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REVISTA OFICIAL DA FEDERAÇÃO
PORTUGUESA DE FUTEBOL
N.º 40 · SETEMBRO-DEZEMBRO 2020
€2 · TRIMESTRAL
A PRENDA MAIS DESEJADA
FC PORTO E SL BENFICA TERMINAM O ANO COM A POSSIBILIDADE
DE CONQUISTAREM UMA SUPERTAÇA QUE “CHEIRA” A NATAL.
EDITORIAL
FERNANDO GOMES
PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
OLHAR EM FRENTE
Muito próximos do final de um ano de que guardaremos
mais lições do que boas memórias, não poderíamos deixar de
aproveitar esta edição da FPF 360 para reafirmarmos os valores
que continuarão a nortear a Federação Portuguesa de Futebol.
Nesta casa acreditamos no trabalho árduo e em equipa;
no talento, no conhecimento, na imaginação,
na organização ou na disciplina.
Não procuramos a “fezada”, mas temos fé inabalável no
resultado dos nossos esforços. Nunca desistimos dos nossos
objetivos porque, como está escrito nas paredes da Cidade
do Futebol, os desistentes nunca vencem e temos
uma crença inquebrantável no dia de amanhã.
Procuramos ser justos, generosos e bondosos, assumindo
as responsabilidades perante aqueles que, no futebol
e na vida, mais precisam de ajuda.
Nunca viramos costas às nossas responsabilidades
na construção de um país mais rico, saudável
ou sustentável ambientalmente.
Assumimos igualmente como nossa marca de água fundamental
- mesmo sabendo que o futebeol é um desporto coletivo - que
teremos sempre de cuidar, em primeiro lugar, da pessoa, nas
suas dimensões física, mental e até espiritual. Cuidamos da
árvore na esperança de que dela nascerá uma floresta frondosa.
No ano de 2020 fomos confrontados com desafios, obstáculos
e dificuldades que nunca esperámos encontrar. As nossas
respostas, porque os princípios interessam sempre mais do que
as personalidades, foram iguais às que daríamos nos dias de
bonança: foco, persistência,
otimismo e vontade de melhorarmos todos os dias.
Será com este estado de espírito que realizaremos
dois dias antes do Natal mais uma edição da Supertaça
Cândido de Oliveira onde se enfrentarão FC Porto e SL Benfica.
Sabemos das provas de enorme resiliência que os nossos clubes
e adeptos têm dado ao longo da pandemia e queremos e temos
o dever de os homenagear.
Os dois clubes que agora se defrontam foram os melhores
ao longo da época passada, mas só o conseguiram provar
em campo porque muitos outros clubes - de outras divisões,
estatuto ou mesmo historial -, enfrentando condições muito
adversas, conseguiram proteger o futebol e garantir a sua
sobrevivência.
Poderemos não ter ainda público nas bancadas, sabemos até
que o nosso próprio Natal será diferente de todos os anteriores,
mas quando a Final da Supertaça Cândido de Oliveira arrancar
teremos a certeza de que os nossos adeptos e o nosso futebol,
a mais importante das coisas menos importantes, deram ao país
enormes demonstrações de civismo, espírito de sobrevivência,
solidariedade e vontade de vencer e criar novas memórias .
Honrando também esse grande homem do futebol que foi
Cândido de Oliveira, procuraremos, já em 2021, pela parte
da FPF, imaginar uma nova história e acreditar nela.
Bom Natal e Feliz Ano Novo!
É PARA ERGUER
FC PORTO VS SL BENFICA
QUARTA-FEIRA
23 DE DEZEMBRO
20H45
SEJA RESPONSÁVEL. BEBA COM MODERAÇÃO.
O JOGO DOS JOGOS
A SUPERTAÇA CÂNDIDO DE OLIVEIRA VODAFONE 2020, ATÍPICA PELO MOMENTO E PELAS CIRCUNSTÂNCIAS, SERÁ O TEMA CENTRAL
DA 40.ª EDIÇÃO DA FPF360 E TERÁ ABORDAGENS DISTINTAS (UMAS MAIS CONVENCIONAIS QUE OUTRAS, HÁ ESPAÇO PARA TODAS).
OS 10 ANOS DE TRABALHO DE RUI JORGE NA LIDERANÇA TÉCNICA DOS SUB-21, UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA A CARECA
(ANTIGO COMPANHEIRO DE MARADONA NO NÁPOLES) E A REPUBLICAÇÃO DE 40 DAS CRÓNICAS JÁ ASSINADAS NESTA REVISTA
AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS TAMBÉM ESTARÃO EM DESTAQUE.
8 SÉRGIO CONCEIÇÃO E JORGE JESUS EM ENTREVISTA
OS TREINADORES DOS CLUBES FINALISTAS DA SUPERTAÇA FALAM
PELA PRIMEIRA VEZ DESTA PARTIDA NA FPF360.
48 REPORTAGEM – AMOR À DISTÂNCIA
HOMENAGEM AOS ADEPTOS QUE NÃO PODEM APOIAR
OS SEUS CLUBES NO ESTÁDIO DEVIDO À PANDEMIA.
13 JOÃO PINTO E LUIÃO DESFIAM MEMÓRIAS
ANTIGOS CAPITÃES DE FC PORTO E SL BENFICA RECORDAM
MOMENTOS INOLVIDÁVEIS NO HISTORIAL DA SUPERTAÇA.
53 UMA DÉCADA DE TRABALHO EM IMAGENS
O SELECIONADOR NACIONAL SUB-21, RUI JORGE,
ESCOLHEU E LEGENDOU 10 FOTOGRAFIAS MARCANTES DO SEU PERCURSO NA FPF.
22 DESPORTO É CULTURA
DIVERSOS ARTISTAS CONCEITUADOS EXPLICAM EM DETALHE A RELAÇÃO ENTRE MÚSICA
E FUTEBOL. E AINDA FICA A SABER COM QUE GÉNEROS MUSICAIS SE VAI PODER PARECER
O FC PORTO-SL BENFICA NO DIA 23 DE DEZEMBRO.
38 FUTEBOL NO NATAL
HÁ MUITO PARA CONTAR SOBRE JOGOS EM PLENA QUADRA FESTIVA.
64 CARECA – O FIEL ESCUDEIRO DE MARADONA
ENTREVISTA EXCLUSIVA COM O COMPANHEIRO DO MALOGRADO
ASTRO ARGENTINO NO NÁPOLES QUE ENCANTOU A EUROPA.
70 40 CRÓNICAS
PARA ASSINALAR A 40.ª EDIÇÃO DA FPF360, REPUBLICAMOS 40 TEXTOS DAS MAIS DIVERSAS
PERSONALIDADES. PORQUE A PLURALIDADE SEMPRE FEZ PARTE DOS NOSSOS PRINCÍPIOS.
FPF360
Revista oficial da Federação
Portuguesa de Futebol
Registo na ERC N.º
126365
Depósito legal
359066/13
Propriedade/Edição/Redação
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Estatuto editorial disponível em
www.fpf.pt/Institucional/Revista-FPF360
Diretor
Alexandre Pereira
Conceção e textos
Rodrigo Dias, Tiago Sardo, Matilde
Dias, Francisco Trigo de Abreu, Miguel
Vieira, Bruno Henrique, Rúben Silva,
Germano Almeida e Patrícia Tadeia
Design
Nuno Martins
Fotografia
André Sanano/FPF, Diogo Pinto/FPF,
Arquivo Lusa, Shoot Happens, SL Benfica,
Sporting – Centro de Documentação,
Direitos Reservados, Desporto Escolar/
Alexandre Pona, Record
Fecho editorial
24 de julho de 2020
Assinaturas, dúvidas, críticas e sugestões
360@fpf.pt
Numa Supertaça inédita, a ambição habitual
Chegamos, por fim, aos últimos dias de 2020. Um ano
de muitas lutas e não menos perdas. No entanto, entre
múltiplos cenários imprevisíveis, temos pelo menos
uma certeza: o futebol está a resistir a esta verdadeira
tempestade mundial chamada COVID-19. Não está a ser
fácil para ninguém e as consequências estruturais ainda
são desconhecidas, mas continuamos a ver pela televisão
protagonistas de grande qualidade a proporcionarem
espetáculos fantásticos em todo o mundo, apesar da
ausência de adeptos na esmagadora maioria dos países.
É um facto que também a Supertaça Cândido de Oliveira,
que opõe anualmente as duas equipas que mais se
destacaram em Portugal na época anterior, deveria ter
sido realizada em agosto, mas estarmos aqui a escrever
sobre o tema, com o Natal à porta, não deixa de ser um sinal
de esperança, de ânimo e de reconhecimento para todos
aqueles que têm levado o “barco para a frente”, correndo
riscos para que milhões de telespectadores
possam continuar a vibrar desporto que tanto amam
e – não menos importante – que os jovens impedidos
de competir neste momento continuem a ter referências
em quem se possam rever.
A capacidade de adaptação é uma qualidade – mais do
que nunca - exigida a quem faz do futebol a sua vida e as
equipas do FC Porto e do SL Benfica já mostraram que estão
preparadas para grandes exigências num contexto nada
habitual. Espera-se, por isso, que em Aveiro o futebol saia
valorizado, a memória de Cândido de Oliveira honrada
e o desportivismo praticado como exemplo superlativo
para todas as gerações. Sobre o jogo propriamente dito,
a palavra deve ser dada a quem sabe: eis as primeiras
antevisões públicas à edição de 2020 do “jogo dos jogos”,
por Sérgio Conceição (treinador do FC Porto) e Jorge Jesus
(treinador do SL Benfica).
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FPF360
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SÉRGIO
CONCEIÇÃO
TREINADOR FC PORTO
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FPF360
Terminar um ano de 2020 difícil para todos
com a conquista da Supertaça teria um
significado especial?
Tem um significado especial apenas por ser
mais um título que está em disputa. E todos
os títulos são especiais.
Como prevê este jogo?
Jogo de final, difícil, onde
estão presentes os dois clubes
rivais com historial mais rico. É um jogo
sem favoritos à partida e que, como todos,
terá a sua história, a sua vida própria dentro de
um enquadramento de grande qualidade das
duas equipas que se defrontam.
Jogar perto do Natal adiciona simbolismo a
esta edição?
Acho que quando vamos disputar um título
ninguém está a pensar na época do ano que se
vive. Não tem outro simbolismo que não seja
querer ganhar a supertaça.
As equipas já estão habituadas a jogar sem
adeptos, mas continua a ser estranho não
contar com esse apoio?
É estranho e mau para o futebol. A essência do
jogo é a paixão que os adeptos colocam em cada
jogo que assistem ao vivo. É uma pena não ter
adeptos, ainda mais nestes jogos decisivos onde
seguramente dariam outro colorido à final.
Já venceu uma Supertaça como treinador,
em 2018. Que memórias guarda dessa
partida?
Foi um momento especial, também porque
tive no estádio os meus familiares e entre
eles pessoas que, entretanto, já partiram.
Guardo por isso um carinho especial por essa
supertaça conquistada no mesmo estádio
onde jogaremos agora. Foi uma enorme alegria
por ter perto a minha família desportiva, o FC
Porto, e minha família de sangue.
Como jogador também triunfou na edição
de 1996. As sensações são comparáveis?
Foram momentos diferentes, na altura foi
também muito saboroso conquistar essa
supertaça em casa do rival com uma vitória
algo expressiva. Lembro-me que foi um jogo
fantástico, daqueles em que corre mesmo tudo
bem e merecemos essa conquista, que na altura
abrilhantou ainda mais uma época vitoriosa.
O FC Porto é a equipa com mais vitórias (21)
nesta prova. O que lhe diz este facto?
Que a cada conquista do clube aumenta a
responsabilidade dos que cá estão em busca de
novos títulos.
Qual é a importância da Supertaça no
panorama do futebol nacional?
É mais um título que queremos ganhar
para poder juntar à Taça e ao Campeonato
conquistados, fechando assim um ano tão
difícil, mas ao mesmo tempo fantástico.
A que valores associa a figura
de Cândido de Oliveira?
Cândido de Oliveira terá sempre que ser
associado aos valores mais nobres do desporto
Que mensagem quer deixar
aos portugueses para o ano de 2021?
Quero deixar uma mensagem de muita saúde,
principalmente neste momento que o país e o
mundo atravessam. Espero que cada vez mais
se possa dar valor à família porque, de entre
tudo o que de negativo trouxe este ano de 2020,
houve algo que devemos olhar como positivo
que é apreciar os mais pequenos gestos de
carinho e amor entre a família e o valor da
amizade. Desejo por isso saúde e felicidade
para todos os portugueses.
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JORGE
JESUS
TREINADOR SL BENFICA
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FPF360
Terminar um ano de 2020 difícil para todos
com a conquista da Supertaça teria um
significado especial?
Ganhar tem sempre um significado especial,
mas neste caso teria ainda mais. 2020 está a ser
um ano difícil e muito exigente para todos e,
por isso, terminar da melhor seria, sem dúvida,
muito gratificante.
Como prevê este jogo?
É um clássico. E, como qualquer clássico, terá
emoção e paixão. Espero aquilo que todos
esperam: um grande jogo de futebol, disputado
por duas equipas com muita qualidade. Tenho
a certeza que assim será. Cabe-nos trabalhar
mais para que seja o Benfica a vencer o primeiro
troféu da temporada.
Jogar perto do Natal adiciona
simbolismo a esta edição?
Acaba por ser isso, sim, até porque nunca houve
uma Supertaça na antevéspera de Natal. Mas
quando o árbitro apitar para o início do jogo,
de certeza que os jogadores não vão pensar em
mais nada que não seja o que ali vai estar em
disputa.
As equipas já estão habituadas a jogar sem
adeptos, mas continua a ser estranho não
contar com esse apoio?
Uma equipa nunca se irá habituar a isto que
estamos a viver. Podemos já não estranhar
tanto como no início, mas nunca um
profissional de futebol estará confortável ao
ver as bancadas vazias. Nunca!
Já venceu duas Supertaças como treinador,
em 2014 e 2015. Que memórias guarda
dessas partidas?
Foram jogos com ambiente próprio de uma
final, com um ambiente especial e a tal emoção
que faz falta ao futebol. Desta vez, infelizmente,
vai faltar esse contexto.
Já venceu as Supertaças da Arábia Saudita
e do Brasil. Que diferenças encontrou
relativamente à experiência que teve na
competição portuguesa?
Um troféu é sempre um trofeu. É para isso que
qualquer treinador trabalha. É aquilo que todos
perseguimos: conquistas. Independentemente
do país em que se disputam essas decisões.
Ganhar no nosso próprio país tem um sabor
especial, é verdade. Mas também é muito bom
ter sucesso além-fronteiras. E eu, felizmente,
já tive a oportunidade de passar por essa
experiência.
Este será o primeiro título que discute neste
regresso a Portugal. Qual é o sentimento
com que o faz?
Com a mesma ambição que sempre tive. Não
muda nada. Claro que é importante voltar a
ter sucesso em Portugal e foi para isso que
regressei ao meu país e ao Benfica, mas a
verdade é que chego a este jogo, como disse,
com a mesma ambição e vontade de vencer que
sempre tive.
Qual é a importância da Supertaça no
panorama do futebol nacional?
É uma prova que conquistou o seu espaço e
que merece ser dignificada. É o que estamos
dispostos a fazer, uma vez mais.
A que valores associa a figura
de Cândido de Oliveira?
Alguém que dedicou a sua vida a causas
importantes. Para além de ter contribuído
de forma decisiva para a evolução do futebol
português, através do Benfica e do Sporting,
foi um homem que lutou pela liberdade e
que também teve um papel importante na
Imprensa nacional. Curiosamente, também
passou pelo futebol brasileiro e por um clube
que conheço bem: o Flamengo. Foi há 70 anos,
ainda eu não tinha nascido…
Que mensagem quer deixar
aos portugueses para o ano de 2021?
Que seja um ano em que possamos voltar a
sorrir e em que nos livremos deste pesadelo
que já dura há longos meses. Saúde para
todos! É o mais importante de tudo. Quanto
ao futebol, o que mais desejo é ver os adeptos
voltarem às bancadas.
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JOÃO PINTO
“A FILOSOFIA
SÓ PODE SER
UMA: AS FINAIS
SÃO PARA SE
GANHAR”
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João Domingos da Silva Pinto tem 59 anos
e uma carreira de nada menos que 21
temporadas ligadas ao clube do seu coração,
o FC Porto, 17 dos quais na equipa principal.
Ao serviço dos dragões, realizou quase sete
centenas de jogos oficiais, marcando 21 golos.
Foi igualmente internacional A por 70 vezes.
João Pinto conquistou 24 títulos, entre os quais
o famoso troféu de campeão europeu, depois
da vitória em 1987 diante do Bayern Munique,
com a braçadeira de capitão de equipa. Ganhou
9 campeonatos, 4 Taças de Portugal e nada
menos que 8 edições da Supertaça Cândido
de Oliveira. O FC Porto conquistou este troféu
em 21 das 42 edições, o que perfaz um sucesso
de 50 por cento. João Pinto participou em 12,
perdeu 4 e venceu as restantes, 7 delas diante
do Benfica e uma frente ao Estrela da Amadora.
O antigo jogador, ainda hoje ligado à estrutura
dos dragões, lembra-se de muitas destas
decisões, algumas delas bem renhidas, com
decisão pela disputa de prolongamentos,
finalíssimas e decisões da marca de penálti.
A primeira Supertaça de João Pinto remonta
a 1981, com Herman Stessl como treinador.
Foi a sua estreia em grandes competições,
com uma derrota na primeira mão,
mas o troféu foi garantido com um triunfo na
segunda mão. A última aconteceu já em 1994,
mais uma vez com recurso a uma finalíssima.
O que lhe vem à cabeça
quando se fala de Supertaça?
É uma final. Entram em campo as equipas que
ganham as duas principais competições do ano
anterior e é sempre uma final, para se ganhar.
Espero que este ano o FC Porto ganhe mais
uma vez.
Em 42 edições, o FC Porto conquistou
nada menos que 21 troféus, o que é uma
excelente média. É uma equipa talhada
para este tipo de competições?
São finais. Tanto vale ser nessa como noutra
competição, as finais são sempre para
ganhar. Nem se pode entrar em campo com
o pensamento noutra coisa qualquer. É claro
que o adversário é o Benfica, que tem bons
jogadores e está a fazer um bom campeonato,
tal como o FC Porto. Falta muito para acabar
a Liga NOS e tudo pode acontecer,
mas tratando-se de uma final, é só um jogo
e o vencedor sai deste jogo. Espero que seja
um bom espetáculo de futebol, estando
frente a frente duas grandes equipas.
Esteve em 12 finais e ganhou por 8 vezes.
Isto tem algum significado especial para si?
Para mim os jogos são todos iguais, seja qual for
o adversário. Quando jogava queria era ganhar,
ainda por cima falando-se de finais. A minha
maneira de ser era essa, a de ajudar o FC Porto
a ganhar os jogos todos, contra adversários
fortes ou menos fortes. Uma final é para ganhar
sempre, não apenas para entrar em campo
e disputar. As duas equipas querem
o mesmo resultado.
O João começou a sua carreira
logo com uma Supertaça, em 1981…
Foi contra o Benfica e perdemos
por 0-2 no Estádio da Luz.
Tem alguma memória especial?
Foi a primeira vez que joguei no Estádio da Luz,
que estava completamente cheio. Perdemos
e lembro-me que entrei na segunda parte.
Vencemos a segunda mão, se não me engano
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FPF360
por 4-1, e nesse jogo também joguei
alguns minutos no segundo tempo.
Lembro-me de muitos desses jogos
Acha que era mais fácil ganhar
a Supertaça como no seu tempo, em que
havia pelo menos dois jogos, do que agora?
Quando as equipas são boas têm de estar
preparadas para ganhar seja em um ou em
dois jogos. Neste caso são dois grandes clubes,
mas quando são duas equipas e uma delas
é grande, um jogo é mais benéfico para quem
é mais forte. Quando são duas equipas grandes,
como é caso deste ano, com FC Porto e Benfica,
um ou dois jogos não torna mais fácil
ou mais difícil.
Em 1984 teve de ir à finalíssima
e só se definiu ao fim de quatro jogos…
Nesse ano, perdemos um jogo e ganhámos
o outro na final, e na finalíssima ganhámos
os dois jogos, num deles com dois golos
do Gomes. E em 1986 empatámos em
casa e depois fomos à Luz ganhar 4-2.
Lembra-se da Supertaça com o Estrela
da Amadora, em 1990, que o FC Porto
perdeu o primeiro jogo fora por 2-1
e acabou por conquistar o troféu
depois da vitória nas Antas por 3-0?
Esse jogo da segunda mão é inesquecível
para mim porque joguei-o quase todo com
o maxilar metido dentro, já que tinha levado
uma cotovelada no início do jogo. Passei
o tempo inteiro com dores e aguentei quase
até ao fim, acabando por ter se ser substituído.
Mas há mais curiosidades: em 1991 e 1993
o FC Porto ganhou nos penáltis e há uma
das edições em que o João Pinto até falhou
um remate dos 11 metros. Quer falar-nos
sobre isso?
A de 1991 foi em Coimbra e teve uma
particularidade que não posso esquecer.
Estávamos a perder por 1-0 e marquei o golo
de empate de penálti perto do fim, que nos
levou a prolongamento. No desempate, depois
do prolongamento, falhámos os dois primeiros
penáltis e eu fui um deles. O Benfica estava
a ganhar por 2-0 e acabou por perder.
Ganhámos essa edição da Supertaça por 4-3
nos penáltis. A de 1993 foi muto parecida:
perdemos um jogo e ganhámos o outro,
e acabámos por empatar na finalíssima, nesse
caso foi 2-2, depois de 1-1 nos 90 minutos.
Ganhámos outra vez nos penáltis por 4-3.
A última final que ganhou foi em 1994,
e outra vez ao Benfica, e mais uma vez
com recurso a finalíssima, depois
de empates nos dois jogos da final…
Foi essa, sim. Não foi a última que joguei,
mas foi a última que ganhei. A finalíssima
foi em Paris, com um grande ambiente.
A questão com essas decisões num só jogo
fazia-me lembrar as finais da Taça de Portugal
no Estádio Nacional: era um ambiente de festa.
Lembro-me que quando chegávamos umas
duas horas antes do jogo, havia aquele grande
ambiente à volta do estádio, com piqueniques.
As pessoas até vestiam as camisolas do FC
Porto e do adversário, tudo misturado. Era
o futebol que eu desejava que acontecesse
neste momento. Haver rivalidade sim, mas
com respeito uns pelos outros. O futebol tinha
muito a ganhar com isso.
Alguma dessas 8 vitórias foi especial para si?
Recordo todas as finais e ganhá-las é sempre
especial para qualquer jogador. Falo por
mim, porque as finais eram para entrar em
campo e fazer tudo para ganhar. E é claro que
ficava contente quando ganhava. E ganhei
muitas, felizmente. Mas eu entrava em campo
para ganhar sempre. Fazia parte da minha
personalidade.
Ainda por cima era o capitão de equipa
em grande parte delas…
Sim, em quase todas, só não fui nos primeiros
anos, quando ainda jogava o Gomes, porque era
ele o capitão. De resto fui sempre eu.
Recentemente o FC Porto ganhou cinco
Supertaças seguidas, entre 2009 e 2013, mas
nos últimos seis anos só ganhou uma, em
2018, ao CD Aves, já com Sérgio Conceição
como treinador. Isto significa que o futebol
está mais equilibrado hoje em dia?
Acho que temos equipas mais fortes, o futebol
está mais equilibrado. Neste momento,
por exemplo, temos o Sporting de Braga mais
próximo dos chamados “três grandes”.
Mas penso que, em geral, todas as equipas
estão mais próximas hoje em dia, e isso
deve-se às infraestruturas que esses clubes
têm. Antigamente só havia três academias
e hoje quase todos têm um centro de treinos.
As equipas só tinham um campo para treinar
e agora já não é bem assim; há quem tenha dois
e três relvados com boas condições. E isso
acaba por dar resultados desportivos,
uma vez que são proporcionadas melhores
condições de trabalho aos jogadores.
É tudo uma questão de investimento,
e o facto é que muitos clubes têm vindo
a investir ao longo dos anos.
Na altura em que o João Pinto começou,
a ambição de todos os jogadores era chegar
a um grande, não é?
Porque o FC Porto, e falo só nesse caso, porque
é a realidade que conheço melhor, era quem
tinha melhores infraestruturas e dava melhores
FPF360 15
condições para treinar e jogar, e por isso a ambição das crianças e dos
jovens era chegar a um clube com essa dimensão.
Com o crescimento dos clubes como vemos hoje, há condições muito
boas para trabalhar, com autênticas academias. A grande diferença que
há do meu tempo para o atual é que hoje os clubes todos
são profissionais e trabalham muito bem.
Não se pode comparar o percurso do João, que deve ter sentido
muitas dificuldades para ir do Oliveira do Douro para o FC Porto,
para um miúdo de hoje em dia, que chega com maior facilidade
a um patamar mais elevado…
Não se compara, obviamente. Agora é totalmente diferente. Há uma
grande agressividade entre os clubes para contratar os melhores jovens.
Hoje já todos apostam na formação, o que não acontecia no meu tempo.
Hoje já todos têm olheiros a descobrir novos talentos, e isso torna tudo
bastante mais fácil.
Confia que o FC Porto vai ganhar esta edição da Supertaça, por
aquilo que tem visto das equipas ao longo desta temporada?
Acredito que sim. O FC Porto parte para todos os jogos,
como diz o seu treinador, a pensar nisso. Vão estar frente a frente duas
grandes equipas. O Benfica fez um investimento muito grande e terá se
calhar mais responsabilidades, mas o FC Porto vai entrar certamente
para ganhar. Em cada jogo a equipa entra com a disposição de jogar
e ganhar, porque tem de ser mesmo essa a filosofia: as finais são para
se ganhar. E certamente o objetivo é chegar a Aveiro e ganhar o jogo,
conquistando mais uma Supertaça.
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LUISÃO
“VENCER AS
FINAIS PARA
DEIXAR O BENFICA
NUM PATAMAR
SUPERIOR”
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Anderson Luís da Silva é conhecido
como Luisão no mundo do futebol. Brasileiro
de nascimento, o antigo defesa-central
de 39 anos é hoje um assumido apaixonado
pelo SL Benfica, clube que representou
durante 15 épocas e meia. Foram 538 partidas
disputadas de águia ao peito, 47 golos e 20
títulos conquistados, tornando o atual Diretor
Técnico e de Performance dos encarnados
no jogador com o palmarés mais vasto
do historial das “águias”.
Entre todos os troféus conquistados em
Portugal constam seis Ligas Portuguesas, três
Taças de Portugal, sete Taças da Liga e quatro
Supertaças Cândido de Oliveira. A grande
maioria deles enquanto capitão de equipa.
Durante muito tempo, a Supertaça não foi um
troféu de boas recordações para o SL Benfica.
Contudo, nas últimas cinco presenças, as
águias venceram por quatro ocasiões, tantas
quantas as anteriormente conquistadas.
A primeira Supertaça de Luisão foi em 2005,
numa final diante do Vitória FC [triunfo por
1-0]. Era Ronald Koeman o treinador dos
‘encarnados’, atualmente a orientar o FC
Barcelona. Desde então seguiram-se triunfos
diante do Rio Ave (3-2 após desempate por
penáltis, em 2014], SC Braga [3-0, em 2016] e
Vitória SC [3-1, em 2017], bem como duas finais
perdidas diante do FC Porto [0-1 em 2004 e 0-2
em 2010] e uma do Sporting CP [0-1, em 2015].
As memórias destes momentos estão bem
frescas, numa competição que em 2017 se
tornou para sempre especial: foi aí que Luisão
entrou na história do Benfica como o jogador
com mais títulos da história do clube.
Estamos à porta de mais uma edição
da Supertaça Cândido de Oliveira.
Quando falamos nesta competição, qual
é a primeira recordação que lhe ocorre?
Vem-me à cabeça sempre o facto de ser
uma conquista diferente, porque normalmente
é disputada entre duas equipas vencedoras:
a do campeonato e a da Taça de Portugal.
A nível particular marca-me por uma foto
que tenho com a minha filha, na supertaça
de 2017, quando conquistei o meu 20º título
pelo Benfica. A Supertaça vai ser sempre
especial para mim.
Apesar de ser a segunda equipa portuguesa
mais titulada na competição, ex-aequo
com o Sporting, a Supertaça era um troféu
em que normalmente o Benfica não se
dava bem, porque perdia a grande maioria
das finais. Contudo, desde 2014, o Benfica
venceu quatro das cinco finais disputadas,
tantas quanto no resto da sua história.
O que é que mudou, entretanto?
Creio que a partir do momento em que
o Benfica ultrapassou as suas dificuldades
e, nestes últimos anos, começou a retomar
a conquista de troféus, a presença
em momentos de decisão começou a ser
um hábito e os jogadores começaram a estar
mais preparados para esses momentos,
a responderem cada vez melhor. Na década
de 90, inícios dos anos 2000, o clube passou
por dificuldades muito grandes que eu vivi
de perto quando cheguei em 2003, mas agora
consigo ver que muitas coisas mudaram
e isso reflete-se dentro de campo, também.
São os resultados do crescimento de um clube
que se vem a estruturar muito bem, ao longo
dos últimos anos.
É a 12ª final da Supertaça entre Benfica
e FC Porto. Em 11 finais já disputadas,
o Benfica tem uma vitória e o FC Porto tem
10. Isso pode ter impacto no jogo deste ano?
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Pela experiência que tenho, e é lógico que
não ficamos felizes com esses registos. Não
considero que terá impacto naquilo que
será o jogo em si. São jogadores diferentes,
momentos dos clubes diferentes, estruturas
diferentes, etc. No entanto, se esse número
estiver na cabeça dos jogadores será como uma
motivação para encurtar distâncias e fazerem
diferente do que tem acontecido na maioria
dos casos.
Tem quatro supertaças conquistadas,
sendo dos jogadores da história do Benfica
mais galardoados no que a este troféu
diz respeito. Que importância é que
isso tem para si?
É um orgulho imenso… Cheguei ao Benfica,
conquistei tudo aquilo que conquistei…
Tenho uma gratidão muito grande. Tenho
um orgulho pessoal e uma satisfação enorme,
mas sou sobretudo grato pelos jogadores que
conviveram comigo no dia-a-dia, por toda
a estrutura e staff terem permitido que eu
chegasse a este número de títulos. Eu penso
sempre que o número de troféus que venci foi
pouco para aquilo que o clube merece, que
os adeptos merecem e que a grandeza do clube
exige. Quatro supertaças é bom, mas gostaria
de ter conquistado muitas mais.
O Luisão tem um palmarés que fala por si,
tendo disputado inúmeras finais ao longo
da carreira, quer em competições nacionais,
quer internacionais, pelo clube e pela
seleção. Em que é que a final da supertaça
se diferenciava das outras?
A Supertaça era uma competição em que os
clubes já contavam com uma conquista no ano
anterior. Individualmente, considerava este
jogo sempre como um momento de superação,
pela data em que é normalmente disputada.
Início do campeonato, muitas vezes a equipa
que vai jogar não é a mesma que conquistou
o título que lhes dá direito a estar ali, há uma
paragem, há o recuperar a forma, não sabia se ia
ter a mesma performance do ano anterior… era
uma superação diária que tinha que meter na
minha cabeça, para que aquele jogador que fui
no fim da época anterior, estivesse também no
início da seguinte. Com a mesma performance,
a mesma liderança, tudo. Por estes fatores
todos, a supertaça é especial. Depois é também
jogada numa altura em que podemos abrir a
época logo a conquistar um título. O tempo
estava sempre bom, podia levar as minhas
filhas a assistir ao jogo e este ano torna-se ainda
mais especial por ser disputada em tempo de
pandemia e próxima do Natal. Uma conquista
na Supertaça deste ano vai fazer com que a
possamos aproveitar numa altura em que
habitualmente estamos em família.
Foi a final de 2017 que mais o marcou?
Da Supertaça sim, foi essa. Mas todas foram
especiais à sua maneira, lembro-me da final
contra o SC Braga (em 2016), em que jogámos
contra o Rafa, que agora até está no nosso
plantel. Na altura nem nos conhecíamos, mas
eu já sabia que se falava nele vir para o Benfica
pela comunicação social e durante o jogo até
brinquei com ele sobre isso. Depois temos
a final contra o Rio Ave (em 2014), nos
penáltis… as vezes que eu bati penalties
foi sempre num desempate, até porque
não é habitual os centrais baterem grandes
penalidades. Não foi fácil ser central e ter
que mostrar uma tranquilidade enorme para
assumir a cobrança. Felizmente deu golo!
Apesar de ser defesa-central, eu via-o
muitas vezes no desempate por grandes
penalidades a assumir a cobrança. Foi assim
na supertaça em 2014, foi assim na final
da Liga Europa contra o Sevilha, etc. Nestes
casos, até bateu uma das últimas grandes
penalidades. Treinava mesmo os pénaltis ou
era uma questão de confiança no momento?
É uma questão interessante. Marquei em
jogos do Benfica, da Seleção na Copa América
e do Cruzeiro na Libertadores. Neste último
caso até falhei, era muito novo, não tinha
experiência e à última da hora mudei a decisão
para o lado que ia rematar. Na Seleção
por acaso até marquei todos. É assim, eu não
era normalmente marcador de pénaltis. Não
treinava todos os dias, treinava nalgumas fases
da temporada em que prevíamos que podia
vir a acontecer um desempate. Tinha uma
maneira de bater que era sempre igual. Se for
ver, percebe isso e hoje já não teria marcado
praticamente todos os pénaltis que marquei.
Agora já se sabe tudo, já se conhece a qualidade
do Pizzi ou dos batedores de cada equipa.
Lembro-me do Lima bater muito bem,
também. Comigo os adeptos se calhar já
ficavam mais apreensivos quando viam que
ia marcar, mas aí entra também um pouco
da liderança. Nesses momentos, sentia que
era minha função proteger um pouco os
jogadores que estavam ansiosos ou com pouca
confiança, mesmo que à partida batessem
melhor. Envolve tudo isso, puxar mais a
responsabilidade. Era o que eu tentava fazer
e deu certo.
É esse também o trabalho de um capitão…
Sim, também é. E até é curioso que na final
da Liga Europa, por exemplo, eu nem era
um habitual batedor de pénaltis e marquei,
mas depois os nossos melhores marcadores
falharam… o futebol tem coisas destas, mas
é importante o capitão e o líder da equipa
não terem só a braçadeira, mas chegarem-se
à frente para chamar a responsabilidade
e proteger também os outros quando
é necessário.
Continuando nesta onda da liderança,
o que é que passa na cabeça de um jogador,
ainda por cima capitão de equipa,
em alturas de grandes penalidades?
20
FPF360
Estou convicto de que os líderes da equipa,
porque a equipa não tem um só, têm que
pensar totalmente ao contrário daquele que
é o ambiente da altura. Se tem que alimentar
ainda mais a confiança ou se estão demasiado
confiantes é hora de colocarmos tudo nos
níveis certos. Um líder, nestes momentos
de decisão tem que estar frio, para saber
qual o caminho que se deve tomar para
motivar e mobilizar os outros.
O Luisão foi capitão de equipa em quase
todas as supertaças que jogou, exceção
feita à de 2005. Ganhou quase todas
as que disputou nessa condição. Sente
que teve um papel ainda mais
preponderante devido a esse aspeto?
Pode ter contribuído, mas o capitão é mais
um jogador com uma braçadeira a representar
os outros, mas que tenta dar o seu pequeno
contributo. Não sei se foi uma contribuição
assim tão preponderante, acho que foi mais
uma coincidência de as ter conquistado,
até porque se não fosse capitão teria que
dar o meu contributo na mesma. Nesse caso
não o faria como um capitão na ficha de jogo,
mas como um líder da equipa.
Então qual a importância que
um capitão de equipa tem nestes jogos?
Costumo defender que um capitão de equipa
é um guardião de valores. O capitão está
muito na linha ténue que é a confiança ou
desconfiança. É uma voz no grupo muito forte,
tem que ter responsabilidade de ter uma vida
regrada, com muitas responsabilidades.
É também a referência do grupo de trabalho
e do treinador, por isso é que ele tem que
defender valores, porque caso contrário
pode ser mal interpretado por alguns jogadores
ou pela equipa técnica. Ele é, sem dúvida,
um guardião de valores. É nos momentos
decisivos que isso vem mais à flor da pele
de um capitão de equipa. Ele tem que olhar
para a equipa e sentir que o clube todo está
mobilizado para uma conquista e para superar
as dificuldades que vão aparecer.
No dia da Supertaça vai procurar dar
alguma palavra especial ao jogador
que entrar com a braçadeira?
Confesso que já estou a sentir a adrenalina
do jogo. Temos jogos ainda pela frente, mas já
estou a viver a adrenalina da Supertaça dentro
de mim, porque se trata de uma final e é disso que
gostamos. A minha função aqui é clara: trabalho
com toda a equipa técnica e com o plantel, não
faço nenhum tipo de trabalho específico com
os capitães. Vou procurar falar com todos. Tenho
a responsabilidade de passar a mensagem do que
é o Benfica, a importância que é quando este clube
chega a uma final, porque acima de tudo eles têm
a obrigação de deixar a camisola do Benfica num
patamar superior ao que a encontraram e uma
das maneiras de fazer isso é ganhando os jogos e
os títulos. Eles evoluem na carreira mas cumprem
com essa obrigação de deixar o Benfica melhor
do que quando entraram no clube.
O Luisão está a colaborar numa posição
mais próxima da equipa. Vai procurar
passar alguma da sua experiência,
nomeadamente a nível psicológico,
para os atuais jogadores antes do jogo?
Tenho que passar. A preparação da partida
é feita nos treinos, com a parte tática e técnica,
que fazemos muito bem através do trabalho
do mister. Depois também temos esse
momento de conversa, essa influência
da minha função, em que falo com os
jogadores, mas mais perto do encontro, há um
determinado momento em que temos que dar
espaço para o jogador se concentrar e fazer
o seu próprio trabalho mental. Construímos
esses alicerces antes, porque depois sabemos
que vamos ser bem representados por eles.
Esta Supertaça é diferente das outras
sobretudo por dois motivos: a ausência
de público e o facto de ser disputada numa
altura diferente da temporada.
Isso pode ter impacto no jogo?
Pode, sobretudo naquilo que é o sentimento
e a beleza do futebol. É um jogo envolvido
em alguma tristeza, também por aquilo que
o mundo está a passar, os casos de infeção,
as mortes, as depressões das pessoas, o facto
de não se poder sair de casa, a preocupação…
O futebol é tão importante numa sociedade
que, mesmo que haja problemas durante a
semana, no trabalho, na vida, na saúde, etc.,
quando se disputa um jogo importante, uma
final como esta, o facto de poder ir ao estádio,
viver aquelas emoções de perto, acaba por
fazer esquecer, durante um período, todos
aqueles problemas. A influência pode vir
sobretudo ao nível do público, aquela grandeza
em questão de sentimentos para as pessoas.
Dentro de campo, os jogadores estão de tal
forma concentrados que cada um vai fazer o
seu melhor. A mim, pensando no jogo, o que
me deixa mais triste é mesmo não poder levar
alegria para as pessoas e ver o estádio cheio,
com os adeptos numa rivalidade saudável,
com uns a comemorar e outros mais tristes.
Para terminar… quem vai ganhar o jogo?
Nós, o Benfica, mas vai ser um jogo muito
difícil! Duas equipas que estão a crescer no
campeonato, que estão em todas as frentes,
com pessoas capacitadas no comando, o mister
Jorge Jesus e o mister Sérgio Conceição, dois
treinadores que se conhecem, que têm pontos
fortes e outros menos fortes. Duas equipas
grandes, rivais. Espero que haja respeito,
com bom futebol e que o Benfica saia vencedor.
FPF360 21
CULTURA
E FUTEBOL
DO MESMO
LADO
São dois dos setores mais prejudicados pela pandemia
de COVID-19, mas não deixaram de ter um papel importante
– simbólico, sim, mas não só – para os portugueses
numa altura tão difícil. Consciente disso, a FPF360 decidiu
falar com artistas fora das quatro linhas que têm um gosto
especial por futebol na generalidade e, em particular,
pelos clubes finalistas de uma Supertaça Cândido de Oliveira
única por todos os motivos. Como atualidade se impõe,
teremos primeiro Fernando Daniel e Valas a fazer uma
antevisão musical do FC Porto-SL Benfica do próximo dia
23 de dezembro, enquanto Herman José, Dino D’Santiago,
Héber e Cristovinho protagonizarão ao artigo seguinte,
contando a forma como o seu percurso artístico está
intimamente ligado ao desporto-rei em Portugal.
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FPF360
FPF360 23
Faça parte da energia deste Natal.
A Galp e a Federação Portuguesa de Futebol uniram esforços
para apoiar os que mais precisam. Junte-se a este movimento solidário
e ajude uma das várias instituições participantes nesta quadra.
O gesto que faz a diferença
1 • Entre em energiadonatal.pt
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4 • Sinta a energia do Natal
A SUPERTAÇA
CANTADA
Futebol e música caminham lado
a lado. Duas artes, duas paixões.
Para uma visão diferente da
Supertaça Cândido de Oliveira,
os artistas Fernando Daniel e Valas
dão voz aos seus amores FC Porto
e SL Benfica, respetivamente.
FPF360 25
Na sua essência mais pura, o futebol é uma
arte. Olhando para ele nessa sua vertente mais
cristalina, o futebol pode assumir-se como um
poema que, nas mãos de quem o sente, pode
dar música. Um golo “sobrenatural”, uma finta
desconcertante, uma defesa impossível. Tudo
isto pode ser açucarado ao piano, ganhar outro
ritmo em acordes de guitarra ou glorificadopor
uma voz terna e vibrante. A criatividade de um
jogador pode ser decalcada instantaneamente
para uma estrofe, um pontapé de bicicleta
transportado de imediato para um solo
de bateria, um desarme em cima da linha
convertido numa banda sonora de suspense.
Um dos golos mais icónicos de sempre,
a célebre “Mão de Deus” do malogrado génio
Diego Armando Maradona, já deu origem
a canções e artistas como Chico Buarque,
Gilberto Gil ou Jorge Ben Jor já deram voz
ao futebol. Este último intérprete brasileiro
tem uma música dedicada a um golo apontado
por Fio Maravilha, avançado brasileiro
da década de 70. Não há imagens do jogo
Flamengo – Benfica (Torneio Internacional
do Rio de Janeiro), mas Jorge Ben Jor estava
no estádio e deu vida ao momento tornando-o
num tema muito popular no Brasil. E foi através
da cantiga que se idealizou o drible,
que se imaginou o golo, que se ensaiou
aquilo que terá sido o festejo.
Neste sentido, e apoiados no jogo entre
FC Porto e Benfica da Supertaça Cândido de
Oliveira Vodafone, reunimos dois intérpretes
portugueses para abordarem esta ligação
futebol/música e para lançarem o encontro
de 23 de dezembro, em Aveiro, de um prisma
diferente. O portista Fernando Daniel
e o benfiquista Valas. Não é um duelo,
não é um confronto. São dois músicos a falar
de duas paixões comuns. Cada um com a sua
cor clubística, com respeito e desportivismo.
Fernando Daniel, reconhecido músico
português, tem crescido a olhos vistos
e tem apaixonado os portugueses pelo ouvido.
Com um percurso sólido construído nos
últimos anos, o cantor natural de Estarreja -
portista de coração – conta que o seu amor
pelo FC Porto intensificou-se ainda mais aos
10 anos, quando o avô lhe ofereceu uma
camisola de Deco, juntamente com o resto
do equipamento oficial da equipa. É justo dizer
que ter um verdadeiro maestro nas costas,
como era o internacional português que
passou seis temporadas mágicas nas Antas e,
posteriormente, no Dragão, foi um momentochave.
“Desde então o Porto é um dos meus
grandes amores”, reconheceu o artista.
Valas, ou João Valido para alguns, vem
colocando a sua alma no hip-hop português.
Com vários temas de sucesso e inclusivamente
conquistando, entre outras coisas, o prémio
de melhor canção na primeira edição dos
“Play – Prémios da Música Portuguesa”,
com a música “Estradas no Céu”, que conta
com a participação da fadista Raquel Tavares.
Nascido em Évora, sempre teve grande
paixão pelo futebol, muito influenciado
pelo pai, tendo mesmo feito curso de
Desporto na Universidade de Évora.
O seu amor pelo Benfica é simples de
explicar e a resposta foi clara: “Nasci Benfica”.
O poema jogado nas quatro linhas. A arte e o
engenho do futebol são verdadeiras rimas que
se escrevem sem caneta, que se fixam no papel
e que têm todo o potencial para ser musicadas.
“O futebol é uma dádiva de 90 minutos que se
vai repetindo vezes sem conta, como um bis
na música. E assim como na música, o futebol
tem o seu crescendo, juntando ali muitas vezes
nos últimos 10 minutos uma emoção incrível
onde nos põe com o coração na boca”, confessa
“O FUTEBOL QUANDO É BEM
PRATICADO LEMBRA UM
POEMA CANTADO”
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FPF360
“O FC PORTO PODERIA
SER COMPARADO
A UMA ORQUESTRA”
Fernando Daniel, autor de sucessos como
“Recomeçar” ou “Melodia da Saudade”.
Valas estabelece um paralelismo interessante
entre os dois “mundos”: “Compor uma música
tem semelhanças com a formação de uma
equipa de futebol, sendo que cada instrumento
pode ser visto como um jogador específico, que
tem a sua tarefa e responsabilidade na criação
da melodia”, conta o rapper português que
lançou recentemente o álbum “Animália”.
A música está bem presente no futebol.
Os cânticos dos adeptos, os hinos nacionais,
expressões como “maestro”, “carregador
de piano”, “solista”, entre outros. Por outro
lado, o que é que música tem do futebol?
“Tem os adeptos (fãs) que tornam os concertos
e espetáculos ainda mais incríveis, o trabalho
de equipa, a competitividade pelos tops
da música nacional”,
confirma Fernando Daniel.
Valas: “O futebol quando é bem praticado
lembra um poema cantado”
Não existe futebol bonito ou feio. Há futebol
bem jogado e mal jogado. Uma movimentação
defensiva bem articulada que retira espaço
à equipa adversária tem tanto de poético como
uma tabela bem executada no ataque que retira
três oponentes do lance. A explicação de Valas
é também ela simples: “O futebol quando
é bem praticado lembra um poema cantado”.
Alguns artistas celebrizaram as suas paixões
futebolísticas e, em alguns dos casos,
imortalizaram os seus ídolos em canções.
Em Portugal temos um excelente exemplo.
No tema escrito por Carlos Tê na música
“Não Me Mintas” de Rui Veloso, (“Voando
como o Jardel sobre os centrais”), celebra-se
a capacidade de Mário Jardel em superiorizarse
aos defesas adversários, tendo em conta
os inúmeros golos que marcou. Desafiado
a escolher um jogador atual do FC Porto
que merecesse semelhante homenagem,
Fernando Daniel foi apontou um e acrescentou
a importância dos valores do clube: “Dos que
estão neste momento acho que se há alguém
que merece pelo historial na equipa principal
seria o Pepe. Embora valorizando o trabalho
de todos, eu sou aquele tipo de pessoa que se
fosse treinador apostava muito na formação,
portanto também abordaria esse lado. O lado
daqueles que crescem com o símbolo do FC
Porto ao peito e um dia voam, em casa ou não,
mas mostram a qualidade da formação
e os valores deste grande clube”, realça.
FPF360 27
A lista de glórias do Benfica é longa. Eusébio deu origem a várias
canções, entre elas a da banda “Sheiks”, formada pelos ilustres Carlos
Mendes, Fernando Tordo ou Paulo de Carvalho. O grupo compôs
a música em 1966, depois da fantástica prestação da Seleção Nacional no
Mundial de Inglaterra desse ano. Para Valas, o antigo avançado brasileiro
Jonas merecia um reconhecimento “musical” pelo trajeto na Luz.
Fernando Daniel: “O FC Porto poderia ser comparado a uma orquestra”
Os dois artistas vibram de perto com os seus respetivos clubes.
A Supertaça Cândido de Oliveira Vodafone está aí e vai permitir
a conquista do primeiro título da temporada. As equipas são definidas
por um conjunto de fatores. Organização, disciplina, critério, confiança,
atrevimento, pragmatismo, segurança, etc. Apoiados em analogias,
que tipo de instrumentos seriam FC Porto e Benfica?
Fernando Daniel vê um conjunto em que todos têm um papel
fundamental: “O FC Porto poderia ser comparado a uma orquestra.
Cada jogador um instrumento. Por vezes leva tempo a harmonizar,
mas quando harmoniza soa melhor que nunca”, afirma.
Valas, por seu turno, tem uma opinião muito particular relativamente
ao “seu” Benfica: “É uma guitarra muito cara, mas desafinada”,
reconhece o autor de sucessos como “As Coisas” ou “Nuvem”.
Continuando nas analogias entre as duas artes, que género musical
será a Supertaça Cândido de Oliveira Vodafone? Os dois artistas
responderam e as opiniões são curiosas. Fernando Daniel não tem
dúvidas quanto à intensidade. “Será sem dúvida um Hard Rock.
Não será um jogo fácil e é o primeiro troféu da temporada.
A sede é muita e estou confiante na minha orquestra”, atirou.
Valas considera que o jogo será uma música “country”, por vezes
olhado com alguma desconfiança, mas que todos acabarão por
“dançar ao ritmo” da mesma.
Festa azul ou vermelha. Quem irá rimar melhor no dia 23 de dezembro?
Nesse dia é certo, independentemente de quem conquiste o troféu,
haverá festejos ao ritmo da música dos vencedores.
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PORTUGAL
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VISITE
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MÚSICA
E FUTEBOL:
UNIDOS
NUMA SÓ
PAIXÃO
FPF360 31
É ao som do apito do árbitro que se
dá início à leitura da pauta. À melodia
dos festejos de um golo. Às harmonias
do maestro no banco. E aos gritos
de alegria ou de tristeza, consoante
for o resultado. Acrescentar-se-ia
a este enumerar de sons, o “bruaá”
dos adeptos, não fosse a pandemia.
Música e Futebol existem para além
do distanciamento. Existem
no “isolamento” do jogador em equipa
num estádio vazio ou na “solidão”
de um artista com a sua banda num
palco sem público. E é porque existem
e se complementam que as unimos
nesta história. A história do Dino,
do Héber e do “Cristo”. A história
de quem viveu o futebol, antes de ser
totalmente arrebatado pela paixão
da música.
Aos 10 anos Dino era um miúdo franzino
e levezinho, que corria muito dentro de
campo. Jogava a extremo esquerdo. Não
marcava muitos golos, era mais de assistir
para as vitórias do Quarteirense, no Algarve.
Tinha crescido no Bairro dos Pescadores,
na altura “problemático”. E para aquele
miúdo magrinho, que hoje tem milhões de
seguidores por todo o mundo, o futebol foi a
salvação: “O meu treinador era o Amílcar, foi
das pessoas mais importantes para as crianças
e adolescentes de Quarteira dessa década de
80 e 90. Era um bairro problemático, com
drogas… O que salvou muitas daquelas crianças
e adolescentes foi mesmo o futebol. Eram
coisas tão simples quanto o poder tomar banho
lá, quando faltavam condições em casa, ou os
lanches que havia sempre. A nível social, essa
fase do Quarteirense foi determinante para
todos nós, que ainda hoje somos amigos. E já
passaram quase 30 anos.”
É assim que o cantor Dino D’ Santiago recorda
a infância e adolescência. Jogou futebol dos
10 aos 18 anos. “Ainda hoje recordo a voz do
Sr. Alvarinho, um adepto lá de Quarteira que
ia a todos os jogos e que gritava: “Vai Dino, vai
Dino, vai”. Tinha assim uma voz grossa e roca.
É a voz que mais tenho na minha cabeça, da
minha infância”, conta.
Já Dino jogava há 3 anos, quando mais a Norte,
em Cascais, Héber resolveu levar mais a sério
uma paixão que tinha desde criança. “O meu
pai é um amante de futebol. Desde da infança
sempre fui muito estimulado a gostar de
desporto. O primeiro presente que o meu pai
me deu deve ter sido uma bola. Sempre gostei
de jogar. Sempre fui muito ‘fominha’ [risos],
como se diz na gíria. Jogava aquelas peladas
no bairro, até que, aos 10 anos, um amigo meu,
o Afonso, me desafiou para ir ao Fontaínhas,
porque estavam a fazer captações. Ele já tinha
ido duas vezes. Dessa vez levou-me: eu fiquei,
e ele não ficou [risos]”, começa por
contar Héber Marques.
Jogou até aos juniores e chegou a ser
convocado para a seleção de Lisboa. Mas
não foi. Noutra ocasião, chamaram-no para
fazer testes no Belenenses. Também não
compareceu. Contudo, o vocalista dos HMB
tem uma explicação: “Para te ser muito franco,
adorava desporto, mas não tinha grande veia
competitiva. Se eu tivesse a mentalidade do
meu pai, tinha jogado à bola. Eu era aquele
jogador que rendia muito mais nos treinos
do que nos jogos, onde desaparecia um bocado.
Sempre tive uma cabeça de artista. Muitas
vezes estava nos jogos, mas a pensar noutra
coisa [risos].”
Tal como Dino, também Héber era o “rei das
assistências”, mas deixa uma confissão: “Sou
míope desde os 6 anos. E os treinos eram à
noite. A bola vinha, e eu já só a via muito perto!
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FPF360
Então, desenvolvi uma técnica. Eu via mais ou
menos como é que os meus colegas se estavam
a movimentar e era assim que seguia o jogo.
Era por intuição [risos].” À boa disposição,
Héber acrescenta as memórias: “A minha
mãe ainda me diz ‘Podias ter sido um grande
jogador’, mas mais porque ela, coitada, teve
de lavar muitas vezes os meus equipamentos
cheios de lama.”
Para Héber, a música até surgiu primeiro do
que o futebol. “Eu cresci no seio da igreja. A
música está bem no meio. Na barriga da minha
mãe eu já ouvia música. Comecei a cantar antes
de começar a falar. Mesmo assim, durante
muito tempo a música era uma coisa só minha.
Foi uma surpresa para os meus pais quando
perceberam que eu compunha canções.
Quando eles descobriram já eu tinha
umas cem”, recorda.
Já para Dino, depois do futebol, e antes da
música, veio a pintura. “Aos 18 anos, agarreime
mais ao desenho. Os treinos eram muito
rigorosos. Havia muito a disciplina do treino e
eu já começava a falhar”, recorda. Ainda assim,
admite que foi o futebol que lhe toldou a forma
de estar na música: “Dou sempre o exemplo do
futebol. Eu quero sempre fazer mais. Cada som,
para mim, é um golo. Cada concerto vencido
é conquistar uma taça. Eu vivo muito esse
espírito do futebol, da equipa, na música.
É a herança que me ficou do futebol.”
Uma herança de família. “O meu irmão é
ferrenho do Benfica. Ele consegue fazer o relato
de todas as ligas! Cria hinos para o Benfica. A
minha sobrinha Eva nasceu e a primeira foto
que tenho dela é o berçário com o cachecol
do Benfica por cima. Só via os pés da miúda
[risos]”, lembra Dino D’ Santiago.
E por falar nos encarnados, foi por lá que
começou a paixão pelo futebol para Miguel
Cristovinho. “Comecei nas escolinhas do
Benfica. Quando comecei a jogar, com 8
aninhos, lembro-me que era mesmo mau!
Era o último a ser escolhido. Aprendi a jogar
futebol ali. Não foi aquela coisa do ‘olha o puto
tem jeito para jogar à bola, vamos lá pô-lo no
Benfica’. Não, foi ao contrário, foi mais ‘ele
quer aprender’, vai para o Benfica”, começa por
explicar o músico dos D.A.M.A.
“Cristo” - como é tratado pelos amigos - fez
todos os escalões de formação no Benfica
até aos iniciados, passou pela “seleção do
Benfica, que era uma equipa um pouco mais
competitiva”, e chegou mesmo a competir,
como federado. Mas acabou por sair. Talvez
mais ou menos pela altura em que surgiu a
música, aos 13/14 anos, quando aprendeu a
tocar guitarra. A partir daí ainda formou uma
equipa com amigos, “malta que jogava, mas que
não fazia do futebol a prioridade número um”,
explica Miguel, que chegou ainda a jogar no
Operário FC até aos seniores.
E era um jogador versátil: jogava a médio
centro, a extremo esquerdo, ou a avançado.
“Era rápido, era grande, tinha bons pés. Como
tive formação, se o jogo estivesse a apertar,
o ‘mister’ tanto me punha a 10 como defesa
esquerdo [risos]”. Dos tempos do Benfica
lembra-se de olhar para os mais velhos e de
os ver jogar: Nélson Oliveira, André Almeida,
Cédric Soares, ou mesmo Cristiano Ronaldo
e Nani, nas idas à Academia do Sporting,
em Alcochete.
Também Dino tem muitos amigos que ainda
hoje jogam futebol: “Uns estão no Quarteira,
e outros no Quarteirense. E da nova geração
há alguns a jogar na Primeira Liga, na Grécia,
Alemanha, Inglaterra”, avança.
Para Dino, Héber ou Miguel, a paixão pelo
futebol foi-se mantendo. Mais à distância, mas
com aquele bichinho constante. “Lembro-me
que era muito fã do Barcelona por causa do
Romário, depois veio o Ronaldo Fenómeno, foi
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quando fiquei mais preso ao futebol. Depois
o Rivaldo, o Ronaldinho Gaúcho. Deixei de ser
adepto do Barcelona quando o Figo foi para
o Real Madrid. Mais tarde, tivemos
o Cristiano Ronaldo. Aí sou das equipas em
que o Ronaldo está”, confessa Dino D’Santiago.
E por falar em grandes jogadores, Miguel
Cristovinho já teve a oportunidade de jogar
com um dos melhores de sempre no futsal.
Foi em março de 2019, em Oliveira de Azeméis,
numa iniciativa da Associação de Futebol de
Aveiro. “Pois é, já joguei com o Ricardinho.
É incrível. Somos tão poucos[habitantes em
Portugal], e mesmo assim temos o melhor do
futebol de praia, o melhor do futsal e o melhor
do futebol. Conheci o Ricardinho quando
fomos tocar ao Porto e a seleção estava no
mesmo hotel que nós. Conhecemo-nos e
ficámos amigos ali. Quando ele veio a Portugal
para fazer o Jogo das Estrelas convidou-me. E lá
fui eu. Eu e o Fernando Mendes [risos]”.
Ora dessa tarde a jogar futebol, “Cristo” não
recorda nervos, por jogar com Ricardinho.
Tem, antes, outras memórias: “Já senti aquela
coisa que os mais velhos sentiam quando eu
tinha 16 anos. Vinham jogar à bola e eu jogava
muito melhor do que eles. E eles achavam que
ainda jogavam bem, porque sempre o tinham
feito. Só que depois percebem que já não jogam
há algum tempo. Eu já não faço coisas que o
meu corpo achava básicas. Já estou a ficar velho
[risos].”
Já lá vai mais de ano e meio. Hoje, o cenário
seria outro. Não existiria Jogo das Estrelas, e
muito menos adeptos naquele pavilhão. “É a
mesma coisa que dar concertos sem público. É
triste. Os jogadores motivam-se e superam-se
por toda aquela pressão adjacente à profissão
deles. Sem adeptos parece que é um treino”,
reage o cantor dos D.A.M.A.
Dino acrescenta: “É muito triste. Sempre que
fui a um estádio, tive experiências incríveis,
pelos adeptos. É bonito de sentir. Mesmo
quando as equipas perdem, no final sentes o
apoio. Devíamos aprender com esse exemplo
positivo. A parte ativista social que o futebol
tem é de uma relevância tremenda”. E ainda
para mais quando o convidamos a recordar a
melhor memória que tem do futebol: “Foi em
2016, quando fomos campeões da Europa. Eu
estava em Quarteira, em casa do meu irmão.
Não podia estar em melhor lugar. Quando o
Ronaldo saiu só pensávamos: ‘O que vai ser de
nós agora?’. Só que de repente, quando o golo
do Éder entra… foi o momento mais feliz que
eu vivi até hoje, foi uma explosão de euforia.”
Já Héber Marques confessa que durante o
confinamento até tem “prestado mais atenção
ao futebol”. “Quando deixei de jogar, fui-me
desligando aos poucos. E durante os quatro
anos de concertos dos HMB, não acompanhei
futebol de todo. Este ano, com a quarentena,
curiosamente, tenho prestado bastante
atenção ao futebol”, confessa.
E é essa atenção e apoio que Héber hoje
manifesta, que Dino pede aos adeptos. “Quem
está em casa, do outro lado, está mais presente
ainda. Aquelas pessoas que estão no campo
precisam de sentir o afeto dos adeptos.
As plataformas digitais dos jogadores devem
servir para os fãs mostrarem esse amor aos
jogadores, até os estádios estarem de novo
coloridos. Agora é o momento de provarmos
que somos bons ou maus adeptos”, defende
o autor do disco “Kriola”, que lançou
no último mês de abril.
Um ano atípico em que a Cultura sofreu e está
a sofrer demasiado. “A nível de concertos, a
cultura tem sido muito fustigada neste período,
ignorada até. Para ser fustigada tem de se
olhar para ela, e nem é o caso”, diz Héber que
começa agora a ter mais trabalho. Juntamente
com Tim, Agir, Carolina Deslandes e Bárbara
Tinoco, foi desafiado neste mês de dezembro
a criar o hino do novo projeto do Rock in Rio.
E colaborou ainda recentemente com os Bateu
Matou numa música chamada “Povo”. Quanto
aos HMB, para já, “a banda está mais parada,
até porque vem de 4 anos muito intensos de
estrada”.
Já Dino, confessa que em termos de carreira, “o
ano 2020 foi o pico”. “Por mais contraditório
que pareça, senti a afirmação de qual é a minha
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FPF360
intenção e o meu desejo na música. E neste
ano, mais pessoas conseguiram perceber qual
é o meu propósito. Essa autorrealização está a
manifestar-se. O ‘Kriola’ foi o meu disco com
mais streamings de sempre. Foi mais partilhado
à volta do mundo. Tenho cada vez mais países
a ouvir a minha música. Sinto o público cada
vez mais perto, com muitas manifestações de
carinho. É o que mais me alimenta a querer
fazer mais e mais”, admite Dino d’Santiago que
– recorde-se – em abril, participou no primeiro
momento “de desconfinamento em pleno
confinamento”, como o próprio refere. Foi no
dia 25 de abril, quando a Avenida da Liberdade,
completamente vazia, acolheu um concerto
com Branko e Dino D' Santiago. “Fiquei
arrepiado desde o momento em que entrei para
cantar o primeiro tema até ao momento em que
saí. Estive ali a conter a adrenalina enquanto
o Branko tocava. Eu, que via sempre aquela
avenida cheia de gente, de repente estava ali,
com aquele cenário que parecia belo, mas que
para mim foi dantesco… A Avenida vazia e o
nosso eco… sabendo que estavam milhões de
pessoas em casa a assistir. Penso que nesse
momento passou a mensagem de que tudo iria
dar certo”, recorda.
E é essa a mensagem que importa. De que
rapidamente voltaremos ao que éramos. É
isso que espera “Cristo” que, com os D.A.M.A.
lançou no final de outubro o quarto álbum
de originais. “É um disco completamente
diferente do que já fizemos até hoje. É um
disco totalmente novo, em que as pessoas
não conhecem nenhuma música e que
queremos que seja, do início ao fim, como
uma banda sonora. No final hás de ter tido
uma experiência. Esse é o objetivo”, explica
Miguel. “Estávamos muito motivados para
ir para a estrada e mostrá-lo às pessoas, mas
tivemos de adaptar os planos e agora estamos
na expetativa de ver quando é poderemos pisar
um palco de novo, ter o público connosco,
à nossa frente. Temos muitas saudades
de o sentir”, conclui.
FPF360 35
“A MARCHA
É MAIS UMA
PROVA DE QUE
CARLOS PAIÃO
É UM GÉNIO”
Falar de futebol e música é falar de hinos
que nos marcam. Músicas que rapidamente
nos vêm à memória quando pensamos
na paixão pelo jogo. E quem não se lembra
da música “Bamos lá cambada”? Estivemos
à conversa com Herman José sobre aquela
que foi uma das mais célebres personagens
que interpretou, o mítico “José Estebes”,
que dava as táticas a quem o ouvia, sempre
bem acompanhado com o seu jarro de vinho.
Quantas saudades lhe deixa
a personagem “José Esteves”
(ou “Estebes”, melhor dizendo)?
Felizmente nunca chego a ter saudades,
porque o Esteves e a sua “Bamos Lá Cambada”
é uma presença obrigatória em todos os meus
espetáculos ao vivo. Não raras vezes, também
o ressuscito no meu programa CÁ POR CASA
da RTP.
36
FPF360
Li que o Herman não era um grande apaixonado por futebol.
Gostava que me confirmasse ou não! E que me dissesse o quão
difícil (ou fácil) foi para si na altura fazer essa personagem?
A minha ignorância sobre o futebol, é proporcional ao gigantesco
respeito que eu tenho pela modalidade, daí me ser tão fácil evocá-la,
desde que devidamente assessorado.
O que foi o mais divertido e o menos de interpretar o “Estebes”?
O mais divertido foi o seu arranque no Tal Canal, em que contraceno
com o imenso José Maria Pedroto, e mais tarde no Hermanias, a mítica
entrevista ao Pinto da Costa, por quem tenho um carinho e respeito
imensos. O pior, foi a notícia da morte de uma das suas “alma mater”,
o histórico jornalista António Tavares-Telles.
Qual a melhor memória/episódio que guarda do Estebes?
Porventura a entrevista ao jovem Futre, também no Tal Canal, ainda
muito novo, muito tímido, a poucos meses de sair do Sporting para
o Porto. Lembro dos seus olhos a brilhar a olhar para o meu Golf GTI -
então carro de sonho para qualquer jovem. Anos mais tarde sentava-se
no seu Porsche amarelo oferecido pelo Jesus Gil. Foi a minha vez
de ficar com os olhos a brilhar. Tempos incríveis e irrepetíveis.
Uma curiosidade: o que é que tinha
no copo e na garrafa durante as gravações?
A princípio groselha. Um dia resolvi assumir o vinho tinto,
e foi uma catástrofe. Desisti imediatamente. Rigor artístico
e álcool não são compatíveis.
A personagem foi inspirada no seu agente do Porto, Cipriano
Costa. Como é que ele encarou/recebeu na altura a personagem?
O querido Cipriano Costa foi responsável pelo meu sotaque nortenho
irrepreensível. Hoje em dia não imito os portuenses. Limito-me a ser
portuense de alma e coração e tenho uma paixão avassaladora pela
cidade e pela grandeza e generosidade das suas gentes.
O “Bamos lá cambada” tornou-se num hino, uma marcha
do futebol que as pessoas ainda hoje sabem de cor. O que sente
hoje quando ouve essa música? Ou quando lhe falam dela?
Sinto sobretudo que a marcha, para além de genial, é mais uma prova -
se preciso fosse - de que o seu autor é um génio: o imortal Carlos Paião.
Que episódio mais caricato é que recorda num estádio de futebol?
Porventura o dia em que o gentilíssimo António Mexia me convidou
para assistir a um jogo do Benfica no camarote da EDP, e eu passei 90%
de tempo mais encantado com o que se passava na mesa do catering
do que com o jogo propriamente dito. Foi nessa altura, que quem me
acompanhava percebeu que eu era um caso perdido para o futebol. [Risos]
Bá lá Cambada
Infantes desportistas
Homens de conquistas
Povo que é do meu
Bola redonda onze jogadores
Em frente sem temores
Que as táticas dou eu
Tragam as gaitas, as bandeiras e o que mata
Vamos dar-lhes uma abada ensinar-lhes o que é bom
Bamos mostrar a esses caracunchosos
Dementes gloriosos quem é a nossa seleção
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
É atacar agora e defender pra fora
Eles são toscos nem dão pr’aquecer
Suar a camisola e até jogar sem bola
E disfarçar pró árbitro não ver
No intervalo solteiros contra casados
Fandangos sulas e fados
Pra aprenderem como é
Durante o jogo qualquer caso lá surgido
Pode ser resolvido à cabeçada e ao pontapé
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
Os portugueses já provaram muitas vezes
Saber ser os bons fregueses das grandes ocasiões
Nesta jornada nem que seja à pantufada
Nos seremos na bancada muitos mais de 10 milhões
(Viva Portugal, Portugal, Portugal)
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
Bamos lá cambada, todos à molhada
Isto é futebol total
Deixem-se de tretas
Força nas canetas e o maior é Portugal
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FUTEBOL
Natal é uma época em que somos
encorajados a cometer excessos de
tudo – comida, prendas para a família,
televisão. Este ano teremos, também,
grandes doses de futebol.
Nas páginas que se seguem, vamos
mostrar-lhe os sítios onde a bola vai
rolar e explicar a tradição que não
deixa o futebol parar em Inglaterra.
Vamos olhar, ainda, para um clube
alemão que festeja a quadra como
nenhum outro e revisitar a Trégua
de Natal de 1914: o momento em
que soldados britânicos e alemães
trocaram a guerra por um jogo de
futebol.
GRANDES JOGOS E
DECISÕES EM PORTUGAL
Chegaram as duas últimas semanas do ano.
Momento para comemorarmos o Natal
em família, com perú, bacalhau ou polvo.
Altura para trocarmos presentes e fazermos
maratonas de filmes em casa. O timing
perfeito para planear o novo ano.
Em anos anteriores, à exceção do Reino
Unido com o seu tradicional ‘Boxing Day’,
da Jupiler Pro League belga, que copia a
tradição britânica desde 2008, e de alguns
campeonatos no norte de África e Médio
Oriente, a maioria das ligas respeitou
a paragem proposta pelo calendário
e programa de festas cristãos. Em 2020,
será ligeiramente diferente.
A paralisação dos campeonatos
e o adiamento de várias partidas devido
à pandemia de Covid-19 sobrecarregaram
com jogos a reta final do ano. Em Portugal
e noutros pontos do mundo, o futebol
não poderá tirar férias no Natal.
No nosso país, haverá grandes jogos e
decisões. A animação começa na antevéspera
do Natal, a 23 dezembro, com a realização da
Supertaça Cândido de Oliveira, a meter frente
a frente o FC Porto, campeão nacional, e o SL
Benfica, finalista vencido da Taça de Portugal.
E continua nos dias 26, 27 e 29 de dezembro,
com seis jogos importantes de futsal,
referentes às meias-finais e finais das Taças de
Portugal de futsal masculino e feminino.
Para 27 de dezembro, estão marcados
quatro encontros da jornada 11 da Liga NOS,
que se estenderá até dia 29. A título
de curiosidade, em período homólogo do ano
passado, o último jogo da liga portuguesa em
dezembro foi disputado no dia 16, e o futebol
só regressou em janeiro de 2020. Também
haverá competição no segundo escalão
nacional, na Liga Portugal Sabseg, a partir
de 28 de dezembro.
No Mundo, vai jogar-se a 25 de dezembro.
Um jogo na Liga 1 da Turquia (segundo
escalão turco), quatro encontros na Bolívia
(Torneio de Abertura), dois na Liga da
Jordânia, sete na II Divisão da Arábia Saudita,
quatro em Marrocos, três encontros no Egito
e vários em Israel e na Palestina.
Em Inglaterra, o dia 26 vai ser preenchido
com jogos de várias divisões e abrirá com
um Leicester City-Manchester United. Com
restrições à presença de público – só entra
um máximo de 2000 adeptos nos estádios
localizados em zonas de baixo risco de
contágio de Covid-19 -, o Boxing Day em
2020 promete bater recordes de audiências
televisivas.
No principal campeonato brasileiro, são dez
os encontros a disputar a 26 e 27. A liga belga
também estará em competição nesses dias,
enquanto que a espanhola vai parar a 23 e
jogará a 29. Mais tranquilo é o calendário de
jogos em Itália, França, Alemanha e Grécia,
que permitirá aos clubes ‘hibernarem’ entre o
Natal e o Ano Novo e jogar só depois do dia 3
de janeiro.
38
FPF360
NO NATAL
FPF360 39
BOXING DAY – UMA
TRADIÇÃO COM 160 ANOS
Conduzir pela esquerda, fidelidade à libra
esterlina… Os britânicos seguem pouco as
tendências dos outros. Na economia como no
futebol. Enquanto a maioria dos campeonatos
europeus fazia paragens de Natal ou de
Inverno no fim do ano, o futebol no Reino
Unido seguia sem interrupções, oferencendo
grandes espetáculos a 26 de dezembro, feriado
nacional para os britânicos, conhecido como
Boxing Day.
Desde finais do século XIX que o Boxing Day
é um dia de culto para os britânicos. É um
dia aproveitado pelas famílias para fazerem
compras e irem aos estádios. São centenas os
jogos dos diversos escalões dos campeonatos
de Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte
disputados nesse feriado, enchendo os
estádios de adeptos, muitos deles de visita às
famílias, em clima de festa.
A origem do nome [‘dia das caixas’, em
português] tem sido alvo de inúmeras teorias.
Uma delas relaciona o feriado com um hábito
instituído na Idade Média: 26 de dezembro era
o dia em que o clero abria as caixas de esmolas
para dar presentes aos mais pobres.
Outra teoria entronca na generosidade de
grupos aristocratas britânicos que, na era
vitoriana, davam folga e presentes em caixas
aos seus criados, um dia após o Natal.
Uma última explicação aponta para uma
caixa com dinheiro levada pelos grandes
velejadores, para dar sorte quando se
lançavam ao mar. Se cumprissem a missão,
seria aberta e o recheio oferecido aos mais
desfavorecidos.
MAIS ANTIGO DO
QUE A LIGA INGLESA
O primeiro jogo de futebol do Boxing Day
foi disputado há 160 anos, em 1860, entre o
Sheffield FC e o Hallam FC. Na verdade, esse
foi o primeiro jogo de futebol jogado a nível
competitivo em toda a história, com a vitória a
sorrir ao Sheffield (2-0). A partida aconteceu
28 anos antes da fundação da Football League
(1888) – nome do principal campeonato
inglês, que se tornaria Premier League em
1992.
Na altura, a jornada do Boxing Day era
utilizada para a realização de dérbis locais que
colocassem mais adeptos nos estádios do que
a média do resto da temporada.
Antes de haver jogos na televisão, o futebol
no Reino Unido também se jogava a 25 de
dezembro. Mas, ao longo da década de 1950,
a prática no dia de Natal começou a ser alvo
de críticas negativas, ficando apenas o Boxing
Day como jornada de futebol por excelência.
O último jogo entre equipas britânicas no dia
de Natal realizou-se em 1959. Uma multidão
de 21 mil adeptos assistiu ao triunfo por 4-2 do
Blackpool.
JOSÉ MOURINHO
EM DESTAQUE
José Mourinho é o treinador com o melhor
desempenho no Boxing Day. O português
segue invicto com oito jogos positivos (seis
vitórias e dois empates), e ao serviço de clubes
diferentes: Chelsea, Manchester United e
Tottenham. No ano passado, Mourinho viu o
seu Tottenham vencer o Brighton por 2-1 no
Boxing Day.
O melhor marcador já não está em atividade: é
Robbie Fowler, antigo avançado do Liverpool,
com nove golos em 10 jogos. Já o Manchester
United é a equipa mais bem sucedida na
história do Boxing Day, tendo vencido 21 dos
26 jogos da Premier League efetuados nessa
data.
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FPF360
A JORNADA
LOUCA DE 1963
1963 foi o ano com mais golos e mais
espectáculo dentro das quatro linhas no
Boxing Day. Ao todo foram 66 golos em 10
jogos. Houve várias goleadas históricas a 26
de dezembro e 1963, desde o 10-1 do Fulham
ao Ipswich, ao 6-1 do Burnley ao Manchester
United e ao 8-2 do Blackburn ao West Ham.
FPF360 41
EM PORTUGAL
TAMBÉM SE JOGOU
NO DIA DE NATAL
O principal campeonato nacional já teve
jogos no dia 25 de dezembro. Foram dois e
ambos protagonizados pelo Sporting CP. No
primeiro, a contar para a 14.ª jornada da época
de 1948/49, os ‘leões’ golearam o Atlético por
5-1, no antigo campo do Lumiar, com um ‘bis’
de Peyroteo (54’ e 79’) e golos de Vasques
(49’), Jesus Correia (69’) e Albano (83’).
Martinho apontou aos 19 minutos o único
golo do Atlético.
O segundo jogo do campeonato nacional
disputado no dia de Natal aconteceu na época
seguinte, em 1949/50, outra vez no Lumiar [o
Estádio José Alvalade seria inaugurado a 10
de junho de 1956]. O Sporting CP, que chegou
em desvantagem ao intervalo, bateu por 2-1
o Elvas, graças à pontaria de Vasques (80’) e
José Travassos (87’). Casimiro apontou aos 26
minutos o golo alentejano.
Na primeira metade do século XX, houve
mais jogos a 25 de dezembro em Portugal,
uns a contar para campeonatos regionais e
outros com caráter amigável. Duante a década
de 1930, o FC Porto realizou vários jogos
no Natal, convidando equipas de nomeada
portuguesas e estrangeiras para disputarem
aquilo a que chamava de “Jogo de Natal” ou
“Jogo de Boas Festas”. Era um dos eventos
mais aguardados pelos adeptos azuis e
brancos.
Os eternos rivais dos ‘dragões’, Sporting CP
e SL Benfica passaram pelo “Jogo de Natal”.
A revista Stadium de 28 de dezembro de 1932,
descreve, por exemplo, um encontro em que
o FC Porto venceu o Benfica por 4-2 e “Vítor
Silva, capitão da equipe lisboeta, transportava
um lindo ramo de flores, oferecendo-o a
Waldemar – o capitão dos campeões.” A
mesma revista, no final de 1936, descreve
uma visita do SL Benfica ao FC Porto a 25 de
dezembro desse ano. O resultado foi um 3-3.
42
FPF360
QUANDO O NATAL
E O FUTEBOL
PARARAM A GUERRA
Aconteceu a 24 de dezembro de 1914, em
plena véspera de Natal. Nas trincheiras que
se estendiam do Mar do Norte até à Suíça,
na região de Ypres, perto da fronteira entre
França e Bélgica, soldados ingleses e alemães
suspenderam os combates armados para
abraçarem uma trégua.
A história, contada pela imprensa britânica
local e nacional, e alguma alemã, baseia-se em
cartas escritas na época pelos soldados das
duas frentes, que estavam em combate desde
julho de 1914. Descrevem uma noite fria com
queda incessante de neve e um momento em
que, nas posições britânicas, se escuta um
cântico tradicional de Natal.
Eram os alemães a entoar de forma
harmoniosa “Noite Feliz” [“Stille nacht,
heillige nacht”], clássico composto no século
XIX pelo austríaco Franz Xaver Gruber, e
traduzido para um sem número de idiomas.
Nessa noite gélida, soldados ingleses tinham
iluminado com velas as linhas inimigas, a
apenas 60 metros de distância, e os alemães
tinham decorado as suas trincheiras com
lanternas de papel. Ao escutarem cânticos
do lado alemão, os britânicos trautearam
também canções de Natal. Até que um oficial
alemão saiu do esconderijo para propor um
cessar-fogo: “Sou tenente, cavalheiros. Estou
fora do nosso fosso e vou caminhar na vossa
direção. A minha vida está nas vossas mãos.
Algum oficial vosso virá ao meu encontro?”.
Conversa entabulada entre oficiais das duas
fações. Termos da trégua definidos, apesar e
de os altos comandos dos países beligerantes
terem ignorado um pedido de cessar fogo
natalício ao Papa Bento XV.
Ingleses e alemães aceitaram enterrar
primeiro os mortos, que jaziam congelados
em “terra de ninguém”, e trocar presentes
depois – desde tabaco a garrafas de uísque,
passando por cerveja, chocolate, cintos,
diários e comida. No fim, a mais ousada
e inesperada decisão em tempo de guerra:
um jogo de futebol.
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SOPRO DE
HUMANIDADE
Frente a frente num campo improvisado
nas trincheiras, o regimento inglês de
Bedfordshire e tropas da Alemanha
disputaram com afinco um jogo naquele Natal
de 1914, com a vitória a sorrir alegadamente
aos germânicos [por 3-2].
A confraternização impressionou o autor
de Sherlock Holmes, a ponto de Sir Arthur
Conan Doyle descrever a trégua de 1914
como um sopro de humanidade. “Foi o único
episódio humano no meio das atrocidades que
mancham a memória da guerra”, escreveu.
50 JOGADORES
DE CADA LADO
Bertie Felstead, membro da brigada inglesa
que participou no jogo, e que recordou o
momento antes de falecer em 2001, com 106
anos, descreveu como foi: “Não houve um
jogo com regras num sentido tradicional.
Estavam umas 50 pessoas para cada lado.
Eu joguei porque gostava de futebol. Não sei
quanto tempo durou, provavelmente meia
hora, pois ninguém contava os golos”.
SÓ O ARAME
TRAVOU A BOLA
A partida terá sido interrompida quando a
bola murchou, ao bater violentamente contra
uma vedação de arame farpado. A trégua, essa,
terá durado até à meia-noite de Natal, em
alguns setores. E até ao primeiro dia do ano
seguinte, noutros. Seguiram-se mais quatro
anos de guerra sangrenta entre trincheiras.
Morreram acima de dez milhões de pessoas
até 11 de novembro de 1918.
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FPF360
GORROS, VELAS
E MÚSICA: A TRADIÇÃO
DO UNION BERLIN
É impossível pensar em futebol no Natal
sem mencionar a peculiar tradição do Union
Berlin. O emblema do leste da capitã alemã,
que tem estado a surpreender na presente
edição da Bundesliga, escalão para o qual
subiu em 2019, há muito que é famoso na
Alemanha, pela forma apaixonada como os
seus adeptos vivem o clube e o Natal.
Todos os anos desde 2003, os adeptos do
Union enchem o Estádio An der Alten
Försterei às 19h00 do dia 23 de dezembro,
para aí fazerem a sua festa de Natal. Levam
velas, cachecóis do clube e gorros de Pai Natal,
e recebem, à entrada, um caderno com letras
de músicas e o tradicional vinho quente.
Durante 90 minutos, tempo de um jogo de
futebol, entoam em uníssono cânticos típicos
de Natal, num evento que começou com 89
pessoas e que nos últimos anos rondou as
30 mil. Os que não conseguem bilhete para a
festa, conhecida como ‘Weihnachtssingen’
[cantoria de Natal, em alemão], podem assitir
a tudo em direto na televisão local.
É incomensurável a paixão da massa
associativa do Union Berlin. Adeptos que
chegaram a dar sangue em 2004, quando
o clube correu o risco de falência. Com
uma campanha intitulada “Sangra pelo
Union”, incentivaram as dádivas de sangue,
que na Alemanha são recompensadas
financeiramente, e conseguiram arrecadar
perto de 1,5 milhões de euros, precisamente o
valor de que o clube precisava para se manter
em competição.
Devido às medidas de distanciamento social
em vigor na Alemanha, e pela primeira vez em
17 anos, estes adeptos não poderão invadir
o estádio a 23 de dezembro de 2020. Mas o
Union já disponibilizou nas suas lojas oficiais
um pack gratuito para utilização em casa,
com os objetos que levavam habitualmente
para o estádio. À hora de sempre, todos
poderão cantar em casa, num sinal de união e
esperança em dias melhores.
FPF360 45
SENTIDO
DE MISSÃO
Os internacionais portugueses José Fonte,
Ana Borges e Diogo Queirós falaram à
FPF360 sobre a sua visão do futebol na época
do Natal e há um sentimento unânime: o
profissionalismo tem de imperar em qualquer
altura do ano.
José Fonte: “Jogar no
Boxing Day é especial”
Dezembro é um mês preenchido e feliz
para José Fonte. Além do Natal, tem
três aniversários: o dele, o da filha e o do
casamento. Houve épocas em que o mês
tinha ainda mais brilho para o internacional
português, quando estava em Inglaterra a
jogar no Boxing Day.
“Jogar no Boxing Day é especial. A atmosfera
é diferente de tudo o que já experimentei,
devido ao que se passa antes e durante o jogo”,
começa por dizer, para explicar que, “antes,
há o ritual de chegar ao estádio e ver famílias
inteiras eufóricas e ansiosas por verem a sua
equipa no relvado”. “Estão lá todas as idades,
é lindo!”, frisa José Fonte, que representa o
Lille há dois anos. Depois, durante o jogo, “o
ambiente é de uma envolvência inexplicável
que passa para o campo. Por isso é que há uma
intensidade única neste jogo”.
“Física e mentalmente, é um jogo exigente,
mas para mim sempre foi positivo e especial,
porque tinha os meus familiares no estádio
e marquei algumas vezes”, conta, a sorrir,
o central, conhecido como um dos heróis
do feriado britânico, por ter marcado nesse
dia para o Crystal Palace e também para o
Southampton.
Ana Borges: “Jogaria
no Natal e até na Páscoa”
Ana Borges representou a equipa feminina
do Chelsea de 2013 a 2016, mas nunca teve a
oportunidade de entrar em ação no Boxing
Day. “Na altura em que estive no Chelsea, o
formato da Superliga feminina era diferente:
jogávamos de janeiro a outubro. Não havia
jogos nessa data”, refere a internacional
portuguesa, que se mudou para o Sporting a
meio da época 2016/17.
A jogadora garante que “não teria problemas
em jogar no Natal e até na Páscoa”. “A
partir do momento em que queremos ser
profissionais de futebol, temos de estar
preparadas para jogar, seja em que dia for”,
esclarece, com convicção.
A internacional portuguesa admite que “seria
difícil não passar o Natal com a família”,
de quem é muito próxima, “e pior seria se
estivesse fora do país”. No entanto, tem a
certeza de que iria acostumar-se a jogar a
26 de dezembro: “Adapto-me sempre às
circunstâncias e iria habituar-me a jogar nesse
dia. A verdade é que desfruto de todos jogos
que faço”.
Diogo Queirós: “Não dá
para abusar na comida”
Natal é tempo de pausa para convívio e
televisão em família. Diogo Queirós aprecia
todo os momentos passados em casa na
quadra natalícia, sobretudo quando vê “os
filmes que a TV repete todos os anos e que
fazem sempre rir”, tanto a ele como aos
irmãos mais novos, a Matilde e o Martim.
Na época passada, não pôde viver a quadra
na sua plenitude porque jogou a 26 de
dezembro pelo clube Mouscron. Este ano,
no Famalicão, vai jogar a 27. Nada que tire o
sono ao internacional português: “No ano
passado, joguei a 26 na Bélgica, acho que foi a
primeira vez. Os meus pais e os meus irmãos
foram lá passar a quadra comigo. Não houve
tempo para festas nem excessos na noite
de consoada. Não dá para abusar na comida
quando se joga dois dias depois e eu tinha
treino na manhã de 25”, recorda.
Para o central, o Natal acabou por ter “um
gosto diferente”: “Para ser sincero, como
passei o dia 25 longe da família e a dormir
no hotel de estágio, acabei por não sentir o
verdadeiro espírito de Natal. Mas não me
queixo porque o dever é superior a tudo”. O
jogo em si, recorda, também pareceu “igual
aos outros”. “Foi mais um momento para
me apresentar a cem por cento e dar o meu
contributo à equipa”.
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FPF360
BPI ELEITO O BANCO DO ANO 2020 EM PORTUGAL,
PELA REVISTA THE BANKER, GRUPO FINANCIAL TIMES.
O vencedor deste prémio é selecionado pela equipa de editores e analistas da revista
The Banker, do Grupo Financial Times, uma conceituada referência editorial do sector
bancário e financeiro a nível mundial.
O BPI agradece esta distinção e tudo fará para continuar a merecer o reconhecimento
do mercado e dos seus Clientes.
Este prémio é da exclusiva responsabilidade da entidade que o atribuiu.
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AM R
A pandemia da Covid-19 afastou
os adeptos dos estádios. A ânsia
de voltar a ver um jogo ao vivo
aumenta a cada dia que passa
e a distância está cada vez mais
difícil de aguentar. Afinal,
futebol também é paixão.
Cachecóis ao pescoço, gargantas afinadas,
passo acelerado em direção aos estádios.
Costumava ser assim um dia de jogo.
Março de 2020 trouxe algo a que
os adeptos de futebol não estavam habituados:
a impossibilidade de irem apoiar as suas
equipas aos estádios, ficando longe dos palcos
de todas as emoções.
A partir desse mês, tudo mudou. A pandemia
da Covid-19 veio trazer mudanças drásticas
no estilo de vida das pessoas. Começaram
a ser pronunciados por todos alguns
termos que até então não eram muito
conhecidos, como “isolamento profilático”,
“confinamento” ou “zaragatoa”. No entanto,
não foi apenas o léxico dos cidadãos que
mudou. Foi também a forma de se viver.
Durante meses, o medo assolou a sociedade e
o distanciamento físico era uma necessidade.
Perto do verão as medidas de confinamento
foram aliviadas, mas o inverno não foi
um fiel amigo e retirou qualquer esperança
de regresso à antiga normalidade,
pelo menos até haver vacina para controlar
a doeça que mudou o mundo.
O futebol teve de se adaptar. Depois de uma
paragem de vários meses nas competições
da maioria dos países europeus, o desportorei
regressou. Mas não como o conhecíamos.
Desta vez não havia romaria aos estádios.
Não havia roulottes cheias antes do apito
inicial, nem os sorrisos nas bancadas de
milhares de adeptos que tinham esperado
uma semana inteira para regressar a um
lugar que lhes trazia liberdade e felicidade.
Não havia cânticos, incentivos ou palavras
de apoio. Não havia gritos de festejo ou tiques
nervosos. Não havia o brilho de outrora,
porque não havia adeptos. Ouviam-se, sim,
vozes isoladas no relvado: as correções
dos treinadores, os incentivos do capitães,
os festejos dos…suplentes. Existia um eco
de gritos num sítio que não foi feito para
estar vazio. O golo passou a ser celebrado
por dezenas, em vez de milhares (pelo menos
presencialmente). Os troféus passaram a ser
festejados longe dos que nunca falham com
o seu apoio. Chamaram-lhe “novo futebol”.
À D
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VOZES DA
SAUDADE
A FPF360 foi tentar perceber de que forma
os adeptos se estão a adaptar aos novos dias,
sem poderem acompanhar de perto um amor
nascido, criado e fomentado ao longo
das suas vidas.
Falámos com quatro adeptos de clubes
diferentes, que disputam três divisões
distintas: FC Paços de Ferreira (Liga NOS),
GD Estoril Praia (Liga SABSEG Portugal),
Amora FC e Clube Oriental de Lisboa
(Campeonato de Portugal).
Qualquer um deles se assume como
um apaixonado pelo seu clube. As razões
dessa paixão são variadas, até porque
um amor nunca nasce da mesma forma.
Joaquim Ferreira Barbosa é conhecido
como “Sr. Barroso”. Podíamos facilmente
encontrá-lo nas bancadas de todos os jogos
no Estádio Capital do Móvel e em muitos
fora de casa, a apoiar o seu Paços de Ferreira.
Hoje, com 66 anos, assume-se como adepto
ferrenho de um clube pelo qual
é apaixonado desde tenra idade.
Francisco Braga, gestor hoteleiro e adepto
do Estoril Praia, é bisneto de um fundador
do clube, pelo que o sentimento pelos
‘canarinhos’ lhe está nos genes. Talvez seja
também por isso que considera os outros
aficionados do clube como se fossem a sua
família. Define-se como um “adepto exigente
com o clube e com a SAD”, fazendo questão
de estar presente em todos as partidas
no Estádio António Coimbra da Mota,
assim como no máximo de jogos quando
a formação estorilista se desloca ao terreno
dos adversários. É um registo que mantém
há muitos anos, quer com o clube
na II Divisão B, quer na Liga Europa.
Já Luís Afonso é orientalista de coração.
Atualmente a trabalhar num restaurante
de um antigo jogador do Oriental, já teve
a seu cargo a missão de servir as refeições
aos atletas do seu clube antes dos encontros.
Sentia-se parte da equipa e gostava de pensar
que tinha a sua quota parte no sucesso da
mesma. Do restaurante seguia para o jogo,
sempre. Ele estava lá, presente em mais
de 80% dos jogos do Oriental na temporada.
Por último, temos o homem mais experiente
deste quarteto. José Manuel Bordonhos
é o atual sócio número 1 do Amora FC.
Do alto dos seus 84 anos, afirma que sente
saudades do “futebol à antiga”, embora
continue a estar atento à realidade do clube.
Alguns problemas de saúde impossibilitaramno
de ser, nos últimos tempos, ser figura
constante no Estádio da Medideira,
embora tenha registos de uma vida inteira a
acompanhar o clube da região de Setúbal e
histórias de deslocações “para dar e vender”.
A sensação é unânime: as saudades de voltar
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a um estádio “apertam” mais à medida que o
tempo passa. Cada um arranjou as suas formas
de substituir as emoções que só o futebol - ao
vivo - traz. “Custa muito. No verão até fiz algo
de que não gosto, que é assistir a treinos. Era
a minha forma de compensar o facto de não
poder assistir aos jogos!”, conta Francisco
Braga, adepto do Estoril Praia. Contudo,
hoje em dia já arranjou nova estratégia:
“Costumo ir receber a equipa quando joga
em casa. Depois vou ver o jogo a um café
ou a um restaurante. Por norma, escolhemos
um local nas instalações do clube. Assim
sempre posso pensar que estou no estádio,
apesar de ser algo profundamente irritante
- estamos tão perto, mas ao mesmo tempo
não conseguimos ver nada…”
Já o Joaquim Barbosa lamenta que
esta pandemia lhe ter retirado algo que
ele valorizava tanto quanto ver os jogos
no estádio: o convívio com os jogadores
e treinadores do Paços de Ferreira, algo
que para si “era uma emoção muito grande”.
Percebe as medidas, mas não esconde
que lhe custa “mesmo muito”, até porque
“um domingo sem futebol não é domingo”:
“Ainda estou a trabalhar e, como toda a gente,
passo a semana à espera que chegue o fim de
semana por dois motivos: descansar e ir ao
futebol, especialmente a segunda porque
é o que nos dá aquela emoção e aquela alegria.
Infelizmente não tem sido possível…”.
Luís Afonso tem colmatado a ausência do
estádio com os canais dedicados ao desporto.
A sua vida foi alterada de forma substancial,
quanto mais não seja porque o domingo
deixou de ser dia de trabalho e de proximidade
com os protagonistas do seu emblema pelo
qual sempre torceu. Nem todos os jogos são
transmitidos na televisão, no Campeonato
de Portugal, é comum haver transmissões
através de plataformas digitais. O adepto
do Clube Oriental de Lisboa admite que
essa é uma boa ajuda, mas também assume
que a ansiedade aumenta sempre, até porque
de vez em quando lá surgem os habituais
problemas com a internet.
José Manuel Bordonhos, por seu turno,
mostra algum desgosto por ver a situação
prolongar-se tanto tempo. “É uma tristeza,
é muito diferente o futebol. É a mesma coisa
que uma artista estar a cantar o fado e não ter
ninguém para a aplaudir no fim”, compara.
O barbeiro e cabelereiro unissexo não
esconde que muitas vezes utilizava o futebol
como escape, algo que em jovem até lhe
deu “alguns problemas” por se exaltar.
Francisco Braga, por seu turno, concorda
que o futebol era um escape para descarregar
algumas frustrações, mas “no bom sentido”.
E explica: “O jogo era aquela altura em que
nos abstraíamos, fazíamos uma espécie de
limpeza mental”, recorda, ao mesmo tempo
que lamenta não poder acompanhar o bom
momento da equipa mais de perto: “As coisas
até nos estão a correr bem e vivemos a semana
inteira à espera do próximo jogo, mas depois
no dia é uma tristeza enorme porque não
podemos ir ao estádio.”
Também Luís Afonso assume que o futebol
possa ser utilizado para separar a vida pessoal
da profissional para a maioria das pessoas,
apesar de não se rever nas atitudes das
pessoas que optam por fazê-lo criticando
os jogadores adversários ou a equipa de
arbitragem. O orientalista assume-se como
um adepto calmo e racional na grande maioria
das vezes. E frisa que jamais o encontraremos
a injuriar um jogador adversário: “Até penso
que, se calhar, posso estar a criticar um
jogador que um dia defenderá as nossas
cores e temos que o respeitar. Quando
eu estou a atender clientes também
gosto de ser respeitado”, defende.
Quando questionados sobre aquilo de
que sentem mais falta nos dias de jogos,
encontramos novo denominador comum:
o convívio. Os petiscos de pré-jogo,
as previsões de resultados e marcadores
ou as conversas na bancada terminaram,
pois o distanciamento físico tornou-se
imperativo em nome saúde.
E os outros?
Embora o futebol não seja o mesmo sem
adeptos, são igualmente indispensáveis
os jogadores e os clubes. Também eles têm
sofrido com a ausência de público
nas bancadas, pelos mais diversos motivos.
Os adeptos com quem falámos têm noção
disso e opiniões semelhantes. Ninguém
beneficia com estádios vazios. Contudo,
há pequenos momentos do jogo em que
nem tudo é mau. Enquanto José Manuel
Bordonhos e o Joaquim Barbosa defendem
não haver qualquer vantagem para
os futebolistas, Francisco Braga considera
que a ausência de público pode não ser tão
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prejudicial para a sua equipa nos jogos fora
de casa, especialmente contra as melhores
equipas portuguesas. Contudo, o adepto
estorilista preferia sempre que a equipa
“canarinha” jogasse com o apoio dos seus fãs.
Também Luís Afonso aponta um momento
em que a ausência de público pode não ser
tão negativa: não haver a pressão de adeptos
que privilegiam a crítica ao elogio. “A única
vantagem só poderá estar em não ter esse
tipo de pessoas a condicionar as suas ações.
Tirando isso, não acredito que haja
nenhuma vantagem”, diz.
Os problemas que a pandemia trouxe
aos clubes de futebol não estão apenas
relacionados com os seus jogadores.
A ausência de público nos estádios trouxe,
por exemplo, repercussões financeiras
inevitáveis, mas Francisco Braga teme
outras perdas para o “seu” Estoril. “Não
indo ao estádio, as pessoas desassociam-se
mais facilmente. Isso é um desafio que as
estruturas vão ter. Quando isto passar, terá
que se chamar novamente o público. Nós já
tínhamos esta questão antes da pandemia
e até é uma das críticas construtivas que eu
costumo fazer: vivemos num concelho com
muita população e temos um número muito
limitado de sócios e adeptos no estádio.
Todo o trabalho que tínhamos vindo
a fazer, de trazer mais gente, vai ter que
ser recomeçado do zero porque as pessoas
desinteressaram-se do clube”, salienta.
OLHOS
POSTOS
NO FUTURO….
QUE DEMORA
A CHEGAR
Até a situação mudar, resta-lhes sonhar com
o dia do regresso. Esta é uma ocasião bastante
ansiada, pelo que já todos pensaram no que
farão no dia em que puserem de novo um
pé nas suas ‘segundas casas’. Quando foi
questionado sobre isto, Luís Afonso pediu
para prepararmos os ouvidos, inspirou fundo,
ganhou fôlego e, com toda a pujança, soltou
“C.O.L.!!!!!!”. É este o grito de guerra do clube
de Marvila, que o seu pai lhe ensinou e que
repete religiosamente antes de cada jogo
a plenos pulmões. Talvez mais calmo será
Francisco Braga, que diz ter curiosidade para
ver o estado da sua cadeira e se a etiqueta com
o seu nome e número de sócio ainda lá está. No
entanto, independentemente disso, o que mais
quer é poder estar acompanhado, pela primeira
vez, do seu filho de três anos. A pandemia
adiou o desejo de partilhar as emoções de um
estádio e a vontade em conjugar dois dos seus
amores está maior a cada dia que passa. Por
sua vez, Joaquim Barbosa assume que tem
mais vontade de voltar a poder estar ‘perto’
dos jogadores e não esconde que os vai tentar
cumprimentar, além de lhes dar umas palavras
de incentivo. José Manuel Bordonhos garante
que também irá voltar a um estádio.
Os 84 anos não o fazem perder a vontade
nem o amor pelo futebol e pelo clube.
Num dia de jogo há sempre três resultados
possíveis e no final da partida pode haver
expressões faciais mais e menos felizes.
É assim mesmo o mundo do desporto.
Porém, ninguém sai apático, porque um estádio
cheio não é um sítio qualquer. É um local
onde somos ‘engolidos’ pelas emoções: onde
choramos, rimos, gritamos e nos apaixonamos.
Apaixonamo-nos por este desporto tão
emblemático como é o futebol e nos tornamos
adeptos de algo que move milhões. Sendo
a “esperança a última a morrer”, pode ser que
um dia voltemos a estar como há uns meses:
juntos, num estádio de futebol repleto
de pessoas que só por ali estarem já têm algo
em comum connosco. O mais bonito é que essa
causa comum chega a ser tão forte que muitos
de nem as precisam de se conhecer para que
sejam uma espécie de família momentânea.
Futebol é paixão, é emoção, é família.
O futebol é dos adeptos.
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UMA DÉCADA EM
IMAGENS
Dia da minha apresentação como selecionador
nacional sub21, junto daqueles com quem
tenho partilhado este espaço e que têm sido
fundamentais durante todo este trajecto.
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Rui Jorge completou 10 anos como
Selecionador Nacional sub-21 no
passado mês de novembro e a FPF360
desafiou-o a escolher e legendar 10
fotografias marcantes deste período.
O resultado final pode ser visto nas
próximas páginas
Recortes dos jornais
que me foram oferecidos
do primeiro jogo como
selecionador dos sub 21
e que ainda hoje permanecem
no nosso gabinete.
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1º apuramento por nós
conseguido após vencer a
Holanda no Play-off para a
fase final 2015, numa altura
em que apenas 8 equipas
disputavam as fases finais.
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Momento de profunda
tristeza e que custou
e continuará a custar uma
enormidade, mas que penso
ser elucidativo de um valor
que procuramos ter sempre
presente: RESPEITO pelo
adversário.
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Fotografia simples, mas com grande
simbolismo a que tirámos à porta
do nosso gabinete no 1º dia nas
novas instalações da FPF - CIDADE
DO FUTEBOL. Local onde temos passado
muitos dias e muitas
horas desde então. Passo
estruturante na vida da FPF que tivemos a
felicidade de “viver por dentro”.
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Dia em que foi oficializado
o prolongamento da nossa
continuidade por um período
de 4 anos. Marcante, pela
confiança em nós depositada
e pelo facto de por vontade
de ambas as partes,
estabelecermos aquela que é
hoje em dia, uma das 5 mais
duradouras ligações, de todo
futebol sénior Mundial ao
nível de Seleções.
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Uma sonho de miúdo que tive a felicidade
de voltar a viver - disputar uns JO. Depois
de o ter feito como jogador, a presença como
treinador numa prova de muito difícil acesso.
Uma prova que nos obrigou a uma
organização e adaptação distinta,
pois é uma realidade completamente
diferente daquela a que estamos habituados.
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Primeiro dia em que ficamos
na “Casa dos atletas”. Um
momento por si só memorável,
que foi “abrilhantado” com
uma surpresa. No quarto em
que fiquei, um quadro alusivo
ao meu aniversário, com várias
imagens do meu percurso ao
longo dos anos na FPF, quer como
jogador, quer como treinador. Um
“pequeno” gesto com um enorme
valor para mim.
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Para celebrar os 10 anos de ligação com a FPF,
o mais recente apuramento para uma fase final.
Mesmo num ano tremendamente difícil para
todos, continua a ser gratificante e motivador
ver estes sorrisos carregados de ambição.
Chegar à nossa principal seleção é o que os
norteia! Já nós, nestes 10 anos, temos tido a
felicidade de ver muitos destes sorrisos terem
um final feliz... e com isso, poder sorrir também.
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Por serem apenas dez momentos, deixo para terminar
uma das fotografias que mais gosto, e com a qual
gostaria de simbolizar todos os jogadores que nos têm
representado nos sub 21 ao longo destes 10 anos.
Independentemente dos diferentes resultados de várias
gerações, a PAIXÃO, UNIÃO e AMBIÇÃO aqui representadas,
foram, juntamento com o RESPEITO, transversais a todas elas
e serão sempre um alicerce na representação do nosso País.
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CARECA
“NÃO PODÍAMOS ESTAR
À ALTURA DE MARADONA,
MAS SE ESTIVÉSSEMOS
SÓ 30 OU 40% ABAIXO
JÁ O PODÍAMOS
AJUDAR BASTANTE”
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A notícia da morte de Diego Armando
Maradona, “El Pibe” para o mundo do futebol,
apanhou todos desprevenidos no dia 25 de
novembro de um ano de 2020 inesquecível
pelos piores motivos. A FPF 360 não podia
deixar passar em claro o desaparecimento
de uma lenda do jogo e entrevistou uma
das pessoas mais próximas do antigo
internacional argentino: António de Oliveira
Filho. Talvez não esteja a ver quem é, mas se
falarmos de “Careca”, o parceiro de Maradona
na frente de ataque de um Nápoles que
surpreendeu a Europa do futebol no final
da década de 80, será certamente mais fácil
de identificar. Agora com 60 anos, o antigo
internacional brasileiro fala de tudo: desde
a “telepatia” com Maradona nos relvados
até aos churrascos fora deles, passando por
rivalidades míticas entre Brasil e Argentina
ou Nápoles e Juventus. A ligação umbilical
a Portugal – os avós maternos de Careca,
Maria e Augusto, eram madeirenses de gema
– também não foi esquecida numa conversa
descontraída e aberta.
O que é importante que
as gerações mais novas saibam
sobre Diego Armando Maradona?
A diferença dele é que foi sempre uma pessoa
leal. A lealdade dele com os seus amigos, com
as pessoas com quem convivia no dia-a-dia,
com a família que ele constituiu. Acho que
esse é um legado mais importante que ele
deixa. Convivemos muito tempo e sei dessa
paixão dele pela lealdade. Nesse sentido,
não é preciso falar do seu evidente potencial
técnico para o futebol, mas da pessoa que
lutava pelo próximo – o companheiro que
fazia parte da equipa ou o amigo que estava
em maiores dificuldades. O Diego batalhava
para que as pessoas se “levantassem” e fossem
grandes também. A nossa amizade foi muito
verdadeira e continuo a admirá-lo, mesmo
não estando ele mais entre nós.
Nunca esquecerei a pessoa que foi.
Um internacional argentino e outro
brasileiro, companheiros de equipa
e amigos no final da década de 80.
Nenhum de vocês viu aqui
um “conflito de interesses”?
A rivalidade entre Brasil e Argentina sempre
foi grande, mas nós respeitávamo-nos.
Claro que quando representávamos as nossas
seleções ia cada um para seu lado e lutávamos
pelos nossos países até à exaustão, mas
o respeito nunca faltou. Mesmo quando
o Brasil foi eliminado pela Argentina no
Campeonato do Mundo de 1990, em Itália
[1-0 nos oitavos de final, com um golo
de Caniggia]. Depois do jogo ele foi o primeiro
a vir ter comigo para me dar um abraço
e para ser solidário. Vivia intensamente e
queria ganhar sempre, mas entre Brasil e
Argentina nós sabíamos que tudo podia
acontecer. Jogámos várias vezes um contra
o outro e tenho muitas recordações desses
encontros. Houve um até em marquei
um golo lindo, maravilhoso, de pontapé
de bicicleta [5 de maio de 1985, vitória do
Brasil por 2-1 no Estádio Fonte Nova, em
Salvador, no estado da Bahia]. Quando
terminou, só comentávamos isso – “Careca,
o que foi aquilo?!” – e ele não parava de me
elogiar. Nós sabíamos a capacidade que
o Maradona tinha de conduzir a bola em
progressão. Tanto que em 1990 dissemos à
equipa técnica que ele devia ter uma “atenção
especial”, uma marcação individual. Não
foi isso que aconteceu, ele ficou foi apenas
marcado à zona e ficou mais à vontade. Até ao
momento do lance em que ele “costurou” 5
ou 6 jogadores nossos, “achou” o Caniggia e
saímos da competição.
Como foi o início da vossa relação?
A primeira vez que convivemos foi em 1986,
na gala que a FIFA organizou em Paris após
o Mundial do México. Eu fui receber a minha
Bola de Prata, já que fui o segundo melhor
marcador daquela competição, com 5 golos,
só atrás do inglês Gary Lineker, que marcou 6.
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Nós estávamos na mesma mesa, começámos
a conversar enquanto jantávamos e foi aí que
tudo começou. Logo no ano seguinte, em 1987,
transferi-me para o Nápoles e a primeira vez
que eu o encontrei lá foi já na segunda semana
de treinos – deviam ser os mais puxados
fisicamente e ele deixou-me “sozinho” [risos].
Apareceu num domingo à tarde, bateu à
porta do meu quarto e quando entrou…esse
momento foi emocionante para mim. Era um
sonho jogar ao lado do Maradona, eu queria
fazer história com ele e foi isso que se acabou
por passar. Demos um abraço, desejou-me
boa sorte e disse que estava disponível para
tudo o que precisasse. Demo-nos logo muito
bem, sendo que em campo era tudo mais fácil
porque falávamos com os pés e, por vezes,
com o olhar.
Como eram os treinos com Maradona?
Parecia um malabarista. Tinha um alto
domínio da bola, fosse ela de que tamanho
fosse. Escondia o esférico com a sua técnica.
Normalmente uma pessoa com essa
habilidade podia apenas exibir-se, de vez
em quando, sem qualquer objetivo concreto.
Mas ele fazia isso em campo todos os
dias e para ajudar a sua equipa! Saía-lhe
naturalmente, mesmo quando não tinha
espaço, num contexto de maior dificuldade,
muitas vezes marcado impiedosamente.
Tornava o difícil em fácil. Encantava toda
a gente. Era só passar-lhe a bola e ele resolvia.
Saía sempre bem de qualquer situação,
mesmo que o passe fosse mau, que estivesse
a chover, que o campo estivesse pesado,
que os adversários não o largassem. Foi
um fenómeno, um génio. No entanto, eu não
concordo quando me dizem que era fácil
jogar ao lado do Maradona. Pelo contrário!
Era muito mais difícil porque tínhamos
de estar sempre preparadíssimos. Ele tinha
um dom, estava à frente de toda a gente. Para
o acompanharmos…às vezes nem dormíamos!
Não podíamos pisar a bola, cair e passar
uma vergonha. Melhorar a nossa parte
técnica era, por isso, um desafio diário.
Não podíamos estar à altura de Maradona,
mas se estivéssemos só 30 ou 40% abaixo
já o podíamos ajudar bastante.
Qual foi o segredo do sucesso da dupla
atacante que construíram no Nápoles?
Eu era muito rápido e ele tinha uma excelente
visão periférica. Tinha a sensibilidade exata
para fazer o passe sempre antes de eu estar
fora de jogo. Encontrava-me em campo
com muita facilidade e eu também procurava
posicionar-me da melhor forma para que
ele me pudesse achar facilmente. Tínhamos
jogadas ensaiadas, mas eram sempre
imaginadas para que eu pudesse receber
a bola “nas costas” dos defesas. Ele dava-me
algumas no pé, mas treinávamos sobretudo
para que eu pudesse atacar a profundidade.
O Diego sabia que havia uma grande
probabilidade de eu chegar à bola antes
dos adversários. Também tentávamos ao
máximo ganhar faltas perto da área. A partir
daí era só ele ir lá e, com aquela precisão que
sempre teve, cobrar [o livre] direto. Muitas
vezes resultava em golo, claro. Havia uma
telepatia muito forte entre nós, uma interação
enorme nos 90 minutos. Estávamos sempre
a comunicar, mesmo que muitas vezes nem
fosse preciso falar.
Já disse que se divertia em campo com o
Diego Maradona, mas como conseguia isso?
Nós esforçávamo-nos por dar espetáculo!
Sempre com muita objetividade. Ele
inventava bonito! Os toques, as tabelas,
a velocidade de execução, sempre sem
humilhar ninguém. Eram ações simples,
objetivas, que tornavam as jogadas elegantes.
Com bom ou mau tempo, bom ou mau
relvado, tentávamos sempre criar situações
espetaculares. Os golos nasciam a partir
dessa simplicidade de processos. O nosso
simples era muito bonito. Tudo isso
resultava da nossa vontade de encantar
o público. Jogávamos por eles, que nos
acompanhavam sempre. Tentávamos
dar espetáculo para a nossa cidade.
Mas dois apenas dois jogadores não
conseguiam o sucesso que o Nápoles teve
nessas temporadas, com a conquista de dois
campeonatos italianos (1986/87 e 1989/89)
e de uma Taça UEFA (1988/89).
É verdade. Acontece que nós pertencíamos
a uma equipa do Sul de Itália e havia – ainda
há – uma grande rivalidade com o Norte
As pessoas lá são mais pobres, passam
mais dificuldades, muitas vezes não são
reconhecidas. O Maradona conseguiu
transformar o clube e mobilizar o povo
napolitano. Deu alegria, dignidade, e ajudou o
Nápoles a projetar-se mundialmente.
No entanto, era muito difícil porque para
ganhar um “Scudetto” [campeonato italiano]
é preciso ter um plantel pelo menos com 15
jogadores sempre a alto nível. Muitas vezes
nós não “tínhamos” mais que os 11 que
entravam em campo. O Milan, a Juventus,
o Inter…tinham 20 jogadores que eram
verdadeiros fenómenos. Era mesmo muito
difícil, tanto é que nós dizíamos sempre que
um campeonato ganho pelo Nápoles valia por
10. Essas glórias que tivemos foram mesmo
muito suadas. É por isso que ainda hoje somos
valorizados e os adeptos nem nos deixam
caminhar tranquilamente
pelas ruas da cidade. Têm paixão
pela forma como conseguimos mudar
a história de um povo tão caloroso.
Consegue eleger o jogo mais marcante
que teve ao lado de Diego Maradona?
A Juventus sempre foi o nosso grande rival
e tivemos vários confrontos com eles que
foram inesquecíveis. Houve uma eliminatória
mítica da Taça UEFA 1988/89, em que os
eliminámos com uma vitória em casa por
3-0 após prolongamento quando tínhamos
perdido a primeira mão por 0-2 em Turim.
Ultrapassá-los dessa forma, nos quartos
de final de uma competição europeia, foi
sensacional. Claramente um dos jogos que
mais me marcou. Também me recordo de
um triunfo por 5-3 que conseguido em casa
deles, num jogo de campeonato, em que
marquei 3 golos [20 de novembro de 1988].
O guarda-redes da Juventus nesse jogo era o
[Stefano] Tacconi. Nós adorávamos infernizar
os adversários, eles não estavam habituados à
nossa velocidade, à nossa intensidade, sempre
com qualidade técnica.
É público que a vossa relação ia muito
para além dos relvados. O que faziam
nos tempos livres?
Fazíamos churrascos, uma boa feijoada,
por vezes em minha casa, por vezes em casa
do Diego [Maradona]. Havia dias para tudo,
mas não tínhamos muito o lado social porque
o fanatismo dos adeptos não o permitia.
Só estávamos em restaurantes depois das
2h, quando fechavam ao público. A essa
hora é que lá íamos jantar, muitas vezes.
Convivíamos muito com os nossos colegas,
inclusive os italianos, mas sempre em casa.
Talvez por isso, o Diego gostava muito
de ver televisão. Acompanhava campeonatos
de futebol de menor expressão e muitos
outros desportos, como boxe, ténis ou
basquete. Na música adorava tango, claro,
mas também gostava da lambada, do samba
e do sertanejo do Brasil. Admirava também
música italiana e gostava de a cantar. Havia
muitos artistas, como Eros Ramazzotti, que
estavam no início da carreira e iam ver os
jogos do Nápoles. Acabávamos quase sempre
por ter contacto com eles e era fácil seguir
o seu trabalho. No inverno, quando dava,
também viajávamos porque ele gostava
muito de esquiar – em Itália ou no estrangeiro.
Tínhamos de nos esconder dos adeptos, mas
a verdade é que se o Diego viesse connosco
ficava tudo mais complicado, era uma
loucura por onde quer que passássemos.
Ninguém o deixava em paz. Era muito
querido e não havia qualquer possibilidade
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de ter uma vida normal. No entanto, era uma
pessoa simples, de família pobre, criado
num bairro complicado. Por isso sempre
viveu com a alegria de tentar transformar a
vida das pessoas para melhor, pelo menos
momentaneamente, através das suas jogadas
e dos seus golos.
Que tipo de líder era Diego Maradona?
Era muito carismático. Envolvia os adeptos,
a imprensa, o staff, a direção em torno da
equipa. É verdade que também era polémico,
mas foi muitas vezes mal-interpretado.
Procurava sempre o bem, não fazia mal a
ninguém. Em campo usava as artimanhas que
fazem parte do futebol, mas ao mesmo tempo
contagiava toda a gente. Todos iam com ele
para a “guerra”. Fazia a diferença pelo seu
valor e pela atitude que colocava em campo.
Levava muita pancada e nunca protestava com
os árbitros. Era sem dúvida o n.º 1 do mundo.
Como era a relação com dele com
os companheiros e toda a gente
que rodeava a equipa?
Claro que ele decidia sozinho vários jogos,
mas nunca deixou de enaltecer os seus
companheiros. Sempre teve uma relação
excelente com todos. No período em que
jogámos juntos nunca o vi chatear-se
com ninguém. Por vezes, cobrava: pedia
para jogarmos mais, para ninguém se
desconcentrar nos momentos decisivos.
Ele não gostava de perder, nem num jogo
de preparação. Personificava muito
o espírito argentino, tinha muito caráter e
personalidade. Lembro-me que tinha um
treinador pessoal, o Fernando Signorini, com
o qual fazia trabalho de força e velocidade
em sua casa. Na verdade, o Diego só treinava
connosco 2 ou 3 vezes por semana. O contrato
que ele tinha permitia que o fizesse. Sabíamos
que podíamos contar com ele e a relação
com todos foi sempre excelente. Também
me recordo que cobrava ao presidente
Corrado Ferlaini a sua presença mais regular
junto da equipa. Sentia que o apoio do
chefe era importante, mas ele tinha outros
compromissos profissionais para além de ser
presidente do Nápoles – era engenheiro. No
entanto, vi sempre um bom relacionamento
de Diego com todos.
São conhecidas as dificuldades pelas quais
Diego passou fora de campo. Como é que ele
reagia a essas adversidades?
Eu vi-o sempre em constante superação e
até lhe dou exemplos. Claro que o problema
mais grave que teve foi o da dependência de
drogas, apesar de nunca o ter visto “alterado”.
Mas ele também ficava muito incomodado
quando não conseguia controlar o peso.
Tinha tendência para engordar, mas sempre
foi muito dedicado e trabalhava para que isso
não condicionasse o seu rendimento. Todas
as semanas lutava contra o peso em excesso e
conseguiu muitas vezes vencer. Havia sempre
um ou dois adversários “em cima” dele,
tinha de ser forte e proteger bem a bola. Na
maioria das vezes conseguia-o, mas quando
estava sem o peso ideal tinha dificuldade em
jogar os 90 minutos. Isso incomodava-o. Por
vezes estava 1 ou 2 quilos acima do peso, mas
quando vinha de férias podiam ser 6, 7 ou 8.
Era difícil perder tudo em pouco tempo, na
pré-temporada, mas ele tinha determinação.
As pessoas que o acompanhavam de perto
ajudavam-no, mas ele sofria. Queria estar
sempre a 100%.
Quando deixaram de jogar
mantiveram o contacto regular?
Continuámos sempre a falar. Eu e a minha
família chegámos a ir a Sevilha visitá-lo
[Diego Maradona representou o Sevilha FC
logo após a saída do Nápoles, em 1992/93],
mas depois eu aceitei uma proposta do Japão
[Kashiwa Reysol, clube que representou entre
1993 e 1996] e falávamos mais por telefone.
Nessa altura eu convivi muito com o Hugo
Maradona, irmão do Diego, que também
jogava no Japão [foi médio do Sagan Tosu,
do Avispa Fukuoka e do Consadole Sapporo
68
FPF360
durante a sua passagem pelo campeonato nipónico].
Preocupámo-nos sempre em saber se estava tudo bem
um com outro e a amizade prolongou-se.
O Careca também jogou com outros grandes avançados,
tantos nos clubes que representou como no “escrete”,
mas é a dupla com Maradona que perdura na memória
das pessoas. Porque acha que isso acontece?
Porque ganhámos! São as conquistas que ditam a forma como
os desportistas são recordados. Um jogador pode ser mesmo muito
bom…mas se não ganha nada é menos lembrado. São os títulos que
ficam na história do clube, na memória dos adeptos, nos registos
da imprensa. São coisas que marcam, naturalmente, e no nosso
caso o sucesso internacional também contribuiu muito para essa
perceção que as pessoas têm.
Acha justa a homenagem recente do Nápoles, que mudou
o nome do estádio para Diego Armando Maradona?
Essa atitude do clube foi muito nobre, maravilhosa. Os napolitanos
são assim, tão malucos que eu os acho até capazes de mudar o nome da
cidade para “MARANápoles”. Isto é perfeitamente possível. A loucura
pelo Maradona não tem limites. Ele sabia que as pessoas lhe estavam
gratas por tudo o que ele fez enquanto esteve ao serviço do clube.
Tem alguma opinião em relação ao jogador que possa
ser considerado como o melhor de todos os tempos?
Acho que fazer comparações é muito delicado. Os jogadores passam
e brilham em épocas diferentes. O que é importante é desfrutarmos
de toda a qualidade e agradecer os momentos que os melhores nos
proporcionam durante o tempo em que jogam. O que eu tenho a
certeza é que o Maradona foi o melhor do seu tempo e que até os
adversários o admiravam – mas só no fim do jogo.
Acho que as comparações não fazem sentido.
A única vez em que o Maradona e o Careca estiveram em Portugal
foi para jogar uma eliminatória da Taça UEFA com o Sporting,
a 14 de setembro de 1989. Que recordações guarda desse encontro?
Lembro-me que no Sporting estava um dos melhores defesas-centrais
que eu conheci, o Luizinho [internacional brasileiro que representou
os leões entre as épocas de 1989/90 e 1992/93]. Ele esteve no Mundial
de 1982. Admito que não me lembro muito bem do jogo em si, mas ir
a Portugal é sempre especial porque as equipas têm valor, os jogadores
são de altíssimo nível e é sempre difícil sair do vosso país com bons
resultados. Para além disso, os meus avós da parte da minha mãe
eram portugueses, da Madeira, por isso também me sinto
um bocadinho português.
Mas essa não foi a única vez que jogou nos relvados portugueses.
No dia 8 de junho de 1983 representou a sua seleção em Coimbra,
num jogo particular frente a Portugal [vitória da “canarinha”
por 4-0, com um golo de Careca]…
Para me lembrar desse tenho mesmo de ir ao Youtube, sabe que
eu já tenho uma certa idade! [risos] Lembro-me, isso sim, que em
1982 e 1986 ficámos no hotel do Guincho. Fizemos uma digressão
de preparação nesses anos em que havia Campeonatos do Mundo
e as recordações são as melhores. É um país irmão e temos por todos
vocês o maior respeito. O meu neto mais velho, Luca, tem 7 anos
e festeja os golos com os amigos como o Cristiano Ronaldo,
que também é madeirense. E se tivermos aqui jogador?
FPF360 69
A FPF360 assinala a sua 40.ª edição com a republicação
de 40 das crónicas que fizeram, em especial, da rubrica
“Eu e o Futebol” um espaço plural, de diversidade, com
personalidades relevantes da sociedade civil a expressar
sem rodeios a sua ligação a um fenómeno desportivo à escala
global. Vai também ter oportunidade de ler ou recordar
alguns artigos publicados no contexto temático de cada
edição, dando voz aos pugnam pela defesa intransigente
do futebol.
70
FPF360
FPF360 71
JORGE
SAMPAIO
Ex-Presidente da República
Relação antiga esta, velha de décadas, entre mim e o futebol. Iniciada
por influência do meu pai, que gostava do dito, do clube da sua terra
(Guimarães) e que tinha imenso fair-play.
Procurei, até hoje, segui-lo nessa característica. Era o tempo
dos “cinco violinos” e, por isso, cheguei ao Sporting CP.
Não se muda de clube durante a vida, e aguentam-se as crises,
atravessam-se tempestades e bonanças, superam-se quaisquer outras
desilusões. Não vale a pena nem lamentos nem lágrimas …
O que gosto mesmo é do jogo, das estratégias e das tácticas;
auto-atribuo-me jeitos de olheiro – e tenho acertado muitas vezes!
Mas, sobretudo, admiro os talentos.
Hoje já tudo é indústria financeira e de grande quilate em que o adepto
real pouco conta. Mas sempre fiz com gosto a minha peregrinação
oficial, discreta, pelas seleções nacionais, que ao menos nos afastam de
qualquer acesso de clubite aguda. Pela minha parte, sempre me poupei
a isso e reconheço a justiça de uma derrota, como igualmente admito
que os árbitros, sozinhos (para lá de todas as conspirações boateiras
a que não ligo), não podem competir com os catedráticos das TVs.
Há um outro ponto que gostaria de focar, o do extraordinário poder
do futebol, a sua universalidade. Ao longo destes últimos anos em que
tenho andado pelo mundo inteiro no quadro das funções que exerço
para as Nações Unidas, pude verificar no terreno a sua capacidade de
unir admiradores e fãs de todas as idades, estratos sociais, culturas,
religiões, tendências e quadrantes. Não raramente fui interpelado
da Arábia Saudita ao Quénia, da Malásia à Argentina, do Egito à China
e ao Brasil, por pessoas que esgrimiam o nome de Figo, Ronaldo
ou Pelé como a palavra mágica ou um passaporte para a afirmação
de uma afinidade intangível, de um traço de união global. Por causa
deste poder incontestado, figuras conhecidas do desporto em geral
e do futebol em particular têm sido convidadas a dar a cara por causas
ao serviço da humanidade. Foi por isso que há uns anos desafiei Luis
Figo para ser o embaixador da OMS para a luta contra a tuberculose,
função que tem desempenhado e que, por exemplo, nos levou a ambos
à Jordânia. Aí assistimos a um extraordinário torneio juvenil
em que participava um clube feminino, que usava o futebol como meio
de educação não formal para sensibilizar os jovens para a identificação
dos sintomas da tuberculose e seu tratamento preventivo.
Quero terminar este breve testemunho, desejando o maior êxito
para a Federação Portuguesa de Futebol: bons sucessos na formação –
em todos os sentidos – dos nossos jovens futebolistas,
bem como votos de um dirigismo desportivo que se dê
ao respeito pela moderação e transparência.
72
FPF360
Escritor
JOÃO TORDO
Parece que chorei da primeira vez que fui
a um estádio de futebol. O meu avô materno
e o meu pai, benfiquistas ferrenhos, levaram-
-me, com três anos, para um dos camarotes
da Luz; a multidão desgovernada, o barulho,
os gritos de golo (e, nesses tempos, os
golos eram a rodos) e a atmosfera geral de
apocalipse devem ter-me assustado, pois
dizem-me que tapava os ouvidos e me enfiava
a um canto, protegido pelo meu avô. Talvez
por causa disto não prestei qualquer atenção
ao futebol até aos quinze ou dezasseis anos.
Todo o desporto, aliás, me passou ao lado.
A minha mãe inscreveu-me em aulas de
aikidô, que eu frequentei durante três meses
com o quimono desarranjado e um pavor
do contacto físico; depois veio a ginástica
desportiva, que rapidamente passou a
ginástica de manutenção, onde todos eram
gordinhos ou muito mais velhos do que eu.
Finalmente, os desportos coletivos: enquanto
os meus colegas jogavam basquetebol,
andebol e futebol, em exibições de vaidade
individualista, eu ficava sentado no banco
à espera que a hora acabasse para me libertar
daquele fardo. Mas recordo, quase com
precisão, o momento em que o futebol me
despertou ou em que eu despertei para
o futebol – foi quando vi um jogador
magrinho, poucos anos mais velho do que
eu, a fazer uma jogada genial e a oferecer
a um avançado o golo. Chamava-se Rui
Costa; o avançado era o Isaías; o adversário
era o Parma. Não foi tanto a jogada que me
deslumbrou quanto a parecença do Rui Costa
com uma pessoa normal (ou com aquilo
que eu achava que era uma pessoa normal):
magrinho, desengonçado, ligeiramente
aborrecido com a facilidade com que aquilo
acontecia, mais um funcionário daquele
ofício - embora um funcionário de alta patente
- do que um galifão semelhante aos meus
colegas dos desportos coletivos que nunca
passavam a bola. Disse para mim próprio:
isto interessa-me. Como sou de natureza
obsessiva, passei os anos seguintes a ver
todos os jogos de futebol de que fui capaz
(incluindo torneios amigáveis) munido
de uma certeza estranhíssima: eu era do
Benfica sem que nunca me tivessem dito
que era do Benfica; como um homem que,
acordando na sua cama, descobrisse que
tinha um par de guelras e lhe fosse evidente
que podia respirar debaixo de água. Assim,
comecei a ir ao estádio, fiz-me sócio e passei
anos de infelicidade sob o jugo de direções
desgovernadas, jogadores comprados pela
Internet e derrotas copiosas. Foram os anos
noventa; foram anos para esquecer. Neste
milénio, tudo mudou, até no que diz respeito
à seleção nacional: acompanhei campeonatos
europeus, mundiais e a equipa que, em 2004,
ficou 90 minutos aquém de se sagrar campeã;
nem sequer foi razão para tristeza, pois nesse
mesmo ano, finalmente, ao fim de quase uma
década de paixão futebolística, vi o Benfica ser
campeão. Julguei que iria chorar ou que ficaria
imensamente feliz. Em vez disso, senti-me
normal – magro e desengonçado,
ligeiramente aborrecido, o mesmo de todos
os dias. Compreendi então que não era
a vitória que me movia; que o ambiente onde
eu tinha nascido para o futebol – primeiro,
a chorar num camarote; depois, atravessando
uma década de sonhos perdidos – tinham feito
de mim o adepto quase perfeito, aquele que
tudo aceita. E, por isso, a derrota comove-me
tanto como a vitória. Quando penso
no Benfica, penso naquele lance do Rui Costa.
Até podemos perder cinco a zero, que aquele
ninguém nos tira.
FPF360 73
ANA BACALHAU Cantora
Não posso dizer que tenhamos a relação
mais estreita do mundo, eu e o futebol.
Mas há uma ligação forte que me prende
a ele, que foi sendo construída desde pequena,
em família, e que é recuperada, em primeiro
lugar, pelos sons que lhe associo e, só depois,
pelas imagens que me ficaram na memória.
Parte da história da minha família paterna
passa pelo bairro de Benfica. A ligação que
mantinham ao bairro era tão forte que talvez
tenha contribuído para a escolha do clube de
futebol, o Benfica. O que recordo com nitidez
era o gozo puro de um desporto
que congregava pessoas à sua volta, ao invés
de as separar. Quando era pequena, a minha
família tinha uma pequena horta, lá para
os lados de Carnide e as tardes solarengas
de domingo eram aí passadas. Lembro-me
do rádio a pilhas pousado na mesa e do som
do relato a acompanhar as minhas
brincadeiras. As palavras a atropelarem-se
umas às outras, em ritmo quase rap,
a tensão a acumular-se na voz, que quase
se esquecia de respirar e o grito. Um grito
longo, arrastado, depois um sinal sonoro
e, finalmente, o nome da equipa que tinha
marcado o tão festejado “Golo”. Lá se iam
comentando os acontecimentos do jogo, às
vezes os ânimos exaltavam-se com as decisões
do árbitro ou uma jogada mal executada.
No final, lanchávamos, conversávamos e,
fazendo-se tarde, íamos para casa. Outra
das recordações que guardo é do meu pai
a sofrer pelo seu clube e a cofiar o bigode
com vigor, enquanto ouvia o relato ou via
o jogo na televisão. Quanto pior corresse
o jogo, mais o ouvia a passar os dedos
nervosos pelo bigode. O som distinto que fazia
ficou--me gravado na memória e para sempre
o associarei ao futebol. O nervosismo típico
de um jogo e as estranhas formas de lidar com
ele já vêm de longe, na família. Começaram
com a minha avó paterna. Ficava tão nervosa
quando jogava o seu clube, que era incapaz de
acompanhar o jogo. Fechava-se na cozinha a
comer um pacote de bolachas, isolada de tudo
e acompanhada apenas pelo som das bolachas
a partir entre uma mastigadela e outra. No
final, saía e perguntava pelo resultado. Eu sou
um bocadinho como ela. Sempre que há um
jogo importante, fecho-me no quarto a ouvir
música, até que acabe. De vez em quando,
a curiosidade vence o nervosismo e lá dou
uma espreitadela, mas entre um livre perigoso
e uma falta na zona da grande área, lá me
voltam os nervos e me recolho novamente
ao quarto. Não posso dizer que seja uma
seguidora fiel de futebol. Não acompanho
os resultados da jornada e fui duas vezes
a um estádio, tendo constatado, estarrecida,
que, quando as claques se calam, impera
um silêncio austero no campo. No entanto,
o futebol faz parte da minha vida, porque
faz parte da minha história de família e,
consequentemente, da minha história
pessoal. Embalou-me as brincadeiras
nas tardes de domingo passadas na horta,
lembra-me o meu pai, frente à televisão,
a remexer o bigode, e, apesar de não ter
conhecido muito bem a minha avó, que
morreu quando era pequena, mostra-me
que sou mais parecida com ela do que poderia
supor. Pode não parecer muito, mas para
mim é mais do que se possa imaginar.
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FPF360
NADINE
CORDEIRO
Internacional
portuguesa
A PRIMEIRA
VEZ QUE FIZ
HISTÓRIA
A nossa vida está cheia de primeiras vezes.
Lembram-se do primeiro beijo ou do primeiro
telemóvel? Claro que sim. As primeiras
vezes têm esse poder de ficarem gravadas na
memória. E não acontece só com as primeiras
vezes de coisas boas: lembramo-nos
da primeira fratura, do primeiro raspanete
na escola, do primeiro cartão vermelho.
Falo nisto porque a minha experiência na
Seleção Sub-17 está marcada pelas primeiras
vezes. Pensei nisso quando me pediram para
arranjar um tema para este cantinho. Era para
escrever sobre o meu início no futsal, onde
joguei cinco épocas, numa equipa de rapazes,
mas achei giro falar nessas primeiras vezes.
Para perceberem melhor, a minha primeira
chamada às Sub-17 coincidiu com o primeiro
teste competitivo da equipa, frente à Hungria.
Começou o jogo, tinha acabado de me
emocionar com o hino, e lá estava eu a marcar.
Só precisei de dois minutos.
No fim, quando fomos para o balneário
e os jornalistas começaram a ligar, é que
percebi a dimensão daquele golo. Fiz história,
foi o primeiro de sempre das Sub-17. Quase
explodi de alegria. Para as minhas colegas,
o jogo também foi especial, apesar de termos
empatado (2-2). A ida para o estádio, o grito
de guerra, tudo. Mandei um monte
de fotografias desse jogo para os meus pais.
Dias mais tarde, voltámos a defrontar
a Hungria, goleámos (por 6-1) e marquei outra
vez. Dessa vez, o golo não foi novidade. O que
me provocou um friozinho
na barriga foi o facto de me
terem dado a braçadeira
de capitã. Que orgulho tão
grande!
Depois vivemos a primeira
experiência no estrangeiro.
Fomos a Telavive jogar a
primeira fase de qualificação para
o Campeonato da Europa. Apurámo-nos para
a segunda ronda e senti que estava a viver um
sonho. Aliás, estou mesmo: sinto-me uma
peça importante do grupo e tenho a confiança
dos professores [treinadores] e das minhas
colegas.
A parte mais engraçada foi ter andado de avião
pela primeira vez. Não tive enjoos nem medo
na viagem para Israel. Fui tranquila. Se jogar
um dia numa liga estrangeira, como espero,
vou andar muitas vezes de avião. Até lá, vou
jogar muito e estudar ainda mais. As aulas
já começaram e tenho que me focar.
Estou no 9.º ano e quero seguir desporto.
Não pensem que é fácil conciliar a escola
com a bola. Há coisas normais nos jovens
de 16 anos que me passam ao lado. Sair à noite
e passar um dia a comer porcarias? Esqueçam.
Namorar ainda posso, desde que não
me distraia muito (risos).
Para terminar, quero dizer que vos escrevo em
modo “relax”, sentada no chão do meu quarto.
E quero pedir, do fundo do coração, o vosso
apoio para a próxima ronda de apuramento,
que será em outubro, frente às seleções de
Itália, Dinamarca e República Checa
(dias 15, 17 e 20).
Torçam pelas Sub-17, torçam por mim
e acompanhem mais o futebol feminino.
Se ainda não o fizeram, façam-no
pela primeira vez.
Um beijo grande para todos,
Nadine Cordeiro
FPF360 75
JOANA VASCONCELOS
Artista plástica
A minha relação com o futebol vem de longe,
apesar de não ser uma fervorosa seguidora
do jogo.
Nasci numa família de sportinguistas - os
meus pais são do Sporting e o meu avô foi
presidente do Sporting Clube de Lourenço
Marques e do Sporting Clube da Beira, em
Moçambique -, casei com um benfiquista,
mas o Futebol Clube do Porto foi o único
clube que inspirou o meu trabalho. E já lá
vão duas obras.
A primeira, Ouro Sobre Azul, foi concebida
para uma grande exposição coletiva em 2001
no âmbito da Porto, Capital Europeia da
Cultura e agora, muito recentemente, tive
o privilégio de responder ao desafio para criar
uma obra especificamente para o novo Museu
do Futebol Clube do Porto, a Valquíria Dragão.
O futebol é, aliás, um tema natural no meu
trabalho. O quotidiano é a primordial fonte de
inspiração e o futebol está omnipresente. Em
2003 criei a peça Ópio, composta por
duas balizas unidas por uma rede em
croché onde o golo se torna impossível.
Mais tarde, em 2006, concebi a peça We Are
the Best Team, uma instalação que mostra
uma mesa e um banco de café característicos
de uma tasca portuguesa. Sobre a mesa,
apresentam-se uma garrafa de cerveja -
uma mini -, uma bola de futebol e o típico
transístor onde se ouve o vibrante relato
do Jorge Perestrello da goleada 7-1 oferecida
à Rússia. Todos estes objetos - mesa
e cadeira incluídos - surgem envolvidos por
uma rede em croché; um mundo de homens
ambiguamente protegido e decorado por
uma realidade tradicionalmente feminina.
Acredito muito no poder e na importância dos
jogos em equipa. Jogar em equipa leva a uma
formação pessoal completa e fundamental
no que toca ao convívio em sociedade - ensina
o sentido de tolerância, humildade, igualdade,
respeito -, e é impossível não falar nos efeitos
que o futebol exerce na autoestima de uma
população. Basta relembrar o período
de euforia e confiança que o país viveu durante
o Euro-2004 - pena aquela final... - um género
de confiança que faz falta, pois gera otimismo
e uma energia muito positiva.
O futebol é aliás um excelente exemplo
da qualidade dos portugueses. Em diferentes
áreas do mundo futebolístico encontramos
um português entre os melhores - o melhor
jogador de futebol, o melhor treinador,
o melhor presidente, o melhor árbitro,
o melhor empresário, etc.
Sendo o futebol o mais popular desporto
do mundo, onde a competição é enorme
e o nível de exigência para estar no topo
é elevadíssimo, mais motivos de orgulho
e de inspiração podemos encontrar.
Fotos das obras citadas em www.fpf.pt
76
FPF360
Médico
ANTÓNIO
GENTIL
MARTINS
O meu clube de sempre foi o “Clube
Internacional de Foot-ball” que, após a vinda
para Portugal, entre outros, dos irmãos Pinto
Basto, surgiu em 1902 (antes do Benfica ou
do Sporting) e iniciou o Futebol em Portugal.
Sendo um Clube cem por cento amador,
abandonou a Federação de Futebol em 1924,
quando esse desporto se tornou profissional.
No entanto, nunca abandonou a modalidade,
e a partir de então passou a fazer anualmente
campeonatos internos só para amadores
e tem mantido uma escola para aprendizagem
de novos praticantes.
Sou o seu sócio número um (com 82 anos
de associado) e Presidente do seu Conselho
Consultivo, depois de ter sido Campeão
Nacional de Voleibol da 1ª-Divisão.
No CIF fiquei com o número de meu Pai que,
em 1912, bateu os seus primeiros records
e campeonatos nacionais, no salto em altura
e no lançamento do peso, seguindo-se
depois os recordes nacionais de salto em
comprimento e em largura, os do lançamento
do peso e do dardo, já sem falar do tiro em que
foi campeão do mundo com espingarda
de guerra, na posição de pé, em 1928,
e recordista, campeão de Portugal e
mestre atirador em todas as armas de tiro
desportivo conhecidas à época. Foi duas
vezes Olímpico (1920 e 1924), o primeiro em
duas modalidades diferentes, e falecido por
acidente quando se preparava para o Jogos
de 1932. Sem dúvida o mais completo atleta
português de todos os tempos,
mas que só brincou ao futebol.
O futebol nunca foi a minha modalidade
preferida, embora sobretudo no liceu Pedro
Nunes e no Estoril durante as férias grandes,
o praticasse, como a generalidade dos
rapazes o fazia. Talvez porque o meu Pai
era cultor de muitos desportos assim
procurei fazer e dediquei-me mais ao
voleibol, ao ténis e ao badminton, além
do tiro, em que acabei olímpico em Roma,
em 1960 (no tiro com pistola automática).
Antes da revolução do 25 de Abril falava-se
em Portugal dos 3 F’s: Fado, Fátima e Futebol.
A sigla não mudou, continua a ser FFF.
Só que agora é Futebol, Futebol, Futebol.
Neste desaparecem as diferenças políticas
para só existirem preferências clubistas.
Gosto de ver futebol bem jogado, mas em
regra quase só ia a jogos internacionais. Nunca
me desloquei a cidades diferentes só para ver
um Clube ou um jogo, não me considerando
por isso um adepto fervoroso. Aliás gosto
de ver qualquer desporto bem jogado e,
obviamente, também futebol.
Confesso que, sendo um fervoroso adepto
do amadorismo no desporto e dos ideais
olímpicos, me impressiona negativamente
a loucura que o futebol trás consigo
e por vezes a falta de desportivismo que
alguns atletas ostentam. Mas porque são
comercialmente rentáveis, as suas atitudes
não parecem influenciar as contratações
que atingem verbas absurdas e sobretudo
chocantes e mesmo imorais num mundo
com gravíssimas dificuldades económicas
e grandes níveis de pobreza, mas no qual o
dinheiro e o comércio tudo dominam e se
apresentam como os mais
importantes factores a considerar.
Os actuais futebolistas são efectivamente
profissionais como os artistas de circo,
conseguindo no entanto gerar receitas
fabulosas, que aqueles, com igual ou até
por vezes maior mérito, não atingem. E não
consigo esquecer que os Jogos Olímpicos da
antiga Grécia acabaram ao fim de cerca de mil
anos (agora tudo se passa mais rápido!), por
causa dos lucros dos atletas e promotores,
surgindo o jogo viciado, a manipulação dos
resultados, a compra dos juízes, a dopagem,
etc., etc..
É isso que gostaria de ver banido em todo o
Desporto, nomeadamente entre nós.
António Gentil Martins opta por escrever de acordo
com a antiga ortografia
FPF360 77
MARCELO
REBELO DE SOUSA
Professor, comentador político
1. Pediram-me para escrever umas linhas
sobre futebol. Que não fosse só a saudosa
evocação de Eusébio. Ou a lembrança de
Mundiais ou Europeus onde estive, levando
comigo pontos de exame para corrigir, nos
mais agitados meses de verão da minha vida.
Ou recordações clubistas - de braguista desde
a infância -, recordações essas que ficariam
deslocadas numa revista federativa. Menos
ainda, alusões ao que vai sucedendo, hoje,
na desafiante convivência de uma já antiga
instituição com a mais jovem Liga de Clubes.
Tudo visto e somado, escolhi, então, dedicar
umas linhas a redescobrir na minha memória
os anos loucos em que fui dirigente
da Federação Portuguesa de Futebol.
2. Estávamos num daqueles raros dias
em que março nos oferece sol e céu azul.
Nada de chuva, nem de nuvens. Saía de uma
aula na Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa, ao Campo Grande. Um cavalheiro
baixinho, carregado com uma pasta castanha,
cheia de fivelas, interpelava-me:
vinha de Angra do Heroísmo, representava
a Associação de Futebol, queria convidar-me
para a representar como um dos doze
diretores da Federação Portuguesa de Futebol,
trazia quilos de dossiês com regras, queria ter
a certeza de que eu aceitava para garantir que
um jurista podia garantir o primado do Direito
na Direção federativa.
Apanhado de surpresa, tentei explicar
que nunca estivera em Angra, desconhecia
o futebol angrense, estava a trabalhar
no doutoramento, não entendia a valia de
um jurista num órgão que não o vocacionado
para questões de justiça desportiva, gostava
de futebol mas antevia labores excessivos para
me afeiçoar ao novo cargo.
Nada comoveu o convidante. E persistiu,
e persistiu, e quase me deixou incomodado
com a sua infelicidade se voltasse para casa
de mãos a abanar. E, como tantas vezes
sucedeu na minha vida - e só espero que não
sucedam muitas mais... - deixei-me comover
com a ideia de serviço, de apelo irremovível,
78
FPF360
de pedido irrecusável seu e do destino.
Sim, porque apenas um destino imperativo
iria inventar aquela missão para mim,
apanhado entre duas aulas,
a leste do mundo do futebol.
3. Tomámos posse em março. Presidia Jorge
Fagundes, num tempo em que Sporting
e Benfica rodavam na presidência. Porto
e Setúbal vice-presidiam. Reuníamos na sala
de mesa redonda da Praça da Alegria, com
a alegria ligeira de um grupo de estudantes
excursionistas, à descoberta de um percurso
antes desconhecido. E, claro, eu fiquei logo
com o pelouro mais complicado - o das
relações com a comunicação social. Pois se
eu já andava no Expresso há mais de um ano,
assim teria de ser. E foi. Tendo por braço
direito, lealíssimo, uma escolha minha:
Neves de Sousa. Frontal, corajoso, lutador,
além do mais antifascista militante.
4. Um mês volvido, Portugal mudou. Chegou
o 25 de abril. E cada qual alinhou na sua área.
Fagundes, perto do PRP. Os vices, perto da
direita, entre o CDS e o PPD. Eu,
no PPD. Neves de Sousa, mais PCP.
Os demais dirigentes, na sua maioria, pelo PS.
Mas nada nos separava enquanto Federação.
Mesmo quando a Revolução começou a criar
debates na Federação. Em maio,
com a ameaça dos árbitros de não arbitrarem
por causa da violência nos estádios, obrigando
o Governo a dar poderes policiais aos
diretores federativos, o que me levou - com
25 anos - a ter de enfrentar um jogo dramático
em Marvila, de que dependia
a sorte de Oriental e Atlético. Em junho,
com a recusa do Presidente a ir à final
da Taça de Portugal, por protesto pela prisão
de Saldanha Sanches. Em março de 1975,
com a inauguração do Estádio de Goiânia, no
Brasil, alinhando a nossa Seleção Nacional
contra a seleção do Estado de Goiás, que
substituiu a brasileira, num momento tenso
das relações diplomáticas, e em que me coube
chefiar a delegação portuguesa num jogo que
terminou o pior possível, por choque entre
a consabida teimosia do genial Pedroto
e a inépcia do árbitro do País-irmão.
No geral, foi excelente o relacionamento
dentro da Direção e pacífico o funcionamento
da máquina federativa.
5. Simplesmente, durante a Revolução,
Portugal, por uma vez, esqueceu o futebol.
As duas temporadas foram discretas,
apagadas, sem polémicas visíveis. A Seleção
mereceu a mesma sorte e estava longe de
forma digna de especial realce. As discussões
para revisões de regras não levantaram
quaisquer ondas. A Federação tinha imenso
trabalho, num tempo em que não havia Liga,
mas realizou-o sem controvérsia. Os árbitros
dependiam de uma Comissão Central,
totalmente independente
da Federação e dos clubes.
O mundo do futebol, mesmo o profissional,
era desdramatizado. Com Benfica e Sporting
a refazerem as pazes, com Borges Coutinho
e João Rocha. Os demais clubes sem cortes
de relações ou intervenções
tonitroantes de tomo.
6. Em suma, quando olho para trás, para 1974
a 1976, tenho saudades daquele tempo. E, se de
alguma coisa me arrependo, é de, pressionado
pelo envolvimento político da Revolução, não
ter dado mais de mim à Federação... Aulas,
Expresso, criação de partido, Assembleia
Constituinte e mais Federação eram uma
loucura de vida, apesar da minha idade
e do meu ritmo de vida.
Tenho saudades do tempo em que os grandes
problemas do nosso futebol eram tão simples
e diferentes dos que ocupam as notícias destes
dias...
E até tenho saudade da Praça
da Alegria, porque era com alegria que nós,
amadoristicamente, com carolice,
nos devotávamos à missão de manter viva
a Federação quando milhões se apaixonavam
nas ruas pelos vários MFAS, pelos inúmeros
partidos, pelas múltiplas Revoluções
de que se fez a Revolução portuguesa.
Foram anos loucos, mas inesquecivelmente
enriquecedores!
FPF360 79
Escritora
ALICE VIEIRA
Para dizer a verdade, na minha infância e
adolescência o futebol não existia lá em casa.
O que existia mesmo, mas mesmo a sério era
o hóquei. Todos nós fanáticos apoiantes do Paço
d’Arcos e, evidentemente, ainda mais fanáticos
da selecção nacional. Ganhávamos sempre – ou
quase. Interrompiam-se as sessões de cinema
para dar no écran os resultados. Não me lembro
de alguma vez isso ter acontecido com o futebol.
Mas ganhar sempre também cansa – e, quando
apareceu a televisão, e ninguém conseguia
ver a bola… foi-se o encanto.
Então passámos a dar mais atenção ao futebol.
E um dia vi-me a ser do Benfica, por nenhuma
razão em especial, ou pela mais forte de todas:
porque sim.
O tio com quem então vivia era muito amigo
do Dr. Catarino Duarte – que tinha uma
secretária que, ao ligar lá para casa, dizia sempre,
com voz grave, “é da parte do Sr. Presidente.”
Metia respeito…
Depois casei com um benfiquista. Que tinha
abraçado para sempre a causa do clube desde
o dia em que, pelos anos 30, criança ainda e há
muito tempo doente no Sanatório do Outão,
viu alguns jogadores do Benfica entrarem na
sua enfermaria para animarem um pouco as
crianças internadas. A cada uma perguntavam
se havia alguma coisa que gostassem que o clube
lhes desse. Quando chegou à sua vez, ele disse:
“Gostava muito que me dessem “A Cidade e as
Serras,” gosto muito de ler
mas não tenho livros”.
Dias depois, o Benfica mandava-lhe dois
caixotes, um com a obra completa do Eça
de Queiroz, outro com a do Camilo.
Depois disto, não há como não ser
do Benfica até ao fim da vida.
Mas devo confessar que assisti ao meu primeiro
jogo de futebol, ao vivo e a cores, já mulher feita,
e mesmo no fim de uma gravidez complicada.
Não me lembro de nada – quero eu dizer,
não me lembro de quem é que jogava com quem,
qual o resultado, o nome do campo, nada.
Só me lembro de que estava a chuviscar, e eu
tinha o chapéu-de-chuva (daqueles grandes!)
mesmo ao meu lado, meio aberto, pronto a
entrar em acção.
Não sei que foi que eu disse, não sei que olhar
terá sido o meu, só sei que o meu vizinho de lado,
de repente, murmurou:
“A menina não percebe mesmo nada
de futebol, pois não?”
Gostei que alguém me tivesse chamado menina,
com aquela barriga de quase 9 meses, e lá fui
confessando que aquele era o primeiro jogo
a que eu assistia, sabia que era golo quando a
bola entrava na baliza, e pouco mais.
Vai daí, e até ao fim do jogo, o meu inestimável
vizinho fez tudo, absolutamente tudo, para me
introduzir na nobre arte do futebol.
Se o jogador estava ou não estava fora de jogo
(acho que ainda se dizia off-side…), se tinha
sido canto ou não, se o penalti (com “y”,
evidentemente) tinha sido bem assinalado ,
tudo aquela alma me explicou com o desvelo
de um mestre a preparar a aluna
para um exame final.
Tudo acompanhado por quilos de amendoins,
pevides e tremoços – num tempo em que a
ecologia andava longe das nossas preocupações,
e o chão era o destino final dos despojos.
Terminado o jogo, começou a chover.
Abri imediatamente o chapéu – e uma
extraordinária chuva de cascas de amendoins e
pevides e tremoços cobriu-me da cabeça aos pés.
Lembro-me disso até hoje, porque nunca pensei
que as cascas custassem tanto a limpar – e
porque a minha filha nasceu no dia seguinte.
Ah, e também nunca mais esqueci os
ensinamentos do meu vizinho – que hoje
permitem que eu discuta um jogo, de igual
para igual, com os meus netos. Benfiquistas
ferrenhos, evidentemente.
Mas nunca me lembro de ter assistido a nenhum
jogo de futebol até 1969 – quando fui ao Jamor
para a final da taça entre o Benfica e a Académica.
Alice Vieira opta por escrever de acordo
com a antiga ortografia
80
FPF360
Chef
JOSÉ
AVILLEZ
Ponto prévio: os últimos sete anos da minha
vida foram vividos num só fôlego, numa
corrida quase vertiginosa. Começou com
um estágio no El Gulli e prosseguiu no
Tavares. Vieram dois filhos e uma viagem
inspiradora pelo México. Com a abertura
de seis restaurantes – O Cantinho do Avillez
e, depois, o Belcanto, a Pizzaria Lisboa,
o Café Lisboa, O Mini Bar Teatro e o Cantinho
no Porto, com o take-away e catering JA
pelo meio – passei de uma equipa de 12
colaboradores para me transformar num
chef e empresário responsável por 160. E, pelo
caminho, conquistei quatro estrelas Michelin.
Serve este ponto prévio para explicar,
em grande medida, o facto pelo qual
me fui afastando do futebol. De adepto
incondicional fui-me gradualmente tornando
num observador do fenómeno à distância,
até porque as minhas energias e atenções
se foram centrando na minha atividade
profissional.
Durante a juventude e adolescência sempre
procurei a atividade física. Pratiquei râguebi,
treinei artes marciais e cheguei a jogar
futebol todos os domingos com os meus
amigos, embora de uma forma absolutamente
informal, no rinque que existia perto do
antigo pavilhão do Dramático de Cascais.
Tão informais eram essas partidas que
invariavelmente me apresentava
a jogo de sapatos de vela.
E a minha ligação ao futebol começou
precisamente por aí, na rua, entre amigos,
como tantas outras crianças.
Se então procurava a diversão e a distração,
hoje olho para o futebol de forma diferente.
Vejo-o como um fenómeno agregador.
Gosto muito de ver pessoas felizes e o futebol
permite-o, mesmo que seja apenas por
breves momentos. A sensação de ver alguém
festejar uma vitória, um golo ou um objetivo
alcançado agrada-me. A democraticidade
do futebol – que tanto pode ser apreciado e
debatido com a mesma paixão e propriedade
por um analfabeto como por um doutorado –
torna-o tão popular. Somos, na verdade,
um país de futebol.
A este lado social que me parece interessante,
o futebol junta outras componentes como
a competição e o clubismo. A competição
mantenho-a viva para além das peladinhas
com que me entretinha enquanto criança, mas
direcionei-a para outras vertentes da minha
vida, nomeadamente para a carreira de chef
e de empresário. E a própria veia clubística
foi-se desvanecendo, embora me mantenha
fiel ao meu clube de sempre.
Sou sportinguista e confesso que já levei
o futebol muito a sério. Comprei um lugar
cativo em Alvalade na época em que o Peter
Schmeichel veio para Portugal. Acompanhava
religiosamente os jogos, em casa e fora,
e acabei por testemunhar o regresso do
Sporting aos títulos, 18 anos depois. Lembrome
da felicidade que senti e de ter ido com
amigos esperar a equipa a Alvalade. Foram
momentos únicos que ficaram marcados na
minha memória. Por isso, relativizo quando
oiço dizer que o futebol é um fenómeno
alienante. E mesmo se for, parece-me ser um
bom escape para que as pessoas desliguem por
momentos dos seus problemas e frustrações.
Hoje, confesso que não sei o nome de quase
nenhum jogador do Sporting. E estou de tal
forma desligado que até o meu filho mais
novo, que tem três anos, já me anunciou que
é do Benfica e eu não fiquei minimamente
ralado. O que seria impossível há uns anos.
Apesar de distante, admito que utilizo o
futebol como “ferramenta” para motivar
a minha equipa. Ainda que não promova
discussões futebolísticas na cozinha, gosto,
sempre que posso, de organizar jogos entre
colaboradores. São sempre momentos
de descontração, de puro divertimento
que servem para promover
a união e o companheirismo.
E aí, o futebol cumpre, no meu dia-a-dia
e no da minha equipa, a sua verdadeira função.
FPF360 81
Mesatenista
MARCO
FREITAS
O meu primeiro contacto com o futebol
aconteceu aos oito anos de idade no Grupo
Desportivo do Estreito de Câmara de Lobos,
onde pratiquei a modalidade durante cerca de
três anos em simultâneo com o ténis de mesa.
Estas duas modalidades foram as escolhidas
no início da minha atividade desportiva por
causa do meu pai e também por serem muito
populares tanto a nível de desporto escolar
como federado. Permanecem como boas
memórias de infância os treinos de ténis de
mesa durante a semana e de futebol ao fim de
semana. Com o passar do tempo tornou-se cada
vez mais difícil ir aos treinos de futebol devido
ao avolumar de torneios de ténis de mesa que
se realizavam no fim-de-semana. A paixão pelo
ténis de mesa acabou por se tornar mais forte
e séria e acompanhar o futebol tornou-se
um hobbie.
O meio familiar onde cresci nunca teve grande
ligação ao futebol. Apesar disso é curioso que
lá em casa somos simpatizantes de clubes de
futebol diferentes. O meu pai apoia o Benfica,
a minha mãe o Sporting, o meu irmão gémeo o
Marítimo e eu, embora sem grande entusiasmo,
sou simpatizante do Futebol Clube do Porto.
Em dia de dérbis ou clássicos há sempre
animação doméstica.
Tenho de confessar que não acompanho
os jogos da liga portuguesa por não os
considerar interessantes ou competitivos e
acho preocupante a falta de aposta no jogador
português. No que diz respeito à Seleção
Nacional o caso muda de figura, seja onde for
gosto de assistir aos jogos da nossa Seleção,
ainda mais em fases finais de Europeus e
Mundiais. Grande parte do meu entusiasmo
com esta Seleção de futebol tem a ver com o
respeito e admiração que nutro pelo capitão
da equipa das quinas. O Cristiano Ronaldo, além
de ser meu conterrâneo, também já praticou em
jovem e continua a acompanhar o ténis de mesa.
Apesar de compreender a importância a
nível social e económico do futebol há certos
reparos que não posso deixar de fazer. Tendo
por base o contacto com grandes atletas de
variadíssimas modalidades em provas olímpicas
e campeonatos mundiais, aprendi a dar mais
valor a outras modalidades que a meu ver são
mais espetaculares de assistir e mais exigentes
de aperfeiçoar que o futebol e com folhas de
salários muito mais modestas. Entristeceme
que sejam poucos os portugueses que se
apercebem desta realidade, mas em grande parte
as culpas têm de ser atribuídas aos “media”.
Usando como exemplo outros países onde já
vivi, ao futebol é atribuída a devida importância
mas sem nunca se descurar os desportos com
tradição e resultados de relevo internacional, e
Portugal ainda tem de evoluir a esse nível.
Mesmo tendo em conta esta minha visão mais
crítica sobre o futebol em Portugal continuarei
a apoiar incondicionalmente a nossa Seleção
e a desejar os maiores sucessos para o futebol
português e para a nossa Federação Portuguesa
de Futebol. Em jeito de provocação fica o desafio
à Seleção de futebol para que iguale os feitos do
ténis de mesa já no próximo europeu em França.
82
FPF360
PAULO SEGADÃES
SÉRGIO
GODINHO Cantor e Compositor
Para mim, o futebol é coisa de garotos e,
depois, de garotos crescidos.
Escrevo no dia seguinte a Ronaldo ter ganho
a sua terceira Bola de Ouro, e os jornais e a
televisão e a internet enchem-nos do olhar
desse garoto que nunca se esqueceu do primeiro
chuto; e do seu crescimento e da sua vontade
constante de vencer. E também do prazer
especial de o vermos, e aos outros, craques
ou não, nessa geometria variável que liga fios
invisíveis e os arrasta numa teia paciente embora
impetuosa: a teia trespassada por um golo,
momento sempre único e irrepetível.
Aprendi a ver futebol desde garoto,
precisamente. A jogar, nem tanto: apenas
por vezes a guarda-redes, era destemido
e rápido de reflexos, fazia-me às bolas sem medo.
Hóquei em patins, sim, jogava, um mero
amador. Nascido no Porto, vivia perto do Infante
de Sagres, clube de grandes pergaminhos
no hóquei, desporto por esses tempos
extremamente popular. E também a sua
(e nossa) seleção tinha os seus “cinco violinos”,
e quem fazia parte deles? Os primos Jesus
Correia e Correia dos Santos. Jesus Correia, esse
mesmo. Um dos “cinco violinos” do Sporting,
um duplo craque. E aqui voltamos ao futebol,
e à pergunta que por vezes me fazem:
- Então, és natural do Porto e és do Sporting?
Sou sim, e também por causa desses “cinco
violinos” e da sua música afinada ao pormenor.
Porto é a cidade, não é só o clube. Havia também
o Boavista e o Salgueiros (o popular Salgueiral!),
perto de cujo campo vivi até aos sete anos,
clube de bairro por excelência agora
infelizmente quase inerte.
Mas atenção, aprendi a ver futebol sobretudo no
Estádio das Antas. O meu pai era sócio do Porto
(e, liberal como era, nunca se importou
de eu e os meus irmãos sermos sportinguistas),
e uma das sensações fortes e agradáveis da
minha infância era irmos ao futebol juntos,
eu um garoto, ele tornado garoto ao assistir
ao jogo e às suas peripécias. Eram tempos do
Yustrich, um treinador de sangue muitas vezes
demasiado quente, do Hernâni, que se pegava
com ele e com quase todos os árbitros (“O
Hernâni é um insurrecto!”, dizia o meu Pai),
do grande Pedroto, e de outros cujo nome
decorava só porque podiam dar jeito
na hora de trocar cromos.
Voltávamos de carro para casa, a comentar
o jogo e de como ele era importante e não era
importante na nossa vida. Dois garotos, cada um
com a seu clube, cada um com a sua colecção
de cromos da vida de todos os dias, da qual fazia
a parte o futebol, e muitas, tantas outras coisas.
FPF360 83
JORGE MONTEIRO/GESTIFUTE
“VALORIZEI
O TALENTO QUE TINHA”
A conversa improvável
entre Cristiano Ronaldo e
Marcelo Rebelo de Sousa,
com o futebol à porta e
muitas ideias sobre o que
é ser português
A conversa entre Cristiano Ronaldo,
português e melhor jogador do Mundo,
e Marcelo Rebelo de Sousa, comentador
político e professor de Direito, tinha um
ponto de partida: futebol não entrava.
O roteiro foi cumprido.
Sem bola, a conversa começou pelo percurso
de Ronaldo. Primeiro a saída da Madeira,
o tempo em que “chorava todos os dias”.
O mais difícil dos desafios. Tão difícil que
aos 18 anos trocar Lisboa por Manchester, o
português pelo inglês, não pareceu assim tão
complicado. E não foi, longe disso. Cristiano,
30 anos e fama mundial, utiliza a palavra
“polite” (a boa educação) para descrever a
admiração que sente pela maneira inglesa
de ser. O respeito pelas regras, a disciplina, o
gosto pelo trabalho. “A pontualidade”, lembra
Marcelo Rebelo de Sousa.
De Espanha o espanto por tudo ser diferente,
tão diferente, embora vizinhos. A paixão, a
alegria, a felicidade apesar das dificuldades
e a constante valorização do que é seu. Eis
Espanha, vista através do olhar do avançado
do Real Madrid. O jeito que isso daria por
cá, concordaram. “Valorizamos de mais o
estrangeiro e não o produto da casa”, sintetiza
Cristiano. Marcelo concorda, apesar de olhar
para os jovens e perceber algo diferente,
menos pessimista, mais aberto. Talvez mais
do Mundo.
Os dois coincidem no olhar sobre o
português. “Povo sofredor”, que se une
“nas dificuldades”, quando parece que já
nada há a fazer. E há. E faz-se. Também no
futebol. E isso intriga Ronaldo: “Por que não
o fazemos mais vezes?!”. Ir para fora, disse o
internacional, deu-lhe outra perspetiva sobre
Portugal. E sobre a vida.
“Nenhum povo pode viver em harmonia
consigo mesmo sem uma imagem positiva
de si” Eduardo Lourenço, “Psicanálise
mítica do destino português” (in
84
FPF360
também quis participar. Neste caso, o filho
de Cristiano Ronaldo, que foi convidado a
cumprimentar Marcelo Rebelo de Sousa e aparece
no vídeo trajado à Super Homem. O pretexto serviu
para lembrar o papel da educação. “Algo que os pais
podem controlar”, sublinhou Ronaldo.
“Alegre”, sobretudo quando está rodeado por
aqueles de quem gosta, Cristiano Ronaldo define-se
como “uma pessoa positiva”, que acredita muito em
si mas também confia “nas ideias dos outros”. Até
porque “sozinhos não chegamos a lado nenhum”,
é importante estar atento ao potencial das pessoas,
“ao que podem trazer de novo”.
Aos 30 anos, Ronaldo vai conhecendo “cada
vez mais pessoas” e acredita que “todas têm
um talento”. Precisam de o descobrir “cedo”,
acrescenta Marcelo. “E de procurar condições
para o aproveitar, porque mesmo na dificuldade
é possível”, remata Ronaldo, que tenta numa frase
a síntese deste diálogo improvável: “Quando a gente
quer a gente consegue encontrar, seja onde for”.
“Labirinto da Saudade”, 1978,
edição Dom Quixote)
A imagem é feliz. Todos os dias uma peça. Todos
os dias. Com trabalho, muito trabalho. Mais a
disciplina. A carreira de Ronaldo como um puzzle,
a imagem feliz de Cristiano sintetiza o percurso
do jogador. Marcelo introduziu a palavra sorte.
O internacional português completou a frase
com “dá muito trabalho”. Ficou
“a sorte dá muito trabalho”.
Ronaldo deixou-o claro: não atribui peso
excessivo à sorte. Faz parte, sim. Mas está longe
de ser suficiente e de nada serve se a acompanhá-la
não existir uma mentalidade forte, a vontade
de fazer sempre mais, de chegar mais longe. Saber
“aproveitar a sorte”. Não desistir. “Por vezes tens
de te desafiar a ti mesmo, já não estás a desafiar
alguém”, revela Cristiano.
Traçar objetivos, sempre novos. Ser persistente.
Perceber que futebol, no início divertimento, hoje
é “trabalho”. Valorizar o talento. “Sim, foi isso que
fiz, valorizei o talento que tinha”, sintetiza Ronaldo.
A conversa entre Cristiano Ronaldo e Marcelo
Rebelo de Sousa foi gravada na casa do jogador
em Madrid, no início de janeiro, e mostrada no
Football Talks, no Centro de Congressos do Estoril.
Muito difundida em Portugal e no Mundo, está
na íntegra no canal oficial da Federação Portuguesa
de Futebol, no Youtube. O vídeo, com pouco mais
de 15 minutos, já foi mostrado mais de 1,2 milhões
de vezes, o que o torna o mais visto de sempre
na conta FPF.
Já perto do final do encontro, o “Super Homem”
“Em princípio, todo o português que sabe ler e
escrever se acha apto para tudo, e o que é mais
espantoso é que ninguém se espante com isso”
Eduardo Lourenço, “Somos um povo de pobres
com mentalidade de ricos” (in “Labirinto da
Saudade”, 1978, edição Dom Quixote)
FPF360 85
Ciclista
RUI
COSTA
ASF
A minha carreira enquanto desportista já passou
por algumas modalidades. Como todas as
crianças da minha idade, sonhava ser um grande
jogador de futebol. Na escola dava uns pontapés
na bola mas percebi que esta modalidade não
era “a tal”. Antes de descobrir que era o ciclismo
que me preenchia, ainda experimentei o ténis de
mesa, o atletismo e o karaté.
Sempre estive ligado ao desporto e cresci a
ver futebol. O meu pai é um fervoroso adepto
e juntávamo-nos a ele no sofá. Venho de uma
família humilde, que trabalha no campo, ir ao
estádio era um luxo a que estávamos limitados.
Lembro-me que o primeiro jogo que fui assistir
ao vivo foi no estádio dos Arcos. Era uma partida
entre Rio Ave e Porto, andava eu na casa dos
13 anos. O meu pai era e é portista e por isso
puxávamos pelo Porto.
Desde o pontapé de saída até ao apito final
foi um fervilhar de emoções. Vivemos cada
pontapé, cada instante com a intensidade
requerida para a primeira vez num estádio.
Lembro-me que estava quase cheio e que
aquelas gargantas estavam afinadas e em
sintonia. Marcou-me cada grito e salto do
meu pai aquando de uma falta e a intensidade
dos festejos quando o Porto marcou...
Ele transbordava alegria.
O ambiente ali vivido ficou de tal forma cravado
na minha memória que ainda hoje consigo
lembrar-me de tantos pormenores. Ganhou
o Porto e por isso foi motivo de festejo durante
toda a semana. Para mim e para o meu irmão
foi fantástico, especialmente porque isso
representava maior folga na ajuda que dávamos
no campo, do qual éramos pouco adeptos.
(risos)
Os anos foram passando, o ciclismo ia
tornando-se mais sério na minha vida e eu
cada vez mais dedicado, muitas horas entre
treino e competição. Mas os grandes dérbis não
perdíamos, a não ser que houvesse prova de
ciclismo. Na minha história de desportista
a maior coincidência foi eu ter sido ciclista
de um clube de futebol. Fui contratado pelo
Benfica, que lançou uma equipa ciclista para
a estrada em 2007 e 2008. Em 2007 ganhei
muitas provas mas 2008 foi marcante. Nesse
ano, enquanto ciclista do Benfica e ao serviço
da seleção, fui o melhor ciclista do mundo,
levando a nossa seleção a conquistar a Taça
das Nações frente a grandes potências
como a França, Itália e Espanha.
Esses resultados, enquanto ciclista do Benfica,
foram a minha rampa de lançamento para
o estrangeiro, para o escalão mais alto do
ciclismo que todos os ciclistas ambicionam,
a World Tour. Guardo bonitas memórias desses
dois anos. Lembro-me de a nossa equipa ser
apresentada em pleno estádio da Luz – cheio –
antes de um jogo. O nosso estômago estremecia
à medida que chamavam pelos nossos nomes
nos altifalantes... Aplausos de grande escala
que nunca mais esquecerei e que só um estádio
cheio consegue proporcionar.
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FPF360
STEVEN GOVERNO | GLOBAL NOTÍCIAS
JOSÉ FANHA
Poeta, escritor e arquiteto
Nasci no início dos anos 50. A televisão só muito
timidamente apareceu em 57 e quem dominava
o espaço da casa e abria a janela para o mundo
era o aparelho de rádio. Foi assim que cresci
com o futebol ao domingo pela voz do Artur
Agostinho.
O meu pai e o meu irmão eram ferozmente
do Sporting e eu, que era o miúdo da família,
fui catrapiscado pelo benfiquismo tranquilo
do meu tio Alberto.
São misteriosas as razões que nos levam
a entregar o coração a esta ou àquela equipa
e até se diz que pode a vida dar as voltas que der
mas a paixão clubística nunca se alterará. Talvez
seja verdade. No entanto, ando cá a pensar em
começar a torcer pelo S. Lourenzo de Almagro,
a equipa argentina do Papa Francisco e do meu
amigo Alípio de Freitas. Mesmo que o faça não
me parece que isso venha beliscar o benfiquismo
que continua a tomar-me conta das emoções
mais ou menos domingueiras.
Em 61 entrei para o Colégio Militar que ficava
a coisa de 500 metros do antigo Estádio da Luz.
Podíamos ir assistir aos jogos sem pagar desde
que fôssemos fardados. Era uma festa. Uma
ansiedade. O tempo do Zé Águas, do capitão
Coluna, do Simões, do Zé Augusto, do Zé
Torres e do miúdo Eusébio que tinha vindo de
Moçambique para se tornar no maior do mundo.
Assisti aos jogos das Taças dos Campeões do
Benfica contra o Real Madrid, o Tottenham,
o Feyenoord, o Ajax, sei lá que mais. Num país
miserável, triste e cinzento, era uma alegria
sem nome podermos ter de nós uma imagem
de talento, de raça, de alegria.
Os jogos das finais das duas Taças dos Campeões
ganhas pelo Benfica e o Campeonato do Mundo
de 66 em Inglaterra já os vi na televisão.
Era um tempo de paixões sem limite onde
brilhavam essas estrelas que foram heróis da
minha juventude ao lado dos três mosqueteiros,
do Principezinho, do Tom Sawyer ou do João
Sem Medo, porque heróis são heróis,
sejam do futebol ou da literatura.
Mais tarde vim a conhecer e a tornar-me amigo
de alguns deles. O Zé Augusto, o Eusébio, o Zé
Torres (e até foi pela minha mão que ele entrou
em 3 ou 4 episódios da telenovela “Na paz dos
anjos”). E outros mais jovens, o Toni, o Carlão,
o Humberto Coelho.
Agora já não consigo achar tanta graça ao
futebol. Mudámos muito os dois. Estou mais
velho mas continuo o poeta capaz de sonhar
com utopias e entregando o peito a muitos
projectos de solidariedade.
O futebol tornou-se global, o que não impede
de se tornar, por vezes, palco da vergonhosa
selvajaria dos hooligans, das claques, da
violência, da droga e sei lá que mais. Globalizado
será balizado, mas muito mais domesticado.
Com o domínio desta economia que mata,
a alegria passou a ser empacotada pelas marcas
comerciais, pelos contratos milionários,
pelos proprietários multinacionais.
Os jogadores já não heróis a sério. São uns tipos
cheios de agentes, ténis às risquinhas da marca
não sei quê e penteados cheios de brilhantina
anticaspa.
Alguns deles jogam como o caraças. Mas muitos,
e cheios de talento, são apenas bonecos nas
mãos desta máquina feroz que domina o mundo.
Não gosto nada de parecer um daqueles tipos
que repetem vezes sem conta: “No meu tempo
é que era bom!” Em verdade, em verdade,
no meu tempo é que não era nada bom. Vivíamos
numa ditadura negra e qualquer coisinha servia
para nos acender uma imensa festa no peito.
Depois, veio o 25 de abril, a liberdade, a
democracia. E muitos de nós sonhámos com
um tempo diferente deste, um tempo maior, de
mãos limpas num país verdadeiramente novo.
Não foi nada disso que aconteceu. As coisas
estão feias. A pobreza cresce, o desemprego
aumenta, a inteligência de quem manda mingua.
Mas apesar de tudo, e vá-se lá explicar esta
coisa das paixões, ao domingo ou ao sábado, o
meu coração bate um bocadinho mais depressa
quando ouço a voz do locutor a gritar na rádio:
“Gooooooooooooooooooolo do Benfica!”
FPF360 87
CARLOS
GODINHO
Diretor da Divisão Desportiva da FPF
EURO-96
APURAMENTO
HERNÂNI
GONÇALVES
Estávamos em 1994 e a Seleção Nacional tinha
tido vários insucessos recentes nas diversas
competições internacionais. Desde 1986,
no México, que a Seleção não estava presente
nos grandes palcos e a direção da FPF tomou
a decisão de mudar a linha de orientação
que vinha seguindo desde há uns anos,
substituindo o então Selecionador Nacional.
Depois de um selecionador estudioso, com
resultados expressivos nas camadas jovens,
onde pontificaram os dois títulos mundiais
de sub-20, optaram por um treinador mais
pragmático, menos voltado para as questões
estruturais e mais apoiado pelos poderes então
vigentes. Saiu Carlos Queiroz e entrou António
Oliveira. A equipa técnica constituída por
Oliveira assentava sobretudo em pessoas da
sua confiança pessoal ou que de qualquer forma
com ele já tinham colaborado noutros projetos.
Nessa equipa técnica estava integrado o Prof.
Hernâni Gonçalves, na altura conhecido por
“Professos Bitaites”. Por testemunho de várias
pessoas amigas sabia que era uma personagem
única no futebol e na vida.
Não foi preciso mais do que um dia de estágio
para o entender, não só quanto à sua filosofia
de vida mas também noutros aspetos,
nomeadamente uma faceta pouco salientada,
o seu nível cultural bem acima da média.
As histórias que todos vivemos nesse magnífico
período, de 1994 a 1996, são inúmeras. Desde
as publicáveis a outras mais reservadas,
um livro não chegaria para contá-las em
pormenor. Senhor de uma inteligência ímpar,
com um sentido de humor sem igual, era
uma pessoa invulgar apesar da sua aparência
nalguns casos distante e quase austera. Num
círculo mais íntimo as suas histórias, as suas
análises ao mundo e às pessoas, as que o
rodeavam diretamente e a outras que faziam
parte da atualidade de então, produziam
frequentemente momentos de riso e boa
disposição para quem estava junto dele.
O Prof. Hernâni Gonçalves lembrou-se, antes
do primeiro jogo de qualificação, na Irlanda do
Norte, de começar a batizar/identificar cada
ação. Atendendo ao momento conturbado
que se vivia em Belfast por força da divisão
da região em duas áreas distintas, católicos
e protestantes, decidiu denominar esse jogo
por “As Forças Armadas Estão Preparadas”.
Forças armadas eram a seleção e todo o grupo
de trabalho - pretendia desse modo afirmar
que como íamos para um cenário de guerra
urbana estávamos preparados para todas as
adversidades.
Após o avião ter levantado do aeroporto
de Lisboa, o Prof. Hernâni, no microfone
interno junto ao cockpit, fez uma declaração
para todos os passageiros começando
assim: “Comunicado do Comando Chefe
das Forças Armadas. As chefias das Forças
Armadas informam que...”, partindo depois
88
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para uma pequena análise do objetivo a que
nos propúnhamos, ou seja, ganhar o jogo
e partir para a qualificação para o Euro-
96. Terminou dizendo “As forças armadas
estão preparadas”, que é como quem dizia,
descansem porque vamos ganhar, com guerra
ou sem ela. Foi uma surpresa e, com um misto
de brincadeira mas também de motivação,
todos, ou a maioria, entenderam aquelas
palavras. No final ganhámos e demos o
primeiro passo, decisivo para o Europeu.
Depois, para cada ação, uma mensagem e um
discurso. Lembro-me de algumas: no Áustria-
Portugal - Baile no Palácio de Schonbrunn,
no Liechtenstein-Portugal - Tempestade nos
Alpes, e no particular Inglaterra -Portugal -
“Lady Di, We Love You”.
Quanto à primeira: íamos dar “baile” no
estádio do Prater, e demos. A segunda era que
íamos arrasar o Liechtenstein e ganhámos por
7-0. Quanto à terceira, Diana estava sendo
maltratada na praça pública britânica e ele
quis dessa forma dizer aos ingleses que nós,
portugueses, estávamos contra essa onda
geral e que o nosso apoio à princesa seria dado
em campo, o que veio a acontecer com um
empate em Wembley perante a forte equipa
inglesa. Como curiosidade, um órgão de
comunicação social britânico, sabendo o que
tinha sido dito, afirmou: “Estes portugueses
são doidos.”
Hernâni Gonçalves era um treinador muito
próximo dos jogadores e de toda a estrutura
e foi sempre um elemento fundamental na
coesão de todo o grupo, não só pela alegria
contagiante mas sobretudo pelas capacidades
de motivação. Com Hernâni Gonçalves ao
lado raramente alguém se sentia triste.
Tanto poderia ser dito sobre o Prof. Hernâni
Gonçalves… No entanto, termino com uma
das suas frases mais emblemáticas: “Carlos
Godinho, o único original sou eu, os outros, os
que me pretendem imitar, são fotocópias e de
muito má qualidade.”
Não fui um seu amigo presente em
permanência dada a distância que nos
separava, mas sempre que nos encontrávamos
era com um misto de amizade e respeito
mútuo que nos tratávamos. Hernâni
Gonçalves foi uma das pessoas mais
surpreendentes que encontrei na vida
e ao passar praticamente um ano sobre
a sua morte aqui fica uma pequena
mas sincera homenagem.
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NUNO PINTO FERNANDES | GLOBAL IMAGENS
RITA FERRO
RODRIGUES
Maria Capaz de Tudo
Apresentadora /
jornalista
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Reza a história que quando os gémeos
nasceram, o pai Eduardo (antes sequer de os
visitar) correu a inscrevê-los como sócios do
Sporting.
Numa família de tradição democrática, o
Clube não se escolhe. É mesmo imposto.
Os Ferros são todos Leões e o fervor roça
a doença. É um amor que não se explica.
Uma coisa louca e linda. Cresci no meio
dessa loucura que nos contamina sem
contemplações. E o Futebol ensinou-me
coisas muito bonitas. Essenciais, diria mesmo.
Ensinou-me a perder e a continuar. A perder e
a ficar com os perdedores. Aguentar a derrota
reforçando o amor pela camisola. Ensinou-
-me que na alegria de um golo bem marcado
somos todos crianças (vi o meu pai e o meu
avô comemorar golos com abraços dançados e
cambalhotas improváveis nos sofás onde por
norma liam, recatados, os seus jornais).
O futebol ensinou-me a força da cumplicidade
de um amor partilhado, aquele arrepio na
espinha que se sente quando se entra num
estádio cheio, um hino soletrado em conjunto,
um cântico em sintonia de bancada para
bancada, o corpo todo a vibrar. Não se trocava
aquele momento por nenhum. É ali que
queremos estar.
Ensinou-me que não faz mal chorar quando
as derrotas doem. Não faz mal! Não é “só
futebol”. É futebol, porra! E naquele momento
não há nada mais importante. Depois passa,
claro. Mas chorámos porque precisámos. E foi
bom chorar.
Ensinou-me a respeitar o adversário sempre.
Sobretudo quando não apetece respeitar
(porque o adversário come a relva e nos
dificulta a vida… Porque joga melhor que
nós e nos obriga a um esforço de absoluta
superação).
Ensinou-me a beleza do trabalho de equipa.
O trunfo da concentração e o foco para atingir
objetivos.
Presenteou-me tantas vezes com a
bebedeira de euforia da vitória suada, aquele
campeonato decidido na última jornada,
Portugal nas ruas com a Seleção, a loucura
de uma conquista partilhada por todos,
todos realmente iguais naquele momento
de felicidade em que durante um bocadinho
mágico, o tempo quase para e tudo se esquece,
tudo se adormece... E a vida é só bola e alegria.
Tão bom gostar de Futebol.
Obrigada, Pai, por esta herança de amor e
loucura que torna a vida definitivamente mais
gira de se viver. E viva o Sporting, claro.
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Navegador Solitário
RICARDO DINIZ
“Como assim, não gostas de futebol?!”. Os meus amigos não
compreendiam, mas era mesmo assim. Só tinha olhos para o mar, onde
passei a minha juventude nas praias da Caparica. Primeiro, durante anos,
em cima de uma prancha de esferovite que me assava a barriga. Com
trabalho e um disciplinado mealheiro lá consegui chegar ao ‘bodyboard’
e mais tarde ao ‘longboard’. Tudo isto antes de pôr pé num barco à vela
pela primeira vez e perceber, nesse momento, que o meu caminho passava
mesmo pelo mar. Enquanto os meus amigos iam à bola ou adaptavam
a agenda do dia para conseguiram assistir “àquele jogo” na TV, eu não
entendia todo aquele entusiasmo e preferia estudar imagens de satélite
e tabelas de marés, para prever onde é que as ondas iriam estar melhores
no dia seguinte. Ainda hoje a meteorologia é uma das minhas grandes
paixões. Futebol? Tanta loucura para quê? É só uma bola e alguns tipos a
correrem feitos doidos. Parecia-me primitivo até…
Quando vivi em Londres com o meu Pai, fomos uma vez a uma das muitas
Casas do Benfica espalhadas pelo mundo. No meio de medalhas e troféus
também havia ‘posters’ de jogadores de futebol. Parecia uma espécie
de museu, sem grande piada para um miúdo de 7 anos. Mas recordo com
carinho que, naquele momento, aquele espaço aproximava-me do meu
País e das “coisas” de Portugal. E isso soube-me bem. Não esqueci esse
cantinho de Portugal no estrangeiro e o seu papel junto da comunidade
Portuguesa emigrada em Londres.
Mais tarde, num enorme estádio de futebol em Lisboa, o meu Pai
apresentou-me a um senhor muito simpático e por quem o meu Pai
demonstrava um enorme apreço e admiração. Percebi que havia uma
boa amizade entre eles. “Sabes quem é este grande senhor?”, perguntava
o meu Pai. Eu tinha 9 ou 10 anos. Sem grande interesse limitei-me a
cumprimentar o senhor, educadamente. Percebi que aqueles dois adultos
sorriam com a minha ignorância, mas não me fizeram sentir mal por isso.
Anos mais tarde entendi melhor essa situação. Porque aquele senhor era
mesmo UM Senhor. Era o Eusébio!
Após seis anos a viver em Londres voltámos para Portugal. Das primeiras
coisas que me recordo é que havia uma equipa de futebol que não ganhava
o Campeonato há muitos anos! Por simpatia quis saber mais sobre essa
equipa e comecei a torcer por eles. Até aos dias de hoje. E depois veio
o Euro 2004. E a partir daqui tudo mudou. Nada parecia mais importante
para mim do que ver os jogos da Seleção Nacional. Dei por mim a falar
mais sobre “bola” e até a ter algumas opiniões! Mas ainda não fazia ideia
o que era estar “fora de jogo”... As meias-finais com a Inglaterra foram
o momento desportivo que mais me fez sofrer até hoje. Eu só dizia
“é pá temos de ganhar isto, temos de ganhar isto!” Quando perdemos
para a Grécia na final, chorava o Cristiano e chorava eu!
Fiquei deprimido semanas.
Posso andar sozinho no mar, mas interesso-me muito pela dinâmica
humana, pelo trabalho de equipa e essa saudável histeria de massas em
relação a coisas que nos fazem vibrar e sofrer. Sou um curioso observador
de comportamentos humanos e é especial quando tenho a oportunidade
de contribuir para o bem-estar dessas pessoas, seja com as palestras que
faço em Portugal e também um pouco por todo o mundo em empresas e
universidades, seja com sessões de ‘coaching’ para empresários e atletas,
entre outros. Adoro ver pessoas felizes e realizadas. Como ‘coach’,
acompanho pessoas fascinantes e na verdade quem fica motivado
com a sua evolução e sucesso sou eu!
Ao longo dos anos passei a compreender melhor o futebol e raramente
perco um jogo da Seleção. Esteja onde estiver, levanto-me e canto de pé
o Hino Nacional com eles, sempre emocionado. Aliás, em 2014 fui sozinho
à vela até ao Brasil, para dar um abraço de força aos nossos jogadores antes
do Mundial. Foi uma promessa que fiz durante o jogo de qualificação com
a Suécia. Tínhamos que ganhar aquilo! Não podíamos não ir ao Brasil!
A bordo transportei uma linda garrafa feita na Marinha Grande, com
milhares de mensagens de adeptos de todo o mundo, cada uma impressa
em papel de cortiça e carinhosamente enrolada com um cordel e colocada
na garrafa. O gesto foi muito bem recebido e representou uma tremenda
honra para mim estar com os “nossos rapazes” no Brasil!
Posso não ter jeito nenhum para jogar futebol (nem consigo
dar 3 toques!). Mas hoje em dia também vibro com o futebol
nas suas diversas componentes. De resto, vivó Sporting! ;)
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NUNO MOREIRA
Apresentadora
TÂNIA RIBAS
DE OLIVEIRA
Sou filha e neta de sportinguistas e, talvez por
isso, tenha sido desde cedo óbvia a minha ligação
ao clube. Ia ver os jogos em casa com os meus
pais, irmão e avô!
Lembro-me bem do cheiro a castanhas assadas
no exterior do estádio e do sabor do nougat e das
queijadas... Lembro-me do entusiasmo do meu
pai e da tranquilidade do meu avô. Lembro-me
dos cânticos da Juve Leo e da Torcida Verde, que
eu e o meu irmão conhecíamos de cor e salteado.
Tínhamos os discos e tudo! “camisola verde,
verde e branca!!!...”, já havia muita música antes
do “só eu sei porque não fico em casa”.
Eu gostava do Manel Fernandes, do Oceano,
do Acosta, do Iordanov, do Rui Jorge. Gostava
do Dani, do Sá Pinto, do Beto e de tantos outros.
Tinha uma camisola oficial, vários cachecóis
e bandeiras também mas, para ser honesta,
o que me fez amar o Sporting para sempre
não foi o futebol.
Entrei com apenas quatro anos na ginástica
e só saí com 28! Os meus quase 25 anos
de Sporting foram de arcos, fitas e massas
nas mãos! Foram recheados de amizades
puras, da inocência da infância à turbulência
da adolescência. Os primeiros namoros,
as primeiras viagens sem os pais, os saraus.
Fui à Alemanha, à Holanda, à Áustria e à Suécia
com a ginástica. Corri Portugal de lés a lés todos
os fins-de-semana! Primeiro com as Pompons,
depois com as Debutantes e por fim com
as Imagens. As professoras Ana Alves
e Rita Garcez foram preponderantes no meu
crescimento. As minhas amigas têm, ainda hoje,
um lugar especial no meu coração.
O meu Sporting é feito de honra e orgulho.
Com mais ou menos golos, melhores ou piores
campeonatos, com Jesus ou sem ele, o meu
Sporting é feito da garra de quem ama. E ama-se
um clube para sempre.
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RUI BRAGANÇA
Campeão da Europa de Taekwondo
94
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Para mim, tal como para todos os que nascem
em Guimarães, só existe uma realidade: ser
vitoriano! Não porque nos é imposto, mas
apenas porque o ambiente da cidade e dos que
nela habitam faz com que nem haja necessidade
ou vontade de apoiar outros clubes. Se somos
portugueses apoiamos Portugal portanto, se
somos de Guimarães apoiamos o Vitória, no
futebol e em todas as outras modalidades.
Posto isto, é obvio que quando era mais novo
tinha lugar marcado no estádio! Durante uns
anos esta foi a minha realidade dos fins-desemana,
mas à medida que fui evoluindo
no taekwondo passei a ter mais treinos e
competições, muitas vezes ao mesmo tempo
que os jogos, até que chegou uma altura em que
deixou de ser compatível e deixei de ir aos jogos
para continuar a minha progressão no desporto.
Mas ainda hoje, quando tenho a oportunidade
de ir ao estádio, parece que nada mudou e que
volto atrás no tempo! As mesmas pessoas, o
mesmo ambiente e o mesmo sentimento! Tudo
continua lá à espera que volte a ter tempo para
acompanhar os jogos mais de perto.
Quando deixei de ir aos jogos, desliguei-me um
bocado do futebol e hoje em dia nem sequer
costumo ver os jogos na televisão, apesar de me
ir mantendo minimamente atualizado sobre
resultados ou classificação e quando são jogos
“grandes” ou da Seleção aproveitar para ver o
jogo numa esplanada com amigos.
Como o Vitória não é só futebol, seria um gosto
para todos os vimaranenses poder representar
o seu clube e ser o melhor naquilo que se pratica
com o Rei ao peito. Essa oportunidade sorriume
em novembro de 2014 quando foi aberta a
secção de taekwondo e desde então posso, não
só defender as cores do meu país mas também
da minha cidade. Não que antes disso não
levasse Guimarães comigo para todo o lado e
todas as competições, mas esta é uma forma
mais oficial e mais “reconhecível”, por parte
dos vimaranenses e dos meios de comunicação
social.
Felizmente Guimarães é uma cidade à parte no
que toca às modalidades ditas amadoras. Os
adeptos que vão ao futebol são os mesmos que
estão no mesmo fim-de-semana a ver os jogos do
basquetebol ou do voleibol. Mas infelizmente,
esta não é a realidade em todo o lado. Não
querendo descurar o futebol e a sua importância,
não posso deixar de ficar triste por toda a
atenção e apoios que lhe são dados, muitas vezes
em detrimento de todas as outras modalidades.
É verdade que em termos futebolísticos,
Portugal é uma das grandes potências e para
o provar temos entre muitos outros exemplos,
o melhor jogador do mundo a fazer maravilhas
e a bater recorde atrás de recorde. Mas noutras
modalidades também temos atletas que são os
melhores do mundo naquilo que fazem, muitos
outros que estão taco a taco com a elite mundial
e que no entanto não recebem qualquer tipo
de apoio por parte da comunicação social ou
patrocinadores.
Acho que se esta mentalidade mudasse um
pouco, o futebol não ia perder em nada devido
à sua dimensão mas as outras modalidades
poderiam ganhar bastante e consequentemente
Portugal e os Portugueses.
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Produtor e apresentador
de televisão
JÚLIO ISIDRO
Quando ouvia na rádio autorizados
comentadores repetirem exaustivamente a frase
batida: - A bola é redonda! – justificando assim
o que o jogo tem de imprevisível, inesperado,
imponderável, circunstancial e ocasional,
acenava que sim com a cabeça.
Tão redonda que ao longo da minha vida nunca
acertei com o pé na zona do esférico que a minha
cabeça ditava. Logo, nunca uma bola chutada
pelo menino Julinho alguma vez seguiu a direção
por ele pretendida.
Parti o vidro da bandeira da porta do corredor
com uma bola feita de meias da avó, nunca me
deixaram jogar à “chincha” na placa central da
minha rua, no tempo em que os automóveis
ainda só estacionavam junto aos passeios e,
humilhação suprema, tive uma bola de cautchú
guardada anos a fio no armário do quarto dos
meus pais, vazia, enrugada e tão triste quanto eu,
por falta de uso.
Cresci, e nos dérbis de areia molhada da
Figueira da Foz e mais tarde da Costa da
Caparica só joguei por piedade dos meus
amigos. Dividiam-se as equipas e, depois,
sobrava o ímpar, o contrapeso, o excedentário:
- O Júlio vai para a baliza!!
Lembro-me de jogar em equipas que integravam
o Toni e o Humberto, que olhavam para
o artista da televisão com ar paternalista.
Quando metiam golo na baliza que eu mal
defendia, faziam-no assim como quem dá
um capotaço num garraio, com elegância para
não estragar a epiderme do guardião de nada.
Um dia porém, joguei ao lado do Eusébio,
sim, do nosso Eusébio.
Foi num encontro promovido a favor da
UNICEF entre artistas de Portugal e do Brasil.
Estádio do Restelo cheio. Entram Tó Zé
Martinho, Carlos Paião, José Cid, Paco Bandeira,
Milo, Badaró, Júlio César, Eusébio, outros
mais e… eu.
A equipa canarinha cheia de vedetas das
novelas e cantores. O pontapé de saída de Raul
Solnado e Beatriz Costa. O árbitro ocasional
Fernando Pessa.
Momento crucial do jogo: - Eusébio corre pela
esquerda, devagar, passa um, passa outro, outro
ainda deixa-o passar porque o respeito é uma
coisa muito bonita. Júlio corre pelo centro do
terreno e está em frente da baliza, não em fora
de jogo. O pantera negra centra rasteiro e o
esférico está em frente de Júlio. O goleiro sente
a angústia do golo inevitável. O esguio avançado,
praticante diário de ginástica, levanta a perna e
dá um chuto monumental… na relva!
A bola imóvel sorri de escárnio, o público ri
e Eusébio profere palavras alusivas ao ato.
Nasci para tudo: produtor e apresentador de
televisão, guarda-freio de elétricos, funileiro
à porta, caixa de supermercado, aviador,
músico e cantor de ópera, mas com uma
deficiência congénita para o futebol.
Vejo-o sentado no sofá, dou pontapés nervosos
no ar quando os jogadores falham, aplaudo os
artistas sejam quais forem as suas camisolas, não
padeço de qualquer doença emblemática, vou
ao estádio algumas vezes, não gosto dos debates
na televisão sobre aquilo que dizem ser mas não
é o futebol, e quando for grande vejo-me numa
academia a aprender a arte do pontapé na bola.
Boas recordações: o meu programa de rádio
Febre de Sábado de Manhã com 50 mil meninos
em Alvalade e o televisivo Passeio dos Alegres no
Boavista, no Setúbal e no Restelo, sempre cheios.
Num deles pontapeei várias bolas para o público
e acertei… não sei em quem!
Desejos: animar uma qualquer final nacional,
Taça de Portugal ou da Liga com uma exibição
de aeromodelismo. Aí sim, saberei o que estou
a fazer.
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Treinador nacional de judo
NUNO
DELGADO
O meu pai foi jogador de futebol e são muitas
as histórias que me contam sobre os seus
feitos no Sporting da Cidade da Praia, em
Cabo Verde, e no U. Almeirim, em Portugal.
Tenho fotografias dele com o Eusébio e outras
lembranças marcantes, mas a verdade é que
nunca percebi a razão de ele nunca ter aceitado
convites para a primeira divisão. Não consegui
seguir-lhe as pisadas, embora tenha jogado
na rua, como todas as crianças, e ainda hoje faço
as minhas ‘’peladinhas’’ com amigos. A verdade
é que nunca tive o bichinho do futebol. Sempre
fui bom guarda-redes mas muito pouco
virtuoso com a bola nos pés!
Tenho muitas e boas memórias relacionadas
com o futebol. A primeira vez que me recordo
de ver um jogo foi aos 7 anos, motivado pelo
meu padrasto, um adepto fervoroso do Benfica,
mas que, apesar da intensidade dessa paixão,
torcia sempre pelas equipas portuguesas. Ainda
lembro, como se fosse hoje, a raça e o espírito
de equipa daquele conjunto liderado por
grandes figuras como António Sousa, que
acabou por, nesse dia, marcar um grande golo.
Sem saber a razão, torci com toda a minha
energia pela equipa que jogava de azul e branco
e sofri em cada instante, até que aos 41 minutos,
quando o polaco Boniek marca um golo
muito duvidoso, para não dizer mais, todas as
esperanças deste pequeno clube em ascensão
caem por terra. Acreditem que chorei lágrimas
de raiva e sofri imenso com esta derrota na final
da Taça das Taças contra a Juventus. O mais
engraçado e curioso é que nem conhecia bem
esta equipa, pois até então, entre o meu pai
sportinguista e o meu padrasto benfiquista, eu
não tinha ainda tido oportunidade de conhecer
aquele que viria ser o meu clube de coração. Foi
nessa mesma noite, ainda a limpar as lágrimas,
que decidi, contra tudo e todos, escolher por
convicção o clube que iria apoiar para sempre.
Aquela raça e determinação contra o grande
bastião do futebol mundial deixaram-me uma
profunda admiração. E assim foi: apesar de nada
ter a ver com o Norte e de até ter sido atleta da
Casa de Benfica de Santarém, clube onde fui pela
primeira vez campeão nacional, tomei a decisão
de ser apoiante incondicional do FC Porto.
Para todo o lado onde ia levava orgulhosamente
a minha t-shirt azul e branca e batia-me contra
todas as inquirições comuns:
- “Como podes ser do Porto?”
“Mas tu és do Norte?” “O teu pai é portista?”…
Em toda a minha juventude fui acompanhando
orgulhosamente a ascensão nacional e europeia
do Porto até à conquista do título Europeu
em 1987, com calcanhar de ouro de Madjer.
Inspirado na irreverência e garra desafiadora
desta equipa, também fui dando os meus passos
de sucesso, não no futebol mas no judo,
e acabei mesmo por ser homenageado pelo
então presidente do Sport Lisboa e Benfica,
Manuel Damásio, e algumas das antigas lendas
como Antonio Simões, Torres e Eusébio.
Engraçado que vivi então o dilema de ter que
me fazer passar por benfiquista, ou pelo menos
não dar a entender que não o era, durante essa
homenagem. Era tal a minha lealdade que passei
a noite anterior a pensar como poderia não trair
a minhas convicções. Foi então que me lembrei
de fazer umas figas durante as comemorações
onde todos se exaltavam a gritar “Viva o
Benfica”. Existem muitos outros momentos
que vivi com o futebol, mas foi assim que tudo
começou. Não sou um fanático e gosto, tal como
o meu padrasto, de apoiar todas as equipas
portuguesas, mas guardo sempre com muito
carinho a inspiração que o FC Porto me deu
para encarar um Mundo onde muito raramente
somos os favoritos. E olhando para o futuro,
acredito profundamente que a nossa seleção
Olímpica de futebol, a par dos nossos judocas,
irá dar-nos grandes alegrias já em agosto,
no Rio de Janeiro.
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Chefe de Missão aos Jogos
Olímpicos Rio-2016
Ex-atleta Olímpico
(canoagem)
COMITÉ OLÍMPICO DE PORTUGAL
JOSÉ
GARCIA
Por “culpa” do Eusébio,
sou um simpatizante benfiquista.
Não sou um adepto de estádio,
mas um empolgado e sofredor adepto
de ecrã quando joga a Seleção Nacional.
Contrariamente a muitos dos meus colegas,
torço por Portugal quando qualquer das
equipas portuguesas joga contra estrangeiras.
Fico perante um enorme dilema quando
o meu Benfica e o meu Rio Ave, clube
da minha terra, se defrontam.
Fui um atleta fruto do 25 de abril. Nesse
tempo, na minha aldeia, Azurara,
uma freguesia de Vila do Conde, a prática
de desporto era incentivada pela Comissão
de Moradores que promovia a prática
de atletismo, ginástica, futebol, andebol
e basquetebol, entre outros desportos.
Como vivia de frente para o rio, sempre
me senti atraído pelas modalidades náuticas.
Por isso, logo que foi possível, inscrevi-me
na “escolinha”, o nome que dávamos
à Escola de Remo e Canoagem da DGD.
Estávamos em 1977 e a Canoagem era algo
novo. Aliás, a federação só nasceu volvidos
dois anos. Curiosamente, na água as minhas
primeiras competições foram de remo.
À medida que começaram a chegar mais
caiaques, o meu interesse pela canoagem
foi crescendo. Até me viciar.
A minha paixão pelo desporto permitiu algo
singular: enquanto competia na canoagem
e remo, também praticava ciclismo e jogava
andebol e basquetebol. Evidentemente,
também experimentei o futebol, no Rio Ave,
mas foi mau o investimento nas chuteiras...
Ainda assim, os meus dias terminavam quase
sempre com a minha mãe a interromper
o nosso jogo de futebol na rua, com balizas
feitas pelos paralelos que, entusiástica
e inocentemente, arrancávamos do chão.
Aos domingos, para podermos jogar nos
campos do Mosteiro de Santa Clara, tínhamos
de ir à Missa e se fôssemos muito assíduos
presenteavam-nos com um sabonete.
Era um tempo sem televisão e cujas
atividades, para além da escola,
eram praticar espontaneamente desporto
e, já na adolescência, tentar a sorte
com as namoradas.
Um tempo do “vais em primeiro” ou “vais
mas é trabalhar malandro”. Um tempo em
que a amizade e a partilha eram algo muito
verdadeiro no qual as questões se esgrimiam
a punho e se resolviam, poucos minutos
depois, após fraterno abraço.
Sou conterrâneo de grandes jogadores como
André, do seu filho André André, do Paulinho
Santos, do Postiga, do Fábio Coentrão
e do “eterno capitão do Rio Ave”, o Duarte Sá.
Da missão aos Jogos Europeus de Baku e da
participação do Futebol de Praia, trago bem
marcada a capacidade organizativa dos seus
dirigentes, a excelência dos seus jogadores,
o golo com um pontapé de bicicleta do Madjer
e aquele momento em que o Zé Maria assistiu
pelo telemóvel ao nascimento do filho.
Enquanto Chefe de Missão ao Rio 2016, tenho
tido a oportunidade de conviver com alguns
dos jogadores que nos habituámos a admirar
no ecrã, o Humberto Coelho, o Pauleta
e o Rui Jorge, com quem partilho o sonho
pela glória do pódio olímpico e que aproveito
a oportunidade para desejar máximos
sucessos a si e à sua equipa.
Vindo de uma modalidade com realidades
mediáticas e financeiras tão distintas
do Futebol, não posso deixar de apelar
à aproximação dessas realidades e expressar
a minha grata satisfação ao verificar que as
nossas “vedetas” são no seu íntimo pessoas
simples que falam uma linguagem universal
característica de todos os grandes atletas:
muito talento, muito empenho, muita
dedicação, muita persistência, uma grande
resiliência, um querer incrível e que quando
beliscados, somos todos de carne e osso.
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Mestre da Guitarra Portuguesa
ANTÓNIO
CHAINHO
Gosto de futebol. Sempre gostei e cheguei
mesmo, quando cumpria o serviço militar
em Moçambique, a jogar pela Seleção
Militar da região Norte contra a seleção do
Exército da Suazilândia.
Mas o que me cativa no futebol e que vem dos
meus tempos de meninice, dos “ cinco violinos,”
do Rogério, estrela do meu Benfica, o que me
cativa mesmo, não é o desporto que se pratica, mas
a arte que dele se liberta, como se o tempo ficasse
suspenso e nada mais contasse do que a harmonia
à solta naquele retângulo mágico.
Sou músico, essa é a minha arte, é através da Guitarra
que expresso os meus sentimentos, quando toco,
sou eu, o meu instrumento e o mundo, nada mais conta
e no entanto, às vezes, quando vejo um jogo na televisão,
ao aperceber os movimentos, as pausas, a velocidade
descontínua que as equipas imprimem ao jogo, o tempo
dos solistas... Retiro o som, pego na minha guitarra e toco,
acompanho o jogo, os tempos do jogo, a euforia dos golos
e a deceção de uma jogada que se perde.
Toco e ao tocar jogo também, estou lá, naquele palco,
a participar, como se as equipas fossem orquestras e eu o improviso.
Acreditem ou não, algumas das minhas
músicas, foi assim que as compus.
Eis então por que gosto de futebol.
FPF360 99
Cineasta
LEONEL
VIEIRA
Não nasci fadado para grandes proezas
futebolísticas. Nos meus tempos de liceu,
em Miranda do Douro, gostava de jogar, como
quase toda a gente. E jogava, essencialmente,
por três razões: por ser uma espécie de líder
de grupo entre os amigos, daquele tipo que
não é deixado de parte pelos outros seja
no que for; por ser grande e dar jeito para
a defesa; porque na minha turma éramos
apenas cinco rapazes e portanto tínhamos
de jogar todos para participarmos
nos torneios de futebol de cinco.
Uma vez tínhamos uma final para jogar
e o Cardoso - ainda hoje um dos meus
melhores amigos e, ele sim, excelente
futebolista - estava com gripe em casa. Sem
os pais dele sonharem, fomos buscá-lo
depois do almoço, equipámo-lo e pusemolo
a jogar. De cada vez que passavam por ele
quase caía, só com a deslocação do ar. Estava
mesmo doente, o rapaz, mas sem ele éramos
desclassificados! E acho que ganhámos.
Aos 15 anos tive um problema de saúde que
me obrigou ao internamento em ortopedia,
em Coimbra. Esse curso intensivo de hospital
coincidiu com o Campeonato da Europa
de 1984. Nessa altura conheci jogadores
do União de Coimbra e da Académica, que iam
lá para tratamentos e intervenções cirúrgicas,
e o entusiasmo deles ajudou a contagiar-me.
Passei, então, a viver intensamente a Seleção
Nacional e lembro-me de ficar profundamente
triste quando fomos eliminados
nas meias finais.
Durante a minha infância e juventude
a informação corria a uma velocidade bastante
diferente da de hoje. E o volume era bem
menor. As escolhas das pessoas em relação aos
clubes de futebol que apoiavam eram ditadas,
sobretudo, pelos resultados que
se conheciam, por isso não espanta que eu,
à semelhança do que sucedia com a maioria
das pessoas no Interior Norte, tenha ficado
benfiquista. O crescimento do número
de adeptos do FC Porto deu-se mais tarde,
justamente quando começaram a surgir as
vitórias em série e os troféus. Nesse período já
eu estudava no Porto e tinha deixado de jogar.
A vida da malta das artes era ligeiramente
contrária à do pessoal do desporto: copos
e noites não são compatíveis com saúde
e futebol. No entanto ia vendo os jogos e
as sucessivas derrotas do Benfica chegaram
a fazer-me desabafar que mudaria
para o FC Porto!
Não aconteceu, claro, e tive inclusivamente
uma reaproximação grande ao Benfica há três
anos. A minha produtora foi convidada para
fazer os filmes publicitários do clube
e em contrapartida tive, durante duas épocas,
um camarote para ir aos jogos. Eu costumava
dizer aos amigos e aos clientes que lá levava
que estavam no melhor lugar do estádio a
seguir ao do presidente, porque o camarote
ficava mesmo em frente ao dele, na bancada
oposta. Gosto deste lado agregador do
futebol. Um estádio cheio é emocionante.
Hoje identifico-me, essencialmente, com
a Seleção Nacional. Foi uma coisa que me
ficou desde o tal Europeu de 84. Não sou um
nacionalista: viajo muito, estudei em Espanha,
trabalho em vários lados, conheço mais de 50
países e nunca me fecharia numa ideia de País
limitada a um determinado espaço físico, de
fronteiras. Mas dou uma grande importância
às raízes, ao saber de onde vimos e em que
é que isso nos ajudou a ser o que somos hoje.
Acho que a Seleção representa muito bem
esse lado de uma identificação comum entre
os portugueses, e por isso sofro, emociono-me
a ouvir o hino, fico triste quando perdemos.
Há ali um sentimento de Nação muito forte,
se calhar parecido com o que os nossos
antepassados experimentavam ao ver
os exércitos alinhados antes de partirem
para as guerras.
Os portugueses têm muito talento.
No futebol como na generalidade das áreas.
Há talento e pessoas talhadas para ganhar,
como se vê no exemplo do Cristiano Ronaldo.
Mas coletivamente nem sempre as coisas
funcionam e esse talento nem sempre tem
a expressão que poderia ter. Acho que a
Seleção Nacional está fadada para, um dia,
ter um pouco mais de sorte e ganhar alguma
coisa de muito relevante. Quem sabe
se não será já em França, 32 anos depois?
100
FPF360
Escritor e letrista
CARLOS TÊ
É muito fácil para mim falar de futebol, mais
até do que qualquer outra coisa. Pode parecer
estranho, mas não é. Refiro-me ao futebol
vadio, bravio, não federado, que se pratica
em qualquer lado e que parece convocar
as hostes com uma trompa inaudível. Esse
futebol ocupa um papel central na minha
vida e vem antes do resto, da música, dos
livros. Pela simples razão de que não havia
mais nada e a infância, na sua necessidade
de queimar energia, encontrava nele uma
arena privilegiada e um espaço de liberdade
e plenitude. Falo desse futebol de rua,
de baldios, de recreios, de praias, clareiras,
e outros locais improváveis, já não com bolas
de pano e meias enroladas, como as gerações
anteriores, mas com bolas de plástico
e borracha de domínio precário,
imprevisíveis pelo peso e pela dinâmica, longe
das impensáveis e caríssimas bolas de couro,
mas capazes de proporcionar o desfrute do
jogo, da luta, da entrega, que era o essencial.
É um tempo hoje difícil de imaginar, com
pouca televisão, e onde o ar livre tinha uma
importância que entretanto se perdeu. Por
isso, o pinchar duma bola é um som que
guardo na memória, um som perturbador,
uma espécie de chamamento para um
conclave tribal, ponto de partida para
infindáveis desafios, três contra três, dois
contra dois, cinco contra cinco, o que fosse,
quem chegasse, quem estivesse disposto a
aceitar uma baliza de quatro pedras ou quatro
sacas da escola, ou dois casacos entrouxados,
em dois opostos do campo improvisado.
E aí o tempo fluía sem relógio, sem contador,
e o único árbitro era o cansaço ou os gritos
das mães ou das avós porque entretanto
escurecia, ou chovia e imperavam
os medos das gripes e das constipações.
Claro que este futebol era propulsionado
pelos ecos do futebol nos estádios e que,
sobretudo, se ouvia nas rádios com os
relatadores enchendo as tardes de domingo
com os seus pregões, as suas litanias, os seus
gritos côncavos de golo! E aí, como hoje, toda
a gente tinha os seus ídolos, as suas cores,
os seus clubes, mas aquele futebol parecia
mesmo à mão de semear, os seus princípios
eram simples, a sua gramática tão acessível
que dava a sensação de toda a gente poder vir
a ser jogador de futebol, ser aceite no seu
clube, conjugar paixão e profissão. Foi por isto
que o futebol se tornou o tal desporto-rei,
o tal fenómeno planetário que arrasta
multidões, audiências, patrocínios,
e faz correr rios de dinheiro.
Mas para mim, numa parte intacta de mim,
o futebol continua a ser a borracha redonda
batendo no cimento, sinónimo de compincha
à espera, um som entrando pela janela e
boicotando o estudo, as lições de português
e aritmética – o tal chamamento. E, num
tempo em que a escola descurava a sua função
de educação física, essa batida de bola, essa
palpitação fundamental, providenciaram
o meu desenvolvimento psicomotor.
Foram uma minha ginástica sem
método, um mestre lúdico e livre.
FPF360 101
Atriz
CRISTA
ALFAIATE
É costume dizer-se que ser adepto de um
clube de futebol é “uma coisa que nos está
no sangue” ou “que vem do berço”
e “que nasce com a gente”. Acontece que lá
em casa o meu pai é do Sporting, o meu irmão
é do Porto, eu sou do Glorioso e a minha mãe
ocasionalmente é pela Seleção porque
são os “nossos” e é emocionante sentir,
de alguma forma, a vibração de um país
inteiro virada para o mesmo assunto.
Ora, talvez comece aqui, nesta linhagem
tão desorientada, a minha incompreensão
para tão desmedida emoção, tamanho
frenesim bipolar aquando dos jogos de
futebol e sucessivos campeonatos. Sempre
me intrigou a mudança súbita de prioridades
quando “há jogo do Benfas”
ou “joga Portugal” ou “domingo é o derby”.
Sou do Benfica desde a primeira classe (e já
foi tarde…) quando estava na aula de
Educação Física sentada ao pé dos espaldares
e o meu melhor amigo me pergunta: “Crista,
és de que clube?”. Fiquei aterrorizada,
tinha de responder bem e perpetuar a nossa
amizade, mas de facto estava longe de saber.
Ele disse-me que tinha três opções: verde, azul
e vermelho. Eu perguntei: “Tu és de qual?”.
Ele: “Benfica, óbvio!” Eu: “Então eu também
sou.” Disse-me, muito solene, que uma vez
que escolhesse um clube nunca mais poderia
mudar, que ser do Benfica era uma coisa para
a vida e que tinha de jurar ali mesmo que
nunca iria mudar de clube. Estava disposta
a picar o dedo com um alfinete se fosse preciso
fazer o juramento de sangue. Foi assim até
hoje e assim será até ao resto dos dias. Nunca
me deixei abalar nesta convicção, nem quando
pequena, devo confessar, não sem algum
acanhamento, tive um “crush” pelo Fernando
Couto, que via amiúde nos jogos do Porto,
os quais o meu irmão seguia fervorosamente.
O Fernando Couto corria bem, todo
esticadinho, tinha olhos azuis e aquele
cabelo, mas nem assim me deixei
abalar na minha jura.
Não sei os dias dos jogos importantes,
não sofro por antecipação. Desconheço as
estratégias e as hermenêuticas futebolísticas,
sempre preferi dedicar-me a outras
lides. Para mim, era aquela gente toda
engalfinhada a entrar no estádio para assistir
a demonstrações artísticas, performances,
dança, música, filmes e teatro
com na Antiga Grécia.
Eu e o Futebol sempre tivemos uma relação
distante, Eu e o Futebol é mais ou menos
Eu e aquele amigo de um amigo meu. E assim
me disponho, de quando em vez, para uma
ocasião futebolística, para viver aquele furor
animalesco ou fazer a tão necessária catarse
com aqueles amigos fanáticos. Como quando
fui pela primeira vez ao estádio do Benfica ver
um jogo. Era Benfica-Braga, Liga 2014/15,
o estádio estava ao rubro, a multidão cantava
já os hinos, a águia sobrevoou as bancadas
e fez um voo rasante na minha cabeça, senteime
e disse: “Vamos ganhar isto, 2-1 para nós.”
O jogo aconteceu, noventa minutos passaram,
e o Benfica ganhou com o resultado da minha
premonição. Passei a ser o oráculo
do campeonato desse ano. De resto,
anseio por consultar o calendário de 2020
do Barbas, que anda sempre comigo na
carteira, no dia 1 de Janeiro desse mesmo ano.
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Cantora e
compositora
RITA
REDSHOES
Quero precaver os caros leitores de que este texto é uma carta de amor
declarada ao meu pai (Carlos Pereira) e ao meu tio (Aurélio Pereira).
São livres de abandonar estas linhas a qualquer momento, embora não
me pareça sensato pois nunca se renega uma história de amor.
Nasci rodeada de referências ao futebol. Entre as minhas barbies
e ursos de peluche, havia camisolas de seleções e clubes de quase
todo o mundo (levei muitas vezes a da seleção de Israel para o liceu),
medalhas, taças e pares de chuteiras numa prateleira da sala. Eram do
meu pai, tudo do meu pai, camisolas de equipas que tinha defrontado
ao longo da sua carreira como defesa esquerdo, medalhas de torneios
e taças de campeonatos. Depois havia também as conversas entre ele
e o meu tio, os relatos na rádio durante os passeios de carro ao fim de
semana e as idas aos estádios para ver os jogos ao vivo e a cores.
Entre vitórias e derrotas, o que sempre me despertou mais a atenção
foram as histórias que ia ouvindo, quer do meu pai, quer do meu tio
enquanto treinadores, sobre os jogadores. Miúdos e graúdos,
uns com muitos sonhos e talento, outros só com talento, outros só
com muita vontade. Bom, é incontornável referir também a classe com
que assistiam aos jogos. Comentavam, umas coisas mais técnicas do
que outras, mas sempre com serenidade, as vozes não se levantavam,
os dedos das mãos não se contorciam nem as unhas eram roídas.
Mas voltemos às histórias sobre os jogadores, fascinavam-me porque,
acima de tudo, eram histórias de vida, histórias de famílias,
das crianças ou adolescentes dessas famílias. Admirava, na altura
sem ter essa consciência, o carinho, a dedicação e a preocupação que
os dois tinham pelos seus jogadores. A forma como cumpriam aquele
papel de espécie de segundos pais que ensinam, ralham, protegem
e ajudam a gerir ansiedades e expectativas, quer fizessem ou não golo.
Só muitos anos mais tarde é que vim a perceber o quão valiosas foram
aquelas conversas e histórias, carregadas de ensinamentos, para mim.
Quando iniciei a minha carreira na música, sentia-me tal qual como
um jogador iniciado à procura de me encontrar, de tomar as decisões
corretas nas alturas certas, à espera que reparassem no meu talento
e que alguém me dissesse que eu servia para jogar e pertencer à equipa
principal sem ficar no banco. As semelhanças entre os dois mundos,
música e futebol, embora eu pouco suspeitasse, eram e são muitas
e devo confessar que as vozes dos dois ecoaram na minha cabeça
repetidas vezes em momentos fulcrais do meu percurso. - Espera,
tem calma. Levanta a cabeça, olha o adversário de frente e dá-lhe!
Agora! Finta miúda e remata!
Foram e serão sempre dois dos meus
melhores treinadores de bancada!
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FPF360
Cozinheiro da Seleção Nacional
LUÍS LAVRADOR
Em alta competição, quando se almeja
alcançar bons resultados todos os
pormenores são importantes. A alimentação
não foge à regra: atletas bem alimentados
são atletas preparados para saborear vitórias.
É esta a sensibilidade de princípio e uma
verdadeira convicção de quem há mais de 20
anos tem cozinhado para a Seleção Nacional.
Neste sentido, entendemos da maior
relevância dar espaço editorial a um aspeto
fundamental em alta competição e tão pouco
conhecido do público, mesmo daquele
ligado ao futebol.
No atleta, o ato de comer conjuga fatores
fisiológicos, emocionais, simbólicos
e socioculturais que é preciso saciar.
A fenomenologia do ato de comer assenta
no cruzamento integral dos grandes sensores
(sabor, visão, audição, olfato, tato) com
a fome, o apetite, o paladar, a saciedade,
o status emocional, os desejos de comer,
os processos de escolha do alimento e os
mecanismos fisiológicos da mastigação,
deglutição e digestão (Poulain & Proença).
Afinal, comer configura uma necessidade
que vem antes de tudo, tal como afirma
o antropólogo Barthes: “Comer ou não comer,
eis a questão. Quem escolhe comer vive, quem
escolhe não comer morre”. Entenda-se
o “viver” e o “morrer” na sua máxima
amplitude polissémica.
Ao ter alcançado hegemonia planetária, ao
arrebatar cada vez mais os corações, ao gerar
tantas emoções, levando por vezes os adeptos
a idolatrar os seus atores, ao produzir sentido
de identidade étnica, autoestima e dinâmicas
sociais efervescentes (além dos importantes
impactos económicos que gera), compreendese
por que no futebol se passou a considerar
com tanta atenção os alimentos que se levam
à mesa dos atletas e o modo como lhes são
distribuídos. Na verdade, a reparação total que
uma boa refeição protagoniza tornou-se pedra
angular na estrutura vitoriosa de uma equipa.
Não é, todavia, nosso propósito revelar
as ementas da Seleção Nacional, nem tão
pouco produzir narrativas sobre as tantas
iguarias que as têm composto ao longo dos
tempos. Seria fastidioso para quem nos lê
e defraudava os que prezam a intimidade
associada à comensalidade da nossa Seleção!
Iremos, pois, nos próximos números, tão só
revelar algo sobre as iguarias que se tornaram
ícones intemporais e indispensáveis durante
as competições. Salientaremos o facto de
que cada um dos pratos tem associada uma
ocasião especial que convoca os comensais
para rituais próprios, o que converte cada
um dos momentos gastronómicos em
oportunidade de reparação física, mas
sobretudo de restauro afetivo.
Assim, nos próximos números, falaremos
do arroz doce, da canja de galinha, das coxas
de frango assadas com arroz de cenoura, da
aletria, da bolonhesa e o esparguete, para, no
final, dar conta do bacalhau cozido com todos.
FPF360 105
Empresário
FRANCISCO
PINTO BALSEMÃO
Como, apesar de todos os louváveis esforços
da Federação Portuguesa de Futebol
e de algumas outras instituições e pessoas,
o nosso futebol caseiro continua recheado
de peripécias que muito me entristecem,
resolvi utilizar este PROLONGAMENTO
para recordar o momento mais alto da minha
curta carreira futebolística …
Foi nos meus tempos do Pedro Nunes,
onde estive sete anos, tinha eu 14 ou 15 anos.
No liceu fiz muitos amigos novos. Um dos
efeitos dessas amizades foi a criação de um
clube de futebol a que, depois de muitas
discussões, chamámos “Os 11 Cruzados”.
O equipamento, para não ser verde nem
encarnado, era azul, parecido com o do
Belenenses. Os jogadores eram alunos
do Pedro Nunes, uns mais velhos do que eu,
outros mais novos. Entre eles, os irmãos
CARVALHINHOS, HENRIQUE e AMÉRICO,
os irmãos FONSECA E SILVA, VÍTOR e
CARLOS, o JORGE VALENTIM, que era
o mais velho e o guarda-redes, o HANDEL
DE OLIVEIRA (que seguiu uma carreira
jornalística e com o qual me fui cruzando
até há relativamente pouco tempo, ao
contrário dos outros que só em raríssimas
e esporádicas ocasiões reencontrei). Nos
11 Cruzados havia ainda um contingente
de jogadores que já eram meus amigos ou
conhecidos: JOÃO ESTARREJA, que era
o melhor jogador de todos nós e tinha um
grande talento para qualquer desporto,
chegando, aliás, a internacional de andebol
de 7; o LUÍS CORREIA DE SÁ, que era
também vizinho, vivia na Rua do Sacramento,
e tinha um grande relvado em casa, excelente
para os nossos treinos; o ÁLVARO ROQUE DE
PINHO, que, entre outros feitos, foi, no Pedro
Nunes, o primeiro namorado
da SIMONE DE OLIVEIRA, que já então,
embora tivesse só 13 ou 14 anos, era uma
estrela admirada e desejada, e que felizmente
tenho reencontrado ao longo da vida.
Eu fui quase sempre titular nos 11 Cruzados.
Tinha a camisola n.º 6, jogava a médio
esquerdo no esquema WM. Pelos vistos,
sempre tive tendências para o centroesquerda…
Os jogos dos 11 Cruzados realizavam-se
normalmente ao sábado, no campo de terra,
que hoje já não existe, do Cascalheira,
entre Campolide e as Amoreiras.
No primeiro jogo, contra uma turma
de mais velhos do Pedro Nunes,
levámos uma abada terrível: 15 a 1!
Na 2.ª feira, quando chegámos ao liceu,
fomos gozados e escarnecidos e até
houve algumas cenas de pancadaria.
Os 11 Cruzados não disputaram mais jogos
“oficiais” durante aquela temporada.
Treinámos incessantemente. O pai do LUÍS
CORREIA DE SÁ arranjou-nos um treinador:
ARMANDO FERREIRA, que foi ponta direita
do Sporting, chegou a internacional,
mas teve a sua carreira bastante tapada
pelo fulgor desse génio do futebol (e do
hóquei em patins) que era JESUS CORREIA.
Tivemos, no máximo, uns 4 ou 5 treinos com
ARMANDO FERREIRA, um ou dois no Lumiar
A, que era o segundo campo do Sporting.
Mas isso foi o suficiente para percebermos
o futebol de uma maneira completamente
diferente: a colocação em campo no sistema
WM, os passes, os remates, a cobertura
dos adversários, etc.
A partir daí, os 11 Cruzados tornaram-se
invencíveis. Teremos feito uns 15 a 20 jogos,
nos primeiros anos da década de 50
e ganhámos todos. Até um, que foi a nossa
coroa de glória, num sábado em que
disputámos duas partidas de 90 minutos cada!
Tínhamos dizimado uma equipa da nossa
idade, do liceu Passos Manuel. Quando
estávamos no balneário a mudar de roupa
(não havia duches nem nada desse estilo…),
apareceu um representante do próximo
ocupante do Campo do Cascalheira. Era uma
equipa de adultos, do próprio Cascalheira,
se não me engano, que jogava na II Divisão
da Associação de Futebol de Lisboa
(e foi campeã em 1954).
A proposta era disputarmos um jogo
regulamentar, de 90 minutos.
Aceitámos. E ganhámos: 2 a 1! Este foi talvez
o momento mais alto dos 11 Cruzados. Não
só pela vitória de 11 miúdos de 13, 14, 15 anos,
mas também pelo fôlego extraordinário que
era preciso ter para jogar, quase sem pausa,
3 horas de futebol (sem esquecer – será
politicamente incorreto, mas não resisto – que
alguns de nós, entre eles o JOÃO ESTARREJA
e eu, já fumávamos nessa altura – Aviz
em maços de 10, que era o mais barato – e
aproveitámos a pausa de 10 ou 15 minutos
entre os dois jogos para fumar o nosso
cigarrinho …).
COM A PASSAGEM para o 6.º ano do liceu
da maior parte de nós e a consequente escolha
dos futuros cursos universitários ou de outras
opções de vida, os 11 Cruzados desfizeram-se.
Foi cada qual para seu lado e umas tentativas
de manter a chama sagrada através de jantares
não resultaram.
Para mim, ficou uma importante e positiva
experiência de unidade em torno de uma
causa, de capacidade de criação de espírito
de equipa, de compreensão que o treino
é essencial em qualquer atividade.
E de amor pelo futebol.
106
FPF360
RITA
NABEIRO
Diretora-geral
da Adega Mayor
No dia 30 de Junho de 2016, Portugal vencia
a Polónia nos penaltis e apurava-se para
as meias-finais do campeonato europeu de
futebol. O adversário que se seguia era o País
de Gales e a data marcada era o 6 de Julho.
O mesmo da minha viagem de Lisboa para
São Tomé e Príncipe, onde me iria juntar
a um grupo de voluntários que tinham
partido na semana anterior.
Chegado o dia das partidas e já a bordo
do avião, ouviu-se a voz do comandante:
“O voo para São Tomé e Príncipe irá ter
uma duração de 8 horas, com paragem no
aeroporto internacional de Kotoka no Gana.”
As perguntas atropelavam-se na minha
cabeça: Será que chegamos a horas do início
do jogo? É apertado mas possível. Aterrar,
passar a alfândega, apanhar a mala, sair do
aeroporto, viagem de uma hora, chegar a casa,
deixar a mala e só depois juntar-me ao resto
do grupo. Chegar a tempo do jogo parecia uma
missão impossível.
Os primeiros minutos do jogo foram seguidos
através da rádio da velha carrinha Hiace que
nos transportava. À chegada só houve tempo
para pousar as malas e voltar a sair de casa.
Como muitas habitações desta pequena
cidade, a nossa não tinha televisão. Por esse
motivo, o espaço da Cruz Vermelha
virou templo da bola para ver
a seleção portuguesa jogar.
Ao entrar naquela sala, senti-me a aterrar
numa outra dimensão. A única fonte de luz
vinha da pequena televisão ali instalada,
propositadamente para o efeito. Comecei
por ter dificuldade em distinguir os rostos
familiares que se apinhavam naquela pequena
sala. A TV teimava em emitir com estática
e a preto-e-branco, o que também dificultava
a distinção das duas equipas.
A primeira parte acabou empatada a zero.
Foi preciso esperar pela segunda parte para
pularmos do banco com um golo do Ronaldo.
Três minutos depois e o 2-0 saía dos pés de
Nani. A emoção foi tanta que
a casa quase ia abaixo. Não foi a casa, mas foi
a electricidade. Só voltaria no dia seguinte.
Foi emoção e suspense até ao final do jogo,
com os resultados a chegarem por via de
sms. 15 minutos para o fim do jogo, continua
igual.10 minutos, 5 e mais 3 de compensação.
Sofrimento e nova explosão de alegria!
Portugal estava na final. Abraços e alegria
entre São Tomenses e Portugueses.
A contagem decrescente para a final foi vivida
com a ansiedade de encontrar um local com
gerador. Os jardins da embaixada de Portugal,
encheram-se de portugueses e não só.
Desta vez nada podia falhar... Mas falhou.
Se nos minutos que antecederam o jogo não
tínhamos imagem, quando o mesmo começou
faltou o som. Tivemos que o ler o hino
nos lábios dos jogadores. O silêncio tomou
o espaço de assalto. Faltavam os apitos,
as palmas, os gritos dos adeptos, os cânticos,
faltavam os comentários, faltava quase tudo,
menos os nervos.
Não foi preciso esperar muito para
o som voltar. Vimos o resto do jogo sem
sobressaltos, excepto os do coração.
O resto da história já é conhecida. A selecção
portuguesa escreveu uma página bonita da sua
história, através de uma vitória épica sobre
a França. As explosões de alegria foram
muitas. Vivi este momento à distância,
de coração cheio e apertado, numa ilha cuja
história estará para sempre ligada a Portugal.
Foi um jogo sofrido, mas acabou bem. Não
há impossíveis e esta conquista lembrounos
que, no futebol como na vida, pequenos
impulsos de iluminação individual
são suficientes para iluminar toda
uma sala e uma nação.
FPF360 107
NUNO DELGADO
Medalhado olímpico, presidente da escola
de judo Nuno Delgado; embaixador
do Plano Nacional de Ética para o Desporto
A SUAVIDADE
NO DESPORTO
E NO SUCESSO
PARA A VIDA
O Desporto é a sala de aula da universidade
da vida e as suas matérias são os valores
e as virtudes humanas. Confesso que não posso
imaginar como seria a minha vida se,
por ventura, não tivesse abraçado
este estilo de vida.
Como formador, tal como o Mestre Kano
(fundador do Judo), desenvolvi uma singular
Escola que desde 2006 dá o exemplo a nível
europeu de como se pode “treinar” para uma
vida de sucesso, usando os princípios do
Desporto, esses que Nelson Mandela tanto nos
exortou com o seu exemplo de vida e ao qual
nos associamos através da sua Fundação com
um programa denominado “Achieve, Collect
& Give Back”. Este programa que nos desafiou
a produzir a Mandela Day - Maior Aula de Judo
do Mundo (recorde do Mundo!), por três vezes
consecutivas em Portugal, e que movimenta
hoje mais de três mil crianças em 50 escolas
públicas de quatro municípios, tem como leit
motiv Formar Campeões para a Vida!
Tendo-se cumprido no dia 5 de dezembro
cinco longos anos sobre o falecimento de
Mandela, cabe-nos a enorme responsabilidade
de melhorar cada vez mais a qualidade
do desporto em que ele acreditou e
proporcionarmos aos nossos jovens,
principalmente até aos 7 anos e no seu primeiro
encontro com esta atividade,
um momento magicamente transformador.
Se o desporto é, potencialmente,
uma ferramenta da excelência humana
em todas as suas formas de expressão, também
é verdade, como anuncia o meu Mestre
Professor Manuel Sérgio,
que multiplica e replica as taras da sociedade.
Ora, neste caso o futebol, sendo o desporto-rei,
vive esse desafio com intensidade máxima.
Por essa razão, foi imensa a satisfação que me
envolveu aquando do convite que recebi para
a recente conferência SPIN promovida pelo
Sindicato de Jogadores, com o alto patrocínio
do Sr. Secretário de Estado do Desporto
e Juventude, bem como do Sr. Presidente
da Federação Portuguesa de Futebol.
É valorizante constatar que a comunidade
futebolística no nosso país coloca o assunto na
primeira das suas agendas. Portugal ufana-se
com as vitórias e feitos dos nossos futebolistas
dentro e fora do campo - títulos europeus,
Olímpicos de Juventude, melhores jogadores e
treinadores do Mundo,
em todos os escalões etários
e nas mais diversas vertentes desportivas,
o desporto-rei Luso supera-se.
As expectativas das crianças que sonham
com esta modalidade são enormes e nesse
sentido a importância de trazer à prática,
à primeira experiência, o imo do desporto
é um grande desafio para futebol e para todo
o desporto Português. O fenómeno inclusivo
que o futebol em particular e o desporto na sua
globalidade podem trazer às crianças é algo que
devemos refletir do ponto de vista desportivo,
educativo, cívico
mas fundamentalmente antropológico,
pois a inclusão não é apenas um fenómeno
dos mais necessitados, antes um processo
da nossa Educação!
Se muito aprendi com o exemplo massificante
da força e da qualidade do futebol português,
vejo do meu ponto de vista judoca
a oportunidade de, num momento mundial
de falta de clareza cívica e valores,
usar o exemplo do Judo na procura
da suavidade, ou seja do Ju que está Do,
e praticar a inclusão social através do desporto
e do futebol em particular com o símbolo
máximo da suavidade e respeito por aquele que
me constrói para a vida, o outro.
Rei é o desporto futebol, bem como rei
é o símbolo de origem nipónica que materializa
o gesto de suavidade
e respeito pelo outro que nos constrói.
A Saudação é um gesto suave que não retira
a agressividade construtiva de vencer a sua
própria adversidade através do desporto.
É de tal importância no Judo, que se a Telma
Monteiro não a praticasse genuinamente
nos jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, perante
os regulamentos seria desclassificada da
atribuição da única medalha que Portugal
venceu em 2016. Ora, por aqui se sente
a importância que o gesto, o símbolo do
RESPEITO e da suavidade pelo outro que
nos constrói deve fazer parte da abordagem
praticada da integração social através do
desporto, com o futebol em destaque, e ainda
de outras formas transversais e uníssonas da
construção das crianças: as várias expressões
artísticas, da Música à Pintura,
do Bailado ao Teatro, sem esquecer a Magia.
A Formar Campeões para a Vida em Portugal!
108
FPF360
Ator
RUY DE CARVALHO
Só quem nunca foi a um estádio é que não
sabe a carga de energia que pode gerar uma
massa humana de todo o tamanho, para dar
força a um ideal, ao vozear contra uma simples
falta que pareceu vir subtilmente dos confins
do inferno, ao chorar quando se ganha, ou
quando se perde, numa dança de tal forma
estrondosa que lembra o arrastão medieval de
um exército em luta. Só quem não vive isto é
que não sabe o que é o futebol.
E contudo, a coisa não passa de um jogo!
Mas é para ali que convergem as mágoas, as
frustrações de uma semana de mau trabalho,
as irritações de uma política mal conduzida, as
penas dos traídos, as angústias dos inseguros
e as deceções, todas as deceções, que num
simples e estridente “fora o árbitro” despejam
o fel das noites mal dormidas, da violência
contida de uma sociedade incapaz de ser
indiferente, de tudo o que incomoda, e que,
por pudor, por vergonha ou por temor, somos
incapazes de defrontar.
E contudo, a coisa não passa de um jogo!
O meu estádio é uma catedral, como de resto
são todos os outros estádios. A cor já não é
importante para mim, desde que se jogue
com lealdade, com sabedoria, com prazer,
no fundo três boas razões para se ter deste
jogo espetacular o empolgamento que ele
provoca, porque apesar de não passar de um
jogo, permite que o mundo das bancadas se
suplicie por noventa minutos de correria, e se
esqueça de tudo, porque cada jogo, apesar de
ser só mais um jogo, é um estímulo poderoso
à esperança. Posso sair do estádio desolado
e triste, ou eufórico e feliz, mas não consigo
fugir àquela sensação de planalto que me
deram as duas partes de um futebol que
prestigiou a minha presença naquele jogo, seja
ele qual for... onde for.
O Benfica de Castelo Branco foi um clube
fraco sob o ponto de vista desportivo, mas
ao ser o suporte do meu mundo adolescente
deixou em mim, difusamente, algo que jamais
desaparecerá. Na altura perdia repetidamente
por muitos golos, e isso fez-me crescer,
porque resignar nunca, até porque o amanhã
traria sempre uma nova oportunidade para se
ganhar. Foi com eles que conheci a esperança
e a força que dá aos rebeldes o sentido da
vitória. Foi por eles que aprendi a defender
os mais fracos, os que perdem... sempre. Foi
por eles que quando cheguei a Lisboa, muitos
anos depois, senti esta força que me levou à
Luz, onde ficarei durante muito tempo, apesar
de tudo isto se resumir a um simples jogo de
futebol.
Já não vou ao estádio. Não preciso. Aprendi
a ver de longe com prazer todos os jogos,
mesmo os que não se ganham, porque aprendi
a saudar os vencedores e a honrar os vencidos.
Afinal de contas, a coisa não passa de um jogo!
FPF360 109
LUÍS
TINOCO
JOÃO VASCO
Compositor, diretor
do Prémio Nacional
dos Jovens Músicos
Sete é o número que surge regularmente
nos noticiários, estampado nas camisolas
de alguns dos nossos futebolistas de fama
internacional. O caso mais recente chegou
a Madrid, neste mês, que também é sete e que
serve de mote para algumas reflexões que aqui
fui convidado a partilhar.
Quando tinha sete anos ainda pedia
ao meu pai que me desse luzes sobre qual
seria o melhor clube de futebol, na expectativa
de conseguir algum conforto e segurança
paternal na minha eleição. Natural de
Leiria, respondia-me sempre que apoiava
incondicionalmente os clubes da cidade,
o Marrazes e o União. Sobre os “grandes”,
nunca lhe vislumbrei qualquer preferência,
pois o seu mote era “apoiar os fracos e
oprimidos”.
Nunca frequentei os estádios de futebol
com regularidade mas ainda me recordo
do meu primeiro jogo ao vivo, em Alvalade,
na companhia de um amigo e colega de
liceu: tratou-se do jogo que deu o título de
campeão ao Sporting em 1979-80, derrotando
precisamente o União de Leiria.
Durante algum tempo o meu fervor
desportivo manifestou-se colocando Jordão
no topo da minha lista de super-heróis e, claro,
passando longas horas na rua a dar chutos
(em bolas) e causando alguns estilhaços nas
janelas do liceu D. Filipa de Lencastre. Tudo
devido a manifesta falta de pontaria, sem
qualquer delinquência intencional.
Com o passar do tempo, porém, o mote
dos “fracos e oprimidos” venceu qualquer
paixão clubística e, apesar de continuar
a gostar muito de ver bons jogos, manifesto
a minha total indiferença sobre quem ganha
as taças ou campeonatos. Na realidade, fico
sempre feliz quando ganha a equipa mais
“fraca”, especialmente se o vencedor for
o (verdadeiro) Belenenses. Quando vejo
um jogo, dedico os primeiros dez minutos
a analisar qual será o onze com menos
possibilidades de sucesso, para depois
dedicar-lhe todo o meu apoio durante
os restantes oitenta minutos.
Toda esta relativa indiferença é também uma
reacção à forma como o futebol tomou conta
da nossa vida pública e mediática. Em Julho,
mês sete de 1958, João Gilberto gravou “Chega
de Saudade”, uma magnífica canção de Tom
Jobim e Vinicius de Moraes. Escrevo este
texto um dia após a notícia do falecimento
de Gilberto, o mesmo dia em que se fizeram
filas em Alvalade para se votar a expulsão
de um ex-dirigente desportivo. E não posso
deixar de sentir tristeza pelo destaque
dado a um assunto interno de um clube,
especialmente se considerarmos que boa
parte desse tempo poderia ter sido dedicado
a transmitir a música de João Gilberto.
Neste mês sete de 2019 celebramos também
o cinquentenário da missão Apollo 11, que
levou os primeiros astronautas a pisar outro
esférico. À excepção da RTP 2 e alguns canais
especializados, pergunto-me qual será o real
destaque que os nossos media irão dedicar a
este (ou outros) temas científicos de grande
relevo? Será que competirão em tempo
televisivo e colunas de jornal com
o que se irá escrever sobre o mercado
de transferências ou as férias luxuosas
de jogadores durante a “silly season”?
Lá mais para o final do mês estarei na Casa da
Música, no Porto, a acompanhar
as provas finais do Prémio Jovens Músicos,
promovido pela rádio Antena 2. Com 33 anos
de história, este concurso tem ajudado
a revelar muitos dos mais destacados músicos
nacionais, divulgando e promovendo um
trabalho de anos e longas horas de treino
e aperfeiçoamento artístico e técnico, do
qual têm resultado inúmeros sucessos e
reconhecimento no panorama musical
nacional e internacional.
Muitos destes jovens músicos estão
a conquistar posições de destaque em grandes
orquestras sinfónicas europeias e a obter
distinções nos mais importantes concursos,
um pouco por todo o Mundo.
Não é raro encontrarmos pessoas com altos
cargos públicos a assistir a jogos de futebol
e a apoiar os sucessos dos nossos jovens
futebolistas ou atletas de outras modalidades
desportivas. Contudo, nos meus doze
anos à frente da organização
do prémio jovens músicos, conto pelos dedos
de uma mão o número de vezes em que
os concertos de laureados PJM registaram
a presença de representantes do poder
político. O desinteresse é confrangedor
e desconfio que nem a oferecer bilhetes
a altos quadros conseguiríamos melhorar
as estatísticas.
Em recente entrevista ao Expresso, Fabien
Cousteau, neto do famoso oceanógrafo
francês, Jacques-Yves Cousteau, revelou que
o seu avô costumava dizer-lhe que “ninguém
protege algo que não conhece. As pessoas
protegem aquilo de que gostam, gostam
daquilo que compreendem e compreendem
aquilo sobre o qual falam”. E se, em Portugal,
as grandes paixões ficarem circunscritas ao
perímetro de um estádio de futebol, então
talvez tenha chegado o momento de criar
as bases para que as próximas gerações
consigam também viver apaixonadamente
o trabalho de outros craques, tanto nas artes
como na ciência, na intervenção cívica, ou na
preservação deste nosso grande esférico que,
por enquanto, ainda é azul.
* Nota: o autor escreve segundo a antiga
ortografia
110
FPF360
Investigadora doIPRI-NOVA
RAQUEL
VAZ-PINTO
Não é difícil explicar a minha relação com o
futebol. Há uma “passagem de testemunho”
da minha mãe que discutia futebol
de forma tão intensa e apaixonante que
fiquei completamente viciada. Era um prazer
discutir bola com ela. Mas ao mesmo tempo
era um exercício semanal em que tinha de
fazer o trabalho de casa. Se não o fizesse …
a goleada era certa sem apelo nem agravo.
Tenho muitas saudades desses debates e de
como discutir futebol “no feminino” em casa
era para mim normal, embora fosse muito
invulgar nas casas dos outros. E, é claro, sendo
portuguesa o futebol faz parte do dia-a-dia da
nossa sociedade e da nossa cultura enquanto
povo, da mesma forma que se tivesse nascido
na Nova Zelândia estaria a falar de râguebi.
Hoje em dia, a evolução do futebol tornou-o
mais mediático, profissional, rentável
e foi-se alargando a outros territórios,
sendo quase universal. Do ponto de vista
das selecções portuguesas - e para além do
óbvio Euro 2016 - é com imenso orgulho que
testemunho a presença em finais e meiasfinais
de competições internacionais das
nossas gerações mais novas, bem como o
crescimento do futebol feminino. Também é
com muita alegria que assisto todas
as semanas aos jogadores portugueses
a brilharem nos melhores clubes europeus
e, é claro, aos nossos treinadores.
Ao longo das últimas décadas tenho muitas
memórias do futebol e das suas várias
dimensões. É verdade que o “dinheiro” é um
factor crucial na qualidade de um plantel para
ser campeão. Ainda assim, o “dinheiro” não
explica como o Leicester foi campeão da Liga
Inglesa. As equipas mais fortes e organizadas
tendem a prevalecer, mas a imprevisibilidade
continua a dar ao futebol um toque mágico.
Há sempre a final entre o Bayern de Munique
e o Manchester United em Camp Nou em 1999
e aqueles minutos finais dos “substitutos”.
Não quero com isto afirmar que o Man
United de Alex Ferguson não era uma equipa
excelente, mas o Bayern tinha o jogo mais
do que controlado.
Há também os grandes pormenores que
fazem toda a diferença. Vimos isso na época
passada quando Liverpool sem dois dos seus
melhores jogadores (Firmino e Mo Salah) …
deu a volta aos 3 a 0 que o Barcelona trazia de
Camp Nou. Aquele canto marcado de forma
ultra-rápida por Trent Alexander-Arnold fica
para a história do futebol. E a t-shirt de Mo
Salah com a seguinte frase “Never Give Up”
(em português: nunca desistas) tornou-se
profética. Também foi impossível não apreciar
o Ajax e a sua chegada às meias-finais da Liga
dos Campeões. Um clube histórico que teve
de se reinventar e que foi capaz de equilibrar
a experiência de Blind com a juventude
de De Jong, entre outros.
E depois há jogadores que pelas suas
qualidades humanas e pelo seu talento
nos deixam rendidos. Ao longo dos últimos
anos alguns dos meus ídolos têm vindo
a despedir-se do futebol ou, pelo menos,
dos campeonatos na Europa. Nomes como
Steven Gerrard, Andrea Pirlo ou Xavi fazem
parte da história do futebol e da minha.
Há jogadores que nos tocam de forma especial
como os génios Sócrates, Marco van Basten,
Dennis Bergkamp ou Zinedine Zidane. Há um
meio-campo que eu nunca vou esquecer na
vida, talvez o melhor de sempre, com Xavi,
Iniesta e Busquets do Barcelona. Há jogadores
como Paolo Maldini que simbolizam para
a eternidade a arte de defender com classe
pura. E poderia escrever sobre muitos mais.
Na conversa extraordinária promovida por
Jaime Cravo no Canal 11 entre Marcel Keizer
e Bruno Lage ficou-me uma frase do treinador
encarnado. Bruno Lage assinalou a “mudança
da sociedade” e, em paralelo, “que o negócio
não vá contra a paixão” em várias dimensões
como as de “adepto, praticante, coleccionador
de cromos e profissional”. E esta ideia
de “coleccionador de cromos” trouxe tantas
e boas memórias: as trocas para ir fazendo
a colecção e depois o momento angustiante
da procura do último cromo! No fundo
é isto que quem gosta de futebol sente.
Eu fui e ainda sou uma coleccionadora
de cromos. Total e incondicional.
FPF360 111
Treinador
de Futebol
CARLOS
CARVALHAL
Descrição cronológica e reflexiva
do treinador português sobre a prática
de futebol por mulheres.
Vivi toda a minha infância e adolescência no Bairro da Misericórdia,
em Braga, e ali não havia meninas a jogar futebol. Aliás, não tenho
memória de as ver perto do nosso “campo da escola”. Tive
a felicidade de ter uns pais que, embora de classe média/baixa,
me proporcionaram a entrada num colégio que educava pelas artes
e assumia o desporto como parte integrante do desenvolvimento
do ser humano no seu “todo”, o conservatório de música Calouste
Gulbenkian. Na “primária”, para além de aulas de música, pintura
e artes manuais, havia também educação física. Para mim e uns
poucos, o futebol era a modalidade preferida e via com satisfação
a forma como as meninas da turma o jogavam com enorme alegria,
embora sem grande jeito. Foi o meu primeiro contacto com o futebol
no feminino...! O tempo correu até ingressar na Faculdade de
Desporto e Educação Física da Universidade do Porto. Na faculdade,
tomei consciência da grande capacidade das mulheres para jogar
futebol (recordo que naquele tempo a vertente feminina era pouco
praticada e divulgada). Nas aulas, algumas das minhas colegas
(principalmente as da opção de alto rendimento – futebol) jogavam
muito melhor que muitos rapazes e integravam as aulas mistas
com uma naturalidade qualitativa impressionante. Na altura era
o Boavista que dominava o campeonato em Portugal. Lembro-me
de uma vez ir ver um jogo e ficar impressionado com a cultura
tática das jogadoras. Parecia claramente um jogo menos rápido
e pressionante do que o masculino, mas muito mais “pensado”.
Recordo-me de estar a refletir e a procurar respostas para a minha
curiosidade: este jogo mais pensado será da natureza feminina ou este
ritmo pausado levará a que as jogadoras tenham uma perceção mais
atenta e cuidada das movimentações das colegas para interagirem com
112
FPF360
assertividade? Lembro-me de ter questionado
colegas de curso, treinadores e treinadoras
acerca desta inquietação! Também me
recordo de algumas das tentativas de
explicação que obtive no momento: ouvi, por
exemplo, que o jogo não era tão rápido porque
as mulheres têm menos força explosiva ou
que, pela menor velocidade dos encontros,
as jogadoras tinham mais tempo para
decidir. Na minha viagem no tempo revivo
a passagem pela Grécia e não me recordo de
ver raparigas a jogar, exceção feita às praias,
onde jogavam com os rapazes. Dois anos na
Turquia e a mesma ideia da Grécia... outros
dois nos Emiratos Árabes Unidos e, embora
tendo testemunhos de que as raparigas nas
escolas adoravam jogar futebol, por razões
culturais, nunca tive o prazer de ver um
jogo em que estivessem meninas presentes.
Segue-se Inglaterra, onde tudo é diferente.
Para entender o futebol em Terras de Sua
Majestade temos que perceber a cultura
inglesa. O futebol (e o rugby) fazem parte
da vida de toda a gente. O ritual de ir a um
jogo significa mais ou menos o mesmo que
um católico devoto ir à missa ao domingo ou
a meio da semana. As pessoas adoram futebol
e é comum ver famílias inteiras ir ao estádio
- o avô, a avó, os filhos, os netos... todos com
camisolas do seu clube (normalmente
o da sua origem ou residência, sem olhar
à grandeza de qualquer clube). As meninas
vão, desde muito pequeninas, com a família
ao estádio e aprendem a gostar do jogo, do
entusiasmo que o rodeia, das emoções que
se vertem a cada momento e por isso é normal
vermos nos jogos televisionados imagens
de crianças de ambos os sexos a exprimir
os seus sentimentos. Ali não há qualquer tipo
de discriminação e é normal qualquer pessoa,
independentemente do género, discutir
futebol com a mesma pertinência. Por isso,
é natural que meninos e meninas, partilhando
deste sentimento pelo futebol nas escolas
desde tenra idade, comecem a jogar juntos
e a desenvolver competências. Há muitas
academias nas quais existe a oportunidade
para as meninas jogarem. Até aos 10 anos não
há muito espaço competitivo, mas a partir
daí começam a ter também a possibilidade
de participarem em diversas provas. Apesar
de haver muitas meninas a jogar em
Inglaterra, a federação tem o propósito de,
a curto prazo, dobrar o número de praticantes,
aproveitando os êxitos da seleção nacional
e dos clubes. Querem ainda levar o futebol
a todas escolas até 2024. Agora as meninas
têm referências femininas, jogadoras que
querem imitar. Os media e a federação
inglesa têm promovido bastante o futebol
feminino em Inglaterra e este facto tem
levado a um aumento significativo de
praticantes. A “Super League” foi o primeiro
campeonato semiprofissional, mas desde
2012 é totalmente profissional. Existem
as ligas profissionais, “Super League 1” e a
“Super League 2” e, excluindo estas, ninguém
é remunerado (só em casos especiais), sendo
os restantes campeonatos organizados
localmente. Uma vez fui ver um jogo abaixo
da 4ª divisão e os árbitros assistentes eram
pais das jogadoras... perguntei e disseram-me
que naquele escalão era normal os pais ou os
treinadores das equipas assumirem aquelas
funções. Inglaterra é o verdadeiro País do
futebol e, pela sua cultura, a vertente feminina
é levada muito a sério. Antes do início desta
temporada foi feito um inquérito e mais
de um terço dos adultos britânicos (34%)
declararam-se interessados no campeonato
feminino. Num Chelsea-Tottenham
disputado a 8 de setembro de 2019 foram
vendidos 40.000 bilhetes...
Em 2018 regresso a Portugal depois de um
périplo de 9 anos e como encontro o futebol
feminino no nosso país? Vejo um SC Braga-
Sporting CP e noto uma tremenda evolução
no jogo: ganhou velocidade e ritmo; as
jogadoras são agora mais “intensas” porque,
para além da velocidade e ritmo, a capacidade
de decidir com eficácia mantém-se e até
melhorou; as partidas continuam “pensadas”
e as futebolistas, embora com menos
tempo para decidir, continuam a perseguir
um estilo ligado e de interdependência;
melhorou a capacidade e qualidade de passe
longo, cruzamento e remate; e, por último,
aumentou a cultura tática individual
e coletiva. A Federação Portuguesa de Futebol
tem feito um trabalho extraordinário no
desenvolvimento do futebol feminino. Os
êxitos e a evolução da Seleção Nacional têm
sido importantes para catalisar o número de
praticantes. Hoje há imensas oportunidades
para as meninas jogarem em Portugal, há mais
equipas em escalões etários mais baixos
e o futuro vai ser risonho porque as
portuguesas têm uma natural apetência
para jogar bom futebol. A FPF acaba de bater
o recorde de jogadoras federadas em futebol
e futsal, ultrapassando a barreira dos onze mil
praticantes, mais concretamente 11.038!
A FPF, através do Canal 11 e restantes meios
de comunicação, tem feito um trabalho notável
de divulgação da modalidade. Vejo alguns jogos
em direto e confesso que me divirto.
As nossas jogadoras têm o traço latino de jogo,
boa técnica, gosto do futebol bonito no qual
predomina o “cérebro” sobre o “músculo”.
Fruto deste trabalho e desta evolução, as
nossas melhores intérpretes foram recrutadas
pelas grandes equipas europeias, o que veio
aumentar a sua competitividade individual e,
consequentemente, valorizar a nossa seleção.
Face a esta valorização, temos referências
importantes em que as mais jovens
se revêm e tomam como modelos.
Depois de conseguirmos o apuramento
para o Europeu feminino de 2017, parece
claramente que temos um futuro risonho
e com bases sólidas, como comprovam as três
fases finais de Europeus entre os escalões
de sub-17 (2) e de sub-19 (1) na última década.
Os sinais são muito positivos: aumento
exponencial de número de praticantes,
uma liga mais competitiva, jogadoras
em bons campeonatos, excelente formação
de treinadores em Portugal. Tudo se começa
a conjugar para
que em breve sejamos uma referência para
o Mundo também no futebol feminino.
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FPF360
JULIANA
ROCHA
Vencedora de cinco campeonatos nacionais
de boxe junta a sua voz à dos que defendem
o papel do desporto como meio poderoso
de promoção da igualdade de género.
Começo com alguns slogans que há uns anos foram notícia de jornal:
"A menina bonita do boxe português chora no cinema", "A nova diva
do boxe português", "Mulher, pugilista e quase criminologista". Todos
eles suscitavam o interesse do público por ser "inédito", novo e curioso.
Nessa altura, eu não tinha uma clara perceção da importância
e do impacto que este "processo" poderia vir a ter no futuro. Posso
atrever-me a dizer que foi um início, um começar, uma porta para
o mundo feminino desta nobre arte - o boxe. Comecei no Karate
Shotokan aos 5 anos, aos 13 fui campeã da Europa de Kickboxing na
Grécia e aos 14 entrei no boxe - onde arrecadei cinco títulos nacionais
e fui Esperança Olímpica para o Ciclo de Londres em 2012.Em 2009,
fui a primeira atleta feminina de boxe do Boavista, ainda os balneários
eram partilhados e, mais tarde, fui a primeira a usar saia de desporto
nos combates, em Portugal. Estes são pequenos apontamentos que
adivinhavam um despertar de mentalidades pela igualdade. Mas...
esta luta continua a não ser completamente linear. É preciso continuar
a desmistificar. É preciso continuar a ser falado e partilhado. É preciso
contrariar a corrente porque… por ser atleta de boxe, não quer dizer
que tenha de ser menos feminina; não quer dizer que tenha de ser mais
agressiva; não quer dizer que deixe de ter emoções e que não chore
no cinema; não quer dizer que tenha de ter o nariz partido e a cara
deformada; não quer dizer que deixe de ser mulher... porque na verdade
basta-me Ser para o ser, e Ser basta-me para ser o que eu ambicionar!
E quem diz o boxe, diz qualquer outro desporto.
Recentemente, li uma notícia que me deixou feliz. Uma notícia que,
na minha opinião, merece a atenção e o entusiasmo do leitor. Neste
momento, são mais de onze mil as jogadoras a praticar futebol e futsal
em Portugal! Sublinho. Mais de onze mil. Este número representa
um crescimento na ordem dos 15,1 por cento em relação a período
homólogo de 2019. Este número é o resultado da qualidade, da aposta
e da oportunidade. Este número expressa o crescimento sólido
de mulheres neste desporto, que é um verdadeiro recorde absoluto.
Este é um bom presságio, um importante sinal de esperança que anima
e dá força a todos aqueles/as que todos os dias lutam por um mundo
desportivo mais justo e mais igualitário.
Sou uma sonhadora nata e delineio claramente os meus objetivos.
Foi no desporto que construí a minha base sólida de autoconfiança,
de perceção de segurança e de autoestima. Por isso, não permito que
ninguém me trate com menos dignidade do que aquilo que eu mereço.
Que tu mereces. Que todos nós merecemos. Seja pelo género,
pela cor, pela raça, pelo motivo que for. Considero-me uma pessoa
de pessoas. Acredito que a vontade e o gosto pelo desporto é maior que
a discussão do género. Acredito que é na sinergia, na partilha, na união
que combatemos as divergências e possíveis barreiras. O respeito
pelo Outro é a palavra de ordem, seja para que desporto for. Por isso,
a todos vocês que estão a ler este artigo, não desistam dos vossos
sonhos. O caminho nunca será fácil. Mas é um caminho tão bonito...
Aprendemos a digerir derrotas, a gerir frustrações e expetativas. Mas
também aprendemos a saborear vitórias e a sentir o dever cumprido,
uma satisfação compensadora. Acredito que nenhum "combate"
é em vão. E tal como Gandhi um dia disse: "Seja a mudança
que você quer ver no mundo."
FPF360 115
DECO
A visão de um dos mais
renomados internacionais
portugueses de sempre
sobre o “novo futebol”.
Não é fácil para mim imaginar como iria
reagir se ainda jogasse e me deparasse com
uma pandemia. O único termo de comparação
em relação ao que vivi foram alguns jogos
de pré-época, sem muito público. Nos jogos
oficiais, nas decisões de campeonatos, da Liga
dos Campeões, de Mundiais e Europeus,
não sei mesmo como iria ser. Certamente
seria estranho, não me via numa situação
assim. No entanto, tenho de dizer que
os jogadores têm mostrado um poder
de adaptação grande porque houve muitos
casos em que nos primeiros 2/3 jogos
aconteceram coisas pouco habituais,
mas depois toda a gente conseguiu seguir em
frente e mostrar qualidade. Acho que o futebol
vai ficar mais forte. Tenho acompanhado
os jogos e já vi coisas muito positivas.
Se há algo de bom a retirar deste tempo
é essa boa resposta de todos os que foram
à luta. Em campo, o que marca e sempre
marcou a diferença são as equipas
de qualidade e os melhores jogadores.
Os adeptos fizeram muita falta. Uma coisa
é não irem ao estádio por opção, outra
bem diferente é o acesso estar-lhes vedado.
Não poderem ver a sua a equipa a jogar ao vivo
e não poderem estar com os amigos a assistir
ao espetáculo é tudo menos normal. Acho que,
quando surgir essa oportunidade, toda a gente
vai voltar às bancadas com a mesma paixão.
Os fãs sempre deram valor a este desporto,
mas penso que agora vão dar ainda mais.
O futebol sempre teve um poder muito
grande e agora – no mundo da comunicação
– ainda tem mais. Esse poder tem de ser
bem usado. As coisas hoje em dia acontecem
muito rápido, estamos todos a falar
permanentemente por diversas plataformas,
os grandes jogadores são conhecidos
em qualquer canto do mundo, o acesso
aos jogos está universalizado. É necessário
que o poder da mensagem de uma modalidade
tão popular seja utilizado como ferramenta
para ajudar os que mais precisam.
Isto já vinha acontecendo nos últimos
anos, mas agora é muito premente.
Agora tem de acontecer o que acontece
116
FPF360
em todas as áreas. Quando se tem um
problema, as pessoas responsáveis têm de
pensar sobre ele e definir o que se vai fazer no
futuro. É natural que esse debate aconteça em
momentos de crise. A grande novidade aqui é
que, embora acredite que alguns campeonatos
e regiões sofram mais em comparação
com outros, a COVID-19 irá afetar todos.
Considero natural e saudável que todas as
questões se discutam. Há algumas alterações
que levam tempo, tudo tem de ser feito em
função das próprias regras e a bem jogo. Pelo
que tenho observado há mudanças positivas,
que estão a respeitar esta enorme densidade
competitiva em fim de época, nunca antes
vivida. Se se provar que algumas destas novas
medidas servem os interesses do futebol,
acho que se devem tornar definitivas.
A pandemia tirou-nos a sensação de que
temos o controlo de tudo. Toda a gente foi
apanhada de surpresa. As estruturas mais
bem preparadas sentiram menos o impacto,
naturalmente. Acho que esse é um aspeto
importante. A lição que devemos retirar é que
temos de fazer tudo para prever ao máximo
qualquer eventualidade, por muito remota
que ela possa parecer. Em futebol não
se pode ter uma gestão quotidiana, tem
de se pensar a médio/longo prazo. Ter calma
e sustentabilidade financeira é fundamental.
Por vezes vemos atitudes inconsequentes,
que até podem ter origem na paixão pelas
próprias instituições, mas isso é evitável.
A responsabilidade nunca pode faltar,
ainda para mais numa altura destas.
Tenho pena que as crianças neste momento
estejam mais condicionadas para competir
e até para jogar com os amigos, acho
que é uma limitação grande. Só não queria
que eles desistissem, é apenas um momento
que vai passar. O futebol é um sonho
para muitos deles e ir atrás do sonho
é a única coisa que faz sentido.
Queria dizer aos portugueses que tenham
fé. Estamos a desconfinar aos poucos,
temos feito algumas conquistas.
Não pode faltar a esperança que vamos
todos conseguir ultrapassar esta situação.
FPF360 117
Jornalista
CLAUDIA
GARCIA
ITÁLIA RENASCE
COM O FUTEBOL
15 de fevereiro de 2020. O Gewiss Estádio
em Bergamo estava lotado para o jogo entre
a Roma e a Atalanta a contar para a 24ª jornada
da Seria A. Estávamos todos sentados
como sardinhas enlatadas
no moderno recinto que fica mesmo
no centro da cidade lombarda. Isto, poucos
dias antes de Bergamo se tornar no epicentro
europeu do novo coronavírus. Como é que
é possível. Aconteceu tudo rápido. Estava
um ambiente fantástico, apesar do frio. Eu ali
no meio de vinte mil pessoas eufóricas com
a reviravolta da Atalanta no marcador.
A equipa de Gasperini ganhou por 2-1 e
agarrou, nesse dia, o quarto lugar
do campeonato que nunca mais lhe escapou.
Era já muito tarde quando deixei a cidade
e nunca mais lá voltei até hoje. Bergamo
é uma cidade que tem toda a minha simpatia,
assim como os seus 120 mil habitantes,
que não são fanáticos, mas verdadeiramente
apaixonados pela Atalanta, como um adepto
deve ser.
No dia 19 de fevereiro, cerca de 40 mil
bergamascos viajaram até Milão para o jogo
dos oitavos de final da Liga dos Campeões.
Viajaram de carro, de comboio, de autocarro.
Andaram pelas ruas da cidade e pelos metros
e muitos deles já estavam infectados com
o novo coronavírus. O vírus já circulava
entre nós, mas em Itália estavam distraídos
e a preocupação era encerrar os voos diretos
com China. Nessa tarde gelada de fevereiro,
estive no centro de Milão novamente no meio
de milhares de adeptos vindos de Bergamo.
Não estive no estádio, mas ouviam-se
por todo o lado da cidade
os gritos dos adeptos nerazzurri a cada
um dos quatro golos que a Atalanta marcava
ao Valência. O jogo foi uma bomba atómica
de contágios que nos dias seguintes se
espalharam pelo norte do país.
Dois dias depois, na sexta-feira,
21 de fevereiro, a Itália acordou
com péssimas notícias. Fui de manhã
cedo para o centro de Milão, onde trabalho
diariamente num escritório com outros
colegas. Vi as notícias dos primeiros
casos italianos de covid19 confirmados
na Lombardia. Estavam já internados no
hospital de Codogno, uma pequena cidade
perto de Milão, a cerca de uma hora de carro.
Entrei de imediato em contacto com a Sic,
para onde trabalho como correspondente
em Itália, para transmitir as informações.
Os casos aumentavam hora após hora
e passei o dia todo a fazer diretos.
Foi um dia intenso e lembro-me
perfeitamente que à noite os casos eram
já 18, mas ainda ninguém levava isto a sério.
No dia seguinte foram confirmados os
primeiros casos na região do Veneto
e a primeira morte por covid19 em Itália.
Era o início de meses muito difíceis.
Em Milão, seguiu-se
um fim-de-semana estranho.
Nos supermercados, nas ruas, todos
olhavam mal uns para os outros. Havia medo.
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Respirava-se esse medo em todo o lado.
Comprei um kit de dez máscaras pensando
que estava a exagerar, mas não foram
suficientes. Poucas pessoas usavam máscara
nestes primeiros dias. Agora andam
todos de máscara, mas usá-la no final
de fevereiro teria feito toda a diferença.
Não só agora. No domingo à noite,
os casos já superavam uma centena
e o governo impôs a primeira cerca sanitária
na região de Lodi e Codogno. Na verdade,
em Milão pouco mudou, porque aqui
acreditavam que o problema iria ficar
circunscrito a estas pequenas cidades
e que nunca atingiria as metrópoles
como Milão ou Bergamo. Que engano.
BERGAMO SEM ESPAÇO
PARA OS MORTOS
O medo era parar não só o futebol,
mas principalmente as grandes empresas
do norte, que são o motor industrial de
Itália. Milão e Bergamo são cidades muito
industrializadas, cheias de grandes fábricas,
armazéns e muitos produtores não quiseram
encerrar os seus estabelecimentos.
Em Bergamo, a população vive para trabalhar
e são daqueles que raramente se queixam,
uma virtude que acabou por ser o pior inimigo,
porque as grandes fábricas tornaram-se
cadeias de contágio perfeitas para este vírus.
O hospital Papa Giovanni XXIII de Bergamo
montou a maior Unidade de Cuidados
Intensivos de covid19 de toda a Europa,
mas não foi suficiente. Os casos conhecidos
foram, pelo menos, 15 mil só em Bergamo
para uma população de 120 mil pessoas,
a pior média de Itália, mas o próprio
presidente da Câmara Municipal, Giorgio
Gori, estima que os casos sejam muitos mais,
porque muita gente morreu em casa, sem
nunca chegar ao hospital. A imagem dos
carros do exército que transportam os caixões
para fora de Bergamo diz tudo. Essa imagem
foi um murro no estômago. A cidade lombarda
ficou sem espaço para os seus mortos.
DE JORNALISTA DE
DESPORTO AO COVID
Durante mais de dois meses foi assim
o meu trabalho. Deixei de contar os golos
para contar as mortes diárias por covid19.
Deixei de entrevistar jogadores, para ouvir
histórias de pessoas que perderam o parente
que mais amavam. O futebol deixou de ser
importante. Eu estava no epicentro do vírus,
não podia continuar a falar de futebol. Nós,
os jornalistas, um pouco como os médicos,
deixamos as divisões e as secções e passamos
a pertencer todos à secção covid. Como
todos, readaptei-me. Perdi trabalhos, ganhei
outros, mas trabalhei sem parar durante esta
pandemia. Nunca parei, o único dia de folga
em dois meses foi o domingo de Páscoa.
Passei a primeira
fase da epidemia em Milão a cobrir segundo
por segundo tudo o que acontecia à minha
volta, depois viajei para Portugal, onde
continuei a cobertura e regressei a Milão,
a meio de abril, através da Suíça,
sem ter dúvidas.
Milão é a minha casa e vai continuar a sê-lo.
Nunca me passou pela cabeça deixar esta
cidade fantástica e cheia de oportunidades
por causa deste maldito vírus, mas eu também
tive medo. Tive muito medo, não só por mim,
mas pela minha família e os meus amigos
mais próximos e mesmo por aqueles que
nem sequer conhecia. Foi terrível. Tive noites
em que deixei de dormir a pensar no vírus,
a pensar no trabalho. Eu, como jornalista,
não tinha essa sorte de poder desligar
a televisão e desintoxicar das notícias
trágicas por umas horas. Eu vivia com elas,
mas também foram muitas as histórias
positivas. Acreditem, a Itália não fez tudo mal,
pelo contrário. A Itália fez muita coisa bem
feita, por exemplo, conseguiu evitar
que a tragédia da Lombardia se espalhasse
por todo o país e salvou muitas vidas.
Em Itália, realizou-se o primeiro transplante
de pulmões no ocidente a um jovem
de 18 anos que foi atacado por este vírus.
Hoje está melhor. Em Itália, as forças
de segurança não serviram só para passar
multas, ajudaram, por exemplo, idosos
e pessoas que estavam sozinhas a conseguir
os bens de primeira necessidade, cozinharam,
transportaram doentes. Fizeram de tudo um
pouco e colocaram em risco as próprias vidas.
Em Itália, centenas de médicos idosos que
já estavam na reforma voltaram ao trabalho.
O país reagiu: uniu-se e não deixou ninguém
para trás.
FUTEBOL AJUDA
A ITÁLIA A RECOMEÇAR
São histórias que vão ficar para sempre
na memória daqueles que, como eu, saíram
pela primeira vez de casa no dia 4 de maio
para conhecer esta nova Itália que renasce.
A Itália não vai voltar página, porque esta
página não se esquece nem se vira,
mas a Itália está a recomeçar de onde parou
e está no caminho certo. Nunca foi tão bonita
como agora. É mágico ver este país cheio
de esperança e despido de turistas. Esta está
a ser a melhor parte do trabalho, fazer diretos
de um Duomo com pouca gente, um céu sem
nuvens, sem poluição e um sol radiante.
Agora finalmente podemos desfrutar da Itália
só para nós. As crianças que saem às ruas com
uma bola de futebol depois de terem ficado
esquecidas em casa durante meses e o futebol
que voltou, voltou a dar-nos motivos para
sorrir, para discutir nos cafés e debater
sobre jogadas e pênaltis não dados. Que
bom é poder voltar a falar de futebol, porque
o desporto nunca divide, sempre une. Voltar
a ver os miúdos jogarem à bola nos parques
de Milão é, para mim, tão bonito como estar
na final da Liga dos Campeões em Lisboa.
E eu quero lá estar, quero trabalhar, quero
fazer o que sempre fiz, quero voltar à minha
normalidade. Que incrível é para o nosso
país receber este evento e eu não vou esperar
pelo fim do jogo para dar o meu prognóstico.
Digo-o com um altifalante na mão, eu espero
que seja uma equipa italiana a vencer o troféu.
E, por Bergamo, pelas histórias de vida que
se perderam nesta cidade e que não podem
ser recordadas como simples números,
eu espero que seja a Atalanta a ganhar.
O jogo em Bergamo ainda não acabou.
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PEDRO
EMANUEL
Treinador que venceu a Taça de Portugal
2011/2012 recorda as sensações que
o invadiram no Jamor e compara-as
ao que viveu quando
ganhou taças noutros países
Em 2012 ainda estava no início da minha carreira de treinador e,
como é lógico, a conquista da Taça de Portugal foi um momento
marcante. Não apenas pelo troféu em si, mas também no que diz
respeito ao meu crescimento enquanto treinador – afinal,
orientar a Académica foi a primeira oportunidade que tive como
técnico principal. Essa final deu-me mais confiança para acreditar
que o meu trajeto podia ser bonito, como tem sido.
No caminho para o Jamor eliminámos o FC Porto, em Coimbra,
na quarta eliminatória, e isso deu-nos alento para perseguirmos
o nosso sonho. É verdade que, para vencer a Prova Rainha, ainda
ultrapassámos o Sporting na final mas, mais do que nos considerarmos
“tomba-gigantes”, penso que foi fundamental conseguimos ser
realistas na forma como abraçámos a envolvência desta competição,
com muito bons resultados.
Guardo excelentes recordações do dia 20 de maio de 2012 e há
bem pouco tempo tive a possibilidade de reviver alguns desses
momentos porque o jogo passou no Canal 11. Foi uma lembrança
saborosa pelo ambiente que se viveu. Toda a cidade de Coimbra
estava em euforia, mesmo antes de começar o jogo. Houve sempre
um grande envolvimento entre a comunidade local e a Académica.
Isso ficou-me marcado para sempre, assim como o entusiasmo dos
jogadores (muitos deles nunca tinham estado numa final, quanto
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mais conquistá-la). Há 72 anos que o clube
não ganhava a Taça de Portugal e há 42 que
não estava no encontro decisivo, por isso
não há dúvida que aquele grupo de trabalho
extraordinário escreveu uma das páginas
mais bonitas da história da grande “Briosa”.
Quatro depois, em 2016, essa experiência
foi útil para vencer a Taça do Chipre
pelo Apollon. Aí a nossa responsabilidade
era maior porque estamos a falar de um dos
melhores emblemas daquele país, que discute
títulos todas as temporadas. A envolvência
e a obrigação tornam-se diferentes. Foi a
minha primeira conquista como treinador
fora de Portugal, que ajudou à consolidação
da carreira e a perceber que no estrangeiro
também é possível trabalhar bem e ter
a competência para se conquistar o sucesso.
Depois disso, eu e a minha técnica ainda
tivemos a felicidade de conduzir o Al Taawon
à vitória na Taça do Rei da Arábia Saudita
(2019) e, na época passada, o Al Ain à final
da Taça dos Emirados Árabes Unidos, que não
se realizou devido à pandemia. Como é lógico,
em todos esses momentos me passaram
pela cabeça várias vezes as imagens do Jamor,
talvez ainda com mais orgulho e emoção
pela distância temporal e por estarmos
longe de Portugal e das nossas famílias.
Na minha opinião, conquistar uma Taça
no estrangeiro envolve uma complexidade
maior. Em Portugal conhecemos a realidade
e estamos mais atualizados. Lá fora temos
de nos adaptar, de ir ao encontro do que
são os aspetos não apenas ligados ao futebol
em si, mas também a especificidades sociais
e culturais para podermos desenvolver
o nosso trabalho sem colidir com os hábitos
e costumes locais. À semelhança do que se
passa no nosso país, são troféus de grande
importância. Na Arábia Saudita é mesmo
equivalente ao campeonato porque
a competição é uma homenagem ao rei, com
tudo o que isso tem de histórico e simbólico.
Contextos diferentes, sensações semelhantes.
Acho que posso resumir desta forma
a experiência de vencer Taças em três países
diferentes. No entanto, tenho de admitir que
o simbolismo do Estádio Nacional é marcante,
até porque a primeira vez que o visitei foi em
representação da seleção sub-12 da AF Porto
em dia de final de Taça e ganhei o sonho – várias
vezes cumprido, felizmente – de um dia vencer
aquele bonito troféu como profissional.
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PEDRO
PINTO
O CEO da Empower Sports recorda
a forma intensa como o Mundial
feminino de 1999 foi vivido nos
Estados Unidos.
Estávamos no verão de 1999. Os Estados
Unidos da América acolhiam o Mundial
feminino de futebol de braços abertos,
havendo uma enorme onda de entusiasmo
em todo o país. Eu estava na crista desta
onda, pois trabalhava em Atlanta como
apresentador de desporto na CNN
International, e esta competição era,
diariamente, um dos temas principais dos
nossos programas diários. Mesmo fora do meu
ambiente de trabalho era possível sentir como
o país vibrava com o Mundial e, à medida que
a fase decisiva se aproximava, este torneio era
mesmo o tema central de todas as conversas
que andavam à volta do desporto.
Para ser honesto, naquela altura eu não entendi
bem o impacto que o evento teria, não só no
futebol feminino mas também no desporto
feminino em geral. Mas o facto deste torneio
ter atraído a atenção de tantos adeptos e o
foco de tantas câmaras fez com que tivesse um
efeito enorme. A final deixou-nos, na minha
opinião, uma das imagens mais icónicas da
história do desporto: Brandi Chastain, após
apontar o penalti decisivo contra a China, de
joelhos, sem camisola, celebrando o segundo
título mundial do seu país.
Nos dias, semanas, meses e até anos que
se seguiram, muitas raparigas queriam
ser como a Brandi. Toda a gente queria
ser como a equipa norte-americana que
havia conquistado o mundo. Olhando em
retrospetiva, mais de vinte anos depois,
posso afirmar que aquela competição, e
especialmente aquela final, foi uma espécie
de ‘big bang’ para o futebol feminino. Um
momento de viragem, que deu ao futebol
praticado por mulheres as referências
necessárias para inspirar as futuras gerações.
Por ter sido realizado nos Estados Unidos,
o país que inventou o show-business, aquele
Mundial teve um significado muito especial.
A expectativa criada em redor de jogos com
estádios cheios e a espetacularidade do
futebol jogado levou a que várias federações
espalhadas por todo o mundo começassem a
pensar a sério em investir no futebol feminino
em busca de, também elas, atingirem a glória.
Ao longo das duas últimas décadas, grandes
avanços foram feitos no desenvolvimento
do futebol feminino e muitas federações
merecem ser elogiadas por isso. A Federação
Portuguesa de Futebol é uma delas. O trabalho
feito dentro e fora do campo, especialmente
ao longo da última década, para promover
o futebol feminino tem sido notável e a
presença de várias equipas em grandes
competições deve ser assinalada como um
marco importante desse crescimento.
Não há dúvidas de que é preciso fazer mais
para desenvolver o futebol feminino, mas
estamos no caminho certo. Com a expansão
do Mundial e do Europeu e consequente
participação de novos países em torneios de
máximo nível, o céu é o limite para o futebol
feminino. Mais momentos icónicos virão.
Mais momentos como o penalti apontado por
Brandi Chastain em 1999.
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