por algumas modalidades. Como todas as

crianças da minha idade, sonhava ser um grande

jogador de futebol. Na escola dava uns pontapés

na bola mas percebi que esta modalidade não

era “a tal”. Antes de descobrir que era o ciclismo

que me preenchia, ainda experimentei o ténis de

mesa, o atletismo e o karaté.

Sempre estive ligado ao desporto e cresci a

ver futebol. O meu pai é um fervoroso adepto

e juntávamo-nos a ele no sofá. Venho de uma

família humilde, que trabalha no campo, ir ao

estádio era um luxo a que estávamos limitados.

Lembro-me que o primeiro jogo que fui assistir

ao vivo foi no estádio dos Arcos. Era uma partida

entre Rio Ave e Porto, andava eu na casa dos

13 anos. O meu pai era e é portista e por isso

puxávamos pelo Porto.

Desde o pontapé de saída até ao apito final

foi um fervilhar de emoções. Vivemos cada

pontapé, cada instante com a intensidade

requerida para a primeira vez num estádio.

Lembro-me que estava quase cheio e que

aquelas gargantas estavam afinadas e em

sintonia. Marcou-me cada grito e salto do

meu pai aquando de uma falta e a intensidade

dos festejos quando o Porto marcou...

Ele transbordava alegria.

O ambiente ali vivido ficou de tal forma cravado

na minha memória que ainda hoje consigo

lembrar-me de tantos pormenores. Ganhou

o Porto e por isso foi motivo de festejo durante

toda a semana. Para mim e para o meu irmão

foi fantástico, especialmente porque isso

representava maior folga na ajuda que dávamos

no campo, do qual éramos pouco adeptos.

(risos)

Os anos foram passando, o ciclismo ia

tornando-se mais sério na minha vida e eu

cada vez mais dedicado, muitas horas entre

treino e competição. Mas os grandes dérbis não

perdíamos, a não ser que houvesse prova de

ciclismo. Na minha história de desportista

a maior coincidência foi eu ter sido ciclista

de um clube de futebol. Fui contratado pelo

Benfica, que lançou uma equipa ciclista para

a estrada em 2007 e 2008. Em 2007 ganhei

muitas provas mas 2008 foi marcante. Nesse

ano, enquanto ciclista do Benfica e ao serviço

da seleção, fui o melhor ciclista do mundo,

levando a nossa seleção a conquistar a Taça

das Nações frente a grandes potências

como a França, Itália e Espanha.

Esses resultados, enquanto ciclista do Benfica,

foram a minha rampa de lançamento para

o estrangeiro, para o escalão mais alto do

ciclismo que todos os ciclistas ambicionam,

a World Tour. Guardo bonitas memórias desses

dois anos. Lembro-me de a nossa equipa ser

apresentada em pleno estádio da Luz – cheio –

antes de um jogo. O nosso estômago estremecia

à medida que chamavam pelos nossos nomes

nos altifalantes... Aplausos de grande escala

que nunca mais esquecerei e que só um estádio

cheio consegue proporcionar.

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FPF360


STEVEN GOVERNO | GLOBAL NOTÍCIAS

JOSÉ FANHA

Poeta, escritor e arquiteto

Nasci no início dos anos 50. A televisão só muito

timidamente apareceu em 57 e quem dominava

o espaço da casa e abria a janela para o mundo

era o aparelho de rádio. Foi assim que cresci

com o futebol ao domingo pela voz do Artur

Agostinho.

O meu pai e o meu irmão eram ferozmente

do Sporting e eu, que era o miúdo da família,

fui catrapiscado pelo benfiquismo tranquilo

do meu tio Alberto.

São misteriosas as razões que nos levam

a entregar o coração a esta ou àquela equipa

e até se diz que pode a vida dar as voltas que der

mas a paixão clubística nunca se alterará. Talvez

seja verdade. No entanto, ando cá a pensar em

começar a torcer pelo S. Lourenzo de Almagro,

a equipa argentina do Papa Francisco e do meu

amigo Alípio de Freitas. Mesmo que o faça não

me parece que isso venha beliscar o benfiquismo

que continua a tomar-me conta das emoções

mais ou menos domingueiras.

Em 61 entrei para o Colégio Militar que ficava

a coisa de 500 metros do antigo Estádio da Luz.

Podíamos ir assistir aos jogos sem pagar desde

que fôssemos fardados. Era uma festa. Uma

ansiedade. O tempo do Zé Águas, do capitão

Coluna, do Simões, do Zé Augusto, do Zé

Torres e do miúdo Eusébio que tinha vindo de

Moçambique para se tornar no maior do mundo.

Assisti aos jogos das Taças dos Campeões do

Benfica contra o Real Madrid, o Tottenham,

o Feyenoord, o Ajax, sei lá que mais. Num país

miserável, triste e cinzento, era uma alegria

sem nome podermos ter de nós uma imagem

de talento, de raça, de alegria.

Os jogos das finais das duas Taças dos Campeões

ganhas pelo Benfica e o Campeonato do Mundo

de 66 em Inglaterra já os vi na televisão.

Era um tempo de paixões sem limite onde

brilhavam essas estrelas que foram heróis da

minha juventude ao lado dos três mosqueteiros,

do Principezinho, do Tom Sawyer ou do João

Sem Medo, porque heróis são heróis,

sejam do futebol ou da literatura.

Mais tarde vim a conhecer e a tornar-me amigo

de alguns deles. O Zé Augusto, o Eusébio, o Zé

Torres (e até foi pela minha mão que ele entrou

em 3 ou 4 episódios da telenovela “Na paz dos

anjos”). E outros mais jovens, o Toni, o Carlão,

o Humberto Coelho.

Agora já não consigo achar tanta graça ao

futebol. Mudámos muito os dois. Estou mais

velho mas continuo o poeta capaz de sonhar

com utopias e entregando o peito a muitos

projectos de solidariedade.

O futebol tornou-se global, o que não impede

de se tornar, por vezes, palco da vergonhosa

selvajaria dos hooligans, das claques, da

violência, da droga e sei lá que mais. Globalizado

será balizado, mas muito mais domesticado.

Com o domínio desta economia que mata,

a alegria passou a ser empacotada pelas marcas

comerciais, pelos contratos milionários,

pelos proprietários multinacionais.

Os jogadores já não heróis a sério. São uns tipos

cheios de agentes, ténis às risquinhas da marca

não sei quê e penteados cheios de brilhantina

anticaspa.

Alguns deles jogam como o caraças. Mas muitos,

e cheios de talento, são apenas bonecos nas

mãos desta máquina feroz que domina o mundo.

Não gosto nada de parecer um daqueles tipos

que repetem vezes sem conta: “No meu tempo

é que era bom!” Em verdade, em verdade,

no meu tempo é que não era nada bom. Vivíamos

numa ditadura negra e qualquer coisinha servia

para nos acender uma imensa festa no peito.

Depois, veio o 25 de abril, a liberdade, a

democracia. E muitos de nós sonhámos com

um tempo diferente deste, um tempo maior, de

mãos limpas num país verdadeiramente novo.

Não foi nada disso que aconteceu. As coisas

estão feias. A pobreza cresce, o desemprego

aumenta, a inteligência de quem manda mingua.

Mas apesar de tudo, e vá-se lá explicar esta

coisa das paixões, ao domingo ou ao sábado, o

meu coração bate um bocadinho mais depressa

quando ouço a voz do locutor a gritar na rádio:

“Gooooooooooooooooooolo do Benfica!”

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CARLOS

GODINHO

Diretor da Divisão Desportiva da FPF

EURO-96

APURAMENTO

HERNÂNI

GONÇALVES

Estávamos em 1994 e a Seleção Nacional tinha

tido vários insucessos recentes nas diversas

competições internacionais. Desde 1986,

no México, que a Seleção não estava presente

nos grandes palcos e a direção da FPF tomou

a decisão de mudar a linha de orientação

que vinha seguindo desde há uns anos,

substituindo o então Selecionador Nacional.

Depois de um selecionador estudioso, com

resultados expressivos nas camadas jovens,

onde pontificaram os dois títulos mundiais

de sub-20, optaram por um treinador mais

pragmático, menos voltado para as questões

estruturais e mais apoiado pelos poderes então

vigentes. Saiu Carlos Queiroz e entrou António

Oliveira. A equipa técnica constituída por

Oliveira assentava sobretudo em pessoas da

sua confiança pessoal ou que de qualquer forma

com ele já tinham colaborado noutros projetos.

Nessa equipa técnica estava integrado o Prof.

Hernâni Gonçalves, na altura conhecido por

“Professos Bitaites”. Por testemunho de várias

pessoas amigas sabia que era uma personagem

única no futebol e na vida.

Não foi preciso mais do que um dia de estágio

para o entender, não só quanto à sua filosofia

de vida mas também noutros aspetos,

nomeadamente uma faceta pouco salientada,

o seu nível cultural bem acima da média.

As histórias que todos vivemos nesse magnífico

período, de 1994 a 1996, são inúmeras. Desde

as publicáveis a outras mais reservadas,

um livro não chegaria para contá-las em

pormenor. Senhor de uma inteligência ímpar,

com um sentido de humor sem igual, era

uma pessoa invulgar apesar da sua aparência

nalguns casos distante e quase austera. Num

círculo mais íntimo as suas histórias, as suas

análises ao mundo e às pessoas, as que o

rodeavam diretamente e a outras que faziam

parte da atualidade de então, produziam

frequentemente momentos de riso e boa

disposição para quem estava junto dele.

O Prof. Hernâni Gonçalves lembrou-se, antes

do primeiro jogo de qualificação, na Irlanda do

Norte, de começar a batizar/identificar cada

ação. Atendendo ao momento conturbado

que se vivia em Belfast por força da divisão

da região em duas áreas distintas, católicos

e protestantes, decidiu denominar esse jogo

por “As Forças Armadas Estão Preparadas”.

Forças armadas eram a seleção e todo o grupo

de trabalho - pretendia desse modo afirmar

que como íamos para um cenário de guerra

urbana estávamos preparados para todas as

adversidades.

Após o avião ter levantado do aeroporto

de Lisboa, o Prof. Hernâni, no microfone

interno junto ao cockpit, fez uma declaração

para todos os passageiros começando

assim: “Comunicado do Comando Chefe

das Forças Armadas. As chefias das Forças

Armadas informam que...”, partindo depois

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para uma pequena análise do objetivo a que

nos propúnhamos, ou seja, ganhar o jogo

e partir para a qualificação para o Euro-

96. Terminou dizendo “As forças armadas

estão preparadas”, que é como quem dizia,

descansem porque vamos ganhar, com guerra

ou sem ela. Foi uma surpresa e, com um misto

de brincadeira mas também de motivação,

todos, ou a maioria, entenderam aquelas

palavras. No final ganhámos e demos o

primeiro passo, decisivo para o Europeu.

Depois, para cada ação, uma mensagem e um

discurso. Lembro-me de algumas: no Áustria-

Portugal - Baile no Palácio de Schonbrunn,

no Liechtenstein-Portugal - Tempestade nos

Alpes, e no particular Inglaterra -Portugal -

“Lady Di, We Love You”.

Quanto à primeira: íamos dar “baile” no

estádio do Prater, e demos. A segunda era que

íamos arrasar o Liechtenstein e ganhámos por

7-0. Quanto à terceira, Diana estava sendo

maltratada na praça pública britânica e ele

quis dessa forma dizer aos ingleses que nós,

portugueses, estávamos contra essa onda

geral e que o nosso apoio à princesa seria dado

em campo, o que veio a acontecer com um

empate em Wembley perante a forte equipa

inglesa. Como curiosidade, um órgão de

comunicação social britânico, sabendo o que

tinha sido dito, afirmou: “Estes portugueses

são doidos.”

Hernâni Gonçalves era um treinador muito

próximo dos jogadores e de toda a estrutura

e foi sempre um elemento fundamental na

coesão de todo o grupo, não só pela alegria

contagiante mas sobretudo pelas capacidades

de motivação. Com Hernâni Gonçalves ao

lado raramente alguém se sentia triste.

Tanto poderia ser dito sobre o Prof. Hernâni

Gonçalves… No entanto, termino com uma

das suas frases mais emblemáticas: “Carlos

Godinho, o único original sou eu, os outros, os

que me pretendem imitar, são fotocópias e de

muito má qualidade.”

Não fui um seu amigo presente em

permanência dada a distância que nos

separava, mas sempre que nos encontrávamos

era com um misto de amizade e respeito

mútuo que nos tratávamos. Hernâni

Gonçalves foi uma das pessoas mais

surpreendentes que encontrei na vida

e ao passar praticamente um ano sobre

a sua morte aqui fica uma pequena

mas sincera homenagem.

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NUNO PINTO FERNANDES | GLOBAL IMAGENS

RITA FERRO

RODRIGUES

Maria Capaz de Tudo

Apresentadora /

jornalista

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Reza a história que quando os gémeos

nasceram, o pai Eduardo (antes sequer de os

visitar) correu a inscrevê-los como sócios do

Sporting.

Numa família de tradição democrática, o

Clube não se escolhe. É mesmo imposto.

Os Ferros são todos Leões e o fervor roça

a doença. É um amor que não se explica.

Uma coisa louca e linda. Cresci no meio

dessa loucura que nos contamina sem

contemplações. E o Futebol ensinou-me

coisas muito bonitas. Essenciais, diria mesmo.

Ensinou-me a perder e a continuar. A perder e

a ficar com os perdedores. Aguentar a derrota

reforçando o amor pela camisola. Ensinou-

-me que na alegria de um golo bem marcado

somos todos crianças (vi o meu pai e o meu

avô comemorar golos com abraços dançados e

cambalhotas improváveis nos sofás onde por

norma liam, recatados, os seus jornais).

O futebol ensinou-me a força da cumplicidade

de um amor partilhado, aquele arrepio na

espinha que se sente quando se entra num

estádio cheio, um hino soletrado em conjunto,

um cântico em sintonia de bancada para

bancada, o corpo todo a vibrar. Não se trocava

aquele momento por nenhum. É ali que

queremos estar.

Ensinou-me que não faz mal chorar quando

as derrotas doem. Não faz mal! Não é “só

futebol”. É futebol, porra! E naquele momento

não há nada mais importante. Depois passa,

claro. Mas chorámos porque precisámos. E foi

bom chorar.

Ensinou-me a respeitar o adversário sempre.

Sobretudo quando não apetece respeitar

(porque o adversário come a relva e nos

dificulta a vida… Porque joga melhor que

nós e nos obriga a um esforço de absoluta

superação).

Ensinou-me a beleza do trabalho de equipa.

O trunfo da concentração e o foco para atingir

objetivos.

Presenteou-me tantas vezes com a

bebedeira de euforia da vitória suada, aquele

campeonato decidido na última jornada,

Portugal nas ruas com a Seleção, a loucura

de uma conquista partilhada por todos,

todos realmente iguais naquele momento

de felicidade em que durante um bocadinho

mágico, o tempo quase para e tudo se esquece,

tudo se adormece... E a vida é só bola e alegria.

Tão bom gostar de Futebol.

Obrigada, Pai, por esta herança de amor e

loucura que torna a vida definitivamente mais

gira de se viver. E viva o Sporting, claro.

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Navegador Solitário

RICARDO DINIZ

“Como assim, não gostas de futebol?!”. Os meus amigos não

compreendiam, mas era mesmo assim. Só tinha olhos para o mar, onde

passei a minha juventude nas praias da Caparica. Primeiro, durante anos,

em cima de uma prancha de esferovite que me assava a barriga. Com

trabalho e um disciplinado mealheiro lá consegui chegar ao ‘bodyboard’

e mais tarde ao ‘longboard’. Tudo isto antes de pôr pé num barco à vela

pela primeira vez e perceber, nesse momento, que o meu caminho passava

mesmo pelo mar. Enquanto os meus amigos iam à bola ou adaptavam

a agenda do dia para conseguiram assistir “àquele jogo” na TV, eu não

entendia todo aquele entusiasmo e preferia estudar imagens de satélite

e tabelas de marés, para prever onde é que as ondas iriam estar melhores

no dia seguinte. Ainda hoje a meteorologia é uma das minhas grandes

paixões. Futebol? Tanta loucura para quê? É só uma bola e alguns tipos a

correrem feitos doidos. Parecia-me primitivo até…

Quando vivi em Londres com o meu Pai, fomos uma vez a uma das muitas

Casas do Benfica espalhadas pelo mundo. No meio de medalhas e troféus

também havia ‘posters’ de jogadores de futebol. Parecia uma espécie

de museu, sem grande piada para um miúdo de 7 anos. Mas recordo com

carinho que, naquele momento, aquele espaço aproximava-me do meu

País e das “coisas” de Portugal. E isso soube-me bem. Não esqueci esse

cantinho de Portugal no estrangeiro e o seu papel junto da comunidade

Portuguesa emigrada em Londres.

Mais tarde, num enorme estádio de futebol em Lisboa, o meu Pai

apresentou-me a um senhor muito simpático e por quem o meu Pai

demonstrava um enorme apreço e admiração. Percebi que havia uma

boa amizade entre eles. “Sabes quem é este grande senhor?”, perguntava

o meu Pai. Eu tinha 9 ou 10 anos. Sem grande interesse limitei-me a

cumprimentar o senhor, educadamente. Percebi que aqueles dois adultos

sorriam com a minha ignorância, mas não me fizeram sentir mal por isso.

Anos mais tarde entendi melhor essa situação. Porque aquele senhor era

mesmo UM Senhor. Era o Eusébio!

Após seis anos a viver em Londres voltámos para Portugal. Das primeiras

coisas que me recordo é que havia uma equipa de futebol que não ganhava

o Campeonato há muitos anos! Por simpatia quis saber mais sobre essa

equipa e comecei a torcer por eles. Até aos dias de hoje. E depois veio

o Euro 2004. E a partir daqui tudo mudou. Nada parecia mais importante

para mim do que ver os jogos da Seleção Nacional. Dei por mim a falar

mais sobre “bola” e até a ter algumas opiniões! Mas ainda não fazia ideia

o que era estar “fora de jogo”... As meias-finais com a Inglaterra foram

o momento desportivo que mais me fez sofrer até hoje. Eu só dizia

“é pá temos de ganhar isto, temos de ganhar isto!” Quando perdemos

para a Grécia na final, chorava o Cristiano e chorava eu!

Fiquei deprimido semanas.

Posso andar sozinho no mar, mas interesso-me muito pela dinâmica

humana, pelo trabalho de equipa e essa saudável histeria de massas em

relação a coisas que nos fazem vibrar e sofrer. Sou um curioso observador

de comportamentos humanos e é especial quando tenho a oportunidade

de contribuir para o bem-estar dessas pessoas, seja com as palestras que

faço em Portugal e também um pouco por todo o mundo em empresas e

universidades, seja com sessões de ‘coaching’ para empresários e atletas,

entre outros. Adoro ver pessoas felizes e realizadas. Como ‘coach’,

acompanho pessoas fascinantes e na verdade quem fica motivado

com a sua evolução e sucesso sou eu!

Ao longo dos anos passei a compreender melhor o futebol e raramente

perco um jogo da Seleção. Esteja onde estiver, levanto-me e canto de pé

o Hino Nacional com eles, sempre emocionado. Aliás, em 2014 fui sozinho

à vela até ao Brasil, para dar um abraço de força aos nossos jogadores antes

do Mundial. Foi uma promessa que fiz durante o jogo de qualificação com

a Suécia. Tínhamos que ganhar aquilo! Não podíamos não ir ao Brasil!

A bordo transportei uma linda garrafa feita na Marinha Grande, com

milhares de mensagens de adeptos de todo o mundo, cada uma impressa

em papel de cortiça e carinhosamente enrolada com um cordel e colocada

na garrafa. O gesto foi muito bem recebido e representou uma tremenda

honra para mim estar com os “nossos rapazes” no Brasil!

Posso não ter jeito nenhum para jogar futebol (nem consigo

dar 3 toques!). Mas hoje em dia também vibro com o futebol

nas suas diversas componentes. De resto, vivó Sporting! ;)

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NUNO MOREIRA

Apresentadora

TÂNIA RIBAS

DE OLIVEIRA

Sou filha e neta de sportinguistas e, talvez por

isso, tenha sido desde cedo óbvia a minha ligação

ao clube. Ia ver os jogos em casa com os meus

pais, irmão e avô!

Lembro-me bem do cheiro a castanhas assadas

no exterior do estádio e do sabor do nougat e das

queijadas... Lembro-me do entusiasmo do meu

pai e da tranquilidade do meu avô. Lembro-me

dos cânticos da Juve Leo e da Torcida Verde, que

eu e o meu irmão conhecíamos de cor e salteado.

Tínhamos os discos e tudo! “camisola verde,

verde e branca!!!...”, já havia muita música antes

do “só eu sei porque não fico em casa”.

Eu gostava do Manel Fernandes, do Oceano,

do Acosta, do Iordanov, do Rui Jorge. Gostava

do Dani, do Sá Pinto, do Beto e de tantos outros.

Tinha uma camisola oficial, vários cachecóis

e bandeiras também mas, para ser honesta,

o que me fez amar o Sporting para sempre

não foi o futebol.

Entrei com apenas quatro anos na ginástica

e só saí com 28! Os meus quase 25 anos

de Sporting foram de arcos, fitas e massas

nas mãos! Foram recheados de amizades

puras, da inocência da infância à turbulência

da adolescência. Os primeiros namoros,

as primeiras viagens sem os pais, os saraus.

Fui à Alemanha, à Holanda, à Áustria e à Suécia

com a ginástica. Corri Portugal de lés a lés todos

os fins-de-semana! Primeiro com as Pompons,

depois com as Debutantes e por fim com

as Imagens. As professoras Ana Alves

e Rita Garcez foram preponderantes no meu

crescimento. As minhas amigas têm, ainda hoje,

um lugar especial no meu coração.

O meu Sporting é feito de honra e orgulho.

Com mais ou menos golos, melhores ou piores

campeonatos, com Jesus ou sem ele, o meu

Sporting é feito da garra de quem ama. E ama-se

um clube para sempre.

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RUI BRAGANÇA

Campeão da Europa de Taekwondo

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Para mim, tal como para todos os que nascem

em Guimarães, só existe uma realidade: ser

vitoriano! Não porque nos é imposto, mas

apenas porque o ambiente da cidade e dos que

nela habitam faz com que nem haja necessidade

ou vontade de apoiar outros clubes. Se somos

portugueses apoiamos Portugal portanto, se

somos de Guimarães apoiamos o Vitória, no

futebol e em todas as outras modalidades.

Posto isto, é obvio que quando era mais novo

tinha lugar marcado no estádio! Durante uns

anos esta foi a minha realidade dos fins-desemana,

mas à medida que fui evoluindo

no taekwondo passei a ter mais treinos e

competições, muitas vezes ao mesmo tempo

que os jogos, até que chegou uma altura em que

deixou de ser compatível e deixei de ir aos jogos

para continuar a minha progressão no desporto.

Mas ainda hoje, quando tenho a oportunidade

de ir ao estádio, parece que nada mudou e que

volto atrás no tempo! As mesmas pessoas, o

mesmo ambiente e o mesmo sentimento! Tudo

continua lá à espera que volte a ter tempo para

acompanhar os jogos mais de perto.

Quando deixei de ir aos jogos, desliguei-me um

bocado do futebol e hoje em dia nem sequer

costumo ver os jogos na televisão, apesar de me

ir mantendo minimamente atualizado sobre

resultados ou classificação e quando são jogos

“grandes” ou da Seleção aproveitar para ver o

jogo numa esplanada com amigos.

Como o Vitória não é só futebol, seria um gosto

para todos os vimaranenses poder representar

o seu clube e ser o melhor naquilo que se pratica

com o Rei ao peito. Essa oportunidade sorriume

em novembro de 2014 quando foi aberta a

secção de taekwondo e desde então posso, não

só defender as cores do meu país mas também

da minha cidade. Não que antes disso não

levasse Guimarães comigo para todo o lado e

todas as competições, mas esta é uma forma

mais oficial e mais “reconhecível”, por parte

dos vimaranenses e dos meios de comunicação

social.

Felizmente Guimarães é uma cidade à parte no

que toca às modalidades ditas amadoras. Os

adeptos que vão ao futebol são os mesmos que

estão no mesmo fim-de-semana a ver os jogos do

basquetebol ou do voleibol. Mas infelizmente,

esta não é a realidade em todo o lado. Não

querendo descurar o futebol e a sua importância,

não posso deixar de ficar triste por toda a

atenção e apoios que lhe são dados, muitas vezes

em detrimento de todas as outras modalidades.

É verdade que em termos futebolísticos,

Portugal é uma das grandes potências e para

o provar temos entre muitos outros exemplos,

o melhor jogador do mundo a fazer maravilhas

e a bater recorde atrás de recorde. Mas noutras

modalidades também temos atletas que são os

melhores do mundo naquilo que fazem, muitos

outros que estão taco a taco com a elite mundial

e que no entanto não recebem qualquer tipo

de apoio por parte da comunicação social ou

patrocinadores.

Acho que se esta mentalidade mudasse um

pouco, o futebol não ia perder em nada devido

à sua dimensão mas as outras modalidades

poderiam ganhar bastante e consequentemente

Portugal e os Portugueses.

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Produtor e apresentador

de televisão

JÚLIO ISIDRO

Quando ouvia na rádio autorizados

comentadores repetirem exaustivamente a frase

batida: - A bola é redonda! – justificando assim

o que o jogo tem de imprevisível, inesperado,

imponderável, circunstancial e ocasional,

acenava que sim com a cabeça.

Tão redonda que ao longo da minha vida nunca

acertei com o pé na zona do esférico que a minha

cabeça ditava. Logo, nunca uma bola chutada

pelo menino Julinho alguma vez seguiu a direção

por ele pretendida.

Parti o vidro da bandeira da porta do corredor

com uma bola feita de meias da avó, nunca me

deixaram jogar à “chincha” na placa central da

minha rua, no tempo em que os automóveis

ainda só estacionavam junto aos passeios e,

humilhação suprema, tive uma bola de cautchú

guardada anos a fio no armário do quarto dos

meus pais, vazia, enrugada e tão triste quanto eu,

por falta de uso.

Cresci, e nos dérbis de areia molhada da

Figueira da Foz e mais tarde da Costa da

Caparica só joguei por piedade dos meus

amigos. Dividiam-se as equipas e, depois,

sobrava o ímpar, o contrapeso, o excedentário:

- O Júlio vai para a baliza!!

Lembro-me de jogar em equipas que integravam

o Toni e o Humberto, que olhavam para

o artista da televisão com ar paternalista.

Quando metiam golo na baliza que eu mal

defendia, faziam-no assim como quem dá

um capotaço num garraio, com elegância para

não estragar a epiderme do guardião de nada.

Um dia porém, joguei ao lado do Eusébio,

sim, do nosso Eusébio.

Foi num encontro promovido a favor da

UNICEF entre artistas de Portugal e do Brasil.

Estádio do Restelo cheio. Entram Tó Zé

Martinho, Carlos Paião, José Cid, Paco Bandeira,

Milo, Badaró, Júlio César, Eusébio, outros

mais e… eu.

A equipa canarinha cheia de vedetas das

novelas e cantores. O pontapé de saída de Raul

Solnado e Beatriz Costa. O árbitro ocasional

Fernando Pessa.

Momento crucial do jogo: - Eusébio corre pela

esquerda, devagar, passa um, passa outro, outro

ainda deixa-o passar porque o respeito é uma

coisa muito bonita. Júlio corre pelo centro do

terreno e está em frente da baliza, não em fora

de jogo. O pantera negra centra rasteiro e o

esférico está em frente de Júlio. O goleiro sente

a angústia do golo inevitável. O esguio avançado,

praticante diário de ginástica, levanta a perna e

dá um chuto monumental… na relva!

A bola imóvel sorri de escárnio, o público ri

e Eusébio profere palavras alusivas ao ato.

Nasci para tudo: produtor e apresentador de

televisão, guarda-freio de elétricos, funileiro

à porta, caixa de supermercado, aviador,

músico e cantor de ópera, mas com uma

deficiência congénita para o futebol.

Vejo-o sentado no sofá, dou pontapés nervosos

no ar quando os jogadores falham, aplaudo os

artistas sejam quais forem as suas camisolas, não

padeço de qualquer doença emblemática, vou

ao estádio algumas vezes, não gosto dos debates

na televisão sobre aquilo que dizem ser mas não

é o futebol, e quando for grande vejo-me numa

academia a aprender a arte do pontapé na bola.

Boas recordações: o meu programa de rádio

Febre de Sábado de Manhã com 50 mil meninos

em Alvalade e o televisivo Passeio dos Alegres no

Boavista, no Setúbal e no Restelo, sempre cheios.

Num deles pontapeei várias bolas para o público

e acertei… não sei em quem!

Desejos: animar uma qualquer final nacional,

Taça de Portugal ou da Liga com uma exibição

de aeromodelismo. Aí sim, saberei o que estou

a fazer.

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Treinador nacional de judo

NUNO

DELGADO

O meu pai foi jogador de futebol e são muitas

as histórias que me contam sobre os seus

feitos no Sporting da Cidade da Praia, em

Cabo Verde, e no U. Almeirim, em Portugal.

Tenho fotografias dele com o Eusébio e outras

lembranças marcantes, mas a verdade é que

nunca percebi a razão de ele nunca ter aceitado

convites para a primeira divisão. Não consegui

seguir-lhe as pisadas, embora tenha jogado

na rua, como todas as crianças, e ainda hoje faço

as minhas ‘’peladinhas’’ com amigos. A verdade

é que nunca tive o bichinho do futebol. Sempre

fui bom guarda-redes mas muito pouco

virtuoso com a bola nos pés!

Tenho muitas e boas memórias relacionadas

com o futebol. A primeira vez que me recordo

de ver um jogo foi aos 7 anos, motivado pelo

meu padrasto, um adepto fervoroso do Benfica,

mas que, apesar da intensidade dessa paixão,

torcia sempre pelas equipas portuguesas. Ainda

lembro, como se fosse hoje, a raça e o espírito

de equipa daquele conjunto liderado por

grandes figuras como António Sousa, que

acabou por, nesse dia, marcar um grande golo.

Sem saber a razão, torci com toda a minha

energia pela equipa que jogava de azul e branco

e sofri em cada instante, até que aos 41 minutos,

quando o polaco Boniek marca um golo

muito duvidoso, para não dizer mais, todas as

esperanças deste pequeno clube em ascensão

caem por terra. Acreditem que chorei lágrimas

de raiva e sofri imenso com esta derrota na final

da Taça das Taças contra a Juventus. O mais

engraçado e curioso é que nem conhecia bem

esta equipa, pois até então, entre o meu pai

sportinguista e o meu padrasto benfiquista, eu

não tinha ainda tido oportunidade de conhecer

aquele que viria ser o meu clube de coração. Foi

nessa mesma noite, ainda a limpar as lágrimas,

que decidi, contra tudo e todos, escolher por

convicção o clube que iria apoiar para sempre.

Aquela raça e determinação contra o grande

bastião do futebol mundial deixaram-me uma

profunda admiração. E assim foi: apesar de nada

ter a ver com o Norte e de até ter sido atleta da

Casa de Benfica de Santarém, clube onde fui pela

primeira vez campeão nacional, tomei a decisão

de ser apoiante incondicional do FC Porto.

Para todo o lado onde ia levava orgulhosamente

a minha t-shirt azul e branca e batia-me contra

todas as inquirições comuns:

- “Como podes ser do Porto?”

“Mas tu és do Norte?” “O teu pai é portista?”…

Em toda a minha juventude fui acompanhando

orgulhosamente a ascensão nacional e europeia

do Porto até à conquista do título Europeu

em 1987, com calcanhar de ouro de Madjer.

Inspirado na irreverência e garra desafiadora

desta equipa, também fui dando os meus passos

de sucesso, não no futebol mas no judo,

e acabei mesmo por ser homenageado pelo

então presidente do Sport Lisboa e Benfica,

Manuel Damásio, e algumas das antigas lendas

como Antonio Simões, Torres e Eusébio.

Engraçado que vivi então o dilema de ter que

me fazer passar por benfiquista, ou pelo menos

não dar a entender que não o era, durante essa

homenagem. Era tal a minha lealdade que passei

a noite anterior a pensar como poderia não trair

a minhas convicções. Foi então que me lembrei

de fazer umas figas durante as comemorações

onde todos se exaltavam a gritar “Viva o

Benfica”. Existem muitos outros momentos

que vivi com o futebol, mas foi assim que tudo

começou. Não sou um fanático e gosto, tal como

o meu padrasto, de apoiar todas as equipas

portuguesas, mas guardo sempre com muito

carinho a inspiração que o FC Porto me deu

para encarar um Mundo onde muito raramente

somos os favoritos. E olhando para o futuro,

acredito profundamente que a nossa seleção

Olímpica de futebol, a par dos nossos judocas,

irá dar-nos grandes alegrias já em agosto,

no Rio de Janeiro.

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Chefe de Missão aos Jogos

Olímpicos Rio-2016

Ex-atleta Olímpico

(canoagem)

COMITÉ OLÍMPICO DE PORTUGAL

JOSÉ

GARCIA

Por “culpa” do Eusébio,

sou um simpatizante benfiquista.

Não sou um adepto de estádio,

mas um empolgado e sofredor adepto

de ecrã quando joga a Seleção Nacional.

Contrariamente a muitos dos meus colegas,

torço por Portugal quando qualquer das

equipas portuguesas joga contra estrangeiras.

Fico perante um enorme dilema quando

o meu Benfica e o meu Rio Ave, clube

da minha terra, se defrontam.

Fui um atleta fruto do 25 de abril. Nesse

tempo, na minha aldeia, Azurara,

uma freguesia de Vila do Conde, a prática

de desporto era incentivada pela Comissão

de Moradores que promovia a prática

de atletismo, ginástica, futebol, andebol

e basquetebol, entre outros desportos.

Como vivia de frente para o rio, sempre

me senti atraído pelas modalidades náuticas.

Por isso, logo que foi possível, inscrevi-me

na “escolinha”, o nome que dávamos

à Escola de Remo e Canoagem da DGD.

Estávamos em 1977 e a Canoagem era algo

novo. Aliás, a federação só nasceu volvidos

dois anos. Curiosamente, na água as minhas

primeiras competições foram de remo.

À medida que começaram a chegar mais

caiaques, o meu interesse pela canoagem

foi crescendo. Até me viciar.

A minha paixão pelo desporto permitiu algo

singular: enquanto competia na canoagem

e remo, também praticava ciclismo e jogava

andebol e basquetebol. Evidentemente,

também experimentei o futebol, no Rio Ave,

mas foi mau o investimento nas chuteiras...

Ainda assim, os meus dias terminavam quase

sempre com a minha mãe a interromper

o nosso jogo de futebol na rua, com balizas

feitas pelos paralelos que, entusiástica

e inocentemente, arrancávamos do chão.

Aos domingos, para podermos jogar nos

campos do Mosteiro de Santa Clara, tínhamos

de ir à Missa e se fôssemos muito assíduos

presenteavam-nos com um sabonete.

Era um tempo sem televisão e cujas

atividades, para além da escola,

eram praticar espontaneamente desporto

e, já na adolescência, tentar a sorte

com as namoradas.

Um tempo do “vais em primeiro” ou “vais

mas é trabalhar malandro”. Um tempo em

que a amizade e a partilha eram algo muito

verdadeiro no qual as questões se esgrimiam

a punho e se resolviam, poucos minutos

depois, após fraterno abraço.

Sou conterrâneo de grandes jogadores como

André, do seu filho André André, do Paulinho

Santos, do Postiga, do Fábio Coentrão

e do “eterno capitão do Rio Ave”, o Duarte Sá.

Da missão aos Jogos Europeus de Baku e da

participação do Futebol de Praia, trago bem

marcada a capacidade organizativa dos seus

dirigentes, a excelência dos seus jogadores,

o golo com um pontapé de bicicleta do Madjer

e aquele momento em que o Zé Maria assistiu

pelo telemóvel ao nascimento do filho.

Enquanto Chefe de Missão ao Rio 2016, tenho

tido a oportunidade de conviver com alguns

dos jogadores que nos habituámos a admirar

no ecrã, o Humberto Coelho, o Pauleta

e o Rui Jorge, com quem partilho o sonho

pela glória do pódio olímpico e que aproveito

a oportunidade para desejar máximos

sucessos a si e à sua equipa.

Vindo de uma modalidade com realidades

mediáticas e financeiras tão distintas

do Futebol, não posso deixar de apelar

à aproximação dessas realidades e expressar

a minha grata satisfação ao verificar que as

nossas “vedetas” são no seu íntimo pessoas

simples que falam uma linguagem universal

característica de todos os grandes atletas:

muito talento, muito empenho, muita

dedicação, muita persistência, uma grande

resiliência, um querer incrível e que quando

beliscados, somos todos de carne e osso.

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Mestre da Guitarra Portuguesa

ANTÓNIO

CHAINHO

Gosto de futebol. Sempre gostei e cheguei

mesmo, quando cumpria o serviço militar

em Moçambique, a jogar pela Seleção

Militar da região Norte contra a seleção do

Exército da Suazilândia.

Mas o que me cativa no futebol e que vem dos

meus tempos de meninice, dos “ cinco violinos,”

do Rogério, estrela do meu Benfica, o que me

cativa mesmo, não é o desporto que se pratica, mas

a arte que dele se liberta, como se o tempo ficasse

suspenso e nada mais contasse do que a harmonia

à solta naquele retângulo mágico.

Sou músico, essa é a minha arte, é através da Guitarra

que expresso os meus sentimentos, quando toco,

sou eu, o meu instrumento e o mundo, nada mais conta

e no entanto, às vezes, quando vejo um jogo na televisão,

ao aperceber os movimentos, as pausas, a velocidade

descontínua que as equipas imprimem ao jogo, o tempo

dos solistas... Retiro o som, pego na minha guitarra e toco,

acompanho o jogo, os tempos do jogo, a euforia dos golos

e a deceção de uma jogada que se perde.

Toco e ao tocar jogo também, estou lá, naquele palco,

a participar, como se as equipas fossem orquestras e eu o improviso.

Acreditem ou não, algumas das minhas

músicas, foi assim que as compus.

Eis então por que gosto de futebol.

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Cineasta

LEONEL

VIEIRA

Não nasci fadado para grandes proezas

futebolísticas. Nos meus tempos de liceu,

em Miranda do Douro, gostava de jogar, como

quase toda a gente. E jogava, essencialmente,

por três razões: por ser uma espécie de líder

de grupo entre os amigos, daquele tipo que

não é deixado de parte pelos outros seja

no que for; por ser grande e dar jeito para

a defesa; porque na minha turma éramos

apenas cinco rapazes e portanto tínhamos

de jogar todos para participarmos

nos torneios de futebol de cinco.

Uma vez tínhamos uma final para jogar

e o Cardoso - ainda hoje um dos meus

melhores amigos e, ele sim, excelente

futebolista - estava com gripe em casa. Sem

os pais dele sonharem, fomos buscá-lo

depois do almoço, equipámo-lo e pusemolo

a jogar. De cada vez que passavam por ele

quase caía, só com a deslocação do ar. Estava

mesmo doente, o rapaz, mas sem ele éramos

desclassificados! E acho que ganhámos.

Aos 15 anos tive um problema de saúde que

me obrigou ao internamento em ortopedia,

em Coimbra. Esse curso intensivo de hospital

coincidiu com o Campeonato da Europa

de 1984. Nessa altura conheci jogadores

do União de Coimbra e da Académica, que iam

lá para tratamentos e intervenções cirúrgicas,

e o entusiasmo deles ajudou a contagiar-me.

Passei, então, a viver intensamente a Seleção

Nacional e lembro-me de ficar profundamente

triste quando fomos eliminados

nas meias finais.

Durante a minha infância e juventude

a informação corria a uma velocidade bastante

diferente da de hoje. E o volume era bem

menor. As escolhas das pessoas em relação aos

clubes de futebol que apoiavam eram ditadas,

sobretudo, pelos resultados que

se conheciam, por isso não espanta que eu,

à semelhança do que sucedia com a maioria

das pessoas no Interior Norte, tenha ficado

benfiquista. O crescimento do número

de adeptos do FC Porto deu-se mais tarde,

justamente quando começaram a surgir as

vitórias em série e os troféus. Nesse período já

eu estudava no Porto e tinha deixado de jogar.

A vida da malta das artes era ligeiramente

contrária à do pessoal do desporto: copos

e noites não são compatíveis com saúde

e futebol. No entanto ia vendo os jogos e

as sucessivas derrotas do Benfica chegaram

a fazer-me desabafar que mudaria

para o FC Porto!

Não aconteceu, claro, e tive inclusivamente

uma reaproximação grande ao Benfica há três

anos. A minha produtora foi convidada para

fazer os filmes publicitários do clube

e em contrapartida tive, durante duas épocas,

um camarote para ir aos jogos. Eu costumava

dizer aos amigos e aos clientes que lá levava

que estavam no melhor lugar do estádio a

seguir ao do presidente, porque o camarote

ficava mesmo em frente ao dele, na bancada

oposta. Gosto deste lado agregador do

futebol. Um estádio cheio é emocionante.

Hoje identifico-me, essencialmente, com

a Seleção Nacional. Foi uma coisa que me

ficou desde o tal Europeu de 84. Não sou um

nacionalista: viajo muito, estudei em Espanha,

trabalho em vários lados, conheço mais de 50

países e nunca me fecharia numa ideia de País

limitada a um determinado espaço físico, de

fronteiras. Mas dou uma grande importância

às raízes, ao saber de onde vimos e em que

é que isso nos ajudou a ser o que somos hoje.

Acho que a Seleção representa muito bem

esse lado de uma identificação comum entre

os portugueses, e por isso sofro, emociono-me

a ouvir o hino, fico triste quando perdemos.

Há ali um sentimento de Nação muito forte,

se calhar parecido com o que os nossos

antepassados experimentavam ao ver

os exércitos alinhados antes de partirem

para as guerras.

Os portugueses têm muito talento.

No futebol como na generalidade das áreas.

Há talento e pessoas talhadas para ganhar,

como se vê no exemplo do Cristiano Ronaldo.

Mas coletivamente nem sempre as coisas

funcionam e esse talento nem sempre tem

a expressão que poderia ter. Acho que a

Seleção Nacional está fadada para, um dia,

ter um pouco mais de sorte e ganhar alguma

coisa de muito relevante. Quem sabe

se não será já em França, 32 anos depois?

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Escritor e letrista

CARLOS TÊ

É muito fácil para mim falar de futebol, mais

até do que qualquer outra coisa. Pode parecer

estranho, mas não é. Refiro-me ao futebol

vadio, bravio, não federado, que se pratica

em qualquer lado e que parece convocar

as hostes com uma trompa inaudível. Esse

futebol ocupa um papel central na minha

vida e vem antes do resto, da música, dos

livros. Pela simples razão de que não havia

mais nada e a infância, na sua necessidade

de queimar energia, encontrava nele uma

arena privilegiada e um espaço de liberdade

e plenitude. Falo desse futebol de rua,

de baldios, de recreios, de praias, clareiras,

e outros locais improváveis, já não com bolas

de pano e meias enroladas, como as gerações

anteriores, mas com bolas de plástico

e borracha de domínio precário,

imprevisíveis pelo peso e pela dinâmica, longe

das impensáveis e caríssimas bolas de couro,

mas capazes de proporcionar o desfrute do

jogo, da luta, da entrega, que era o essencial.

É um tempo hoje difícil de imaginar, com

pouca televisão, e onde o ar livre tinha uma

importância que entretanto se perdeu. Por

isso, o pinchar duma bola é um som que

guardo na memória, um som perturbador,

uma espécie de chamamento para um

conclave tribal, ponto de partida para

infindáveis desafios, três contra três, dois

contra dois, cinco contra cinco, o que fosse,

quem chegasse, quem estivesse disposto a

aceitar uma baliza de quatro pedras ou quatro

sacas da escola, ou dois casacos entrouxados,

em dois opostos do campo improvisado.

E aí o tempo fluía sem relógio, sem contador,

e o único árbitro era o cansaço ou os gritos

das mães ou das avós porque entretanto

escurecia, ou chovia e imperavam

os medos das gripes e das constipações.

Claro que este futebol era propulsionado

pelos ecos do futebol nos estádios e que,

sobretudo, se ouvia nas rádios com os

relatadores enchendo as tardes de domingo

com os seus pregões, as suas litanias, os seus

gritos côncavos de golo! E aí, como hoje, toda

a gente tinha os seus ídolos, as suas cores,

os seus clubes, mas aquele futebol parecia

mesmo à mão de semear, os seus princípios

eram simples, a sua gramática tão acessível

que dava a sensação de toda a gente poder vir

a ser jogador de futebol, ser aceite no seu

clube, conjugar paixão e profissão. Foi por isto

que o futebol se tornou o tal desporto-rei,

o tal fenómeno planetário que arrasta

multidões, audiências, patrocínios,

e faz correr rios de dinheiro.

Mas para mim, numa parte intacta de mim,

o futebol continua a ser a borracha redonda

batendo no cimento, sinónimo de compincha

à espera, um som entrando pela janela e

boicotando o estudo, as lições de português

e aritmética – o tal chamamento. E, num

tempo em que a escola descurava a sua função

de educação física, essa batida de bola, essa

palpitação fundamental, providenciaram

o meu desenvolvimento psicomotor.

Foram uma minha ginástica sem

método, um mestre lúdico e livre.

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Atriz

CRISTA

ALFAIATE

É costume dizer-se que ser adepto de um

clube de futebol é “uma coisa que nos está

no sangue” ou “que vem do berço”

e “que nasce com a gente”. Acontece que lá

em casa o meu pai é do Sporting, o meu irmão

é do Porto, eu sou do Glorioso e a minha mãe

ocasionalmente é pela Seleção porque

são os “nossos” e é emocionante sentir,

de alguma forma, a vibração de um país

inteiro virada para o mesmo assunto.

Ora, talvez comece aqui, nesta linhagem

tão desorientada, a minha incompreensão

para tão desmedida emoção, tamanho

frenesim bipolar aquando dos jogos de

futebol e sucessivos campeonatos. Sempre

me intrigou a mudança súbita de prioridades

quando “há jogo do Benfas”

ou “joga Portugal” ou “domingo é o derby”.

Sou do Benfica desde a primeira classe (e já

foi tarde…) quando estava na aula de

Educação Física sentada ao pé dos espaldares

e o meu melhor amigo me pergunta: “Crista,

és de que clube?”. Fiquei aterrorizada,

tinha de responder bem e perpetuar a nossa

amizade, mas de facto estava longe de saber.

Ele disse-me que tinha três opções: verde, azul

e vermelho. Eu perguntei: “Tu és de qual?”.

Ele: “Benfica, óbvio!” Eu: “Então eu também

sou.” Disse-me, muito solene, que uma vez

que escolhesse um clube nunca mais poderia

mudar, que ser do Benfica era uma coisa para

a vida e que tinha de jurar ali mesmo que

nunca iria mudar de clube. Estava disposta

a picar o dedo com um alfinete se fosse preciso

fazer o juramento de sangue. Foi assim até

hoje e assim será até ao resto dos dias. Nunca

me deixei abalar nesta convicção, nem quando

pequena, devo confessar, não sem algum

acanhamento, tive um “crush” pelo Fernando

Couto, que via amiúde nos jogos do Porto,

os quais o meu irmão seguia fervorosamente.

O Fernando Couto corria bem, todo

esticadinho, tinha olhos azuis e aquele

cabelo, mas nem assim me deixei

abalar na minha jura.

Não sei os dias dos jogos importantes,

não sofro por antecipação. Desconheço as

estratégias e as hermenêuticas futebolísticas,

sempre preferi dedicar-me a outras

lides. Para mim, era aquela gente toda

engalfinhada a entrar no estádio para assistir

a demonstrações artísticas, performances,

dança, música, filmes e teatro

com na Antiga Grécia.

Eu e o Futebol sempre tivemos uma relação

distante, Eu e o Futebol é mais ou menos

Eu e aquele amigo de um amigo meu. E assim

me disponho, de quando em vez, para uma

ocasião futebolística, para viver aquele furor

animalesco ou fazer a tão necessária catarse

com aqueles amigos fanáticos. Como quando

fui pela primeira vez ao estádio do Benfica ver

um jogo. Era Benfica-Braga, Liga 2014/15,

o estádio estava ao rubro, a multidão cantava

já os hinos, a águia sobrevoou as bancadas

e fez um voo rasante na minha cabeça, senteime

e disse: “Vamos ganhar isto, 2-1 para nós.”

O jogo aconteceu, noventa minutos passaram,

e o Benfica ganhou com o resultado da minha

premonição. Passei a ser o oráculo

do campeonato desse ano. De resto,

anseio por consultar o calendário de 2020

do Barbas, que anda sempre comigo na

carteira, no dia 1 de Janeiro desse mesmo ano.

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Cantora e

compositora

RITA

REDSHOES

Quero precaver os caros leitores de que este texto é uma carta de amor

declarada ao meu pai (Carlos Pereira) e ao meu tio (Aurélio Pereira).

São livres de abandonar estas linhas a qualquer momento, embora não

me pareça sensato pois nunca se renega uma história de amor.

Nasci rodeada de referências ao futebol. Entre as minhas barbies

e ursos de peluche, havia camisolas de seleções e clubes de quase

todo o mundo (levei muitas vezes a da seleção de Israel para o liceu),

medalhas, taças e pares de chuteiras numa prateleira da sala. Eram do

meu pai, tudo do meu pai, camisolas de equipas que tinha defrontado

ao longo da sua carreira como defesa esquerdo, medalhas de torneios

e taças de campeonatos. Depois havia também as conversas entre ele

e o meu tio, os relatos na rádio durante os passeios de carro ao fim de

semana e as idas aos estádios para ver os jogos ao vivo e a cores.

Entre vitórias e derrotas, o que sempre me despertou mais a atenção

foram as histórias que ia ouvindo, quer do meu pai, quer do meu tio

enquanto treinadores, sobre os jogadores. Miúdos e graúdos,

uns com muitos sonhos e talento, outros só com talento, outros só

com muita vontade. Bom, é incontornável referir também a classe com

que assistiam aos jogos. Comentavam, umas coisas mais técnicas do

que outras, mas sempre com serenidade, as vozes não se levantavam,

os dedos das mãos não se contorciam nem as unhas eram roídas.

Mas voltemos às histórias sobre os jogadores, fascinavam-me porque,

acima de tudo, eram histórias de vida, histórias de famílias,

das crianças ou adolescentes dessas famílias. Admirava, na altura

sem ter essa consciência, o carinho, a dedicação e a preocupação que

os dois tinham pelos seus jogadores. A forma como cumpriam aquele

papel de espécie de segundos pais que ensinam, ralham, protegem

e ajudam a gerir ansiedades e expectativas, quer fizessem ou não golo.

Só muitos anos mais tarde é que vim a perceber o quão valiosas foram

aquelas conversas e histórias, carregadas de ensinamentos, para mim.

Quando iniciei a minha carreira na música, sentia-me tal qual como

um jogador iniciado à procura de me encontrar, de tomar as decisões

corretas nas alturas certas, à espera que reparassem no meu talento

e que alguém me dissesse que eu servia para jogar e pertencer à equipa

principal sem ficar no banco. As semelhanças entre os dois mundos,

música e futebol, embora eu pouco suspeitasse, eram e são muitas

e devo confessar que as vozes dos dois ecoaram na minha cabeça

repetidas vezes em momentos fulcrais do meu percurso. - Espera,

tem calma. Levanta a cabeça, olha o adversário de frente e dá-lhe!

Agora! Finta miúda e remata!

Foram e serão sempre dois dos meus

melhores treinadores de bancada!

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Cozinheiro da Seleção Nacional

LUÍS LAVRADOR

Em alta competição, quando se almeja

alcançar bons resultados todos os

pormenores são importantes. A alimentação

não foge à regra: atletas bem alimentados

são atletas preparados para saborear vitórias.

É esta a sensibilidade de princípio e uma

verdadeira convicção de quem há mais de 20

anos tem cozinhado para a Seleção Nacional.

Neste sentido, entendemos da maior

relevância dar espaço editorial a um aspeto

fundamental em alta competição e tão pouco

conhecido do público, mesmo daquele

ligado ao futebol.

No atleta, o ato de comer conjuga fatores

fisiológicos, emocionais, simbólicos

e socioculturais que é preciso saciar.

A fenomenologia do ato de comer assenta

no cruzamento integral dos grandes sensores

(sabor, visão, audição, olfato, tato) com

a fome, o apetite, o paladar, a saciedade,

o status emocional, os desejos de comer,

os processos de escolha do alimento e os

mecanismos fisiológicos da mastigação,

deglutição e digestão (Poulain & Proença).

Afinal, comer configura uma necessidade

que vem antes de tudo, tal como afirma

o antropólogo Barthes: “Comer ou não comer,

eis a questão. Quem escolhe comer vive, quem

escolhe não comer morre”. Entenda-se

o “viver” e o “morrer” na sua máxima

amplitude polissémica.

Ao ter alcançado hegemonia planetária, ao

arrebatar cada vez mais os corações, ao gerar

tantas emoções, levando por vezes os adeptos

a idolatrar os seus atores, ao produzir sentido

de identidade étnica, autoestima e dinâmicas

sociais efervescentes (além dos importantes

impactos económicos que gera), compreendese

por que no futebol se passou a considerar

com tanta atenção os alimentos que se levam

à mesa dos atletas e o modo como lhes são

distribuídos. Na verdade, a reparação total que

uma boa refeição protagoniza tornou-se pedra

angular na estrutura vitoriosa de uma equipa.

Não é, todavia, nosso propósito revelar

as ementas da Seleção Nacional, nem tão

pouco produzir narrativas sobre as tantas

iguarias que as têm composto ao longo dos

tempos. Seria fastidioso para quem nos lê

e defraudava os que prezam a intimidade

associada à comensalidade da nossa Seleção!

Iremos, pois, nos próximos números, tão só

revelar algo sobre as iguarias que se tornaram

ícones intemporais e indispensáveis durante

as competições. Salientaremos o facto de

que cada um dos pratos tem associada uma

ocasião especial que convoca os comensais

para rituais próprios, o que converte cada

um dos momentos gastronómicos em

oportunidade de reparação física, mas

sobretudo de restauro afetivo.

Assim, nos próximos números, falaremos

do arroz doce, da canja de galinha, das coxas

de frango assadas com arroz de cenoura, da

aletria, da bolonhesa e o esparguete, para, no

final, dar conta do bacalhau cozido com todos.

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Empresário

FRANCISCO

PINTO BALSEMÃO

Como, apesar de todos os louváveis esforços

da Federação Portuguesa de Futebol

e de algumas outras instituições e pessoas,

o nosso futebol caseiro continua recheado

de peripécias que muito me entristecem,

resolvi utilizar este PROLONGAMENTO

para recordar o momento mais alto da minha

curta carreira futebolística …

Foi nos meus tempos do Pedro Nunes,

onde estive sete anos, tinha eu 14 ou 15 anos.

No liceu fiz muitos amigos novos. Um dos

efeitos dessas amizades foi a criação de um

clube de futebol a que, depois de muitas

discussões, chamámos “Os 11 Cruzados”.

O equipamento, para não ser verde nem

encarnado, era azul, parecido com o do

Belenenses. Os jogadores eram alunos

do Pedro Nunes, uns mais velhos do que eu,

outros mais novos. Entre eles, os irmãos

CARVALHINHOS, HENRIQUE e AMÉRICO,

os irmãos FONSECA E SILVA, VÍTOR e

CARLOS, o JORGE VALENTIM, que era

o mais velho e o guarda-redes, o HANDEL

DE OLIVEIRA (que seguiu uma carreira

jornalística e com o qual me fui cruzando

até há relativamente pouco tempo, ao

contrário dos outros que só em raríssimas

e esporádicas ocasiões reencontrei). Nos

11 Cruzados havia ainda um contingente

de jogadores que já eram meus amigos ou

conhecidos: JOÃO ESTARREJA, que era

o melhor jogador de todos nós e tinha um

grande talento para qualquer desporto,

chegando, aliás, a internacional de andebol

de 7; o LUÍS CORREIA DE SÁ, que era

também vizinho, vivia na Rua do Sacramento,

e tinha um grande relvado em casa, excelente

para os nossos treinos; o ÁLVARO ROQUE DE

PINHO, que, entre outros feitos, foi, no Pedro

Nunes, o primeiro namorado

da SIMONE DE OLIVEIRA, que já então,

embora tivesse só 13 ou 14 anos, era uma

estrela admirada e desejada, e que felizmente

tenho reencontrado ao longo da vida.

Eu fui quase sempre titular nos 11 Cruzados.

Tinha a camisola n.º 6, jogava a médio

esquerdo no esquema WM. Pelos vistos,

sempre tive tendências para o centroesquerda…

Os jogos dos 11 Cruzados realizavam-se

normalmente ao sábado, no campo de terra,

que hoje já não existe, do Cascalheira,

entre Campolide e as Amoreiras.

No primeiro jogo, contra uma turma

de mais velhos do Pedro Nunes,

levámos uma abada terrível: 15 a 1!

Na 2.ª feira, quando chegámos ao liceu,

fomos gozados e escarnecidos e até

houve algumas cenas de pancadaria.

Os 11 Cruzados não disputaram mais jogos

“oficiais” durante aquela temporada.

Treinámos incessantemente. O pai do LUÍS

CORREIA DE SÁ arranjou-nos um treinador:

ARMANDO FERREIRA, que foi ponta direita

do Sporting, chegou a internacional,

mas teve a sua carreira bastante tapada

pelo fulgor desse génio do futebol (e do

hóquei em patins) que era JESUS CORREIA.

Tivemos, no máximo, uns 4 ou 5 treinos com

ARMANDO FERREIRA, um ou dois no Lumiar

A, que era o segundo campo do Sporting.

Mas isso foi o suficiente para percebermos

o futebol de uma maneira completamente

diferente: a colocação em campo no sistema

WM, os passes, os remates, a cobertura

dos adversários, etc.

A partir daí, os 11 Cruzados tornaram-se

invencíveis. Teremos feito uns 15 a 20 jogos,

nos primeiros anos da década de 50

e ganhámos todos. Até um, que foi a nossa

coroa de glória, num sábado em que

disputámos duas partidas de 90 minutos cada!

Tínhamos dizimado uma equipa da nossa

idade, do liceu Passos Manuel. Quando

estávamos no balneário a mudar de roupa

(não havia duches nem nada desse estilo…),

apareceu um representante do próximo

ocupante do Campo do Cascalheira. Era uma

equipa de adultos, do próprio Cascalheira,

se não me engano, que jogava na II Divisão

da Associação de Futebol de Lisboa

(e foi campeã em 1954).

A proposta era disputarmos um jogo

regulamentar, de 90 minutos.

Aceitámos. E ganhámos: 2 a 1! Este foi talvez

o momento mais alto dos 11 Cruzados. Não

só pela vitória de 11 miúdos de 13, 14, 15 anos,

mas também pelo fôlego extraordinário que

era preciso ter para jogar, quase sem pausa,

3 horas de futebol (sem esquecer – será

politicamente incorreto, mas não resisto – que

alguns de nós, entre eles o JOÃO ESTARREJA

e eu, já fumávamos nessa altura – Aviz

em maços de 10, que era o mais barato – e

aproveitámos a pausa de 10 ou 15 minutos

entre os dois jogos para fumar o nosso

cigarrinho …).

COM A PASSAGEM para o 6.º ano do liceu

da maior parte de nós e a consequente escolha

dos futuros cursos universitários ou de outras

opções de vida, os 11 Cruzados desfizeram-se.

Foi cada qual para seu lado e umas tentativas

de manter a chama sagrada através de jantares

não resultaram.

Para mim, ficou uma importante e positiva

experiência de unidade em torno de uma

causa, de capacidade de criação de espírito

de equipa, de compreensão que o treino

é essencial em qualquer atividade.

E de amor pelo futebol.

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RITA

NABEIRO

Diretora-geral

da Adega Mayor

No dia 30 de Junho de 2016, Portugal vencia

a Polónia nos penaltis e apurava-se para

as meias-finais do campeonato europeu de

futebol. O adversário que se seguia era o País

de Gales e a data marcada era o 6 de Julho.

O mesmo da minha viagem de Lisboa para

São Tomé e Príncipe, onde me iria juntar

a um grupo de voluntários que tinham

partido na semana anterior.

Chegado o dia das partidas e já a bordo

do avião, ouviu-se a voz do comandante:

“O voo para São Tomé e Príncipe irá ter

uma duração de 8 horas, com paragem no

aeroporto internacional de Kotoka no Gana.”

As perguntas atropelavam-se na minha

cabeça: Será que chegamos a horas do início

do jogo? É apertado mas possível. Aterrar,

passar a alfândega, apanhar a mala, sair do

aeroporto, viagem de uma hora, chegar a casa,

deixar a mala e só depois juntar-me ao resto

do grupo. Chegar a tempo do jogo parecia uma

missão impossível.

Os primeiros minutos do jogo foram seguidos

através da rádio da velha carrinha Hiace que

nos transportava. À chegada só houve tempo

para pousar as malas e voltar a sair de casa.

Como muitas habitações desta pequena

cidade, a nossa não tinha televisão. Por esse

motivo, o espaço da Cruz Vermelha

virou templo da bola para ver

a seleção portuguesa jogar.

Ao entrar naquela sala, senti-me a aterrar

numa outra dimensão. A única fonte de luz

vinha da pequena televisão ali instalada,

propositadamente para o efeito. Comecei

por ter dificuldade em distinguir os rostos

familiares que se apinhavam naquela pequena

sala. A TV teimava em emitir com estática

e a preto-e-branco, o que também dificultava

a distinção das duas equipas.

A primeira parte acabou empatada a zero.

Foi preciso esperar pela segunda parte para

pularmos do banco com um golo do Ronaldo.

Três minutos depois e o 2-0 saía dos pés de

Nani. A emoção foi tanta que

a casa quase ia abaixo. Não foi a casa, mas foi

a electricidade. Só voltaria no dia seguinte.

Foi emoção e suspense até ao final do jogo,

com os resultados a chegarem por via de

sms. 15 minutos para o fim do jogo, continua

igual.10 minutos, 5 e mais 3 de compensação.

Sofrimento e nova explosão de alegria!

Portugal estava na final. Abraços e alegria

entre São Tomenses e Portugueses.

A contagem decrescente para a final foi vivida

com a ansiedade de encontrar um local com

gerador. Os jardins da embaixada de Portugal,

encheram-se de portugueses e não só.

Desta vez nada podia falhar... Mas falhou.

Se nos minutos que antecederam o jogo não

tínhamos imagem, quando o mesmo começou

faltou o som. Tivemos que o ler o hino

nos lábios dos jogadores. O silêncio tomou

o espaço de assalto. Faltavam os apitos,

as palmas, os gritos dos adeptos, os cânticos,

faltavam os comentários, faltava quase tudo,

menos os nervos.

Não foi preciso esperar muito para

o som voltar. Vimos o resto do jogo sem

sobressaltos, excepto os do coração.

O resto da história já é conhecida. A selecção

portuguesa escreveu uma página bonita da sua

história, através de uma vitória épica sobre

a França. As explosões de alegria foram

muitas. Vivi este momento à distância,

de coração cheio e apertado, numa ilha cuja

história estará para sempre ligada a Portugal.

Foi um jogo sofrido, mas acabou bem. Não

há impossíveis e esta conquista lembrounos

que, no futebol como na vida, pequenos

impulsos de iluminação individual

são suficientes para iluminar toda

uma sala e uma nação.

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NUNO DELGADO

Medalhado olímpico, presidente da escola

de judo Nuno Delgado; embaixador

do Plano Nacional de Ética para o Desporto

A SUAVIDADE

NO DESPORTO

E NO SUCESSO

PARA A VIDA

O Desporto é a sala de aula da universidade

da vida e as suas matérias são os valores

e as virtudes humanas. Confesso que não posso

imaginar como seria a minha vida se,

por ventura, não tivesse abraçado

este estilo de vida.

Como formador, tal como o Mestre Kano

(fundador do Judo), desenvolvi uma singular

Escola que desde 2006 dá o exemplo a nível

europeu de como se pode “treinar” para uma

vida de sucesso, usando os princípios do

Desporto, esses que Nelson Mandela tanto nos

exortou com o seu exemplo de vida e ao qual

nos associamos através da sua Fundação com

um programa denominado “Achieve, Collect

& Give Back”. Este programa que nos desafiou

a produzir a Mandela Day - Maior Aula de Judo

do Mundo (recorde do Mundo!), por três vezes

consecutivas em Portugal, e que movimenta

hoje mais de três mil crianças em 50 escolas

públicas de quatro municípios, tem como leit

motiv Formar Campeões para a Vida!

Tendo-se cumprido no dia 5 de dezembro

cinco longos anos sobre o falecimento de

Mandela, cabe-nos a enorme responsabilidade

de melhorar cada vez mais a qualidade

do desporto em que ele acreditou e

proporcionarmos aos nossos jovens,

principalmente até aos 7 anos e no seu primeiro

encontro com esta atividade,

um momento magicamente transformador.

Se o desporto é, potencialmente,

uma ferramenta da excelência humana

em todas as suas formas de expressão, também

é verdade, como anuncia o meu Mestre

Professor Manuel Sérgio,

que multiplica e replica as taras da sociedade.

Ora, neste caso o futebol, sendo o desporto-rei,

vive esse desafio com intensidade máxima.

Por essa razão, foi imensa a satisfação que me

envolveu aquando do convite que recebi para

a recente conferência SPIN promovida pelo

Sindicato de Jogadores, com o alto patrocínio

do Sr. Secretário de Estado do Desporto

e Juventude, bem como do Sr. Presidente

da Federação Portuguesa de Futebol.

É valorizante constatar que a comunidade

futebolística no nosso país coloca o assunto na

primeira das suas agendas. Portugal ufana-se

com as vitórias e feitos dos nossos futebolistas

dentro e fora do campo - títulos europeus,

Olímpicos de Juventude, melhores jogadores e

treinadores do Mundo,

em todos os escalões etários

e nas mais diversas vertentes desportivas,

o desporto-rei Luso supera-se.

As expectativas das crianças que sonham

com esta modalidade são enormes e nesse

sentido a importância de trazer à prática,

à primeira experiência, o imo do desporto

é um grande desafio para futebol e para todo

o desporto Português. O fenómeno inclusivo

que o futebol em particular e o desporto na sua

globalidade podem trazer às crianças é algo que

devemos refletir do ponto de vista desportivo,

educativo, cívico

mas fundamentalmente antropológico,

pois a inclusão não é apenas um fenómeno

dos mais necessitados, antes um processo

da nossa Educação!

Se muito aprendi com o exemplo massificante

da força e da qualidade do futebol português,

vejo do meu ponto de vista judoca

a oportunidade de, num momento mundial

de falta de clareza cívica e valores,

usar o exemplo do Judo na procura

da suavidade, ou seja do Ju que está Do,

e praticar a inclusão social através do desporto

e do futebol em particular com o símbolo

máximo da suavidade e respeito por aquele que

me constrói para a vida, o outro.

Rei é o desporto futebol, bem como rei

é o símbolo de origem nipónica que materializa

o gesto de suavidade

e respeito pelo outro que nos constrói.

A Saudação é um gesto suave que não retira

a agressividade construtiva de vencer a sua

própria adversidade através do desporto.

É de tal importância no Judo, que se a Telma

Monteiro não a praticasse genuinamente

nos jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, perante

os regulamentos seria desclassificada da

atribuição da única medalha que Portugal

venceu em 2016. Ora, por aqui se sente

a importância que o gesto, o símbolo do

RESPEITO e da suavidade pelo outro que

nos constrói deve fazer parte da abordagem

praticada da integração social através do

desporto, com o futebol em destaque, e ainda

de outras formas transversais e uníssonas da

construção das crianças: as várias expressões

artísticas, da Música à Pintura,

do Bailado ao Teatro, sem esquecer a Magia.

A Formar Campeões para a Vida em Portugal!

108

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Ator

RUY DE CARVALHO

Só quem nunca foi a um estádio é que não

sabe a carga de energia que pode gerar uma

massa humana de todo o tamanho, para dar

força a um ideal, ao vozear contra uma simples

falta que pareceu vir subtilmente dos confins

do inferno, ao chorar quando se ganha, ou

quando se perde, numa dança de tal forma

estrondosa que lembra o arrastão medieval de

um exército em luta. Só quem não vive isto é

que não sabe o que é o futebol.

E contudo, a coisa não passa de um jogo!

Mas é para ali que convergem as mágoas, as

frustrações de uma semana de mau trabalho,

as irritações de uma política mal conduzida, as

penas dos traídos, as angústias dos inseguros

e as deceções, todas as deceções, que num

simples e estridente “fora o árbitro” despejam

o fel das noites mal dormidas, da violência

contida de uma sociedade incapaz de ser

indiferente, de tudo o que incomoda, e que,

por pudor, por vergonha ou por temor, somos

incapazes de defrontar.

E contudo, a coisa não passa de um jogo!

O meu estádio é uma catedral, como de resto

são todos os outros estádios. A cor já não é

importante para mim, desde que se jogue

com lealdade, com sabedoria, com prazer,

no fundo três boas razões para se ter deste

jogo espetacular o empolgamento que ele

provoca, porque apesar de não passar de um

jogo, permite que o mundo das bancadas se

suplicie por noventa minutos de correria, e se

esqueça de tudo, porque cada jogo, apesar de

ser só mais um jogo, é um estímulo poderoso

à esperança. Posso sair do estádio desolado

e triste, ou eufórico e feliz, mas não consigo

fugir àquela sensação de planalto que me

deram as duas partes de um futebol que

prestigiou a minha presença naquele jogo, seja

ele qual for... onde for.

O Benfica de Castelo Branco foi um clube

fraco sob o ponto de vista desportivo, mas

ao ser o suporte do meu mundo adolescente

deixou em mim, difusamente, algo que jamais

desaparecerá. Na altura perdia repetidamente

por muitos golos, e isso fez-me crescer,

porque resignar nunca, até porque o amanhã

traria sempre uma nova oportunidade para se

ganhar. Foi com eles que conheci a esperança

e a força que dá aos rebeldes o sentido da

vitória. Foi por eles que aprendi a defender

os mais fracos, os que perdem... sempre. Foi

por eles que quando cheguei a Lisboa, muitos

anos depois, senti esta força que me levou à

Luz, onde ficarei durante muito tempo, apesar

de tudo isto se resumir a um simples jogo de

futebol.

Já não vou ao estádio. Não preciso. Aprendi

a ver de longe com prazer todos os jogos,

mesmo os que não se ganham, porque aprendi

a saudar os vencedores e a honrar os vencidos.

Afinal de contas, a coisa não passa de um jogo!

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LUÍS

TINOCO

JOÃO VASCO

Compositor, diretor

do Prémio Nacional

dos Jovens Músicos

Sete é o número que surge regularmente

nos noticiários, estampado nas camisolas

de alguns dos nossos futebolistas de fama

internacional. O caso mais recente chegou

a Madrid, neste mês, que também é sete e que

serve de mote para algumas reflexões que aqui

fui convidado a partilhar.

Quando tinha sete anos ainda pedia

ao meu pai que me desse luzes sobre qual

seria o melhor clube de futebol, na expectativa

de conseguir algum conforto e segurança

paternal na minha eleição. Natural de

Leiria, respondia-me sempre que apoiava

incondicionalmente os clubes da cidade,

o Marrazes e o União. Sobre os “grandes”,

nunca lhe vislumbrei qualquer preferência,

pois o seu mote era “apoiar os fracos e

oprimidos”.

Nunca frequentei os estádios de futebol

com regularidade mas ainda me recordo

do meu primeiro jogo ao vivo, em Alvalade,

na companhia de um amigo e colega de

liceu: tratou-se do jogo que deu o título de

campeão ao Sporting em 1979-80, derrotando

precisamente o União de Leiria.

Durante algum tempo o meu fervor

desportivo manifestou-se colocando Jordão

no topo da minha lista de super-heróis e, claro,

passando longas horas na rua a dar chutos

(em bolas) e causando alguns estilhaços nas

janelas do liceu D. Filipa de Lencastre. Tudo

devido a manifesta falta de pontaria, sem

qualquer delinquência intencional.

Com o passar do tempo, porém, o mote

dos “fracos e oprimidos” venceu qualquer

paixão clubística e, apesar de continuar

a gostar muito de ver bons jogos, manifesto

a minha total indiferença sobre quem ganha

as taças ou campeonatos. Na realidade, fico

sempre feliz quando ganha a equipa mais

“fraca”, especialmente se o vencedor for

o (verdadeiro) Belenenses. Quando vejo

um jogo, dedico os primeiros dez minutos

a analisar qual será o onze com menos

possibilidades de sucesso, para depois

dedicar-lhe todo o meu apoio durante

os restantes oitenta minutos.

Toda esta relativa indiferença é também uma

reacção à forma como o futebol tomou conta

da nossa vida pública e mediática. Em Julho,

mês sete de 1958, João Gilberto gravou “Chega

de Saudade”, uma magnífica canção de Tom

Jobim e Vinicius de Moraes. Escrevo este

texto um dia após a notícia do falecimento

de Gilberto, o mesmo dia em que se fizeram

filas em Alvalade para se votar a expulsão

de um ex-dirigente desportivo. E não posso

deixar de sentir tristeza pelo destaque

dado a um assunto interno de um clube,

especialmente se considerarmos que boa

parte desse tempo poderia ter sido dedicado

a transmitir a música de João Gilberto.

Neste mês sete de 2019 celebramos também

o cinquentenário da missão Apollo 11, que

levou os primeiros astronautas a pisar outro

esférico. À excepção da RTP 2 e alguns canais

especializados, pergunto-me qual será o real

destaque que os nossos media irão dedicar a

este (ou outros) temas científicos de grande

relevo? Será que competirão em tempo

televisivo e colunas de jornal com

o que se irá escrever sobre o mercado

de transferências ou as férias luxuosas

de jogadores durante a “silly season”?

Lá mais para o final do mês estarei na Casa da

Música, no Porto, a acompanhar

as provas finais do Prémio Jovens Músicos,

promovido pela rádio Antena 2. Com 33 anos

de história, este concurso tem ajudado

a revelar muitos dos mais destacados músicos

nacionais, divulgando e promovendo um

trabalho de anos e longas horas de treino

e aperfeiçoamento artístico e técnico, do

qual têm resultado inúmeros sucessos e

reconhecimento no panorama musical

nacional e internacional.

Muitos destes jovens músicos estão

a conquistar posições de destaque em grandes

orquestras sinfónicas europeias e a obter

distinções nos mais importantes concursos,

um pouco por todo o Mundo.

Não é raro encontrarmos pessoas com altos

cargos públicos a assistir a jogos de futebol

e a apoiar os sucessos dos nossos jovens

futebolistas ou atletas de outras modalidades

desportivas. Contudo, nos meus doze

anos à frente da organização

do prémio jovens músicos, conto pelos dedos

de uma mão o número de vezes em que

os concertos de laureados PJM registaram

a presença de representantes do poder

político. O desinteresse é confrangedor

e desconfio que nem a oferecer bilhetes

a altos quadros conseguiríamos melhorar

as estatísticas.

Em recente entrevista ao Expresso, Fabien

Cousteau, neto do famoso oceanógrafo

francês, Jacques-Yves Cousteau, revelou que

o seu avô costumava dizer-lhe que “ninguém

protege algo que não conhece. As pessoas

protegem aquilo de que gostam, gostam

daquilo que compreendem e compreendem

aquilo sobre o qual falam”. E se, em Portugal,

as grandes paixões ficarem circunscritas ao

perímetro de um estádio de futebol, então

talvez tenha chegado o momento de criar

as bases para que as próximas gerações

consigam também viver apaixonadamente

o trabalho de outros craques, tanto nas artes

como na ciência, na intervenção cívica, ou na

preservação deste nosso grande esférico que,

por enquanto, ainda é azul.

* Nota: o autor escreve segundo a antiga

ortografia

110

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Investigadora doIPRI-NOVA

RAQUEL

VAZ-PINTO

Não é difícil explicar a minha relação com o

futebol. Há uma “passagem de testemunho”

da minha mãe que discutia futebol

de forma tão intensa e apaixonante que

fiquei completamente viciada. Era um prazer

discutir bola com ela. Mas ao mesmo tempo

era um exercício semanal em que tinha de

fazer o trabalho de casa. Se não o fizesse …

a goleada era certa sem apelo nem agravo.

Tenho muitas saudades desses debates e de

como discutir futebol “no feminino” em casa

era para mim normal, embora fosse muito

invulgar nas casas dos outros. E, é claro, sendo

portuguesa o futebol faz parte do dia-a-dia da

nossa sociedade e da nossa cultura enquanto

povo, da mesma forma que se tivesse nascido

na Nova Zelândia estaria a falar de râguebi.

Hoje em dia, a evolução do futebol tornou-o

mais mediático, profissional, rentável

e foi-se alargando a outros territórios,

sendo quase universal. Do ponto de vista

das selecções portuguesas - e para além do

óbvio Euro 2016 - é com imenso orgulho que

testemunho a presença em finais e meiasfinais

de competições internacionais das

nossas gerações mais novas, bem como o

crescimento do futebol feminino. Também é

com muita alegria que assisto todas

as semanas aos jogadores portugueses

a brilharem nos melhores clubes europeus

e, é claro, aos nossos treinadores.

Ao longo das últimas décadas tenho muitas

memórias do futebol e das suas várias

dimensões. É verdade que o “dinheiro” é um

factor crucial na qualidade de um plantel para

ser campeão. Ainda assim, o “dinheiro” não

explica como o Leicester foi campeão da Liga

Inglesa. As equipas mais fortes e organizadas

tendem a prevalecer, mas a imprevisibilidade

continua a dar ao futebol um toque mágico.

Há sempre a final entre o Bayern de Munique

e o Manchester United em Camp Nou em 1999

e aqueles minutos finais dos “substitutos”.

Não quero com isto afirmar que o Man

United de Alex Ferguson não era uma equipa

excelente, mas o Bayern tinha o jogo mais

do que controlado.

Há também os grandes pormenores que

fazem toda a diferença. Vimos isso na época

passada quando Liverpool sem dois dos seus

melhores jogadores (Firmino e Mo Salah) …

deu a volta aos 3 a 0 que o Barcelona trazia de

Camp Nou. Aquele canto marcado de forma

ultra-rápida por Trent Alexander-Arnold fica

para a história do futebol. E a t-shirt de Mo

Salah com a seguinte frase “Never Give Up”

(em português: nunca desistas) tornou-se

profética. Também foi impossível não apreciar

o Ajax e a sua chegada às meias-finais da Liga

dos Campeões. Um clube histórico que teve

de se reinventar e que foi capaz de equilibrar

a experiência de Blind com a juventude

de De Jong, entre outros.

E depois há jogadores que pelas suas

qualidades humanas e pelo seu talento

nos deixam rendidos. Ao longo dos últimos

anos alguns dos meus ídolos têm vindo

a despedir-se do futebol ou, pelo menos,

dos campeonatos na Europa. Nomes como

Steven Gerrard, Andrea Pirlo ou Xavi fazem

parte da história do futebol e da minha.

Há jogadores que nos tocam de forma especial

como os génios Sócrates, Marco van Basten,

Dennis Bergkamp ou Zinedine Zidane. Há um

meio-campo que eu nunca vou esquecer na

vida, talvez o melhor de sempre, com Xavi,

Iniesta e Busquets do Barcelona. Há jogadores

como Paolo Maldini que simbolizam para

a eternidade a arte de defender com classe

pura. E poderia escrever sobre muitos mais.

Na conversa extraordinária promovida por

Jaime Cravo no Canal 11 entre Marcel Keizer

e Bruno Lage ficou-me uma frase do treinador

encarnado. Bruno Lage assinalou a “mudança

da sociedade” e, em paralelo, “que o negócio

não vá contra a paixão” em várias dimensões

como as de “adepto, praticante, coleccionador

de cromos e profissional”. E esta ideia

de “coleccionador de cromos” trouxe tantas

e boas memórias: as trocas para ir fazendo

a colecção e depois o momento angustiante

da procura do último cromo! No fundo

é isto que quem gosta de futebol sente.

Eu fui e ainda sou uma coleccionadora

de cromos. Total e incondicional.

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Treinador

de Futebol

CARLOS

CARVALHAL

Descrição cronológica e reflexiva

do treinador português sobre a prática

de futebol por mulheres.

Vivi toda a minha infância e adolescência no Bairro da Misericórdia,

em Braga, e ali não havia meninas a jogar futebol. Aliás, não tenho

memória de as ver perto do nosso “campo da escola”. Tive

a felicidade de ter uns pais que, embora de classe média/baixa,

me proporcionaram a entrada num colégio que educava pelas artes

e assumia o desporto como parte integrante do desenvolvimento

do ser humano no seu “todo”, o conservatório de música Calouste

Gulbenkian. Na “primária”, para além de aulas de música, pintura

e artes manuais, havia também educação física. Para mim e uns

poucos, o futebol era a modalidade preferida e via com satisfação

a forma como as meninas da turma o jogavam com enorme alegria,

embora sem grande jeito. Foi o meu primeiro contacto com o futebol

no feminino...! O tempo correu até ingressar na Faculdade de

Desporto e Educação Física da Universidade do Porto. Na faculdade,

tomei consciência da grande capacidade das mulheres para jogar

futebol (recordo que naquele tempo a vertente feminina era pouco

praticada e divulgada). Nas aulas, algumas das minhas colegas

(principalmente as da opção de alto rendimento – futebol) jogavam

muito melhor que muitos rapazes e integravam as aulas mistas

com uma naturalidade qualitativa impressionante. Na altura era

o Boavista que dominava o campeonato em Portugal. Lembro-me

de uma vez ir ver um jogo e ficar impressionado com a cultura

tática das jogadoras. Parecia claramente um jogo menos rápido

e pressionante do que o masculino, mas muito mais “pensado”.

Recordo-me de estar a refletir e a procurar respostas para a minha

curiosidade: este jogo mais pensado será da natureza feminina ou este

ritmo pausado levará a que as jogadoras tenham uma perceção mais

atenta e cuidada das movimentações das colegas para interagirem com

112

FPF360


assertividade? Lembro-me de ter questionado

colegas de curso, treinadores e treinadoras

acerca desta inquietação! Também me

recordo de algumas das tentativas de

explicação que obtive no momento: ouvi, por

exemplo, que o jogo não era tão rápido porque

as mulheres têm menos força explosiva ou

que, pela menor velocidade dos encontros,

as jogadoras tinham mais tempo para

decidir. Na minha viagem no tempo revivo

a passagem pela Grécia e não me recordo de

ver raparigas a jogar, exceção feita às praias,

onde jogavam com os rapazes. Dois anos na

Turquia e a mesma ideia da Grécia... outros

dois nos Emiratos Árabes Unidos e, embora

tendo testemunhos de que as raparigas nas

escolas adoravam jogar futebol, por razões

culturais, nunca tive o prazer de ver um

jogo em que estivessem meninas presentes.

Segue-se Inglaterra, onde tudo é diferente.

Para entender o futebol em Terras de Sua

Majestade temos que perceber a cultura

inglesa. O futebol (e o rugby) fazem parte

da vida de toda a gente. O ritual de ir a um

jogo significa mais ou menos o mesmo que

um católico devoto ir à missa ao domingo ou

a meio da semana. As pessoas adoram futebol

e é comum ver famílias inteiras ir ao estádio

- o avô, a avó, os filhos, os netos... todos com

camisolas do seu clube (normalmente

o da sua origem ou residência, sem olhar

à grandeza de qualquer clube). As meninas

vão, desde muito pequeninas, com a família

ao estádio e aprendem a gostar do jogo, do

entusiasmo que o rodeia, das emoções que

se vertem a cada momento e por isso é normal

vermos nos jogos televisionados imagens

de crianças de ambos os sexos a exprimir

os seus sentimentos. Ali não há qualquer tipo

de discriminação e é normal qualquer pessoa,

independentemente do género, discutir

futebol com a mesma pertinência. Por isso,

é natural que meninos e meninas, partilhando

deste sentimento pelo futebol nas escolas

desde tenra idade, comecem a jogar juntos

e a desenvolver competências. Há muitas

academias nas quais existe a oportunidade

para as meninas jogarem. Até aos 10 anos não

há muito espaço competitivo, mas a partir

daí começam a ter também a possibilidade

de participarem em diversas provas. Apesar

de haver muitas meninas a jogar em

Inglaterra, a federação tem o propósito de,

a curto prazo, dobrar o número de praticantes,

aproveitando os êxitos da seleção nacional

e dos clubes. Querem ainda levar o futebol

a todas escolas até 2024. Agora as meninas

têm referências femininas, jogadoras que

querem imitar. Os media e a federação

inglesa têm promovido bastante o futebol

feminino em Inglaterra e este facto tem

levado a um aumento significativo de

praticantes. A “Super League” foi o primeiro

campeonato semiprofissional, mas desde

2012 é totalmente profissional. Existem

as ligas profissionais, “Super League 1” e a

“Super League 2” e, excluindo estas, ninguém

é remunerado (só em casos especiais), sendo

os restantes campeonatos organizados

localmente. Uma vez fui ver um jogo abaixo

da 4ª divisão e os árbitros assistentes eram

pais das jogadoras... perguntei e disseram-me

que naquele escalão era normal os pais ou os

treinadores das equipas assumirem aquelas

funções. Inglaterra é o verdadeiro País do

futebol e, pela sua cultura, a vertente feminina

é levada muito a sério. Antes do início desta

temporada foi feito um inquérito e mais

de um terço dos adultos britânicos (34%)

declararam-se interessados no campeonato

feminino. Num Chelsea-Tottenham

disputado a 8 de setembro de 2019 foram

vendidos 40.000 bilhetes...

Em 2018 regresso a Portugal depois de um

périplo de 9 anos e como encontro o futebol

feminino no nosso país? Vejo um SC Braga-

Sporting CP e noto uma tremenda evolução

no jogo: ganhou velocidade e ritmo; as

jogadoras são agora mais “intensas” porque,

para além da velocidade e ritmo, a capacidade

de decidir com eficácia mantém-se e até

melhorou; as partidas continuam “pensadas”

e as futebolistas, embora com menos

tempo para decidir, continuam a perseguir

um estilo ligado e de interdependência;

melhorou a capacidade e qualidade de passe

longo, cruzamento e remate; e, por último,

aumentou a cultura tática individual

e coletiva. A Federação Portuguesa de Futebol

tem feito um trabalho extraordinário no

desenvolvimento do futebol feminino. Os

êxitos e a evolução da Seleção Nacional têm

sido importantes para catalisar o número de

praticantes. Hoje há imensas oportunidades

para as meninas jogarem em Portugal, há mais

equipas em escalões etários mais baixos

e o futuro vai ser risonho porque as

portuguesas têm uma natural apetência

para jogar bom futebol. A FPF acaba de bater

o recorde de jogadoras federadas em futebol

e futsal, ultrapassando a barreira dos onze mil

praticantes, mais concretamente 11.038!

A FPF, através do Canal 11 e restantes meios

de comunicação, tem feito um trabalho notável

de divulgação da modalidade. Vejo alguns jogos

em direto e confesso que me divirto.

As nossas jogadoras têm o traço latino de jogo,

boa técnica, gosto do futebol bonito no qual

predomina o “cérebro” sobre o “músculo”.

Fruto deste trabalho e desta evolução, as

nossas melhores intérpretes foram recrutadas

pelas grandes equipas europeias, o que veio

aumentar a sua competitividade individual e,

consequentemente, valorizar a nossa seleção.

Face a esta valorização, temos referências

importantes em que as mais jovens

se revêm e tomam como modelos.

Depois de conseguirmos o apuramento

para o Europeu feminino de 2017, parece

claramente que temos um futuro risonho

e com bases sólidas, como comprovam as três

fases finais de Europeus entre os escalões

de sub-17 (2) e de sub-19 (1) na última década.

Os sinais são muito positivos: aumento

exponencial de número de praticantes,

uma liga mais competitiva, jogadoras

em bons campeonatos, excelente formação

de treinadores em Portugal. Tudo se começa

a conjugar para

que em breve sejamos uma referência para

o Mundo também no futebol feminino.

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JULIANA

ROCHA

Vencedora de cinco campeonatos nacionais

de boxe junta a sua voz à dos que defendem

o papel do desporto como meio poderoso

de promoção da igualdade de género.

Começo com alguns slogans que há uns anos foram notícia de jornal:

"A menina bonita do boxe português chora no cinema", "A nova diva

do boxe português", "Mulher, pugilista e quase criminologista". Todos

eles suscitavam o interesse do público por ser "inédito", novo e curioso.

Nessa altura, eu não tinha uma clara perceção da importância

e do impacto que este "processo" poderia vir a ter no futuro. Posso

atrever-me a dizer que foi um início, um começar, uma porta para

o mundo feminino desta nobre arte - o boxe. Comecei no Karate

Shotokan aos 5 anos, aos 13 fui campeã da Europa de Kickboxing na

Grécia e aos 14 entrei no boxe - onde arrecadei cinco títulos nacionais

e fui Esperança Olímpica para o Ciclo de Londres em 2012.Em 2009,

fui a primeira atleta feminina de boxe do Boavista, ainda os balneários

eram partilhados e, mais tarde, fui a primeira a usar saia de desporto

nos combates, em Portugal. Estes são pequenos apontamentos que

adivinhavam um despertar de mentalidades pela igualdade. Mas...

esta luta continua a não ser completamente linear. É preciso continuar

a desmistificar. É preciso continuar a ser falado e partilhado. É preciso

contrariar a corrente porque… por ser atleta de boxe, não quer dizer

que tenha de ser menos feminina; não quer dizer que tenha de ser mais

agressiva; não quer dizer que deixe de ter emoções e que não chore

no cinema; não quer dizer que tenha de ter o nariz partido e a cara

deformada; não quer dizer que deixe de ser mulher... porque na verdade

basta-me Ser para o ser, e Ser basta-me para ser o que eu ambicionar!

E quem diz o boxe, diz qualquer outro desporto.

Recentemente, li uma notícia que me deixou feliz. Uma notícia que,

na minha opinião, merece a atenção e o entusiasmo do leitor. Neste

momento, são mais de onze mil as jogadoras a praticar futebol e futsal

em Portugal! Sublinho. Mais de onze mil. Este número representa

um crescimento na ordem dos 15,1 por cento em relação a período

homólogo de 2019. Este número é o resultado da qualidade, da aposta

e da oportunidade. Este número expressa o crescimento sólido

de mulheres neste desporto, que é um verdadeiro recorde absoluto.

Este é um bom presságio, um importante sinal de esperança que anima

e dá força a todos aqueles/as que todos os dias lutam por um mundo

desportivo mais justo e mais igualitário.

Sou uma sonhadora nata e delineio claramente os meus objetivos.

Foi no desporto que construí a minha base sólida de autoconfiança,

de perceção de segurança e de autoestima. Por isso, não permito que

ninguém me trate com menos dignidade do que aquilo que eu mereço.

Que tu mereces. Que todos nós merecemos. Seja pelo género,

pela cor, pela raça, pelo motivo que for. Considero-me uma pessoa

de pessoas. Acredito que a vontade e o gosto pelo desporto é maior que

a discussão do género. Acredito que é na sinergia, na partilha, na união

que combatemos as divergências e possíveis barreiras. O respeito

pelo Outro é a palavra de ordem, seja para que desporto for. Por isso,

a todos vocês que estão a ler este artigo, não desistam dos vossos

sonhos. O caminho nunca será fácil. Mas é um caminho tão bonito...

Aprendemos a digerir derrotas, a gerir frustrações e expetativas. Mas

também aprendemos a saborear vitórias e a sentir o dever cumprido,

uma satisfação compensadora. Acredito que nenhum "combate"

é em vão. E tal como Gandhi um dia disse: "Seja a mudança

que você quer ver no mundo."

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DECO

A visão de um dos mais

renomados internacionais

portugueses de sempre

sobre o “novo futebol”.

Não é fácil para mim imaginar como iria

reagir se ainda jogasse e me deparasse com

uma pandemia. O único termo de comparação

em relação ao que vivi foram alguns jogos

de pré-época, sem muito público. Nos jogos

oficiais, nas decisões de campeonatos, da Liga

dos Campeões, de Mundiais e Europeus,

não sei mesmo como iria ser. Certamente

seria estranho, não me via numa situação

assim. No entanto, tenho de dizer que

os jogadores têm mostrado um poder

de adaptação grande porque houve muitos

casos em que nos primeiros 2/3 jogos

aconteceram coisas pouco habituais,

mas depois toda a gente conseguiu seguir em

frente e mostrar qualidade. Acho que o futebol

vai ficar mais forte. Tenho acompanhado

os jogos e já vi coisas muito positivas.

Se há algo de bom a retirar deste tempo

é essa boa resposta de todos os que foram

à luta. Em campo, o que marca e sempre

marcou a diferença são as equipas

de qualidade e os melhores jogadores.

Os adeptos fizeram muita falta. Uma coisa

é não irem ao estádio por opção, outra

bem diferente é o acesso estar-lhes vedado.

Não poderem ver a sua a equipa a jogar ao vivo

e não poderem estar com os amigos a assistir

ao espetáculo é tudo menos normal. Acho que,

quando surgir essa oportunidade, toda a gente

vai voltar às bancadas com a mesma paixão.

Os fãs sempre deram valor a este desporto,

mas penso que agora vão dar ainda mais.

O futebol sempre teve um poder muito

grande e agora – no mundo da comunicação

– ainda tem mais. Esse poder tem de ser

bem usado. As coisas hoje em dia acontecem

muito rápido, estamos todos a falar

permanentemente por diversas plataformas,

os grandes jogadores são conhecidos

em qualquer canto do mundo, o acesso

aos jogos está universalizado. É necessário

que o poder da mensagem de uma modalidade

tão popular seja utilizado como ferramenta

para ajudar os que mais precisam.

Isto já vinha acontecendo nos últimos

anos, mas agora é muito premente.

Agora tem de acontecer o que acontece

116

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em todas as áreas. Quando se tem um

problema, as pessoas responsáveis têm de

pensar sobre ele e definir o que se vai fazer no

futuro. É natural que esse debate aconteça em

momentos de crise. A grande novidade aqui é

que, embora acredite que alguns campeonatos

e regiões sofram mais em comparação

com outros, a COVID-19 irá afetar todos.

Considero natural e saudável que todas as

questões se discutam. Há algumas alterações

que levam tempo, tudo tem de ser feito em

função das próprias regras e a bem jogo. Pelo

que tenho observado há mudanças positivas,

que estão a respeitar esta enorme densidade

competitiva em fim de época, nunca antes

vivida. Se se provar que algumas destas novas

medidas servem os interesses do futebol,

acho que se devem tornar definitivas.

A pandemia tirou-nos a sensação de que

temos o controlo de tudo. Toda a gente foi

apanhada de surpresa. As estruturas mais

bem preparadas sentiram menos o impacto,

naturalmente. Acho que esse é um aspeto

importante. A lição que devemos retirar é que

temos de fazer tudo para prever ao máximo

qualquer eventualidade, por muito remota

que ela possa parecer. Em futebol não

se pode ter uma gestão quotidiana, tem

de se pensar a médio/longo prazo. Ter calma

e sustentabilidade financeira é fundamental.

Por vezes vemos atitudes inconsequentes,

que até podem ter origem na paixão pelas

próprias instituições, mas isso é evitável.

A responsabilidade nunca pode faltar,

ainda para mais numa altura destas.

Tenho pena que as crianças neste momento

estejam mais condicionadas para competir

e até para jogar com os amigos, acho

que é uma limitação grande. Só não queria

que eles desistissem, é apenas um momento

que vai passar. O futebol é um sonho

para muitos deles e ir atrás do sonho

é a única coisa que faz sentido.

Queria dizer aos portugueses que tenham

fé. Estamos a desconfinar aos poucos,

temos feito algumas conquistas.

Não pode faltar a esperança que vamos

todos conseguir ultrapassar esta situação.

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Jornalista

CLAUDIA

GARCIA

ITÁLIA RENASCE

COM O FUTEBOL

15 de fevereiro de 2020. O Gewiss Estádio

em Bergamo estava lotado para o jogo entre

a Roma e a Atalanta a contar para a 24ª jornada

da Seria A. Estávamos todos sentados

como sardinhas enlatadas

no moderno recinto que fica mesmo

no centro da cidade lombarda. Isto, poucos

dias antes de Bergamo se tornar no epicentro

europeu do novo coronavírus. Como é que

é possível. Aconteceu tudo rápido. Estava

um ambiente fantástico, apesar do frio. Eu ali

no meio de vinte mil pessoas eufóricas com

a reviravolta da Atalanta no marcador.

A equipa de Gasperini ganhou por 2-1 e

agarrou, nesse dia, o quarto lugar

do campeonato que nunca mais lhe escapou.

Era já muito tarde quando deixei a cidade

e nunca mais lá voltei até hoje. Bergamo

é uma cidade que tem toda a minha simpatia,

assim como os seus 120 mil habitantes,

que não são fanáticos, mas verdadeiramente

apaixonados pela Atalanta, como um adepto

deve ser.

No dia 19 de fevereiro, cerca de 40 mil

bergamascos viajaram até Milão para o jogo

dos oitavos de final da Liga dos Campeões.

Viajaram de carro, de comboio, de autocarro.

Andaram pelas ruas da cidade e pelos metros

e muitos deles já estavam infectados com

o novo coronavírus. O vírus já circulava

entre nós, mas em Itália estavam distraídos

e a preocupação era encerrar os voos diretos

com China. Nessa tarde gelada de fevereiro,

estive no centro de Milão novamente no meio

de milhares de adeptos vindos de Bergamo.

Não estive no estádio, mas ouviam-se

por todo o lado da cidade

os gritos dos adeptos nerazzurri a cada

um dos quatro golos que a Atalanta marcava

ao Valência. O jogo foi uma bomba atómica

de contágios que nos dias seguintes se

espalharam pelo norte do país.

Dois dias depois, na sexta-feira,

21 de fevereiro, a Itália acordou

com péssimas notícias. Fui de manhã

cedo para o centro de Milão, onde trabalho

diariamente num escritório com outros

colegas. Vi as notícias dos primeiros

casos italianos de covid19 confirmados

na Lombardia. Estavam já internados no

hospital de Codogno, uma pequena cidade

perto de Milão, a cerca de uma hora de carro.

Entrei de imediato em contacto com a Sic,

para onde trabalho como correspondente

em Itália, para transmitir as informações.

Os casos aumentavam hora após hora

e passei o dia todo a fazer diretos.

Foi um dia intenso e lembro-me

perfeitamente que à noite os casos eram

já 18, mas ainda ninguém levava isto a sério.

No dia seguinte foram confirmados os

primeiros casos na região do Veneto

e a primeira morte por covid19 em Itália.

Era o início de meses muito difíceis.

Em Milão, seguiu-se

um fim-de-semana estranho.

Nos supermercados, nas ruas, todos

olhavam mal uns para os outros. Havia medo.

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Respirava-se esse medo em todo o lado.

Comprei um kit de dez máscaras pensando

que estava a exagerar, mas não foram

suficientes. Poucas pessoas usavam máscara

nestes primeiros dias. Agora andam

todos de máscara, mas usá-la no final

de fevereiro teria feito toda a diferença.

Não só agora. No domingo à noite,

os casos já superavam uma centena

e o governo impôs a primeira cerca sanitária

na região de Lodi e Codogno. Na verdade,

em Milão pouco mudou, porque aqui

acreditavam que o problema iria ficar

circunscrito a estas pequenas cidades

e que nunca atingiria as metrópoles

como Milão ou Bergamo. Que engano.

BERGAMO SEM ESPAÇO

PARA OS MORTOS

O medo era parar não só o futebol,

mas principalmente as grandes empresas

do norte, que são o motor industrial de

Itália. Milão e Bergamo são cidades muito

industrializadas, cheias de grandes fábricas,

armazéns e muitos produtores não quiseram

encerrar os seus estabelecimentos.

Em Bergamo, a população vive para trabalhar

e são daqueles que raramente se queixam,

uma virtude que acabou por ser o pior inimigo,

porque as grandes fábricas tornaram-se

cadeias de contágio perfeitas para este vírus.

O hospital Papa Giovanni XXIII de Bergamo

montou a maior Unidade de Cuidados

Intensivos de covid19 de toda a Europa,

mas não foi suficiente. Os casos conhecidos

foram, pelo menos, 15 mil só em Bergamo

para uma população de 120 mil pessoas,

a pior média de Itália, mas o próprio

presidente da Câmara Municipal, Giorgio

Gori, estima que os casos sejam muitos mais,

porque muita gente morreu em casa, sem

nunca chegar ao hospital. A imagem dos

carros do exército que transportam os caixões

para fora de Bergamo diz tudo. Essa imagem

foi um murro no estômago. A cidade lombarda

ficou sem espaço para os seus mortos.

DE JORNALISTA DE

DESPORTO AO COVID

Durante mais de dois meses foi assim

o meu trabalho. Deixei de contar os golos

para contar as mortes diárias por covid19.

Deixei de entrevistar jogadores, para ouvir

histórias de pessoas que perderam o parente

que mais amavam. O futebol deixou de ser

importante. Eu estava no epicentro do vírus,

não podia continuar a falar de futebol. Nós,

os jornalistas, um pouco como os médicos,

deixamos as divisões e as secções e passamos

a pertencer todos à secção covid. Como

todos, readaptei-me. Perdi trabalhos, ganhei

outros, mas trabalhei sem parar durante esta

pandemia. Nunca parei, o único dia de folga

em dois meses foi o domingo de Páscoa.

Passei a primeira

fase da epidemia em Milão a cobrir segundo

por segundo tudo o que acontecia à minha

volta, depois viajei para Portugal, onde

continuei a cobertura e regressei a Milão,

a meio de abril, através da Suíça,

sem ter dúvidas.

Milão é a minha casa e vai continuar a sê-lo.

Nunca me passou pela cabeça deixar esta

cidade fantástica e cheia de oportunidades

por causa deste maldito vírus, mas eu também

tive medo. Tive muito medo, não só por mim,

mas pela minha família e os meus amigos

mais próximos e mesmo por aqueles que

nem sequer conhecia. Foi terrível. Tive noites

em que deixei de dormir a pensar no vírus,

a pensar no trabalho. Eu, como jornalista,

não tinha essa sorte de poder desligar

a televisão e desintoxicar das notícias

trágicas por umas horas. Eu vivia com elas,

mas também foram muitas as histórias

positivas. Acreditem, a Itália não fez tudo mal,

pelo contrário. A Itália fez muita coisa bem

feita, por exemplo, conseguiu evitar

que a tragédia da Lombardia se espalhasse

por todo o país e salvou muitas vidas.

Em Itália, realizou-se o primeiro transplante

de pulmões no ocidente a um jovem

de 18 anos que foi atacado por este vírus.

Hoje está melhor. Em Itália, as forças

de segurança não serviram só para passar

multas, ajudaram, por exemplo, idosos

e pessoas que estavam sozinhas a conseguir

os bens de primeira necessidade, cozinharam,

transportaram doentes. Fizeram de tudo um

pouco e colocaram em risco as próprias vidas.

Em Itália, centenas de médicos idosos que

já estavam na reforma voltaram ao trabalho.

O país reagiu: uniu-se e não deixou ninguém

para trás.

FUTEBOL AJUDA

A ITÁLIA A RECOMEÇAR

São histórias que vão ficar para sempre

na memória daqueles que, como eu, saíram

pela primeira vez de casa no dia 4 de maio

para conhecer esta nova Itália que renasce.

A Itália não vai voltar página, porque esta

página não se esquece nem se vira,

mas a Itália está a recomeçar de onde parou

e está no caminho certo. Nunca foi tão bonita

como agora. É mágico ver este país cheio

de esperança e despido de turistas. Esta está

a ser a melhor parte do trabalho, fazer diretos

de um Duomo com pouca gente, um céu sem

nuvens, sem poluição e um sol radiante.

Agora finalmente podemos desfrutar da Itália

só para nós. As crianças que saem às ruas com

uma bola de futebol depois de terem ficado

esquecidas em casa durante meses e o futebol

que voltou, voltou a dar-nos motivos para

sorrir, para discutir nos cafés e debater

sobre jogadas e pênaltis não dados. Que

bom é poder voltar a falar de futebol, porque

o desporto nunca divide, sempre une. Voltar

a ver os miúdos jogarem à bola nos parques

de Milão é, para mim, tão bonito como estar

na final da Liga dos Campeões em Lisboa.

E eu quero lá estar, quero trabalhar, quero

fazer o que sempre fiz, quero voltar à minha

normalidade. Que incrível é para o nosso

país receber este evento e eu não vou esperar

pelo fim do jogo para dar o meu prognóstico.

Digo-o com um altifalante na mão, eu espero

que seja uma equipa italiana a vencer o troféu.

E, por Bergamo, pelas histórias de vida que

se perderam nesta cidade e que não podem

ser recordadas como simples números,

eu espero que seja a Atalanta a ganhar.

O jogo em Bergamo ainda não acabou.

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PEDRO

EMANUEL

Treinador que venceu a Taça de Portugal

2011/2012 recorda as sensações que

o invadiram no Jamor e compara-as

ao que viveu quando

ganhou taças noutros países

Em 2012 ainda estava no início da minha carreira de treinador e,

como é lógico, a conquista da Taça de Portugal foi um momento

marcante. Não apenas pelo troféu em si, mas também no que diz

respeito ao meu crescimento enquanto treinador – afinal,

orientar a Académica foi a primeira oportunidade que tive como

técnico principal. Essa final deu-me mais confiança para acreditar

que o meu trajeto podia ser bonito, como tem sido.

No caminho para o Jamor eliminámos o FC Porto, em Coimbra,

na quarta eliminatória, e isso deu-nos alento para perseguirmos

o nosso sonho. É verdade que, para vencer a Prova Rainha, ainda

ultrapassámos o Sporting na final mas, mais do que nos considerarmos

“tomba-gigantes”, penso que foi fundamental conseguimos ser

realistas na forma como abraçámos a envolvência desta competição,

com muito bons resultados.

Guardo excelentes recordações do dia 20 de maio de 2012 e há

bem pouco tempo tive a possibilidade de reviver alguns desses

momentos porque o jogo passou no Canal 11. Foi uma lembrança

saborosa pelo ambiente que se viveu. Toda a cidade de Coimbra

estava em euforia, mesmo antes de começar o jogo. Houve sempre

um grande envolvimento entre a comunidade local e a Académica.

Isso ficou-me marcado para sempre, assim como o entusiasmo dos

jogadores (muitos deles nunca tinham estado numa final, quanto

120

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mais conquistá-la). Há 72 anos que o clube

não ganhava a Taça de Portugal e há 42 que

não estava no encontro decisivo, por isso

não há dúvida que aquele grupo de trabalho

extraordinário escreveu uma das páginas

mais bonitas da história da grande “Briosa”.

Quatro depois, em 2016, essa experiência

foi útil para vencer a Taça do Chipre

pelo Apollon. Aí a nossa responsabilidade

era maior porque estamos a falar de um dos

melhores emblemas daquele país, que discute

títulos todas as temporadas. A envolvência

e a obrigação tornam-se diferentes. Foi a

minha primeira conquista como treinador

fora de Portugal, que ajudou à consolidação

da carreira e a perceber que no estrangeiro

também é possível trabalhar bem e ter

a competência para se conquistar o sucesso.

Depois disso, eu e a minha técnica ainda

tivemos a felicidade de conduzir o Al Taawon

à vitória na Taça do Rei da Arábia Saudita

(2019) e, na época passada, o Al Ain à final

da Taça dos Emirados Árabes Unidos, que não

se realizou devido à pandemia. Como é lógico,

em todos esses momentos me passaram

pela cabeça várias vezes as imagens do Jamor,

talvez ainda com mais orgulho e emoção

pela distância temporal e por estarmos

longe de Portugal e das nossas famílias.

Na minha opinião, conquistar uma Taça

no estrangeiro envolve uma complexidade

maior. Em Portugal conhecemos a realidade

e estamos mais atualizados. Lá fora temos

de nos adaptar, de ir ao encontro do que

são os aspetos não apenas ligados ao futebol

em si, mas também a especificidades sociais

e culturais para podermos desenvolver

o nosso trabalho sem colidir com os hábitos

e costumes locais. À semelhança do que se

passa no nosso país, são troféus de grande

importância. Na Arábia Saudita é mesmo

equivalente ao campeonato porque

a competição é uma homenagem ao rei, com

tudo o que isso tem de histórico e simbólico.

Contextos diferentes, sensações semelhantes.

Acho que posso resumir desta forma

a experiência de vencer Taças em três países

diferentes. No entanto, tenho de admitir que

o simbolismo do Estádio Nacional é marcante,

até porque a primeira vez que o visitei foi em

representação da seleção sub-12 da AF Porto

em dia de final de Taça e ganhei o sonho – várias

vezes cumprido, felizmente – de um dia vencer

aquele bonito troféu como profissional.

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PEDRO

PINTO

O CEO da Empower Sports recorda

a forma intensa como o Mundial

feminino de 1999 foi vivido nos

Estados Unidos.

Estávamos no verão de 1999. Os Estados

Unidos da América acolhiam o Mundial

feminino de futebol de braços abertos,

havendo uma enorme onda de entusiasmo

em todo o país. Eu estava na crista desta

onda, pois trabalhava em Atlanta como

apresentador de desporto na CNN

International, e esta competição era,

diariamente, um dos temas principais dos

nossos programas diários. Mesmo fora do meu

ambiente de trabalho era possível sentir como

o país vibrava com o Mundial e, à medida que

a fase decisiva se aproximava, este torneio era

mesmo o tema central de todas as conversas

que andavam à volta do desporto.

Para ser honesto, naquela altura eu não entendi

bem o impacto que o evento teria, não só no

futebol feminino mas também no desporto

feminino em geral. Mas o facto deste torneio

ter atraído a atenção de tantos adeptos e o

foco de tantas câmaras fez com que tivesse um

efeito enorme. A final deixou-nos, na minha

opinião, uma das imagens mais icónicas da

história do desporto: Brandi Chastain, após

apontar o penalti decisivo contra a China, de

joelhos, sem camisola, celebrando o segundo

título mundial do seu país.

Nos dias, semanas, meses e até anos que

se seguiram, muitas raparigas queriam

ser como a Brandi. Toda a gente queria

ser como a equipa norte-americana que

havia conquistado o mundo. Olhando em

retrospetiva, mais de vinte anos depois,

posso afirmar que aquela competição, e

especialmente aquela final, foi uma espécie

de ‘big bang’ para o futebol feminino. Um

momento de viragem, que deu ao futebol

praticado por mulheres as referências

necessárias para inspirar as futuras gerações.

Por ter sido realizado nos Estados Unidos,

o país que inventou o show-business, aquele

Mundial teve um significado muito especial.

A expectativa criada em redor de jogos com

estádios cheios e a espetacularidade do

futebol jogado levou a que várias federações

espalhadas por todo o mundo começassem a

pensar a sério em investir no futebol feminino

em busca de, também elas, atingirem a glória.

Ao longo das duas últimas décadas, grandes

avanços foram feitos no desenvolvimento

do futebol feminino e muitas federações

merecem ser elogiadas por isso. A Federação

Portuguesa de Futebol é uma delas. O trabalho

feito dentro e fora do campo, especialmente

ao longo da última década, para promover

o futebol feminino tem sido notável e a

presença de várias equipas em grandes

competições deve ser assinalada como um

marco importante desse crescimento.

Não há dúvidas de que é preciso fazer mais

para desenvolver o futebol feminino, mas

estamos no caminho certo. Com a expansão

do Mundial e do Europeu e consequente

participação de novos países em torneios de

máximo nível, o céu é o limite para o futebol

feminino. Mais momentos icónicos virão.

Mais momentos como o penalti apontado por

Brandi Chastain em 1999.

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