Gestão Hospitalar N.º 23 2020
Editorial #Os dias que correm Opinião Doenças societais associadas ao Covid-19 Pandemia na Madeira A resposta da RAM à pandemia de Covid-19 Voz do Cidadão Doente oncológico e Covid-19 Opinião A ética em tempo de pandemia Estudo APAH Aprender com a Covid-19: A visão dos gestores de saúde em Portugal Estudo APAH O impacto da Covid-19 na atividade hospitalar do SNS Estudo APAH Acesso a cuidados de saúde em tempos de pandemia Estudo APAH A participação pública nos hospitais do SNS Saúde Militar Covid-19: as lições que só recordaremos na próxima pandemia Opinião A pandemia antecipou a mudança tecnológica em décadas Espaço ENSP “Barómetro Covid-19 - Opinião social”: o que pensam os portugueses em tempo de Covid-19? Saúde Pública Comunicação em saúde em tempos de pandemia Desenhos Diário de uma pandemia Direito Biomédico Discussão jurídica em torno da utilização de nanotecnologia(s) no combate à Covid-19 Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence Prémio Healthcare Excellence: edição Covid-19 Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence Atuação preventiva em ERPI Gestão Prescrição: mais valor em saúde em Portugal Investigação O impacto da transformação digital e a liderança no futuro da saúde Publicação APAH Apresentação do livro “Um olhar sobre a evolução da gestão hospitalar em Portugalˮ de José Nogueira da Rocha Publicação APAH Value Based Health Care em Portugal Estudo APAH Acessibilidade ao medicamento hospitalar Iniciativa APAH | Prémio Coriolano Ferreira 2020 Desafios e contributos da especialização em administração hospitalar na esfera da pandemia Iniciativa APAH | Fórum do Medicamento Reflexão sobre o modelo de acesso ao medicamento hospitalar Iniciativa APAH | Bolsa Capital Humano A urgência mais urgente dos cuidados de saúde Academia Digital APAH Todos juntos, na construção de uma saúde de excelência!
Editorial #Os dias que correm
Opinião Doenças societais associadas ao Covid-19
Pandemia na Madeira A resposta da RAM à pandemia de Covid-19
Voz do Cidadão Doente oncológico e Covid-19
Opinião A ética em tempo de pandemia
Estudo APAH Aprender com a Covid-19: A visão dos gestores de saúde em Portugal
Estudo APAH O impacto da Covid-19 na atividade hospitalar do SNS
Estudo APAH Acesso a cuidados de saúde em tempos de pandemia
Estudo APAH A participação pública nos hospitais do SNS
Saúde Militar Covid-19: as lições que só recordaremos na próxima pandemia
Opinião A pandemia antecipou a mudança tecnológica em décadas
Espaço ENSP “Barómetro Covid-19 - Opinião social”: o que pensam os portugueses em tempo de Covid-19?
Saúde Pública Comunicação em saúde em tempos de pandemia
Desenhos Diário de uma pandemia
Direito Biomédico Discussão jurídica em torno da utilização de nanotecnologia(s) no combate à Covid-19
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence Prémio Healthcare Excellence: edição Covid-19
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence Atuação preventiva em ERPI
Gestão Prescrição: mais valor em saúde em Portugal
Investigação O impacto da transformação digital e a liderança no futuro da saúde
Publicação APAH Apresentação do livro “Um olhar sobre a evolução da gestão hospitalar em Portugalˮ de José Nogueira da Rocha
Publicação APAH Value Based Health Care em Portugal
Estudo APAH Acessibilidade ao medicamento hospitalar
Iniciativa APAH | Prémio Coriolano Ferreira 2020 Desafios e contributos da especialização em administração hospitalar na esfera da pandemia
Iniciativa APAH | Fórum do Medicamento Reflexão sobre o modelo de acesso ao medicamento hospitalar
Iniciativa APAH | Bolsa Capital Humano A urgência mais urgente dos cuidados de saúde
Academia Digital APAH Todos juntos, na construção de uma saúde de excelência!
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OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2020
Edição Trimestral
Nº 23
GESTÃO
HOSPITALAR
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA aSSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ADMINISTRADORES HOSPITALARES
“Uma caricatura dos dias que correm”, marcadores sobre papel. Expressão criativa no âmbito do projeto “Diário de Quarentena”,
do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa
dias
Os
dias
correm
que
GH OPhghgh
GH SUMÁRIO
OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2020
4
Editorial
#Os dias que correm
GESTÃO
HOSPITALAR
PROPRIEDADE
APAH - Associação Portuguesa
de Administradores Hospitalares
Parque de Saúde de Lisboa Edíficio, 11 - 1º Andar
Avenida do Brasil, 53
1749-002 Lisboa
secretariado@apah.pt
www.apah.pt
DIRETOR
Alexandre Lourenço
DIRETORA-ADJUNTA
Bárbara Sofia de Carvalho
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Catarina Baptista, Miguel Lopes
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Alexandra Santos
EDIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Bleed - Sociedade Editorial e Organização
de Eventos, Ltda
Av. das Forças Armadas, 4 - 8B
1600 - 082 Lisboa
Tel.: 217 957 045
info@bleed.pt
www.bleed.pt
PROJETO GRÁFICO
Sara Henriques
DISTRIBUIÇÃO
Gratuita
PERIODICIDADE
Trimestral
DEPÓSITO LEGAL N.º
16288/97
ISSN N.º
0871- 0767
TIRAGEM
2.000 exemplares
IMPRESSÃO
Grafisol, Lda
Rua das Maçarocas
Abrunheira Business Center, 3
2710-056 Sintra
Esta revista foi escrita segundo as novas regras
do Acordo Ortográfico
Estatuto Editorial disponível em www.apah.pt
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Opinião
Doenças societais associadas ao Covid-19
Pandemia na Madeira
A resposta da RAM à pandemia de Covid-19
Voz do Cidadão
Doente oncológico e Covid-19
Opinião
A ética em tempo de pandemia
Estudo APAH
Aprender com a Covid-19: A visão dos gestores de saúde em Portugal
Estudo APAH
O impacto da Covid-19 na atividade hospitalar do SNS
Estudo APAH
Acesso a cuidados de saúde em tempos de pandemia
Estudo APAH
A participação pública nos hospitais do SNS
Saúde Militar
Covid-19: as lições que só recordaremos na próxima pandemia
Opinião
A pandemia antecipou a mudança tecnológica em décadas
Espaço ENSP
“Barómetro Covid-19 - Opinião social”: o que pensam os portugueses em tempo
de Covid-19?
Saúde Pública
Comunicação em saúde em tempos de pandemia
Desenhos
Diário de uma pandemia
Direito Biomédico
Discussão jurídica em torno da utilização de nanotecnologia(s) no combate
à Covid-19
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence
Prémio Healthcare Excellence: edição Covid-19
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excellence
Atuação preventiva em ERPI
Gestão
Prescrição: mais valor em saúde em Portugal
Investigação
O impacto da transformação digital e a liderança no futuro da saúde
Publicação APAH
Apresentação do livro “Um olhar sobre a evolução da gestão hospitalar em Portugalˮ
de José Nogueira da Rocha
Publicação APAH
Value Based Health Care em Portugal
Estudo APAH
Acessibilidade ao medicamento hospitalar
Iniciativa APAH | Prémio Coriolano Ferreira 2020
Desafios e contributos da especialização em administração hospitalar na esfera
da pandemia
Iniciativa APAH | Fórum do Medicamento
Reflexão sobre o modelo de acesso ao medicamento hospitalar
Iniciativa APAH | Bolsa Capital Humano
A urgência mais urgente dos cuidados de saúde
Academia Digital APAH
Todos juntos, na construção de uma saúde de excelência!
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GH editorial
Alexandre Lourenço
Presidente da APAH
#Os dias que correm
Esta edição da Gestão Hospitalar chega
no final de 2020.
A pandemia trouxe-nos demasiado sofrimento
e solidão para tantos de nós.
Não podemos deixar de evocar a memória
de todos aqueles que nos deixaram durante este
ano, devido à Covid-19 ou não. Os efeitos da pandemia
exigiram muito, dos doentes, dos familiares e dos
amigos. Não podemos deixar de destacar aqueles que
deram o melhor de si, neste momento tão difícil. Particularmente
aqueles que cuidam dos doentes e dos
mais frágeis.
O prémio Healthcare Excellence foi este ano atribuído
ao projeto de atuação preventiva em lares do ACES
Douro Sul. A não perder a descrição em nome próprio
deste importante projeto.
A excelência da opinião chega-nos, entre outros, pelas
penas de António Correia de Campos - “Doenças
societais associadas ao Covid-19”, Paula Martinho da
Silva - “A ética em tempos de pandemia”, Victor Rodrigues
- “Doente oncológico e a Covid-19”, e Carlos
Penha Gonçalves - “Covid-19: as lições que só recordaremos
no pós-pandemia”. Dora Melo, distinguida
com o Prémio Coriolano Ferreira 2020, elabora sobre
os desafios e contributos da especialização em administração
hospitalar na esfera da pandemia.
Nesta GH publicamos resumos de cinco estudos promovidos
pela APAH este ano: 1) Aprender com a
Covid-19: A visão dos gestores de saúde em Portugal;
2) O impacto da Covid-19 na atividade hospitalar do
SNS; 3) Acesso a cuidados de saúde em tempos de
pandemia, estudo de opinião; 4) A participação pública
nos hospitais do SNS; 5) Acessibilidade ao medicamento
hospitalar. O grupo de trabalho da Gestão da
Informação em Saúde, coordenado por Teresa Magalhães,
publica “O impacto da transformação digital e
a liderança no futuro da saúde”. O espaço ENSP traz
os dados do “Barómetro Covid-19 - Opinião social: o
que pensam os portugueses em tempo de Covid-19?”.
Para além dos estudos, sugerimos dois novos livros
APAH lançados este trimestre: “Um olhar sobre a
evolução da gestão hospitalar em Portugal” de José
Nogueira da Rocha e “Value Based Health Care em
Portugal” de Francisco Rocha Gonçalves.
Para 2021, lançamos a Bolsa Capital Humano em Saúde
e o convite para frequentarem os cursos da Academia
APAH Digital.
Um ano difícil fica para trás, o Natal de 2020 será
claramente diferente de tudo o que vivenciámos até
agora. Contudo, a pureza do Natal mantém-se. Este é
um período de reflexão, esperança e de renascimento.
Neste sentido, o Natal não muda em nada.
Os crentes podem orar para que tudo melhore. Os
não crentes também. Talvez se justifique a esperança
de que, com base neste ano, possamos ser sagrados
entre nós para que o homem não seja o lobo de si
mesmo. A pandemia não é o único desafio. A exclusão,
a pobreza, as barreiras à saúde, a guerra e as alterações
climáticas não vão desaparecer.
Numa mensagem de Natal, um colega alemão dizia-
-me que em vez de nos focarmos nas coisas más, será
importante fazer as coisas um pouco melhor a cada
dia. É isso que procuramos a cada dia nesta ideia que
é a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.
É esse pensamento que transporta a equipa
que produz a excelência de conteúdos desta GH.
Em nome desta equipa: um Feliz Natal e um Ótimo
2021. Ã
4
GH OPINIÃO
DOENÇAS SOCIETAIS
ASSOCIADAS AO COVID 19
António Correia de Campos
Sócio Honorário APAH
Numa situação tão complexa como é a
desta pandemia é natural que a doença
principal arraste outras morbilidades, de
natureza societal. Identificámos algumas,
propomos métodos para a sua prevenção
e tratamento:
Ignorância, inconsciência, medo e revolta
Boa parte dos portugueses tem percorrido em oito meses
estes quatro caminhos. No início todos desconhecíamos
a doença, mesmo a DGS, o CDC, o ECDC e a OMS.
Informação científica escassa, não contestada por pares,
tergiversante e até contraditória. Seguiu-se a inconsciência,
a doença só acontecia aos outros e parecia facilmente
abatível, a fazer fé nas curvas da primeira vaga. Aos poucos
chegou o medo, em outubro. Começámos a registar
conhecidos, amigos e familiares entre os doentes. Depois
chegou a revolta, não contra a doença, o que poderia mobilizar
comportamentos, mas contra as medidas sociais
desagradáveis e economicamente deletérias. O próximo
passo será a fase da negação, como acontece nas doenças
fatais.
Subir ao Céu mediático para descer ao Inferno opinativo
Eis o que está a acontecer a Graça Freitas ou a qualquer
outra pessoa diariamente exposta. Cansámo-nos dela, dos
números e das conferências. Tudo cansa, sobretudo cansa
mais depressa o que rapidamente sobe na apreciação
popular. Admiramos a sua resiliência, tal como a de Marta
Temido. Surgem spin doctors a recomendar outros rostos.
Chegámos ao ponto em que mil casos ou quinze mortos
a mais ou a menos em cada dia, quase nos deixam insensíveis.
No Reino Unido e em outros países terminaram as
conferências, agora só há números secos. Se tal exemplo
seguisse o Governo seria imediatamente acusado de sonegar
informação. Lembremo-nos das cobras e lagartos
que choveram há semanas sobre os semáforos de risco.
Basta ver como reagiram alguns concelhos à sua inclusão
num lote alargado de risco, cada um tendo bons argumentos
para se julgar maltratado pela inclusão e estigma.
Proliferação de cientistas:
Epidemiologistas, matemáticos, estatistas, virologistas, infeciologistas,
psicossociólogos, especialistas de comunicação
de crise. Do nada surgem dezenas de cérebros privilegiados,
ditosa Pátria que tantos e tão bons filhos tem!
E quando pensávamos sofrer de um tremendo défice de
médicos de saúde pública, eis que eles surgem ao Norte,
ao Centro, ao Sul, apenas faltando os tão necessários para
inquéritos e seguimento dos infetados e confinados, a
ponto de se terem que mobilizar profissões próximas,
alunos finalistas e suspeitos confinados. Noticiaristas e
fundistas, oráculos das redes sociais, comentadores políticos
pseudo-independentes são agora professores de epidemiologia
e administração de saúde nacional e internacional.
Esta overdose, mais opinativa que analítica, começa
a cansar. E ainda se queixam de estarem fartos da Dr.ª
Graça Freitas!
Reducionismo fenomenológico
A novidade da epidemia, apesar da sua repetição em ciclos
longos, desconcerta-nos. Pensámos que o problema
estaria resolvido em junho e afinal não estava; esperávamos
a segunda vaga em Janeiro e ela surgiu em setembro;
admitíamos que países que cuidam bem de toda a
gente, com toda a tecnologia disponível, bem organizados
e bem providos de pessoal bem pago como o Reino
Unido, Alemanha, França, Áustria e até a Suécia estariam
ao abrigo da rudeza de uma segunda vaga e afinal estavam
tão desprotegidos como nós, mais indisciplinados no
confinamento, menos preocupados com os mais idosos
e afinal ultrapassam-nos em indicadores negativos. Continuamos
a não compreender a doença e sobretudo a co-
munidade onde ela grassa. Pensávamos que reacendia só
nos pobres e afinal propaga-se como pólvora nas famílias
da classe média alta; admitíamos que só morriam os mais
velhos e afinal houve mortes de jovens adultos e de cidadãos
em idade ativa; receávamos a propagação rápida nas
escolas e afinal o contágio faz-se pela cerveja na rua. A realidade
perturba-nos, não conseguimos extrair-lhe todas
as regras, tornou-se impossível reduzi-la aos nossos modelos
e arrumá-la na estante.
Rolar de cabeças como terapêutica
Pensávamos que a gestão da pandemia era para homens
de barba rija e afinal o protagonismo foge para mulheres.
Temos comentadores a pedirem semanalmente a cabeça
da Ministra da Saúde e ela resiste incólume; os mercadibilistas
a exigirem mercado, sem realmente o oferecerem
e este a fugir-lhes para o público; os privados a clamarem
pelo banquete e afinal a comida é-lhes distribuída com
parcimónia; as cassandras a anunciarem que para a semana
será a rutura das UCI e pessoal e material teimando
em resistir; ordens profissionais, os liberais e os operadores
privados a banirem a palavra “serviço”, trocando-a
por “sistema” e os resistentes, entre eles o Governo, a in-
sistirem na designação constitucional e legal de Serviço Nacional
de Saúde. Em vez de se unir, o País tende a dividir-se,
tal como o uso da máscara nos EUA distingue os democratas
dos republicanos. O País está agora mais áspero.
Ignorância da história como alibi
O homem contemporâneo tende a pensar que controla a
história, e que as pandemias do passado eram dramáticas,
por ignorância do mecanismo biológico e por escassez
de tecnologia. Puro engano. As pandemias continuam a
ter mais que uma vaga; já não é só o rei e a corte que mudam
de terra ou se confinam, são agora quase todos os
portugueses, com e sem casa, mas sempre com família e
amigos que aprenderam a defender-se, embora reproduzindo
na qualidade da defesa os desníveis sociais que
determinam a sua saúde. Ninguém está a salvo da infeção
hoje, como não estava há 100 ou há 400 anos.
O horror ao vazio da política
Se a oposição tende a colaborar, os gerifaltes tendem a
surgir. Se o opositor adota postura responsável, saltam
as ordens profissionais, os comentadores dos gráficos, os
professores de pacotilha, os críticos do processo que não
do fim, os céticos da imagem clamando por novos mode- }
6 7
GH OPINIÃO
“
PODERÁ O GOVERNO QUEIXAR-SE
DE FALTA DE APOIO POLÍTICO,
AO LONGO DA CRISE?
NÃO PARECE. SEMPRE TEVE O PR
QUASE A SEU LADO OU MESMO
À SUA FRENTE, OFERECENDO
O PEITO ÀS BALAS. SEMPRE TEVE
UMA OPOSIÇÃO COOPERANTE
E CONSTRUTIVA QUE MUITOS
CONSIDERAM DÓCIL DE MAIS.
”
los comunicacionais, apontando inconsistências, contradições
e até erros. O comentário mais comum hoje é a crítica
à suposta falta de planeamento da segunda vaga. Como
se fosse possível planear o imprevisto, o quotidiano
mutante, disciplinar o vírus a atuar apenas nos dias ímpares,
ou fazer surgir da noite para o dia profissionais cuja
gestação exige dez anos. Em circunstâncias normais os
políticos lideram as opiniões, agora são as opiniões, avulsas
e erráticas, que pretendem liderar os políticos.
A deriva ideológica
Durante décadas assistiu-se à deriva do Estado para o
mercado. Os liberais venceram a primeira batalha, convencendo
o centro político de que as leis de mercado,
a sua mão invisível, seriam mais eficazes que mil normativos.
O resultado foi a financeirização da economia, a
concentração absurda da riqueza, o aumento brutal das
desigualdades, a fragilização do contrato social e da paz
entre nações. O setor privado na saúde teve entre nós
terreno livre para avançar. Cada avanço de 100 camas
hospitalares privadas retira quarenta médicos e cento e
cinquenta enfermeiros ao SNS, impossibilitado de competir
em salários, amenidades e conforto. Durante oito
meses o privado descartou doentes suspeitos de contágio,
fechou serviços, beneficiou do lay-off. Depois, sentindo
o apelo do mercado, saiu do seu quartel de inverno
e tenta avançar as suas tropas pelo planalto central. Estão
disponíveis, pois então! Talvez nem sempre na realidade,
mas na retórica não há reservas. E da reserva se passa
facilmente à queixa e da queixa ao ataque.
Mas afinal que saídas temos em frente de nós? Como gerir
a atual incerteza, como vencer a crise? O que nos falta
para termos mais sucesso?
Será que nos faltam recursos, nomeadamente financeiros?
Sempre faltaram, ao longo da história, mas desta vez
não há razão de queixa. Claro que temos escassos recursos
nossos, mas a ocasião permite endividamento e até
garante doações. Não será daí que virá o nosso capital
de queixa.
Teremos falta de organização? Sim. Somos proverbialmente
desorganizados, bons improvisadores, mas em
matéria de saúde pública até não nos podemos queixar.
Uma grande reforma, há quase 50 anos elevou a nossa
saúde pública ao patamar das melhores. E também não
nos queixamos de inconsistência regional. A centralização
quase feroz do nosso sistema de autoridade sanitária, não
consente derivas regionais, municipais ou locais. Comando
e controlo foram sempre a regra. Vantagens perversas
de não termos ainda regionalizado a nossa administração.
Sofreremos de falta de planeamento? Sim todos sabemos
que sofremos, mas aqui a nossa preguiça planeadora foi
irrelevante. Em três meses pode-se redigir um plano, mas
leva-se três anos ou mais a executá-lo. Caem no vazio
as acusações de falta de plano entre ondas pandémicas.
Impossível materialmente planear bem, quando todos os
dias a mente está concentrada em apagar fogos. Necessitávamos
de supermulheres ou superhomens nessa fase e
apenas temos pessoas comuns.
Poderá o Governo queixar-se de falta de apoio político,
ao longo da crise? Não parece. Sempre teve o PR quase
a seu lado ou mesmo à sua frente, oferecendo o peito às
balas. Sempre teve uma oposição cooperante e construtiva
que muitos consideram dócil de mais. Tem certamente
agora contra si uma onda de media e comentadores.
Mas não consta que possam governar pelos jornais ou
pelo écran de plasma.
O que falta então?
Faltam recursos humanos em profissões corporativamente
capturadas, durante décadas, pelo controlo malthusiano
de efetivos, predados pela medicina privada, desencorajados
por baixos salários públicos e atraídos à emigração
por retribuições decentes, oferecidas pela confortável
Europa. E recursos desses levam cinco a dez anos a sentir
os efeitos das políticas públicas. Temos escassos 300 médicos
de SP numa especialidade envelhecida e desprestigiada.
Só agora elevada, por excesso, aos píncaros da respeitabilidade.
Faltou energia no passado para desbaratar
o atavismo natural que dificulta a delegação de competências,
a oposição quase violenta da Ordem dos Médicos
a alterações do skill mix, a crónica tolerância ao pluriemprego,
e a coragem para tratar como diferente a dife-
rente exigência de empenho laboral das profissões de
saúde. Perdeu-se mais uma oportunidade.
Falta insuflar energia às tropas. Comandantes cansados e
polarizados na informação que julgam a pedra filosofal da
sua sobrevivência, generais com baixa moral apesar de
respeitados, quadros médios esquecidos e executantes
remunerados com palmas e loas, carecem de influxos de
energia. Substituí-los será erro ainda maior, é forçoso criar
espírito de corpo, afago de camisola para penetrar o ego,
passar do simbólico ao efetivo.
Falta autonomia de decisão nos níveis intermédios do sistema,
autoridade para negociar e intercambiar recursos,
capacidade para contratar apoio externo em momentos
mais críticos, margem de manobra que não termine em
responsabilidade disciplinar e civil por desrespeito de normas
desenhadas para tempos normais e não para a guerra
atual.
Falta uma mais profunda ligação entre a Saúde e a Segurança
Social: derrubar os silos existentes, cruzar e fertilizar
culturas administrativas diferentes, por vezes rivais; reconhecer
que há apenas um governo e não dois, uma só
administração, um só orçamento, uma só função pública
e, na base de tudo, uma só e única cidadania.
Falta disciplina aos cidadãos? Não creio. Quando toca a
rebate todos superamos com generosidade os nossos
pequenos escrínios de egoísmo. Como fizemos na primeira
onda e iremos fazer na segunda. A disciplina aprende-se
na tropa, tem que ser consentida e não imposta.
Consentimento implica informação, sem ela há apenas
subserviência. Boa informação, não excessiva nem repetitiva,
exige comunicação de alta qualidade. Os tempos que
correm são exigentes. Não basta debitar números, fazer
pregações, muito menos lições de moral. Mensagem sóbria,
sem paternalismo nem maternalismo, menos frequente
na presença física e mais rica na exposição oficiosa.
E quando a curva se voltar a achatar, ter a humildade de
admitir que ela pode de novo subir, afastando alívios prematuros
e apressados regressos ao normal.
Sei que tudo o que descrevo é muito e muito difícil. Esse
é o nosso desafio. Ã
8
GH pandemia na madeira
A RESPOSTA DA RAM
À PANDEMIA DE COVID 19
Pedro Ramos
Secretário Regional da Saúde e Proteção Civil
do Governo Regional da Madeira
Com muito prazer escrevo este artigo para
a Revista Gestão Hospitalar, procurando
contribuir para o contínuo desenvolvimento
da gestão de serviços de saúde
em Portugal, foco desta revista e da Associação
Portuguesa de Administração Hospitalar desde
há 37 anos, agora num contexto de pandemia, vivenciado
desde 2019.
Vou procurar caraterizar a forma como a resposta à
pandemia de Covid-19 foi pensada, preparada, organizada,
debatida e implementada numa região que, por
ser insular, tem particularidades próprias (que na nossa
perspetiva ajudaram a controlar a pandemia da Covid-19
na primeira onda e, posteriormente, na segunda)
(Gráfico 1), mas também que se antecipou no desenvolvimento,
desde janeiro de 2020, de uma estrutura de
comando, coordenação e controlo, envolvendo a saúde
e a proteção civil, articulando com todas as entidades
públicas e privadas, e na definição de uma estratégia de
atuação alinhada com o Plano Regional de Emergência
de Proteção Civil da Madeira (PREPCRAM).
Na RAM, a pandemia não foi negligenciada, o que terá
feito a diferença. Fomos pioneiros em muitas das medidas
que adiante falaremos, cujo impacto foi potenciado
pela priorização da prevenção e proteção da saúde pública,
pela proatividade e antecipação.
Seguimos atentamente a evolução da pandemia e as medidas
adotadas no mundo, na Europa e no país. Estivemos
particularmente atentos à forma como os países
Asiáticos controlavam a sua evolução, com medidas
preventivas no contexto comunitário.
Em situações de catástrofe, a metodologia a adotar deverá
ser diferenciada, porque as situações excecionais
obrigam a medidas excecionais, sempre que a vida das
pessoas esteja em jogo. Importa sempre preservar o direito
à vida e não se pode falar em perda de direitos,
liberdades e garantias nestas circunstâncias. Isto aplica-se
a esta situação de exceção, que levou inclusive à declaração
do Estado de Alerta na RAM (a 12 de março de
2020), ao acompanhamento dos sucessivos Estados de
Emergência decretados no país e à manutenção do Estado
de Calamidade.
A Madeira seguiu a metodologia de resposta à catástrofe
MRMI - Medical Response to Major Incidents, da qual
tem sido dinamizadora desde 2010, em todo o país, tendo
já realizado 20 cursos e formado mais de 1.500 profissionais
de áreas estratégicas e operacionais (da área
Médica, de Enfermagem, da Proteção Civil, PSP, GNR, das
Forças Militares, gestores, psicólogos, assistentes operacionais,
técnicos de medicina legal, entre outros). O modelo
MRMI tem sido eficaz e eficiente na organização da
resposta a outros acidentes que assolaram a RAM nos
últimos 10 anos, como foram as inundações, os incêndios,
a queda de uma árvore e a queda de um autocarro.
Esta calamidade tem, contudo, particularidades: pode
atingir os responsáveis pela resposta (os profissionais de
saúde e proteção civil) e, mais do que noutras situações,
os outcomes dependem da responsabilidade do cidadão.
Assim, priorizou-se a proteção destes profissionais, bem
como, o informar, educar e alertar a população para a
responsabilidade cívica. O sucesso é coletivo e, para tal,
contribui cada cidadão com o seu comportamento.
Todos temos de ter consciência da calamidade que vivemos
e, passado quase um ano, surpreendem declarações
de resistência a medidas que têm como objetivo
proteger a população e permitir a recuperação da economia,
como é o exemplo do uso das máscaras.
As decisões tomadas têm um fundamento sanitário, e
não político, como muitos querem fazer pensar. Esta
ideia tem constituído um obstáculo na liderança da resposta
à pandemia e implementação da estratégia de defesa
da Saúde Pública.
A Madeira iniciou a preparação da sua resposta em dezembro
de 2019, acompanhando a evolução da pneumonia
identificada em Wuhan, seguindo as orientações
emanadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS),
Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças
e, posteriormente, Direção Geral da Saúde (DGS).
Foi criada uma Linha de Emergência - SRS24 Madeira,
ativa a partir de 27 de janeiro, e apresentado o Plano Regional
de Resposta a Infeções Emergentes: 2019-nCoV,
a 3 de fevereiro. Deste plano consta a definição estratégica
e a articulação prevista entre as várias entidades
com ação neste domínio (públicas, privadas, militares, de
segurança e outras), em alinhamento com o PREPCRAM.
Durante o mês de fevereiro, formaram-se os profissionais
envolvidos e a Administração Pública da RAM para a
conceção de planos de contingência, reorganizando, em
simultâneo, o Serviço Regional de Saúde (SRS), ao nível
dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) e dos Cuidados
Hospitalares (CH).
Foi criada uma comissão dedicada à Covid, que se encarregou
da elaboração do plano de resposta das unidades
de saúde. Foram encerradas urgências ao nível dos
CSP e aumentada a resposta nos CH, criando zonas de
triagem e triagem avançada, de modo a filtrar os casos
suspeitos à entrada.
A 12 de março, foi declarado o Estado de Alerta na RAM,
um dia antes da declaração de pandemia pela OMS e,
seguidamente, foram introduzidos na RAM o controlo
de temperatura e inquérito epidemiológico nas portas
de entradas. Posteriormente, ainda em março de 2020,
foram encerrados portos e marinas e condicionado o trânsito
nos aeroportos, com redução dos voos semanais.
Protegeram-se os grupos vulneráveis e os profissionais,
encerrando escolas, restringindo visitas e saídas dos lares
e ainda impedindo a mobilidade dos profissionais de saúde
entre o sistema público, convencionado, privado e social.
Na fase inicial, a resposta foi articulada com as forças militares,
contando com a colaboração do Comando Operacional
e da Zona Militar da Madeira, para o transporte
de material e para a criação de tendas de triagem no Hospital
Dr. Nélio Mendonça.
Foi criada uma Unidade de Emergências em Saúde Pública,
coordenada pelo único médico de Saúde Pública
da RAM, contando com a colaboração de mais 40 profissionais
da área da Medicina Geral e Familiar, Enfermeiros
e Internos de Formação Geral e Específica, que colaboram
no tracing e tracking e na gestão dos casos suspeitos
e confirmados.
Privilegiou-se o digital para a comunicação no SRS - a telessaúde,
teleconsulta, teleentrevista, telemedicina, webinars,
linhas telefónicas de apoio para o cidadão em geral,
para o idoso, para a criança, para a grávida, na área da
oncologia, da psicologia, da nutrição, e apoio à gestão
da medicação. Procurou-se chegar a todos, de forma
diferenciada, mantendo a ligação com os serviços de
saúde. Fomos ao encontro dos utentes, usando as novas
tecnologias.
Criámos plataformas regionais de registo e gestão de dados,
como a aplicação MadeiraSafe desenvolvida para vigilância
epidemiológica e monitorização de viajantes e }
10 11
GH pandemia na madeira
Gráfico 1: Taxa de incidência de Covid-19 por /100000hab, por Semana (S10-S47), em Portugal e na RAM.
Gráfico 2: Distribuição do número de testes de PCR de Covid-19 efetuados na RAM por Semana (S9-S47).
ainda a S-Alerta, dedicada à gestão dos casos positivos
pelas autoridades de saúde.
Introduzimos o uso de máscaras na comunidade em abril
de 2020. Fomos pioneiros no país, seguindo o exemplo
dos países Asiáticos e de alguns países Europeus que, mais
recentemente, a recomendaram nos espaços fechados,
a fim de conferir maior proteção à população, a par do
distanciamento social, da etiqueta respiratória e da higienização
das mãos. Julgamos ter sido esta uma medida relevante
para a contenção da propagação do vírus, nesta
fase inicial.
Com estas medidas, chegámos a 1 de julho com 92 casos
confirmados e apenas dois ativos, razão pela qual entendemos
proceder gradualmente ao desconfinamento,
como forma de proteger a população e recomeçar as
atividades essenciais na recuperação da economia, muito
afetada pelo confinamento.
Desconfinámos, porque tínhamos condições para cumprir
com as recomendações da OMS: um SRS robusto,
com capacidade de testagem e tratamento e ainda poucos
casos de doença.
Como nos preparámos para a segunda onda?
Com a mesma determinação e dedicação com que enfrentamos
a primeira onda, com antecipação, proatividade
e com uma articulação multissectorial efetiva.
Abrimos as fronteiras gradualmente. Reivindicámos que
os viajantes fizessem teste na origem, no entanto, tal
não foi considerado pelas entidades reguladoras. Em alternativa,
criámos um centro de rastreio nos aeroportos
do Funchal e de Porto Santo, garantindo toda a logística
para avaliação dos viajantes e recolha de amostras para
teste de PCR, à chegada. Em complemento, contratualizámos
laboratórios em Portugal continental (cerca de
33), para testagem dos viajantes nestas origens. Trata-se
de um investimento estimado em 20 milhões de euros
(até ao final de dezembro).
Retomaram-se as atividades comerciais, de forma faseada,
entre abril e maio, com a exigência de planos de
contingência. Retomámos também a atividade da saúde,
com a imposição de testes antecedendo todos os
procedimentos invasivos (cirúrgicos, imagiológicos, obstétricos,
oncológicos, nefrológicos) e internamentos em
unidades de saúde, casas de saúde mental e área social.
Estabeleceu-se uma nova estratégia de testagem, dada a
capacidade instalada para a realização de testes de PCR
(Gráfico 2).
Após a primeira fase, em que se testavam os casos suspeitos
apenas e, posteriormente, os contactos de alto
risco, criámos vários “momentos zero”, para caraterizar
as áreas da saúde, educação, proteção civil, centros de
acolhimento, estruturas residenciais para pessoas idosas,
equipas de apoio domiciliar e reclusos.
À data, os resultados dos testes foram todos negativos.
Preparou-se a resposta à Covid-19 e à gripe, através da
definição do Plano para o Outono-Inverno, com a antecipação
da vacinação contra a gripe, alargamento da mesma
a novos grupos prioritários e reforço da capacidade das
unidades de saúde em internamento e cuidados intensivos.
Reorganizámos novamente o SRS, ao nível dos CSP e
CH, com a criação de circuitos para doentes respiratórios
e não respiratórios, Covid e Não-Covid, e outros.
Implementámos medidas mais restritivas ao nível da comunidade,
com a obrigatoriedade do uso de máscara
em todos os espaços públicos e, ao nível das escolas,
abrangendo as crianças a partir dos 6 anos.
A testagem foi também reforçada e, nas áreas da saúde,
social, proteção civil e educação, introduziram-se testes
à chegada e repetição entre o 5º e o 7º dia, após a realização
de viagens para fora da RAM.
Em articulação com os hoteleiros, garantiu-se o alojamento
para os casos positivos, quando não-residentes
ou residentes, que não têm condições para o adequado
isolamento no domicílio familiar.
Continuámos a formação e a preparação dos nossos
profissionais para a resposta a pandemia, na perspetiva
dinâmica que a mesma impõe.
Adotámos as novas recomendações da DGS para o diagnóstico
e para a testagem, com a adoção dos testes rápidos
de antigénio, em especial na investigação de surtos.
E, entretanto, a pandemia continua, com mais casos, mais
internamentos, mais doentes nos cuidados intensivos e,
infelizmente, mais óbitos.
Temos de continuar a priorizar as medidas preventivas
e temos de as cumprir escrupulosamente, sob pena
de sermos responsáveis pela perpetuação da pandemia,
com maior morbilidade e mortalidade. Temos de
ser agentes de saúde pública, de continuar a nos proteger,
para podermos proteger os outros, principalmente
os mais vulneráveis.
Que aprendemos?
Ao fim de 10 meses, muito! E continuamos a aprender,
pois este vírus é pouco previsível, na sua contagiosidade,
como no seu impacto a médio e longo prazo.
Muitas exigências e possibilidades são evidentes:
• É preciso liderança efetiva;
• É possível reorganizar a resposta do sistema de saúde;
• É necessário proteger os profissionais e os mais vulneráveis;
• É necessário ter equipamentos de proteção individual
que permitam a segurança nos cuidados;
• É necessário dar formação a todos e estabelecer planos
de contingência;
• É possível dinamizar a atividade assistencial, com precaução
acrescida e proteção dos profissionais e utentes;
• É necessário comunicar com recurso a novas tecnologias
de informação e comunicação;
• É necessário ter linhas de comunicação direta para os
utentes;
• É necessário reforçar a capacidade de resposta dos sistemas
de saúde, em internamento e cuidados intensivos;
• É necessário ter capacidade de testagem, de tracing,
tracking e isolamento seguro dos doentes e contactos;
• É necessário preparar atempadamente a resposta para
as situações exceção, em articulação com os privados,
sempre que necessário;
• É necessário investir na saúde e na área social (na Madeira,
esse investimento foi na ordem dos 117 MME -
85 ME em 2020 e 33 MME em 2021).
Termino com a mensagem final de que o sucesso da resposta
à pandemia, antes da descoberta e da possibilidade
de utilização de uma vacina, depende dos cidadãos e
do seu comportamento em sociedade. Comportamentos
socias inadequados, não oferecem mais segurança,
mas sim favorecem a disseminação do vírus. Ã
12 13
GH voz do cidadão
DOENTE ONCOLÓGICO
E COVID 19
Vitor Rodrigues
Liga Portuguesa Contra o Cancro (Presidente), Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra (Professor Associado)
Foi há (“já” ou “apenas”) meio ano que a
pandemia por Covid-19 se instalou no nosso
país. Meses de surpresa, aflição, mas
com progressiva habituação a uma situação
completamente nova.
As primeiras informações indicavam que os doentes com
maior probabilidade de desenvolver Covid-19 mais grave
seriam as pessoas com hipertensão, patologia pulmonar,
obesidade, diabetes, cancro - na realidade, estes grupos
de doentes revelaram-se como mais suscetíveis ao agravamento
da situação após infeção por SARS-CoV-2, seja
na doença isolada, seja como comorbilidade. Mas sempre
com a idade como fator prognóstico independente muito
importante.
Mas o “doente oncológico” corresponde a um grupo
muito heterogéneo, com localizações anatómicas muito
diferentes, características anatomopatológicas independentes,
estádios da doença muito dispares, sob esquemas
terapêuticos muito diversificados, em situação clínica
de atividade, progressão, remissão ou “livres de doença”,
também eles frequentemente com variadas comorbilidades
decorrentes de outras patologias pré-existentes ou
concomitantes ou decorrentes da sua doença oncológica
particular ou do indispensável tratamento específico.
A “clássica” classificação das fases de pandemia em, sumariamente,
fases de emergência, retoma, recuperação e
normalização pode servir para enquadrar os diferentes aspetos
em análise
A fase de “emergência” implicou, imediatamente, um
enorme rebate assistencial a nível dos cuidados hospitalares,
mas que foi rapidamente seguida de apreciável reorganização
e, até, normalização. Basearam-se na Norma
9/2020 emanada pela Direção Geral de Saúde 1 , a qual
introduziu esclarecimentos sobre medidas de prevenção
e controlo, organização de prestação de cuidados, rastreio
de SARS-CoV-2 em doentes oncológicos e gestão
de doentes oncológicos com Covid-19. Resumidamente,
preconizou a separação entre unidades de saúde que tratariam
estes e aqueles, a diminuição da presença física dos
doentes oncológicos (e acompanhantes) nas instituições
de saúde, a criação de circuitos físicos separados, o “rastreio”
prévio aos procedimentos terapêuticos, e o adiar
da conduta terapêutica se houvesse existência de infeção
individual. Em suma, Separar, Adiar e Tratar (se inevitável).
Estes procedimentos tiveram, como objetivo último, proteger
os doentes em tratamento - com doença ativa, naturalmente
com maior risco de gravidade global e específica
pela sua condição de doença. Esta rápida reorganização
do serviço assistencial em oncologia foi auxiliada pela
boa qualidade científica, técnica e organizativa que este
setor da saúde tem a nível português e europeu.
Desenvolveram-se, com alguma rapidez, mecanismos de
minimização de risco, com procedimentos como o maior
acompanhamento dos doentes na sua comunidade (acompanhamento
por telefone, utilização de telemedicina,
envio de medicamentos de dispensa hospitalar para o
domicílio ou para a farmácia comunitária de proximidade,
reforço do apoio emocional, colaboração dos cuidados
de saúde primários, reforço dos apoios sociais), esforço
complementado através de uma importante contribuição
de diversas instituições sociais, autarquias e entidades
representativas do setor do medicamento, entre tantas
outras, a nível local e regional.
O rebate também se verificou a nível dos cuidados de
saúde primários, embora com maior prejuízo da sua atividade
diária, extensível aos cuidados integrados e domiciliários,
fruto do seu natural locus de atividade.
Já as Juntas Médicas para atribuição e verificação da incapacidade
foram totalmente suspensas.
Ainda no 2º trimestre de 2020, iniciaram-se as fases de
“retoma” e de “recuperação”, naturalmente em diferentes
velocidades por cada um dos sectores da oferta de
cuidados, sobretudo nas instituições hospitalares do Serviço
Nacional de Saúde. Estes foram retomando progressivamente
a maioria da atividade terapêutica e da realização
dos exames complementares de diagnóstico, sempre
com foco particular na segurança do doente e dos profissionais
de saúde, através da institucionalização de circuitos
físicos e “rastreio molecular” dos doentes, retoma significativa
do rastreio populacional do cancro da mama em
Junho 2 , manutenção, quando necessário e/ou adequado,
da dispensa de proximidade dos medicamentos.
Por fim, a fase de “normalização” continua um pouco distante.
A pandemia continua entre nós - sem grande possibilidade
de perspetivar o seu fim, os recursos humanos e
tecnológicos são manifestamente insuficientes (tal como
já o eram antes) e o rebate assistencial tem sido enorme.
Para enquadrar melhor a situação do doente e do manuseamento
da doença oncológica deveremos ter sempre
em mente que os melhores resultados na abordagem
desta patologia decorrem da associação entre diagnóstico
precoce e tratamento atempado e de qualidade. É
a sua “colaboração” que tem permitido uma melhoria
contínua e sustentada dos vários indicadores de saúde,
sociais, emocionais.
O impacto da pandemia foi, tem sido e será muito significativo,
exigindo medidas direcionadas para o sub-grupo
em que cada um está inserido, de modo a minimizar os
seus efeitos.
Verificou-se que o “doente oncológico” é uma entidade
extremamente diversificada, pois depende de múltiplas
determinantes (como já referido), requerendo análise individualizada
quanto aos seus fatores de risco, à sua suscetibilidade,
à necessidade adicional de proteção clínica,
emocional e social.
A análise dos fatores preditores de maior gravidade e de
letalidade e mortalidade do doente oncológico tem evidenciado
que (além da idade) os tumores líquidos têm,
em geral, pior prognóstico que os tumores sólidos. Que
fatores como a idade, consumo de tabaco, número e tipo
de comorbilidades, estado geral, cancro ativo e marcadores
imunológicos e inflamatórios específicos desta
patologia parecem conduzir também a um agravamento
do estado de saúde do doente oncológico infetado por
SARS-CoV-2, bem como a uma maior letalidade. Não é
completamente claro se serão fatores independentes ou
não. A necessidade de continuar os estudos é premente,
para compreender melhor a causalidade e prever o impacto
futuro.
O rastreio populacional de cancro da mama está quase
normalizado, pois assenta em procedimentos operacionais
e técnicos pouco dependentes dos cuidados de
saúde primários (embora intrinsecamente coordenados
com eles). A utilização de unidade fixas ou móveis de
rastreio e de aferição dedicadas permitem uma operacionalização
mais fácil e ágil. Os circuitos de referenciação
hospitalar são bem conhecidos e funcionaram sempre
com bastante eficiência.
O rastreio populacional de cancro do colo do útero tem
tido grande dificuldade de retoma. Como é baseado operacionalmente
nos centros de saúde, e estando estes sujeitos
a enorme sobrecarga decorrente da pandemia, é na- }
14 15
GH voz do cidadão
“
A VELOCIDADE DE RECUPERAÇÃO
NA ÁREA DA SAÚDE VAI SER
DETERMINANTE PARA ALIGEIRAR
OU AUMENTAR O EXPETÁVEL
AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO,
QUANTIFICÁVEL ATRAVÉS DE
INDICADORES PADRONIZADOS.
”
tural que não sejam, estes cuidados, a prioridade maior.
O rastreio populacional de cancro colorretal, em situação
operacional semelhante ao do rastreio cancro do colo do
útero, tem um estrangulamento adicional, pois uma pesquisa
de sangue oculto nas fezes positivo obriga a uma colonoscopia
(com sedação), procedimento que obriga, adicionalmente,
a critérios de segurança adicionais.
Embora tenha existido retoma e recuperação significativas
no global, continua a verificar-se uma significativa diminuição
da referência hospital diferenciada, nomeadamente
pelo brutal rebate havido na realização de exames
complementares de diagnóstico e a realização de consultas
programadas nos cuidados de saúde privados e nos
sectores privado, convencionado e social. 3
Os cuidados integrados, nomeadamente os domiciliários,
foram também atingidos em algum grau. A necessidade
de distanciamento físico, a diminuição em recursos humanos
em equipas já diminutas, o foco primordial em outras
atividades, são elementos preocupantes.
Outro aspeto também muito importante tem sido o
grande receio da população em recorrer aos cuidados de
saúde, seja pela falta de confiança na segurança nos seus
espaços físicos, seja pela insuficiência da sua oferta, seja
pela tendência em adiar a realização de consultas, de exames
e, mesmo, de tratamentos. São fatores determinantes
para, sobretudo a médio e longo prazo, uma diminuição
da sobrevivência, agravamento da qualidade de vida
e aumento da mortalidade. A velocidade de recuperação
na área da saúde vai ser determinante para aligeirar ou
aumentar o expetável agravamento da situação, quantificável
através de indicadores padronizados e de qualidade.
Sendo o diagnóstico de cancro um elemento altamente
perturbador na vida da pessoa atingida, a sociedade investiu,
há cerca de uma década, num conjunto de “direitos
oncológicos” (comuns a outras patologias que conduzem
a incapacidades significativas), para minorar os efeitos
não-clínicos desta patologia, sob o ponto de vista social,
económico, financeiro, laboral. Esses “benefícios” podem
ser acedidos por doentes apenas e após a emissão de
um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, por uma
Junta Médica. No entanto, o início da pandemia provocou
uma paragem total nesses serviços, com uma retoma -
quase simbólica - no mês de junho. A sua recuperação
tem sido muito difícil, e, como o diagnóstico da doença
continua a ser feito, o número de doentes que desespera
à espera da recuperação das atividades das Juntas Médicas
aumenta em vários milhares todos os meses, situação
inaceitável num sistema de saúde robusto e insustentável
para os doentes.
Assim, é necessário:
1. Reforçar a confiança da população no seu sistema de
saúde, nomeadamente na estrutura e segurança do Serviço
Nacional de Saúde (e do Sistema Nacional de Saúde);
2. Reiniciar os rastreios de bases populacional, mantendo
os seus critérios de qualidade, e, através de um planeamento
realista e sustentável, aumentar progressivamente
a sua cobertura geográfica e populacional, tendo sempre
em atenção a capacidade de drenagem dos casos duvidosos
e positivos;
3. Retomar, recuperar e normalizar a realização de exames
complementares de diagnóstico e da atividade assistencial
a todos os níveis;
4. Investir no Serviço Nacional de Saúde, seja em recursos
humanos seja em recursos tecnológicos, com planeamento
estratégico e organização, aumentando a eficiência e
diminuindo o desperdício;
5. Aumentar a colaboração com os setores privado e social
para apressar a recuperação da atividade adiada e atrasada;
6. Ter uma especial atenção às situações de stress laboral,
económico e financeiro dos vários setores da população
que foram atingidos pela pandemia;
7. Retomar, recuperar e normalizar a realização de Juntas
Médicas, com recurso a procedimentos provisórios que
permitam a emissão atempada de Atestados de Incapacidade
Multiusos;
8. Continuar os estudos científicos, com dados padronizados,
de qualidade e acessíveis a todos os investigadores.
A sociedade tem de se capacitar que o investimento em
saúde tem um retorno enorme, seja a nível individual seja
a nível coletivo. Ã
1. Norma 9/2020 DGS.
2. No caso particular do rastreio de cancro da mama na região norte, aquele continuará
suspenso até que seja assinada a renovação do protocolo entre a Administração
Regional de Saúde do Norte e o Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa
Contra o Cancro.
3. Estudos Moia e GSK.
16
GH opinião
A ÉTICA EM TEMPO
DE PANDEMIA
Paula Martinho da Silva
Investigadora e especialista Bioética, IBC UNESCO - Portugal
Passado quase um ano sobre o começo da
pandemia, é já um lugar comum dizer-se
que “vivemos tempos estranhos”.
António Muñoz Molina, num artigo publicado
no jornal “El País” 1 ainda não tinha
passado um mês do primeiro confinamento, já constatava
que “A perspetiva do tempo é tão limitada quanto
a do espaço. (...) Nas páginas da agenda, as datas dos
compromissos que não cumprimos foram deixadas
para trás, e um novo espaço em branco agora cobre
aqueles que foram programados para as próximas semanas
ou meses”.
Vivemos um tempo de tal forma estranho que aquele
novo espaço em branco é diariamente preenchido ora
com tédio, ora com tarefas rotineiras, ora com medo, ora
com esperança. As poucas coisas que trazem mudança
positiva vêm da Ciência e da Medicina. Um passo adiante
todos os dias, faz com que alguns factos sobre os quais
refletimos na conferência, em outubro e que está na origem
deste texto já foram, passados dois meses, ultrapassados
por novos factos e, consequentemente, dando origem
a novas reflexões.
Vivemos tempos complexos e únicos, mas em que somos
convocados para questões antigas, sem data. Nesta
ambivalência, há que ponderar sobre aquilo que nos falta
discutir, tendo presente que as decisões que tomarmos
hoje afetarão toda a sociedade e a forma como refletirmos
sobre elas determinará, em muitos casos, o modelo
de sociedade que queremos seguir.
As complexas relações entre a ética, a ciência, a política,
o legislador: O lugar de cada um nesta discussão
Nunca se ouviu tanto falar em confiar na Ciência. “Trust
in Science” tornou-se, no debate eleitoral americano dos
últimos meses, uma arma política.
Estamos conscientes que a Ciência conta, a Medicina con-
ta, mas até que ponto estamos conscientes de que a Ética
também tem de contar?
Os termos "Bioética e Política", "Biopolítica" são utilizados
em diferentes ocasiões ao abordar diferentes fases
de compreensão da gestão e regulação de assuntos relativos
ao progresso e desenvolvimento da biomedicina
e das biotecnologias. A relação entre bioética e política
surgiu principalmente da crescente discussão da bioética
no fórum público. Passo a passo, o âmbito original da
bioética, a reflexão sobre as questões éticas suscitadas
pelas novas tecnologias na saúde, ciência e biomedicina
em geral levou à sua crescente politização.
Nos EUA nove farmacêuticas que desenvolvem vacinas
contra o Covid-19 assinaram um acordo com vista a garantir
que a investigação e a produção do fármaco seguirá
os elevados standards éticos e os princípios científicos face
à pressão política.
“Cremos que este compromisso ajudará a garantir a confiança
do público no rigoroso processo científico e normativo
mediante o qual se avaliam as vacinas Covid-19 e,
em última instância, se possam aprovar.”
Umas duas semanas antes, leio no The New York Times
que o The New England Journal of Medicine pediu, no seu
editorial a substituição de uma liderança política “perigosamente
incompetente.” 2 Durante os seus 208 anos
de história esta prestigiada publicação médica sempre se
manteve totalmente apartidária, nunca tendo apoiado ou
condenado nenhum candidato político.
Edmund Pellegrino enquadrou devidamente esta questão:
“quando a ética entra na praça pública pode coexistir
com a política, ou Maquiavel tem razão quando diz que a
política não tem lugar para a ética? Podem interagir sem
que um capitule para o outro?” 3
No momento de tomar decisões políticas e legislativas há
necessariamente que ponderar. Ponderar sobre qual é o
conjunto de mínimos partilhados na sociedade e refletir
sobre os interesses em jogo, sobre os valores em causa,
sobre o que é mais adequado ao momento em que a decisão
é tomada.
Este tipo de decisões já não pode considerar-se monopólio
de ninguém. Hão-de ser os cidadãos, com a sua
participação e deliberação, quem terá de as tomar.
Cada vez mais a ética, a ciência e a política procuram coexistir.
E, desde logo, no nosso país as instâncias éticas estiveram
ativas.
Destaco a posição do Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida (CNECV) no seu parecer “Situação
de emergência de saúde pública pela pandemia Covid-
-19 - aspetos éticos relevantes.” 4 Nele, é dito que “A necessidade
de tomar decisões, numa escalada necessariamente
modelada pelo próprio desenvolvimento da situação
pandémica, confronta-se com princípios, valores e direitos
das pessoas e da sociedade em geral. Algumas das
medidas prescritas poderão mesmo colidir com princípios
bioéticos tidos como adquiridos, como é o caso do
respeito pela autonomia e, através dela, a tutela da liberdade
individual.
Nessas decisões confrontam-se, de modo inelutável, a segurança
pública com a liberdade individual, a autonomia
pessoal com o bem comum e o interesse público e convocam-se
valores de cooperação e solidariedade, de integridade
e de respeito pela vulnerabilidade, em diferentes
níveis e com distintas expressões.
A fundamentação ética das decisões e das medidas que
as executam deve atender a princípios que balizem apropriadamente
a sua aplicação e assegurem a sua sustentação
social.”
Face a este contexto e circunstâncias, o CNECV emitiu
considerações em torno dos seguintes valores éticos fundamentais
na tomada de decisões:
• Atenção à vida e à dignidade humana;
• Ponderação ética permanente e continuada das medidas
instituídas;
• Informação atualizada, rigorosa, clara, completa e transparente;
• Reforço da solidariedade;
• Utilização de recursos de saúde; }
18 19
GH opinião
• Proteção dos profissionais da saúde;
• Reforço da participação da ciência;
• Afirmação de valores de justiça social e de equidade.
Temas antigos, hoje revisitados:
O consentimento informado na população envelhecida
A epidemia veio destapar uma realidade que todos nós
conhecíamos, com que muitos lidam diariamente, mas
que até aqui era secundarizada e, de certa forma, escondida:
o facto de existir uma população numerosa envelhecida
a viver em condições complexas, com autonomia
diminuída (tanto a nível da capacidade como económica),
sem voz.
Em França, em julho passado foi votado no Senado o
que designaram por “o quinto ramo” da Segurança Social,
tendo em vista a autonomia das pessoas idosas e incapacitadas
e que contempla, por exemplo, um novo leque de
créditos consagrados ao alojamento das pessoas idosas
para que seja possível viverem mais tempo em sua casa. 5
Sobre este tema poderíamos falar em diversas perspetivas,
desde a abordada por Adela Cortina, 6 ao constatar
que a pandemia veio trazer ao de cima a “gerontofobia”,
palavra (ainda) inexistente, mas que pretende designar o
temor, aversão ou desprezo face aos idosos, quando observa
o alívio de muitos “de que uma grande parte dos
falecidos por causa do vírus tenham sido anciãos.”
Mas a questão, para mim, que permanece para além da
pandemia é a da autonomia da vontade dos mais velhos,
tão multifacetada, tão deliberadamente dependente, tão
negligenciada quando falamos das decisões em saúde.
Tomar decisões sobre recursos escassos
Em muitos casos as decisões sobre o estabelecimento de
prioridades acarretam decisões trágicas sobre as quais a
sociedade deveria definir os seus limites morais, pelo que
estas decisões deveriam corresponder a deliberações democraticamente
informadas, nas quais participassem todos
os atores envolvidos. Neste sentido, a bioética emerge
como capaz de promover o diálogo entre o mundo da
medicina e a comunidade. O princípio de que “os iguais
devem ser tratados por igual” pode já não ser possível
ser aplicado, somos obrigados a desenhar uma estratégia
protocolizada de atuação que permita a distribuição o
mais equitativa possível dos recursos. 7
Parece-nos claro que, para determinar o racionamento
de um recurso a um paciente sobre outro, não podemos
adotar um único valor fundamental, requerendo-se o que
alguns denominam por “marco ético multivalor” dependendo
do recurso e do contexto da atuação médica.
A este propósito, o da necessidade de fundamentar as
decisões políticas tendo por base valores éticos fundamentais,
muitas questões necessitam de uma reflexão ética
profunda: Quem serão, em cada país os destinatários
da 1ª fase de uma vacina? Os mais expostos ao vírus, os
mais idosos ou os com doenças de riscos? E se todos estes,
em que percentagem? Deve-se priorizar na faixa onde
se pode reduzir mais mortes prematuras ou sequelas
graves da doença? Ou ter também em conta o impacto
social e económico ou dar prioridade aos mais desfavorecidos?
Os Governos querem proteger os seus cidadãos,
mas não haverá uma obrigação maior com o resto da
população do planeta? 8 Qual o critério da idade para admissão
nos cuidados intensivos? O critério da terceira idade
que começa aos 65 anos? Ou a idade biológica, cronológica
ou a social? Ou o critério deverá ser o de considerar
caso a caso, tendo em conta a situação clínica e as
expetativas objetivas de cada paciente? Quem e como se
decidem estes critérios? São iguais para todos os hospitais?
Como é que os cidadãos os enfrentam?
Temas novos:
A investigação clínica na era Covid
O tema da investigação em novos medicamentos e vacinas
para combate à pandemia deverá ser também analisada
tendo em vista a sua aplicação em futuras pandemias.
Destaco alguns aspetos como os da prioridade no
combate ao Covid (a publicação de medidas excecionais
que vigorarão durante o período de risco para a saúde
pública a adotar pelos promotores, centros de ensaio clínico
e equipas de investigação; a prioridade na avaliação,
por parte do INFARMED dos ensaios clínicos destinados
a tratar ou prevenir a doença). A urgência existe, mas
nunca se poderá confundir velocidade com precipitação
sob pena de se comprometer a resposta adequada à pandemia.
Não percamos também a ocasião para comunicar
com o cidadão (nunca o cidadão falou tanto em ensaios
clínicos, todos conhecem o que é a fase III e o que é uma
reação adversa, mas poucos saberão que há sempre uma
comissão de ética por trás, e que os participantes têm
de ser escrupulosamente protegidos) sobre investigação
científica e, sobretudo, sobre os critérios para a distribuição
das vacinas. 9
Para hoje e para o futuro: consciencializar os cidadãos
para as decisões em saúde
Nunca falámos tanto em Ciência.
Mas… passada a pandemia, vamos continuar a debater
os nossos problemas?
Ou, como Houellebecq “não despertaremos depois do
confinamento num novo mundo: será mesmo ligeiramente
pior?” 10
Afirmamos querer proteger os nossos idosos, mas... modificaremos
algumas atitudes assim que passe a crise?
Queremos proteger a investigação, mas… continuaremos
a confiar na Ciência?
Queremos glorificar os profissionais de saúde, mas…
continuaremos a pensar neles no nosso dia a dia?
Vamos continuar a pensar na questão dos recursos escassos
ou vamos descansar até surgir a próxima crise?
Num artigo que começa por dizer que “as democracias
funcionam melhor onde se reforçam os códigos de conduta
que a comunidade assume”, Adela Cortina deixa-nos
duas mensagens que tudo resumem a minha reflexão:
“O medo sempre manteve a vinha de alguma forma, principalmente
nas sociedades de massa, formadas por um
conjunto de indivíduos atomizados, aos quais se unem
interesses específicos, neste caso o interesse pela sobrevivência.
É por isso que hoje se repete o slogan: “Todos
nós navegamos no mesmo barco, devemos estar unidos.”
E com certeza é assim. Mas o elo fugaz do interesse temporal
é muito fraco para enfrentar com a altura humana o
desafio social e económico, que já está sendo incubado, e
exigirá muito mais capital ético para enfrentá-lo do que a
convicção de que não é egoisticamente conveniente para
nós afundar o navio. A agregação de indivíduos atomizados
não é suficiente, é necessário um “nós.” 11
“Necessitamos de uma declaração geral de dependência
universal, um escudo universal para a humanidade”, como
utopicamente refere Peter Sloterdijk? 12 Ou, como outros
sugerem, necessitamos de preparar a “catástrofe esclarecida”
sobre o futuro da humanidade (alterações climáticas,
catástrofes naturais e tecnológicas, nuclear, pandemias)?
O que sucederá no futuro dependerá, em boa medida da
forma como exerçamos a nossa liberdade, se desde um
“nós” inclusivo ou desde uma agregação de átomos. Ã
1. António Muñoz Molina, Presente de indicativo, El País, 3 de abril de 2020.
2. The New York Times, 7 de outubro de 2020.
3. Pellegrino, Edmund., “Bioethics and Politics: “Doing Ethics” in the public square”,
Journal of Medicine and Philosophy, 2006, 31:569-584, p. 570.
4. Consultável em https://www.cnecv.pt/pt/comunicacoes/tomada-de-posicao
5. Béatrice Jérôme, “Sécu”: la cinquième branche, “coquille vide”?, Le Monde, 3 de
julho de 2020.
6. Adela Cortina, Desenmascarar la gerontofobia, El País, 22 de julho de 2020.
7. Neste sentido, Carles Martin-Fumadó, Esperanz l. Gómez-Durán, Màrius Morlans-Molina,
“Consideraciones éticas y médico-legales sobre la limitación de recursos
y decisiones clínicas en la pandemia de la Covid-19”, Revista Española de Medicina
Legal, 2020; 46(3):119-126.
8. Veja-se, a este propósito a entrevista a Ezekiel Emanuel, Universidade da Pensilvânia,
no artigo “A quién vacunamos primero?”, El País, 5 de setembro de 2020.
9. A este propósito, muito relevante a entrevista a Jorge Soares, A prioridade é
uma precedência, mas todos terão direito a ser vacinados, Público de 27.11.2020.
10. Jean-Pierre Dupuy, “Si nous sommes la seule cause des maux qui nous frappent,
notre responsabilité devient démesurée”, Le Monde, 4 de julho de 2020.
11. Adela Cortina, Los desafios del coronavírus, El País, 15 de maio de 2020.
12. Peter Sloterdijk, El regresso a la frivolidade no va a ser fácil, El País, 2 de maio
de 2020.
20 21
GH estudo apah
APRENDER COM A COVID 19:
A VISÃO DOS GESTORES
DE SAÚDE EM PORTUGAL
Itziar Fernández Francesc Roca Jesús María Fernández
HIRIS Care
A
pandemia da Covid-19 espalhou-se pelo
mundo e atingiu a maioria dos países
de forma intensa e persistente. Os
nossos sistemas de saúde foram postos
à prova como nunca, expondo vulnerabilidades
e falhas, mas também evidenciando a capacidade
resolutiva e criativa dos profissionais de saúde e gestores.
Assim, nos últimos meses, eles multiplicaram esforços
e foram capazes de resolver uma situação crítica em
tempo recorde com os recursos disponíveis. No entanto,
não podemos permitir que esta situação se repita e pôr
todo o peso, mais uma vez, no heroísmo dos profissionais
de saúde. É o momento de identificar os pontos fracos,
aprender com os acertos e, nomeadamente, com os erros
e, ao fazê-lo, reconstruir um sistema que, apesar de
apresentar uma grande margem de melhoria, demonstrou
grande capacidade de resposta.
A Hiris Care, juntamente com a APAH e a Teva Pharma,
iniciou este processo de aprendizagem com o estudo
"Aprender com a Covid-19: A visão dos gestores
de saúde em Portugal", com base em 34 entrevistas em
profundidade aos administradores de saúde de todo o
país com o objetivo de avaliar a resposta do sistema de
saúde português durante a pandemia. A fase de campo
foi conduzida ao longo de setembro de 2020, pelo que
reflecte a experiência da primeira vaga, numa altura em
que ainda não se previa a segunda com tanta intensidade.
Agora, graças ao estudo, pôde identificar-se e avaliar as
alterações realizadas no sistema de saúde, tanto na estru-
tura como nos processos, e, por conseguinte, tirar lições
valiosas para o futuro.
Poderíamos destacar que uma das chaves do êxito em
Portugal, muito positivamente avaliada durante o inquérito,
foi o plano de contingência comum e o trabalho em
equipa que começou já em fevereiro e foi promovido
por todos os agentes envolvidos na resposta à Covid-19
a nível nacional. Como parte desse plano global, realizaram-se
rápidas adaptações nos centros hospitalares, tais
como a adequação de infraestruturas, a medicalização de
áreas dedicadas a outros usos, a readaptação de espaços
e circuitos de trabalho, bem como o fluxo de pessoas e
materiais, com o objetivo de atender o excesso de pacientes
Covid-19 e garantir a proteção dos pacientes e
dos profissionais de risco.
Ademais, dentro desse plano de contingência comum,
os inquiridos destacaram também o trabalho dos laboratórios,
que permitiram ampliar e acelerar o trabalho de
diagnóstico e rastreio, facilitando o controlo quase em
tempo real do número de casos e infeções. O estudo
mostra a satisfação e o agradecimento dos gestores de
saúde pela atitude e o trabalho dos fornecedores e da
indústria farmacêutica. Eles sublinham a sua prestimosa
colaboração desde o início, garantindo a continuidade
do abastecimento de medicamentos e equipamentos
essenciais, sob a coordenação da INFARMED, disponibilizando
os seus próprios serviços logísticos de distribuição
e aplicações digitais ao sistema de saúde para facilitar a entrega
ao domicílio de medicamentos, resolvendo, assim,
os problemas de rutura da cadeia de abastecimento que
ocorreram no início da pandemia a nível mundial.
No que diz respeito ao trabalho de cuidados e proteção
de pacientes e profissionais de saúde dentro dos hospitais,
os inquiridos destacaram a criação e montagem de
dois circuitos de cuidados, que permitiu minimizar as infeções
dentro dos centros hospitalares. Para fazer face
a essa nova organização, houve uma rápida e ordenada
redistribuição das equipas de profissionais de saúde nos
hospitais, o que revela uma demonstração de flexibilidade
e adaptabilidade de todos os profissionais. Além disso,
o Ministério da Saúde permitiu agilizar a contratação de
pessoal, o que facilitou a rápida integração de uma nova
equipa de profissionais de saúde, tanto licenciados como
estudantes de medicina e enfermagem, com contratos
renováveis de quatro meses. Cabe destacar o papel
muito importante dos profissionais de enfermagem, assumindo
por vezes funções avançadas de enfermagem. Do
mesmo modo, técnicos de cuidados assumiram funções
tradicionais de enfermagem, e muitos profissionais de especialidades
cirúrgicas foram destinados ao cuidado de
pacientes respiratórios menos graves.
Devido ao afluxo maciço de novos casos Covid, os centros
hospitalares tiveram também de remarcar consultas
para evitar o colapso. Contudo, para compensar esta falta
de atendimento in situ, o sistema de saúde português surpreendeu
com o seu avançado processo de digitalização
e a sua capacidade de oferecer cuidados via telemedicina,
se não perfeitos, pelo menos altamente profissionais e
eficazes, nomeadamente tendo em conta que os hospitais
tiveram de multiplicar a sua atividade durante os primeiros
meses da pandemia.
O sistema de saúde português deu prioridade ao cuidado
tanto físico como emocional dos pacientes e dos seus
familiares. Assim, em paralelo com a incorporação de profissionais
e mudanças nas infraestruturas e processos dentro
dos centros hospitalares, criaram-se unidades de apoio
psicológico e psiquiátrico para cuidar tanto dos pacientes
como dos seus familiares. Essas unidades também atenderam
os profissionais de saúde, que durante estes meses
assumiram cargas de trabalho excessivas. Prestou-se também
apoio aos lares sociais, ministrando formação em
medidas de higiene e proteção aos seus profissionais e
dotando-os de equipamentos de proteção e testes de
diagnóstico necessários. Em todo o território, nomeadamente
nas regiões autónomas, valoriza-se o papel de
apoio prestado pela Proteção Civil, pelo Corpo de Bombeiros
e pelas autoridades municipais em termos de informação
à população, serviços de transporte de pacientes
e de material, e apoio aos lares sociais ou pessoas que
vivem sós, entre outras intervenções.
Apesar da gravidade da situação gerada pela pandemia
da Covid-19, o estudo mostra que Portugal se destacou
“
CABE DESTACAR O PAPEL
MUITO IMPORTANTE DOS
PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM,
ASSUMINDO POR VEZES
FUNÇÕES AVANÇADAS
DE ENFERMAGEM. DO MESMO
MODO, TÉCNICOS DE CUIDADOS
ASSUMIRAM FUNÇÕES
TRADICIONAIS DE ENFERMAGEM.
”
pela sua rapidez, capacidade de decisão, aprendizagem
contínua e esforço coletivo. O trabalho em equipa, pôr
em segundo plano os objetivos individuais para prestar
atendimento como um sistema, a redistribuição de
funções entre especialidades, bem como a motivação e
vontade dos profissionais de saúde foram fundamentais
para enfrentar esta pandemia. Contudo, existem ainda
desafios significativos para o futuro, tais como o cuidado
de pacientes "esquecidos" durante a Covid, a recuperação
da capacidade financeira e de investimento do sistema de
saúde, a protocolização de cuidados via telemedicina e
presenciais no futuro, mais agilidade administrativa, a consolidação
de planos de preparação e de contingência para
combater novas vagas, o aumento da sensibilização de
certos grupos populacionais para a autoproteção, e a preparação
do sistema para uma campanha de vacinação em
massa e para o rastreio de casos e infeções. Por isso, é essencial
aprender com os erros e acertos e não baixar a
guarda no controlo da pandemia, que parece que ainda
não nos deixou. Só um sistema forte, eficaz e coordenado,
com suficiente reforço de orçamento e de profissionais,
será capaz de pôr fim a esta epidemia sanitária e
proteger-nos de um futuro que, sem dúvida, será cheio
de incertezas. Ã
O relatório completo do estudo está disponível em:
https://apah.pt/noticia/aprendendo-com-a-covid-19-a-visao-dosgestores-de-saude-em-portugal/
22 23
GH estudo apah
O IMPACTO DA COVID 19
NA ATIVIDADE HOSPITALAR
DO SNS
Manuel Delgado Hugo Lopes João Completo Francisco do Carmo
IASIST Portugal
Março-setembro 2019 Março-setembro 2020 Dif. (N) Dif. (%)
Consultas Médicas Hospitalares
Primeiras 2.007.466 1.537.173 -470.293 -23%
Subsequentes 4.980.035 4.450.469 -529.566 -11%
Total 6.987.501 5.987.642 -999.859 -14%
Tabela 1
∆ Março-setembro 2019-2020
Primeiras consultas Consultas subsequentes Total
Cluster A -40,8% -35,1% -37,4%
Cluster B -26,1% -14,2% -18,2%
Cluster C -27,1% -11,3% -16,2%
Cluster D -24,1% -11,3% -15,1%
Cluster E -19,4% -11,2% -13,4%
Cluster F -12,5% 3,1% -0,6%
Cluster P -26,4% 9,1% 5,7%
Tabela 2
A
pandemia da SARS-CoV-2 provocou
uma alteração sensível na atividade
dos nossos hospitais públicos. A mobilização
de recursos, materiais e humanos,
para potenciar a resposta aos
doentes Covid, fez com que a atividade normal disponibilizada
aos outros doentes fosse sensivelmente reduzida.
Para além desta concentração de esforços, registou-se
igualmente uma redução significativa na procura expressa,
neste momento ainda não quantificável na totalidade,
e cujas causas remetem para a atitude receosa de muitos
doentes que preferiram adiar ou mesmo cancelar as
marcações que tinham agendadas. O sinal desta atitude
manifestou-se objetivamente nos serviços de urgência,
que viram a afluência de doentes reduzir-se em cerca de
35% de Março a Setembro deste ano, comparativamente
a período homólogo anterior.
O nosso propósito, neste artigo, é analisar o impacto efetivo
da Covid-19 nas principais linhas de atividade hospitalar,
a saber: consultas externas, internamento, intervenções
cirúrgicas, urgências e transplante de órgãos. Complementarmente,
analisaremos também o impacto registado
na assiduidade dos profissionais de saúde.
Metodologia
Utilizamos para este estudo os dados disponibilizados pela
ACSS através do Portal da Transparência, comparando
a atividade hospitalar dos meses de março a setembro
dos anos de 2019 e 2020.
Apresentaremos dados globais da rede dos hospitais públicos,
nalguns casos por meses, e os valores acumulados
para os sete meses referidos. Distinguiremos os resultados
dos hospitais por Clusters, de acordo com a classificação
adotada pela ACSS, quanto à dimensão e complexidade.
Aqui, o objetivo será perceber se ocorreram diferenças de
comportamento significativas entre os hospitais, atribuíveis
a fatores geográficos ou alicerçadas em decisões institucionais.
No que diz respeito às dimensões de análise, foram
selecionadas as seguintes: Consultas Externas, Urgências,
Internamento, Intervenção Cirúrgicas, Transplantação de
Órgãos, Número de trabalhadores por Grupo Profissional
e Assiduidade.
Resultados
Consultas Externas
As consultas médicas reduziram-se em 14% na comparação
homóloga entre março e setembro dos anos de
2019 e 2020, o que se traduziu em menos um milhão de
consultas realizadas. O impacto nas primeiras consultas
(-23%) foi superior ao verificado nas consultas subsequentes
(-11%), o que permite concluir que foram mais prejudicados
doentes ainda sem confirmação diagnóstica e,
assim, sem terapêutica instituída (Tabela 1).
As quedas mais acentuadas nas consultas registaram-se nos
meses de abril (-35%) e maio (-31%), notando-se uma recuperação
generalizada a partir de junho, ainda que sempre
com registos inferiores aos meses homólogos de 2019.
Realce-se, pela positiva, o bom comportamento dos hospitais
do Cluster F (IPOs) e do Cluster P (psiquiátricos) no
que respeita às segundas consultas, em que se regista um
aumento que indicia que esses doentes mantiveram o
acompanhamento clínico necessário (Tabela 2).
Março-setembro 2019 Março-setembro 2020 Dif. (N) Dif. (%)
Atendimentos em urgência
Geral 2.731.321 1.908.770 -822.551 -30%
Pediátrica 687.503 294.846 -392.657 -57%
Obstétrica 248.709 183.211 -65.498 -26%
Psiquiátrica 3.885 3.116 -769 -20%
Total 3.671.418 2.389.943 -1.281.475 -35%
Triagem de Manchester
Vermelho 11.170 8.769 -2.401 -21%
Laranja 334.496 239.403 -95.093 -28%
Amarelo 1.569.626 1.006.173 -563.453 -36%
Verde 1.222.738 791.416 -431.322 -35%
Azul 52.740 54.462 1.722 3%
Branco 96.946 85.325 -11.621 -12%
S/ triagem 375.365 204.394 -170.971 -46%
Total 3.663.081 2.389.942 -1.273.139 -35%
Tabela 3
Urgências
O acesso aos serviços de urgência é, como se sabe, livre,
e depende, na grande maioria dos casos, da decisão do
próprio doente ou pessoa próxima. Excetuam-se deste
cenário os acidentes com mais gravidade e as situações
críticas mais agudas em que o envolvimento de terceiros
ou do INEM são comuns.
Verificamos que o volume global de observações urgentes
caiu 35% entre março e setembro de 2020, face ao
mesmo período do ano anterior, ou seja, cerca de 1,3 milhões
de atendimentos a menos. Foi nas urgências de pediatria
que essa redução foi mais expressiva (-57%) e, pelo
contrário, nas urgências de psiquiatria que se registou a
menor diminuição (-20%).
Perspetivando a urgência geral, a que representa maior
volume de casos, a quebra da procura foi de 30%, ou seja,
menos 822 mil observações que no ano anterior. Importa
referir que o perfil da procura por níveis de gravidade
(aplicando o protocolo da triagem de Manchester) se
manteve constante, contrariando a tese, muitas vezes divulgada,
de que quando a procura de urgência diminui ela
se torna mais pertinente. Neste caso, como aliás acontece
sempre que se registam aumentos nas taxas moderadoras,
a procura pode diminuir temporariamente, mas a }
24 25
GH estudo apah
∆ Março-setembro 2019-2020
Geral Pediátrica Obstétrica Psiquiátrica Total
Janeiro 2% -2% 2% 9% 1%
Fevereiro 2% -1% 7% 10% 1%
Março -34% -54% -28% -39% -38%
Abril -45% -77% -39% -36% -51%
Maio -36% -72% -30% -27% -43%
Junho -28% -63% -23% -10% -34%
Julho -24% -49% -23% -75% -28%
Agosto -23% -41% -22% 52% -25%
Setembro -23% -38% -21% -2% -26%
Tabela 4
Tabela 7
Taxa Ocupação
(2019)
Janeiro 84,0% 85,0%
Fevereiro 85,2% 88,0%
Março 82,6% 67,6%
Abril 80,7% 57,1%
Maio 79,6% 62,4%
Junho 79,6% 67,6%
Julho 81,6% 69,5%
Taxa Ocupação
(2020)
∆ Março-setembro 2019-2020
Convencionais Ambulatório Urgentes Total
Cluster A -49% -43% - -44%
Cluster B -32% -36% -9% -33%
Cluster C -27% -28% -14% -27%
Cluster D -29% -39% -8% -34%
Cluster E -26% -34% -15% -30%
Cluster F -9% -30% -27% -18%
Cluster P - - - -
Tabela 8
Março-julho 2019 Março-julho 2020 Dif. (N) Dif. (%)
Número de doentes saídos
Especialidade Médica 147.366 119.274 -28.092 -19%
Especialidade Cirúrgica 166.465 122.733 -43.732 -26%
Total 313.831 242.007 -71.824 -23%
Tabela 5
∆ Março-julho 2019-2020
Especialidade Médica Especialidade Cirúrgica Total
Cluster A 52% -55% 10%
Cluster B -16% -25% -21%
Cluster C -17% -24% -21%
Cluster D -20% -27% -24%
Cluster E -22% -29% -26%
Cluster F -16% -17% -17%
Cluster P -37% - -37%
Tabela 6
Abril-junho 2019 Abril-Junho 2020 Dif. (N) Dif. (%)
Atividade Trimestral de Transplantação
Coração 9 5 -4 -44%
Pâncreas 6 6 0 0%
Rim 131 56 -75 -57%
Fígado 65 41 -24 -37%
Pulmão 14 12 -2 -14%
Tabela 9
∆ 2019-2020
Coração Pâncreas Rim Fígado Pulmão
Janeiro-março 25% -20% -12% -13% 31%
Abril-junho -44% 0% -57% -37% -14%
Total -12% -13% -35% -26% 7%
Tabela 10
sua distribuição por níveis de gravidade mantém-se constante
(Tabela 3).
Registou-se, portanto, uma atitude de receio por parte da
população face ao recurso às urgências, que afetou não
apenas as situações simples, mas também os casos mais
graves, excetuando acidentes de trabalho e rodoviários,
que terão diminuído por razões ligadas ao confinamento
e à redução dos contactos sociais e da mobilidade.
No que diz respeito à análise mensal, verifica-se que são,
novamente, os meses de abril (-51%) e maio (-43%) de
2020 aqueles onde se regista uma diminuição mais acentuada
no número de urgências, face aos meses homólogos
anteriores, com especial influência da urgência Pediátrica
(-77% e -72%, respetivamente) (Tabela 4).
Internamento
Os doentes internados diminuíram também de forma
acentuada entre os meses de março a julho. Foram menos
cerca de 72 mil altas, menos 23% face ao período
homólogo do ano anterior (Tabela 5).
Tendo sido a área cirúrgica responsável por 60% da
diminuição das altas, com especial destaque para os
meses de abril (-48%) e maio (-35%), as maiores quebras
registaram-se nos Hospitais do Cluster E (Hospitais
Centrais), com uma redução do internamento em 29%
(Tabela 6).
Consequentemente, as taxas de ocupação das camas dos
hospitais públicos apresentaram em 2020, valores médios
mensais que variaram entre 57% (abril) e 70% (julho),
enquanto no ano anterior, e para os mesmos meses, os
valores rondaram os 80%. Como nestas taxas estão já
incluídos os doentes Covid, fica clara a acentuada diminuição
dos níveis de resposta dos nossos hospitais e o
elevado incremento dos custos fixos por doente tratado
(Tabela 7).
Intervenções cirúrgicas
As intervenções cirúrgicas registaram uma redução glo-
bal de 30% face ao período homólogo anterior, sendo
as de regime ambulatório as que registaram uma quebra
mais acentuada (-34%), o que surpreende face ao circuito
específico desses doentes e à dispensa de internamento.
Suspeita-se que, com a reorganização estrutural para fazer
face aos casos de Covid, os profissionais de saúde afetos
ao ambulatório, nomeadamente enfermeiros e médicos
(anestesistas), tenham sido realocados, o que, consequentemente,
influenciou a atividade de cirurgia de ambulatório.
Quando comparado por Cluster de Hospitais, observa-se
que foram os hospitais dos Clusters A (-44%), D (-34%)
e E (-30%) aqueles que mais diminuíram o número de
intervenções cirúrgicas entre março e setembro de 2020,
face ao período homólogo anterior (Tabela 8).
Transplantação de órgãos
Embora na transplantação de órgãos a informação disponível
seja trimestral, também aqui se registaram diminuições
expressivas em todo o tipo de transplantes, tendo
em conta o ocorrido no 2º trimestre do ano, à exceção
do pâncreas em que, como no ano anterior, se realizaram,
nesse trimestre, seis transplantes.
Considerando o período abril a junho de 2020, face ao
mesmo período de 2019, no transplante Renal, o mais frequente,
a redução foi de 57%, o que significa menos 75
doentes transplantados. No Fígado, o número de transplantes
realizados reduziu-se 37% (menos 24), no Coração
44% (menos 4) e no Pulmão 14% (menos 2) (Tabela 9).
Analisando a transplantação por trimestres homólogos,
verifica-se que, com exceção do Pulmão onde se observa
um “saldo” positivo (+7% de transplantes), houve uma
diminuição generalizada na atividade de transplantação
dos restantes órgãos (Tabela 10).
Existência de trabalhadores por grupo profissional
Este é dos poucos indicadores onde existe informação
até Outubro de 2020. Assim sendo, e considerando o
período março-outubro de 2020, face a 2019, os pro- }
26 27
GH estudo apah
∆ Março-outubro 2019-2020
Médicos s/ internos Médicos Internos Enfermeiros TSS * TDT * Restantes Total
Cluster A -0,5% -6,3% 12,1% 2,1% 6,9% 5,6% 6,5%
Cluster B 0,7% 1,1% 5,4% -1,5% 7,9% 7,5% 5,5%
Cluster C 2,0% 2,5% 6,0% 0,5% 6,3% 7,1% 5,6%
Cluster D 3,8% 5,8% 5,3% -0,9% 4,3% 6,4% 5,4%
Cluster E -0,2% -1,5% 5,1% 0,1% 2,8% 5,7% 3,7%
Cluster F 0,8% 8,3% 5,6% 0,9% 6,9% 3,5% 4,3%
Cluster P 3,8% 1,2% 11,1% 1,3% 1,7% 5,2% 6,3%
Tabela 11: * TSS (técnicos superiores de saúde), * TDT (técnicos de diagnóstico e terapêutica).
Tabela 12
Tabela 13
fissionais por categoria ou grupo, registaram sempre um
aumento de efetivos: Médicos sem internos, mais 4%;
Médicos Internos, mais 4%; Enfermeiros, mais 8%, apenas
para citar os grupos mais relevantes de cuidados diretos.
Em termos globais esse aumento foi de 7%, ficando assim
claro que, ao contrário do que algumas análises pretendem
demonstrar, o número de efetivos foi superior ao
verificado em meses homólogos do ano anterior. Esta
evidência não é incompatível com a análise comparativa
entre meses do corrente ano que indiciam, por exemplo,
uma redução do número de médicos de um mês para o
mês seguinte. Esta segunda evidência é conjuntural, face
ao balanço entre saídas por aposentação ou por outra
causa, e as novas admissões por concurso, raramente
coincidentes, o que pode provocar reduções temporárias
de efetivos. Mas o essencial é constatar que os hospitais
dispunham de mais profissionais em todas as categorias
Março-outubro 2019 Março-outubro 2020 Dif. (N) Dif. (%)
Ausência ao Trabalho por Tipologia (Dias)
Assistência a familiares 19.723 17.585 -2.138 -11%
Doença 982.533 1.519.966 537.433 55%
Greve 71.609 3.167 -68.442 -96%
Outras 1.090.718 1.309.574 218.856 20%
Total 2.164.583 2.850.292 685.709 32%
∆ Março-outubro 2019-2020
Assistência a familiares Doença Greve Outras Total
Cluster A -33% 71% -100% 61% 59%
Cluster B -21% 45% -95% 24% 31%
Cluster C -8% 45% -98% 12% 24%
Cluster D -23% 54% -95% 33% 38%
Cluster E -1% 67% -94% 16% 34%
Cluster F -13% 56% -99% 28% 35%
Cluster P -14% 28% -84% 32% 27%
do que no ano anterior, no mesmo período.
Quando analisado por Clusters, verifica-se que, para além
dos hospitais do Cluster A, com pouca expressão na rede
hospitalar, apenas nos hospitais Centrais (Cluster E) se
observa uma diminuição, ainda que ligeira, do número de
médicos s/ internos (-0,2%) e do número de médicos
internos (-1,5%), pese embora tenha havido no cômputo
geral um aumento de 3,7% do número de profissionais.
Ainda assim, foi igualmente neste Cluster que se verificou
o menor reforço de profissionais entre março e outubro
de 2020, face a 2019 (Tabela 11).
Assiduidade
Os riscos de contágio nos hospitais por Covid parecem
ter determinado um aumento significativo de ausências
ao trabalho em todos os grupos profissionais (mais 32%),
entre março e outubro de 2020, face a igual período de
2019. O número de dias de ausência por doença aumentou
entre março e outubro deste ano 55% face a igual
período do ano anterior. Simultaneamente, a necessidade
de ficar em casa para apoio a descendentes face ao encerramento
das escolas parece ter tido também um peso
importante nas ausências registadas (os “outros motivos”
aumentaram 20%). Pelo contrário, as faltas por greve
reduziram-se em 96%, de acordo com a interrupção da
luta sindical neste período de crise pandémica, bem assim
como se reduziram as ausências por apoio a familiares
(Tabela 12).
No que diz respeito ao número de dias de ausência por
grupo de hospital, verifica-se que, para além do Cluster
A com pouca relevância estatística, os Clusters D (+38%)
e E (+34%) estão entre aqueles onde o número é mais
elevado (Tabela 13).
Conclusões
Parece evidente que a pandemia da Covid-19 provocou
uma acentuada diminuição da atividade dos hospitais em
todas as suas “linhas de produção”, quer na atividade programada
quer na atividade urgente.
As razões para essa ocorrência poderão estar relacionadas
com o contingente dos doentes COVID e as suas
necessidades, por um lado, e com as decisões tomadas
do lado da oferta e do lado da procura, face aos riscos da
pandemia, por outro lado.
Face à evolução da pandemia nos países europeus e à
sobrelotação das estruturas hospitalares, que eram já visíveis
em países como a Itália e a Espanha, as autoridades
de saúde e as administrações hospitalares adotaram atitudes
preventivas para evitar os riscos de rutura do sistema
hospitalar, com medidas que envolveram a adaptação
de instalações e equipamentos para doentes Covid,
a separação e distanciamento de circuitos de doentes e
o cancelamento de consultas, de cirurgias e de internamentos
programados.
Como agora se percebe, essa atitude evitou de facto a
rutura dos serviços, mas revelou-se excessiva face ao desenvolvimento
da procura Covid.
Este cenário foi potenciado pelos próprios doentes com
consultas e cirurgias programadas que, por sua iniciativa,
ou não compareceram ou cancelaram a sua ida aos hospitais,
por receio de contágio.
Não é possível, com a informação até agora disponível,
perceber se essa redução na resposta hospitalar, teve
efeitos significativos para a vida de muitos doentes, mas é
de supor que o adiamento do atendimento e dos tratamentos
e exames poderá ter tido um impacto, quer no
agravamento das condições de saúde de muitos doentes,
quer mesmo no aumento da mortalidade.
Iremos analisar, numa segunda etapa deste estudo, o impacto
da falta de resposta hospitalar em algumas doenças
crónicas, quer na frequência das consultas de especialidade,
quer no consumo da medicação apropriada. Ã
28
GH estudo apah
ACESSO A CUIDADOS
DE SAÚDE EM TEMPOS
DE PANDEMIA
António Gomes
Diretor Geral da GfK Metris
A
dificuldade no acesso a cuidados
de saúde é, historicamente, uma
queixa dos portugueses. A pandemia
agudizou esta situação.
Esta é uma das conclusões de um inquérito
realizado à população portuguesa pela GfK Metris,
sobre o acesso a cuidados de saúde durante a pandemia
Covid-19, bem como sobre a atuação dos diferentes
agentes envolvidos na gestão da crise (do Governo aos
Profissionais e Instituições de Saúde).
Este inquérito, realizado através de entrevista direta e pessoal,
foi realizado entre os dias 28 de agosto e 8 de setembro.
Ou seja, numa altura entre o declínio da chamada
“1.ª vaga” da pandemia (que, em rigor, nunca chegou
a terminar) e em vésperas do aumento do número de casos
para a atual “2.ª vaga”. Neste contexto, encontramos
uma população portuguesa completamente sensibilizada
para a pandemia Covid-19 (7,2 milhões de portugueses
consideram-na “muito importante” e dois terços declaram-
-se “informados” sobre a mesma), e aderente às medidas
de prevenção de contágio, com a quase totalidade a afirmar
a lavagem frequente das mãos e o uso de máscara
como comportamentos adotados (embora o distanciamento
social fora do círculo familiar mais próximo seja
menos prevalente).
Estes cuidados face à pandemia contam uma história de
impacto pessoal da mesma no quotidiano dos portugueses:
além da grande maioria entender que a pandemia
representa um grande risco para si e para a sua comunidade,
metade dos portugueses afirmam que esta situação
fez diminuir os rendimentos do seu agregado. Os portugueses
consideram que o SNS estava mal preparado para
lidar com a pandemia, em particular no que diz respeito
a equipamentos e instalações (quase 5 milhões de portugueses
apontam esta falha). Ainda assim, fazem uma avaliação
muito positiva do papel dos profissionais de saúde
(de longe, os agentes com melhor avaliação da atuação,
com 81% dos portugueses a considerarem-na “positiva”
ou “extremamente positiva”). O Governo, por seu turno,
tem uma taxa de aprovação mais reduzida: embora metade
dos portugueses considere que a atuação global do
Executivo foi positiva durante a pandemia, quando a análise
recai sobre medidas mais específicas, como o investimento
extraordinário na saúde durante a pandemia ou o
investimento em medidas sociais (apoio ao desemprego,
lay-off, etc.), a avaliação dos portugueses é mais moderada
(nem negativa nem positiva).
O receio no acesso a cuidados de saúde
Apertando o enfoque para a área da Saúde, verificamos
que também aqui a pandemia ergueu entraves aos portugueses
no acesso a cuidados de saúde. Merece nota,
contudo, que estas barreiras podem ser organizadas em
dois grandes grupos: por um lado, barreiras autoimpostas,
relacionadas com a visão das instituições de saúde como
centros de potencial contágio, e consequente receio de
recurso às mesmas; e por outro lado, barreiras resultantes
de cancelamentos ou adiamentos de atos clínicos. Observaremos
com maior detalhe ambas as situações, referindo
contudo desde já que, não obstante o impacto real
destas barreiras na vida dos portugueses, a opinião dos
mesmos é ainda assim positiva e algo otimista.
4,4 milhões de portugueses (correspondendo a 54% da
população) sentem-se confortáveis ou seguros para aceder
a cuidados de saúde, contra 1,4 milhões (17%) que
se sentem inseguros (gráfico 1). Pensando concretamente
na hipotética necessidade de terem de recorrer a cuidados
de saúde, as posições moderam-se: só 2% (ainda assim,
161.000 portugueses) rejeitam aceder a cuidados de
saúde. Na posição diametralmente oposta, isto é, a de aceder
a cuidados de saúde à mínima necessidade, temos
3,3 milhões de portugueses, com os restantes 4,7 milhões
(58% da população) a admitirem racionar o seu acesso a
instituições de saúde (com 2,9 milhões a referirem que
“só se o caso fosse grave”) (gráfico 2).
Gráfico 1
Gráfico 2
Tempos de espera: uma exacerbação de uma condição
crónica do SNS
Receio à parte, qual é a experiência efetiva dos portugueses
no acesso a cuidados de saúde? Pensando em situações
de doença inesperada (isto é, não contando com consultas
programadas ou situações relacionadas com uma
doença crónica), verificamos que 8% dos portugueses
sentiram-se doentes durante a pandemia, e que destes
aproximadamente dois terços recorreram a cuidados de
saúde quando tal aconteceu. Isto significa que 210.000
portugueses sentiram-se doentes durante este período
e não procuraram cuidados médicos. Quando lhes era
perguntado pelas razões para não terem recorrido a assistência
médica, as respostas dividem-se entre a desvalorização
da gravidade da ocorrência (“não era grave”) e
o explícito receio de se deslocar a instituições de saúde.
Aproximadamente metade destes inquiridos admitem
que em situações normais (leia-se, fora da pandemia) teriam
procurado assistência médica.
Pensando em atos médicos previamente marcados (consultas,
exames, etc.), verificamos que embora a maioria
das marcações tenha sido cumprida, em 38% dos casos
essas marcações acabaram por não ocorrer (representando
692.000 atos), na maioria dos casos por cancelamento
ou adiamento (quase nunca por receio dos próprios
doentes/utentes).
Estes casos de cancelamento ou adiamento vêm agudizar
o principal problema identificado pelos portugueses
no SNS: as listas de espera (6,9 milhões concordam que
são um entrave ao acesso a cuidados de saúde). É de
notar que muitos destes atos médicos estavam já sujeitos
a longas listas de espera, e que, no caso concreto destes
doentes, já estariam marcados muito antes do início da
pandemia, tendo agora sido adiados para um futuro ainda
indefinido, efetivamente privando doentes do acesso a
cuidados ou meios de diagnóstico por um período muito
alargado, com consequências eventualmente graves em
pelo menos alguns dos casos. Além disso, há que considerar
o efeito cumulativo da pandemia nestas listas de
espera: não só estes doentes ficam privados do acesso a
atos médicos de que necessitam, como também novos
doentes entram para listas de espera ainda mais preenchidas,
criando um efeito que promete atrasar diagnósticos
e tratamentos por muito tempo além do término da
situação pandémica.
Por ora, entre ocorrências pontuais deixadas por tratar e
atos clínicos previamente marcados que não chegaram a
ocorrer, 902.000 portugueses ficaram privados do acesso
a cuidados de saúde.
Embora esta disrupção possa ter um impacto negativo
na saúde da população, os portugueses, em larga medida,
compreendem e concordam com as razões destes adiamentos/cancelamentos.
Mesmo assim, foram apresentadas
soluções para mitigar este impacto: 8 a 9 em cada 10
portugueses concordam que deveria existir instituições
e serviços exclusivos Covid-19 e não-Covid-19, que os
horários de atendimento deveriam ser alargados, e que
o acesso a cuidados de saúde deveria ser, sempre que
as circunstâncias o permitam, feito por marcação prévia.
Doentes crónicos - o mesmo tratamento
Aproximadamente 2 milhões de portugueses declararam
sofrer de uma ou mais doenças crónicas. 12% destes doentes
(233.000) sentiram um agravamento da sua doença
durante o período de pandemia, tendo 76% desses recorrido
a cuidados médicos (ou seja, uma percentagem
ligeiramente superior aos não-doentes crónicos), e os
restantes, correspondendo a 56.000 casos, que não procurando
cuidados médicos, apontaram para tal as mesmas
razões que os não-doentes crónicos: uns desvalorizaram
a gravidade, e outros assumiram receio de contágio. }
30 31
GH estudo apah
“
9% DOS PORTUGUESES (775.000)
TIVERAM MARCADA UMA
CONSULTA DE TELEMEDICINA,
COM A MAIORIA A TER JÁ SIDO
REALIZADA. CONTUDO,
NESTES CASOS, A QUASE
TOTALIDADE DOS CONTACTOS
(95%) FOI REALIZADA
POR TELEFONE.
”
Olhando para atos clínicos previamente marcados relacionados
com a sua doença crónica, o cenário é semelhante
ao da restante população: 38% das marcações acabaram
por não ocorrer, por cancelamento ou adiamento.
Tudo contabilizado, quase 400.000 doentes crónicos em
Portugal deixaram de aceder a cuidados médicos relacionados
com a sua patologia.
Oportunidades para o futuro: a emergência (lenta)
do consultório digital
Se, em algumas áreas da sociedade, a pandemia forçou um
desenvolvimento acelerado das potencialidades tecnológicas
ao nível da ligação entre pessoas e entidades (basta
pensar, como exemplos, no teletrabalho ou na explosão
do e-commerce), esse efeito mostra-se, até ver, mais modesto
na área da Saúde.
9% dos portugueses (775.000) tiveram marcada uma consulta
de telemedicina, com a maioria a ter já sido realizada.
Contudo, nestes casos, a quase totalidade dos contactos
(95%) foi realizada por telefone, redundando numa
utilização ainda pouco efetiva da tecnologia disponível.
De resto, as reações do lado dos doentes/utentes não se
podem classificar de efusivas: aqueles que tiveram uma
consulta à distância mostram-se moderadamente agradados
com a mesma, mas mesmo assim, 80% destes doentes
dizem que preferiam ter sido vistos presencialmente
(em alternativa ou em complemento à teleconsulta). Entre
aqueles que a quem não foi oferecida a possibilidade
de uma consulta à distância, a maioria diz que também
não teria interesse nessa solução.
Mesmo assim, os portugueses descortinam aspetos positivos
neste contacto à distância, concordando nas vantagens
do prolongamento deste modelo além dos tempos
de pandemia. Esta posição é especialmente prevalente
entre doentes crónicos, que veem aqui uma boa alternativa
a consultas de seguimento ou contactos pontuais
com o médico, reduzindo assim as deslocações.
Um alargamento para fora deste contexto mais estrito,
contudo, obrigará a uma maior aposta nas soluções de
contacto, de modo a encurtar a distância qualitativa entre
o contacto presencial e este novo modelo de consultório
digital.
Acesso a medicação assegurado
A merecer nota mais positiva está o acesso a medicação
durante a pandemia. Não só pelo facto de não ter ocorrido
uma rutura efetiva do stock, mas também pela forma
mais facilitada de acesso do doentes às suas prescrições.
A possibilidade de pedir ou renovar receituário à distância
(por telefone, por email, com comunicação direta para as
farmácias de bairro) veio agilizar o processo, mantendo
ao mesmo tempo os doentes em segurança, ao limitar as
suas deslocações às unidades de saúde.
Da mesma forma, 60% dos doentes crónicos (228.000)
que anteriormente recebiam medicação no hospital, puderam
passar a recolhê-la nas farmácias de bairro. Esta
medida foi quase universalmente aplaudida, com os doentes
a destacarem a maior comodidade, segurança e de
poder evitar a deslocação ao hospital.
Estas medidas são vistas como muito positivas para a gestão
da doença, fazendo para os portugueses sentido que
se mantenham após pandemia.
Ficha técnica
O Universo deste estudo é constituído pelos indivíduos
com 18 e mais anos, residentes em Portugal continental.
A amostra final foi constituída por 1.009 indivíduos,
selecionados através do método de quotas, com base
numa matriz que cruzou as variáveis sexo, idade, instrução
(homens), ocupação (mulheres), região e habitat/dimensão
dos agregados populacionais, de forma a assegurar
a proporcionalidade face à população portuguesa (a
margem de erro é de 3,1% para um intervalo de confiança
de 95%). Os dados foram posteriormente ponderados
para o universo da população em estudo, 8.251
milhões de indivíduos.
A informação foi recolhida através de entrevista direta
e pessoal, em total privacidade, com base num questionário
estruturado, elaborado pela equipa do projeto e pela
GfK Metris.
Os trabalhos de campo decorreram entre os dias 28 de
agosto a 8 de setembro de 2020, e foram realizados por
entrevistadores recrutados e treinados pela GfK Metris,
que receberam uma formação adequada às especificidades
deste estudo. Ã
NINGUÉM PODE
ENFRENTAR OS DESAFIOS
DE SAÚDE SOZINHO
Medtronic Integrated Health Solutions apoia
os hospitais portugueses no alívio do gap de
capacidade pós Covid-19
MAXIMIZAR a capacidade do sistema através
de soluções que aumentam e melhoram a oferta.
MINIMIZAR o impacto nos doentes através de soluções
que otimizam a prestação de cuidados.
32
UCXXXXXXXXX UC202111707 PT PT ©2020 Medtronic. Todos os os direitos reservados.
GH estudo apah
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA
NOS HOSPITAIS DO SNS 1
Mauro Serapioni
Investigador sénior, Centro de Estudos Sociais,
Universidade de Coimbra
Alfredo Campos
Investigador júnior, Centro de Estudos Sociais,
Universidade de Coimbra
O
tema da participação pública tem assumido
uma grande relevância nos países
ocidentais, tanto pelas iniciativas promovidas
pelas instituições públicas, como
pela demanda de maior envolvimento
por parte das associações e grupos organizados da sociedade
civil (Crisóstomo e Santos, 2018). Este intenso debate
está presente ativamente nos sistemas de saúde desde
a década de 1980. Várias organizações internacionais
e mesmo a Organização Mundial da Saúde têm vindo a
exortar os governos nacionais e regionais para a necessidade
de desenvolver espaços públicos, ancorados na sociedade
civil, como lugares apropriados para a democratização
dos sistemas de saúde. De entre os inúmeros argumentos
apontados pela literatura a favor da participação
dos cidadãos na tomada de decisões em saúde, vale mencionar
os seguintes (Serapioni, 2018):
• Valoriza o saber e a experiência dos pacientes, melhorando
a qualidade das decisões dos resultados de saúde;
• Contribui para o incremento da responsabilidade e da
transparência nos serviços de saúde;
• Aumenta o empoderamento do paciente;
• Fortalece as atividades de promoção da saúde;
• Reforça a representatividade dos grupos mais vulneráveis.
Mas como deve ser desenhada e implementada a participação
nas instituições de saúde? A experiência neste
campo mostra que, apesar de algumas boas intenções e
esforços apreciáveis, o grau de institucionalização da participação
ainda está longe de ser satisfatório (Conklin et
al., 2015). As literaturas internacionais têm apontado os
seguintes pontos críticos da participação em saúde:
• Problema de representatividade dos mecanismos de
participação, que não conseguem envolver os grupos vulneráveis
(Li et al., 2015);
• Necessidade de criar espaços deliberativos mais democráticos
capazes de aumentar a legitimidade das decisões
(Fung, 2015);
• Insuficientes avaliações da efetividade das experiências
de participação (Serapioni, 2018).
A participação nos hospitais: experiências internacionais
No que diz respeito à participação pública nas instituições
hospitalares, é importante destacar as poucas experiências
divulgadas internacionalmente. A literatura consultada
geralmente relata as iniciativas de participação nos sistemas
locais de saúde, sem evidenciar especificamente o
envolvimento das associações e de utentes nos hospitais.
Entre as experiências identificadas, é interessante realçar
um estudo comparativo realizado no âmbito da União
Europeia, no qual participou também Portugal, junto com
República Checa, França, Alemanha, Polónia, Espanha e
Turquia, cujo objetivo era analisar o envolvimento de representantes
de doentes na gestão da qualidade (Groene
et al., 2014). O resultado, além de destacar um baixo nível
de participação, não evidenciou uma associação positiva
entre envolvimento e a implementação de atividades de
cuidado focadas nos doentes. Outro estudo avaliou a
efetividade da participação dos ‘Comités de stakeholders’
na tomada de decisões sobre políticas, em seis hospitais
flamengos, na Bélgica (Malfait et al., 2018). Os resultados
indicaram a debilidade dos Comités e apontaram as
seguintes recomendações: as discussões devem tratar
também de questões operacionais e não somente de
assuntos estratégicos que silenciam a voz dos representantes
dos utentes; os comités devem ser apoiados externamente
por associação de doentes; devem dispor de
mais autonomia; e os participantes devem aprimorar a
própria formação. É interessante também a experiência
dos Comités Consultivos Mistos (CCM) operantes nos
hospitais e nos distritos de saúde da região Emilia-Romagna,
em Itália (Serapioni e Duxbury, 2012), que evidenciou
dois pontos críticos em relação à representatividade: o
primeiro diz respeito ao risco dos representantes das associações
de doentes nos CCM se preocuparem apenas
pelas condições de saúde dos próprios membros e não
dos interesses de todos os utentes; o segundo destaca
um tema bem conhecido na literatura internacional e diz
respeito à baixa participação dos jovens nos conselhos
de saúde.
Objetivos e método do estudo
Este artigo apresenta os resultados de um estudo sobre
participação pública nos hospitais do Serviço Nacional de
Saúde (SNS) de Portugal, através dos seus Conselhos
Consultivos (CC). Os principais objetivos do estudo foram
compreender o nível de implantação dos CC e identificar,
na perspetiva dos Presidentes das Instituições Hospitalares
(IH), as áreas e atividades com maior potencial de
participação das associações de utentes (em Portugal comumente
definidas Comissões de utentes). O estudo foi
realizado através de um inquérito online enviado a todos
os Presidentes das IH do SNS. Do total de 49 inquéritos
enviados aos Presidentes das IH, foram respondidos
45 (cerca de 91%). Destes, 45 foram considerados para
a análise da existência dos CC, mas somente 33 (67%)
foram tidos como válidos para a inclusão na globalidade
da análise, tendo sido completados em sua maior parte.
Resultados
A primeira parte do inquérito propunha-se recolher informações
acerca da presença e funcionamento dos CC, assim
como as perceções sobre o seu nível de atuação. Na
maioria das IH (34 de 45, ou seja, em 75,6%) existe o CC,
mas somente em 16 delas (35,6%), existe com mandato
em vigor. Em 18 IH (40%) existe sem mandato em vigor, e
em 11 (24,4%) o CC nunca foi constituído (Fig. 1). }
Figura 1: Configuração dos conselhos consultivos.
34 35
GH estudo apah
Figura 2: Opiniões sobre papel das associações dos utentes.
Na maioria das IH (74,1%) os CC incluem representantes
dos utentes, mas não recebem nenhum tipo de facilitação
e ajuda de custos para incentivar a participação nas IH.
Relativamente ao número de reuniões dos CC, importa
assinalar o alto número de respostas - 57% em 2018 e
cerca de 60% em 2019 - que indicaram que não reuniram
nenhuma vez. Este insuficiente nível de atuação é
confirmado pela limitada participação dos CC nas atividades
previstas pelo Decreto-Lei 233/2005 e 18/2017. De
facto, os CC “apreciam os planos de atividades”, somente
em 22 IH, “emitem recomendações para o melhor
funcionamento das IH” em 21 IH, e “apreciam o relatório
anual sobre reclamações, sugestões e elogios dos
utentes” apenas em 11 IH. Estes dados indicam a urgente
necessidade de aumentar tanto o número das reuniões,
como o envolvimento do CC nas atividades de planeamento,
avaliação e de consulta, assim como previsto na
normativa nacional.
Inquiridos sobre o “nível de influência que geralmente
exercem as propostas do CC” e a capacidade dos CC
de “representar os interesses e direitos dos utentes”, os
respondentes dividiram-se em duas partes iguais, nas duas
perguntas: 50% avaliou positivamente o papel dos CC e
50 % negativamente.
A segunda parte do inquérito procurou recolher as perceções
dos Presidentes sobre o envolvimento dos representantes
dos utentes e as modalidades de participação
nas IH. Neste sentido, as perguntas orientadas a conhecer
as opiniões sobre o papel das associações de utentes
deram respostas interessantes. Os Presidentes concordaram
com o envolvimento dos representantes das associações
nas atividades referidas na figura 2.
Porém, a maioria (54,6%) não concorda com a hipótese
de “conferir maior poder as comissões de utentes para
tomar decisões”. Esta oposição é ainda maior nas IH com
CC com mandato em vigor (69,3%), do que nas IH onde
existe um CC sem mandato em vigor (53,3%), e nas IH
onde os CC nunca foram implantados (20%) (Fig. 3).
Estes dados exigiriam uma investigação adicional para compreender
por que, em unidades onde já existem conselhos
de saúde, os Presidentes mostram menos interesse
em aumentar o poder dos comités de utentes, a fim de
identificar a quais possíveis fatores essa opinião pode estar
relacionada. Pode ser o resultado da experiência adquirida
com os CC em funcionamento ou pode depender do fato
de os Presidentes considerarem que os CC não são suficientemente
representativos dos cidadãos em geral?
Outro bloco de perguntas do inquérito teve como objetivo
captar as perceções dos Presidentes sobre a hipótese
de envolver as associações de utentes em alguns
momentos e etapas do processo de decisão nas IH. Os
resultados apontam para um elevado consenso dos respondentes
(acima de 70%) quanto ao envolvimento das
associações de utentes nos seguintes aspetos do processo
de decisão (Figura 4):
Somente em dois aspetos do processo de decisão, os Presidentes
manifestaram um baixo nível de interesse para implicar
as associações de utentes, nomeadamente na participação
nas “decisões sobre (re)organização dos serviços dos
hospitais” (28,1%) e nas “comissões de ética das IH” (28,1%).
Em relação às estratégias de Gestão da Qualidade promovidas
pelas instituições hospitalares, o inquérito pretendeu
recolher as opiniões dos Presidentes acerca de um
possível envolvimento das associações de utentes nas atividades
voltadas à melhoria e avaliação da qualidade dos
serviços de saúde. Neste prisma destacam-se duas atividades
em que, na opinião da maioria dos respondentes,
as associações de utentes deveriam ser ‘sempre’ ou ‘geralmente’
envolvidas, isto é, nos ‘projetos de melhoria da
qualidade’ (51,6%) e na ‘discussão de resultados de melhoria
da qualidade’ (58%).
Inquiridos sobre como fortalecer a participação dos utentes
nas IH, os Presidentes assinalaram (em ordem de importância
e podendo optar por mais de uma resposta),
os fatores reportados na figura 5. A maioria das respostas
identifica o importante papel dos profissionais e dos dirigentes
na promoção da participação nas IH. Este dado
confirma os resultados de outras investigações nacionais
e internacionais (De Freitas, 2017; Boivin, et al., 2014)
No final do inquérito foi inserida uma pergunta aberta
com a finalidade de obter opiniões sobre o que poderia
Figura 3: Opinião sobre papel das associações segundo a situação dos CC.
contribuir para reforçar a participação dos representantes
dos utentes e pessoas com doença nos processos de
decisão das IH. De uma primeira análise das 23 sugestões
e propostas apontadas conseguimos diferenciar os
aspetos críticos do envolvimento das associações nas IH
em duas categorias:
• As que, na opinião de 13 Presidentes, dependem da
cultura institucional ainda não suficientemente preparada
para valorizar a perspetiva de doentes e utentes, realçando,
em particular, as atitudes e as resistências dos profissionais,
mas também dos dirigentes;
• As que, de acordo com o parecer de 10 respondentes,
se relacionam com as limitações e dificuldades de atuação
das mesmas associações de utentes.
Conclusões
Os resultados do inquérito oferecem uma nítida imagem
da limitada atuação dos CC nas IH do SNS, quer pelo
número de reuniões, quer pela insuficiência de atividades
desenvolvidas. Os resultados, portanto, proporcionam ricas
informações para promover atividades de sensibilização
sobre participação pública nas IH. Neste prisma, a administração
das IH tem um papel importante a desempenhar
na qualificação e consolidação da participação pública,
podendo:
• Criar novos CC;
• Impulsar a renovação dos CC atualmente sem mandato
em vigor; }
36 37
GH estudo apah
• Incrementar o número de reuniões;
• Incentivar a participação dos representantes dos utentes
nas atividades previstas pela normativa nacional;
• Garantir ajudas de custo e outras facilitações;
• Promover atividades de informação e formação, para profissionais,
administradores, e membros das Ligas de Amigos,
sobre as potencialidades e vantagens da participação nas IH.
Como ressalta a literatura internacional, a participação é um
fenómeno social muito complexo que envolve muitas dimensões:
económicas, socias, políticas e culturais. As responsabilidades
dos insucessos e da insuficiente participação
realizada em nível internacional assentam tanto no sistema
de saúde - ainda baseado numa organização não suficientemente
aberta às demandas do ambiente social - como nas
insuficientes formas de protagonismo social e de prática participativa
implementadas pelas associações.
Inquiridos sobre como fortalecer a participação dos utentes
nas IH, os Presidentes assinalaram (em ordem de importância
e podendo optar por mais de uma resposta), os fatores
reportados na figura 5. A maioria das respostas identifica
o importante papel dos profissionais e dos dirigentes na
promoção da participação nas IH. Este dato confirma os resultados
de outras investigações nacionais e internacionais
(De Freitas, 2017; Boivin, et al., 2014). Realçam interessantes
pontos críticos que põem em causa tanto a responsabilidade
de profissionais e gestores (aspetos institucionais) como as
dificuldades que encontram associações de utentes nas atividades
de representação e defesa dos direitos dos cidadãos.
Porém, o primeiro passo para iniciar a mudança é responsabilidade
do sistema de saúde, neste caso das IH. É neste
processo de intervenção promovido pela APAH que se inserem
os resultados deste estudo. Ã
1. Os autores agradecem a colaboração de Margarida Santos e de Sofia Crisóstomo
do “Programa MAIS PARTICIPAÇÃO, melhor saúde”, na fase de elaboração
do inquérito e na discussão dos resultados preliminares. Agradecem também a cooperação
constante de Miguel Lopes, Secretário Geral da APAH, e da equipa da
secretaria, durante a fase da pesquisa de campo.
• Boivin, A; Lehoux, P; Burgers, J; Grol, R (2014), What Are the Key Ingredients for
Effective Public Involvement in Health Care Improvement and Policy Decisions?
A Randomized Trial Process Evaluation, The Milbank Quarterly, 92, 2, 319-350.
• Crisóstomo, S.; Santos, M. (2018), Participação pública na saúde: das ideias à ação
em Portugal, Revista Crítica de Ciências Sociais, 117, 167-186.
• Conklin, A; Morris, Z; Nolte, E (2015), What is the Evidence Base for Public
Involvement in Health-Care Policy? Results of a Systematic Scoping Review, Health
Expectations, 18(2), 153-165.
• De Freitas, C (2017), Editorial. Public and patient participation in health policy, care
and research Porto Biomedical Journal; 2(2):31-32.
• Fung, A (2015), Putting the Public Back into Governance: The Challenges of Citizen
Participation and Its Future, Public Administration Review, 75(4), 513-522.
• Groene, O. (2014), Involvement of patients or their representatives in quality management
functions in EU hospitals: implementation and impact on patient-centred
care strategies, International Journal for Quality in Health Care; Volume 26, Number
S1: pp. 81-91.
• Li, K; Abelson, J; Giacomini, M; Contandriopoulos, D (2015), Conceptualizing the
Use of Public Involvement in Health Policy Decision-Making, Social Science & Medicine,
138, 14-21.
• Malfait, S. et al. Patient and public involvement in hospital policy-making: Identifying
key elements for effective participation. Health Policy (2018).
• Serapioni, M (2018), Participação pública nos sistemas de saúde. Uma introdução,
Revista Crítica de Ciências Sociais, 117, 91-98.
• Serapioni, M; Duxbury, N (2012), Citizens' Participation in the Italian Healthcare
System: The Experience of the Mixed Advisory Committees, Health Expectations.
Figura 5: Fatores que fortalecem a participação nas IH.
Figura 4: Opinião sobre envolvimento associações de utentes nos processos de decisão das IH.
38
GH SAÚDE MILITAR
COVID 19: AS LIÇÕES
QUE SÓ RECORDAREMOS
NA PRÓXIMA PANDEMIA
Carlos Penha Gonçalves
Coronel Médico-Veterinário (Reserva)
A
pandemia que hoje vivemos é em muitos
aspectos inédita, mas tem antecedentes.
Na década passada era clara,
entre os especialistas, a percepção da
possibilidade e eminência de um fenómeno
com a dimensão da pandemia de coronavírus
que está a ocorrer em 2020-21. De facto, foi inusitada
a frequência de surtos epidémicos e ameaças de pandemias
que assolaram regiões de dimensões sub-continentais
nos primeiros anos do século XXI. Muitas destas doenças
infecciosas emergentes são causadas por agentes
zoonóticos que se transmitem dos animais aos seres humanos.
Foram os casos da Síndrome Respiratória Aguda
Grave (SARS, 2002-2003), Gripe das Aves (H5N1, 2005),
Gripe Suína (gripe pandémica H1N1, 2009), Síndrome
Respiratória do Médio Oriente (MERS, 2013), Ébola
(2014-2016), Zika (2015-2016), Febre Amarela (2016) e
novamente Ébola (2018-2020). Estas emergências de
Saúde Pública foram marcantes pela magnitude do impacto
negativo na economia e capacidade de indução de
medo nas populações, mas de modo mais preocupante
evidenciaram importantes fragilidades dos sistemas de
resposta existentes.
Cooperação internacional
Assumindo com clareza que estes desafios são globais
algumas iniciativas foram tomadas no plano internacional
para aprofundar planos e procurar soluções. Talvez a
mais proeminente seja a Global Health Security Agenda
inicialmente promovida pela Administração Obama (em
2014), a que Portugal aderiu desde a primeira hora, e
que entretanto tem seguimento (até 2024) no contexto
da Organização das Nações Unidas/OMS. Esta iniciativa
tem como objectivo capacitar os Países (e seus territórios)
para cumprir as exigências do Regulamento Sanitário
Internacional, especialmente no que diz respeito
à implementação de capacidades de vigilância epidemiológica.
Estas capacidades são necessárias ao cumprimento
da obrigação que os Países têm de notificar surtos
de doenças infecciosas com potencial pandémico e
de reportar à ONU/OMS dados sobre a incidência de
doenças consideradas Emergências de Saúde Pública
Internacionais.
A Global Health Security Agenda visa apoiar os Países
através do estabelecimento de redes internacionais de
laboratórios, órgãos de gestão internacional para partilha
de materiais e reagentes necessários à resposta a
epidemias, sistemas de informação epidemiológica e
treino de pessoal para operar em laboratórios de bio-
-segurança e em equipas de vigilância epidemiológica
de emergência. Desde 2014 esta ação beneficiou mais
de uma centena de Países na avaliação das suas capacidades
de resposta a emergências epidemiológicas e
também no incremento das capacidades de vigilância
epidemiológica em países com menos recursos. No entanto,
foi confrangedor assistir à tibieza da cooperação
internacional durante a primeira, e mais incerta, fase da
pandemia que gerou uma incompreensível sensação de
"salve-se quem puder" no acesso ao mercado internacional
dos recursos materiais necessários. O mesmo se
parece estar a desenhar no acesso às vacinas, com os
países ricos a "reservarem" a sua quota e os países mais
desprotegidos sem capacidade negocial. Ou seja, a competição
subjugou a cooperação e, a expectativa de que
o combate teria de ser global desvaneceu-se e deu lugar
a divergentes e conflituantes estratégias de proteção
de interesses nacionais. Foi também notória a falta de
um mecanismo internacional com autoridade/capacidade
de regulação da resposta a emergências, o qual, por
semelhança de argumentos, dificilmente existirá quando
eclodir a próxima pandemia. Apesar da inexorável
trajetória para um mundo interdependente, a pandemia
Covid-19 demonstrou a necessidade de identificar
capacidades "core" nacionais, que devem ser mantidas
como fator de independência e autonomia na resposta
a emergências epidémicas.
Alerta e resposta
Considerando os antecedentes acima descritos havia
suficiente informação sobre a possibilidade de uma pandemia
e é legítimo perguntar, então porque é que "ninguém"
estava preparado para responder (a tempo e horas)
à Covid-19, enquanto assistíamos à disseminação da
doença de um país a outro? Porque é que "todos" foram
surpreendidos? Porque é que não havia capacidade de
diagnóstico, porque é que não havia máscaras, porque
é que não havia equipamentos de proteção individual,
porque é que não houve controlo nas fronteiras? Tudo
tinha sido pensado, equacionado e em muitos casos até
planeado. Porque é que não funcionou? É aceitável argumentar
que muitos países não têm capacidade instalada
para operar sistemas de vigilância epidemiológica com
penetração territorial e populacional suficiente para controlar
doenças de alta transmissibilidade, como é o caso
da Covid-19. Mas esse não é o caso dos países mais desenvolvidos
que apesar da robustez dos seus sistemas
estão a ser devastadoramente atingidos pela doença.
No crucial período inicial de expansão pandémica houve,
pelo menos ao nível comunicacional, uma clara desvalorização
da dimensão da ameaça que se iria pôr aos
países ocidentais, possivelmente com o intuito de evitar
a indução de medo na população ou estragos para a
economia. Mas as hesitações em assumir o desafio neste
período crucial, não permitiram que em muitos países
desenvolvidos os sistemas de resposta fossem "municiados"
com pessoal treinado e materiais apropriados para
responder à ameaça da pandemia. Nuns casos os planos
de preparação existiriam mas não foram ativados
atempadamente e noutros casos o planeamento e treino
terão sido manifestamente insuficientes, apesar de
todos os avisos ao longo da última década.
As não-decisões na ativação de planos de preparação }
40 41
GH SAÚDE MILITAR
aos primeiros sinais de uma potencial ameaça pandémica,
falharam a janela de oportunidade para protelar a
introdução e disseminação da doença e, muito rapidamente
evoluímos (pelo menos na Europa e nas Américas)
para as fases de contenção da transmissão e de
mitigação dos seus efeitos. Existem nesta circunstância
muitas atenuantes, pois é certo que se tratava de uma
doença desconhecida e de um agente viral novo com
transmissibilidade inusitadamente elevada. Mas, quando
era já evidente a ameaça pandémica, houve claramente
condicionalismos e critérios extra-sanitários que retardaram
o acionamento dos sistemas de detecção e
vigilância e a implementação de contra-medidas. Esses
condicionalismos vão provavelmente manter-se e fazem
antever que na próxima pandemia esta lição aprendida
sobre o acionamento dos alertas e a precocidade da ativação
da resposta poderá ser amargamente esquecida.
Colaboração multissectorial
Muitos se perguntam porque é que na fase de mitigação,
a dinâmica da pandemia ultrapassou tão rapidamente a
capacidade de resposta dos sistemas de saúde mais robustos
do mundo. Terá havido nalguns países decisões e
posicionamentos menos acertados que em parte serão
compreensíveis à luz da incerteza da situação e da sua
enorme escala. Todavia o conhecimento acumulado na
esfera da biosegurança e da biodefesa preconizava que o
desenvolvimento de sistemas de detecção precoce (early
detection), o treino de equipas de campo para investigação
epidemiológica e as reservas de material e equipamento
eram factores-chave para a eficácia dos planos de
contingência e contenção. Estava também bem definido
que a eficiência dos sistemas de repostas deveriam estar
baseados na articulação de diversos departamentos da
Administração do Estado e no emprego coordenado da
grande diversidade de competências técnicas e de meios
materiais. Sabia-se que eram requeridos mecanismos de
coordenação e cooperação multissectorial para potenciação
de meios já existentes de modo a coaptá-los às
necessidades levantadas pela pandemia.
Surpreendentemente, a grande maioria dos países apenas
procurou gerir a sua resposta tendo como instrumento
quase único os seus sistemas de saúde. Outros
sectores da sociedade foram chamados em fases mais
adiantadas do processo mas, em grande parte do mundo
ocidental a implementação das decisões epidemiológicas
ficou sobretudo a cargo de uma saúde pública
que já estava muito sobrecarregada. Por exemplo, os
sectores académicos, da defesa e da proteção social
foram apenas envolvidos pontualmente, muitas vezes
recorrendo a solicitações inusitadas. Vários sectores
da sociedade incluindo atores locais intervieram muita
vezes por modus próprio revelando a pouca eficiência
dos mecanismos disponíveis de coordenação intersectorial.
A Covid-19 deixou claro que a cooperação intersectorial
entre departamentos do estado e com atores
locais e não estatais deve ser planeada e treinada.
Mas devemo-nos perguntar se na próxima pandemia a
transversalidade entre sectores vai funcionar. Teremos
agora algum tempo para estabelecer um modus operandi
na gestão das respostas de emergência e definir
mecanismos para ultrapassar a cultura de isolacionismo
dos departamentos do Estado. Se o planeamento desta
cooperação não for estimulada, então seguramente esqueceremos
a lição de que a organização do emprego
das competências e dos meios disponíveis é o modo
mais eficaz de enfrentar uma emergência.
Emprego dos sistemas de saúde
Foram muito poucos os que fizeram notar que o emprego
dos sistemas de saúde teve racionalidade pouco
clara. Há quem se interrogue porque é que a rede de
cuidados primários não foi envolvida na resposta à pandemia
e pelo contrário foi reduzida a sua atividade. É
contra-intuitivo usar na primeira linha os hospitais mais
diferenciados e os meios mais sofisticados sem o apoio
de uma cadeia de triagem que despistasse os assintomáticos
e retivesse os casos ligeiros. A pressão sobre a
primeira linha, que afinal era a última linha, prolongou-se
degradando a resiliência hospitalar de tal modo que o
combate à pandemia se centra agora em impor medidas
restritivas de circulação, mobilidade e convívio social
tendo como referência as estimativas de capacidade disponível
em cuidados intensivos. Ou seja, esta estratégia
hipotecou nas primeiras fases os recursos humanos e
materiais mais preciosos dos sistemas de saúde deixando-os
sem munições para um combate que ainda não
sabemos quanto tempo vai durar. A justificação por esta
opção poderá ser simples: a rede de cuidados saúde primários
não estava treinada, não estava equipada e não
foi preparada para poder prestar um apoio eficaz na
referenciação e acompanhamento dos casos. Será que
na próxima pandemia os profissionais e as estruturas da
saúde comunitária estarão devidamente apetrechadas
para intervirem desde o primeiro momento?
A reduzida capacidade de diagnóstico laboratorial molecular
foi uma limitação importante na implementação de
medidas de contenção da pandemia. Em muitos países
houve dificuldades no acesso a reagentes. Mas noutros,
incluindo Portugal, a impreparação do sistema de saúde
para realizar testes moleculares foi evidente. A rede
dos sistemas de saúde e em particular os serviços de
Patologia Clínica dos hospitais demonstraram reduzida
competência no diagnóstico molecular e na operação
em condições de bio-segurança exigidas durante esta
pandemia. Esta situação é tanto mais intrigante quanto,
pelos menos em Portugal, existe um grande número de
biólogos moleculares que estão sub-aproveitados e facilmente
poderiam ser recrutados para os serviços hospitalares
proporcionando competências e qualidade no
diagnóstico molecular em toda a rede hospitalar. Esperemos
pois, que antes da próxima pandemia a orgânica
interna dos serviços de patologia clínica se empenhem
“
A PANDEMIA QUE VIVEMOS
TEM DIMENSÃO HISTÓRICA
E FICARÁ REGISTADA COMO
UMA DAS GRANDES PANDEMIAS
QUE AFECTARAM A HUMANIDADE,
DEIXANDO-NOS MUITAS LIÇÕES.
SERÁ QUE SERÃO APRENDIDAS?
SERIA BOM QUE NÃO
AS ESQUECÊSSEMOS.
”
em incorporar as competências da biologia molecular
capacitando os hospitais para executar de modo autónomo
diagnósticos moleculares que serão cada vez mais
a marca de qualidade da patologia clínica e de anatomia
patológica do século XXI.
Um último aspecto da atuação da saúde refere-se às metodologias
de controlo epidemiológico que são o principal
instrumento da saúde pública. Em 1926, Francisco
Castro Bicho afirma na sua tese de doutoramento da
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto que
"A luta contra as doenças infecciosas resume-se na participação
dos casos, no isolamento dos doentes, na vigilância
dos contactos e na desinfecção, além de algumas
outras medidas gerais de profilaxia".
Quase cem anos depois a abordagem é muito similar,
nomeadamente no que se refere às atividades de contact-tracing
e vigilância de isolamentos e quarentenas. É
no mínimo decepcionante que já dentro da terceira década
do século da informação, pudéssemos contar tão
pouco com as mais modernas tecnologias de informação
para combater uma doença que ameaça a saúde da
humanidade, a economia global e a estabilidade social à
escala planetária.
A pandemia que vivemos tem dimensão histórica e ficará
registada como uma das grandes pandemias que afectaram
a humanidade, deixando-nos muitas lições. Será que
serão aprendidas? Seria bom que não as esquecêssemos,
porque como disse George Santayana "os que esquecem
o passado estão condenados a repeti-lo". Ã
42 43
GH opinião
A PANDEMIA ANTECIPOU
A MUDANÇA TECNOLÓGICA
EM DÉCADAS
João Pedro Marques
Head of Integrated Health Solutions na Medtronic Portugal
Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades! A pandemia trouxe desafios
sem precedentes e uma necessidade
sem precedentes de uma
transformação tecnológica.
Desde o primeiro dia de pandemia
É por reconhecer isso que a Medtronic tem estado, desde
o dia 1, ao lado dos profissionais de saúde no combate
ao Covid-19. Não nos limitámos à doação de material
de proteção, à continuidade de apoio técnico em cirurgias
e de fornecimento das nossas tecnologias. Fizemos
mais! Disponibilizámos as especificações técnicas de uma
categoria de ventiladores, para possibilitar que outras empresas,
em caso de disponibilidade, pudessem ajudar a
fazer face à enorme procura e, através da nossa área de
Integrated Health Solutions (IHS), desenvolvemos duas soluções
para apoiar os hospitais e o SNS no esforço para
garantir cuidados de saúde a todos os doentes. Uma
visa a monitorização remota de doentes com Covid em
isolamento domiciliário. Outra, é uma plataforma tecnológica
que pretende ajudar a ultrapassar as dificuldades de
coordenação de cuidados, comunicação, partilha de conhecimento
e tomada de decisão entre profissionais de
saúde que estão à distância. Ambas foram disponibilizadas
gratuitamente durante a fase de crise.
A nova era onde o digital é predominante
O “novo normal” é uma realidade complexa que tem
obrigado a uma adaptação rápida de todos. A forma como
IHS redefiniu a sua proposta de valor tem uma dupla
dimensão: do lado da oferta, através do aumento a capa-
cidade de resposta e, do lado da procura, pela redução
da pressão sobre o sistema através da alteração da forma
de prestação de cuidados.
No que respeita à oferta, ajudamos os hospitais a tirar
máximo partido dos recursos existentes, humanos,
equipamentos e infraestrutura. Por exemplo, através de
soluções para o bloco operatório, suportadas em inteligência
artificial e localização em tempo real, que permitem
programar de forma mais eficiente a atividade diária,
melhorar a experiência do utente e família, reduzir o
stress dos profissionais e dar à gestão uma previsão a 6,
9 ou 12 meses da evolução da lista de espera cirúrgica
e respetivos custos associados, através da simulação de
diferentes cenários.
No que respeita à procura, o objetivo é reduzir visitas desnecessárias
aos hospitais, através do redesenho e digitalização
de percursos e da prestação de cuidados à distância.
Também nesta dimensão, apoiamos o hospital a
aumentar a atividade em ambulatório e a reduzir os tempos
médios de internamento, as complicações e readmissões.
Aqui, a introdução de soluções integradas como os
processos clínicos eletrónicos, adaptáveis e flexíveis, para
digitalização de percursos clínicos, monitorização pré
e pós cirúrgicos, comunicação entre a equipa clínica e o
utente, e disponibilização de informação para capacitação
do doente e cuidadores, são uma realidade cada vez
mais premente.
Outro exemplo, é criação de unidades de monitorização
remota de doentes com dispositivos cardíacos ou bombas
de insulina. São oportunidades disponíveis tecnologicamente,
que permitem dirigir o esforço dos profissionais
de saúde para os doentes que mais precisam, quando
mais precisam, e libertá-los de atividades que não
criam valor.
Esta é uma das mais valias da inovação tecnológica, contribuir
simultaneamente para a melhoria na prestação de
cuidados, a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a
satisfação dos profissionais de saúde.
O sucesso de uma solução em saúde tem de ser medido
pelo valor criado, pela melhoria dos outcomes (clínicos,
processo, satisfação de utentes e profissionais) e pela redução
de custos.
Sustentadas em quatro pilares, lean, digital, agile, e conhecimento
em saúde, as soluções que temos implementado
com sucesso integram:
• Gestão da mudança, centrada nos utentes e profissionais
de saúde;
• Redesenho e digitalização de processos e percursos clínicos;
• Adoção de soluções de IT, incluindo desenvolvimento
de conteúdos e fluxos de informação, que permitem medir
e perseverar no tempo as mudanças e o valor criado.
Mas a adoção de algumas soluções tecnológicas implica
também uma mudança de paradigma na contratualização
pública. Uma contratação inovadora centrada no valor
criado e não no custo, onde o risco é partilhado, e não
fica apenas na esfera do hospital. Desta forma será possível
continuar a integrar a inovação tecnológica no SNS
de forma sustentável.
O essencial: componente humana
Por último gostaria de sublinhar, neste contexto tecnológico
e digital, a componente humana, a confiança, empatia
e compaixão que caracteriza e vincula a relação entre
os profissionais de saúde e os doentes. As soluções
tecnológicas que abordamos têm, no contexto da prestação
de cuidados de saúde, um desafio que vai muito
além da eficiência.
A complexidade inerente a um contexto onde o equilibro
entre a tecnologia e a vertente humana são fundamentais.
E no equilíbrio entre as duas componentes estará
o futuro, porque é também nesta harmonia que
nós na Medtronic conseguimos alcançar a nossa missão
de aliviar a dor, restabelecer a saúde e prolongar a vida
dos doentes. Ã
44 45
GH espaço ensp
"BARÓMETRO COVID 19
OPINIÃO SOCIAL": O QUE
PENSAM OS PORTUGUESES
EM TEMPO DE COVID 19?
Ana Rita Pedro Ana Gama Ana Marta Moniz Patrícia Soares Pedro Laires Sónia Dias
Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP-NOVA),
Centro de Investigação em Saúde Pública (CISP) & Comprehensive Health Research Centre (CHRC)
O
surgimento da SARS-CoV-2 e, consequentemente,
da Covid-19 foi um fenómeno
inédito nas nossas sociedades
atuais, completamente imprevisível, para
o qual ninguém estava preparado.
É atualmente incontornável que esta pandemia veio trazer
novos desafios à comunidade global e à humanidade,
reforçando o papel da Saúde Pública na sociedade. Os
Governos foram obrigados a tomar decisões estratégicas
e políticas sem precedentes, um pouco por todo o
mundo. As principais medidas de combate a esta pandemia
- nomeadamente o distanciamento social, o confinamento,
a quarentena e o isolamento - tiveram, e ainda
têm, um enorme impacto na vida dos cidadãos, que têm
tentado adequar-se a esta nova forma de viver em sociedade.
Um dos grandes desafios prende-se com o facto
de esta pandemia afetar todas as populações e grupos
da sociedade, embora de forma diferente, acentuando
ainda mais as já existentes desigualdades sociais e em
saúde nas nossas sociedades.
Face à ausência de informação oficial sobre como os cidadãos
estão a vivenciar a pandemia e os seus efeitos
reais na vida do quotidiano, a Escola Nacional de Saúde
Pública da Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NO-
VA) lançou, em março, o projeto de investigação “Baró-
metro Covid-19: Opinião Social - O que pensam os portugueses
em tempo de Covid-19?” (https://barometrocovid-19.ensp.unl.pt/opiniao-social/).
Procurando dar voz
aos cidadãos, o projeto pretende acompanhar a evolução
da pandemia provocada pela Covid-19 e identificar as perceções
da população sobre as medidas adotadas neste período
e o seu impacto na sua saúde, bem-estar e quotidiano.
Através de um inquérito online dirigido à população, pretende-se
monitorizar, ao longo das semanas, as opiniões,
perceções e comportamentos das pessoas quanto a algumas
áreas fundamentais da Saúde Pública no momento
atual. Analisam-se questões relacionadas com as medidas
veiculadas pelas autoridades de saúde, a capacidade de
resposta dos serviços de saúde e do governo face à pandemia,
as principais fontes de informação sobre a Covid-
-19 utilizadas, as medidas individuais de proteção adotadas,
o impacto das medidas nas atividades do seu quotidiano,
a rede social de apoio, os estilos de vida e consumos,
o impacto na saúde física e mental, a perceção de risco
face à Covid-19 e a utilização dos serviços de saúde neste
período. O questionário, de preenchimento individual e
anónimo, pode ser respondido por cada participante apenas
uma vez ou regularmente. Tratando-se de um questionário
dinâmico e adaptável a cada momento da evolução
da pandemia e das respostas das autoridades de
saúde, periodicamente o questionário é complementado
com blocos temáticos de perguntas adequados à fase da
pandemia que o país atravessa. Do mesmo modo, algumas
perguntas vão sendo suspensas por se considerar que
em dado momento não são as mais pertinentes.
Com cerca de 190 mil respostas obtidas ao longo de 15 semanas
de recolha de dados, o Barómetro Covid-19: Opinião
Social permitiu analisar de forma rápida a situação
atual e identificar tendências ao longo do período de confinamento,
das primeiras fases de desconfinamento e da
evolução dinâmica da pandemia, tornando-se numa base
de informação para políticas e áreas prioritárias de ação.
Dois meses após o início do confinamento, o Barómetro
Covid-19: Opinião Social confirmou uma intensificação
das sociais com potencial impacto na saúde. Uma análise
dos dados mostrou que foram os grupos socialmente mais
vulneráveis os que mais sofreram um agravamento da sua
situação social e económica, com uma em cada quatro
pessoas com menos de 650€ de rendimento (agregado
familiar) a reportar ter perdido totalmente o seu rendimento,
enquanto que nas categorias de rendimentos
superiores a 2500€, apenas 6% das pessoas perderam
o rendimento. O Barómetro Covid-19: Opinião Social
mostrou também que os grupos socialmente mais vulneráveis
foram os que ficaram mais expostos ao risco de
contrair Covid-19. Durante o período de confinamento
foi nos escalões de rendimento mais baixos que se verificou
a maior proporção de pessoas a ter de ir para o
local de trabalho para exercer a sua atividade: 54% das
pessoas que ganhava menos de 650€ teve de se deslocar
para o local de trabalho, enquanto que 75% das pessoas
com rendimentos superiores a 2500€ desenvolveram a
sua atividade profissional em teletrabalho. Estas diferenças
foram ainda mais acentuadas no que respeita ao nível
de escolaridade, com os dados a mostrarem que foram
as pessoas menos escolarizadas as que podem ter estado
mais expostas: 76% das pessoas com escolaridade até ao
9º ano tiveram de ir para o local de trabalho durante o
período de confinamento, enquanto que esta proporção
foi de 26% nas pessoas com ensino superior.
O impacto da pandemia foi também sentido de forma
desigual nos diferentes grupos etários. O Barómetro Covid-19:
Opinião Social expôs que as gerações em idade
ativa (até aos 45 anos) foram os grupos etários mais afetados
pela suspensão da atividade profissional, com a perda
de rendimentos mais significativa e que mais tiveram
de desempenhar a sua atividade no local de trabalho.
O Barómetro Covid-19: Opinião Social analisou e deu
também a conhecer a evolução da utilização dos serviços
de saúde durante a pandemia. Nas primeiras semanas de
confinamento, das pessoas que reportaram ter necessitado
de uma consulta médica, mais de metade (57,6%) não
a teve, ou porque os serviços a desmarcaram (35,2%),
Gráfico 1
ou porque o próprio preferiu não ir (22,4%). O medo
de contrair Covid-19 surge como a principal razão para
preferir não ir à consulta (Gráfico 1).
Ao analisar esta questão em função do escalão de rendimento,
observou-se um gradiente social em que, tendencialmente,
os escalões mais baixos revelaram proporções
maiores de pessoas que, tendo necessidade, não
tiveram consulta.
Quando questionadas sobre a necessidade de ir à urgência
em tempos de Covid-19, dos 5,1% (n=254) que reportaram
ter sentido esta necessidade, mais de um terço
decidiu não ir (34%), situação que foi mais frequente nos
idosos. Também quando questionadas sobre a necessidade
de fazer um tratamento num serviço de saúde em tempos
de Covid-19, dos 7% que referiu ter precisado de fazer
um tratamento (n=350), cerca de 34% não o fez porque
o serviço desmarcou e 28% porque o próprio decidiu
não fazer, e apenas 37% o fez. De referir ainda que
foram mais as mulheres e os idosos quem reportou não
ter feito tratamento. Porém, a partir da primeira fase do
desconfinamento, começámos a assistir a uma inversão
da tendência, com cada vez mais pessoas a reportarem
ter tido consultas médicas e a recorrerem às urgências
em caso de necessidade.
O Barómetro Covid-19: Opinião Social identificou precocemente
efeitos negativos da pandemia ao nível da
saúde mental. Nas primeiras semanas de confinamento,
um quarto dos respondentes considerou sentir-se agitado,
ansioso, em baixo ou triste “todos os dias” ou “quase
todos os dias”. Também 55% dos participantes admitiu
que se sentia assim “alguns dias” (Gráfico 2). }
46 47
GH espaço ensp
Gráfico 2
Revelou ainda que o impacto da pandemia ao nível da
saúde mental estava a ser sentido de forma desigual, considerando
o sexo e a idade da população. As mulheres
e o grupo etário que tende a ser mais ativo profissionalmente
(com idade entre 26 e 65 anos) reportaram
mais sentirem-se ansiosos ou tristes durante o período
de confinamento.
Ainda sobre a saúde mental da população, uma análise
mais aprofundada, destacou-se que 38% dos inquiridos
revelou sentir-se mais agitado ou ansioso comparativamente
com o período antes da pandemia. Também
quase um terço reportou problemas relacionados com
o sono, 25% sentiu que não conseguia fazer tudo o que
tinha de fazer e 23% referiu estar sempre a pensar em
Covid-19. Em suma, 82% dos respondentes sentiu pelo
menos um efeito negativo na sua saúde mental, desencadeado
pelo período que se viveu em confinamento.
Foram os homens quem mais frequentemente reportou
não ter sentido nenhuma alteração em relação ao período
anterior (25% dos homens, em comparação com 14%
das mulheres).
Em relação ao que as pessoas fizeram para lidar melhor
com a situação, de forma muito destacada, salienta-se o
facto de os respondentes terem mantido o contacto com
os familiares e amigos, mesmo que à distância (80%). Mais
de metade dos respondentes procurou manter rotinas
para os seus dias e aproveitou o tempo também para
fazer coisas que gostava. Cerca de 45% referiu que limitou
a quantidade de informação que via sobre Covid-19.
Mas uma parte dos inquiridos também sentiu dificuldade
para lidar com os tempos de distanciamento social e isolamento.
No entanto, uma percentagem considerável de
participantes revelou que aumentou os comportamentos
nocivos para a saúde, com 16% a admitir comer mais
doces, gorduras ou comidas mais calóricas e 8% a reconhecer
fumar mais ou beber mais álcool.
No que respeita à ansiedade relacionada com estes comportamentos,
verificou-se que quem reportou comportamentos
prejudiciais para a saúde reportou sentir-se ansioso
com mais frequência. No sentido inverso, as pessoas
que praticaram atividade física e quem ocupou o tempo
em casa também com atividades que lhe davam prazer
foram quem referiu sentir-se menos vezes ansioso. Adicionalmente,
verificaram-se diferenças entre mulheres e
homens no que toca às estratégias adotadas para lidar
com a situação. Foram mais as mulheres que mantiveram
contacto com a família e amigos, mesmo que à distância,
que procuraram manter rotinas e que limitaram a quantidade
de informação que viam sobre Covid-19. Contudo,
também foram as mulheres que afirmaram consumir
mais alimentos hipercalóricos. Os homens aproveitaram,
mais do que as mulheres, o tempo em casa também para
fazerem coisas de que gostavam (Gráfico 3).
O Barómetro Covid-19: Opinião Social também seguiu a
evolução da expectativa que as pessoas tinham sobre o
tempo que demoraria para que as suas vidas voltassem à
normalidade. O número de pessoas que esperavam que
a sua vida voltasse ao normal dentro de 1 a 3 meses baixou
consideravelmente à medida que o tempo foi passando,
de 60% para 20%. Adicionalmente, o número de
pessoas que julgavam que demoraria mais de 3 meses, ou
que não sabiam quanto tempo demoraria para que a vida
Gráfico 3
voltasse ao normal teve um aumento de cerca de 75%.
A natureza dinâmica do Barómetro Covid-19: Opinião
Social permitiu que se adaptasse a uma nova fase da pandemia
e que continuasse a crescer, tendo sido, recentemente,
um dos projetos financiados pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia - programa “Research 4 Covid-19”.
O questionário online que, entre março e julho de 2020,
monitorizou as perceções e comportamentos dos portugueses
perante a pandemia da Covid-19, entrou agora
numa nova etapa, focada nos grupos mais vulneráveis da
população e nas desigualdades sociais e em saúde, com
o objetivo de contribuir para reaproximar o cidadão dos
cuidados de saúde. O projeto mantém o inquérito online
com participação periódica e contempla ainda o reforço
de redes de investigação internacionais, nomeadamente
através do “Termômetro Covid-19: Opinião Social Brasil”,
e parcerias com instituições de prestação de cuidados de
saúde, associações de doentes e representantes das profissões
de saúde.
Dada a natureza do Barómetro Covid-19: Opinião Social,
um estudo que recolhe, junto das pessoas, a sua perceção
neste período de crise provocada pela Covid-19, prevê-se
que este continue a contribuir para a vida dos portugueses.
Pretende-se formar uma base de conhecimento a três níveis:
• Ao nível da decisão politica, para a formulação, manutenção
e/ou reformulação de medidas das autoridades de
saúde e que se constitua uma base de suporte às decisões
por estas veiculadas;
• Ao nível da decisão de gestão, para, através da análise
de dados mais localizada, a formulação de decisões ao nível
da gestão das unidades de cuidados de saúde;
• Ao nível individual, para a promoção da literacia em
saúde dos cidadãos, potenciando as decisões individuais
informadas.
Para tal, até ao final da pandemia pretende-se continuar a:
• Monitorizar os efeitos da evolução da Covid-19 na população,
na perspetiva dos cidadãos;
• Identificar vulnerabilidades sociais e em saúde resultantes
do confinamento;
• Identificar e contribuir para operacionalização de estratégias
que melhorem o acesso aos serviços e reduzam desigualdades;
• Contribuir para a reaproximação do cidadão aos serviços;
• Otimizar a resposta do SNS às próximas fases.
O questionário pode ser respondido em:
https://rb.gy/z2a1fa Ã
48 49
GH saúde pública
COMUNICAÇÃO EM SAÚDE
EM TEMPOS DE PANDEMIA
Gustavo Tato Borges
Vice-presidente da Associação Nacional
dos Médicos de Saúde Pública
Ao longo dos tempos, o ser humano
sempre sentiu necessidade de comunicar,
necessidade de partilhar informação
e, por vezes, de registar algo para
a posteridade. Encontramos exemplos
dessa necessidade em vários locais como nas pinturas
rupestres, nas paredes dos monumentos de tempos antigos,
em pinturas, papiros e outros documentos escritos.
E essa partilha, por vezes, precisava de ser mais rápida,
tendo alguns povos utilizado sinais de fumo como meio
de transmissão de um alerta entre povoações vizinhas.
Esta necessidade tornou-se uma vantagem evolutiva, permitindo
que os seres humanos se organizassem, ajudassem
e contribuíssem para a melhoria e proteção da sua
comunidade, promovendo mais união, mais proteção e
melhor qualidade de vida. Comunicar ganhou uma importância
significativa e começou a ter várias aplicações
na vida de cada um.
A aplicação da Comunicação à área da Saúde levou ao
desenvolvimento de uma forma de intervenção da Saúde
Pública: a Comunicação em Saúde. Esta diz respeito ao
estudo e utilização de estratégias de comunicação para informar
e para influenciar as decisões dos indivíduos e das
comunidades no sentido de promoverem a sua saúde.
Esta área de intervenção da Saúde Pública procura capacitar
os cidadãos para que tomem decisões conscientes e
protejam e promovam a sua saúde.
O processo de comunicação envolve um emissor, um
canal, uma mensagem e um recetor e é fundamental que
o emissor utilize uma linguagem e um canal adequados
ao recetor. Se a mensagem emitida pelo emissor utilizar
uma linguagem que o recetor não entenda ou um canal
que não se adeque, por mais correta que seja, a mensagem
acaba por não chegar ao destinatário, tornando o
processo comunicacional disfuncional. Para o sucesso de
todo este processo, importa saber qual a mensagem que
se pretende transmitir, a quem nos queremos dirigir e de
que forma, adaptando a mensagem ao público-alvo. Por
exemplo, se pretendemos comunicar algo a um público
jovem, será mais adequado utilizar as redes sociais e uma
linguagem mais informal, mas se o objetivo é chegar a
uma população mais velha, os órgãos de comunicação
social, por exemplo o telejornal ou os jornais, e uma linguagem
mais formal serão mais eficazes.
Ao longo da pandemia, em Portugal, temos assistido a
muitas tentativas de comunicação mas que não foram
chegando ao recetor (o cidadão). Mensagens complexas,
técnicas, com palavreado científico, mutas vezes desconhecido
da população geral, divulgação de números e estatísticas,
que criaram muito ruído e várias interpretações
erradas. Um exemplo recente prende-se com a proporção
de casos cuja transmissão se explica por transmissão
familiar. A DGS divulgou que aproximadamente 66% dos
casos tinham transmissão familiar. Começaram-se a ouvir
vozes contra o confinamento porque obrigava as pessoas
a permanecer no seu agregado familiar, o local de maior
risco de contágio. Mas, nos últimos dias, foi noticiado que
era desconhecida a fonte de contágio em mais de 80% de
todos os casos. Ora, esta informação acaba por demonstrar
que apenas 10% de todos os casos comprovadamente
ocorrem no seio familiar. A população, quando recebe
esta mensagem nova, acaba por não conseguir destrinçar
onde está o maior risco de transmissão e qual a melhor
forma de se proteger. Isto para não entrar no campo das
contradições (não se usa máscara/é obrigatório uso de
máscara, não se podem realizar concertos/podem realizar-se
ajuntamentos sindicais, entre outras).
Tem-se tornado claro, ao longo destes 11 meses de pandemia
(8 meses em Portugal) que Portugal não delineou
um plano de comunicação específico para esta situação.
Com a definição de mensagens chave para enviar para a
população, com a promoção da utilização de meios de
comunicação adaptados às diferentes faixas etárias (criação
de vídeos no TikTok, promoção de mensagens por
influencers no Instagram de forma atempada, publicação
de recomendações oficiais com linguagem acessível, etc.),
com o envio de alertas para a população sobre quais as
situações de maior risco para a infeção por Covid-19.
Em vez de um plano que capacitasse as pessoas, o Governo
e a DGS basearam a sua estratégia de comunicação
em conferências de imprensa técnico-políticas, numa
linguagem técnica e na emissão de mensagens que,
apesar da boa vontade dos nossos dirigentes, não foram
capazes de chegar aos destinatários.
Mas Comunicação em Saúde não envolve apenas a comunicação
com a população. Engloba também a comunicação
com e entre instituições. E também aqui se verificou
que o sucesso de comunicação foi limitado. Apesar
da criação de uma ferramenta, específica para a Covid-19,
de monitorização de doentes e de comunicação entre
profissionais de saúde, ainda hoje continuam dúvidas entre
os colegas sobre altas de utentes colocados em isolamento
profilático (com várias situações de utentes a terem
alta antes dos 14 dias previstos), dúvidas sobre o documento
que justifica as faltas de um cidadão que fez teste
por sintomas mas veio negativo, dúvidas sobre a forma
como o doente deve ser introduzido na plataforma pelos
hospitais, de forma a ser acompanhado pelo seu Médico
de Família, dúvidas sobre declarações de alta para os alunos
poderem regressar às aulas e até dúvidas sobre se
um utente pode mesmo ter alta ao fim de 10 dias após o
diagnóstico ou o início de sintomas.
Outro dos problemas vividos todos os dias pelos utentes
e pelos profissionais de saúde, são as mensagens contraditórias
emitidas por diferentes atores do SNS. A Linha
SNS24, os Médicos de Família, os Médicos de Saúde Pública
e os Médicos Hospitalares, muitas vezes, não falavam
da mesma forma, enviando mensagens contraditórias para
os seus utentes que não sabem como atuar perante
uma nova situação que lhes virou o mundo do avesso. E
a comunicação entre hospitais, para uma mais efetiva gestão
do número de camas de internamento geral e de cuidados
intensivos, apenas conheceu melhorias quando alguns
hospitais ficaram atolados de doentes e não os conseguiam
atender nem encaminhar para outro serviço, criando
caos em alguns hospitais do país.
Esta pandemia veio demonstrar algo extremamente importante:
é fundamental pensar e elaborar um plano de
comunicação nacional. Um plano de comunicação centrado
nos cidadãos que unifique as mensagens a transmitir,
que defina quais os canais apropriados para chegar às diferentes
faixas etárias de forma relevante, que adeque a sua
linguagem para que os cidadãos a entendam e, cada vez
mais, tomem decisões que permitam promover a sua saúde.
Um plano de comunicação entre os diferentes atores
do SNS, que permita uma atuação concertada, uma união
em torno das mensagens a transmitir (com uma linguagem
unificada e clara), uma articulação rápida entre os CSP e
os Hospitais para um melhor atendimento dos cidadãos e
fomente um sentido de união e cooperação entre todos,
trabalhando em conjunto em prol da população.
Sem a definição, a priori, de um plano de comunicação
efetivo e global, que unifique o SNS e seja orientado
para o cidadão e para a melhoria da articulação dos serviços,
a mensagem que queremos transmitir vai ser alvo
de muito ruído, resultando numa enorme dificuldade de
compreensão, não atingindo o seu objetivo maior: elucidar
o cidadão e promover a melhoria dos níveis de
saúde da população. Ã
50 51
3
4
5
1
DIÁRIO DE UMA
QUARENTENA
6
Os trabalhos apresentados foram realizados
no contexto do projeto “Diário de Quarentena”,
um instrumento de intervenção
do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa
com utentes em ambulatório cujo objetivo
era a gestão das suas atividades de vida diária e manutenção
do bem-estar. Cada diário foi dividido em atividades
de autocuidados, atividades produtivas e de lazer, de forma a
conseguir que cada utente tivesse um desempenho satisfatório
na sua rotina diária. Algumas das atividades refletiam-
-se em desafios de expressão criativa, com temáticas focadas
na capacidade de gestão emocional e de resiliência nesta
era de pandemia.
Outros dos desenhos que expomos, foram publicados no
livro “A história contada pelos nossos super-heróis”, editado
pelo IPO de Coimbra para assinalar o dia Mundial da
Criança de 2020. Ã
2
1. Teresa S., "Como me sinto em confinamento", acrílico e pasteis sobre tela 2. João Nobre Loureiro, filho da TSDT Joana
Catarina F. Nobre, Laboratório de Patologia Clínica 3. Beatriz Freire, sobrinha da Enf.ª Catarina Venda Silva, Hospital de Dia
4. Maria G. N., "O meu jardim interior", pastel seco e caneta sobre papel 5. Maria B. M., "O que vejo da minha janela", óleo
sobre tela 6. Margarida Sousa, filha da Enf.ª Isabel Maria P. Lopes, Bloco Operatório 7. Ricardo C., "Em tempos de pandemia",
marcadores sobre papel 8. Gustavo Valério, filho da Assistente Social Célia Maria M. Tinoco, Serviço Social.
7
8
52
53
GH direito biomédico
DISCUSSÃO JURÍDICA
EM TORNO DA UTILIZAÇÃO
DE NANOTECNOLOGIA S
NO COMBATE À COVID 19
Eduardo António da Silva Figueiredo
Investigador Associado do Centro de Direito Biomédico,
Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra
Afirmou Bryan Walsh que, ao longo
da história, “nada ceifou mais vidas
humanas do que as doenças infectocontagiosas”
1 . O vírus Sars-CoV tem
sido responsável por uma das maiores
pandemias que a humanidade já vivenciou. Sempre cabe
relembrar, porém, que a Covid-19 não é, infelizmente, a
única pandemia com que temos de conviver hodiernamente.
Há muitas outras “pandemias” que, sendo bem
mais antigas e tão ou mais preocupantes, não devem,
agora, ser esquecidas ou ignoradas, como é o caso da
guerra e dos conflitos armados, das violações generalizadas
e sistemáticas de direitos humanos, da(s) pobreza(s),
da desigualdade e da iniquidade, do(s) totalitarismo(s), da
corrupção e do populismo iliberal.
No quadro da “nanobiotecnociência” 2 , uma das maiores
pandemias com que temos de lidar é, indubitavelmente,
a profunda crise para que tem resvalado a ciência e a
narrativa em torno do avanço científico-tecnológico. Aos
poucos, radicalizam-se os argumentos - fruto, essencialmente,
da multiplicação de reações “tecnofílicas” e “tecnofóbicas”
ao progresso - e ganha terreno um conjunto
de abordagens discursivas de matriz schmittiana que elevam
o investigador e o cientista ao estatuto de “amigo”
ou de “inimigo”, muitas das vezes a partir da mobilização
de tópoi contraditórios, que bem revelam a complexida-
de em torno do apelidado “dilema do duplo uso”.
De um lado, está a ciência ao serviço da sociedade e do
planeta, prosseguindo finalidades louváveis e socialmente
valorizadas; do outro, a ciência perversa que viabiliza
a prática de atos nefastos e capazes de colocar em causa
os mais básicos e fundamentais direitos e liberdades
da pessoa - e até, quem sabe, a própria sobrevivência
da espécie humana e das demais espécies que compartilham
connosco este planeta, já hoje largamente ameaçado
3 . E note-se, mesmo quando a utilização da tecnociência
é destinada à prossecução de fins socialmente
louvados ou louváveis - como a proteção da saúde, do
ambiente ou do bem-estar humano - a verdade é que os
inúmeros riscos envolvidos (desconhecidos ou, pelo
menos, incertos) obrigam os indivíduos a tomar as suas
decisões sob um “véu de ignorância” (J. Rawls), não raras
vezes propiciador de uma “heurística do medo” (Hans
Jonas), a qual, nos últimos tempos, se tem apresentado
numa versão cada vez mais radicalizada e claramente
desrazoável, ameaçando impedir o avanço tecnocientífico
e, dessa forma, o usufruto das vantagens que daí
podem advir.
O(s) contributo(s) da nanotecnociência no combate
à pandemia da Covid-19
Num texto publicado na revista Nature Nanotechnology,
em abril de 2020, Kostas Kostarelos afirma que sempre
ensinou aos seus estudantes que “os vírus são as nanopartículas
mais belas, espertas e capazes” 4 . São de destacar,
como refere o reputado Professor da Universidade
de Manchester, as suas impressionantes caraterísticas estruturais
e os seus diferentes esquemas biológicos para
transferir o seu material genético para células-alvo, infetando-as
e forçando-as a expressar determinadas proteínas.
No entanto, com o significativo agravamento da pandemia
Covid-19, Kostarelos admite sentir-se algo culpado
pelo seu profundo fascínio relativamente aos vírus. Afinal
de contas, questiona o Professor, “como é que nanopartículas
tão belas podem criar tanta perda, destruição e
devastação humana? Como é que tanta beleza à nanoescala
se pode transformar, de um momento para o outro,
numa fera selvagem indomável em larga escala?” 5
Estamos em crer que a perplexidade de Kostarelos é,
atualmente, partilhada pela maior parte das pessoas. As
nanopartículas não devem, no entanto, ser encaradas
como um inimigo comum. Bem pelo contrário! Em boa
verdade, a nanotecnociência poderá revelar-se essencial
no combate à atual pandemia. Contornando, mas não
esquecendo, os inúmeros produtos nanoestruturados
que se têm revelado fundamentais, inter alia, na proteção
dos profissionais de saúde que estão na linha da frente
do combate à pandemia, limitaremos a nossa análise ao
domínio da nanomedicina, enquanto “conjunto de práticas
(médico-farmacológicas) de prevenção, diagnóstico
e tratamento de diferentes enfermidades, que requerem
a utilização de tecnologias baseadas na interação entre o
corpo humano e os materiais, estruturas e dispositivos
cujas propriedades se definem à nanoescala.” 6
Uma das mais eficazes estratégias no combate à pandemia
é, sem dúvida, a deteção prematura das pessoas infetadas
pelo Sars-CoV (e note-se, uma percentagem elevada
dos casos de infeção diz respeito a portadores assintomáticos
ou que apenas revelam sintomas leves ou
quase impercetíveis da doença). Neste contexto, os sistemas
de nanodiagnóstico - os quais emergem do desenvolvimento
de sistemas de análise e imagem para deteção
de enfermidades no momento mais precoce possível, }
54 55
GH direito biomédico
“
A IDENTIFICAÇÃO ANTECIPADA
ROGAMOS
DAS PESSOAS INFETADAS
PODERÁ NÃO SÓ PREVENIR
E IMPEDIR O ALASTRAMENTO
DA DOENÇA E AUXILIAR-NOS
NA IDENTIFICAÇÃO DE FOCOS
DE CONTÁGIO, MAS TAMBÉM
PROMOVER E FACILITAR
O TRATAMENTO DE QUEM
JÁ PADECE DA ENFERMIDADE.
tanto in vivo, como in vitro 7 - podem apresentar inúmeras
potencialidades. Veja-se, por exemplo, o desenvolvimento
de testes para detetar o vírus SARS-CoV, os quais
são criados com recurso a nanobiossensores fabricados à
base de ouro manipulado à nanoescala e se caraterizam
pelo seu caráter económico e elevada precisão. 8 A identificação
antecipada das pessoas infetadas poderá não só
prevenir e impedir o alastramento da doença e auxiliarnos
na identificação de focos de contágio, mas também
promover e facilitar o tratamento de quem já padece da
enfermidade. 9 E note-se, alguns contributos neste domínio
têm sido dados pelo nosso Laboratório Internacional
Ibérico de Nanotecnologia, sediado em Braga.
Por outro lado, podem também revelar-se de extrema
utilidade os sistemas de nanoterapia, i.e. “sistemas ativos
que contêm estruturas de reconhecimento para transportar
e libertar medicamentos exclusivamente em células
ou zonas afetadas por algum tipo de patologia”. 10 No
fundo, as nanopartículas poderão surgir como elementos
fundamentais no transporte e direcionamento dos agentes
terapêuticos às células afetadas. A utilização de vetores
nanoestruturados não só permite que se conduza
o agente terapêutico a certas partes do corpo que, de
outra forma, seriam inalcançáveis, mas também garante
que o mesmo será transportado apenas às partes do corpo
em que seja necessário (com exclusão, portanto, das
demais). O resultado será uma maior eficácia e segurança
dos tratamentos utilizados. 11 É essa a razão pela qual
a nanotecnologia está a ser empregue, embora não de
forma exclusiva (os vetores virais continuam a ser os mais
utilizados), por algumas equipas que têm trabalhado arduamente
com vista ao desenvolvimento de uma vacina
para combater a Covid-19.
Breve roteiro para uma discussão jurídica
1. Desde logo, é absolutamente imperioso assegurar
que são respeitadas todas as normas (internas e internacionais)
vigentes em matéria de ensaios clínicos. Não
é admissível que, por momento algum, a urgência do
combate à pandemia, nomeadamente no que se refere
ao desenvolvimento de uma vacina, justifique comportamentos
que possam fazer esquecer o vetor normativo-axiológico
do primado da pessoa humana sobre os
interesses da ciência e da sociedade como um todo,
o qual se destina a salvaguardar a dignidade dos participantes
e o respeito escrupuloso pelos seus direitos
fundamentais e humanos. Sem prejuízo da necessidade
de alguma desburocratização ao longo do processo
de investigação e de experimentação, os participantes
devem continuar a ser devidamente esclarecidos da natureza,
dos objetivos, dos riscos e dos benefícios dos ensaios
clínicos e devem consentir livremente quanto à sua
participação nos mesmos. As entidades reguladoras na
matéria devem, mais do que nunca, zelar pelo cumprimento
destas normas, assegurando a validade científica
das investigações e o respeito pela vida, integridade pessoal,
autonomia e privacidade de todos os participantes.
2. No que respeita à identificação, avaliação, gestão e
comunicação do risco, defendemos uma resposta precaucional
intrinsecamente proporcional, baseada no respeito
por um imperativo de diligência devida - na linha,
aliás, de Edgar Morin quando afirmava que “conhecer
e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente
certa, mas dialogar com a incerteza”. 12 Não podendo desenvolver
este tópico além do essencial, destacaremos
a importância (1) da observação de todos os standards
ético-jurídicos fixados à escala nacional e internacional
(por exemplo, o respeito pelos princípios de boas práticas
clínicas, o qual deve ser assegurado por entidades
administrativas independentes; a ponderação rigorosa de
riscos e benefícios; o respeito pelo direito a um consentimento
livre e esclarecido; o controlo ético e administrativo
dos ensaios clínicos; o reconhecimento de um
imperativo de fornecimento gratuito e compassivo; a
efetivação do direito à compensação por danos); (2) da
adoção de abordagens safe-by-design, as quais devem ser
norteadas pela chamada “gestão positiva do erro”; (3)
do desenvolvimento de mecanismos e sistemas de vigilância
e monitorização da saúde dos indivíduos que, nesta
altura atípica, se encontrem anormalmente expostos
a nanomateriais (logrando-se identificar, o mais rápido
possível, quaisquer indícios da verificação de potenciais
efeitos tóxicos ou reações adversas); (4) da implementação
de mecanismos de “nanodiálogo” que favoreçam a
comunicação do risco. Enfim, é imperioso que se adote
uma estratégia precaucional não paralisante, mas cautelosa
ou de “pequenos passos” (Barbosa de Melo).
3. Por fim, no que respeita à prestação do necessário
consentimento esclarecido, pode questionar-se como
será possível que alguém seja devidamente informado -
ou, indo ainda mais longe, esclarecido! - sobre os riscos
da utilização de materiais nanoestruturados em vários
objetos, produtos ou dispositivos médico-farmacológicos
essenciais para combater a pandemia, quando os
mesmos não são conhecidos (limitação qualitativa na
comunicação do risco) ou, sendo-o, se encontram envoltos
em incógnitas e imprecisões quanto à probabilidade
de que venham a materializar-se ou à natureza
e extensão dos seus efeitos sobre a saúde humana (limitação
quantitativa na comunicação do risco)? Parece-
-nos que a solução só poderá passar pela defesa de uma
espécie de consentimento esclarecido possível, isto é,
cada pessoa deve ser devidamente esclarecida de todos
os riscos que sejam conhecidos, graves e antecipáveis
(quer sejam mais usuais ou mais raros), de preferência
tendo em conta as circunstâncias específicas do caso
concreto. E o que fazer relativamente aos riscos desconhecidos
ou apenas parcialmente conhecidos? Bem,
nesses casos, o paciente deve ser convenientemente
esclarecido acerca das maiores ou menores limitações
qualitativas e quantitativas do conhecimento científicotecnológico
na comunicação desse(s) risco(s), consentindo
o indivíduo, no fundo, com o facto de não poder
ser esclarecido, na totalidade ou em parte, relativamente
ao(s) mesmo(s) (e só e apenas em relação a esses!).
Muitos dirão que um tal entendimento vem fazer pesar
sobre os participantes e pacientes um incomportável
ónus, colocando-os na posição de principais responsáveis
pelos danos causados por efeitos tóxicos e reações
adversas que, eventualmente, venham a sofrer. Não nos
parece, porém, que seja concebível uma solução mais
vantajosa, já que, salvo melhor juízo, ninguém está em
melhores condições do que a própria pessoa para tomar
decisões que, visando a melhoria do seu estado de
saúde e do seu bem-estar, possam, no entanto, revelarse
potencialmente danosas.
Temos uma longa e dura batalha pela frente. Apesar
de “cautela” ser, sem dúvida alguma, uma palavra que
não pode ser olvidada nos tempos que correm, rogamos
a todos os leitores que não se deixem dominar
por uma incontrolada “heurística do medo”. Como em
tantos outros momentos da história, conseguiremos
vencer esta dura batalha. E lembrem-se, não precisamos
de combater a Covid-19 sozinhos... a ciência e a (nano)
tecnologia estão aí para nos ajudar! Ã
“
A TODOS OS LEITORES
QUE NÃO SE DEIXEM DOMINAR
POR UMA INCONTROLADA
“HEURÍSTICA DO MEDO”.
COMO EM TANTOS OUTROS
MOMENTOS DA HISTÓRIA,
CONSEGUIREMOS VENCER ESTA
DURA BATALHA. E LEMBREM-SE,
NÃO PRECISAMOS DE COMBATER
A COVID-19 SOZINHOS.
” ”
1. Walsh, Bryan, “Covid-19: the history of pandemics”, in BBC Future, 26 de março
de 2020, disponível em: https://www.bbc.com/future/article/20200325-covid-
19-the-history-of-pandemics. Acesso em 6 de novembro de 2020.
2. Pyrrho, Monique/Schrram, Fermin Roland, Nanotecnociência e humanidade,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016.
3. Feito Grande, Lydia, El sueño de lo posible: bioética y terapia génica, Madrid:
Comillas, 1999.
4. Kostarelos, Kostas, “Nanoscale nights of Covid-19”, in Nature Nanotechnology,
vol. 15, 2020, pp. 343-344.
5. Idem.
6. Buisan Espeleta, Lydia, “Sobre la toxicidad de las nanopartículas en el ámbito de
la nanomedicina”, in Bioética y Nanotecnología (coord. por María Casado), Navarra:
Thomson Reuters, 2010.
7. Pérez Álvarez, Salvador, “Paradigmas meta-jurídicos de la nanomedicina”, in Revista
de Derecho y Genoma Humano, n.º 37, 2012.
8. Para mais exemplos, vide Campos, Estefânia et al., “How can nanotechnology
help to combat Covid-19? Opportunities and urgent need”, in Journal of Nanobiotechnology,
vol. 18, 2020, disponível em: https://jnanobiotechnology.biomedcentral.
com/articles/10.1186/s12951-020-00685-4. Acesso em 6 de novembro de 2020.
9. Veja-se, neste contexto, o disposto no art. 4.º/d) do mais recente Decreto do
Presidente da República com vista à declaração de estado de emergência, o qual
foi assinado, referendado e publicado a 6 de novembro de 2020 (Decreto do Presidente
da República n.º 51-U/2020, publicado em Diário da República n.º 217/
2020, 1.º Suplemento, Série I de 2020-11-06).
10. Pérez Álvarez, Salvador, “Paradigmas meta-jurídicos de la nanomedicina”, Op. Cit.
11. Jain, Kewal K., Handbook of Nanomedicine, 3rd Edition, Switzerland: Humana
Press, 2017.
12. Morin, Edgar, Cabeça bem-feita (trad. por Eloá Jacobina), Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008.
56 57
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
PRÉMIO HEALTHCARE EXCELLENCE
EDIÇÃO COVID 19
Troféus Healthcare Excellence 2020.
No passado dia 21 de outubro, decorreu a
reunião de finalistas do Prémio Healthcare
Excellence, uma iniciativa que a Associação
Portuguesa de Administradores
Hospitalares (APAH) muito se orgulha
de promover desde 2014, em parceria com a Biofarmacêutica
AbbVie, e que este ano premiou projetos implementados
na luta contra a Covid-19.
O Healthcare Excellence existe para distinguir projetos
de melhoria da qualidade dos serviços prestados aos
utentes que tenham produzido uma melhoria do acesso,
da eficiência, da segurança, ou dos resultados obtidos na
prestação de cuidados de saúde. Além de reconhecer as
boas práticas, a iniciativa pretende acima de tudo promover
a sua partilha e incentivar a sua propagação.
O Prémio Healthcare Excellence - Edição Especial
Covid-19 é também uma forma de agradecimento e
reconhecimento a todas as equipas que têm batalhado
na linha da frente contra a pandemia, dando provas de
uma enorme capacidade de resiliência e coragem.
Lições, sinergias e bons projetos em tempos de
pandemia
A crise sanitária originada pela Covid-19 provocou mudanças
ímpares na sociedade e na nossa própria rotina.
A consciência cívica dos cidadãos e as medidas de distanciamento
social impostas pelo governo foram e são
essenciais para evitar uma maior propagação do vírus e
a sobrecarga de um Serviço Nacional de Saúde (SNS),
já por si fragilizado depois de anos de subfinanciamento.
Mas esta pandemia é também uma oportunidade para
retirarmos algumas lições. Não podemos continuar a
ignorar a necessidade de mais financiamento na Saúde
e de que é imperativo valorizar o papel dos profissionais
de saúde.
Outra aprendizagem que a pandemia nos trouxe está
relacionada com a contínua necessidade de criar sinergias
no setor da saúde, através da estreita colaboração
entre todos os seus intervenientes, mas não só... A contribuição
de outros setores fundamentais e da própria
sociedade civil foram fulcrais para que o SNS fosse capaz
de dar resposta num momento tão crítico como este
e de assegurar a saúde e o bem-estar das populações.
De norte a sul do país, em plena pandemia, multiplicaram-se
os projetos desenvolvidos pela Academia, pelas
autarquias e juntas de freguesia, organizações não governamentais,
associações de doentes, instituições de solidariedade
social… Projetos e boas práticas em saúde que
não vieram substituir, mas sim complementar o SNS, oferecendo
novas soluções para a melhoria da qualidade dos
serviços prestados aos utentes. Muitos destes projetos
têm mesmo o potencial de serem replicados e, sem dúvida
alguma, merecem ser mantidos no futuro.
Projeto de atuação preventiva em lares do ACES
Douro Sul venceu edição 2020
A 7ª edição do Prémio Healthcare Excellence recebeu
um total de 70 candidaturas oriundas de norte a sul do
país e de vários setores da sociedade. Todas as candidaturas
foram avaliadas por um júri independente a quem
coube a seleção dos melhores projetos que passaram
à fase final.
O júri da 7.ª edição da iniciativa foi presidido por Delfim
Rodrigues, Vice-Presidente da APAH, e integrou também
Ricardo Mestre, vogal da Administração Central do Sistema
de Saúde; Ricardo Mexia, presidente da Associação
Nacional dos Médicos de Saúde Pública e Dulce Salzedas,
jornalista da Sociedade Independente de Comunicação.
Entre os 8 finalistas da edição 2020 estiveram projetos
do Agrupamento de Centros de Saúde do Douro Sul
(ACES Douro Sul), do Centro Hospitalar e Psiquiátrico
de Lisboa, do Centro Hospitalar Universitário de São
João, do Health Cluster Portugal, do Hospital Garcia de
Orta, do Hospital Senhora da Oliveira - Guimarães, da
Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla e dos Serviços
Partilhados do Ministério da Saúde.
O vencedor do Prémio Healthcare Excellence - Edição
Especial Covid-19 foi o ACES Douro Sul pela criação
da APLar - Atuação Preventiva em estruturas residenciais
para idosos (ERPI). A equipa multidisciplinar
formada pelo ACES Douro Sul foi criada para acompanhar
os lares no contexto de pandemia, realizando
visitas às estruturas, identificando as não conformidades,
avaliando as necessidades e apresentando recomendações,
com o intuito de reduzir o impacto da Covid-19
nos utentes e profissionais de saúde. Desta equipa fazem
parte médicos especializados em Saúde Pública,
enfermeiros especializados em saúde comunitária, técnicos
de saúde ambiental, entre outros profissionais.
No total, a “APLar” interveio em 36 lares de oito concelhos
do distrito de Viseu, envolvendo 1.169 profissionais,
que prestam cuidados a cerca de 1.600 utentes. Nas
muitas visitas realizadas, a equipa do ACES Douro Sul
realizou ainda formações teóricas e práticas em áreas
tão diversas como: procedimentos básicos de organização
das estruturas, utilização de equipamentos de proteção
individual, cumprimento da etiqueta respiratória e
higienização dos espaços e equipamentos.
A primeira menção honrosa foi atribuída ao Centro
Hospitalar Universitário de São João, que desenvolveu
uma plataforma de monitorização, em tempo real,
das infeções por Covid-19 com caracterização pelas
diferentes áreas e previsão para sete dias de novas infeções,
doentes internados e óbitos. Este modelo preditivo
tem permitido ao centro hospitalar ajustar os planos
de contingência em resposta direta à pandemia e traçar
cenários sobre a necessidade de recursos a alocar.
Dada a qualidade dos trabalhos apresentados, o júri sentiu
a necessidade de atribuir uma segunda menção honrosa,
que foi entregue aos Serviços Partilhados do Ministério
da Saúde pelo projeto Autoreport & Trace Covid-19.
O projeto consiste em duas soluções integradas
de um serviço totalmente digital, que por um lado permite
o registo dos sintomas por parte dos cidadãos e, por
outro, a vigilância e monitorização dos utentes diagnosticados
ou suspeitos de Covid-19. Esta ferramenta inteligente
tem servido de apoio à intervenção por parte do
corpo clínico e das autoridades de saúde. Desde abril, já
se registaram no sistema mais de 1,5 milhões de utentes,
que foram monitorizados por cerca de 75 mil profissionais
de saúde, que recolheram mais de 2,8 milhões de
vigilâncias por telefone.
“Esta foi uma edição muito especial, num contexto
muito diferente, mas que não se poderia deixar de se
realizar. Tal como nos anos anteriores, não poderíamos
deixar de premiar o que de melhor se faz em Portugal”,
afirmou Alexandre Lourenço, Presidente da APAH, na
reunião final do Prémio Healthcare Excellence. Ã
Fotos da Just News, disponíveis em:
8.ª Conferência de Valor da APAH: Inovar e liderar na incerteza
(justnews.pt)
Vencedor 2020: ACES Douro Sul.
1.ª Menção Honrosa: Centro Hospitalar Universitário de São João.
2.ª Menção Honrosa: Serviços Partilhados do Ministério da Saúde.
58 59
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
ATUAÇÃO PREVENTIVA
EM ERPI
Edite Carvalho Pinto
Enfermeira Especialista em Saúde Comunitária,
Vogal Enfermagem Conselho Clínico e de Saúde
e Presidente Direção de Enfermagem
João Paulo Barreira
Enfermeiro Especialista em Saúde Comunitária,
Coordenador da Unidade de Cuidados
na Comunidade de Lamego
Rui Amândio Clemencio
Técnico de Saúde Ambiental,
Unidade de Saúde Pública
Com o reconhecimento do impacto da
Covid-19 nas Estruturas Residenciais Para
Idosos (ERPI) em vários países europeus
como Itália, Espanha e França, aliado ao
conhecimento dos dados a nível nacional,
foi constituída uma equipa de atuação preventiva nas
ERPI, a qual se designou por “APLar”, com o objetivo
geral de acompanhar estas Estruturas em contexto de
doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2, na área de
influência do Agrupamento de Centros de Saúde Douro
II-Douro Sul. As ações traçadas pela Equipa foram no
âmbito de Verificar, Informar/Sensibilizar, Instruir/Treinar
e Recomendar Correções, onde foram identificadas
as não conformidades e necessidades de formação,
apresentadas as recomendações e realizada formação
tendo sido alvo de intervenção todas as 36 ERPI, com
um total de 1169 profissionais, que prestam cuidados
a 1600 utentes. Como resultados foi possível otimizar
os cuidados prestados e a gestão de equipamento de
proteção individual, promover a quebra na cadeia de
transmissão por infeção de SARS-CoV-2 e reduzir o
nível de stress por parte dos prestadores de cuidados.
Como o impacto de Covid-19 em termos de morbilidade
e letalidade é maior em pessoas com mais de
65 anos e com várias comorbilidades, especialmente as
doenças cardiovasculares, patologia respiratória crónica
ou diabetes, é natural que os utentes das Estruturas
Residenciais Para Idosos (ERPI) sejam considerados em
situação de risco acrescido e de maior disseminação da
infeção (DGS, 2020).
Nesse contexto, a Administração Regional de Saúde do
Norte (ARSN) considerando a pandemia e a situação
que se estava a vivenciar em algumas ERPI da Região
Norte, solicitou que fossem definidas estratégias de in-
tervenção neste tipo de estruturas, em cada Agrupamento
de Centros de Saúde (ACeS).
Esta emergência em saúde Pública conduziu à formação
de uma equipa de atuação preventiva nas ERPI designada
por “APLar”, com o objetivo geral de acompanhamento
em contexto de doença provocada pelo vírus
SARS-CoV-2, localizadas na área de abrangência do
ACeS Douro II - Douro Sul (Armamar, Lamego, Moimenta
da Beira, Penedono, São João da Pesqueira, Sernancelhe,
Tabuaço e Tarouca).
A referida equipa é multidisciplinar, abrangendo várias
categorias profissionais (Médicos Especialistas em Saúde
Publica, Enfermeiros Especialistas em Saúde Comunitária
e Técnicos de Saúde Ambiental), Unidades Funcionais
e estruturas hierárquicas do ACeS.
Neste sentido, as ações traçadas pela Equipa compreenderam
a verificação, informação/sensibilização, instrução/treino
e recomendação de correções aos responsáveis pelas
Instituições e Prestadores de Cuidados, nomeadamente:
• Aplicação dos procedimentos constantes na Orientação
009/2020 da DGS;
• Implementação do Plano de Contingência;
• Procedimentos em caso suspeito;
• Procedimentos em caso confirmado;
• Formas de transmissão e medidas preventivas de disseminação
da infeção;
• Medidas de etiqueta respiratória;
• Técnica da higiene das mãos;
• Avaliação de temperatura;
• Medidas de distanciamento dos utentes;
• Alimentação, horários e espaços;
• Atividades lúdicas;
• Organização de horários e atividades dos profissionais;
• Gestão de EPI;
• Colocação e remoção de EPI;
• Limpeza das superfícies e equipamentos;
• Circuitos de roupa utilizada pelos utentes e profissionais;
• Circuitos de louça utilizada pelos utentes e profissionais;
Circuito de resíduos;
Metodologia
Para a colheita dos dados foi criado um questionário,
pois é um instrumento que engloba uma série ordenada
de perguntas que devem ser respondidas pelos elementos
da amostra a inquirir. Deve ser objetivo, limitado em
extensão e estar acompanhado de instruções, esclarecendo
o propósito da sua aplicação (Carvalho, 2009).
A metodologia utilizada foi a aplicação presencial de um
questionário, elaborado pela APLar, onde foram identificadas
as não conformidades, necessidades de formação
e, apresentadas as recomendações. As questões estão
relacionadas com a instituição, manuseamento de equipamento
de proteção individual, procedimentos relacionados
com o controlo ambiental, elaboração de sugestão
de procedimentos e identificação de necessidade de
formação e respetiva realização.
Toda a atividade foi desenvolvida em estreita articulação
com a Diretora Executiva do ACeS, Conselho Clínico e
da Saúde e Coordenação da Unidade de Saúde Pública
(USP). A fundamentação da priorização de atuação teve
como base:
• O conhecimento dessas Instituições por parte da USP,
no acompanhamento efetuado decorrente das funções
inerentes à Unidade;
• O prévio conhecimento destas instituições com a aplicação
de um questionário online, onde se procurou produzir
um retrato geral das condições estruturais e de
funcionamento, bem como do Plano de Contingência
de cada uma, num momento tão particular e exigente
como este;
• A contribuição de uma equipa composta por Enfermeiros
(as) de várias Unidades Funcionais do ACeS
Douro Sul, que se encontravam a realizar colheita de
espécimes para teste de diagnóstico Covid-19 a utentes
e profissionais dessas instituições.
Foram alvo de intervenção todas as 36 ERPI existentes
na área de abrangência do ACeS, com um total de
1.169 profissionais, que prestam cuidados a 1.600 utentes,
num total de 41 visitas presenciais. A atividade da
APLar nas ERPI aqui descrita apenas se reporta aos meses
de abril, maio e junho, ocorrendo de uma forma
mais intensiva e sempre presencial.
Posteriormente e até aos dias de hoje, a intervenção passou
a ser mais espaçada, presencial ou não presencial,
existindo visitas de seguimento, de acordo com o aparecimento
de casos positivos, a avaliação de necessidade
por parte da Equipa ou por solicitação da Instituição.
Resultados Obtidos
A apresentação dos resultados foi realizada de acordo }
60 61
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
Sim Não Não
Observável
1. Instituição
Está presente Diretora Técnica e ou Clínica 25 11 0 69,4
Está presente outro elemento da Direção ou Substituto 20 14 2 55,6
Está presente um Profissional de Saúde 23 13 0 63,9
Medidas de organização de trabalhadores/atividades de acordo
com normas em vigor
19 5 12 52,8
Tabela 1: Instituição.
% de
Cumprimento
“
AS AÇÕES TRAÇADAS PELA EQUIPA
COMPREENDERAM A VERIFICAÇÃO,
INFORMAÇÃO/SENSIBILIZAÇÃO,
INSTRUÇÃO/TREINO E
RECOMENDAÇÃO DE CORREÇÕES
AOS RESPONSÁVEIS PELAS
INSTITUIÇÕES E PRESTADORES
DE CUIDADOS.
”
com a estrutura do questionário, nomeadamente os aspetos
relacionados com a Instituição, o manuseamento
de EPI`s, os procedimentos relacionados com o controlo
ambiental, a elaboração de sugestão de procedimentos
de controlo ambiental e a identificação de necessidade
e realização de formação.
Relativamente à Instituição, verificou-se um grau elevado
de compromisso e de preocupação com esta
problemática, em 69,4% das instituições verificou-se o
acompanhamento por elemento pertencente à Direção
Técnica e ou Clínica.
Relativamente aos EPI´s, constatou-se a existência de
equipamentos para prestação de cuidados básicos em
91,7%, no entanto, para prestação de cuidados a utentes
com Covid-19, apenas existiam em 63,9% das instituições.
Por outro lado, foi encontrada uma dificuldade
acrescida na correta sequência de remoção do EPI
(5,6%), bem como a zona específica para realizar essa
remoção (41,7%).
No capítulo do Controlo Ambiental, verificou-se que já
existia a definição de local para isolamento de utentes
com Covid-19 (94,4%) e de circuitos, o que demonstra
um elevado grau de cumprimento na generalidade das }
Tabela 2: Equipamento de Proteção Individual (EPI's).
Sim Não Não
Observável
2. EPI´s
Estão armazenados corretamente 26 10 0 72,2
Existe solução alcoólica ou possibilidade 26 10 0 72,2
de lavagem das mãos, em locais estratégicos
Existe stock mínimo para prestação de cuidados 23 13 0 63,9
a utentes com Covid-19
Existe zona específica para colocação 19 17 0 52,8
Existe zona específica para remoção 15 21 0 41,7
Existem para prestação de cuidados
33 3 0 91,7
(DGS norma 07/2020)
Existem para prestação de cuidados a menos 28 8 0 77,8
de 1 metro (DGS norma 07/2020)
Os profissionais executam a sequência
22 0 14 61,1
de colocação
Os profissionais executam a sequência
2 20 14 5,6
de remoção
Os profissionais realizam uma gestão correta
mediante a situação
16 6 14 44,4
3. Controlo Ambiental
Existe circuito de alimentação/refeições em cumprimento
das normas em vigor
Existe circuito de resíduos em cumprimento das normas
em vigor
Existe circuito de roupa limpa e suja em cumprimento
das normas em vigor
Existem medidas de distanciamento de utentes e/ou camas
e cadeirões (N. DGS 09/2020)
Previsto espaço delineado para isolamento de múltiplos
utentes Covid-19 positivo
Previsto espaço delineado para isolamento de utentes
Covid-19 positivo
A estrutura física é compatível com a criação de circuitos
(roupa)
A estrutura física é compatível com a criação de circuitos
(alimentação)
A estrutura física é compatível com a criação de circuitos
(resíduos)
Tabela 3: Controlo Ambiental.
Sim Não Não
Observável
28 8 0 77,8
26 10 0 72,2
22 14 0 61,1
12 24 0 33,3
16 20 0 44,4
34 2 0 94,4
30 3 3 83,3
31 3 2 86,1
32 3 1 88,9
% de
Cumprimento
% de
Cumprimento
62 63
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
Sim Não Não
Observável
4. EPI´s - Covid
Estão armazenados corretamente 1 4 0 20,0
Existe contentor/recipiente para material usado/contaminado 4 1 0 80,0
(RH GIII)
Existe solução alcoólica ou possibilidade de lavagem das mãos 5 0 0 100,0
Existe zona específica para colocação 2 3 0 40,0
Existe zona específica para remoção 1 4 0 20,0
Existem para prestação de cuidados (DGS norma 07/2020) 5 0 0 100,0
Os profissionais executam a sequência de colocação 3 1 1 60,0
Os profissionais executam a sequência de remoção 0 4 1 0,0
Os profissionais realizam uma gestão correta mediante a
situação
1 4 0 20,0
Tabela 4: EPI´s - Covid.
% de
Cumprimento
Tabela 5: Controlo Ambiental - Covid.
Sim Não Não
Observável
5. Controlo Ambiental - Covid
Espaço delineado para isolamento de utentes Covid-19 positivo 3 2 0 60,0
Existe circuito de alimentação/refeições em caso de utentes 4 1 0 80,0
Covid-19 positivo
Existe circuito de resíduos em caso de utentes Covid-19 3 2 0 60,0
positivos
Existe circuito de roupa limpa e suja em caso de utentes 4 1 0 80,0
Covid-19 positivo
Procedimento com alimentação/refeições e louça em caso de 3 2 0 60,0
utentes Covid-19 positivo
Procedimento com arrastadeiras, urinóis e bacias de higiene 1 1 3 20,0
em utentes Covid-19 positivo
Procedimento relativo a resíduos em caso de utentes Covid-19 3 2 0 60,0
positivo
Tratamento da roupa suja em conformidade com a norma
09/2020 da DGS (Covid-19)
5 0 0 100,0
% de
Cumprimento
“
instituições. Constatamos que a maior dificuldade foi a la, verifica-se que em praticamente todas as estruturas
cidade e novidade, quer pela mudança que foi necesimplementação
de medidas de distanciamento (33,3%). visitadas foram definidas medidas corretivas/sugestões
sário implementar em tão curto espaço de tempo, deparando-se
ainda com constrangimentos a nível finan-
Relativamente às estruturas visitadas onde existiam uten- de melhoria, relativamente aos circuitos de roupa, refeições,
resíduos, isolamento de utentes e organização
ceiro e um quadro de pessoal limitado com baixas habi-
MAS, PODEMOS AFIRMAR
tes portadores de Covid-19, verificou-se que relativamente
ao armazenamento adequado, à gestão correta do trabalho.
litações e resiliência à mudança.
de acordo com a situação e à existência de uma zona Durante estas visitas foi realizada formação, em áreas tão
Apesar dos dados não refletirem este aspeto, ao longo QUE AS ERPI VISITADAS PELA APLAR
específica para remoção, eram requisitos que não estavam
cumpridos em quatro estruturas, mas em todas instituição, na utilização dos equipamentos de proteção
mento da capacidade instalada originalmente, que per
diversas como procedimentos básicos de organização da
dos anos existiu em muitas destas estruturas um alarga-
REALIZARAM UM ESFORÇO ENORME
elas existiam os EPI`s adequados, bem como solução individual, em procedimentos relacionados com o controlo
ambiental, nos circuitos para prestação de cuidados
buindo em dificuldades acrescidas no cumprimento das
si exigia uma redefinição de espaços e circuitos, contri-
alcoólica para lavagem das mãos.
DE ADAPTAÇÃO A ESTAS NOVAS
Relativamente aos procedimentos para Controlo Ambiental,
a utentes com Covid-19, no cumprimento da etiqueta
melhores práticas na prestação de cuidados.
CONDIÇÕES E NECESSIDADES
onde existiam já utentes portadores de Co-
respiratória e higienização dos espaços e equipamentos.
Entre as maiores dificuldades encontradas destacou-se a
vid-19, todas as Instituições já tinham definidas medidas Conclusões
utilização dos EPI, nomeadamente os relacionados com PROVOCADOS PELO VÍRUS
e procedimentos específicos, principalmente a nível de As Estruturas Residenciais Para Idosos (ERPI) não estavam
preparadas para situações de utentes com doenças
da sua remoção, principalmente após a saída de locais os procedimentos de segurança a cumprir no momento
alimentação e roupa (80%).
SARS-COV-211.
Conforme se comprova da análise dos dados da tabe-
transmissíveis como o Covid-19, quer pela sua especifi-
contaminados ou potencialmente contaminados.
”
}
64 65
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
Sim % de Cumprimento
6. Sugestão de Procedimentos para controlo Ambiental - Covid
Alimentação/refeições em caso de utentes Covid-19 positivos 34 94,4
Alimentação/refeições em cumprimento das normas em vigor 36 100,0
Isolamento de utentes 36 100,0
Organização de trabalho adequada a prevenir a propagação da infeção
32 88,9
por SARS-CoV-2
Resíduos em caso de utentes Covid-19 positivos 35 97,2
Resíduos em cumprimento das normas em vigor 35 97,2
Roupa limpa e suja em caso de utentes Covid-19 positivos 35 97,2
Roupa limpa e suja em cumprimento das normas em vigor 36 100,0
Tabela 6: Sugestão de Procedimentos para controlo Ambiental - Covid.
7. Formação
Armazenamento de EPI´s 35 97,2
Gestão correta de EPI´s , segundo a norma 07/2020 da DGS 34 94,4
Higienização de espaços, superfícies e objetos 35 97,2
Momento de Lavagem das mãos 33 91,7
Passagem de zona contaminada para zona limpa 33 91,7
Sequência de colocação e remoção de EPI´S 33 91,7
Tabela 7: Formação.
“
AS ESTRUTURAS RESIDENCIAIS
PARA IDOSOS (ERPI) NÃO ESTAVAM
PREPARADAS PARA SITUAÇÕES
DE UTENTES COM DOENÇAS
TRANSMISSÍVEIS COMO O COVID-19,
QUER PELA SUA ESPECIFICIDADE
E NOVIDADE, QUER PELA
MUDANÇA QUE FOI NECESSÁRIO
IMPLEMENTAR EM TÃO CURTO
ESPAÇO DE TEMPO.
”
66
Sim
% de Cumprimento
Em Instituições com casos positivos verificou-se uma dificuldade
acrescida na transição de zona contaminada
para zona limpa, bem como na reorganização espacial
após o aparecimento de casos de doença.
Mas, podemos afirmar que as ERPI visitadas pela APLar
realizaram um esforço enorme de adaptação a estas novas
condições e necessidades provocados pelo vírus
SARS-CoV-2, colocando um desafio acrescido à respetiva
Direção, Diretor Técnico (geralmente Assistente
Social) e aos Profissionais de Saúde (geralmente o Enfermeiro,
e noutras situações, o Técnico de Saúde Ambiental,
o Fisioterapeuta, o Psicólogo, o Nutricionista, ou
o Geróntologo) indo de encontro a Menezes (2012), o
qual refere que a gestão emerge nas organizações a
partir da necessidade de trabalhar a capacidade de lidar
com imprevistos e com a adaptação a mudanças.
No cerne dessas mudanças encontra-se a prevenção das
infeções associadas a cuidados de saúde (IACS), tendo
como estratégia primordial as precauções básicas ou
precauções padrão que devem ser utilizadas para todos
os doentes onde se incluem a higienização das mãos, o
uso de equipamento de proteção individual (EPI), a higiene
respiratória, a localização do doente e o controlo
ambiental (Siegel et al., 2007).
Os resultados obtidos nos cuidados de saúde com o desenvolvimento
de ações dirigidas à prevenção e ao controle
das IACS, influenciam sem dúvida a redução dos índices
de morbilidade e mortalidade dos utentes, a redução
dos custos das Instituições (ex: melhor gestão dos Equipamentos
de Proteção Individual), bem como a melhoria da
segurança, quer dos utentes quer dos profissionais.
A criação da APLar, a qual em termos concetuais, podemos
definir como um conjunto de profissionais com formações
e/ou atribuições distintas, que visualizam o problema/objeto
de estudo ou intervenção sob ângulos diferentes,
explorando-o e enriquecendo-o (Santos et al.,
2007) e que se auto constrói progressivamente, e cresce
como um conjunto harmonioso e verdadeiramente
interessado (Garcia, 2007).
A sua intervenção foi ajustada por uma atitude pedagógica,
englobando a realização de formação teórica e prática
sobre as precauções básicas ou precauções padrão
para a prevenção das IACS, validação de procedimentos
em vigor, recomendação de medidas corretivas/sugestões
de melhoria, principalmente no âmbito do controlo
ambiental, tendo em conta os constrangimentos específicos
de cada Instituição, quer relativamente à estrutura
física quer aos recursos humanos e materiais, ou seja as
soluções encontradas para eliminar ou reduzir as não
conformidades ou riscos são específicas para aquela
instituição, foram encontradas em conjunto, tendo em
conta os recursos disponíveis.
Com estas intervenções foi possível colocar o foco na
pessoa vulnerável, otimizar os cuidados prestados e a
gestão de EPI, contribuir para a quebra na cadeia de
transmissão por infeção de SARS-CoV-2 e reduzir o nível
de stress por parte dos prestadores de cuidados.
Assim, podemos afirmar que, mediante os custos associados
e os resultados obtidos, seria um projeto com
muito potencial de replicação em outros ACeS, com
ganhos em saúde reais e mensuráveis, contribuindo para
a otimização dos cuidados prestados pelas ERPI. Ã
• Carvalho, J. E. (2009). Metodologia do trabalho científico: “Saber-Fazer” da investigação
para dissertações e teses. Lisboa: Escolar Editora.
• Direção Geral da Saúde (2007). Programa nacional de prevenção e controlo de
infecção associada aos cuidados de saúde. Ministério da Saúde, Lisboa.
• Direção Geral da Saúde (2020). Norma 09/2020 de 11/03/2020 - Covid-19:
Fase de Mitigação - Procedimentos para Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI)
(,…). Ministério da Saúde, Lisboa.
• Garcia V. (2007). A Visão Interdisciplinar e Multidisciplinar dos Profissionais na
Área da Saúde. World Gate. Brasil.
• Instituto da Segurança Social (2007). Estrutura Residencial para Idosos - Manual de
Processos-Chave. Modelos de Avaliação da Qualidade das Respostas Sociais. Ministério
do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, lisboa.
• Menezes M.J. (2012). Estilo democrático de gestão no contexto organizacional:
Perspectivas. Administração de Empresas. Revista/ Faculdades Integradas. Curitiba.
• Santos S., Lunardi, V., Eerdmman A., Calloni H. (2007). Interdisciplinaridade: a pesquisa
como eixo de formação/profissionalização na saúde/enfermagem. Revista Didáctica
Sistêmica. Rio Grande.
• Siegel, J. D., Rhinehart, E., Jackson, M., Chiarello, L. (2007), Guideline for Isolation
Precautions: Preventing Transmission of Infectious Agents in Health Care Settings.
https://doi.org/10.1016/j.ajic.2007.10.007
Faz dois
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E
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GH gestão
PRESCRIÇÃO: MAIS VALOR
EM SAÚDE EM PORTUGAL
Francisco Rocha Gonçalves
Coordenador do GT em VBHC da APAH,
Diretor no Grupo Luz Saúde
A
APAH, através do seu grupo de trabalho
em valor em saúde, avaliou o
sentimento de uma amostra de conveniência
de administradores hospitalares,
médicos, farmacêuticos, consultores e
outros stakeholders, quanto à possibilidade de implementação
com sucesso - ie., com resultados úteis para os doentes
- de projetos de gestão de saúde baseada em valor (value-
-based health care, vg, VBHC) em Portugal.
Este artigo sintetiza os principais achados, sendo que as respostas
individuais foram anónimas e que o resultado, por
ser um “envelope” de todas as respostas, não representa
necessariamente a visão específica de algum dos respondentes.
Houve duas vagas de entrevistas, sendo a primeira
mais genérica para verificar quão difundidos os principais
pilares do VBHC (integração de cuidados; medição de custos
e outcomes; transformação digital; contratos baseados
em valor) estão em Portugal. Na segunda volta, os respondentes
foram confrontados com perguntas mais dirigidas
para identificar projetos concretos com melhores perspetivas
de impacto, aceitação e exequibilidade. Os resultados
abaixo são uma avaliação conjunta dos dois momentos.
Do painel identificado, para a primeira vaga de questões
- em geral abertas - responderam 15 pessoas. O texto seguinte
sintetiza, em narrativa, as visões e opiniões desse
agregado. Não houve situações em que algum texto de
um participante fosse contrário e conflituasse com a visão
de outros. Há um alinhamento, cobrindo aspetos diferentes
e complementares do percurso, pelo que esta opção
narrativa é conveniente para explorar as respostas.
Na segunda vaga de questões, em que foram colocadas
várias opções de resposta (e campos abertos para quem
quisesse aduzir os seus contributos), responderam 18 pessoas.
Este conjunto foi sobretudo usado na construção
deste texto, no ponto 3.9 e seguintes.
Contexto
À medida que os sistemas de saúde, de todo o Mundo,
enfrentam a Covid-19, e se preparam para a travessia duma
crise económica, começam a desenhar-se novos cenários
para o nosso futuro, com base nas tendências e forças
anteriores a 2020, a que se juntaram novos fenómenos.
Estas forças externas, e a própria natureza interna dos
sistemas de saúde, desgastam-nos e ultrapassam os respetivos
limites de capacidade de resposta. Mas também se
abrem oportunidades de reconstrução dos sistemas, baseados
em novos paradigmas, que enfrentam os grandes
temas atuais: onde alavancar a resiliência necessária (dos
sistemas, e das pessoas) e a inovação para crescer num
contexto tendencialmente restritivo? Não haverá lugar para
a destruição criativa? Qual o papel dos atores tradicionais?
Que novos intervenientes serão necessários?
Sendo certo que uma travagem da economia deixa marcas
irrecuperáveis, como podemos compensar com novas
ou velhas medidas a indústria da saúde? Que atores
são mais relevantes? Estas são algumas questões que temos
de antecipar. Resume-se a seguir os resultados da auscultação
dos membros do grupo de trabalho VBHC e
outros stakeholders selecionados, para obter uma ideia
mais próxima das realidades onde podemos intervir de
modo consequente.
Resultados
A auscultação nos termos descritos permitiu elaborar uma
representação do estado do VBHC em Portugal e construir
uma listagem de objetivos a prosseguir no imediato,
bem como os projetos de VBHC que os podem suportar.
Neste sentido, este trabalho oferece um contributo
prático para a orientação do trabalho das instituições de
saúde em Portugal.
Por onde evoluir em VBHC em Portugal?
O conceito tem forma de evoluir e de se tornar útil aos
objetivos de qualidade e sustentabilidade do sistema de
saúde. Podemos ter aqui, de acordo com as respostas,
três caminhos. Primeiro, assumir um olhar organizativo e
apontar áreas em crise na cadeia de valor da saúde (pontos
internos ou externos às instituições onde haja pressão
financeira, de acesso, falta de recursos, ou outra), o qual
possa indicar a necessidade de uma alteração de paradigma.
Segundo, e de acordo com o espírito VBHC, pode-se
identificar áreas de patologia de grande impacto ou em
unmet need - são exemplos, a oncologia, as doenças reumáticas,
a diabetes, as doenças infeciosas, a hipertensão
arterial ou a resistência aos antimicrobianos. Terceiro, há
áreas funcionais que embora não respeitem a “um ciclo
de cuidados” são apoios essenciais na implementação de
projetos, como o diagnóstico, alguns prestadores de cuidados,
ou as atividades de rastreio.
Portanto, o VBHC pode evoluir e ter um papel em Portugal,
mantendo o objetivo de endereçar “condições” e
ciclos completos de cuidados, sendo que essas áreas terapêuticas
vão provavelmente corresponder às apostas
habituais em matéria de volume de cuidados e burden of
disease. A priorização de área advirá do estado de necessidade
de cada promotor relativamente a cada uma delas,
para maximização do impacto e da motivação - porventura
por estar em pressão no sistema. Reconhece-se também, a
título de must have na implementação de qualquer projeto,
a integração de elementos funcionais como, por exemplo,
o diagnóstico, o hospital de dia ou o bloco operatório.
Como avançar?
Dificilmente uma equipa ou uma instituição implementará
um programa completo em autarcia. Assim, é necessário
trabalhar com diversos stakeholders internos e
externos. A forma de cooperarem terá de prosseguir
diálogo, transparência e busca de soluções win-win. Ou
seja, já não é cada um a tentar otimizar a sua agenda, é
o trabalharem uma agenda comum. Os projetos não só
têm de obedecer a um bom plano, como serem bem
implementados e geridos. Estas competências em matéria
de gestão de projetos não existem internamente na
maioria das instituições, sobretudo públicas, do sistema
de saúde português. Contudo, as falhas na implementação
são o “vale da morte” para a maioria das ideias
em saúde em Portugal. Por isso, formação de qualidade,
possivelmente com apoio externo, bons workshops de
lançamento do projeto e competências para o gerir ao
longo do tempo, são apostas de investimento não só para
iniciativas em VBHC, como para outros projetos das instituições
de saúde em Portugal, que se recomenda fortemente.
Uma proposta mais ambiciosa, mas muito promissora, é
a construção de uma iniciativa de parceria público-privada,
numa linha análoga à da Innovative Medicines Initiative,
tendo em vista o apoio/incentivo às práticas de value-based
healthcare e value-based procurement em Portugal. A
iniciativa teria como parceiros nucleares agentes do setor
Estado - e.g., Infarmed, SPMS, ANI - e da Indústria - e.g.,
APIFARMA, APORMED, APOGEN. Estas parcerias podem
também envolver prestadores privados (via APHP)
e seguradores (via APS). Por exemplo, as partes contribuíram
de forma equitativa (i.e., 50% público, 50% privado)
para um fundo destinado especificamente ao financiamento,
por via de concursos competitivos e em áreas
selecionadas, a projetos-piloto de VBHC e VBP que contem
com consórcios completos (i.e., fornecedores, prestadores,
pagadores, doentes).
Instituições como associações de doentes, a APAH ou
outras podem apoiar com know how e competências de }
68 69
GH gestão
“
O PATHWAY PODE SER UM MAPA
ESPECIALMENTE RICO,
QUE ALÉM DE INDICAR PERCURSOS,
OFERECE INFORMAÇÃO
ADICIONAL PARA TOMADA
DE DECISÃO E PARA ESTUDO
A CADA MOMENTO.
”
implementação estes projetos.
As organizações estão preparadas?
Em geral não estão. Pelo menos, enquanto conjunto. Seguramente,
nessas organizações há pessoas preparadas e
com vontade de prosseguir projetos. Será necessário confiar
nestes a responsabilidade pelos primeiros pilotos, que
vão contaminar positivamente a organização como um
todo. Recorde-se que esta aprendizagem do conceito se
faz por ensino e demonstração, e também por reconhecimento
dos resultados e envolvimento das pessoas.
Mais ainda, um grupo profissional que tem de estar envolvido
desde a primeira hora, pelos motivos acima, são
as equipas clínicas.
Que obstáculos existem? Como os suprimir?
Foram identificados vários, sendo agrupados nos seguintes:
temas de financiamento e contratação; temas de autonomia
das instituições, sobretudo em matéria de RH.
Primeiro, quanto ao financiamento, indo ao encontro de
um pilar fundamental do VBHC, se houvesse relação de
objetivos ligados à centralidade do doente com os mecanismos
de financiamento, seria um importante fator de
incentivo. Segundo, trata-se de procurar eficácia e eficiência
na gestão, pois quanto à autonomia e a mecanismos
de gestão de recursos humanos, sabemos que é impossível
recrutar as pessoas certas no momento certo, ou remunerar
diferentemente de modo a incentivar, ou ajustar
quadros de pessoal em caso de reestruturação. Esta é
uma barreira significativa à reconfiguração da orgânica e
das carteiras de serviços dos hospitais.
Quanto à forma de abordar estes temas, as propostas vão
em três linhas complementares. Primeiro, atividades de
formação, quer mais introdutórias, quer por recurso a
metodologias de formação-ação para combinar ação com
pedagogia. Segundo, fazer provas de conceito, acompanhar
as experiências que estão em curso e publicar/analisar
os resultados. Em terceiro lugar, explorar os mecanismos
já existentes no país, direcionando-os para o tema
do financiamento e/ou referenciação de doentes com base
em VBHC como, por exemplo, os centros de referência
da Direção Geral de Saúde ou os contratos com a
Administração Central do Sistema de Saúde.
Como reconhecer as vantagens?
Para os inquiridos, a informação e o conhecimento são
um resultado crítico para responder a esta pergunta. É
com estes recursos que se vai educar os públicos, ou seja,
os profissionais e os doentes, pois ambos são importantes
para a implementação com sucesso de projetos. Adicionalmente,
importa valorizar essa informação e conhecimento
(os insights derivados da análise dos dados) nos
processos de tomada de decisão, para benefício destes e
para melhor reconhecimento junto dos clínicos das vantagens
do VBHC.
Como abordar a questão da construção dos pathways?
Em Portugal há muito a fazer neste capítulo e não há uma
experiência difundida. Há projetos com bons resultados
na construção de dezenas de pathways por patologia,
mas apenas em determinadas instituições públicas e em
privados. Assim, enquanto ferramenta de uso corrente,
ainda não é uma realidade nos hospitais nacionais.
Os inquiridos referem também que tão importante quanto
conceber estes documentos, é monitorar o seu uso.
De facto, esse é o propósito fundamental da sua elaboração
- é controlar a variabilidade indesejada, através de
documentos de consenso académico e científico que posicionem
os cuidados no estado da arte e os tenham contextualizados
num determinado percurso administrativo
e multidisciplinar, holisticamente concebido.
Por outro lado, o pathway pode ser um mapa especialmente
rico, que além de indicar percursos, oferece informação
adicional para tomada de decisão e para estudo
a cada momento, fruto do trabalho inicial, do desenvolvimento
de conteúdos e do esforço de aprendizagem ao
longo do tempo. Assim, os utilizadores confiarão mais
neste instrumento, como um guia de navegação, melhorando
a adesão.
Qual o papel das TIC? O que se espera destas ferramentas?
As opiniões colhidas podem resumir-se em dois pontos.
Primeiro, precisamos de TIC funcionantes para ter bons
resultados de VBHC. Ou seja, elas têm de ser efetivos
apoios à decisão, à eficiência e à qualidade dos cuidados.
E têm que servir para construir valor na perspetiva dos
doentes, ou seja, têm de ter um impacto diferencial positivo
- aferido na perspetiva dos resultados e/ou da sustentabilidade
dos sistemas. Estes resultados tipicamente
implicam medir a satisfação dos doentes e dos utilizadores
com estas ferramentas.
Qual o papel dos incentivos a profissionais envolvidos?
É unânime a visão de que os incentivos/compensações fazem
parte de uma relação laboral saudável e consequente,
independentemente da sua forma e se estamos em
contexto VBHC ou noutro. A natureza desses incentivos
é que não é consensual nos exemplos oferecidos pelos
respondentes - mas não será o aspeto mais relevante. Importa
associar incentivo (genericamente definido) a objetivos,
para guiar a ação e eliminar as contradições entre os
incentivos existentes à data.
No caso específico de explorar a prescrição do VBHC
quanto ao uso de incentivos para melhor alinhar as prioridades
dos profissionais, em direção aos outcomes que
interessam ao doente, há algumas considerações sobre
como poderiam funcionar.
Assim, numa primeira linha, encarando como prémios e recompensadas
(dinheiro, reconhecimento, progressão na
carreira, formação financiada, etc.) podem estar alinhados
com a implementação com sucesso de projetos
VBHC, com determinados outcomes atingidos e contratualizados
e/ou com os resultados medidos junto dos
doentes sobre as intervenções/planos de cuidado sobre
eles executados. Deve ser sempre incluída e privilegiada
a perspetiva dos doentes.
Noutra linha, o incentivo também pode advir - aqui relaciona-se
com o que foi dito a propósito da medição de
resultados - da comparabilidade de resultados. Assim, os
exercícios de benchmarking e a transparência voltam a ser
fundamentais, desta vez para motivação e apoio à execução
das tarefas. Este tipo de exercício vale pelo efeito
catalisador que as comparações promovem.
Que prioridades têm as instituições neste momento?
Foram sugeridas 10 possibilidades de resposta, e ainda
deixada uma caixa em branco para outras sugestões. As
opções pré-definidas foram: aproveitar para reconfigurar
o hospital na sua orgânica; aumentar a escala da minha
operação; aumentar a produtividade; aumentar a qualidade
geral dos serviços prestados; aumentar a satisfação reportada
pelos doentes; explorar formas de integração
com entidades externas; financiar investimento; lidar com
a (des)motivação dos RH; manter uma operação com o
orçamento equilibrado; recuperar listas de espera.
Estas opções estão alinhadas com preocupações do momento
e algumas, deliberadamente, são possíveis linhas
de força para o futuro mais afastado. A ideia é verificar
duas dimensões: por um lado, se as prioridades das instituições
estão mais focadas em temas de resolução mais
imediata ou mais diferida; e, por outro, se esses temas
têm relação com programas de VBHC.
Analisando os extremos verifica-se que o Top 3 são: o aumento
da qualidade geral dos serviços prestados; a recuperação
das listas de espera; o aproveitar para reconfigurar
o hospital. Secundariamente, aparecem o aumento da
produtividade e a motivação dos recursos humanos (embora
este tenha sido a 1ª opção de alguns, mostrando que
é um tema sensível). No outro extremo, as três menos
votadas foram: o aumento de escala (crescimento da ins- }
70 71
GH OPhghgh gestão
tituição); financiar investimento; explorar integração com
entidade externas.
Ou seja, por um lado há um conjunto de prioridades definida
e as instituições sabem o que querem. Por outro lado,
parecem ser preocupações focadas no rescaldo e ressurgimento
após a paragem forçada da atividade económica
geral, o enfrentamento da fase inicial da crise epidémica
e da alteração grave da normalidade das operações
hospitalares. A questão é se o VBHC pode contribuir com
respostas para estes temas e quais. Com certeza que cada
tópico pode e deve ser melhor explorado, talvez com entrevistas
em profundidade, mas neste artigo importa dar uma
caracterização e pistas para estes trabalhos posteriores.
O VBHC tem aqui algum papel?
A manutenção ou aumento dos níveis gerais de qualidade,
num contexto de significativa rutura e reinvenção da
atividade operacional, é um desafio em qualquer contexto.
Estabelecer modos permanentes de trabalhar, contemplando
a realidade de prevenir a infeção por SARS-
CoV-2, tratar estes doentes e todos os demais, é outra
face habitualmente referida nos tempos atuais.
O VBHC, por se focar em optimizar outcomes que importam
aos doentes, através da adequada integração de
cuidados, pela exploração das possibilidades do estado
da arte com as equipas clínicas na liderança destes projetos,
endereça a preocupação de mais qualidade perfeitamente.
A questão da diminuição de custos tem que ver
com a eliminação de fontes de desperdício - e são várias
já documentadas nas últimas décadas - por variabilidade
indesejada de resultados e/ou de consumo de recursos
desnecessários. Assim, a preocupação com a produtividade
está igualmente contemplada numa abordagem
VBHC ao Mundo pós-Covid-19. Contudo, como se explicou
é igualmente capaz para responder a desafios de
curto prazo. Assim, justifica-se ter uma estrutura de outcomes
e unidades focadas em condições clínicas, até para
responder melhor a problemas imediatos, com qualidade
e produtividade.
O VBHC normalmente foca-se no médio e longo prazo,
por ser esse o horizonte natural não só na abordagem à
nossa saúde, mas também à generalidade dos investimentos
nesta cadeia de valor. Assim, o aproveitar as crises para
reconfigurar e fazer ressurgir as instituições, com base em
premissas que assegurem melhor a centralidade do doente
no processo de cuidados, é fundamental neste momento.
Que projetos VBHC são importantes?
O grupo, que podia escolher livremente (havia umas sugestões,
mas também uma caixa aberta para que os respondentes
pudessem explicar tudo quanto fosse relevante)
escolheu um conjunto de projetos para enfrentar o
contexto e prosseguir os objetivos acima descritos. A seguir,
apresenta-se o Top 5, por ordem de número de votos
de respondentes:
1. Um programa de medição de custos e outcomes numa
patologia a escolher;
2. Grupo de trabalho interno, com ou sem peritos externos,
para planear e gerir implementação;
3. Grupo de trabalho interno e/ou externo, ou em rede
com outras instituições, para desenhar um pathway duma
patologia;
4. Obter evidência de que o VBHC funciona e sobre os
resultados que gera;
5. Desenvolver o sistema informático para dar resposta às
necessidades do VBHC;
Ou seja, preferem-se projetos de entrada clara no tema,
que permitem abordagens estruturadas e riscos calculados,
embora indo todas no bom sentido por incluírem aspetos
de medida e a perspetiva de mudar o que for necessário
para oferecer um melhor serviço aos doentes. Outros
são complementares: por exemplo, não faz sentido a
aposta no sistema informático sem ter uma visão do que
se pretende deste, mas já faz sentido tê-lo em perspetiva
pois vai ser requisitado assim que o VBHC entrar em tração
nas instituições.
Por fim, os projetos menos votados (ou não votados de
todo) são os que envolvem articulação com pagadores
(Governo ou seguradoras), o trabalho com o Governo
(DGS, ACSS, INFARMED, etc.) para implementar projetos
e as candidaturas ao P2020 ou H2020.
Que parceiros posso/devo acionar?
De novo, os projetos não se realizam sem uma rede de
parceiros, tal como a atividade na cadeia de valor da saúde.
Por isso, as respostas variam em três direções. Primeiro,
houve respostas de conjunto, ou seja, não identificam
parceiros específicos porque acham importante assinalar
o carácter holístico da cadeia de valor. Segundo, assinalam
a indústria farmacêutica para as partilhas de risco e para
alinhar este parceiro com os interesses dos doentes. Terceiro,
referem o papel de outras unidades de saúde, para
colher outcomes e para fazer exercícios de benchmark.
Ou seja, o painel reconhece o carácter interdependente
da indústria de cuidados de saúde, e destaca alguns parceiros
potenciais, para projetos específicos.
Conclusão
Este artigo resume os achados de uma auscultação estruturada
a uma comunidade de stakeholders em saúde,
reunidos sob o tópico do valor em saúde, na APAH.
Concluímos pela pertinência da perspetiva conhecida como
VBHC, tanto na gestão de curto prazo, como na de
longo prazo, nas instituições da cadeia de valor da saúde
em Portugal.
Também verificámos que o estado de divulgação do conceito
de VBHC em Portugal é crescente, muito por via
de pessoas e instituições que testam o conceito e divulgam
os resultados. É um processo orgânico que pode ser
apoiado pela academia, empresas e instituições. A APAH
escolheu fazê-lo e neste momento agradece os contributos
recebidos.
Concluiu-se que o contexto atual, independentemente
das dificuldades do momento e da sua duração, é também
uma oportunidade para mudar. Esta mudança em
algumas instituições poder ser um momento de reconfiguração
e noutras uma ocasião para introduzir programas
de custeio ou monitorização de atividades. Em implementação
de VBHC, o importante, depois de constituídas as
equipas e assegurada a liderança clínica para o projeto, é
ter um objetivo e um projeto ligados, para prosseguir. Os
Grupo de trabalho em Valor
em Saúde da APAH
Coordenador: Francisco Rocha Gonçalves.
Membros: Andreia Borges; Cláudia Santos;
Cláudia Vaz; David Guerreiro; Filipa Baptista;
Filipa Fixe; Filipa Serra; Filipe Costa;
Helena Farinha; Inês Joaquim; Isabel Guerra;
Joana Camilo; Joana Cunha; Joana Sousa;
João Fonseca; João Leal; João Oliveira;
Luis Menezes; Luis Soares; Madalena Melo;
Márcio Joel; Maria Barros; Martinha Garcia;
Patrícia Redondo; Paulo Cortes;
Pedro Gomes; Ponciano Oliveira;
Rui Guimarães; Serafim Guimarães;
Tatiana Silvestre; Tiago Reis Marques.
recursos, nomeadamente a disponibilidade das pessoas
para projetos além da sua atividade profissional, a par do
tema das recompensas, são provavelmente mais fáceis de
resolver que os grandes temas da autonomia. O VBHC
é uma ferramenta para sinalizar a importância destes recursos
e objetivos.
Os projetos concretos que cada instituição vier a escolher
prosseguir advirão assim, das suas necessidades e das suas
prioridades. O mais importante é empreender um caminho
de riscos, custos e resultados calculados e divulgar as
aprendizagens no final. Assim, terá sido uma oportunidade
em qualquer cenário. Ao contrário de grandes investimentos,
em obras ou IT, o investimento em projetos de
VBHC envolve sobretudo horas de RH e devolvem quase
imediatamente mais satisfação aos profissionais, mais
envolvimento nas tomadas de decisão e informação útil a
diversos fins, além dos imediatos. Por isso, a sua mais valia
resulta clara rapidamente.
Por fim, os doentes são a razão de ser da indústria de
cuidados de saúde e são os principais beneficiários da reflexão
que este grupo empreendeu.
O grupo mostrou, como se esperava, um conhecimento
profundo da situação do sistema de saúde português e
de possíveis soluções. Através de uma metodologia colaborativa
construímos uma estrutura de prioridades que
agora se oferece, bem como a sua reflexão sobre o potencial
do VBHC em Portugal.
Em breve este grupo oferecerá outros contributos, possivelmente
na linha da aprendizagem deste painel: formação;
evidência/sistematização de boas práticas; e capacidades
técnicas e estratégicas para apoiar projetos através
dos seus membros. Ã
72 73
GH Investigação
O IMPACTO DA TRANSFORMAÇÃO
DIGITAL E A LIDERANÇA
NO FUTURO DA SAÚDE
Teresa Magalhães
Professora Convidada e Administradora Hospitalar
NOVA National School of Public Health, Public Health
Research Centre, Universidade NOVA de Lisboa,
Comprehensive Health Research Centre (CHRC)
Afonso Pedrosa
Diretor do Serviço de Inteligência de Dados
- Centro Hospitalar Universitário São João
Carlos Sousa
Direcção de Sistemas e Tecnologias
de Informação - Hospital da Cruz Vermelha
Rita Veloso
Vogal Conselho Administração
- Centro Hospitalar Póvoa de Varzim
- Vila do Conde, EPE
Zita Espirito Santo
Coordenadora do Gabinete de Gestão de Projetos,
Investimentos e Património - Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra, EPE
A
transformação digital, o que é?
A transformação digital (TD) é vista
ainda por muitos como um tabu, algo
que não se sabe muito bem ainda o
que quer dizer e que deixa muitos
com dúvidas de: afinal do que estamos a falar?
Este artigo pretende ser uma ajuda a desmistificar este tema
e também uma primeira abordagem para alinharmos
ideias e partilharmos conhecimento entre este grupo de
trabalho de gestão de informação em saúde (GTGIS) da
APAH e para e o universo de leitores da Gestão Hospitalar
que se pretende detalhar em números futuros.
Podemos dizer que a TD é entendida como o uso da
tecnologia para aumentar de forma significativa a performance
das instituições, quer internamente, quer na sua
relação com os seus clientes, através de novos modelos
de negócio que a tecnologia digital permite.
Espera-se, assim, melhorar a experiência dos clientes através
do digital em todos os pontos de contacto no ciclo
de vida dessa experiência, passando cada vez mais a dispormos
de ecossistemas digitais onde o real e o virtual
se encontram usando a robótica, genética, IA e outras
Miguel Cabral de Pinho
Médico Assistente de Saúde Pública no Agrupamento
de Centros de Saúde (ACES) Maia/Valongo,
Administração Regional de Saúde do Norte, I.P.
tecnologias a nosso favor. São tempos que inauguram
uma nova civilização, novas formas de ser, viver, trabalhar,
governar e imaginar.
E qual é o potencial para as organizações de saúde?
O desperdício nas organizações de saúde, é um tema
recorrentemente falado e que segundo a OCDE pode
ocorrer em três vertentes: os doentes não receberem
os cuidados necessários, os recursos poderem ser reduzidos
ou melhor alocados obtendo a mesma qualidade
de prestação de cuidados, e os recursos serem desviados
para outros pontos que não diretamente a prestação de
cuidados. 1
Segundo vários estudos 20% dos gastos em saúde é desperdício,
existindo aqui uma enorme oportunidade de
realocar este desperdício em atividades que realmente
façam a diferença. 2,3
Relativamente às doenças crónicas (DC) 1 em cada 4 pessoas
na União Europeia sofre de DC e o seu tratamento
representa um enorme peso nas estruturas de saúde e
no apoio social. 4 Em Portugal, 3.9 milhões de portugueses
(57,8%) reportaram ter pelo menos uma DC. 5 É conhecido
que 80% dos riscos de DC podem ser reduzidos se
optarmos por estilos de vida saudáveis quer na alimentação
quer no ambiente onde vivemos e trabalhamos. E
sabemos também que 70 a 80% do orçamento da saúde
é gasto para tratar DC, mais de 115 biliões de euros por
ano na União Europeia. Cerca de 97% deste orçamento
é dedicado para tratamento, gestão das DC e administração
dos cuidados de saúde. Ficando apenas 3% dedicado
a promoção da saúde e prevenção da doença. 4
Muitas das doenças podem ser prevenidas e outras podem
ser atrasadas no seu aparecimento.
Reduzir o peso da doença é um dos objetivos que nos
une: governantes, administradores, profissionais de saúde,
associações de doentes e cidadãos de uma forma geral.
Permitindo realocar noutras atividades, nomeadamente
em prevenção da doença e promoção da saúde, investigação
e melhoria de eficiência das organizações em particular,
através do uso da tecnologia.
É, portanto, essencial que a mudança se faça, mas é incontornável
afirmar que o modo como tradicionalmente
prestávamos cuidados de saúde mudou. E esta mudança
tem vindo a ser feita ao longo dos anos. A chave está em
criar valor, a tecnologia tem de criar valor para os profissionais
e para os doentes, temos de a perceber e temos
de conseguir medir.
Tal como se ouve tantas vezes dizer: só conseguimos gerir
aquilo que conseguimos medir!
Assim, quando falamos de TD falamos nesta capacidade
de gerar valor e gerir a mudança. A TD e o caminho para
a saúde digital não se faz apenas porque existe tecnologia.
Sendo a transformação dos comportamentos uma das
vertentes mais difíceis de alcançar. 6
A cultura é o fator de sucesso mais importante na TD
e há que desenvolver empatia na forma como mostramos
e apresentamos o produto a quem ele se destina:
Profissionais ou doentes - através da criação de novos
modelos de prestação de cuidados (saúde digital), transformação
dos processos internos, tornando-os ágeis, gerando
maior eficiência e monitorização e transformar a
experiência do doente.
Mas qual a importância dos líderes digitais?
Para tal um dos fatores chave é que os líderes entendam
esta TD como estratégica.
No congresso da IDC Directions 2019 referia Serge Findling
na apresentação inaugural que apenas 46% das empresas
estão determinadas em ter estratégias claras para
esta transformação e veem o enorme potencial em seguir
este caminho. E que as restantes estavam distraídas, o barco
vai passar por elas e só por mero acaso o vão apanhar.
Na área da saúde, num inquérito recente nos EUA, apenas
7% das empresas de saúde e farmacêuticas disseram
que se tornaram digitais, em comparação com 15% das
empresas de outros setores. 7
Mesmo a nível governamental a estratégia tem de passar
por aqui, não é por acaso que passou a existir uma Secretaria
de Estado para a Transição Digital e um Ministério
da Economia que se passou a chamar de Economia e }
74 75
GH Investigação
“
A APOSTA NA TELESSAÚDE
NÃO SE RESTRINGE À
IMPLEMENTAÇÃO DE NOVAS
TECNOLOGIAS NOS PROCESSOS
CLÍNICO-ADMINISTRATIVOS
OU AQUISIÇÃO DE SOLUÇÕES
MUITAS VEZES ISOLADAS
LEVANDO A DUPLICAÇÃO
OU PERDA DE INFORMAÇÃO.
”
Transição Digital. Ninguém quer ficar para trás. Em 2018
no índice da UE de e-government, Portugal posicionou-se
numa posição até então nunca conseguida, em 29.º, mas
perdeu alguns lugares em 2020, descendo para 35º. 8,6
Medidas como o Simplex vieram trazer novas formas de
todos interagirmos com os serviços públicos administrativos,
o “cidadão digital”.
Este é um tema que tem vindo a assumir cada vez maior
importância também ao nível da academia 9 e nos webinar
promovidos pelos SPMS e APAH através do seu GTGIS 10
e um dos pontos referidos foi exatamente a necessidade
de liderança digital (LD) e de liderança em telessaúde,
telelíderes. E esta também se ensina.
A Healthcare Information and Management Systems Society
(HIMSS) descreve a LD do futuro como:
“Leadership in the future is not about having all the right
answers. It is about asking the right questions, empowering
and inspiring questions, that motivate the team or
group to learn, to work toward meaningful goals that are
aspirational.” 11,12
Reconhecemos que a LD e de forma particular a saúde
digital em telessaúde, é sem dúvida, um dos maiores facilitadores
(ou inibidores) da necessária mudança nas Organizações
mas, mais importante, nas Pessoas. Talvez uns
tenham despertado mais cedo do que outros, e outros
tenham sido despertados pela situação atual em que nos
encontramos. Talvez uns estivessem mais preparados do
que outros e estamos certos de que não partimos todos
do mesmo ponto de partida nesta matéria.
Mas quem será afinal um telelíder? Um telelíder é, acima
de tudo, uma Pessoa. Uma Pessoa que pauta pela
transparência, pela união, capaz de se adaptar de forma
ágil ao meio e às Pessoas que o envolvem, é simples e assume
compromissos com os seus profissionais e os seus
utentes e comunidade. Está constantemente à procura
de entrega de valor e fá-lo de uma forma humilde. Define
claramente os objetivos dos seus projetos e assume uma
comunicação eficaz promovendo o feedback às equipas
sem reservas. Apela e promove o pensamento “fora da
caixa”, mesmo quando este implica falhar, incentivando a
autonomia das suas equipas e a sua participação nas decisões.
No final, um telelíder é “apenas” uma Pessoa cujo
propósito é, através da tecnologia e processos ágeis,
melhorar a experiência das suas Pessoas.
Todos concordaremos que a aposta na telessaúde não se
restringe à implementação de novas tecnologias nos processos
clínico-administrativos ou aquisição de soluções
muitas vezes isoladas levando a duplicação ou perda de informação.
Exige antes um esforço e uma vontade de todos
para mudar: mudar a forma como instituições, profissionais,
doentes e cuidadores se relacionam entre si; mudar
para uma cultura cada vez mais digital, colaborativa e
de partilha.
E tudo isto requer Telelíderes. E estes precisam-se!
É necessário, portanto, uma equipa forte e robusta constituindo-se
como fator crítico de sucesso na liderança da
saúde digital do futuro para além das outras áreas da TD.
O que é afinal a saúde digital?
A saúde digital é uma das áreas da TD na área da saúde
que impacta diretamente na forma como prestamos cuidados.
Num consenso muito recente sobre a definição
de Saúde Digital, a HIMSS define-a da seguinte forma:
“Digital health connects and empowers people and populations
to manage health and wellness, augmented by
accessible and supportive provider teams working within
flexible, integrated, interoperable and digitally-enabled
care environments that strategically leverage digital tools,
technologies and services to transform care delivery.” 11
E qual é, afinal, o impacto e o valor da saúde digital para as
pessoas? Como pode a saúde digital transformar os sistemas
de saúde envolvendo as pessoas neste processo tanto
na promoção e prevenção como na gestão da doença?
Referimos, anteriormente, que um dos objetivos é reduzir
o peso da DC através de uma melhor gestão da doença,
apostando na prevenção da doença e na promoção da
saúde. A saúde digital engloba, no seu conceito, a telessaúde
e, dentro desta, a telemedicina e telemonitorização
e, através das tecnologias que já estão disponíveis, é uma
poderosíssima ferramenta para atingirmos resultados em
saúde e eficiência para o sistema de saúde. A criação de
valor e de evidência nesta área é absolutamente essencial
para podermos envolver profissionais e doentes.
Foi recentemente publicado a nível internacional um trabalho
de investigação realizado pelo grupo de investigação
da Professora Dulce Brito do Centro Hospitalar de
Lisboa Norte, o qual evidencia resultados excelentes na
telemonitorização de doentes com insuficiência cardíaca,
concluindo que a telemonitorização reduziu 12 meses de
hospitalização por todas as causas de mortalidade, bem
como, hospitalizações por insuficiência cardíaca, quando
comparado com o tratamento tradicional. 13
Este e outros bons exemplos que já temos no terreno são
o futuro e, enquanto APAH, iremos brevemente, no nosso
programa de aceleração digital em e-learning (Academia
APAH - Go Digital), dar voz e partilhar estes projetos.
Que tecnologias suportam a TD na área da saúde?
Decidir em quais as tecnologias emergentes que vale a
pena investir e liderar a mudança costuma ser a parte
mais difícil na TD. Além disso, a adaptação à era digital
exige uma mudança em direção a uma mentalidade flexível
e de risco. Significa abrir mão de processos de negócio
desatualizados e confiar que a disrupção trará grandes resultados.
Algumas das tendências que podem beneficiar
com a TD são:
• Big data na área de saúde: dispor da capacidade de cruzamento
de vários tipos de dados do processo clínico pode
trazer vários benefícios, desde o conhecimento profundo
do negócio até à melhoria dos processos, por
exemplo, na redução de erros de medicação;
• Tratamento de pacientes com realidade virtual: permitir
que profissionais e utentes possam aprender com a simulação
da realidade, é uma tendência com uma utilidade real;
• O crescimento de dispositivos médicos móveis: capacidade
de monitorização e interação entre paciente e profissional
e ambiente - a internet of things (IoT);
• Análise preditiva: ajuda a prever cenários que possam
ser importantes. Um bom exemplo é a aplicação desta
tecnologia na análise da evolução da atual pandemia;
• As maravilhas da IA: chatbots e assistentes de saúde virtuais
são exemplos de tecnologia baseada em IA com a
qual os pacientes se estão a familiarizar. Os chatbots podem
preencher uma infinidade de funções, desde representantes
de atendimento ao cliente a ferramentas de
diagnóstico e até mesmo terapeutas;
• Tecnologias de workflow ou agentes inteligentes, que
monitorizam os registos e correlacionam escalas e resultados,
notificando os profissionais, em sintonia com as
NOC, guidelines e resultados esperados. E de igual forma,
as tecnologias point-of-care e bedside por via mobile, que já
elevavam muito a segurança dos doentes. Hoje podemos
escalar para outros níveis o seu potencial!
Será através desta visão holística e da utilização combinada
de metodologias, normas e técnicas inovadoras, que
poderemos materializar uma medicina de precisão, personalizada
e preventiva em áreas como imagens médicas,
descoberta de medicamentos e genómica.
O IoT enquanto tecnologia interliga-se com várias componentes,
faz parte de um ecossistema mais vasto, fala-se
inclusive e cada vez mais na “internet de tudo” e não das
coisas. É a base para algo muito maior que sem esta
possibilidade era impossível falar-se em TD, permite por
exemplo fazer hospitalização domiciliária com monitorização
contínua. Falamos também dos relógios digitais que
cada vez usamos mais e têm incorporados estes devices
que permitem gerir a nossa saúde sobre diversos aspetos.
Dentro do hospital os dispositivos de IoT podem medir
regularmente a temperatura, a pressão arterial, os níveis
de oxigénio de um doente e estar integrado com o processo
clínico eletrónico, diminuindo o erro do registo de
dados e fazendo-o de uma forma atempada. As capacidades
são infinitas!
Num estudo da Gartner, 86% das empresas entrevistadas ligadas
à prestação de cuidados responderam terem uma arquitetura
de IoT a funcionar em grande parte das suas áreas. 14
De referir que a expetativa de crescimento é em 2025 de
duas vezes mais em termos de devices ligados, e em termos
de dados gerados é de seis vezes mais, é enorme a
potencialidade do que podemos fazer com estes dados. 14
É por aqui que temos de fazer a diferença, não interessa
ter o device para lembrar o profissional de desinfetar
as mãos se depois não conseguimos medir, se não
conseguirmos mudar comportamentos, se não conseguirmos
criar inteligência em cima destes dados e influ- }
76 77
GH Investigação
enciar resultados. Vemos efetivamente o ecossistema do
IoT com um grande potencial para as organizações de
saúde, mas mais do que ligar devices, é criar valor, ligamos
pessoas, ligamos devices mas têm de coexistir com as
outras componentes, em particular com a componente
analítica e a segurança e ser pensada desde raiz como
parte integrante na construção de edifícios hospitalares.
Tal como se tem um projeto de segurança ou de energia,
esta também deve ser pensada como tal, como também
se valorizava num seminário da ENSP (2020) e dos quais
já existem excelentes exemplos pelo mundo. 15 A outra
questão que se coloca é a privacidade e segurança de
tudo o que envolve tecnologias na transformação digital.
As questões da cibersegurança
Em saúde, podemos dizer que a gestão do risco assume
uma dimensão tridimensional. Para além do risco clínico e
não-clínico, temos mais recentemente a perspetiva digital,
expressa na dimensão de cibersegurança.
Nunca como agora, a cibersegurança foi tão relevante
para salvaguardar a excelência da prática de cuidados,
motivada pelo crescendo de processos de TD.
A dimensão desmaterializada que suporta o registo de
cuidados, a tomada de decisão, a segurança do doente, a
conformidade legal e outras, pressupõe a existência de
mecanismos que assegurem a confidencialidade, integridade
e disponibilidade da informação clínica e administrativa.
Ao que acresce a importância do não repúdio, ou
seja, a autenticidade de uma mensagem ou artefacto de
informação, produzido no sistema de informação eletrónico.
Este atributo ganhou preponderância por via do Regulamento
Geral de Proteção de Dados (RGPD), dada
a necessidade de se assegurar que a integridade dos dados
está protegida e que o emissor (p. ex. instituição de
saúde) e o recetor (p. ex. doente, tribunal), não têm qualquer
motivo para negar ou repudiar determinada informação
sobre o repositor digital.
Para esta missão, as organizações de saúde podem recorrer
e beneficiar de novas tecnologias como a IA e machine
learning, para reforçar e automatizar os próprios
mecanismos de cibersegurança, no respetivo ecossistema
de informação clínica e organizacional.
Sublinha-se que a par da dimensão tecnológica, os processos
e as pessoas são fator de sucesso também na cibersegurança.
Uma cultura de partilha, sem sofismas ou a
nomeação de novos agentes com o médico responsável
pela informação, o encarregado de proteção dados ou o
responsável pela segurança informática, representam diferenciadores
de mudança, cruciais para uma cultura organizacional
amadurecida e capaz de responder às ameaças
ao ecossistema de informação digital.
Conclusão
Falámos de TD, de LD, de saúde digital, de telessaúde, de
tecnologias de suporte e de cibersegurança. O futuro está
aqui, é agora e depende de todos nós, administradores e
profissionais de saúde liderar esta TD. Como dissemos
ninguém quer ficar para trás.
Sublinhar também o papel da monitorização da adoção
destas tecnologias, ou a medição dos resultados, na medida
da proposta de valor subjacente ao investimento ou
ROI Social. A monitorização de boas práticas em tempo
real ou a avaliação do impacto da adoção das guidelines
nos outcomes clínicos sustentam, como nunca até aqui, a
melhoria contínua e conferem uma nova dimensão a
qualquer framework de acreditação organizacional.
A APAH e este grupo de trabalho consideram uma questão
prioritária, a divulgação, transmissão de conhecimento
e o ensino através da academia APAH. Estes temas aqui
abordados já podem ser acompanhados nos nossos diferentes
canais, YouTube com os webinars de TD na saúde,
e na Academia da APAH com o programa de aceleração
tecnológica na saúde. Ã
1. OECD. “Tackling wasteful spending on health”. OECD Publishing, Paris. 2017.
http://dx.doi.org/10.1787/9789264266414-en
2. WHO. Health systems financing: the path to universal coverage. Geneva: World
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3. Berwick, DM; Hackbarth, AD. “Eliminating waste in US health care”. JAMA.
307: 1513. 2012.
4. CHRODIS. Implementing good practices for chronic diseases. 2020.
http://chrodis.eu/about-us/
5. INSA. Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico 2013-2016. Instituto Nacional
de Saúde Doutor Ricardo Jorge. 2015. http://repositorio.insa.pt/bitstream/
10400.18/5748/4/INSA-info-doenca-cronica-PT.pdf
6. UN. “E-Government survey 2020: Digital government in the decade of act”. Department
of Economic and Social Affairs. United Nations, New York. ISBN: 978-
-92-1-123210-3. 2020.
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wwwimages2.adobe.com/content/dam/acom/au/landing/DT18/Econsultancy-
-2018-Digital-Trends.pdf
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o governo eletrónico para apoiar a transformação digital rumo a sociedades
sustentáveis e resilientes”. Departamento de Assuntos Económicos e Sociais. Organização
das Nações Unidas (versão em língua portuguesa). ISBN: 978-92-1-
-123205-9. 2018.
9. Martins, H., “Bring on the (digital) revolution: how to bootstrapp a country on
digital health”. 1º Seminário Digital Public Health. ENSP. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=-6GDwp0lLjE
10. MartinsS, H., “Liderança Digital ENESIS 20-22”. SPMS/APAH. 2020. https://apah.
pt/pec-events/transformacao-digital-implicacoes-na-saude-4-o-webinar-apahspms/
11. Snowdon, A., “Digital Health: A Framework for Healthcare Transformation”.
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https://cloud.emailhimss.org/digital-health-a-framework-for-healthcare-transformation
12. Kane, G.C.; Phillips, A.N., Copulsky, J., Andrus, G., “How Digital Leadership Is(n’t)
Different: Leaders must blend traditional and new skills to effectively guide their organizations
into the future”. MIT Sloan Management Review. Mar 2019.
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heart failure with reduced ejection fraction: a study in high-risk patients”. ESC Heart
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15. ENSP, "O impacto do IoT na arquitetura Hospitalar". 4º Seminário de Arquitetura
Hospitalar. Disciplina de Tecnologias e Equipamentos Hospitalares. ENSP. 2020.
78
GH PUBLICAÇÃO APAH
APRESENTAÇÃO DO LIVRO
"UM OLHAR SOBRE A EVOLUÇÃO DA
GESTÃO HOSPITALAR EM PORTUGAL"
DE JOSÉ NOGUEIRA DA ROCHA
António Correia de Campos
Sócio Honorário APAH
Este livro engana muito. A princípio julga-se
que é um trabalho sobre leis orgânicas de
hospitais, com todo um cortejo de fastidiosas
descrições que possam vir à ideia. E
não é. Depois, pensa-se que é uma autobiografia
e não é. Haverá quem possa pensar que o autor
pretende falar no que jamais teria alcançado, vingar-se da
adversidade, procurar protagonismo serôdio, lutar contra
fantasmas do passado. E não é nada disso. E haverá ainda
quem possa pensar que se trata de uma vindicta política,
o autor ter-se-ia afastado da política muito cedo e agora
com a inimputabilidade do peso dos anos, considerar-se-
-ia livre para dizer o que pensa no seu íntimo. Olha quem!
Não conheço ninguém mais reservado que José Nogueira
da Rocha, nem mais cuidadoso e comedido em posições
que possam ferir outros, nem mais distante da espuma
dos dias, nem mais afastado da intriga malsã. Não,
nada disso!
Claro que o livro trata de hospitais e discute a sua organização.
Claro que o autor relata um pouco da sua vida, não
muito e sempre dizendo mais de si através do que pensa
dos seus mentores e modelos, do que confessando-se ao
leitor anónimo. Claro que quem foi tudo o que quis na vida,
alto funcionário, administrador-geral do maior hospital
do País, legislador influente, docente respeitado e marcante,
diretor-geral de duas grandes unidades, presidente do
SUCH, deixando na lei uma boa parte do que refletira,
sempre com proverbiais cautelas, quem granjeou admirações
à esquerda e à direita, acima e abaixo do seu estatuto,
não tem necessidade de mais protagonismo.
O livro ajuda a pensar através do desfiar do passado.
Ajuda a escolher através de métodos da gestão empresarial
que imprimem racionalidade em terrenos onde ela
é quotidianamente desmontada pelo imprevisto, como
exemplarmente mostra em capítulos finais. Ajuda a respeitar
o presente através da tranquila análise de 53 anos
de vida social, económica e política de enormes mudanças.
Ajuda a admirar figuras que sucessivamente nos mereceram
primeiro, desconfiança, a seguir, temor reverencial,
depois, autoridade técnica, mais tarde, respeito pelo
serviço da coisa pública, e logo a seguir, admiração intelectual,
simpatia, adesão sem reservas, homenagem e finalmente
saudade. Figuras que esta nossa privilegiada geração
reconhece terem sido essenciais no seu exemplo de
vida pública: poderiam ter sido banqueiros ou prósperos
dirigentes de empresa, entraram remediados e remediados
saíram. Poderiam ter sido políticos de sucesso, limitaram-se
a cumprir o dever de servir com devoção, competência
e probidade. Poderiam ter tido uma vida sossegada
ou divertida, preferiram trabalhar sempre, com prejuízo
da própria saúde e privação de tempo familiar. Sim,
as pessoas que Nogueira da Rocha repetidamente exalta
como seus modelos, Coriolano Ferreira e Augusto Mantas,
para me limitar apenas aos dois gerontes da nossa família
hospitalar, e mais todos aqueles que ambos selecionaram,
prepararam e empurraram para voar, alguns já
longe de nós, tiveram o privilégio de viver e trabalhar em
tempos onde quase tudo era possível.
Teve-se por vezes a ilusão de que tínhamos o mundo nas
mãos e as costas protegidas pelos arcanos. Mas cedo ganhámos
a experiência de que quando a política parecia
mais reformista, como no consulado de Marcelo Caetano,
nem todas as reformas se alinhavam e retrocessos surgiam
amiúde. Ou de que quando tudo de bom se esperava
de antes e depois da revolução de 1974 afinal, nos
hospitais a confusão aumentava, como acontecia nos anos
de 72 a 77 que Vasco Reis designa por período de “administração
hospitalar dormente ou doméstica”. Ou ainda a
ilusão de que as boas leis fazem bons os hospitais, como
pensámos ser possível em 1968 com o Estatuto Hospitalar
e o Regulamento Geral dos Hospitais, ou em 1977
com a legislação que venceu por cansaço e bom senso o
modelo autogestionário dos agitados anos do PREC, saída
da pena afiada de Raul Moreno Rodrigues e da pró-atividade
de Paulo Mendo, sempre na ilusão de que o conceito
de autonomia financeira era o mesmo na Av.ª João
Crisóstomo e na Rua da Alfândega; ou finalmente, em
2002-2005, com a criação do modelo de hospitais sociedades
anónimas, depois reconvertidos em entidades públicas
empresariais, onde eu próprio tive intervenção direta.
Puras ilusões, pelas quais saíram derrotadas as bondosas
intenções de mais autonomia para os hospitais, de mais
responsável gestão intermédia, de orçamentos iniciais mais
próximos da despesa anual final, de mais fácil recrutamento
e de mais flexível contratação de bens e serviços. Em
50 anos, pouco ou nada mudou nessas matérias. Mas deixemo-nos
de pessimismos, pois há muito a saudar.
Saudemos os anos sessenta com a criação do Ministério
da Saúde, da Direção-Geral dos Hospitais e do SUCH; a
publicação da primeira legislação aceitável sobre financiamento
em 1966, da pena conjunta de Neto de Carvalho,
Coriolano e Mantas, os excelentes cursos que especialistas
franceses vieram lecionar entre nós no ano de 1968,
bem como a geração dos seis meninos de Rennes que
foram, vieram e venceram, sempre sob a asa protetora
de Coriolano; depois a criação da ENSPMT, onde se inseriu
o Curso de Administração Hospitalar já em 1970.
Saudemos os anos setenta, pela legislação premonitória
da universalidade de acesso, preparada por Gonçalves
Ferreira e Arnaldo Sampaio, o aproveitamento do regime
de instalação que permitiu arejar velhos e novos hospitais,
o SNS que veio dar a volta a tanta coisa parada, sobretudo
no interior do País e que permitiu o difícil parto da
fusão dos Serviços Médico-Sociais da Previdência com os
Centros de Saúde - um parto de 13 anos, tantos os que
decorreram entre 1971 e 1984, quando a união se concretiza.
Foi ainda e também no final dos anos setenta que
se começou a estruturar de novo o Ministério, a organizar
as carreiras médicas, a reforçar novos e velhos hospitais
distritais para acolherem a pletora dos jovens internos e
finalmente a normalizar o famoso regime de instalação.
E foi também nessa década que oito novos e modernos
hospitais distritais entraram em funcionamento.
Onze anos depois do esforço normalizador das orgânicas
hospitalares de 1977, surge nova legislação hospitalar,
onde Nogueira da Rocha tem papel de relevo: regressa a
visão empresarial do hospital, quase letra por letra como
estava no estatuto de 1968. Vinte anos foram necessários
para rever e corrigir derivas do curso da história. Chegam
os Centros de responsabilidade (CRI) onde não resistimos
à tautologia do “integrados” que Rocha condena.
Entram os orçamentos programa e esboça-se o princípio
da contratualização de cada hospital com o grande financiador
central, com base na produção.
O que não teria sido possível sem a visão rasgada de
Augusto Mantas que se virou para o outro lado do Atlântico
aproveitando fundos de ajuda externa dos EUA.
Para haver GDH tinha que haver codificação clínica, o
que permitia técnicas de revisão do desempenho pelos
pares (peer review) e que abriu o caminho à criação de
modernos sistemas de informação para gestão. Mantas
foi então ajudado por João Urbano e Margarida Bentes,
já não entre nós, e por um grande lote de excelentes
administradores. Tal como havia sido ajudado, em 1970,
pelo excelente Eduardo Sá Ferreira, recentemente desaparecido
do nosso convívio. Portugal ficou então à cabeça
do movimento europeu de modernização da gestão
hospitalar. Como prémio de trabalho, Mantas é demitido
de diretor geral, por razões sinistramente incompreensíveis.
Quartel de inverno, a ENSP acolhe-o a tempo inteiro
e dele utiliza méritos docentes e de administração,
sem contar com a simpatia imensa que derramava sobre
gerações de formandos.
Menos de dez anos depois é concessionada a gestão do
Amadora-Sintra a qual durou até 2008. Ensaiam-se novas
formas de gestão, sempre com a autonomia no horizonte,
nos hospitais de Matosinhos e Santa Maria da Feira. Prepara-se
o terreno para a empresarialização com uma mera
resolução de CM, de Fevereiro de 2002 (mal eu sabia
em que camisa me enfiava). Um governo de direita cria os
hospitais SA, que o governo socialista seguinte reconverte
sem subverter, em Entidades Públicas Empresariais, até
agora permanecendo, sem brilho nem glória, tantas foram
as atribulações das prolongadas crises financeiras entre
2008 e os nossos dias.
José Nogueira da Rocha considera-se um profissional }
80 81
GH PUBLICAÇÃO APAH
“
ESTE LIVRO É UM PRODUTO
DE CONHECIMENTO, DE RICA
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL,
DE UMA INVEJÁVEL FIRMEZA
DE PRINCÍPIOS E DE UMA
AGRADÁVEL E SEMPRE AMIGA
INTELIGÊNCIA EMOCIONAL.
VALE A PENA ESTUDÁ-LO.
”
académico e vale a pena determo-nos um pouco sobre o
que levou muitas escolas de saúde pública a recrutarem
na alta administração os seus primeiros docentes. Tal
aconteceu em Portugal em 1968 com a criação da ENS-
PMT e o recrutamento de Arnaldo Sampaio, Coriolano
Ferreira, Gonçalves Ferreira; Artur Moniz. Costa Andrade,
Amélia Leitão, Cayolla da Motta, Laura Ayres, Caldeira da
Silva, Vasco Reis, Nogueira da Rocha, Francisco Ramos,
nós próprios e muitos outros. Não havendo prévia carreira
académica foi-se à alta administração e conferiu-se-lhe
a graduação necessária. Em troca das palmas académicas
recebeu-se experiência, conhecimento da vida e ligação
permanente aos serviços e à prática profissional. Uma
troca de interesses sob a forma de recursos humanos
que torna as escolas de saúde públicas progressivamente
transportadas dos ministérios da saúde para as universidades.
Exemplos anteriores abundam em outros países,
mesmo nos que tinham academias fortes e antigas. Na
Universidade de Johns Hopkins, Ernest Stebbins foi diretor
durante muitos anos, tendo antes sido o comissário de
saúde do estado de Nova Iorque. Na London School of Hygien
and Tropical Medecine, Robert Logan tinha sido médico
da Royal Navy. Na Bélgica, o Professor Halter, da Escola
de Saúde Pública da Universidade Livre de Bruxelas era
simultaneamente Secretário-Geral do Ministério da Saúde.
Sem complexos, Nogueira da Rocha fala-nos positivamente
dessa fertilização cruzada entre funções executivas
que desempenhou e responsabilidades docentes e de investigação.
E faz bem, pois se a pura academia é essencial
para garantir qualidade na pesquisa e expressão do conhecimento,
uma componente de vida prática é indispensável
para que o ensino ganhe âncora no terreno da vida.
Mas é nos três capítulos finais que o autor finalmente se
revela. No primeiro analisa, com a distância do tempo, a
evolução da gestão hospitalar, comentando as alterações
de trajetória; no segundo analisa estímulos ou incentivos,
dificuldades, constrangimentos e contingências, dissecando
com racionalidade de gestor, não apenas os momentos
de instabilidade, mas também os de forte progresso,
como o modelo e a escola de formação dos administradores,
as influências estrangeiras, de França, dos EUA, da
OMS, da Federação Internacional dos Hospitais e traça
a rota da crescente complexidade hospitalar, da sempre
insuficiente autonomia, da parcimónia de recursos, da fragilidade
e indefinição dos níveis intermédios de gestão.
E no terceiro ensaio final, desvenda opiniões, atividade em
que, como sabemos, é sempre recatado. Mas não esconde
a sua posição de manter a estrutura das entidades empresariais,
embora modernizada e reforçada, de respeitar
o movimento das PPP e não as demonizar, condicionando
o seu êxito à qualidade dos contratos iniciais e ao
acompanhamento tutelar. Confirma o empenho na profissionalização
da gestão de hospitais e refere o seu alargamento
a áreas como a enfermagem; propugna a criação
de CRI, lembrando, todavia, quão imprevisível é o hospital
e quão perigoso o corporativismo. E coloca em termos
corretos o mito do subfinanciamento a par da realidade
da subgestão.
Finalmente José Nogueira da Rocha entra Covid-19 dentro,
pela ótica das oportunidades. Lembra que é altura
de se confirmar o circuito vertical da atenção ao doente,
desde a admissão pela urgência, a retenção na observação,
a passagem à medicina interna, o trânsito temporário,
espera-se, pelos cuidados intensivos, o regresso pelos
intermédios, a hospitalização normal e alta. Refere o quanto
isto vai implicar no desenho de novos ou renovados
hospitais. Insiste na flexibilização da gestão do hospital, a
partir de mais e mais fino planeamento de recursos, alarga
a criação de CRI aos setores operacionais, não receia
a externalização do que possa ser mais bem feito fora do
hospital ou dentro, mas por outros. Insiste em melhor comunicação,
melhor controlo, melhor avaliação e mais assertividade
e coragem nas medidas retificadoras. Nenhuma
destas opiniões resulta de palpites. Segura-se na opinião
dos clássicos da gestão, invocando de novo Fayol, De
Bruyne e Drucker para se concentrar na missão de melhorar
sempre o processo de tomada de decisões para
que as coisas aconteçam como se planeou.
Este livro é um produto de conhecimento, de rica experiência
profissional, de uma invejável firmeza de princípios
e de uma agradável e sempre amiga inteligência emocional.
Vale a pena estudá-lo. Ã
82
GH PUBLICAÇÃO APAH
VALUE BASED HEALTH CARE
EM PORTUGAL
Francisco Ramos
Professor da Escola Nacional de Saúde Pública
A
gestão em saúde, em particular a gestão
hospitalar, é matéria de estudo e
investigação há décadas. Em Portugal,
estão bem documentados os esforços
para comprovar a especificidade e a
complexidade da realidade hospitalar, e as tentativas de
lhe corresponder com formas próprias de gestão e estatutos
jurídicos apropriados. Nunca foi realizado o balanço
da gestão hospitalar em Portugal, mas uma apreciação
sumária leva facilmente à conclusão que, apesar do coro
dos descontentes e insatisfeitos, o passado recente não
envergonha os protagonistas nem comprometeu o sucesso
do Serviço Nacional de Saúde, agora bem prestigiado
face à demonstrada capacidade de resposta perante a
pandemia em curso.
Mesmo antes da criação do SNS, a gestão hospitalar mereceu
atenção do legislador. Estatuto jurídico próprio e
um plano de contas específico foram instrumentos diferenciadores
do hospital público português na década de
70 do século passado. A par do desenvolvimento de carreiras
profissionais próprias, estes foram elementos decisivos
para a afirmação e o progresso da rede hospitalar
pública, apesar das restrições económicas associadas ao
crescimento do sistema em época de crise económica
motivada pelos choques petrolíferos em 1973 e 1979.
O designado projeto dos GDH, iniciado em meados da
década de 80, sob a liderança do Prof. Augusto Mantas, foi
decisivo para mudar os sistemas de informação internos.
Medir a produção, construir indicadores de qualidade dos
cuidados prestados, avaliar a utilização do internamento
hospitalar, foram marcos relevantes no desenvolvimento
do hospital público português. “Em busca de maior
eficiência” seria um ilustrativo título de muitas iniciativas
políticas e de gestão na última década do século passado.
A tradicional ausência de avaliação sistemática e a escassa
cultura científica no processo de tomada de decisão
fizeram com que o mito da maior eficiência do sector
privado, organizado de forma empresarial, fosse assumida
de forma quase evangélica nesses tempos de consolidação
do SNS, híbrido face à lei de bases de saúde de 1990,
vulnerável face às disposições privatizadoras do Estatuto
de 1993, ingénuo e disponível para acolher as ideias neoliberais
geradas no país símbolo maior do SNS.O período
1995 a 2002 trouxe a gestão privada do hospital público
Fernando da Fonseca, a quase empresarialização do Hospital
de São Sebastião na Feira, a legislação que permitiu
a construção de hospitais públicos com financiamento
privado (as tão discutidas e, quiçá, injustiçadas Parcerias
Público-Privadas) e o processo de empresarialização, com
a transformação de 34 hospitais em sociedades anónimas
de capitais públicos, rebatizados em 2005 como entidades
públicas empresariais. Pelo meio, uma inocente e simpática
medida de apoio ao sector privado, a aquisição de
cirurgias eletivas, em lista de espera para além dos tempos
clinicamente aceitáveis, o chamado PECLEC, que viria a
ser um dos mais relevantes fatores indutores de crescimento
da hospitalização privada.
De acordo com a matriz administrativa de inspiração napoleónica,
o SNS cresceu com uma forte regulamentação,
hierarquizante e geradora de dependência do poder
executivo, objeto de leis e regulamentos em tentativa de
reger a atividade dos serviços públicos, dos cidadãos e da
sociedade civil. Em coerência, os modelos organizacionais
dos hospitais refletem grande concentração de poder e
escassa flexibilidade. A ausência de regulação, entendida
como conjunto de mecanismos que induzam o funcionamento
de forma o mais eficiente possível, dos sistemas
sociais e económicos, é uma das características negativas
mais marcantes da saúde em Portugal, apesar da existência
formal da Entidade Reguladora da Saúde desde 2004.
Olhar a produção de cuidados de saúde de forma diferente
será essencial para se conseguir uma transformação
de sucesso. O futuro do hospital público passa pela
reforma do modelo de organização interna, dinamizando
e robustecendo alternativas de gestão intermédia que reconheçam
a autonomia das profissões de saúde e o valor
dos cuidados prestados na ótica dos seus destinatários.
Os cuidados de saúde baseados em cadeias de valor não
são uma novidade absoluta, mas traduzem um conceito
que tem vindo a ganhar espaço. Por um lado, trata-se de
uma afirmação clara da indispensabilidade da escolha de
prioridades ter como base critérios de eficácia, eficiência
e equidade, aqueles em que assenta o conceito de valor.
Por outro lado, muitos criticam esta metodologia como
sendo apenas mais uma versão do instrumental das indústrias
de tecnologia médica para afastar as consequências
da restrição orçamental pública e aproximar saúde e mercado.
O futuro o dirá. Por agora, temas como integração
de cuidados, gestão em função dos resultados em saúde,
tecnologias de informação e comunicação ao serviço da
prestação de cuidados de saúde, governação de serviços
de saúde e o seu relacionamento com as entidades pagadoras,
são questões importantes para o progresso e
a melhoria das organizações de saúde, merecedoras de
investigação e debate, de forma a disseminar essas ideias
junto dos profissionais. A iniciativa de publicar a presente
obra é louvável e oportuna. Suporte importante para a
formação permanente dos profissionais de administração
hospitalar, esta publicação será certamente elemento importante
para a reflexão e o exercício de uma melhor
gestão dos serviços de saúde. Ã
84
GH estudo apah
ACESSIBILIDADE AO
MEDICAMENTO HOSPITALAR
Mariana Jerónimo
Operations Manager 2Logical
A
2 de dezembro assinalamos nove meses
do aparecimento dos primeiros
casos positivos do novo Coronavírus
em Portugal. As medidas e restrições
aplicadas na tentativa de conter a
propagação da doença Covid-19 contam com inúmeros
efeitos colaterais na sociedade e na economia do nosso
país. O quotidiano alterou-se de tal forma que passou a
ser o “novo normal”. Ainda assim, como em outras crises,
algumas mudanças foram para melhor.
A execução do primeiro estado de emergência obrigounos
não só ao confinamento e a limitações na circulação,
como também ao dever especial de proteção da população
mais idosa, imunodeprimidos e doentes crónicos.
Tornou-se assim imperativo evitar as deslocações destes
utentes aos estabelecimentos hospitalares, mantendo-se
intacto o acesso às terapêuticas e, em particular, aos medicamentos
de dispensa exclusiva hospitalar. A já conhecida
Dispensa de Proximidade foi a resposta dada pelo
Governo a esta premente necessidade. Depois de vários
projetos-piloto ao longo dos últimos anos, nomeadamente
com terapêuticas antirretrovirais, a pandemia pelo novo
Coronavírus serviu de catalisador para uma realidade
já existente em muitos outros países da União Europeia
e da OCDE. 1
No âmbito do Fórum do Medicamento 2020, a Associação
Portuguesa de Administradores Hospitalares propôs-
-se a analisar as alterações resultantes da disponibilização
deste serviço de proximidade e a perceber a dimensão
do impacto destas na vida dos utentes. Foi então conduzido
um estudo populacional, durante duas semanas (de
20 de outubro a 4 de novembro), através do qual foi recolhido
o testemunho de 510 pessoas responsáveis pela
recolha da medicação hospitalar em hospitais públicos,
sejam elas os próprios doentes crónicos, os seus cuida-
dores ou pessoas em regime de Profilaxia Pós-Exposição
(PPE). A amostra foi considerada representativa da
população Portuguesa, com distribuição proporcional em
termos de faixas etárias e distrito de residência (Figura 1).
O questionário aplicado foi estruturado em 3 momentos
- pré-pandemia, confinamento e pós-confinamento
- sendo identificado e explicado o processo de obtenção
da medicação hospitalar e o nível de satisfação para com
este; já as perguntas finais tiveram como objetivo perceber
as expectativas dos utentes para o futuro.
Como seria expectável, as alterações ao processo fizeram-se
sentir logo no confinamento, com tendência a
manterem-se nos meses que se sucederam. No que concerne
ao local onde é obtida a medicação de dispensa
exclusiva hospitalar, 38.3% dos inquiridos transitaram de
regime de dispensa no confinamento, seguidos de mais
19.2% no pós-confinamento. Como parte desta última
percentagem regressou ao regime em que se encontrava
no período pré-pandémico, observou-se uma alteração
efetiva em 35.8% dos casos. Antes da pandemia, 3 em
cada 4 utentes tinham de se deslocar a uma farmácia hospitalar,
fosse esta no hospital responsável pela medicação
ou num hospital mais próximo da sua residência. Com as
medidas impostas durante o confinamento, 29.2% dos inquiridos
transitou para um modelo de proximidade, com
a entrega da medicação no domicílio a abranger 5 vezes
mais utentes, enquanto que o levantamento na farmácia
comunitária quase duplicou. De forma global, a dispensa
de proximidade passou a ser uma realidade para cerca de
metade dos utentes (Figura 2). No entanto, 6.0% destes,
voltaram ao modelo de dispensa hospitalar no pós-confinamento,
metade dos quais por imposição do hospital.
Mais de 40% dos inquiridos manteve o regime hospitalar
mesmo em contexto pandémico. Deste grupo, mais de
metade referiu não ter sido informado pelo hospital de
Figura 1
Figura 2
que haveria outra alternativa; cerca de 20% teve conhecimento,
mas decidiu manter o local.
As medidas aplicadas no programa de Dispensa de Proximidade
previam também a agilização de outros aspetos
no processo de obtenção da medicação hospitalar.
De facto, a obrigatoriedade de apresentar uma prescrição
médica em papel a fim de ter acesso à medicação
hospitalar reduziu para metade no confinamento, sendo
substituída pela receita eletrónica, via SMS, ou introduzida
diretamente no sistema pelo médico prescritor. Por outro
lado, foram privilegiadas as prescrições para períodos
mais alargados, em detrimento das quinzenais ou mensais
(Figura 3). A frequência de falta da medicação necessária
para a continuidade do tratamento não alterou de forma }
86 87
GH estudo apah
Figura 3
Figura 4
significativa (25.0%, 24.2% e 21.0%, em cada período respetivamente),
ao contrário dos motivos que geraram essa
falta: as ruturas de stock baixaram de forma transversal a
todas as modalidades de obtenção da medicação, ao longo
dos três períodos; também os motivos relacionados
com falta de disponibilidade horária ou financeira perderam
relevância; em sentido oposto, a dificuldade acrescida
em marcar consultas e conseguir uma prescrição médica,
representaram, em conjunto, as causas mais comuns.
Por forma a quantificar o impacto que a obtenção da
medicação hospitalar causa na vida dos utentes, estes
foram questionados relativamente ao tempo e dinheiro
despendido no processo, meio de transporte utilizado na
deslocação até ao local onde levantam a medicação, e
ainda sobre o impacto na atividade laboral. Ora, o maior
impacto fez-se sentir no grupo de utentes que transitou
de um modelo de dispensa hospitalar, nos meses que antecederam
a pandemia, para um modelo de proximidade
no confinamento, mantendo esta escolha no pós-confinamento.
Se por cada deslocação à farmácia hospitalar,
cerca de metade destes utentes fazia mais de 40km (considerando
ida e volta), a mudança para um modelo de
proximidade permitiu uma poupança média de 112km
por utente. Esta redução foi mais sentida pelos utentes
das Administrações Regionais de Saúde (ARS) do Centro
e Lisboa e Vale do Tejo, onde cada utente fazia em
média 91.9 e 59.5km, respetivamente, e passou a fazer
8.6 e 2.2km. As deslocações mais longas representavam,
para cerca de 30% destes utentes, um custo superior a
20€ e um dispêndio de mais de duas horas em 40% dos
casos. No local onde era recolhida a medicação, 25% dos
utentes perdia mais uma hora. O tempo dedicado a este
processo implicava faltas no trabalho em mais de metade
dos casos, com impacto na remuneração mensal de
42.5% dos utentes. Com a transição para uma dispensa
de proximidade, o tempo e custo despendidos, bem como
o impacto negativo na atividade laboral foram amplamente
reduzidos.
Um outro efeito interessante no seguimento desta mudança,
é a relevância que o farmacêutico comunitário ganha
no esclarecimento de dúvidas. Do modelo hospitalar
para o de proximidade, a percentagem de utentes que
recorre ao farmacêutico comunitário aumenta de 8.0%
para 31.3%. Ainda assim, o médico continua a ser a preferência
em 50% dos utentes em regime de proximidade.
Com as melhorias significativas observadas, não seria de
esperar outra reação que não um aumento da satisfação
destes utentes, que avaliaram o regime de dispensa hospitalar
com um 3.12 em 5, no período pré-pandemia, e o
regime de proximidade com um 4.61 em 5, no pós-confinamento.
De facto, a satisfação aumentou em todos os
parâmetros, incluindo o atendimento prestado, a simpatia
e o esclarecimento de dúvidas. Já os utentes que mantiveram
a dispensa hospitalar nos três períodos, avaliam
ligeiramente pior o serviço no pós-confinamento (3.88
em 5) comparativamente ao período que antecedeu a
pandemia (3.94 em 5), devido sobretudo à diminuição da
satisfação na comunicação e esclarecimento de dúvidas.
Independentemente do meio ou meios de obtenção da
medicação hospitalar já experienciados, se os utentes tivessem
de optar por um local para o seu levantamento,
43.7% escolheriam a farmácia comunitária, enquanto outros
dariam preferência em receber a medicação em casa
(39,2%) ou no local de trabalho (4.1%). Falamos de um
total de 87% dos utentes que, se lhes fosse dada essa
“
A SITUAÇÃO PANDÉMICA
EM QUE VIVEMOS NOS ÚLTIMOS
MESES, OBRIGA-NOS A ENFRENTAR
DIFICULDADES NUMA BASE DIÁRIA,
PARA AS QUAIS NOS REINVENTAMOS
E ADAPTAMOS O MELHOR
QUE PODEMOS.
”
possibilidade, evitariam as deslocações ao hospital. Mais
do que uma preferência, 2 em cada 3 utentes estariam
dispostos a pagar para receber a medicação num local à
sua escolha, independentemente de serem ou não isentos
de taxas moderadoras. A pré-disposição bem como
o valor que cada utente considera razoável para este serviço,
difere ligeiramente entre os grupos de utentes que
suportam custos de deslocações inferiores ou superiores a
10€, sendo que 21.7% deste segundo segmento estariam
dispostos a pagar mais de 5€.
A situação pandémica em que vivemos nos últimos meses,
obriga-nos a enfrentar dificuldades numa base diária,
para as quais nos reinventamos e adaptamos o melhor
que podemos. Deste período devemos reter a aprendizagem
e as mudanças que tenham sido para melhor. Este
estudo populacional veio mostrar o impacto positivo da
mudança na vida destes utentes, e como tal, espero que
sirva de orientação para levar essa melhoria a um maior
número de pessoas. Ã
1. Portugal. Infarmed - Circular Normativa nº 005/CD/550.20.001 2020-04-07.
Orientações sobre o acesso de proximidade a medicamentos dispensados em
regime ambulatório de farmácia hospitalar no atual contexto de pandemia por
Covid-19.
Nota: Os dados apresentados ao longo deste artigo provêm do estudo populacional
promovido pela APAH e conduzido pela 2Logical, de 20 de outubro a 4 de
novembro. O referido estudo foi realizado com recurso a uma abordagem metodológica
de natureza quantitativa, sendo os respondentes da amostra selecionados
através do método de quotas, com base numa matriz que cruzou variáveis de
idade e região. A informação foi recolhida através de entrevistas online, suportadas
por um questionário com perguntas fechadas, semifechadas e abertas, sendo
consideradas ilegíveis para análise 510 respostas.
88 89
GH Iniciativa APAH | Prémio Coriolano Ferreira 2020
DESAFIOS E CONTRIBUTOS
DA ESPECIALIZAÇÃO EM
ADMINISTRAÇÃO HOSPITALAR
NA ESFERA DA PANDEMIA
Dora Melo
Administradora Hospitalar,
Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE
O
prémio de mérito Professor Coriolano
Ferreira - promovido pela APAH
e Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP) e patrocinado pela IQVIA e
IASSIST, honra o ilustre e distinto Professor,
membro do grupo de peritos que a Organização
Mundial de Saúde convidou, em 1959, para preparar o
Curso de Administração Hospitalar. Na sequência do reconhecimento
com o referido prémio, fui desafiada pela
APAH para refletir sobre o Curso de Especialização em
Administração Hospitalar (CEAH) e o seu impacto no
meu percurso profissional.
Parei para refletir e considerei que seria pertinente focar-me
no tema da 8ª Conferência da APAH que discutiu
uma temática tão atual como imprescindível “Inovar
e Liderar na Incerteza”. Desta forma, decidi abordar a
gestão do inesperado e o seu impacto na atividade do
Administrador Hospitalar.
A saúde, na realidade, apresenta um elevado grau de
complexidade e incerteza que depende de fatores biológicos,
socioeconómicos e ambientais. É neste contexto
que a esfera da saúde se encontra cada vez mais inserida
num clima de instabilidade ao qual está associado o
conceito do inesperado. Assim, somos sistematicamente
confrontados com novos desafios e experiências que
nem sempre são lineares, como é exemplo a situação
que vivemos atualmente - a pandemia associada à doença
infeciosa Covid-19 (Coronavirus Disease 2019) que
colocou o foco na gestão da crise.
No último século o mundo testemunhou duas das mais
impactantes guerras que há memória, que acarretaram
graves consequências no foro socioeconómico global.
No entanto, no atual momento vivemos uma realidade
que praticamente nenhum dos presentes viveu outrora.
Precisamos de recuar um século para testemunhar uma
calamidade equiparável no âmbito da saúde pública. A
pandemia causada pelo vírus Covid-19 já provocou mais
de 66 milhões de infeções, conhecidas, em todo o mundo.
É responsável por mais de 1,5 milhões de mortos. Em
Portugal, até ao presente momento foram notificados
mais de 300.000 casos de infeção, sendo esta fatal em
cerca de 5.000 casos.
A presente pandemia mostrou, ainda, que a economia
mundial, apesar da profunda robustez com que nos é
apresentada, corresponde a um terreno extremamente
frágil. Segundo o FMI, a atual pandemia vai provocar “profundas
mudanças estruturais” na economia mundial, prevendo-se
que possa corresponder à maior recessão económica
do século.
Conforme sublinhou Christine Lagarde, serão necessárias
medidas estruturais bem definidas de forma a realocar
adequadamente os recursos nos setores viáveis de forma
a minimizar o impacto na economia. Revejo a mesma
premência e necessidade no âmbito da saúde, realçando
o papel primordial do Administrador Hospitalar como
decisor e influenciador da saúde em Portugal.
O presente contexto de pandemia tem revelado que
a saúde pública depende essencialmente da capacidade
de resposta do sistema de saúde nas situações de crise.
Tudo está interligado e o nosso sucesso depende da resposta
à complexa realidade em que se passa da estabilidade
para o inesperado num curto espaço de tempo.
O conceito de inesperado torna-se, assim, um grande
desafio para todos os profissionais, adquirindo novos
contornos quando aplicado às organizações de saúde.
Enfrentá-lo pode ter graves implicações na performance
e no desenvolvimento de novas estratégias. Assim,
exige-se à Administração Hospitalar medidas sujeitas a
constante inovação e evolução.
Exige-se o reconhecimento das necessidades da população
e uma melhor adequação dos recursos, que invariavelmente
são finitos, obrigando a decisões e discussões
éticas e políticas que envolvem governantes, gestores,
profissionais de saúde e cidadãos.
Segundo Weick e Sutcliffe, 1 as organizações que adotam
uma postura de abertura em relação a todos os cenários
possíveis, procuram atualizações constantes dos processos
organizacionais bem como da tecnologia existente,
com a finalidade de perceber a totalidade da envolvência
e o próprio problema. Torna-se indispensável dotar
todos os profissionais com os recursos necessários para
estimular a sua capacidade de adaptação e de resolução
de problemas face ao inesperado.
Situações de grande instabilidade e incerteza como a
que vivemos atualmente, fazem-nos perceber que somos
constantemente confrontados com momentos de
aprendizagem contínua e devemos aliar-nos a uma postura
de total abertura face ao inesperado e à necessidade
de constante atualização dos nossos conhecimentos.
Teremos, todos, que adotar uma nova postura e forma
de pensar. Esta postura permitir-nos-á ir aproximando
as nossas instituições às organizações altamente fiáveis
(High Reliability Organization - HRO), que segundo os
referidos autores, se caracterizam por uma atitude de
maior sensibilidade e antecipação face ao inesperado.
Estar preparado para atuar caso surja um novo evento,
independentemente de terem ocorrido esforços no
sentido de promover a antecipação do mesmo, é outra
das características determinantes do sucesso das HRO.
Também na perspetiva de Martins, 2 as HRO privilegiam
a determinação das condições a evitar em vez das
condições a obter, identificando os resultados que não
pretendem obter e desenvolvendo a sua atividade para
que estes nunca ocorram. A elevada incerteza com que
as organizações de saúde se deparam, exige que estas
saibam gerir o inesperado. }
92 93
GH Iniciativa APAH | Prémio Coriolano Ferreira 2020
“
O DESAFIO É GRANDE, OU MELHOR,
É ENORME, MAS COM O TRABALHO
DE EQUIPA, COM PROFISSIONAIS
COMPETENTES, COMPROMETIDOS
E MOTIVADOS E COM A RESILIÊNCIA
QUE NOS DEVE CARACTERIZAR
HAVEMOS DE CONSEGUIR DAR
A RESPOSTA.
”
À medida que o conhecimento e as capacidades vão ficando
desajustados em virtude da incerteza e da mudança
do contexto organizacional atual, torna-se evidente a necessidade
das organizações de saúde e dos Administradores
Hospitalares incrementarem a capacidade de aprendizagem,
munindo-se de novas competências que lhes permitam
responder com sucesso às alterações ambientais.
Outro fator importante, o conceito de Learning Organization
tem, de acordo com Osório, 3 vindo a ser aceite
como um tipo de estratégia vital para a sobrevivência
das organizações, especialmente as que se encontram
envolvidas em ambientes turbulentos, próprios de um
mundo em constante mudança. Será crucial seguirmos o
princípio de “aprender com os erros”, pois só assim evoluiremos
no sentido de responder aos novos desafios.
A forma como gerimos as oportunidades de aprendizagem
e as capacidades de adaptação e inovação, permitirnos-á
aumentar a performance, a eficiência e a efetividade
do desempenho das organizações de saúde.
Existe sempre algo passível de nos surpreender, como a
ocorrência de um acontecimento inesperado cuja análise
pode não ser simples, uma vez que essa simplificação
poderá ocultar aspetos fulcrais na compreensão do fenómeno.
Deve ser dada uma maior atenção aos pormenores
de forma a observar um maior campo de ação, assim
como diferentes pontos de vista e opiniões de todos os
profissionais. A resolução dos eventos inicia-se quando
surge um acontecimento inesperado e os profissionais
têm que desenvolver as atividades com o compromisso
e a resiliência aliados à deferência com a expertise.
O Administrador Hospitalar deve adotar uma postura de
maior abertura e disponibilidade, considerando todas as
medidas que visem gerir o inesperado, atuando assim que
surja qualquer evento, não esquecendo a resiliência e realizando
todas as ações de forma ponderada, pensada e clara.
O curso de Administração Hospitalar proporcionou-me
esta poderosa ferramenta, a capacidade de ser crítica e
tomar decisões. Permitiu desenvolver a minha inteligência
ativa, representada como o escrutínio das expectativas
existentes, o contínuo refinamento e diferenciação
baseada nas novas experiências. Fomentou o desejo e a
capacidade para inventar novas expectativas que façam
sentido aos eventos ocorridos e a identificação de novas
dimensões que melhorem o funcionamento.
Reconheço que o CEAH foi, é e será, indubitavelmente,
determinante e obrigatório a todo e qualquer profissional
que pretenda aprofundar ou enveredar pelo ramo
de administração, gestão ou investigação em saúde.
Constitui provavelmente, senão com toda a certeza, a
maior fonte de know-how em gestão e governação em
cuidados de saúde.
Mais que uma carreira, a Administração Hospitalar é a
esfera na qual pretendo passar grande parte dos sucessivos
dias no decorrer de longos anos. Assim, aproveito
a oportunidade para agradecer a todo o corpo formativo
da ENSP, pela capacidade técnica, incentivo, sentido crítico
e ensinamentos transmitidos neste percurso formativo.
Agradeço e reconheço, ainda, que o CEAH me proporcionou
um contacto e partilha de experiência e conhecimento
com os profissionais da maior excelência nacional.
O desafio é grande, ou melhor, é enorme, mas com
o trabalho de equipa, com profissionais competentes,
comprometidos e motivados e com a resiliência que nos
deve caracterizar havemos de conseguir dar a resposta
que a população e as organizações de saúde merecem
e esperam de nós.
Mais que desenvolver processos para solucionar os problemas
atuais é crucial que tenhamos a capacidade de
gerir o inesperado e desenvolver processos que permitam
dar uma resposta rápida a situações de incerteza.
Este é o meu compromisso. Ã
1. Weick KE, Sutcliffe KM. Managing the unexpected: Assuring high performance in
an age of complexity. 1st ed. San Francisco: Jossey-Bass; 2001.
2. Martins L. Organizações de saúde: por uma cultura da fiabilidade. In Fragata J,
Martins L. O Erro em Medicina: Perspectivas do indivíduo, da organização e da sociedade.
Coimbra: Edições Almedina; 2004. p. 213-252.
3. Osório J. Learning Organization: As práticas de gestão de recursos humanos e o
papel da cultura organizacional. Braga. Tese (Doutoramento em Ciências Empresariais)
- Universidade do Minho, Escola de Economia e Gestão; 2009.
94
GH Iniciativa APAH | fórum do medicamento
REFLEXÃO SOBRE O MODELO
DE ACESSO AO MEDICAMENTO
HOSPITALAR
Quais os principais desafios na acessibilidade
ao medicamento hospitalar? Como tem sido
a resposta hospitalar na dispensa de
proximidade durante a pandemia? Podemos
repensar o atual modelo nacional de
dispensa de medicamentos hospitalares?
Com a experiência adquirida durante a pandemia no
acesso aos medicamentos hospitalares tem sido equacionada
a possibilidade de estes poderem ser dispensados
num regime de maior proximidade e respondendo
às necessidades específicas dos utentes.
Nesse sentido e cientes da exigência em repensar e desenvolver
modelos com circuitos de prescrição, gestão e
dispensa de medicamentos hospitalares centrados nas
preferências e expectativas dos doentes a Associação
Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH),
com o apoio da AstraZeneca, organizou a 12ª edição do
Fórum do Medicamento. A iniciativa presidida por Francisco
Ramos, teve lugar a 13 de novembro, e foi subordinada
à análise e discussão da “Acessibilidade ao medicamento
- Precisamos de um novo normal?”.
À semelhança da edição anterior, a moderação do Fórum
do Medicamento esteve a cargo de Paula Rebelo,
jornalista da RTP, e trouxe até nós o estado da arte nacional
e da Europa sobre o acesso ao medicamento hospitalar,
incluindo uma apresentação sobre a resposta da
farmácia hospitalar na dispensa de proximidade na pandemia,
por Paula Campos, Presidente do Colégio de Farmácia
Hospitalar da Ordem dos Farmacêuticos e ainda
uma apresentação sobre os modelos e realidades da dispensa
de medicamentos na União Europeia e do impacto
gerado pela pandemia, a cargo de Duarte Santos, Presidente
do Pharmaceutical Group of European Union.
Na edição deste ano contamos também com a apresentação
pública dos resultados do estudo à população
“Acessibilidade e dispensa de proximidade ao medicamento
hospitalar”, uma iniciativa da APAH, realizada
com o apoio técnico da 2Logical, com o objetivo de perceber
as expectativas e necessidades dos utentes, ou dos
seus cuidadores, no processo de acesso e dispensa dos
medicamentos hospitalares (ver artigo nesta edição).
Tivemos ainda oportunidade de analisar e discutir a Estratégia
Nacional para o acesso ao medicamento hospitalar,
com a presentação das recomendações prelimi-
nares do Grupo de Trabalho para a Dispensa de Proximidade
de Medicamentos, criado pelo Despacho n.º
6971/2020, e que foi realizada por Cláudia Furtado, Diretora
do INFARMED, I.P. , a que se seguiu o habitual debate
com a participação de Ana Paula Martins, Bastonária
da Ordem dos Farmacêuticos, António Faria Vaz, Vice-
-Presidente do INFARMED I.P., Paulo Duarte, Presidente
da Associação Nacional de Farmácias, Paulo Gonçalves,
Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose
Múltipla e Rosário Trindade, Diretora de Corporate Affairs
& Market Access da AstraZeneca.
A encerrar a 12.ª edição do Fórum do Medicamento,
Francisco Ramos, deixou-nos as seguintes conclusões e
recomendações:
1. Por toda a Europa a distribuição de medicamentos nas
farmácias, mesmo em tempos de pandemia, foi um dos
setores que claramente resistiu e, portanto, as populações
continuaram a ter acesso aos medicamentos. Em
Portugal isso também foi verdade e as farmácias de oficina
desempenharam o seu papel de forma normal.
2. Em termos de distribuição de medicamentos hospitalares
foi incentivada e aumentada a distribuição de
proximidade no domicílio e nas farmácias. Foram desenvolvidos
projetos um pouco por todos os hospitais e
encontraram-se alternativas, com mais ou menos dificuldade,
para que todos os portugueses tivessem acesso ao
medicamento de distribuição exclusivamente hospitalar.
3. O resultado do inquérito realizado aos utentes demostrou
a enorme satisfação com a facilidade de acesso
aos medicamentos hospitalares durante a pandemia,
com menores custos, perda de tempo e de faltas ao trabalho.
Ficou, contudo, por avaliar neste inquérito se a
informação clínica para os utentes foi assegurada.
4. Tivemos acesso às conclusões preliminares do grupo
trabalho nomeado pelo Governo para preparar o futuro
próximo e esta é claramente uma matéria sensível e devemos
ter em consideração quatro questões essenciais:
• Não vale a pena complicar. Nesta altura devemos focar-nos
no que fizemos bem e dos resultados do que foi
feito durante a pandemia;
• A correção da lista dos medicamentos não deve ser
uma prioridade neste momento:
• A responsabilidade de dispensar estes medicamentos
é dos hospitais. O que esta pandemia e várias experiências
pré-pandemia demostraram é que esta dispensa
não tem de ser feita ao balcão da farmácia hospitalar e
que há alternativas que facilitam a vida às pessoas se
forem dispensados em proximidade sob a responsabilidade
dos hospitais;
• Qual é o papel do farmacêutico hospitalar? Quer ser
parte integrante da equipa de saúde do hospital ou ser o
elo de ligação com os farmacêuticos de oficina? Ã
96 97
GH Iniciativa APAH | bolsa capital humano
A URGÊNCIA MAIS URGENTE
DOS CUIDADOS DE SAÚDE
Diogo Fernandes da Silva
Médico, Co-fundador da nobox
A
falta de investimento no potencial humano
no Serviço Nacional de Saúde
(SNS) tornou-se ainda mais evidente
com a pandemia, mas esta crise nos
cuidados de saúde já cá existia, à vista
de todos, mas sem receber, cronicamente, a atenção
que precisava.
A resposta a esta pandemia não foi conseguida apenas à
custa da aquisição de recursos técnicos e materiais. Foi,
essencialmente, conseguida devido à mobilização e empenho
de todos os profissionais de saúde que trabalham
no SNS, que neste desafio demonstraram a sua
qualidade, competência e espírito de sacrifício.
No início desta crise, os profissionais de saúde foram deslocados
para dar uma resposta imediata. Depois disso,
foram aos poucos redistribuídos para retomar a sua atividade
basal (mesmo que não nos mesmos moldes pré-crise),
assumindo, no dia-a-dia procedimentos, processos e
metodologias adicionais ou diferentes daqueles a que estavam
habituados. Entretanto, com a instalação do segun-
do pico da crise, o ciclo volta a repetir-se em muitas organizações
de saúde, mas com com uma diferença: as
equipas de saúde estão desgastadas, a sua metodologia
de trabalho já não é a mesma, e a grande energia e motivação
para combater a pandemia há muito foram substituídas
por frustração e desespero.
Um desespero para que tudo acabe, e para que tudo
volte a ser como antes.
E se de facto, por um lado, mais cedo ou mais tarde, a
pandemia acabará, por outro lado as mudanças e as acelerações
que incutiu no sistema de saúde perdurarão,
pelo que a forma de trabalhar das equipas nunca mais
será idêntica.
A pandemia provocou várias alterações ao funcionamento
das equipas. Deixou de existir no dia-a-dia um
elemento de empatia e ligação entre pares com o uso
contínuo de máscara (no mínimo, pois muitos profissionais
passam horas com EPIs que cobrem o corpo na
íntegra). Por outro lado, várias equipas foram fragmentadas,
com elementos deslocados para a linha da frente
de combate à pandemia, enquanto outras equipas foram
separadas fisicamente, como por exemplo aquelas
colocadas a trabalhar remotamente. As equipas foram
também desafiadas a adotar novos processos, desde a
admissão dos doentes à gestão do seu percurso no hospital,
assim como a implementar metodologias até então
estagnadas, de que é exemplo a realização de consultas
em formato de telemedicina. Com o decorrer da
pandemia, assistiu-se também ao fenómeno do aumento
do número de negacionistas/descredibilizadores do
problema, ao mesmo tempo que a motivação dos entusiastas
diminuiu.
Se tudo isto pode destabilizar uma organização, esse impacto
agrava-se quando se enxerta num ambiente com
problemas crónicos e com carências que há muito necessitam
de atenção:
• Barreiras à inovação e mudança: “Isso vai ser muito
difícil” é das respostas mais frequentes quando alguma
ideia nova é apresentada. Infelizmente, não se trata só
da natural resistência humana à mudança, mas de uma
materialização das grandes barreiras a ultrapassar para
implementar qualquer novo procedimento ou sistema;
• Profissionais de saúde desmotivados: com a crescente
carga de trabalho e burocracia e decrescente sentimento
de realização e reconhecimento, quer pelos pares, quer
pelos doentes e sociedade;
• Equipas descoordenadas, desgastadas e com colaboradores
insuficientes: a ausência de investimento nas
equipas de saúde criou uma situação insustentável, com
exigências crescentes em termos de resultados, com
menos profissionais e sem atribuição de recursos ao seu
bem-estar. É também frequente falar-se de equipas multidisciplinares
e da sua importância em saúde, mas as palavras
não têm sido acompanhadas por esforços concretos
para promover uma maior interdependência, desenvolvimento
e empoderamento do trabalho interprofissional
e colaborativo, mantendo-se equipas com um subaproveitamento
da sua capacidade;
• Lideranças com insuficiente autonomia, responsabilidade
e, por vezes, competências ou apoio para
exercício das suas funções: a capacitação e apoio à
liderança não existem, esperando-se que a excelência
técnica seja suficiente para uma boa liderança. Cabe
assim a cada um assumir os custos do seu desenvolvimento
profissional. Adicionalmente, a inércia e ausência
de autonomia afasta rapidamente grande parte dos
bons líderes do sistema;
• Ausência de uma estratégia de gestão e retenção
de talento: tarefas repetitivas e/ou desligadas das suas
preferências ou competências, equipas com um ambiente
de trabalho tóxico ou exigências desproporcionais,
comprometimento da vida pessoal pelo trabalho,
entre outros fatores, contribuem não só para a falta de
sentimento de pertença a uma instituição, como para
aumentar o desejo de saída à procura de novos e melhores
desafios. Num panorama onde é cada vez mais
difícil captar e alimentar o talento, é fundamental que
as equipas e as organizações tomem ações conscientes
para o promover.
Mesmo nestas (péssimas) condições, em poucas semanas,
atravessando um clima de dúvidas, incertezas e receios,
e nem sempre com orientações claras e específicas,
os serviços do SNS foram capazes de se reinventar
e reorganizar para conseguir dar resposta à pandemia.
Tudo isto forçou reestruturações nas instituições,
com algumas mudanças que perduram e que fizeram
as lideranças perceber que algumas coisas se podem
fazer de forma diferente e melhor.
Ao longo de todo este processo, houve também
muitos líderes - vários até de forma inesperada - que
emergiram à tona das organizações de saúde, o que
nos relembra que não devemos esperar por crises
para identificar e reconhecer o talento e incentivar
lideranças que acreditam e apostam verdadeiramente
nas pessoas como capital estratégico para as organizações
de saúde.
Por tudo isto, torna-se agora ainda mais premente desenvolver
o funcionamento e gestão das equipas e do
potencial humano dos seus elementos.
Um primeiro passo para a mudança de paradigma
Neste contexto, a APAH (Associação Portuguesa de
Administradores Hospitalares) lançou a Bolsa Capital
Humano, apoiada pela Gilead, com a consultoria técnica
da nobox, com o objetivo de reconhecer e potenciar
o capital humano do SNS, dotando os seus
profissionais das competências necessárias para liderarem
e implementaram projetos que promovam
uma mudança positiva nas suas realidades.
Qualquer instituição do Serviço Nacional de Saúde
(Centros Hospitalares, Unidades Locais de Saúde ou
Agrupamentos de Centros de Saúde) poderá candidatar-se
a esta bolsa, tendo para isso que submeter
uma proposta de projeto direcionada ao desenvolvimento
do capital humano na sua instituição. Serão
seleccionadas duas instituições, de acordo com a
qualidade, pertinência e potencial de mudança dos
projetos submetidos.
As bolsas consistem no acesso a um programa, coordenado
pela nobox, que permitirá às instituições
acelerar a implementação desses projetos, através de
dois apoios:
• Programa de Formação, focado em Liderança de
Equipas, Alinhamento Organizacional e Gestão de
Mudança, com a duração de 48 horas para 15 profissionais
de cada instituição;
• Apoio técnico no formato de consultoria à implementação
de um Projeto de Mudança do Capital
Humano, durante o ano de 2021.
As inscrições decorrerão entre 16 de Novembro
de 2020 e 15 de Janeiro de 2021, no site da APAH,
onde poderão também encontrar os detalhes para
a candidatura.
Esta bolsa foi pensada e desenhada especificamente
para desenvolver competências nos profissionais de
saúde de forma a que possam contribuir proativamente
nos processos de transformação em curso nas
suas realidades hospitalares e, em particular, liderar a
dimensão humana das mudanças que se venham a
implementar no futuro, nomeadamente com os seguintes
objetivos:
1. Empoderamento dos profissionais para inovar;
2. Gestão de mudança e resistência à inovação;
3. Motivação, satisfação e desempenho dos profissionais;
4. Desenvolvimento de equipas de alto rendimento;
5. Captação e retenção de talentos;
6. Desenvolvimento de novos líderes. Ã
98 99
GH ACADEMIA DIGITAL APAH
TODOS JUNTOS, NA CONSTRUÇÃO
DE UMA SAÚDE DE EXCELÊNCIA!
Henrique Marçal
CEO & Partner The Lean Six Sigma Company Portugal
Dezembro 2020, o final de um dos anos
mais difíceis e mais atípicos de que há
memória. O ano da pandemia Covid-19!
Será para sempre recordado e
marcará certamente presença nos manuais
de história.
Não poderia por isso deixar de prestar a minha sincera
homenagem a todos profissionais da área da saúde: médicos,
enfermeiros, técnicos, auxiliares, administradores e
gestores hospitalares, enfim… Milhares e milhares de profissionais
incansáveis, resilientes e de uma humanidade
notável! A todos vós, o meu mais profundo obrigado!
Existem dois pilares que suportam uma sociedade e um
país, a saúde e a educação. Tudo o resto, embora de extrema
importância, só é sustentável tendo por base estes
dois eixos essenciais.
Tanto a saúde como a educação têm evoluído nas últimas
décadas de forma significativa, mas há ainda um longo
caminho a percorrer. Como em qualquer outro processo
de mudança ou evolução, identificar e reconhecer
a necessidade de melhoria é sempre o primeiro passo.
Os profissionais de saúde trabalham sob um stress elevado,
horas a mais, e com recursos limitados. Não bastasse
já a importância e a responsabilidade que é, prestar serviços
de saúde, e salvar vidas!
É então responsabilidade de todos fazer o seu papel, e
contribuir ativamente no processo de mudança, evolução
e melhoria.
A melhoria contínua é uma filosofia japonesa que visa
melhorar de forma continuada todas as dimensões da vida
das pessoas, seja no âmbito pessoal, familiar ou profissional.
No âmbito profissional significa melhorar continuamente,
todos os dias, todas as áreas da organização, e
envolvendo todas as pessoas.
O grande desafio da melhoria contínua é torná-la sustentável.
Para tal ser possível tem de existir uma visão a longo
prazo, mesmo que isso implique o sacrifício de ganhos
financeiros imediatos que nos desviem desse caminho.
É o papel dos líderes e dos gestores, assegurar que essa
visão a longo prazo existe, assim como definir a missão e
os valores que a guiam. É de vital importância também, garantir
que estes são comunicados de forma clara e transparente
de modo a serem compreendidos, partilhados e
respeitados por todos.
Um líder, no entanto, não tem de saber tudo, e pode
estar errado. Tem é que ter a capacidade de identificar as
pessoas certas, colocar as questões certas, proporcionar
um ambiente de confiança e segurança, e apoiar quem o
rodeia na busca de respostas e soluções.
A Filosofia de Gestão Lean Six Sigma é a metodologia
de excelência, cientificamente provada, para a implementação
com sucesso de programas de transformação
cultural, operacional, e de melhoria contínua. Resulta da
sinergia e da combinação de duas metodologias, o Lean
e o Six Sigma.
O Lean, originário do Japão, particularmente da Toyota,
foca-se na redução do tempo dos processos, e na criação
de fluxo através da constante identificação, redução e/ou
eliminação de desperdícios (muda). Entenda-se por desperdício,
qualquer atividade ou tarefa realizada sem valor
acrescentado, ou seja, que não transforma o produto ou
serviço, que não é bem feita à primeira, ou que o nosso
cliente/utente não está disposto a pagar.
O termo Lean foi celebrizado pelo livro The Machine That
Changed the World, de James Womack, Daniel Jones e
Daniel Roos, que em 1990 deu a conhecer ao mundo
ocidental a história de sucesso da Toyota, e do TPS (Toyota
Production System), o sistema de produção da marca
japonesa que a catapultou para a liderança do setor automóvel,
poucos anos após ter estado à beira da falência
fruto da devastação sofrida pelo Japão durante e após a
2ª Guerra Mundial.
O Six Sigma por outro lado, tem como objetivo melhorar
a qualidade dos resultados dos processos (outputs), através
da identificação e eliminação das causas de erros e
defeitos. Para tal, foca-se na redução da variabilidade nos
processos. Quanto menor a variabilidade, mais estáveis e
controlados são os processos, e, portanto, mais fiáveis e
consistentes os seus outputs.
Foi desenvolvido pela Motorola em 1986, pelo engenheiro
americano Bill Smith, tendo sido posteriormente exponenciado
mundialmente pelas mãos de Jack Welch, que
colocou o Six Sigma no centro da estratégia de gestão da
General Electric (GE), tornando a multinacional americana
numa das empresas mais valiosas do mundo na altura. “A
variabilidade é um demónio”, dizia Welch, que fazia frequentemente
referências ao Six Sigma e às inúmeras vantagens
da sua aplicação.
A partir do final do século XX, início do século XXI, as
duas metodologias começaram a ser aplicadas de forma
conjunta, enquanto filosofia de gestão estratégica. O objetivo
principal de uma “Organização Lean Six Sigma” é a
entrega do respetivo produto ou serviço, no tempo certo,
com a qualidade certa, bem feito à primeira, despendendo
para tal do mínimo de recursos possível.
Embora muito associado a processos industriais e de manufatura
numa fase inicial, devido ao valor acrescentado
da sua aplicação e aos resultados comprovados, o Lean
Six Sigma rapidamente se difundiu pelos mais diversos setores
de atividade.
Mas sabia que mais de 60% das organizações que tentam
implementar Lean Six Sigma falham?
Melhoria contínua implica também, necessariamente, quebrar
certas crenças e paradigmas previamente estabelecidos,
assim como ultrapassar as resistências naturais do
ser humano para a mudança. Frases como, “mas sempre
fizemos assim”, ou “isto nunca vai resultar” são naturais e
habituais, e são o ponto de partida ideal para a transformação
cultural.
O Lean Six Sigma possui uma toolbox com as mais diversas
metodologias e ferramentas, capazes de ajudar a solucionar
os problemas mais complexos. No entanto, simplesmente
“copiar e implementar” uma ferramenta não a torna
sustentável. Nas primeiras semanas, com a atenção da
organização focada naquele determinado processo, os resultados
acontecem, mas com o passar do tempo, rapidamente
se volta ao estado inicial, e a resistência natural das
pessoas à mudança, volta a ganhar força.
É necessário criar uma cultura organizacional orientada
para a melhoria contínua e para a mudança, o que passa
por ter rotinas e boas práticas de gestão diária implementadas,
que garantam o envolvimento e contribuição de todas
as pessoas impactadas, no processo de geração e }
100 101
GH ACADEMIA DIGITAL APAH
“
VAMOS ENTÃO TODOS JUNTOS
CONSTRUIR UM SISTEMA DE SAÚDE
DE EXCELÊNCIA, SUSTENTÁVEL,
COM A CAPACIDADE DE MELHORAR
CONTINUAMENTE, E CONTRIBUIR
PARA FORTALECER UM DOS PILARES
QUE SUPORTAM A NOSSA
SOCIEDADE E O NOSSO PAÍS.
”
implementação de soluções. No setor da saúde, o Lean
Six Sigma tem ganho um particular destaque na última
década, com resultados excelentes e muito animadores.
A constante identificação e redução de desperdícios, a
criação de procedimentos simples e estandardizados,
suportados por uma boa gestão visual, e a redução da
variabilidade nos processos tem proporcionado aos profissionais
de saúde um melhor ambiente de trabalho, índices
mais elevados de motivação e satisfação, um maior
senso de propósito e pertença, assim como uma melhor
qualidade de vida. E tudo isto acontece reduzindo os custos,
despendendo de muito menos esforço, e causando
muito menos stress.
São exemplo de alguns casos de sucesso, a redução e
simplificação da carga burocrática dos processos administrativos,
redução dos tempos de espera por resultados
laboratoriais, redução de ruturas e uma maior disponibilidade
de materiais e equipamentos, redução do tempo de
permanência dos pacientes nas unidades de saúde, melhoria,
redução de movimentações e transporte através
do redesenho de layouts mais eficientes, entre outros.
E numa era em que tanto se estuda e discutem questões
de customer experience, é também de vital importância
ouvir a “voz dos utentes”, perceber que fatores condicionam
e influenciam a qualidade da sua experiência, traduzir
esses fatores para a linguagem dos processos e do
negócio, e integrá-los na estratégia de melhoria.
Só assim, quebrando os” silos” organizacionais existentes,
trabalhando em conjunto e envolvendo todos, administradores
e gestores, médicos, enfermeiros, técnicos, áreas
de suporte, e utentes, podemos fortalecer relações e criar
um ambiente de confiança e segurança orientado ao bem-
-estar tanto dos utentes como dos profissionais de saúde.
A área da saúde por si só, já comporta um grau de variabilidade
e imprevisibilidade bastante elevado, onde por
norma não se consegue prever quando alguém vai necessitar
de cuidados de saúde. Ou seja, já existe tanta variabilidade
especial nos processos, que tudo o resto que
suporta a atividade e o setor tem de estar preparado para
funcionar de uma maneira rápida, ágil e sem erros.
Imagine então uma semana de trabalho, onde pode estar
100% do seu tempo focado em fazer o que realmente
são tarefas de valor acrescentado para os seus utentes,
ou seja proporcionar-lhe os melhores cuidados de saúde,
e uma experiência de qualidade. E é isso mesmo que o
Lean Six Sigma se propõe a ajudá-lo a conseguir atingir.
No entanto, para qualquer programa de melhoria contínua
ser sustentável, é necessário assegurar a adequada
formação dos líderes e das suas equipas, capacitando-os
com o conhecimento, know-how e as skills necessárias.
A APAH juntamente com a The Lean Six Sigma Company
Portugal, uniram esforços e estabeleceram uma parceria
com o objetivo de desenvolver um programa de formação
em Lean Six Sigma, dedicado aos profissionais do SNS.
O programa arrancou em setembro de 2020 com a primeira
edição da Certificação Lean Six Sigma Yellow Belt,
onde tivemos a oportunidade de certificar 34 profissionais.
A sessão inicial foi aberta pelo presidente da APAH,
Alexandre Lourenço, que reforçou a importância desta
parceria, uma vez que permitirá, não só a capacitação dos
profissionais do SNS em filosofias, metodologias e ferramentas
Lean Six Sigma, como também a criação de uma
cultura sustentável de melhoria contínua dentro das várias
instituições de saúde.
O programa terá continuidade em 2021 com mais sessões
de formação e outras iniciativas a serem desenvolvidas
em conjunto com a APAH.
O Grupo The Lean Six Sigma Company, presente em 27
países, é a empresa líder na Europa em formação, certificação
e coaching na área do Lean Six Sigma. Nas últimas duas
décadas tem trabalhado e colaborado com algumas das
maiores organizações do mundo dos mais diversos setores.
No Reino Unido por exemplo, em parceria com o NHS,
foi também desenvolvido e implementado com sucesso,
um programa de formação em Lean Six Sigma no Great
Ormond Street Hospital.
Em jeito de conclusão, partilho um dos lemas da Toyota
com o qual me identifico particularmente: “First we build
people, then we build cars”.
Vamos então todos juntos construir um sistema de saúde
de excelência, sustentável, com a capacidade de melhorar
continuamente, e contribuir para fortalecer um dos
pilares que suportam a nossa sociedade e o nosso país. Ã
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