Revista mensal | N.º 712 | Ano LXIV | Preço 1,50 € (IVA incluído)
além-mar
Abril 2021 | www.alem-mar.org
Perspectiva Missionária
JOVENS
MOVIMENTO
PARA A MUDANÇA
MISSIONÁRIOS COMBONIANOS
ao serviço do evangelho no mundo
CASAS EM PORTUGAL
P. e David Domingues
missionário comboniano, nas Filipinas
Perspectiva Missionária
além-mar
Ano LXV | Nº 712
sumário
Propriedade:
Missionários Combonianos
do Coração de Jesus
Pessoa Colectiva nº 500139989
Redacção
Director: Bernardino Frutuoso (CP 6411 A)
Redacção: Carlos Reis (CP 2790 A);
Fernando Félix (CP 1902 A)
Correspondentes: Arlindo Pinto (Roma);
Feliz Martins (Sudão); Jairo García
(Colômbia); António Carlos Ferreira
(Filipinas)
Colaboradores: Ana Glória Lucas;
António Marujo; Fernando Domingues;
Fernando Sousa; Filipe Messeder;
Francisco Sarsfield Cabral; José Vieira;
Manuel Augusto Ferreira; Marco Bello;
Margarida Santos Lopes; Paolo Moiola;
Susana Vilas Boas
Revisão: Helder Guégués
Paginação: Luís Ferreira
Arquivo: Amélia Maria Neves
Redacção:
Calçada Eng. Miguel Pais, 9
1249-120 LISBOA
Tel. 213 955 286
E-mail: alem-mar@netcabo.pt
Estatuto Editorial: www.alem-mar.org
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Registo na ERC com o n. o 100668
Depósito legal: 7934/85
ISSN 0871 – 5661
Tiragem do número anterior:
14 100 exemplares
além-mar tem o exclusivo para Portugal dos
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| Esquila Misional (México) | Misión sin
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(Bogotá) | World Mission (Manila) | New
People (Nairobi) | Worldwide (Pretória)|
| Afriquespoir (Kinshasa).
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na Internet:
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16
30
45
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
O planeta está ameaçado pela crise
climática. As previsões são sombrias,
até assustadoras, mas há quem não
desista de lutar por um futuro melhor.
A Além-Mar ouviu as histórias de duas
jovens activistas, Marinel Ubaldo, das
Filipinas, e Evelyn Acham, do Uganda.
FRANCISCO NO IRAQUE
O Papa Francisco foi ao Iraque dizer
que é preciso pôr fim à violência, pacificar
a sociedade e reconstruir a alma
do país. Uma peregrinação histórica à
pátria dos três monoteísmos, que já
começou a ter consequências.
GENTE SOLIDÁRIA
Em Kinshasa, capital da República Democrática
do Congo, a Casa Social Daniel
Comboni e o Centro de Formação
Integral Santíssima Trindade são duas
estruturas destinadas a pôr as jovens
de pé e ajudá-las a viver.
Foto de capa: © iStock
04 Fórum
05 Editorial
06 Actualidades
11 África minha
12 Igreja em missão
13 Contraponto
14 Do alto dos Andes
28 Género musical
34 Jovens
38 Colômbia
50 Livros
51 Discos
52 Povos e Culturas
55 Apontamentos
56 Vocação & Vida
além-mar | Abril 2021
fórum
Leitura proveitosa
Assino a revista Além-Mar há
mais de uma década e sempre
acompanhei a informação actual e
fundamentada do Sul global através
da vossa publicação.
Leitora desde os anos 1990 da
jornalista Margarida Santos Lopes,
quando era redactora principal e editora
da secção internacional no meu
jornal de referência, é com muito
agrado que posso ter acesso às matérias
com que, regularmente, colabora
com a revista Além-Mar. São sempre
artigos muito desenvolvidos e aprofundados
e acompanhados com uma
entrevista. […] São leituras longas e
sempre compensadoras, que nos dão
uma visão equilibrada, por alguém
que domina os temas, especialmente
os relacionados com o Médio Oriente.
Todos os meses, são das páginas
mais proveitosas da revista dos Missionários
Combonianos.
Escrevo esta nota no momento
em que renovo a minha assinatura
da publicação na versão impressa.
Conto com mais um ano de grandes
leituras e estendo os agradecimentos
a toda a redacção pelo bom trabalho
que estão a desenvolver.
Sandra Canelas | Bragança
Bem editada
Sou um leitor recente da Além-
-Mar e começo agora a aperceber-me
do grande interesse da vossa
revista missionária. No último número
pude ler sobre os mais pertinentes
temas, da viagem histórica
do Papa Francisco ao Iraque, às desigualdades
de género e raciais, e as
páginas de opinião e sobre povos,
culturas e vocações. […] A revista
é muito bem editada, sabe antecipar
temas da actualidade e ao mesmo
tempo apresentar perspectivas e
enquadramentos históricos. Continuem
o vosso excelente trabalho que
eu continuarei como leitor.
Carlos Carvalho | Sintra
agenda de abril
4 Dia Internacional de Consciencialização sobre os
Perigos das Minas Terrestres
6 Dia Internacional do Desporto para o Desenvolvimento
e a Paz
7 Dia Internacional para Reflexão do Genocídio de 1994
no Ruanda
Dia Mundial da Saúde
21 Dia Mundial da Criatividade e Inovação
22 Dia Internacional da Terra
23 Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor
24 Dia Internacional do Multilateralismo e da Diplomacia
para a Paz
25 Dia Mundial da Malária
Dia Internacional das Jovens Mulheres nas TIC
30 Dia Internacional do Jazz
Abril
Rezemos por aqueles que arriscam
a vida lutando pelos direitos fundamentais
nas ditaduras, nos regimes
autoritários e também nas democracias
em crise.
Veja o comentário do Papa Francisco em:
www.apostoladodaoracao.pt/o-video-do-papa
RETRATOS
intenção do papa
© 123RF
2021 Abril | além-mar
© Vatican Media
Bernardino Frutuoso
Director
O Papa Francisco foi
ao Iraque como
um peregrino da paz,
um filho de Deus,
um irmão entre irmãos,
que quer partilhar
com todos os crentes
o sonho de uma nova
ordem mundial.
editorial
PONTES DE PAZ
E FRATERNIDADE
A
histórica viagem do Papa Francisco ao Iraque – que destacamos
nesta e na anterior edição da Além-Mar – não teve grande
repercussão mediática, seja pela pandemia, seja porque
não se realizaram grandes eventos multitudinários. Neste
país, a comunidade cristã é uma minoria, pois foi duplamente castigada:
primeiro pela guerra e, posteriormente, pelo acossamento do autodenominado
Estado Islâmico, que originou martírio e exílio.
Nas ruínas de Mossul, o Santo Padre, pastor próximo e solidário, deu
visibilidade ao drama deste povo e abraçou a dor desses cristãos perseguidos
que, não obstante as dificuldades, continuam a viver com esperança
e alegria, acreditando que um futuro melhor é possível. O papa
encorajou-os a serem promotores da concórdia, mas também defendeu o
seu direito a confessar a fé em Jesus Cristo, em segurança e sem que por
isso sejam considerados cidadãos de segunda classe.
O pontífice foi ao Iraque como um peregrino da paz, um filho de
Deus, um irmão entre irmãos, que quer partilhar com todos os crentes
o sonho de uma nova ordem mundial, estabelecendo relações de fraternidade
e fazendo florescer a comunhão, a paz e a tolerância. Por isso,
esta viagem foi também uma aposta no fortalecimento do diálogo inter-
-religioso, hoje uma tarefa urgente e imprescindível.
No encontro inter-religioso, na planície de Ur, o papa sublinhou:
«Nós, descendência de Abraão e representantes de várias religiões, sentimos
que a nossa função primeira é esta: ajudar os nossos irmãos e irmãs
a elevarem o olhar e a oração para o Céu. […] No mundo actual, que
muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida
d’Ele, os crentes são chamados a testemunhar a sua bondade, mostrar
a sua paternidade através da nossa fraternidade.» E o papa acrescentou
que a prática da fraternidade religiosa implica o serviço da fraternidade
universal, na linha do que escreve na encíclica Fratelli Tutti: «O culto
sincero e humilde a Deus […] leva ao respeito pela sacralidade da vida,
ao respeito pela dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso
em prol do bem-estar de todos» (cf. FT, 283).
Recordemos que para relançar o diálogo inter-religioso foi muito importante
a aliança que, no ano de 2019, o papa selou com o maior representante
do mundo muçulmano sunita, Ahmed el-Tayeb, o grão-imã
de Al-Azhar. Os dois guias religiosos e espirituais comprometeram-se a
adoptar a cultura do diálogo, a crescer na colaboração e no conhecimento
mútuo, convidando os crentes a participarem activamente na construção
de uma cultura de paz, tolerância e sã convivência. No Iraque, Francisco
deu mais um passo nessa rota ao reunir-se com o grande aiatola Ali
al-Sistani, o líder mais influente dos xiitas.
Estamos cada vez mais conscientes da relevância das religiões no mundo
e do seu papel na construção da paz. Nesse sentido, estas duas pontes
estabelecidas por Francisco são passos notáveis no caminho da fraterna
comunhão com o Islão, comprometendo as duas religiões – e cada um
dos seus crentes – na defesa da paz e da dignidade da vida, no respeito
dos direitos humanos, na luta pela justiça social e pelo bem comum. am
além-mar | Abril 2021
foto do mês
Foto: © UNICEF/Chris Farber
2021 Abril | além-mar
&
pessoas factos
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A Comissão Europeia prepara
o Digital Green Certificate, um
passaporte para facilitar a livre
circulação segura dos cidadãos
na União Europeia durante a
pandemia. Em formato digital
ou impresso, o certificado é uma
prova de que o titular foi vacinado
contra a covid-19, recebeu
um resultado de teste negativo
ou se recuperou do coronavírus.
O principal opositor político no
Chade, Saleh Kebzabo, retirou a
sua candidatura às presidenciais
de Abril. O líder do partido socialista
UNDR alerta que «o clima
de insegurança manchará a eleição»,
acusando o presidente cessante,
Idriss Déby, do partido nacionalista
MPS e no poder desde
1990, de intimidar os rivais com
o uso da força.
As negociações sob a égide das
Nações Unidas entre o governo
central da Somália e os Estados
federais, com vista a acertar uma
data para as presidenciais de
2021, terminaram sem acordo.
O presidente Mohamed Farmajo,
que tenta outro mandato, acusa
duas das cinco regiões semiautónomas,
Puntland e Jubbaland, de
«não quererem realizar eleições,
optando por permanecerem ao
lado do grupo extremista islâmico
al-Shabab».
u Sala de aula pandémica
P
ara alertar o mundo para a grave crise na educação causada
pela covid-19, a Unicef instalou uma «Sala de aula pandémica»
na sede da ONU, em Nova Iorque, EUA. As 168 secretárias
vazias e 168 mochilas por estrear representam os 168 milhões
de crianças que, no último ano, em todo o mundo, não tiveram
aulas, porque as suas escolas estiveram completamente encerradas.
«A cada dia que passa, as crianças que não têm acesso
à escola presencial ficam cada vez mais para trás, com os mais
marginalizados a pagar um preço mais alto», assinala a Unicef.
u
O ministro dos Negócios Estrangeiros
da Etiópia, Demeke Hassen,
garante que o acesso humanitário
à região de Tigré está a
melhorar, mas que a segurança
continua a ser «um trabalho em
andamento». A ONU alerta para
uma «situação de desnutrição
muito crítica», na sequência do
conflito que começou em Novembro,
depois de forças leais
à frente de libertação TPLF, no
poder em Tigré, atacarem acampamentos
locais do exército federal.
além-mar | Abril 2021
actualidades
© 123RF
© Lusa
SÍRIA
Década destruidora
guerra na Síria cumpre uma década. Causou mais de 388 mil mortos,
A incluindo 22 mil crianças, e obrigou mais de 12 milhões de pessoas a
fugir (6,7 milhões deslocados no país e 5,6 milhões de refugiados no estrangeiro).
Num país devastado pela guerra civil, as crianças são dos grupos que
mais sofrem. Segundo a Unicef, quase 90 % das crianças na Síria precisam
de assistência humanitária e 2,45 milhões não vão à escola, enquanto nos
países vizinhos outras 750 mil não conseguem estudar.
MIANMAR
Revolução restauradora
chefe interino do governo civil de Mianmar, deposto pela Junta Militar
O após o golpe de Estado de Fevereiro, pede uma «revolução para formar
uma democracia federal». Escondido dos militares, Mahn Than está
à frente do governo civil após a prisão da conselheira estatal Suu Kyi e do
presidente Win Myint.
A junta militar birmanesa, que tomou o poder por um golpe de Estado
a 1 de Fevereiro, mantém-se firme e violenta apesar da pressão internacional.
Os violentos protestos já fizeram mais de seis dezenas de mortos e
1700 detenções.
Entretanto, a União Europeia aplicou sanções a onze dirigentes birmaneses,
que entende serem os principais responsáveis pelo golpe de Estado. É a
primeira resposta diplomática europeia contra a junta militar que controla
o país asiático.
© Lusa/Rayner Pena © 123RF
AMÉRICA CENTRAL
Falta de alimentos
nível de insegurança alimentar
O está a aumentar na América
Central. El Salvador, Honduras,
Guatemala e Nicarágua confrontam-se
com crises económicas motivadas
pela pandemia e catástrofes
climáticas, adverte o Programa
Alimentar Mundial (WFP). Desde
2018, «o número de pessoas em
situação de insegurança alimentar
quase quadruplicou, para atingir
oito milhões», alerta Miguel
Barreto, chefe do programa para a
América Latina.
VENEZUELA
Dinheiro para vacinas
presidente da Venezuela,
O Nicolás Maduro, chegou a
acordo com a oposição do país
para conseguir que o dinheiro
bloqueado nas suas contas em
bancos norte-americanos pela
Administração dos EUA, por causa
das sanções contra o Governo,
possa ser usado para adquirir 12
milhões de doses de vacinas para
a covid-19 na plataforma Covax,
promovida pela Organização Mundial
de Saúde para fazer chegar
vacinas aos países mais pobres.
2021 Abril | além-mar
© 123RF
UNIÃO EUROPEIA
Migração mortífera
alta-comissária das Nações Unidas para
A os Direitos Humanos, Michelle Bachelet,
denuncia que os governos da UE estão a restringir
judicialmente a actividade das organizações que
resgatam migrantes no Mediterrâneo, o que
classifica como «preocupante». Apenas quatro
navios humanitários estão operacionais na rota
migratória do Mediterrâneo Central, que sai da
Líbia, Argélia e Tunísia em direcção a Itália e Malta.
CHINA
Pluralismo político
Cinco dezenas de activistas políticos
de Hong Kong estão acusados
de actos de subversão. «Todas as
principais vozes do movimento pró-
-democracia estão agora na prisão,
no exílio ou acusadas de subversão»,
denuncia Sophie Mak, activista da
Milk Tea Alliance. As acusações a ex-
-deputados, professores universitários,
advogados, trabalhadores sociais e
jovens activistas podem resultar em
condenações a prisão perpétua pela
lei de Segurança Nacional da China.
© Lusa/Francis R. Malasig
© Lusa/Jerome Favre
TANZÂNIA
Vice avança
vice-presidente da Tanzânia,
A Samia Suluhu (na foto), assume
a presidência até final do
mandato, em 2024, depois da
morte do chefe de Estado, por
doença cardíaca. John Magufuli,
de 61 anos, foi um negacionista
da existência de covid-19
no país da África Oriental que
estava «livre da pandemia, em
virtude das orações». As autoridades
não publicam quaisquer
números oficiais sobre a doença
desde o final de Abril de 2020.
© Lusa/Anthony Siame
FILIPINAS
Violência contra activistas
Alto Comissariado das Nações
O Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUR) afirma estar «chocado com
as mortes arbitrárias de activistas
defensores dos direitos humanos»,
nas Filipinas. O presidente Rodrigo
Duterte pediu às autoridades
que «ignorassem os direitos
humanos e matassem os rebeldes
comunistas», como se refere aos
activistas que defendem os direitos
das comunidades pesqueiras, dos
trabalhadores e das populações
indígenas no país do Sudeste
Asiático.
além-mar | Abril 2021
actualidades
© Lusa/Souleymane Ag Anara
NÍGER
Próximo presidente
presidente eleito no Níger, Mohamed
Bazoum (na foto), do
O
partido socialista PNDS, no poder,
é investido no início de Abril.
«Como professor, darei prioridade
à educação», promete o ex-ministro
do presidente cessante, Mahamadou
Issoufou, que não se candidatou
à reeleição, depois de cumprir
dois mandatos. O país debate-se
com a insurgência jiadista no Oeste,
enquanto militantes islâmicos
do movimento Boko Haram perpetram
ataques no Sudeste. Desde
2010, a violência já provocou centenas
de mortos e 500 mil deslocados.
ÁFRICA
Previsões positivas
Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA) estima
A para 2021 um crescimento económico entre 0,4 % e 3,1 % para o continente.
«Depois da recessão no ano passado, há riscos que o continente enfrentou
e que vai enfrentar este ano, como a segunda vaga da pandemia, os
preços baixos e os conflitos em muitos países, mas as previsões para 2021
são mais positivas», assegura Hopestone Chavula, responsável pelo departamento.
Desde o início da pandemia, África regista mais de quatro milhões de
infectados e 110 mil mortes associadas à covid-19.
© Lusa/ZIPI
© 123RF
REPÚBLICA DO CONGO
Estado policial
actual presidente da República
do Congo, Denis Sassou
O
Nguesso (na foto), prepara-se para
um quarto mandato, depois das
presidenciais de Março, e para se
manter no lugar que ocupa há trinta
e sete anos. O maior grupo de
oposição do país, o partido UPA-
DS, boicotou as eleições. Também
a Igreja Católica do Congo coloca
«sérias reservas» a estas eleições, já
que as restrições impostas pela pandemia
e um sistema eleitoral instável
minam a confiança no voto.
MOÇAMBIQUE
Violência sem fim
Save the Children pede ajuda humanitária para os deslocados em Cabo
A Delgado, no Norte de Moçambique. De acordo com a organização não-
-governamental, «quase um milhão de pessoas enfrenta fome severa» como
resultado directo da onda de violência armada que persiste na região há mais
de três anos e causou mais de duas mil mortes e 670 mil pessoas deslocadas,
sem habitação e alimentos. Cerca de metade das pessoas afectadas pela
violência são menores de 18 anos e, denuncia a ONG, há crianças a serem
decapitadas.
© UNICEF/Bisol
2021 Abril | além-mar
áfrica minha
VOZES PROFÉTICAS
P. e José Vieira
Missionário comboniano
Bispos africanos estão
a dar voz a posições
arrojadas.
O
episcopado africano pode ser considerado conservador na
teologia, pastoral e liturgia. Contudo, tanto as conferências
episcopais como bispos em particular estão a dar voz a posições
arrojadas por todo o continente.
A SECAM – o Simpósio das Conferências Episcopais da África e
Madagáscar – apresentou no fim de Janeiro o chamado «Documento
de Campala», uma exortação pastoral de uma centena de páginas que
nasceu das celebrações dos 50 anos da instituição. Pretende resolver as
«dicotomias entre fé e política, Reino de Deus e transformação da Terra,
salvação das almas e vidas terrenais, contemplação e acção». Alerta ainda
para os perigos das espiritualidades de salvação e de prosperidade baseadas
no sucesso e em soluções milagrosas.
As eleições são ocasiões em que muitas conferências episcopais fazem
sentir as suas vozes e os seus reparos. Os bispos do Uganda, por exemplo,
antes das presidenciais de Janeiro passado, recordaram que o «não roubarás»
também se aplica aos votos e alertaram para a comercialização do
acto eleitoral através de campanhas cada vez mais dispendiosas.
Os bispos da República Centro-Africana, no rescaldo das eleições de
Dezembro, que deixaram o país a ferro e fogo, pediram diálogo sincero,
franco, fraterno e construtivo para resolver a grave crise de violência que
afecta o país. Denunciaram o sistema de uma minoria que beneficia das
riquezas do país por causa da filiação partidária e afinidades tribais, e as
conspirações externas com cumplicidades locais, que deixam o país à
mercê de predadores e mercenários bem armados.
A Conferência Episcopal do Congo-Brazzaville também se pronunciou
sobre a eleição presidencial marcada para 21 de Março: «Temos reservas
sérias que uma eleição presidencial pacífica, participada, transparente, livre
e credível possa acontecer nas condições actuais», escreveram.
Os bispos do Benim pediram diálogo forte e aberto entre os partidos
e as instituições envolvidos nas presidenciais de Abril.
A pandemia de covid-19 – que a 15 de Março tinha matado no continente
108 064 pessoas (África CDC) e infectado 4 041 835 – também
levou os bispos a tomar posições fortes de liderança. Por exemplo, a Conferência
Episcopal da Tanzânia alertou para os perigos da segunda vaga
da pandemia, porque «o nosso país não é uma ilha». Pede aos Tanzanianos
que voltem a usar máscaras e a lavar as mãos com água e sabão, práticas
que haviam abandonado. Os bispos do Senegal também expressaram
a sua preocupação com as novas estirpes mais mortíferas da segunda
vaga da doença.
Há ainda as vozes proféticas do bispo Dom Luiz Fernando Lisboa, de
Pemba (Moçambique), que colocou o drama de Cabo Delgado na agenda
internacional e que entretanto tomou conta de uma diocese no Brasil
natal, de Dom Agapitus Nfon, de Kumba (Camarões), que tenta mediar
a crise anglófona, que já fez três mil mortos desde 2016, ou Dom Stephen
Dami Mamza (na foto), bispo de Yola, na Nigéria, que construiu
um bairro para alojar 86 famílias deslocadas pela violência do Boko Haram,
com escola e mesquita incluídas. am
além-mar | Abril 2021
igreja em missão
© Vatican News
BANGLADESH
«Um católico,
uma árvore»
Igreja do Bangladesh lançou
A uma iniciativa audaciosa para
celebrar o quinto aniversário da
encíclica do Papa Francisco Laudato
Si’ sobre os cuidados da Casa
Comum. A campanha pretende
mobilizar os católicos a plantar
400 mil árvores. O cardeal Patrick
D’Rozario explica que «cada católico
do Bangladesh plantará uma
árvore para se identificar como um
leal cidadão do mundo: de facto,
devemos cuidar muito bem da nossa
Casa Comum, mas também do
nosso país».
MÉXICO
Assembleia Eclesial da América Latina
Vai decorrer de 21 a 28 de Novembro, no santuário de Nossa Senhora de
Guadalupe (na foto), na Cidade do México, a primeira Assembleia Eclesial
da América Latina e das Caraíbas, com o tema “Somos todos discípulos
missionários em saída”. Na convocatória da assembleia, o Papa Francisco
definiu-a como «um encontro do Povo de Deus», que visa fazer memória do
encontro da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano – que
se realizou em Aparecida (Brasil) em 2007 – e que continua a apresentar desafios
para a Igreja hoje. D. Miguel Cabrejos, arcebispo de Trujillo (Peru) e
presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), refere que
o encontro, organizado numa perspectiva sinodal, quer dar relevância ao
nosso ser e estar no mundo, respondendo «aos gritos dos empobrecidos e da
mãe Terra neste tempo de pandemia».
© 123RF
© Lusa/Brais Lorenzo
ESPANHA
Sempre em missão
irmã Otilia tem 95 anos. Vive
A em Ourense, na Galiza, Espanha.
Apesar da sua idade, ela considera-se
sempre em missão. Por
isso, há 15 anos, quer faça chuva ou
sol, ela sai todos os dias à rua para
ajudar as pessoas sem-abrigo e os
mais necessitados, distribuindo
alimentos e palavras de consolo.
É um exemplo admirável da «Igreja
em saída» a que nos convida o
Papa Francisco.
AMÉRICA LATINA
Acabar com a violência contra os defensores
dos direitos humanos
América Latina confirma-se como a região com o maior número de vítimas
entre os defensores dos direitos humanos, especialmente entre os
A
povos indígenas.
Os bispos da Amazónia peruana pedem, por isso, uma reacção do Estado,
considerando que só no último ano sete activistas comprometidos na defesa
dos territórios indígenas foram mortos.
A violência na Colômbia, a criminalidade e a exploração das terras ameaçam
a sobrevivência dos indígenas. Desde 2016, mais de 400 defensores dos
direitos humanos foram assassinados no país, o número mais elevado da
América Latina, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos.
© 123RF
2021 Abril | além-mar
contraponto
DESAFIO ECOLÓGICO DE
FRAGMENTAR PARA INTEGRAR
© 123RF
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
À crise ambiental sempre
estiveram associadas
as crises antropológica
e espiritual, mas
reconhece-se pouco que
o relacionamento entre
nós e a Natureza esteja
fragmentado.
O
Papa Francisco propôs a ecologia integral como uma visão
global que abrange os ecossistemas, os relacionamentos
humanos e a sensibilidade a dois gritos, o da Terra e o dos
pobres. Interessante que tenha usado a palavra «integral»,
porque essa estrutura matemática – o integral ∫ – poderá ir mais longe no
seu significado do que poderíamos pensar.
Um integral matemático une o que está dividido em ínfimas partes.
Nesta metáfora, a dificuldade que temos em compreender as reais implicações
de um colapso ambiental causado pelos nossos estilos de vida
poderá estar numa vida cada vez mais fragmentada, sobretudo no tempo,
na atenção e na espiritualidade.
Elizabeth Bennett, vice-presidente para a conservação das espécies da
Wildlife Conservation Society, afirmou, recentemente, a necessidade de
restabelecer a integridade ecológica, reparando o relacionamento entre
nós e o mundo natural. Nada de novo. Mas, curiosamente, especifica a
conservação e restauro dos valores culturas e espirituais dos povos indígenas,
sem generalizar a todos os povos do mundo. Será que a cultura e
a espiritualidade deixaram de ter valor para o mundo tecnologicamente
avançado? Talvez.
À crise ambiental sempre estiveram associadas as crises antropológica
e espiritual, mas reconhece-se pouco que o relacionamento entre nós e
a Natureza esteja fragmentado. E as soluções tecnológicas resolvem parte
do problema, mas como argumenta extensivamente Bill Gates no seu
recente livro Como Evitar um Desastre Climático, será preciso fazer as
escolhas difíceis se quisermos reduzir para zero o nível de emissões de
CO 2
equivalente para a atmosfera. São passos gigantes. E, num mundo
permeado pela gratificação instantânea, uma inversão cultural a este nível
pode tornar-se hercúlea.
Diante de uma tarefa complexa e enorme, uma pessoa sente-se cansada
antes de ter dado o primeiro passo. O segredo será partir o que temos
para fazer em pedaços tão pequenos que o nosso cérebro não consiga
recusar. Ou seja, para enfrentar alguns dos maiores e mais urgentes desafios
ambientais será necessário fragmentar, parecendo um paradoxo em
relação ao espírito da ecologia integral do Papa Francisco.
Talvez as metáforas matemáticas ajudem a encontrar o sentido dos
passos a dar. Se o integral une, a derivada fragmenta. Mas o que a estrutura
matemática da derivada permite saber é o grau de sensibilidade de
algo em relação a qualquer coisa. E as questões ambientais exigem um
equilíbrio sensível entre fragmentar ideias para as tornar realizáveis, e
integrar os relacionamentos para sermos mais fortes e firmes nas escolhas
difíceis.
Creio que um primeiro passo seria unir as dimensões física, mental
e espiritual no nosso interior. Algo ao alcance de todos. E perceber que
passar tempo com a Natureza realiza essa união. O aprofundamento espiritual
é um ponto esquecido neste esforço humano para equilibrar o
relacionamento com o mundo natural, mas é talvez o pequeno passo que
pode fazer a grande diferença. am
além-mar | Abril 2021
do alto dos andes
Fernando Sousa | Jornalista
© Lusa/Miguel Gutierrez
ONU TRAÇA UM QUADRO SOMBRIO DOS
DIREITOS HUMANOS NA VENEZUELA
Nicolás Maduro diz que os direitos humanos são um pilar fundamental
da política do regime bolivariano da Venezuela. Mas a ONU tem
uma opinião muito diferente.
Caracas e o Alto Comissariado
da ONU para os Direitos Humanos
estão em rota de colisão.
Motivo: um alto ralhete da organização
sobre a muito degradada
situação dos direitos fundamentais
na Venezuela.
O balanço é do ano passado, de
Setembro de 2020, e já então foi motivo
de azedumes, mas foi actualizado
com base em novas informações
e cifras. O panorama é desolador:
violência policial, degradação dos
serviços básicos, perseguição dos
jornalistas, salários tão baixos que
custa acreditar, a fuga contínua do
país de pessoas desesperadas que se
fazem ao mar das Caraíbas em pañeros
(botes de madeira sem quaisquer
condições).
Dois mil mortos
Apresentado em Genebra, sede do
Conselho de Direitos Humanos da
ONU, pela alta-comissária, Michelle
Bachelet, o relato não poupa nem nas
expressões nem nos apelos. A polícia
matou mais de duas mil pessoas em
menos de um ano, é problemático o
acesso a serviços e produtos essenciais
como água, gás, electricidade,
combustíveis, assistência médica,
isto em plena pandemia, e alimentos
– o cabaz de compras aumentou
1800 por cento apenas num ano no
quadro de uma inflação astronómica.
Noutro relatório, também apresentado
em Genebra, a advogada portuguesa
Marta Valiñas, presidente da
Missão Internacional Independente
de Determinação dos Factos na Venezuela,
reportou a execução extrajudicial
de pelo menos 200 pessoas já
este ano.
2021 Abril | além-mar
lula da silva
libertado
© Lusa/Rayner Peña
p O ministro das Relações Exteriores
da Venezuela, Jorge Arreaza, entrega a
carta em que o Governo da Venezuela
desacredita a embaixadora da União
Europeia, Isabel Brilhante, em Caracas,
no passado dia 24 de Fevereiro de 2021.
Ao lado, vendedor ambulante oferece
três quilos de tangerinas por um dólar,
em Caracas
Também não há dinheiro. O salário
mínimo está abaixo de um dólar
americano ao mês, um trabalhador
com sorte, segundo economistas citados
pela IPS, poderá ganhar entre
20 e 30 dólares mensais. Um terço da
população estará em situação de “insegurança
alimentar”.
Intimidação
Bachelet saudou algum esforço do
regime de Nicolás Maduro para reduzir
os atrasos dos meandros judiciais,
mas disse ter recebido informações
sobre mortes em regime de
detenção por tuberculose, desnutrição
e outras doenças, manifestou-se
preocupada com restrições à actuação
das organizações internacionais
e a «redução do espaço cívico» – intimidação,
acosso, inabilitação e criminalização
de jornalistas, meios de
comunicação e defensores dos direitos
humanos, num total de 66 casos
– um total que continua a aumentar.
E, além destes, dirigentes sindicais
e membros da oposição, incluindo os
membros eleitos da Assembleia Nacional
de 2015, e seus familiares.
«Isto não contribui para apaziguar
as tensões, pelo contrário», disse a
alta-comissária, apelando a um «diálogo
inclusivo para abordar as causas
profundas dos actuais desafios».
O regime venezuelano tem sobre
tudo isto outra opinião. Dias antes,
Maduro dissera ao Conselho de
Genebra que os direitos humanos
são um «pilar» fundamental da sua
política. E o representante venezuelano
na cidade suíça declarou que
Caracas daria à ONU «uma resposta
detalhada na devida oportunidade».
Mas a realidade ia toda ao contrário.
O diário El Nacional anunciava o salvamento
de 18 pessoas encontradas
à deriva e desidratadas num barco de
pesca no mar das Caraíbas – pretendiam
chegar a Curaçau. E o Governo
dava 72 horas à representante da
União Europeia, outra portuguesa,
Isabel Brilhante Pedrosa, para deixar
o país, por a UE ter posto na sua lista
negra mais 19 personalidades do
Governo venezuelano – no total são
agora 55.
Cinco milhões de pessoas abandonaram
a Venezuela nos últimos seis
anos para os países vizinhos e até
mais longe. am
O
que ainda há um mês era difícil
de acreditar tornou-se,
entretanto, realidade: Lula da
Silva, o antigo presidente brasileiro
condenado por corrupção na sequência
de um processo muito criticado,
foi libertado.
A libertação do líder histórico do
Partido dos Trabalhadores (PT) deveu-se
à anulação, por um juiz do
Supremo, Edson Fachin, do julgamento
do Tribunal Federal de Curitiba,
a instância que o condenou,
por incompetência legal. Não era o
juiz natural dos casos, na expressão
usada.
Lula da Silva, cuja libertação não
significa absolvição do processo conduzido
pelo ex-juiz Sergio Moro, que
se tornou depois ministro do presidente
Bolsonaro, recupera assim direitos
políticos perdidos e pode agora,
se assim o decidir, concorrer às
presidenciais de 2022, hipótese que
está a agitar a política brasileira.
jeanine añez
foi detida
A
polícia boliviana deteve em
sua casa a ex-presidente Jeanine
Añez, acusada de envolvimento
num golpe para impedir que
Evo Morales fosse reconduzido no
topo do Estado na sequência das
eleições de 2019.
Com Jeanine Añez foram detidos
vários antigos ministros e altos comandos
das Forças Armadas.
© Lusa/Fernando Bizerra Jr.
© Lusa
além-mar | Abril 2021
ap alterações climáticas
© UNICEF/Chakma
2021 Abril | além-mar
DOIS CONTINENTES
EM CRISE
Todo o planeta está ameaçado, mas os habitantes da Ásia
e da África são os que enfrentam os maiores riscos.
As previsões são sombrias, até assustadoras, mas
há quem não desista de lutar por um futuro melhor.
A Além-Mar ouviu as histórias de duas jovens activistas,
Marinel Ubaldo, das Filipinas, e Evelyn Acham, do Uganda.
Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista
além-mar | Abril 2021
alterações climáticas
© 123RF
A
concentração de dióxido de
carbono (CO 2
) na atmosfera
atingiu, em 2020, níveis
sem precedentes, segundo
os dados mais recentes, divulgados
pela Administração Oceânica
e Atmosférica Nacional dos Estados
Unidos (NOAA) e da Universidade
da Califórnia.
Em Maio do ano passado, o pico
no observatório de Mauna Loa, no
Havai, atingiu 417,1 partes por milhão
(ppm), mais do que as 414,7
registadas no mesmo mês de 2019.
E isto apesar de o confinamento exigido
pela pandemia de covid-19 ter
diminuído «só muito ligeiramente»
as emissões poluentes.
A última vez que os níveis de CO 2
excederam as 400 ppm foi há cerca
de quatro milhões de anos, durante
a era de Pliocénico, quando as temperaturas
globais eram 2-4 graus
Celsius mais altas e os níveis do mar
eram 10-25 metros mais elevados do
que agora.
«Adicionámos 1000 ppm de CO 2
à atmosfera nos últimos sessenta
anos», disse à BBC Martin Siegert,
co-director do Grantham Institute
for Climate Change and the Environment
do Imperial College, em
Londres. «Se o pior cenário se mantiver,
os níveis de CO 2
serão, no final
deste século, de 800 ppm – o que
não acontece há 55 milhões de anos,
quando não havia gelo no planeta.»
Dos continentes que enfrentam as
consequências mais graves das alterações
climáticas estão a Ásia e a África.
Segundo um relatório elaborado
pela firma de consultoria McKinsey
e citado pela revista Forbes, é previsível
que, até 2050, algumas regiões
asiáticas enfrentem «subidas de temperatura,
ondas mortíferas de calor,
precipitação extrema, furacões severos,
seca e redução no abastecimento
de água».
Na Ásia, o aquecimento global já
afecta de forma dramática o capital
natural – o conjunto dos recursos
renováveis e não renováveis (plantas,
animais, ar, água, solos, minerais)
que beneficiam a humanidade.
A massa glacial, acrescenta a McKinsey,
deverá diminuir em cerca de
40 %; as receitas da pesca poderão
p A concentração de dióxido de carbono
(CO2) na atmosfera atingiu, em
2020, níveis sem precedentes. No Havai,
atingiu 417,1 partes por milhão (ppm)
cair para metade; e 90 % dos recifes
de coral irão degradar-se acentuadamente
até 2050.
O ano de 2019 já tinha sido terrível,
como anotou o site Eco-Business,
de Singapura. No Paquistão e na Índia,
«vagas de calor tão intenso capazes
de derreter o asfalto» afectaram
milhões de pessoas no subcontinente.
Com 51 ºC, a cidade paquistanesa
de Jacobabad, na província de Sindh,
foi o lugar mais quente da Terra em
2019. O Estado indiano do Rajastão,
no Norte, chegou aos 50,8 ºC.
Em Chennai, capital do Estado indiano
de Tamil Nadu, uma seca que
se prolongou durante 193 dias deixou
sem água, fosse para cozinhar
ou tomar banho, os dez milhões de
habitantes da cidade. Os mais prejudicados
foram mulheres e crianças
das comunidades pobres. Muitos
passaram horas em filas à espera de
2021 Abril | além-mar
p As inundações causadas pelo ciclone Nirav em Tamil Nadu, Índia, no passado dia
26 de Novembro, deixaram muita destruição. Em baixo, uma criança brinca na praia
em frente das casas severamente danificadas por uma tempestade na Ilha de Galoa,
Bua, Ilhas Fiji. Na Ásia do Sul, «catastróficas chuvas torrenciais» inundaram aldeias e
desalojaram milhões de pessoas
© UNICEF/Akash
© UNICEF/Stephen/Infi
encherem os seus recipientes. Por
causa disso, muitos adoeceram ou
perderam os empregos.
Na Ásia do Sul, «catastróficas chuvas
torrenciais» inundaram aldeias
e desalojaram milhões de pessoas.
Centenas desapareceram e dezenas
morreram. O nível dos rios subiu
assustadoramente da noite para o
dia. As cheias danificaram estradas,
pontes e linhas férreas. Muitas zonas
ficaram intransitáveis, deixando comunidades
ao abandono. Numerosas
habitações foram arrastadas neste
dilúvio ou ficaram soterradas.
O Mekong, o maior rio do Sudeste
Asiático, que se estende ao longo
de 4500 km, da nascente, no Tibete,
através da Birmânia, Tailândia, Laos
e Camboja até à foz, no Vietname,
enfrentou pressões sem precedentes,
como uma seca extrema e a construção
desenfreada de centrais hidroeléctricas.
O caudal do rio desceu ao
nível mais baixo num século, ameaçando
a cadeia alimentar dos seis
países e 60 milhões de pessoas que
dependem da sua água, observou o
Eco-Business.
Sérias preocupações
No Sudeste Asiático, as temperaturas
médias têm aumentado todas as
décadas desde 1960. A Birmânia, as
Filipinas e a Tailândia estão entre os
dez países do mundo mais atingidos
pelas alterações climáticas nos
últimos vinte anos, segundo o Global
Climate Risk Index, do grupo ambientalista
Germanwatch. O Banco
Mundial coloca o Vietname na lista
dos cinco países que mais sofrerão
com o aquecimento global.
O Banco de Desenvolvimento
Asiático prevê, para o Sudeste Asiático,
até ao final do século xxi, uma
queda de 11 % do PIB, com a agricultura,
o turismo e as pescas a serem
os sectores mais duramente sacrificados.
Isto sem incluir as perdas na
saúde humana e na produtividade
laboral.
Num “novo regime climático”, em
que os meses mais frescos do Verão u
além-mar | Abril 2021
alterações climáticas
serão os mais quentes, se não houver
respostas tecnológicas, as colheitas
de trigo nas Filipinas, na Indonésia,
na Tailândia e no Vietname poderão
diminuir 50 % até 2100. Com a
subida das temperaturas, ressurgirão
doenças como a malária ou a febre
de dengue.
A procura de carvão, abundante e
de baixo preço, porque mais barato
de financiar, em comparação com o
petróleo, o gás e as energias renováveis,
tem contribuído para o aumento
dos gases com efeito de estufa na Ásia.
Outra fonte perniciosa é a desflorestação
(na Indonésia representa quase
metade das emissões). Muitas árvores
são abatidas para alimentar populações,
produzir celulose, papel e óleo
de palma, principais exportações.
Um rápido crescimento económico
e uma crescente urbanização
também exacerbam o impacto das
alterações climáticas. Migrantes das
zonas rurais mudam-se para as cidades,
e estas emitem mais calor. Novas
construções em planícies bloqueiam
cursos de água, deixando as urbes
expostas a inundações.
A urgência de Moçambique
Em África, a situação é igualmente
desoladora. Em todos os cenários
em que a temperatura sobe acima
dos 1,5 ºC, este continente é sempre
o mais vulnerável, refere o Banco de
Desenvolvimento Africano.
«África enfrenta danos colaterais
exponenciais que colocam riscos
às suas economias, infra-estruturas
e investimentos, abastecimento de
água e alimentos, saúde pública, agricultura
e outros meios de subsistência»,
adverte o banco num relatório.
Sete dos dez países mais vulneráveis
às alterações climáticas situam-se em
África, e no topo da tabela está Moçambique,
seguindo-se o Maláui (3.ª
posição), o Gana e Madagáscar (8.ª).
Em Março, num vídeo assinalando
o segundo aniversário da passagem
do ciclone Idai, que só em Moçambique
afectou 1,5 milhões de pessoas
e causou 603 mortos, além de mais
© UNICEF/Franco
de 4000 casos de cólera, o secretário-
-geral da ONU, António Guterres,
implorou ajuda urgente da comunidade
internacional para enfrentar «a
tripla ameaça resultante da violência
[na província de Cabo Delgado] das
crises climáticas e da pandemia de
covid-19».
Moçambique precisa do equivalente
a 212,5 milhões de euros para
responder às suas necessidades, especificou
Guterres, lamentando que
o país esteja a ser sujeito a «catástrofes
atrás de catástrofes». Em Janeiro
deste ano, um outro ciclone, Eloise,
deixou mais um rasto de destruição e
morte na mártir cidade da Beira.
«Há regiões em África que estão a
aquecer a um ritmo duas vezes superior
face à média global do planeta»,
realçou Guterres. «Na verdade, o
continente africano, sendo dos que
tem menores responsabilidades na
p Área inundada no Centro de Relocação
de Tica, a 80 quilómetros da cidade
da Beira. O ciclone Eloise provocou
milhares de desalojados nas províncias
de Manica, Sofala e Zambézia no
passado mês de Janeiro. Ao lado, pastor
numa região afectada pela seca no Sul
da Somália
crise climática, é dos que mais sofre
as suas consequências.» É, pois, obrigatório
«apoiar as nações que estão
na linha da frente», para que consigam
reforçar a sua «resiliência e capacidade
de adaptação».
O ano de 2019 foi um dos três mais
quentes em África e os cientistas
admitem que esta tendência irá continuar.
Extensas áreas do continente
irão exceder os 2 ºC acima dos níveis
pré-industriais, segundo previsões
do Painel Intergovernamental para o
Clima. Mais ondas de calor e menos
2021 Abril | além-mar
© UNICEF/Franco
números do clima
45,6%
percentagem em que
aumentou o número
de pessoas desnutridas
nos países subsarianos
desde 2012
1,5
milhões
número de pessoas que a
passagem do ciclone Idai
afectou em Moçambique
50%
percentagem em que
poderão diminuir as
colheitas de trigo nas
Filipinas, Indonésia,
Tailândia e Vietname
até 2100
Fontes: ONU, FAO, Banco Mundial
precipitação vão ser particularmente
penosas, até ao final deste século,
no Norte de África e no Sudoeste da
África Austral.
Preocupação e esperança
Nos países subsarianos, o número
de pessoas desnutridas aumentou
45,6 % desde 2012, informa a Organização
para a Alimentação e Agricultura,
agência especializada das
Nações Unidas. Se as colheitas diminuem,
aumentam as doenças, porque
temperaturas mais elevadas e maior
precipitação atraem mosquitos, vectores
de transmissão, por exemplo,
do paludismo. Mais de 400 mil pessoas
morrem todos os anos de malária
e 94 % dessas mortes ocorrem
na região africana, de acordo com
a OMS. As crianças com menos de
cinco anos são o grupo mais vulnerável:
constituem 67 % dos óbitos.
Um outro problema climático é a
erosão costeira, que foi de 56 % em
2019 e não deverá abrandar, sobretudo
em países da África Ocidental,
como o Benim, a Costa do Marfim, o
Senegal e o Togo.
As calamidades não a poupam,
mas África tem feito esforços para
cumprir a sua agenda climática: 90 %
dos países do continente ratificaram
o Acordo de Paris e muitos comprometeram-se
a fazer a transição para
energias verdes num curto espaço
temporal.
Marrocos construiu a maior instalação
solar concentrada do mundo,
visando cumprir o objectivo de ter
52 % de energias renováveis até 2030.
Este projecto beneficia dois milhões
de cidadãos, e oferece empregos e
formação profissional no sector agrícola
a homens e mulheres.
Em Junho de 2019, a África do Sul
impôs uma taxa às emissões de carbono,
esperando reduzi-las em 33 %
até 2035. Também baixou os preços
da energia solar e eólica, agora
inferiores aos da energia a carvão.
O continente vê o país de Nelson
Mandela como um exemplo.
A transição para uma economia
amiga do ambiente parece estar em
marcha num continente onde abundam
recursos. A questão, como escreveu
num ensaio publicado pelo
think-tank Brookings Institution a
nova directora-geral da Organização
Mundial do Trabalho, a nigero-
-americana Ngozi Okonjo-Iewala,
é saber se os países industrializados
vão criar «um vento a favor ou um
vento contrário».
A resposta a esta questão será determinante.
«Pode não ser educado
dizer isto, mas os países africanos
necessitam de dinheiro – quer para
construírem um futuro mais limpo e
próspero para si próprios como para
evitar os piores impactos das alterações
climáticas criadas, em larga medida,
por outros. Os países africanos
não podem, nem devem, fazer isto
sozinhos», sublinha Ngozi Okonjo-
-Iewala. am
além-mar | Abril 2021
alterações climáticas
MARINEL SUMOOK UBALDO – FILIPINAS-SUDESTE ASIÁTICO
NÃO DEVEMOS TER MEDO
DE FAZER A DIFERENÇA
Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista
A
vida de Marinel Sumook
Ubaldo mudou para sempre
quando o tufão Hayan/
/Yolanda, que ela descreve
como «o mais devastador jamais registado
na história humana», atingiu
a sua pacata cidade, cem quilómetros
a sudoeste de Manila, a capital das
Filipinas.
Não faltavam sinais a anunciar
uma tragédia. Às 7 da manhã, as temperaturas
exteriores já eram elevadas
e o seu pai, que era pescador, havia
muito que se queixava da escassez
de cardumes. No dia 3 de Novembro
de 2013, tinha Marinel 16 anos,
o tufão de categoria 5, a mais elevada
na escala de Saffr-Simpson, arrasou
praticamente tudo à sua passagem,
com ventos superiores a 370 km/h e
ondas de 15 metros de altura. Mais
de 6300 pessoas morreram. Marinel
não se esquece dos corpos que viu a
boiar no mar.
Seis anos depois, segundo a Amnistia
Internacional, milhares de filipinos
ainda não tinham sido realojados
em áreas residenciais seguras,
com acesso a água, alimentos, electricidade,
casas de banho ou fontes
de rendimento. Muitos foram transferidos
para as proximidades de um
aterro tóxico, onde pelo menos 11
morreram de doenças várias.
«O tufão destruiu a minha comunidade,
destruiu a minha casa e a
minha escola, matou milhares de
pessoas e meios de subsistência»,
afirma Marinel, numa entrevista,
por correio electrónico, à Além-Mar.
O que pensava ser um porto seguro
desapareceu num ápice, mas ela recusou
ser tratada como apenas «mais
uma vítima, mais um dado estatístico».
Em 2015, juntou-se a cerca de 31
mil sobreviventes numa investigação
histórica iniciada pela Comissão
de Direitos Humanos das Filipinas,
para apurar a responsabilidade de 47
empresas produtoras de carvão, cimento
e combustíveis fósseis.
Hoje, aos 24 anos, a assistente social
Marinel Ubaldo é uma das mais
importantes activistas globais pelo
q Marinel Ubaldo é uma das mais importantes
activistas globais pelo clima.
A jovem filipina é a coordenadora da
Campanha de Justiça Ecológica da Living
Laudato Si’ Philippines (LLS)
clima. Fundou a Youth Leaders Environmental
Action Federation (Federação
de Líderes Juvenis para a
Acção Ambiental) e é coordenadora
da Campanha de Justiça Ecológica
da Living Laudato Si’ Philippines
(LLS), um movimento interconfessional
iniciado por leigos católicos*.
Em nome do seu povo, discursou
em duas cimeiras mundiais do clima
organizadas pelas Nações Unidas,
a COP 21, em 2011 em Paris, e
a COP 25, em 2019 em Madrid. Em
Setembro de 2018, durante a Semana
do Clima em Nova Iorque, foi testemunha
na Audiência Pública de Responsabilidade
pela Justiça Climática,
onde declarou que as emissões de
gases de estufa produzidas por com-
© Foto cedida por Marinel Sumook Ubaldo
2021 Abril | além-mar
© Lusa/Ahmed © Lusa/Arcel Jalil Valderrama
s O tufão Vamco assolou as Filipinas
em Novembro de 2020, afectando mais
de 1,1 milhões de pessoas. Foi o 21.º
ciclone a assolar o país nesse ano. As
Filipinas, a Birmânia e a Tailândia estão
entre os dez países do mundo mais
atingidos pelas alterações climáticas
panhias poderosas, como a Shell Oil
Manila, «põem em risco o direito à
vida e à autodeterminação».
Recentemente, Marinel recebeu
treino da equipa do ex-vice-presidente
americano Al Gore como Climate
Reality Leader (Líder da Realidade
Climática), para continuar
a contar a sua história por todo o
mundo. «Estou activamente envolvida
na educação de crianças e jovens
sobre as alterações climáticas e o papel
que podem desempenhar para
se adaptarem e mitigarem os seus
efeitos», explica-nos. «Pretendo chamar
a atenção para a urgência de os
dirigentes mundiais respeitarem os
compromissos assumidos.» Ela não
quer piedade. Quer acção.
Ameaças e assassínios
O tufão Hayan/Yolanda fez de Marinel
uma “guerreira espiritual”, mas o
seu despertar para as ameaças ao planeta
acontecera um ano antes. «Em
2012, a minha escola enviou-me para
um seminário de formação profissional
da Plan International», organização
humanitária independente que
trabalha em 71 países da Ásia, África
e Américas, no sentido de promover
os direitos das crianças e a igualdade
das meninas. «Desde então, tornei-
-me animadora/facilitadora, visitando
outras escolas e comunidades
remotas, para falar sobre alterações
climáticas e como devemos agir para
nos prepararmos.»
Nessas comunidades longínquas,
onde muitos habitantes são analfabetos,
Marinel recorre a peças de teatro
ou emissões radiofónicas para transmitir
a sua mensagem. A pandemia
de covid-19 afectou este apoio presencial.
«De início, foi difícil ajustar-me às
novas regras, porque tudo passou a
ser online», admitiu. «O desafio agora
está em identificar as campanhas
mais eficazes e com maior impacto
que ainda podem chegar ao nosso
público-alvo.»
Nenhuma contrariedade parece
desencorajar Marinel: «Devemos
amplificar as nossas acções e influência,
nos sectores público e privado,
para que todos ajam em prol do clima.
Foi assim que me tornei lobista
junto do Governo filipino e me mantive
activa no movimento climático
nacional e internacional. Quis levar
a história da minha comunidade a
uma plataforma internacional, para
que soubessem que as alterações
climáticas são uma realidade diária
para numerosas pessoas em países
vulneráveis.»
u
além-mar | Abril 2021
alterações climáticas
Marinel está orgulhosa do seu activismo:
«A Youth Leaders for Environmental
Action Federation é a
principal organização ecologista,
não-governamental e dirigida por
jovens, em defesa da conservação do
ambiente, de um desenvolvimento
sustentável e da resiliência face às
alterações climáticas nas [ilhas] Visaias
Orientais. Organizámos a primeira
greve estudantil pelo clima nas
Filipinas, com o objectivo de forçar
a Câmara Municipal de Tacloban a
proibir os plásticos não recicláveis e
a declarar emergência climática na
cidade. Queremos promover reformas
através da criação de redes de
associações de jovens e voluntários, a
nível comunitário e regional.»
A celebridade de Marinel não é
garantia de segurança. As Filipinas
ultrapassaram o Brasil como o país
mais violento do mundo para as pessoas
que defendem as suas terras e
o ambiente, segundo um relatório
da organização independente Global
Witness. Em 2018 e 2017, foram
mortos um total de 78 activistas – o
número mais elevado registado na
Ásia. Um terço das mortes registou-
-se na ilha de Mindanau, onde o governo
do presidente Rodrigo Duterte
planeia atribuir milhares de hectares
de terras para fins industriais. Metade
das mortes estão relacionadas
com negócios de extracção de madeira
e mineração.
Em 2019, furioso por o Conselho
de Direitos Humanos da ONU ter
decidido investigar os crimes da sua
“guerra às drogas”, que já matou mais
de 600 pessoas, Duterte suspendeu
um empréstimo da Alemanha, de 36
milhões de dólares, para financiar
um estudo sobre mudanças climáticas
nas Filipinas – o quarto país do
mundo mais ameaçado pelo impacto
do aquecimento global.
Marinel, que confessa ter ficado
«alarmada» com a recente detenção
da activista Disha Ravi, 22 anos, por
se ter solidarizado com os camponeses
da sua Índia natal que protestam
contra novas leis de regulamentação
p Família dirige-se para um abrigo num
centro de evacuação em Aplaya, Baseco,
Manila, devido à ameaça do supertufão
Goni, no passado mês de Novembro
da indústria agrícola, confirma os
perigos que enfrentam também muitos
activistas filipinos. «Infelizmente,
têm sido silenciados, quer através de
ameaças quer de assassínio.» Mas,
frisa ela, «não nos podemos deixar
intimidar pelos que usam o seu poder
em benefício próprio, por muito
que sejamos oprimidos, sobretudo
os mais pobres».
«Temos de proteger os nossos direitos
humanos. Não devemos ter
medo de fazer a diferença. Nós importamos
e, juntos, seremos capazes
de tornar o mundo melhor.». am
(*) Inspirada pela segunda carta encíclica
do Papa Francisco sobre “o cuidado
da casa comum”, Laudato Si’ [Louvado
Sejas], o movimento LLS foi formalmente
criado em 7 de Novembro de 2018,
na Catedral de Manila, na véspera do
quinto aniversário do desastre causado
pelo tufão Yolanda nas Filipinas. «Encorajamos
as pessoas, sobretudo a comunidade
católica, a erguer com orgulho a
bandeira verde pelo ambiente e a viver
segundo os ensinamentos sociais da
Igreja», lê-se no site da LLS. «Uma via
estratégica para encarar esta realidade
triste é dizer aos administradores nomeados
dos nossos recursos financeiros
que retenham os depósitos, os investimentos
e os empréstimos» às empresas
cujas actividades económicas prejudicam
o ambiente. O apelo estende-se às
instituições católicas – «as nossas paróquias,
dioceses, institutos religiosos,
escolas, comunidades» – para que se
unam e façam ouvir a sua voz da maneira
mais poderosa possível».
© UNICEF/Piojo
2021 Abril | além-mar
EVELYN ACHAM – UGANDA-ÁFRICA
NÃO PODEMOS COMER CARVÃO
E NÃO PODEMOS BEBER PETRÓLEO!
Texto: Margarida Santos Lopes, jornalista
© 123RF
Nascida num país tropical
«com apenas duas estações,
a das chuvas e a da seca»,
Evelyn Acham, 29 anos,
pensou durante muito tempo ser este
o padrão no resto do mundo. Mas
não. No Uganda, «secas prolongadas,
desabamentos de terras e cheias
devastadoras» ameaçam a existência
e sobrevivência da população, e esta
jovem formada em Economia da
Terra na Universidade de Makerere,
a maior e mais antiga instituição de
ensino superior em Campala, percebeu
que tinha de se tornar uma
«activista pela justiça climática».
Evelyn é hoje a coordenadora nacional
ugandesa do Rise Up Climate
Movement, fundado pela compatriota
Vanessa Nakate, para amplificar
as vozes dos activistas africanos em
© Foto cortesia de Evelyn Acham
p Evelyn Acham é a coordenadora
nacional ugandesa do Rise Up Climate
Movement. Em baixo, rua num dos bairros
de Campala, capital do Uganda
defesa do clima. É também membro
do movimento estudantil Fridays
For Future, criado pela sueca Greta
Thunberg, e do grupo de direitos
humanos Defend the Defenders, que
luta pela protecção da floresta de
Zika.
«Apesar de alguns esforços do
nosso Governo, preocupa-me que a
lei no Uganda não dê a devida importância
às alterações climáticas, o
maior obstáculo ao desenvolvimento
sustentável e aos planos para pôr fim
à pobreza no país», confessa Evelyn
Acham, em entrevista à Além-Mar
por correio electrónico.
O activismo de Evelyn, iniciado
em 2019, foi inspirado por Vanessa
Nakate, que a revista americana
TIME acaba de incluir entre os 100
nomes da sua lista Next Generation
Leaders (Líderes da Próxima Geração).
«Ao ver a minha amiga e colega
de universidade fazer greve sozinha
nas ruas de Campala, ao ver a sua
paixão e o seu empenhamento pela
salvação do planeta, despertou-me o
interesse pelas alterações climáticas.»
A situação no Uganda é muito
preocupante. Evelyn, que diz ter feito
a sua própria investigação para colmatar
o que não aprendeu com um
sistema educativo deficitário, conta
o que está a acontecer no distrito de
Kasese [no Ocidente], onde «vidas
humanas e colheitas têm sido destruídas
desde 2013, devido a inundações
que fazem transbordar as
margens do rio». «O ano passado
– adianta –, o Lago Vitória atingiu
níveis alarmantes, as águas subindo
de 12 metros cúbicos para 13,32. Isto u
além-mar | Abril 2021
alterações climáticas
fez com que algumas casas ficassem
submersas, deixando milhares de
pessoas sem abrigo.»
Não é apenas a abundância de
chuva que exacerba os problemas
ambientais, mas também a rápida
desflorestação. Árvores são cortadas
para produzir combustível. Anualmente,
a taxa de perda de cobertura
florestal no Uganda é de 2,6 % – uma
das mais elevadas do mundo. Mais
de 80 % dos ugandeses ainda usam
lenha para cozinhar, porque não têm
energias alternativas.
Outro dos grandes desafios que se
colocam aos activistas ugandeses é o
East African Crude Oil Pipeline, um
oleoduto que irá transportar petróleo
do Ocidente do Uganda para um
porto na costa norte da Tanzânia,
ao longo de 1445 quilómetros. «O
EACOP vai resultar em mais emissões
de carbono, em mais destruição
da biodiversidade, em mais destruição
de vidas humanas e propriedades»,
condena Evelyn. «Não podemos
comer carvão e não podemos
beber petróleo!»
Em Março, 260 organizações não
governamentais, nacionais e internacionais,
assinaram uma carta aberta
a mais de uma dúzia de bancos para
não financiarem este projecto avaliado
em 3500 milhões de dólares. Os
empréstimos pedidos totalizam 2500
milhões. Porque a construção do
EACOP, a cargo do gigante francês
Total e de um conglomerado chinês,
representa «riscos inaceitáveis» para
as comunidades e o clima no Uganda,
na Tanzânia e em toda a região, as
ONG recomendam aos responsáveis
governamentais que deixem de investir
em infra-estruturas com base
em combustíveis fósseis e apostem
em energia renovável.
A pior experiência
«Em África, as raparigas e as mulheres
são as mais afectadas pelas
alterações climáticas, porque são as
mais marginalizadas», sublinha Evelyn
Acham. «Quando acontece um
desastre climático, as mulheres, porque
são elas que andam a pé longas
distâncias para pôr comida e água na
mesa, deixam de poder alimentar as
suas famílias.» Outro drama relacionado
com a insegurança alimentar
é o das «meninas que são oferecidas
em casamento em troca de dinheiro».
É por isso que, nos seus protestos,
Evelyn não reivindica apenas que as
autoridades acabem com os combustíveis
fósseis e transitem para a energia
renovável, mas também que as
raparigas tenham acesso à educação
sobre o clima «para ajudar a preservar
os nossos ecossistemas».
Sem a protecção política de que beneficiam
os mais privilegiados congéneres
na Europa ou nos Estados
Unidos, a activista ugandesa enfrentou,
em 26 de Fevereiro, o que qualifica
de «a pior experiência» da sua
vida. Na companhia da amiga Abitimo
Becca e do amigo Paphras Ayebale,
Evelyn decidiu manifestar-se
junto ao Parlamento em Campala,
erguendo cartazes com a inscrição «I
can’t breath, the air is polluted» (Não
consigo respirar, o ar está poluído).
Era um local movimentado, «perfeito
para despertar consciências», explicou
posteriormente Ayebale.
«Subitamente, fomos cercados por
sete agentes da polícia, a maioria deles
homens», relata Evelyn. «O meu
2021 Abril | além-mar
p Menina recolhe água numa aldeia do Uganda. Em África, as meninas e as mulheres
são as que andam a pé longas distâncias para pôr comida e água na mesa.
Em baixo, ramal do East African Crude Oil Pipeline, oleoduto que irá transportar petróleo
do Ocidente do Uganda para a costa norte da Tanzânia
© Oxfam © 123RF
coração batia tão rápido. Fiquei assustadíssima.
Fomos colocados numa
pequena cela e ordenaram-nos que
nos sentássemos no chão. Os agentes
pronunciavam palavras ameaçadoras:
“Podemos torturar-vos, podemos
fazer com que desapareçam e
ninguém saberá o que vos aconteceu
nem vos encontrará.” Temi que a minha
família não mais me visse. Fiquei
em estado de choque, traumatizada.
Só consegui manter-me firme porque
não estava sozinha.»
«Fomos libertados na condição de
não voltarmos a fazer greve em público»,
informa Evelyn. «Os nossos
cartazes e telemóveis foram confiscados.
Obrigaram-nos a apagar todas
as fotos da greve daquela sexta-feira.
Que experiência tão dolorosa! Não
desejo isto a ninguém, mas não é isto
que vai terminar o meu activismo,
porque as alterações climáticas não
acabaram na cela onde fui detida.
Vou continuar a protestar, nas ruas
ou em casa.»
As greves já haviam sido afectadas
por causa do confinamento imposto
para travar a covid-19. «A pandemia
limitou a nossa audiência, porque
as greves online chegam apenas aos
mais jovens e não às gerações ausentes
das redes sociais. Temos de chegar
a estas presencialmente», constata
Evelyn. A crise sanitária actual
«mostrou que é possível aplicar soluções
o mais rapidamente possível.
Basta ver como, perante o coronavírus,
os líderes entraram em pânico e
aceitaram adaptar-se a todas as medidas
desconfortáveis. As alterações
climáticas devem também ser tratadas
como uma emergência».
«Porque são um problema de saúde,
de género, de educação, racial e
social, as alterações climáticas devem
preocupar toda a gente», conclui Evelyn.
«Todos devem participar nesta
luta. Não interessa a nossa idade ou a
nossa cor. Pequeno ou grande, o nosso
contributo é importante. Todos os
activistas têm uma história e todas as
histórias têm uma solução. E cada solução
tem uma vida para mudar.» am
além-mar | Abril 2021
género apo musical
O PODER DO JAZZ
A história do jazz confunde-se com a luta pelos direitos fundamentais
do indivíduo, nomeadamente contra o racismo e discriminação,
em prol da dignidade humana e da democracia. O género musical
liga pessoas, culturas e o mundo.
Texto: Carlos Reis, jornalista
© 123RF
«Enquanto o mundo
enfrenta a pandemia, a
música está a unir as
pessoas e a ajudar a
manter viva a esperança.
A Unesco acredita no poder
do jazz como uma força
para a paz, o diálogo e a
compreensão mútua.»
Audrey Azoulay, directora-geral da Unesco
«O poder da música
afecta o ritmo universal
da vida. Queremos viver
num mundo do jazz onde
todos trabalhemos juntos,
improvisemos juntos, não
tenhamos medo de arriscar
e de nos expressar.»
Herbie Hancock, pianista e compositor
e embaixador da Unesco para o Diálogo
Intercultural
2021 Abril | além-mar
ORIGENS DO JAZZ
© 123RF
O jazz teve origem nas comunidades
negras de Nova Orleães, nos Estados
Unidos, no início do século xx. O género
musical é o resultado da fusão de
elementos de diversas tradições musicais
(bases rítmicas africanas, estruturas
harmónicas europeias, vocalizações do
gospel), tendo dado origem a diferentes
estilos que partilham a improvisação, a
polirritmia e a polifonia.
VIRTUDES DO JAZZ
Em 2011, a Unesco designou o Dia Internacional do Jazz (30 de Abril), para destacar o género
musical e o seu papel diplomático de unir as pessoas em todo o mundo
Quebra barreiras
Reduz as tensões
entre indivíduos,
grupos e
comunidades
Estimula
a inovação artística
e improvisação
Incentiva novas
formas de expressão
Incita à inclusão
de formas musicais
tradicionais
Diálogo contínuo
Estimula o diálogo
intercultural
Cria oportunidades
para compreensão e
tolerância mútuas
Capacita jovens
de sociedades
marginalizadas
Vector de liberdade
de expressão
CATEGORIAS DE EXCELÊNCIA
A Jazz Journalists Association celebra
anualmente a excelência na música e no
jornalismo musical nos prémios JJA Jazz
Awards. A edição de 2020 distinguiu The
Secret Between the Shadow and the Soul,
do Branford Marsalis Quartet, como melhor
álbum do ano. A revista mensal JazzTimes
foi eleita a publicação do ano.
© 123RF
além-mar | Abril 2021
ap francisco no iraque
© Lusa/Vatican Media
CONSTRUIR PONTES DE PAZ,
JUSTIÇA E FRATERNIDADE
Três dias, três ideias diferentes, o mesmo objectivo. O Papa Francisco
foi ao Iraque dizer que é preciso pôr fim à violência, pacificar a
sociedade e reconstruir a alma do país. Uma peregrinação histórica à
pátria dos três monoteísmos, que já começou a ter consequências.
Texto: António Marujo, jornalista do setemargens.com
A
imagem do Aiatola Ali al- Não houve declarações públicas desta viagem única ao Iraque que decorreu
entre 5 e 8 de Março.
-Sistani, líder espiritual nem sequer a assinatura de nenhum
dos xiitas, ao lado do Papa documento conjunto, como sucedeu Já no voo de regresso a Roma, o
Francisco, não podia ser há dois anos, com o líder da maior papa classificaria o encontro como
mais simbólica: um de negro, outro autoridade sunita, o outro ramo do «uma peregrinação de fé e de penitência».
de branco, eles foram as vozes de um islão. Nessa altura, em Abu Dhabi,
«É um homem sábio, um
mesmo desejo: «Que o Iraque supere Francisco e o xeque Al Tayyeb, imã homem de Deus», disse, referindo-se
a violência, manifestando a esperança
de Al-Azhar (Cairo), assinaram o ao aiatola. E acrescentou: «Senti-me
de que os cristãos vivam como to-
Documento sobre a Fraternidade muito honrado» por ser recebido.
dos os iraquianos, em segurança e na Humana, que estaria depois na base «No momento dos cumprimentos,
paz, e com pleno respeito pelos seus da encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos),
ele nunca se levanta, mas levantoudireitos
constitucionais», expressava
publicada pelo papa em Ou-
-se para me cumprimentar, por duas
no final um comunicado do gabinete tubro. Mas o encontro com Sistani vezes. É um homem humilde e sábio,
de Sistani.
falou por si e ficaria como a imagem fez-me bem este encontro.»
2021 Abril | além-mar
Primeiras consequências desses
45 minutos para a história inter-
-religiosa (e do encontro que, pouco
depois, o papa presidiria em Ur, com
representantes de várias religiões e
confissões cristãs): Sistani reafirmava
a importância de os cristãos fazerem
parte de um Iraque pacificado, tratados
por igual com todos os outros
cidadãos; o papa revelou que a aproximação
ao islão continuará com
«novos passos»; disse que está a ponderar
a possibilidade de uma viagem
ao Líbano; e o primeiro-ministro do
Iraque, Mustafa Al-Khadimi, anunciou
a instituição de um Dia Nacional
da Tolerância e Coexistência, a 6
de Março.
p Francisco e o líder xiita do Iraque, o Aiatola Ali Al-Sistani, em Najaf, durante a viagem
do papa ao Iraque. Na pág. anterior, celebração inter-religiosa na antiga cidade
de Ur, de onde terá saído Abraão, o “pai” dos três monoteísmos; depois do encontro,
foi anunciado que o Iraque passará a ter um Dia Nacional da Tolerância e Coexistência,
a 6 de Março. Em baixo, o presidente iraquiano, Barham Salih (centro), dá as
boas-vindas ao Papa Francisco durante uma cerimónia oficial no palácio presidencial
em Bagdade, Iraque
© Lusa/Vatican Media
© Lusa/Vatican Media
«Uma viagem que mudaria
a História»
Pouco depois, o papa estava no encontro
em Ur, num regresso a casa:
«Deus é misericordioso e a ofensa
mais blasfema é profanar o seu nome
odiando o irmão. Hostilidade, extremismo
e violência não nascem dum
ânimo religioso: são traições da religião.
E nós, crentes, não podemos
ficar calados, quando o terrorismo
abusa da religião.»
Há duas décadas, possivelmente
João Paulo II teria dito coisas semelhantes.
O papa polaco chegou a
desejar fazer a mesma viagem, mas
o então ditador iraquiano Saddam
Hussein não o autorizou e os Estados
Unidos da América desaconselharam-na
vivamente, também por causa
das críticas que o papa fazia à política
americana em relação ao país.
As palavras de Francisco em Ur
marcam a viagem. O papa começou
por se referir ao «lugar abençoado»
onde os líderes de diferentes religiões
se encontravam: «Faz-nos pensar
nas origens, nos primórdios da obra
de Deus, no nascimento das nossas
religiões. Aqui, onde viveu o nosso
pai Abraão, temos a impressão de regressar
a casa.» E ali teve início «uma
viagem que mudaria a História».
Os descendentes de Abraão são,
hoje, «chamados a testemunhar» a
u
além-mar | Abril 2021
francisco no iraque
bondade de Deus, disse o papa, que
enalteceu o exemplo dos jovens cristãos
e muçulmanos que se juntam
para a reconstrução, e pedindo que
o dinheiro das armas seja gasto em
alimentos ou apelando a que se dê
voz aos «oprimidos e descartados
no planeta: muitos estão privados
de pão, remédios, instrução, direitos
e dignidade». Só a fragilidade e a
mansidão são caminhos para chegar
às bem-aventuranças do Evangelho,
disse aos cristãos: «Jesus mudou a
História. Como? Com a força humilde
do amor, com o seu paciente
testemunho. O mesmo somos nós
chamados a fazer; assim Deus realiza
as suas promessas.»
Estas mensagens seriam repetidas
no dia seguinte, passado no Curdistão
– Mossul, Qaraqosh, Erbil – e
dedicado aos cristãos, à memória
das vítimas da guerra e ao tema da
reconstrução.
«Olhamos ao nosso redor e vemos
[...] os sinais do poder destruidor da
violência, do ódio e da guerra. Quantas
coisas foram destruídas! E quanto
deve ser reconstruído! Este nosso encontro
demonstra que o terrorismo
e a morte nunca têm a última palavra»,
disse Francisco, na Catedral da
Imaculada Conceição, que tinha sido
destruída pelo Daesh (e usada como
campo de tiro) e foi, entretanto, reconstruída.
Perdoar, reconciliar e resistir
à tentação da vingança
Nem apenas de paredes se faz o recomeço:
«Este é o momento de restaurar
não só os edifícios, mas também,
e em primeiro lugar, os laços
que unem comunidades e famílias,
jovens e idosos.»
Para reconstruir, há um caminho:
«O perdão é necessário por parte daqueles
que sobreviveram aos ataques
terroristas. Perdão: esta é uma palavra-chave.»
Doha Sabah Abdallah,
que falara momentos antes, e que
vira o filho, um primo e uma vizinha
morrerem na sequência de um
ataque terrorista, disso mesmo dera
© Lusa/Vatican Media
© Lusa/Alessandro Di Meo
p O Papa Francisco preside em Mossul, na Praça das Igrejas, nome que se refere
aos quatro edifícios das igrejas Siro-católica, Arménio-ortodoxa, Siro-ortodoxa e Caldeia
(católica) a uma oração pelas vítimas da guerra. Em baixo, o papa vê a destruição
na Praça da Igreja Hosh al-Bieaa, após a oração. «Quando parei diante da igreja
[siro-ortodoxa] destruída, fiquei sem palavras», disse o papa
testemunho. Doha, afirmou o papa,
foi capaz de «perdoar ao agressor» e
por isso é importante dizer «não ao
terrorismo e à instrumentalização da
religião».
Na tarde desse dia, no seu último
acto público da viagem, a missa no
Estádio Franso Hariri, em Erbil, viria
a insistência nas mesmas ideias,
dirigindo-se especificamente aos
cristãos: é preciso resistir à «tentação
da vingança», que leva a uma «espiral
de retaliações sem fim». Antes, os
cristãos devem «construir uma Igreja
e uma sociedade abertas a todos».
Em Mossul, na oração pelas vítimas
da guerra, mais dois parágrafos
centrais nos seus discursos: «Se Deus
é o Deus da vida – e é-O –, não nos é
lícito matar os irmãos em seu nome.
Se Deus é o Deus da paz – e é-O –,
não nos é lícito fazer a guerra em seu
nome. Se Deus é o Deus do amor
– e é-O –, não nos é lícito odiar os irmãos»,
afirmou, na introdução. Para
insistir depois em que a «fraternidade
é mais forte do que o fratricídio,
que a esperança é mais forte do que a
morte, que a paz é mais forte do que
a guerra». E essa convicção «fala com
2021 Abril | além-mar
p A multidão em festa recebe o Papa Francisco no Estádio Franso Hariri em Erbil,
onde celebrou a missa. Em baixo, o Papa Francisco na Catedral da Imaculada Conceição,
em Qaraqosh, no Norte do Iraque. Esta que é a maior igreja do Iraque, tinha sido
destruída pelo Daesh (e usada como campo de tiro), mas foi, entretanto, reconstruída
uma voz mais eloquente do que a do
ódio e da violência e jamais poderá
ser sufocada no sangue derramado
por aqueles que pervertem o nome
de Deus ao percorrer caminhos de
destruição».
«Depois de uma
crise, não basta
reconstruir; é
preciso fazê-lo
bem, de modo que
todos possam ter
uma vida digna»,
disse o Papa
Francisco no Iraque.
© Lusa/Gailan Haji
© Lusa/Vatican Media
Calar as armas, dar direitos
a todos os cidadãos
Caminho de destruição e «dano incalculável»
foi também o êxodo de
milhares e milhares de cristãos: eram
um milhão e meio antes da invasão
do Iraque pelos EUA e aliados, hoje
são cerca de 250-300 mil. Mas Francisco
também recordou, por várias
vezes, o «cruel» aniquilamento dos
yazidis, cuja fé é de origem zoroastriana.
Outro gesto simbolicamente importante
também se realizou em Erbil:
o papa conversou durante alguns
minutos com Abdullah Kurdi, o pai
de Alan Kurdi, o menino que morreu
no Mediterrâneo em 2015 e cujo
corpo foi encontrado numa praia da
Turquia e se tornou uma imagem
icónica da tragédia dos refugiados
que procuram salvação fugindo para
a Europa – e cuja mãe e irmão também
morreram na travessia.
Mensagens claras do Papa Francisco,
sintetizadas logo na primeira
tarde iraquiana, quando se dirigiu às
autoridades políticas e civis e corpo
diplomático: «Calem-se as armas!
Limite-se a sua difusão, aqui e em
toda a parte! Cessem os interesses
de grupo, os interesses externos que
se desinteressam da população local.
Dê-se voz aos construtores, aos
artífices da paz; aos humildes, aos
pobres, ao povo simples que quer
viver, trabalhar, rezar em paz! Chega
de violências, extremismos, facções,
intolerâncias!»
O futuro? Além da reconstrução
das vidas e das almas – onde não faltaram
apelos à «justa distribuição»
de vacinas contra a covid-19 –, é
preciso dar «espaço a todos os cidadãos
que querem construir juntos» o
Iraque, continuar a «lançar as bases
para uma sociedade democrática»,
«assegurar a participação de todos os
grupos políticos, sociais e religiosos
e garantir os direitos fundamentais
de todos os cidadãos» e não considerar
ninguém «cidadão de segunda
classe.»
Pouco depois, aos responsáveis
eclesiásticos – bispos, clero, religiosos,
seminaristas e catequistas – diria:
«Depois de uma crise, não basta
reconstruir; é preciso fazê-lo bem,
de modo que todos possam ter uma
vida digna. [...] De uma crise, não se
sai igual ao que se era antes: sai-se ou
melhor ou pior.» am
além-mar | Abril 2021
ap jovens
MOVIMENTO
PARA A MUDANÇA
Os jovens adultos, dos 15 aos 24 anos, enfrentam a sua
segunda grande crise global. A nova geração, que já havia
sido diminuída pela degradação ambiental e aumento da
desigualdade e da precariedade do emprego, enfrenta agora
sérios desafios e a urgência da mudança.
Texto: Carlos Reis, jornalista
© 123RF
2021 Abril | além-mar
Os efeitos directos da pandemia
na saúde têm sido
geralmente menos graves
para os jovens, embora os
impactos de longo prazo os estejam a
afectar desproporcionalmente. Essas
repercussões incluem a desorganização
do ensino, a incerteza económica,
a perda ou falta de oportunidades
de emprego, os efeitos na saúde física
e mental ou as consequências da violência
doméstica.
A Organização Mundial de Saúde
(OMS) observa que quase 90 % dos
jovens têm ansiedade como resultado
da pandemia, mais de mil milhões
de estudantes em quase todos
os países sofreram as consequências
do fecho dos estabelecimentos de
ensino e um em cada seis jovens no
mundo perdeu o emprego durante a
pandemia.
Esta crise tem exacerbado a desconexão
dos jovens do mercado de
trabalho. A taxa de ocupação dos
jovens entre os 15 e os 24 anos diminuiu
8,7 por cento, «manifestando o
risco demasiado real de uma geração
perdida», regista o relatório Covid-19
and the World of Work 2021, da Organização
Internacional do Trabalho.
«Os jovens correm menos risco
de doenças graves e morte por covid-19,
mas serão os mais afectados
pelas consequências de longo prazo
da pandemia, que moldará o mundo
em que vivem e trabalham nas próximas
décadas», pondera Tedros Ghebreyesus,
director-geral da OMS.
As mulheres jovens, em particular,
arcam com uma parcela desproporcional
das consequências sociais e
económicas da pandemia. Meninas
e mulheres estão a assumir a maior
parte do trabalho de cuidados não
remunerado. As Nações Unidas prevêem
que os casamentos infantis, a
gravidez indesejada e a mutilação
genital feminina aumentem. E, no
que é chamado “pandemia de sombras”,
a violência de género disparou.
Em resposta, a OMS criou o Youth
Council, um conselho de juventude
que reúne jovens de todas as partes
p Daniel Akuei Garang, 16 anos, olha para o campo de basquetebol fechado devido
à pandemia, onde treinava muitas vezes por semana, em Juba, capital do Sudão do
Sul. Está no último ano do ensino secundário, mas, com o encerramento das escolas,
o seu futuro é incerto. Em baixo, Ramata Coulibaly, 20 anos, do Mali. Numa iniciativa
de escrita sobre paz, covid-19 e saúde mental organizada pela Unicef, escreveu: «Na
minha região, Koulikoro, muitas meninas casam-se antes dos 18 anos; durante os
meses de fecho da escola, algumas meninas, que conheço pessoalmente, casaram-se
e outras mudaram-se para a capital, Bamaco, para trabalhar como domésticas»
do mundo com experiências para
aconselhar sobre questões de saúde e
desenvolvimento global.
Pandemials em risco
A desilusão juvenil é um dos principais
riscos negligenciados que se
tornará uma ameaça crítica para o
mundo nos próximos dois anos, já
que as conquistas podem ser destruídas
se a «geração com cicatrizes»
não tiver caminhos adequados para
oportunidades educacionais e de tra-
balho, antecipa o Fórum Económico
Mundial, que no estudo Covid-19
Risks Outlook 2020 alerta para uma
«próxima geração perdida».
Os conflitos de uma década prejudicaram
as perspectivas dos jovens
na Ásia Central, América Latina,
Médio Oriente e África Ocidental e
Central. Esse descontentamento foi
evidenciado pelo número crescente
de movimentos empreendidos por
jovens que surgiram na última década,
entre eles a Primavera Árabe, as
© UNI336488/Wilson
© UNICEF/UN0422834/Dicko
u
além-mar | Abril 2021
jovens
greves climáticas globais e os movimentos
pelos direitos civis que buscam
mais igualdade social e racial.
Um mais recente documento do
Fórum Económico Mundial, o relatório
The Global Risks Report 2021,
aponta que «o fecho de escolas agravou
as desigualdades entre os jovens
e dentro das sociedades, porque as
mulheres jovens e mais desfavorecidas
foram as mais afectadas».
A violência de género cresceu globalmente
durante a pandemia, e os
estupros agravaram-se em países desenvolvidos
e em desenvolvimento.
Espera-se que a gravidez na adolescência
aumente, da América Latina
ao Leste Asiático e África, com algumas
dessas meninas a serem impedidas
de voltar à escola.
As economias mais afectadas pela
Grande Recessão (2008-2012) nunca
recuperaram totalmente. Como
resultado, o desemprego juvenil aumentou,
especialmente no Médio
Oriente e Norte de África. «Os jovens
trabalhadores alternam entre empregos
de curto prazo mal remunerados»,
constata a organização de líderes
mundiais. «Ao todo, o número
de jovens que não estão empregados,
não estudam ou não estão em formação
já era de 21 % no início de 2020, e
provavelmente aumentará», assinala
o Fórum Económico Mundial, para
deixar o alerta para o caminho turbulento
dos designados pandemials.
Perante a gravidade da crise sanitária,
económica e social, o Papa Francisco
pede que a juventude mundial
faça um pacto por um novo modelo
económico. «Precisamos de uma
narrativa económica diferente. Precisamos
agir com responsabilidade
porque o sistema mundial actual é
insustentável. A política e a economia
não se devem submeter às regras
e ao paradigma da eficiência da
tecnocracia», preconiza. Através do
movimento Economia de Francisco,
o pontífice desafia todos os jovens
a serem uma presença concreta nas
cidades e universidades, no trabalho
e nos sindicatos, nas empresas e nos
© UNICEF/UN0422802/Dicko
© 123RF
p Aichata Diarra tem 23 anos e é do Mali. Numa iniciativa de escrita sobre paz, covid-19
e saúde mental organizada pela Unicef, escreveu: «Nasci num Mali unido, forte
e rico com a sua diversidade. Hoje, sinto-me perdida, tantos mortos, crianças órfãs,
ou simplesmente mortas e até alistadas como soldados. O meu único desejo é que
a paz volte e que vivamos em harmonia como dantes». Em baixo, jovem vendedora
em Guerrero, México. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, esta crise tem
exacerbado a desconexão dos jovens do mercado de trabalho. Ao lado, um jovem
desinfecta as mãos antes de entrar num edifício estatal em Phnom Penh, Camboja
2021 Abril | além-mar
A FORÇA DOS JOVENS
aliança Big 6 Youth Organizations, que reúne as maiores organizações
A juvenis do mundo, com mais de 250 milhões de membros, em conjunto
com a Organização Mundial de Saúde e a United Nations Foundation, lançam
a Global Youth Mobilization for Generation Disrupted, uma mobilização
global para responder ao choque causado pela pandemia nos jovens.
O financiamento de programas comunitários, a participação da juventude
nas soluções de combate à pandemia e a convocação, para Abril, da cimeira
Global Youth Summit são as principais acções da iniciativa.
«Juntamo-nos a esta dinâmica global emocionante e poderosa para mobilizar
e capacitar os jovens em todo o mundo para se tornarem a força
motriz para nos ajudar a recuperar da pandemia», afirma Tedros Ghebreyesus,
director-geral da OMS.
«Acreditamos que os jovens têm as soluções para resolver os seus próprios
problemas. Podemos libertar competências, entusiasmo e desejo dos
jovens, para que se tornem uma “força do bem” na sua comunidade»,
avançam os líderes da Big 6, que engloba a Organização Mundial do Movimento
Escotista (WOSM), a Associação Cristã da Mocidade (YMCA), a Associação
Cristã de Mulheres Jovens (YWCA), a Associação Mundial de Guias
e Escoteiras (WAGGGS) e ainda a Federação Internacional das Sociedades
da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) e o Prémio Internacional
Duque de Edimburgo (DofE).
© Lusa/Mak Remissa
movimentos, nos cargos públicos e
privados.
Manifestação mental
À medida que a pandemia confunde
a vida de jovens em todo o mundo,
uma crise de saúde mental latente
ameaça transbordar. Antes da crise
pandémica, um em cada cinco adolescentes
já vivia com problemas de
saúde mental e o suicídio era a terceira
principal causa de morte de
adolescentes entre os 15 e os 19 anos.
A covid-19 apenas acelerou e agravou
o problema. «É difícil aos jovens
conseguirem empregos e a segurança
financeira é ainda mais difícil. Os
laços sociais e comunitários são totalmente
rompidos. O uso de álcool
e drogas está em alta, junto com a
ansiedade e a depressão», observa
Kate Dodson, vice-presidente para
a saúde global da United Nations
Foundation.
Para aqueles que vivem em países
de baixo e médio rendimento e
marcados por conflitos, a situação é
especialmente preocupante. A OMS
avalia que 72 por cento dos serviços
de saúde mental para crianças e adolescentes
foram interrompidos devido
à pandemia.
«A infância e a adolescência são
períodos críticos para cuidados e intervenção
em saúde mental. Os cuidados
de saúde mental são um direito,
não um privilégio. Se a pandemia
excluir esses serviços, estamos a plantar
as sementes de danos emocionais
irrevogáveis para as gerações mais
jovens», alerta a agência da ONU.
Embora quase 90 % dos países tenham
incorporado serviços de saúde
mental nos planos nacionais de resposta
à covid-19, apenas uma fracção
disponibilizou efectivamente o
financiamento necessário para cobrir
esses serviços. Ao mesmo tempo, os
jovens estão também a impulsionar
a mudança e as soluções de resposta
à pandemia, empenhando-se no trabalho
voluntário e em intervenções
comunitárias. Serão sempre parte da
solução, não parte do problema. am
além-mar | Abril 2021
colômbia ap
o interminável conflito colombiano
PALAVRAS DE PAZ,
FACTOS DE GUERRA
Mais de quatro anos se passaram desde os acordos de paz
assinados em 2016. O longo conflito colombiano mudou,
mas não terminou. E as causas que o produziram
ainda estão por resolver.
Texto: Paolo Moiola, jornalista
As palavras são importantes,
mas muitas vezes insuficientes,
sobrestimadas ou
inúteis. A Constituição colombiana,
promulgada em Julho de
1991, fala da paz em três circunstâncias:
no preâmbulo, no artigo 22 e no
artigo 95. No seu preâmbulo, afirma-
-se que o poder soberano garante aos
cidadãos «a vida, convivência, trabalho,
justiça, igualdade, educação,
liberdade e paz». O artigo 22 afirma
que «a paz é um direito e um dever de
realização obrigatória». Por fim, de
acordo com o artigo 95.º, são deveres
da pessoa e do cidadão «promover a
realização e manutenção da paz». No
entanto, apesar das palavras solenes
escritas na carta constitucional, a paz
na Colômbia está largamente inacabada.
Ainda hoje continua a ser uma
promessa de muitos e uma esperança
de tantos.
Os números do conflito podem
mudar dependendo dos assuntos e
da forma como os dados são coligidos.
Em qualquer caso, são números
impressionantes. O Centro Nacional
de Memória Histórica, por meio do
Observatório de Memória e Conflito,
conta as vítimas do conflito, distinguindo
entre onze modalidades de
violência (acções de guerra, danos a
bens civis, mortes selectivas, ataques
à população, ataques terroristas, desaparecimentos,
chacinas, minas
antipessoal, artefactos explosivos
improvisados e artefactos não detonados,
recrutamento e uso ilícito de
meninas, meninos e adolescentes,
sequestros, violência sexual).
As informações, recolhidas e meticulosamente
catalogadas pela instituição,
traçam um quadro minucioso
do que o conflito interno significou e
PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS OCORRIDOS NA COLÔMBIA ENTRE 1980 E 2020
(Infografia: Abel Gil Lobo em elordenmundial.com, actualizado e adaptado pela Além-Mar)
2021 Abril | além-mar
© Lusa/Carlos Ortega
p Desmobilizados das FARC e vítimas
do conflito participam num evento pela
paz em Bogotá, Novembro de 2020
significa para os Colombianos. Segundo
esta fonte, no período 1958-
-2020, foram 266 988 as vítimas fatais
da guerra.
Os principais actores são os conhecidos:
guerrilheiros (politicamente
de esquerda), grupos paramilitares
(politicamente de direita), agentes do
Estado, bandidos, grupos não identificados.
Lendo os dados do Observatório
da Memória e Conflito, no entanto,
não faltam surpresas. Por exemplo,
a teoria prevalecente, tanto na Colômbia
como no estrangeiro, sempre
atribuiu a maior responsabilidade
pelo conflito às guerrilhas (FARC,
em primeiro lugar). Contudo, os
principais culpados foram os grupos
paramilitares. Estes são os primeiros
(supostamente) responsáveis pelos
assassínios selectivos, desaparecimentos
forçados, violência sexual e
chacinas. Os grupos guerrilheiros
(FARC, ELN, M-19, EPL, CGSB) são
responsáveis pelos sequestros, ata- u
além-mar | Abril 2021
colômbia
© Lusa/ Mauricio Duenas Castaneda
© 123RF © 123RF
ques a áreas urbanas, destruição de
infra-estruturas públicas e incorporação
de menores nas suas fileiras.
Precisamente no passado dia 2 de
Março, o exército atacou um grupo
de ex-guerrillheiros das FARC, causando
a morte a uma adolescente.
O ministro da Defesa, Diego Molano,
justificou o facto dizendo que os
menores recrutados são «máquinas
de guerra». Nestes anos, os agentes
do Estado foram os protagonistas da
maioria das acções de guerra.
Após a assinatura do acordo de paz
de 2016 (primeiro rejeitado pelo referendo,
depois alterado e aprovado
pelo Congresso), a situação no terreno
mudou, mas não os resultados.
Em algumas áreas, as FARC voltaram
com grupos de dissidentes, enquanto
vários actores ligados ao narcotráfico
ampliaram o seu próprio domínio.
Então, porque é que, após décadas
de luto e devastação, a guerra ainda
não acabou? Uma das principais causas
é a persistência das condições de
pobreza e desigualdade no país. Para
citar apenas um dado, em 2019, a pobreza
afectava 35,7 % dos Colombianos
(Departamento Administrativo
Nacional de Estatística). Com percentagens
bem maiores em algumas
regiões (com o máximo de 68,4 % no
departamento do Chocó) e nas áreas
rurais e amazónicas.
Estas últimas também acolhem
as zonas de produção de coca. De
acordo com o Offce of National
Drug Control Policy da Casa Branca
(ONDCP, Março de 2020), em 2019,
foram plantados com coca 212 000
hectares, para uma produção de 951
toneladas de cocaína. Contudo, de
acordo com o United Nations Offce
on Drugs and Crime (UNODC), são
menos os hectares cultivados (154
mil), mas a produção é maior (1136
toneladas em 2019). Quaisquer que
sejam os dados correctos, a realidade
mostra uma enorme produção
de cocaína com o envolvimento de
milhares de famílias de camponeses
obrigadas a cultivar plantas de coca
não para enriquecer, mas para sobreviver.
Segundo a organização não governamental
Planeta Paz, a paz deve ser
construída e pressupõe a criação de
p O Supremo Tribunal de Justiça e a
catedral primaz da Colômbia na Praça
Bolivar, no centro histórico de Bogotá.
Em cima (esq.), ataque aéreo do exército
colombiano a grupo de dissidentes
das FARC, no passado dia 2 de Março,
na província de Guaviare, que causou
a morte de uma adolescente e vários
feridos. Em cima (dir.), um dos bairros
de Soacha, município da periferia de
Bogotá, a capital da Colômbia. Uma das
principais causas do conflito no país é a
persistência das condições de pobreza
e desigualdade. Em 2019, a pobreza
afectava 35,7 % dos Colombianos
condições políticas, sociais e económicas.
Não significa simplesmente
superar o conflito armado. É necessário
«erradicar da vida social colombiana
o estado de guerra em que
vive grande parte dos seus habitantes
devido à incerteza de obter os meios
necessários para garantir a vida biológica
e uma vida digna».
Neste contexto, no último ano,
também chegou a pandemia do coronavírus.
Mais uma peça para encaixar
no complicado quebra-cabeças
colombiano. am
2021 Abril | além-mar
DIÁLOGO COM MAURICIO MONTOYA
PERDÃO, RECONCILIAÇÃO
E... INDIFERENÇA
No conflito e no processo de paz colombiano, são muitas as
variáveis envolvidas. Vamos tentar ordená-las com Mauricio A.
Montoya Vásquez, professor e estudioso colombiano.
Texto: Paolo Moiola, jornalista
Para aqueles que pagaram na
pele as consequências de um
conflito, esquecer e talvez
perdoar são etapas complicadas
ou talvez impossíveis. «Em
primeiro lugar», explica Mauricio
Montoya, professor colombiano e estudioso
do conflito, «é preciso diferenciar
entre perdão e reconciliação.
O perdão é uma coisa mais pessoal,
que também pode incluir características
religiosas. A reconciliação é
algo mais amplo, que inclui o estabelecimento
de laços de confiança.
É melhor não iniciar um processo de
paz com a palavra “perdão” e, em vez
disso, usar a palavra “reconciliação”.»
Queremos saber se a sociedade
colombiana consegue esquecer mais
de sessenta anos de conflito interno.
Mauricio Montoya tem uma opinião
particular. «Não creio que o problema
seja o esquecimento, que às vezes
pode ser, até certo ponto, um elemento
salvífico. Acredito que, para
a maioria dos colombianos, o grande
problema seja o da indiferença, como
bem vimos no plebiscito de 2016. Os
eleitores eram mais de 30 milhões
de pessoas, mas apenas 13 milhões
votaram. Além disso, as pessoas que
votaram no “sim” foram aquelas que
viviam nos territórios mais afectados
pela violência. Foi aqui que se decidiu
virar a página.»
© Foto cedida por Mauricio A. Montoya Vásquez
Dissidentes e homicídios
«Já no início havia pessoas que não
estavam dispostas a aceitar o processo
de paz. Posteriormente, outros
[ex-guerrilheiros das FARC] – como
Iván Márquez, Jesús Santrich, El Paisa
[Hernán Darío Velásquez] e Romaña
[Henry Castellanos Garzón] –
retiraram-se, alegando que não havia
garantias suficientes e que o acordado
não estava a ser cumprido.
Na minha opinião, isso foi um
erro. Eles deviam ter sido pacientes,
pois o nosso sistema é lento e requer
paciência. Eles, portanto, voltaram
às armas formando a dissidência que
está a tentar ocupar o território anteriormente
das FARC. Em muitos lugares,
eles estão a lutar com bandos
criminosos envolvidos no tráfico de
drogas. Acho que os dissidentes têm
um projecto político cada vez menos
visível e estão a aproximar-se das
Bactrim [acrónimo de «bandas criminales
como los Urabeños», ndr],
ou seja, os grupos paramilitares que
não aceitaram o processo de desmobilização.
No entanto, não há apenas dissidência.
Também há notícias animadoras:
«Setenta por cento dos exp
Mauricio A. Montoya Vásquez, professor
e estudioso colombiano do conflito
Mauricio Montoya lembra Tzvetan
Todorov. «Segundo o filósofo búlgaro»,
explica, «existem duas memórias:
uma literal e outra exemplar. Há
sociedades que se querem manter
amarradas a uma memória literal,
que é aquela que lembra, comemora
e – infelizmente – tenta pôr o dedo
na ferida e em todas as ocasiões busca
a vingança. Na memória exemplar,
por outro lado, comemora-se e
lembra-se. As pessoas não esquecem,
mas estão dispostas a virar a página
para que a sociedade do futuro não
sofra e não repita essas situações.
Para que a velha sociedade seja um
exemplo para a nova.»
u
além-mar | Abril 2021
península colômbia arábica
© Lusa/Alvaro Ballesteros
-combatentes das FARC», ressalta
Mauricio, «apostam na paz, até com
diversos projectos produtivos: os
cem ex-guerrilheiros e suas famílias
que se mudaram para uma terra de
Mutatá, turismo ecológico, confecções
(Marca “Manifiesta-Hecho en
Colombia”), fábricas de cerveja artesanal
(La Roja).»
Projectos de inserção na sociedade
civil a serem estimulados, mas também
a serem defendidos, visto que,
até 7 de Janeiro de 2021, pelo menos
252 ex-integrantes das FARC já
haviam sido assassinados (cenas já
vistas na década de 1980, quando os
paramilitares mataram membros do
partido União Patriótica). Os números
de assassínios de líderes sociais
(defensores dos direitos humanos,
ambientalistas, activistas indígenas
e afro-colombianos) são ainda maiores.
Nos últimos quatro anos, teria
havido 421, segundo o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os
Direitos Humanos. Já a Provedoria
de Justiça relata mais de 700 mortes.
«Ainda», especifica Mauricio, «segundo
alguns, estes líderes sociais foram
mortos por causa de problemas
de saias, como se fossem problemas
de amor que nada têm que ver com o
contexto político.»
p Indígenas da etnia Embera Katio,
autoridades do município de Dabeibae,
em Antioquia, e ex-combatentes das
FARC participam numa cerimónia de
perdão e reconciliação pelos actos de
violência ocorridos durante o conflito
armado nesta região da Colômbia
Quem quer o fracasso?
Além dos dissidentes das FARC e
grupos paramilitares, há muitos que
trabalham para fazer o processo de
paz fracassar. O nosso interlocutor
não tem dúvidas sobre isso.
«Desde os anos 80», explica, «a paz
é um tema eleitoral. Nesse sentido,
muitos manipularam-no para chegar
à presidência. É claro que há pessoas
que não querem que os acordos sejam
cumpridos da forma como foram
subscritos em Havana e, depois
da derrota no plebiscito, no Congresso.
O problema é dos oportunistas,
dos mercenários que procuram confundir
e preservar os seus interesses
particulares. Eles trabalham para que
as coisas não sejam conhecidas e daí
os ataques às instituições que trabalham
pelo processo de paz.»
Do acordo de paz assinado pelo
então presidente Manuel Santos e
pelos dirigentes das FARC-EP nasceu
o «Sistema Integral da Verdade,
Justiça, Reparação e Não Repetição»
(SIVJRNR). Incorporado na Constituição
por meio do decreto legislativo
1 de 2017, o sistema baseia-se
em três componentes: a «Comissão
de esclarecimento da verdade, convivência
e não repetição» (CEV); a
«Unidade de Busca de Pessoas desaparecidas»
(UBPD) e a «Jurisdição
Especial para a Paz» (JEP).
Entre os principais opositores do
processo de paz está Álvaro Uribe, o
homem-forte da Colômbia, fundador
do partido Centro Democrático
(cujo lema é «Mano firme. Corazón
grande» – Mão firme. Coração
grande), do qual o actual presidente,
Iván Duque, também é militante. «É
óbvio», confirma Mauricio Montoya,
«que o ex-presidente Uribe teve e
ainda tem influência. Ganhou apoio
e popularidade entre uma parte importante
da população pela sua oposição
aos grupos armados, pela sua
disposição de não negociar com eles.
2021 Abril | além-mar
© Lusa/Mauricio Duenas Castaneda
Como fazer justiça?
Após os acordos de 2016, as FARC
tornaram-se um partido político,
mantendo o nome, mas com um
significado diferente: de «Fuerzas
Armadas Revolucionarias de Colombia»
para «Fuerza Alternativa
Revolucionaria del Común». No dia
24 de Janeiro, os dirigentes anunciaram
que mudaram o nome para «Comunes»
para não confundir o grupo
que assinou os acordos de paz com
o grupo de dissidentes. O líder Rop
Modelos apresentam roupas desenhadas
e confeccionadas por ex-
-guerrilheiros das FARC (Marca “Manifiesta-Hecho
en Colombia”), na sede
do Congresso Colombiano, em Bogotá,
Colômbia, 2 de Dezembro de 2019.
Ao lado, produção da cerveja artesanal
(La Roja) em Bogotá, Colômbia
© Lusa/Carlos Ortega
A sua escolha militar, no entanto,
também levou a violações e excessos
como “falsos positivos” [civis inocentes
assassinados pelo Exército,
que os fez passar por guerrilheiros
para ampliar os seus êxitos militares,
ndr]. Uribe continua a ser muito influente
na esfera política, o que lhe
permite eleger senadores, governadores,
presidentes de câmara. Hoje
continua popular entre a população
mais velha, mas não entre os jovens
colombianos.»
drigo Londoño, vulgo Timochenko,
admitiu que manter o nome FARC
não era uma boa ideia e que o novo
nome do partido se refere a pessoas
comuns.
Isso não significa, porém, que os
ex-guerrilheiros não serão julgados.
Os acordos de paz não são, de facto,
uma licença de impunidade, uma
renúncia à justiça para punir os responsáveis.
«Os meios de comunicação social
e as redes sociais», explica Montoya,
«criaram um ambiente negativo em
torno da Jurisdição Especial para a
Paz. Dizendo que é uma justiça de
guerrilha e que é contra os militares.
Argumentos que, paulatinamente,
foram perdendo força.» De facto,
em 29 de Janeiro, o tribunal especial
criado com os acordos de paz (a já
citada Jurisdição Especial para a Paz) u
além-mar | Abril 2021
colômbia
apresenta níveis de violência muito
elevados, tendo-se tornado uma plataforma
de tráfico com os Estados
Unidos e a Europa. Ao lado dessas
rotas, existe também o microtráfico
nas cidades colombianas, onde os
gangues competem com as armas
pelo tráfico não só de drogas, mas
também de pessoas.»
acusou a antiga cúpula da guerrilha
de crimes de guerra e contra a humanidade
pelos sequestros cometidos
durante décadas. Oito integrantes
das ex-FARC foram indiciados, incluindo
o próprio Rodrigo Londoño
e dois senadores.
«Como demonstração», afirma
Montoya, «de que a tarefa que a Jurisdição
Especial para a Paz está a
realizar é real.»
Terra, a questão por resolver
Na Colômbia, a desigualdade é visível
e confirmada por todos os índices.
Perguntamos ao Professor Montaya
sobre o peso da questão da terra.
«Durante as conversações e o processo
de paz», responde, «a questão
da terra foi um tema recorrente. Porquê
mais uma vez o tema da terra?,
perguntaram muitas pessoas. A resposta
é simples: porque, na realidade,
o problema fundiário nunca foi
resolvido. Está escrito nos acordos,
mas a solução ainda não se vê. Uma
etapa fundamental é a transformação
e actualização do cadastro rural,
o que significa poder saber quantos
hectares de terra o povo possui,
quanto pagam de imposto e se estão
p Eliminação de cultivos ilegais de coca
em Tumaco, Pacífico colombiano. O cultivo
da coca continua debaixo da alçada
de grupos armados, ilegais e legais
de acordo com as terras que possuem,
pois há territórios baldios que
não foram entregues aos camponeses
e às comunidades agrícolas que deles
necessitam. Muitos acreditam que o
problema da desigualdade e da terra
não é a causa da guerra. Talvez não
seja o único, mas é fundamental.»
O narcotráfico
Ligada ao tema da terra está a questão
das plantações de coca e o seu
comércio. «O narcotráfico», explica
o professor, «está associado ao conflito
desde os anos 1970. O cultivo da
coca continua debaixo da alçada de
grupos armados, ilegais e legais. De
facto, está provado que também existem
políticos neste lucrativo negócio.
Em muitos territórios, há combates
entre vários grupos armados
para controlar as rotas das drogas.
Um exemplo entre muitos possíveis:
o antigo paraíso do arquipélago de
San Andrés, Providencia e Santa Catalina
[na costa da Nicarágua, ndr]
© Lusa/Dennis M. Sabangan
© Lusa/ Mauricio Duenas Castaneda
Com a Venezuela
e os Estados Unidos
Em Fevereiro passado, o presidente
Iván Duque anunciou a regularização
(por meio do novo Estatuto Nacional
de Protecção) por dez anos de
mais de dois milhões de imigrantes
venezuelanos, o que lhes permitirá
ter acesso aos sistemas públicos de
saúde e educação e trabalhar regularmente.
O presidente colombiano
sempre usou (astuciosamente) a luta
de Maduro contra a Venezuela como
um instrumento de luta política interna
e internacional.
«Duque usa aquele país», explica
Mauricio Montoya, «em termos
eleitorais para assustar a população
sobre certos candidatos, modelos
políticos ou ideias de suposta afinidade
com a Venezuela ou, como se
costuma dizer, com o castrochavismo.
Portanto, acredito que as relações
entre os dois países continuarão
tensas, instáveis e polarizadas.»
Entretanto, nos Estados Unidos,
aliado histórico do país, a presidência
passou de Donald Trump para
Joe Biden. «Não vai mudar muito»,
observa Montoya. «Alguns meios
de comunicação afirmam que, tendo
o Governo colombiano apoiado
Trump, Biden apresentará a conta.
Acho que não vai ser assim. A Colômbia
não perderá o apoio dos EUA,
seja em termos económicos, seja na
luta contra o narcotráfico. Acredito,
em vez disso, que os EUA terão um
papel na próxima presidência, cuja
campanha terá início este ano.»
Com efeito, o ex-presidente e ex-
-senador Álvaro Uribe já iniciou as
conversações para seleccionar os
seus candidatos. am
2021 Abril | além-mar
gente solidária
A IGREJA CATÓLICA PROMOVE PROJECTOS DE PROMOÇÃO PARA JOVENS CONGOLESAS
METER MÃOS À OBRA
A Casa Social Daniel Comboni e o Centro de Formação Integral
Santíssima Trindade são duas estruturas destinadas a pôr
as jovens de pé e ajudá-las a viver.
Texto e fotos: Enrique Bayo, missionário comboniano, de Kinshasa (RDC)
A
pandemia parece não existir
em Kinshasa, capital da
República Democrática do
Congo, porque quase ninguém
usa máscara e os mercados, as
ruas e os milhares de igrejas com as
suas múltiplas denominações estão a
transbordar de gente. Tudo continua
igual nesta imensa cidade que não se
sabe ao certo quantas pessoas abriga:
11 milhões para uns, mais de 13
para outros. Para tentar amenizar os
endémicos engarrafamentos, em alguns
cruzamentos, estão a ser construídos
viadutos – os famosos saut-
-de-mouton – cujas obras estavam
previstas para serem concluídas em
três meses, que já se transformaram
em dois anos, e a certas horas o trânsito
é o caos completo.
A instabilidade política e a difícil
realidade socioeconómica fazem
com que quase não haja trabalho
estável e remunerado, o que obriga a
maioria das pessoas a lutar, de manhã
à noite, para obter o seu sustento
diário. Neste contexto de pobreza, as
mulheres estão sempre mais expostas
a abusos de todos os tipos.
Entre as múltiplas iniciativas da
Igreja Católica a favor da promoção
da mulher em Kinshasa, visitámos
duas estruturas que animam duas
dedicadas missionárias: a irmã comboniana
Giovanna Valbusa e Rejette
de Winter, uma leiga missionária belga.
A Ir. Giovanna chegou ao Congo
em 1977, embora antes de chegar a
Kinshasa tenha trabalhado noutras u
além-mar | Abril 2021
gente solidária
comunidades do país: Dakwa, Mungbere,
Isiro e Kisangani; Rejette, porém,
sempre viveu, ininterruptamente,
na capital, desde a sua chegada ao
país em 1961.
Casa Social Daniel Comboni
A comunidade de Kimbondo das
Missionárias Combonianas encontra-se
nos arredores de Kinshasa,
junto à estrada de Matadi, que vai até
ao oceano Atlântico. Antes era uma
casa de formação para jovens aspirantes
a missionárias, mas quando
esta etapa formativa foi mudada para
Kisangani, as Irmãs Combonianas
decidiram usar a casa num projecto
que respondesse a uma das suas prioridades
missionárias: a promoção da
mulher.
No início, queriam abrir um centro
de acolhimento para mulheres
que saíam da prisão, oferecendo-lhes
alojamento durante algum tempo e
ajudando-as na sua reinserção social,
mas acabaram por decidir abrir
a casa a todo o tipo de mulheres
marginalizadas. Em Maio de 2018,
p Jovens durante uma aula de corte e
costura no jardim da Casa Social Daniel
Comboni, em Kimbondo, na República
Democrática do Congo
começaram com um primeiro grupo
na baptizada Casa Social Daniel
Comboni. «Não queríamos chamá-la
centro porque desejamos que as mulheres
se sintam como uma família
e que esta seja a sua casa enquanto
morarem aqui», diz a Ir. Giovanna.
Durante a nossa visita, eram oito
as mulheres acolhidas, embora sejam
mais de 26 as que passaram pela casa,
na sua maioria jovens entre os 20 e os
26 anos. «O nosso único objectivo»,
sublinha a missionária comboniana,
«é ajudar estas mulheres a erguerem-
-se e a assumirem o domínio da sua
vida, por isso, a única exigência que
lhes fazemos é que queiram vir e trabalhar,
porque nada é dado. Oferecemos-lhes
uma oportunidade, mas
elas têm a última palavra. Se deixam
de vir, se não se ajudam, não há nada
a fazer.»
As jovens vivem em regime de
internato pelo período máximo de
um ano. As que já são mães devem
deixar os filhos com um membro da
família para aproveitar bem o tempo.
Esta decisão deve ser contextualizada
na cultura local, onde as crianças
não sofrem nenhum trauma se ficarem
com uma irmã mais velha ou tia.
Na Europa seria diferente.
Formação e convivência
A Casa Social Daniel Comboni oferece
duas possibilidades de formação:
corte e costura ou estética e cabeleireiro.
As alunas frequentam um
curso de seis meses, de segunda a
sexta durante a manhã, no Centro de
Aprendizagem de Ofícios Especializados,
localizado não muito longe
da casa. Segundo a Ir. Valbusa, este
lugar oferece muitas vantagens. «Em
primeiro lugar, tem qualidade e dá
certificado oficial se passarem nos
exames finais; além disso, aceita inscrever
novas alunas a cada início do
mês, o que dá uma certa flexibilidade
para incorporar uma jovem ao lon-
2021 Abril | além-mar
p Pormenores dos trabalhos que as jovens
fazem nas aulas de corte e costura
na Casa Social Daniel Comboni, em Kimbondo.
Ao lado, a Ir. Giovanna Valbusa,
missionária comboniana, responsável da
Casa Social Daniel Comboni
No contexto
de pobreza, as
mulheres estão
sempre mais
expostas a abusos
de todos os tipos.
A Casa Comboni
ajuda estas
mulheres em risco
de exclusão
«a erguerem-se
e a assumirem
o domínio
da sua vida».
go do ano. E, por último, preferimos
que elas saiam de casa e encontrem
outras pessoas para socializarem.
Caso contrário, seria muito difícil ficarem
sempre encerradas em casa.»
Durante a nossa visita, encontramos
as jovens no jardim, trabalhando
à volta de uma mesa. Nota-se o entusiasmo
e o optimismo ao vislumbrarem
o futuro. Uma delas, Joelle, está
no sexto mês de formação: «O curso
de corte e confecção ajudou-me
muito. Um dia gostaria de ter uma
casa grande como esta para acolher
outras pessoas e ajudá-las também.»
Sara exprime-se quase com as mesmas
palavras: «Estou muito feliz porque
poderei ajudar a minha família,
os meus filhos e também outras mulheres.»
Hoje, as jovens dedicam-se a
fazer pequenos trabalhos, como bolsas
e porta-moedas, cuja venda ajuda
a custear as despesas da casa. Outras
tardes são passadas no jardim,
aprendendo a cozinhar ou ouvindo
palestras sobre educação para a vida
ou prevenção de doenças. Além disso,
três vezes por semana, dependendo
do nível escolar, frequentam um
curso de alfabetização ou de francês.
A professora é Ruth, que nota que
«há muitas diferenças entre elas, por
isso trabalhamos em dois grupos.
Algumas não sabem ler, mal conseguem
segurar uma caneta e precisam
de atenção especial, mas sinto que a
maioria tem sede de aprender e de se
responsabilizar pela sua vida. Costumo
ajudá-las também a prepararem-
-se para os exames finais do curso.
Colaboro neste projecto desde o início
e vejo um enorme progresso nas
meninas nestes meses. Isto deixa-me
muito feliz.»
Nos fins-de-semana, uma jovem
missionária comboniana congolesa,
a irmã Henriette Mfutu, apoia a
comunidade, e todos os domingos,
embora a maioria não seja católica,
todas participam na Eucaristia na
paróquia de Mater Dei, a 500 metros
da casa. Também não faltam momentos
de oração, de assistir a um
filme juntos ou outros momentos
de lazer, mas – como frisa a Ir. Giovanna
– «a mensagem que passamos
u
além-mar | Abril 2021
Centro de capacitação
No coração de Kinshasa, no Bairro
de Matete, visitámos outro centro
de promoção da mulher semelhante
em alguns aspectos ao de Kimbondo,
mas diferente noutros. A sua
fundadora e promotora é Rejette de
Winter, uma missionária leiga de 85
anos que mantém toda a força e entusiasmo
da juventude. Chegámos
numa sexta-feira e fomos encontrar
Rejette na sala paroquial a falar às
vinte alunas de um curso centrado
na importância de reflectir bem antes
de tomar decisões na vida. É um
prazer ouvir a força que ela põe nas
suas palavras e os gestos e olhares
com que as acompanha.
O Centro de Formação Integral
Santíssima Trindade nasceu em 2005
na paróquia do mesmo nome, e este
curso 2020-2021 acolhe a sua décima
sexta formação. Centenas de menigente
solidária
sempre é a de que não há tempo a
perder. Elas têm de se organizar para
realizar a sua formação com responsabilidade».
Voltar para a sociedade
A missionária comboniana tem
consciência da importância de se
prepararem para o «regresso à sociedade»,
pelo que visita todos os
meses as famílias das raparigas para
garantir que terão o seu apoio. Também
procura oficinas de confecção
e salões de beleza onde as raparigas
possam fazer estágios profissionais,
por três meses, antes de abrirem o
seu próprio negócio. Finalmente, as
irmãs dão-lhes uma certa quantia de
dinheiro para começarem uma vida
independente. «Os resultados são
animadores», afirma a Ir. Giovanna,
que acrescenta: «Temos várias jovens
que abriram os seus pequenos
negócios e sabemos que tudo o que
aprenderam aqui vão passar para
uma irmã, para uma vizinha e terão
um efeito multiplicador. Como missionária,
ver a vida de alguém florescer
dá-me grande satisfação e recompensa
todos os nossos esforços.»
nas e jovens mulheres formaram-se
ali e, de acordo com Rejette, «nenhuma
se arrependeu. Quando passam
por aqui, a sua visão do mundo
muda e elas ficam mais bem adaptadas
para a vida. Cada aluna contribui
com cinco dólares por semana para
despesas de material e manutenção,
enquanto uma amiga belga de Rejette
de Winter paga o salário das professoras.
Por sua vez, a arquidiocese
de Kinshasa oferece os espaços utilizados
pelo centro.
A formação tem a duração de sete
meses, três manhãs por semana, e
oferece cursos de corte e costura e
informática. Tem uma sala com dez
máquinas de costura e outra com dez
computadores, pelo que às segundas
e quartas-feiras as raparigas, divididas
em dois grupos, se revezam nos
dois cursos. Sexta-feira é dia de formação
humana, religiosa e de educação
para a vida, e todas as jovens
acompanham as palestras juntas.
Ao contrário da Casa Social Daniel
Comboni, o centro «não visa ajudar
as mulheres em risco de exclusão,
mas é um centro de formação que
desenvolve as potencialidades das
mulheres», afirma a missionária belga.
Aqui, acrescenta, «só aceitamos
meninas que obtiveram um diploma
oficial depois de concluírem o ensino
secundário. Quando chegam as
candidatas, atentamos nas suas motivações,
mas também fazemos uma
prova escrita e uma curta entrevista.
Se não tiverem um certo domínio da
língua francesa, não podemos ins-
2021 Abril | além-mar
p Rejette de Winter, missionária
leiga de 85 anos, durante
uma aula no Centro de Formação
Integral Santíssima Trindade no
Bairro de Matete, no centro de
Kinshasa
crevê-las. Acolher meninas
que não têm uma formação
básica suficiente atrasaria
muito a aprendizagem das outras e
– nisto concorda com a Ir. Giovanna –
não há tempo a perder aqui.»
Uma vida para o Congo
Ouvir o testemunho missionário
de Rejette de Winter é fascinante.
Em 1959, preparava-se para ir para
a Indonésia, mas mudou de rumo.
«Alguém me disse: “Temos de ficar
«Este país era um
paraíso e tenho
testemunhado
nestes sessenta
anos como se
degradou».
no Congo, em breve alcançará a independência
e os Belgas vão-se embora.”
Assim, pensei: “Certamente
evangelizámos este povo, e agora não
podemos abandoná-lo. Têm de saber
que não lhes mentimos e que o
Evangelho anunciado tem todo o seu
valor.” Cheguei aqui no dia 14 de Outubro
de 1961 e essa ideia continua a
sustentar a minha missão».
Embora Rejette pertença à associação
de Leigos Auxiliares de Apostolado,
cada membro deve procurar o
seu próprio sustento financeiro. Não
recebe auxílio de nenhuma instituição,
apenas de amigos. Licenciada
em Ciências Domésticas, quando a
missionária chegou a Kinshasa, nos
tempos do Cardeal Malula, tornou-
-se professora de Religião. Estudou
Ciências Religiosas por três anos e
começou a leccionar numa escola secundária
católica. No 1.º de Janeiro
de 1975, o presidente Mobutu suspendeu
as aulas de religião nas escolas
e Rejette teve de começar a dar
aulas de corte e costura num centro
em Matete para ganhar a vida. Ponderou
então voltar para a Bélgica.
Mas não o fez. Quando atingiu a idade
da reforma e começou a receber
uma pequena pensão, decidiu ficar
na República Democrática do Congo
para o resto da vida.
Quando perguntamos a Rejette se
ela se sentia congolesa, a sua resposta
foi surpreendente e taxativa: «Não,
estou aqui e adoro fazer o que Deus
me mandou fazer, mas as condições
das pessoas são tão terríveis que não
é uma questão de sentimento, é questão
de vontade.» E, após uma breve
pausa, continua: «Este país era um
paraíso e tenho testemunhado nestes
sessenta anos como se degradou.
A miséria em que vivemos é causada,
os próprios dirigentes não quiseram
desenvolver este país. Estou aqui para
ajudar estas raparigas, para melhorar
as suas vidas, para que cresçam como
pessoas e como mulheres, e faço isso
apenas pela minha fé e com força de
vontade. Não, não é uma questão de
sentimentos.» am
além-mar | Abril 2021
livros
Palavra viva
obra intitulada Liturgia da Palavra – Ano B, da autoria
do Papa Francisco, constitui-se como um conjunto
A
de catequeses e comentários proferidos pelo Santo Padre
com base nas palavras do Evangelho dos domingos e solenidades
de todo o tempo litúrgico.
É importante referir que, logo na introdução, o Papa
Francisco estabelece um diálogo de profunda e gentil proximidade
com o leitor. Mostra-nos que a palavra de Deus
está viva e que foi escrita para cada um de nós, para que
nos deixássemos interpelar: «É Deus quem, através da
pessoa que lê, nos fala e nos interpela, a nós que ouvimos
com fé.»
O Santo Padre pede-nos que olhemos para a liturgia da
palavra com humildade e confiança, procurando ter sempre
espaço para Deus e para a oração. A sua linguagem,
ao longo de todas as catequeses, é directa, promotora da
paz do coração, familiar e simples, mas sem deixar de ser
sustentada teologicamente.
A referida obra está dividida nos diferentes tempos do
ano litúrgico: o Tempo do Advento e do Natal, o Tempo da
Quaresma e do Tríduo Pascal, o Tempo Comum.
Talvez seja pertinente que nos debrucemos num destes
tempos específicos, para que possamos analisar de
forma mais particular as páginas que compõem este livro.
Vejamos o que nos diz o Santo Padre sobre o tempo
da Quaresma, por exemplo: ajuda-nos a compreender que
este não é um tempo de luto nem de escuridão, mas sim
um tempo de despojamento; a altura certa para deixarmos
para trás o que não é essencial. Na verdade, Deus quer
preparar-nos para a Paixão, para o que encontraremos de
difícil e penoso nas nossas vidas, tal como Jesus preparou
Pedro, Tiago e João.
Ao longo dos textos reunidos neste livro, conseguimos
perceber que o Papa Francisco encontra sempre espaço
para o rosto de Maria, para a recordar por meio das suas
palavras.
Este é um livro que se afigura como um roteiro de
acompanhamento espiritual muito completo, e escrito
Título: «Liturgia da Palavra – Evangelho do Ano B»
Autor: Papa Francisco
Editor: Paulinas
www.paulinas.pt | Tel. 219 405 645
pelo Santo Padre, com recurso a uma linguagem acessível
a todos... Tão ao jeito de Jesus.
Em conclusão, o leitor encontrará nesta obra um espaço
privilegiado e potenciador de um tempo forte de oração
e de amadurecimento da sua fé. Como nos diz o Santo
Padre: não devemos rezar como papagaios, sem prestar
atenção ao que nos é dado a contemplar.
Na verdade, não será, de todo, difícil para cada leitor
compreender que o Papa Francisco quer ser instrumento
para colocar, no coração de cada um, a verdade do maior
amor de todos: o do Pai.
Marta Arrais
Título: Filhos da Luz em Tempos de Prova
Autor: Samuel Lauras
Editor: Frente e Verso
www.frenteeverso.pt | Tel.: 253 689 443
A obra apresenta as reflexões
de Samuel Lauras – monge
cisterciense de naturalidade
francesa e abade no mosteiro
de Nový Dvur, na República
Checa – para nos mantermos
unidos na adversidade. O autor
aponta a humildade, a escuta,
a atenção e a disponibilidade
interior como as atitudes fundamentais
para uma vida em
comunhão.
Título: Lusofonias – de Roma para o mundo
Autor: Tony Neves
Editor: Espiritanos
liam@espiritanos.pt | Tel.: 213 933 000
Esta obra reúne as crónicas semanais
que o padre Tony Neves
escreveu nos últimos dois anos,
depois que foi nomeado para
o serviço de coordenador do
gabinete de Justiça e Paz dos
Missionários do Espírito Santo
(Espiritanos) em Roma. Nos textos,
o autor comenta um acontecimento,
um livro, uma intervenção
do papa, uma encíclica,
um momento litúrgico.
2021 Abril | além-mar
discos
António Marujo
Título: Carnage
Autores: Nick Cave & Warren Ellis
Na canção «Hand of God» (“Mão
de Deus”) do disco Carnage
(“Carnificina”), Nick Cave canta: «Há
algumas pessoas a tentar descobrir
quem / Há algumas pessoas a tentar
descobrir porquê / Há algumas pessoas
que não estão a tentar encontrar
nada / Mas esse reino no céu, no
céu... Mão de Deus vinda do céu...»
A resposta vem depois, em «Lavender
Fields» (“Campos de alfazema”), canto
melodioso e quase litúrgico: «Não
perguntamos quem/ Não perguntamos
porquê / Há um reino no céu /
Caminhamos e caminhamos...»
Carnage, escrito com o seu companheiro
Warren Ellis, é o último acto
de uma trilogia iniciada em 2020,
à conta da pandemia, com os discos
Idiot Prayer (“Oração idiota”) e
L.I.T.A.N.I.E.S. Neste caso, Cave escreveu
as palavras para uma paixão de
Cristo composta por Nicholas Lens
– e diria a propósito: «Durante toda a
minha vida escrevi litanias...»
Título: L.I.T.A.N.I.E.S
Autores: Nick Cave e Nicholas Lens
Entre drama e meditação, os três
discos são, embora com diferentes
movimentos e ritmos, um mesmo refrão
ou litania – ou jaculatória – que
se recria. Como em muitos temas ao
longo da sua carreira, sobretudo nos
últimos discos, revelam de novo um
criador que toma as buscas humanas
para inquirir o mistério da vida através
da música.
Porque é da vida que se trata. Desde
que lhe morreu um filho, em 2016, o
australiano Nick Cave assume o debate
interior entre a gravidade e a graça,
na expressão de Simone Weil. O tom
pode parecer, à primeira, demasiado
melancólico, mas isso é só porque a
voz se vai buscar ao mais interior de
si mesmo. E à medida que a escuta,
sonda-se também cada vez mais a intensidade
que atravessa esta música
– e nos atravessa a todos.
Skeleton Tree e Ghosteen, os discos
editados a seguir à tragédia familiar,
já escavavam até ao fundo o universo
gesto solidário
Título: Idiot Prayer
Autor e Intérprete: Nick Cave
da “noite” de S. João da Cruz, entre a
fé, a dúvida e a esperança, herdeiro da
ideia da redenção. E que já se expressava
em «Foi na Cruz» (cantado em
português, a partir de um hino protestante
ouvido por Cave no Brasil),
do disco The Good Son (“O Bom Filho”,
1990).
L.I.T.A.N.I.E.S começa com a “Litania
da ausência divina”, sussurrada
com um “Onde estás?” e termina com
a “Litania da presença divina” (“Vejo-
-te, estás a surgir...”). Com Idiot Prayer
e Carnage, frutos da mesma gravidez
pandémica, esses movimentos consolidam-se
em diferentes expressões
e movimentos musicais. Como na
“Litania do encontro”: “Fui refeito, ó
Senhor / Eu já não era eu/ Eu era o
mundo / O mundo inteiro.”
Três discos que nos refazem a vida.
Como que meditações pascais.
Edição: https://www.nickcave.com/music/
Todos os discos estão disponíveis nas
plataformas digitais
APOIAR PROJECTOS MISSIONÁRIOS NAS FILIPINAS
Em Manila, capital das Filipinas, desenvolvem
a sua missão os padres combonianos
portugueses David Domingues
(superior da delegação) e António Carlos
Ferreira (director da revista World Mission).
Devido à situação de pandemia e ao confinamento,
muitos dos projectos de evangelização
e animação missionária que
efectuavam (nomeadamente a difusão da
revista missionária nas paróquias) ficaram
suspensos. Assim, neste contexto, têm
dificuldade em encontrar meios para continuar
as suas actividades missionárias e
pedem o nosso apoio.
A revista Além-Mar, com o Projecto 3/2021,
contando com a generosidade dos seus
leitores, quer contribuir com 5000 euros.
Pode mandar a sua contribuição por cheque, vale postal, transferência bancária para o IBAN
PT50 0007 0059 0000 0030 0070 9 (neste caso deve indicar-nos – editalemmar@netcabo.pt
ou 213 955 286 – que a transferência se destina ao Gesto Solidário), ou online (www.combonianos.pt/doar)
seleccionando a opção “projecto solidariedade Além-Mar”.
além-mar | Abril 2021
povos e culturas
DANÇA E AFECTOS
os kuduristas da caparica combatem solidão
dos idosos com dança e afectos
Texto: Rosa Cotter Paiva (jornalista da Lusa) | Fotos: Tiago Petinga (Lusa)
À
janela, na hora marcada,
surge o “Capitão” acenando
aos “netos” kuduristas
que chegaram para dançar
e dar dois dedos de conversa. Juntam-se
os vizinhos, nas varandas, e
durante meia hora não há solidão: há
sorrisos e esquece-se a pandemia.
Combater a solidão
Cinco jovens entre os 24 e os 34
anos são os Kuduristas da Caparica,
que três dias por semana, através da
dança, promovem o envelhecimento
activo dos utentes, agora em confinamento,
do Centro Social da Trafaria,
no âmbito do projecto “Não estamos
sós”, da Santa Casa da Misericórdia
de Almada, no distrito de Setúbal.
Os sons de kuduro e afrohouse são
projectados através de uma pequena
coluna suficientemente potente para
pôr a mexer os “vovós”, como são carinhosamente
tratados pelos voluntários,
que fazem uma espécie de terapia
aos menos jovens, com idades
entre os 80 e os 99 anos.
A ideia começou com oito utentes,
mas já se espalhou aos vizinhos e, na
rua do “Capitão” – que apesar de não
frequentar o centro é um dos “vovós”
do projecto –, são vários aqueles que
se assomam à janela ou varanda para
participar na serenata.
Os mais atrevidos, se bem que com
todas as regras de segurança, vêm até
à rua para dançar.
“Capitão”, como é conhecido Carlos
Santos, dono de uns olhos de
azul-mar, usa um chapéu que o denuncia
a quem passa e lhe vale a alcunha.
Para ele, estes “netos” «deviam vir
mais vezes». «O grupo veio cá para
me desencantar e acabou a encantar
os vizinhos todos. Está muito bem,
que seja por muitas vezes», diz, revelando
que as pessoas «estão sozinhas»
e que os jovens chegam e as
divertem.
Reconhece que já não dança como
antigamente. Uma operação à coluna
deixou-o com um problema na
perna: «Ensinei muitas meninas a
dançar, fui músico, tive bandas, fazia
bailaricos, era uma beleza», conta.
«Ah, hoje é o dia da dança», graceja
Dona Odete, que passa na rua,
com um saco de compras vazio no
braço, e por lá fica entretida a dançar
com o grupo.
«É sempre uma animação», desabafa.
2021 Abril | além-mar
p Uma popular dança à janela durante uma visita de Os Kuduristas da Caparica.
Em baixo, Manuel, acompanhado pela sua mulher Alzira, dançam com os Kuduristas
da Caparica, durante uma das suas visitas na Quinta da Corvina, Trafaria, Costa da
Caparica, Almada
p Os Kuduristas da Caparica dançam
para a sua “vovó” Clarisse, durante uma
das suas visitas na Trafaria, Costa da
Caparica, Almada
A tarde começa na Costa da Caparica,
junto ao ex-líbris arquitectónico
Torre das Argolas, onde vive a “vóvó”
Maria Domingues. Os jovens estão
expectantes com a visita, pois já não
estão com a “avó” há algum tempo
por esta ter estado hospitalizada.
São recebidos com um ramo de
flores de papel colorido, um passatempo
que tinha no centro de dia e
que mantém em casa.
Ninguém diria que esteve internada
– a genica com que dança pela
janela, canta e ri não lhe denunciam
os 80 anos.
«São muito especiais e divertidos,
tenho o coração cheio», diz Maria
Domingues, num entra e sai da janela
para mostrar aos “netos” aquilo
com que se tem entretido. Joana Silva
pede-lhe que não traga laranjas ou
rebuçados, mas a “avó” traz nas mãos
duas bolas cor-de-rosa que anda a
decorar.
«A valorização da pessoa idosa é
claramente uma das nossas metas,
objectivos, e combater o isolamento,
claro», começa por explicar Joana
Silva, uma das kuduristas e dinamizadora
do grupo, no qual todos adoram
trabalhar com idosos.
Houve uma altura, lembra, em que
foram estas pessoas a cuidar dos outros,
chegando agora o tempo de serem
cuidadas: «Não há maior riqueza
do que eles e ter a possibilidade e
privilégio de dizer “és especial”, porque
o são, é devolver qualquer coisa,
aprendemos todos os dias.»
Energia positiva e auto-
-estima
Joana Dias reconhece que uma visita,
um dedo de conversa, um telefonema,
fazem «toda a diferença» a estas
pessoas. E, agora, «ter alguém que
dança, que os faz ficar conhecidos,
mexe com a auto-estima e fá-los sentir
superimportantes».
De alguma forma, estes cinco voluntários
já lidavam com projectos
sociais. Joana e Gonçalo Silvestre,
guia das Avós do Mar, já trabalhavam
com alguns destes idosos no projecto
Varina, sobretudo com turistas, mas
com a pandemia a iniciativa teve de
ficar suspensa.
u
além-mar | Abril 2021
povos e culturas
«É mais o que levamos do que o
que damos aqui», confessa Miguel
Graça, professor de dança e coreógrafo,
reconhecendo que a partilha
do ritmo do kuduro e da «energia
positiva» resulta numa experiência
«muito positiva».
Com emoção, reconhece que é
com «uma gratidão enorme» que
vê a entrega dos «avós» e o seu
feedback positivo a um ritmo que
não é propriamente conhecido destas
gerações.
«Está a ser brutal», sintetiza, admitindo
que alguma coreografia e passos
de kuduro ou afrohouse são
adaptados para os alunos “vovós”.
Diana Ramos, Gonçalo Silvestre,
Joana Silva, Miguel Graça e Rafaela
Schneider são os Kuduristas da Caparica
e pretendem desenvolver um
projecto-piloto no concelho de Almada,
para que se espalhe depois a
outros locais do país.
Os jovens estão a ter vários pedidos
de escolas de dança e de voluntários
que querem juntar-se à ideia de
levar a dança aos idosos, remetendo
para as redes sociais as próximas novidades
do projecto e a forma como
a sociedade poderá ajudar.
Na Quinta da Corvina, o senhor
Manuel e a dona Alzira recebem os
p Os Kuduristas da Caparica durante
uma das suas visitas na Trafaria, Costa
da Caparica, Almada
kuduristas com cantigas, versos e
rimas, sendo visível o carinho mútuo.
A energia do “vovô” de 88 anos
é comparável à da sua mulher, três
anos mais nova. Os dois, lado a
lado, cada um com a sua canadiana,
dançam conforme podem, acompanhando
os jovens.
«Hoje está muito animado. Até a
dona Alzira veio cá fora ter connosco,
nem sempre é assim. Estão a ficar
famosos estes “vovós”», diz Joana.
A união entre todos é também evidenciada
quando o grupo entrega a
cada idoso uma das flores de papel
feitas por Clarisse.
A memória, que às vezes já falha,
mas aguçada pelos jovens com a pergunta
«sabe quem lhe manda esta
flor?», não deixa esquecer a companheira
que não vêem desde que estão
confinados.
Não é só dança e música que os kuduristas
levam aos “vovós”: são também
afectos, atenção, uma palavra
amiga, um sorriso, num todo conjugado
para evitar a solidão. am
INTRODUÇÃO
AO KUDURO
Kalaf Epalanga, músico, escritor
e embaixador do kuduro, nasceu
em Angola, mas desenvolveu
a sua carreira profissional em Portugal,
no bairro da Damaia, concelho
da Amadora, nos arredores de
Lisboa. Deu voz à banda Buraka
Som Sistema, responsável pela
internacionalização do kuduro,
que pode ser definido como um
estilo de música electrónica nascido
nas periferias de Luanda na
década de 1990.
No romance Também os Brancos
Sabem Dançar (Caminho, 2018),
Kalaf Epalanga conta a história do
kuduro e o seu processo de internacionalização,
ficcionando para
isso a trajectória da banda.
O autor descreve episódios, influências
musicais e nomes que o
associaram à história do kuduro.
Epalanga explica que o kuduro
nasceu da vontade dos jovens angolanos
de expressar com os seus
corpos, por meio de movimentos
rápidos e ritmados, que são bailados
tanto em grupo como individualmente,
a energia acumulada,
o luto, a alegria negada a quem
quer ser como os outros, «livre
para existir para além da esperança
de vida, para além do serviço
militar, para além da malária e
tantas outras privações das quais
muitos nem estão cientes». O kuduro
é entendido como uma possibilidade
de ascensão social, de
sair do círculo vicioso da pobreza
em que se nasce e de criar algo
próprio, de que se orgulhar.
2021 Abril | além-mar
apontamentos
© 123RF
P. e Fernando Domingues
Missionário comboniano
O Cristo que passou da
morte para a vida agora
caminha sempre connosco,
para fazer da nossa vida
um caminho de páscoa-
-passagem à vida nova
que Ele oferece.
PÁSCOA É PASSAGEM
A
Páscoa é a grande festa dos cristãos, o dia da ressurreição de
Jesus Cristo. Naquela mesma sexta-feira, ali a poucos metros
da cruz onde Jesus acabava de morrer, alguns amigos sepultaram-no
à pressa, antes do cair da noite, pois já estavam para
começar os rituais do sábado, o dia santo. Passado o sábado, ao nascer do
primeiro dia dessa semana Maria de Magdala (Madalena) foi ao sepulcro
e encontrou-o vazio. Logo depois, o próprio Jesus apareceu-lhe vivo e
falou com ela. Depois foi aparecendo também aos outros discípulos.
Quando lhes apareceu pela última vez, no dia da Ascensão, enviou-os
a anunciar a sua mensagem por todo o mundo com a promessa: «E eu
estarei sempre convosco...» (Mt 28, 20).
Sabemos que os primeiros grupos de discípulos, em Jerusalém e também
ao Norte, na Galileia, onde Jesus tinha vivido mais tempo, continuaram
a ir à sinagoga ao sábado, mas encontravam-se também entre eles no
primeiro dia da semana para o rito do «partir o pão», como Jesus tinha
feito com os primeiros discípulos na última Ceia, antes de morrer. A cada
primeiro dia da semana, “partiam o pão” celebrando a ressurreição e a
presença de Jesus. Nascia assim a nossa Eucaristia e o nosso domingo!
Com o passar dos anos, os Hebreus celebravam a Páscoa, no dia 14 do
mês de Nisã, e os cristãos celebravam a ressurreição de Jesus no primeiro
dia da semana logo a seguir. Só alguns séculos mais tarde é que esse dia
passou a ser chamado domingo (dia do Senhor), em Roma.
Sabemos que, por volta do ano 155, São Policarpo, bispo de Esmirna
(Turquia), viajou até Roma para aí discutir com o bispo Aniceto a melhor
data para celebrar a Páscoa. Policarpo, com os cristãos no Oriente,
continuavam a fazer a festa no domingo a seguir à Páscoa judaica, que
começava no equinócio da Primavera. A data da Páscoa judaica estava
ligada aos antigos ritos da Primavera – passagem dos rebanhos para as
pastagens mais altas, mas celebrava sobretudo a grande passagem dos
antigos Hebreus que saíram da escravidão do Egipto, passaram o mar
Vermelho, e o deserto, até conseguirem passar o rio Jordão, para chegarem,
livres, à Terra Prometida, a Palestina.
Cristo foi crucificado quase certamente na sexta-feira antes da Páscoa
dos Hebreus. E os cristãos começaram logo a ver na morte e ressurreição
de Cristo uma dupla passagem (Páscoa) ainda mais importante: ressuscitando,
Cristo passou da morte para a vida, e nós cristãos, pelo Baptismo,
participamos na sua morte e ressurreição e passamos, também nós, para
a vida nova que Ele nos oferece.
Notemos que a nossa festa da Páscoa continua associada à Primavera:
é sempre no domingo que se segue à primeira lua cheia da Primavera no
hemisfério norte. E por isso os símbolos da vida nova típica da Primavera
foram-se associando às festas da Páscoa: as flores na cruz da visita pascal,
os ovos (vida que se transforma e cresce).
Esta associação da Páscoa com a Primavera ajuda-nos a entender
como o Cristo que passou da morte para a vida agora caminha sempre
connosco, para fazer da nossa vida um caminho de páscoa-passagem à
vida nova que Ele oferece. am
além-mar | Abril 2021
vocação e vida
Susana Vilas Boas | Investigadora e leiga comboniana
© 123RF
2021 Abril | além-mar
Susana Vilas Boas | Investigadora e leiga comboniana
VOCAÇÃO: UMA REALIDADE
INTEGRAL E INTEGRANTE
A vocação é um dom que se discerne e realiza pouco a pouco, procurando
dar a mão a quem ajude na autodescoberta, nas opções e no compromisso
de amar e ser gerador de vida em favor da Humanidade.
Por estes dias, todos
se mostram mais
atarefados que o
habitual. A pandemia, que
trouxe tanto isolamento e
tantas restrições à circulação,
parece ter arrastado
consigo uma avalancha de
afazeres e uma azáfama à
qual ninguém está imune.
Um dos problemas reside
no facto de, ao fazer-se
tanta coisa “a partir de
casa”, tudo ser exigido
como prioritário, urgente,
importante. No meio
de tantas coisas (escola,
trabalhos, família e, muitas
vezes, doença), não
conseguimos abarcar tudo
nem fazer uma gestão
equilibrada de prioridades.
Simplesmente, parece
que não conseguimos
dizer que não a nada, nem
conseguimos encarar os
afazeres de um modo saudável,
dando prioridade
ao prioritário.
Esta situação fez-me
pensar sobre a realidade
vocacional. Talvez
o discernimento vocacional
esteja, também
ele, assombrado por
algo semelhante ao que
vivem hoje nestes tempos
pandémicos: parece que
há dificuldade em gerir
os nossos sonhos (destingindo-os
das ilusões) e
em dar prioridade ao que
é prioritário. Além disso,
mantém-se a dificuldade
de dizer que não ao que
quer que seja. Assombra-
-nos a possibilidade de
estarmos a rejeitar algo e
que, com isso, estejamos
a comprometer o nosso
futuro. Ora, a questão
deveria ser inversa. De
facto, sendo a vida feita de
escolhas, o «não-escolher/
/não-optar» é já uma
escolha. Escolha, esta, que
também compromete irremediavelmente
o futuro:
o futuro torna-se sempre
um “adiamento” daquilo
que somos e daquilo que
desejamos ser. Não seria
antes o caso de priorizar e
fazer opções consonantes
com os nossos maiores
anseios de vida, para que
fosse isso a comprometer
o futuro? Não queremos
todos comprometer o
futuro para que ele vá
na direcção do que mais
desejamos?
Dito desta maneira, as
coisas até parecem simples.
Em alguns casos até
são (por exemplo, quando
temos de dizer que não
a um “mau caminho”),
mas, na maioria das vezes,
as coisas não são simples
(por exemplo, quando
temos de optar entre vários
caminhos, todos eles
“bons”). É relativamente a
este último ponto que as
coisas se complicam, mas
isso não é justificação para
ficar a marcar passo, sem
avançar. Antes, existindo
vários caminhos que
gostaríamos de percorrer,
há que procurar a ajuda
certa para um discernimento
autêntico que seja
capaz de nos ajudar a ver
a realidade do que somos
de maneira mais autêntica
e integral.
Um caminho a dois,
a três ou a mais...
A vocação não é apenas
um dom pessoal, é
também um dom para o
mundo em que vivemos
(mesmo para aqueles que
nem conhecemos!); neste
sentido, a vocação «inclui
a preocupação de unir
toda a família humana
na busca de um desenvolvimento
sustentável e
integral. O Criador não
nos abandona» (Laudato
Si’, n.º 13).
Sendo uma realidade
com impacto universal, a
vocação é sempre sinónimo
de descoberta e
caminho conjunto. Aliás,
se quando olhamos os
caminhos que se apresentam
diante de nós e só
vemos o nosso próprio
bem-estar, então, algo
está errado: não estamos a
ver os caminhos relativos
àquilo que somos e
que queremos ser, mas
os caminhos que dizem
respeito ao que temos e ao
que queremos ter! Todos
queremos progredir e
crescer aos mais diferentes
níveis – e nada há de
errado nisso – antes, importa
ter presente que «é
possível ampliar o olhar,
e a liberdade humana é
capaz de limitar a técnica,
orientá-la e colocá-la ao
serviço doutro tipo de
progresso, mais saudável,
mais humano, mais social,
mais integral» (Laudato
Si’, n.º 112). Não somos
escravos do que temos,
nem podemos olhar o futuro
colocando-nos numa
posição de escravos relativamente
ao que queremos
ter! Integrando na nossa
vida – no discernimento
e vivência vocacional –
pessoas que nos ajudam
a ver o que verdadeiramente
somos e, consequentemente,
o caminho
que mais nos realiza e
faz felizes, será possível,
u
além-mar | Abril 2021
vocação e vida
optar/escolher sem medo
de comprometer o futuro
de maneira errada.
Lembro-me de, certa
vez, ouvir um cirurgião
falar do modo como teve
de tratar a esposa quando
esta teve cancro na mama.
Dizia ele que quando
pegou no bisturi para
remover o tumor maligno,
sentiu no olhar dos
colegas como que a frase
«vai mutilar a própria
mulher!». Esses olhares
fizeram-no dizer em alta
voz: «Vou cortar o que
não interessa. O amor
exige cortes, mas são
sempre em vista a salvar,
nunca a mutilar.» Voltando
à questão vocacional, é
mais ou menos o mesmo
que se passa quando nos
colocamos num caminho
de discernimento. Alguém
nos ajudará a “tirar o que
não interessa”. No final,
não seremos pessoas mutiladas,
mas vivas!
Comprometer o futuro
Todos sairemos a ganhar
com um bom discernimento
vocacional! A vida
de alguém, quando feliz
e realizada com autenticidade,
é sempre dom
e mais-valia para toda a
Humanidade. Por isso
mesmo, a vocação nunca
mutila ninguém, antes
«pressupõe o respeito pela
pessoa humana enquanto
tal, com direitos fundamentais
e inalienáveis
orientados para o seu
desenvolvimento integral»
(Laudato Si’, n.º 157).
Como efeito bola de
neve, trilhar os caminhos
da vocação leva sempre a
um maior crescimento e
ao alcance de um número
© 123RF
maior de pessoas: pessoas
que caminham connosco
no discernimento, pessoas
com quem partilhamos o
dia-a-dia da nossa vocação,
pessoas que ajudamos
a discernir a sua vocação...
pessoas que encontraram
uma vida mais autêntica e
feliz, graças à nossa autenticidade
de vida.
Muitas vezes, em
termos profissionais,
deparamos com pessoas
muito capazes e competentes.
Quando isso acontece,
quase sem darmos
por isso, acabamos por
comentar: «Vê-se mesmo
que nasceu para isto. Não
está só nesta profissão
para ganhar dinheiro.» De
alguma maneira, o nosso
desempenho profissional
é revelador, não só das
nossas aptidões naturais,
mas também da vocação
maior que nos habita.
Não é por acaso que
também olhamos para
certas pessoas e dizemos:
«Vê-se que é uma pessoa
realizada!» Ora, estas
pessoas não tiveram um
caminho facilitado nem
receberam de bandeja
uma carta divina a dizer
quais as escolhas que
deveriam fazer em cada
momento das suas vidas.
Antes, tiveram de ir caminhando
e, pouco a pouco,
procurando dar a mão a
quem as ajudou a descobrirem-se
a si mesmas
P. e Filipe Resende,
na Maia
Tlm: 968 107 616
Correio electrónico:
jovemissio@gmail.com
e a seguir em frente. De
certeza que estas pessoas
também tiveram momentos
de dúvida e de desejo
de não abandonar certos
caminhos. No entanto,
quanto mais foram descobrindo
e vivendo a sua
vocação, mais certas das
suas escolhas foram ficando.
Contudo, importa ter
em conta que a vocação
– por ser da natureza do
amor – é sempre exigente.
Assim, não se pense que
«estando o discernimento
feito, está tudo garantido».
Ao contrário, a vocação
exige um sim constante
ao caminho escolhido e
uma fidelidade às escolhas
que nos mantêm na rota
da autenticidade do nosso
ser. Não é, por exemplo,
isto que acontece com
as mães? A exigência do
amor move-as e faz com
que, por mais cansadas
que estejam, não deixem
de fazer opções de vida
para o bem dos seus
filhos. Esta vocação pode
ser, em certa medida, ícone
de todas as vocações,
uma vez que todas elas
implicam amar, optar e
ser gerador de vida/
/serviço permanente em
favor de outros. Comprometer
o futuro não é
«afunilamento da vida»,
é a sua ampliação para
uma esfera de felicidade
autêntica em que todos
participam. am
Centro Vocacional Juvenil (CVJ)
www.jim.pt
P. e Jorge Brites,
em Lisboa
Tel: 213 955 286
Correio electrónico:
jovemissiosul@gmail.com
jovensinmissio
jimmissio
2021 Abril | além-mar
Ao doar 0,5% do seu IRS, sem custos acrescidos para si, estará a apoiar a missão e os projetos dos
Missionários Combonianos, em Portugal e em mais de 40 países da África, América, Ásia e Europa.
CAMPANHA PASSAR OS MARES 2021
Os Missionários Combonianos propõem-lhe, com a campanha Passar os Mares, uma modalidade
simples de cooperação e ajuda na obra de evangelização. Para isso, chegou à sua caixa de correio
um desdobrável com 13 fichas. Propomos que:
• Divulgue essas fichas entre os seus familiares, colegas, amigos e conhecidos;
• Preencha as fichas com o nome e direcção integrais de quem colaborou e registe
a oferta que deu;
• Nos envie as fichas até 25 de Junho;
• Mande junto as respectivas ofertas, através de cheque
– em nome de Missionários Combonianos –, vale postal ou
por multibanco (veja como no desdobrável).
Há 200 prémios para os melhores angariadores.
E serão atribuídos outros 200 prémios por sorteio.
Por cada oferta de 1 euro é atribuído um número, que entrará no
sorteio. Este realiza-se na sede da Além-Mar a 2 de Julho.
Editorial Além-Mar | Calç. Eng. Miguel Pais, 9 | 1249-120 LISBOA