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cibele henriques
Trabalho e formação profissional
A questão racial tem uma robusta tradição no
pensamento social brasileiro, com produções
teóricas que ora enfatizam o plano macro social
e sua feição estruturadora da organização da
sociedade, que ora destacam o desenho micro e a
interface singular e identitária.
Tendo origem na tese intitulada A Máscara de
Flandres: o racismo estrutural colonialista no
processo de trabalho e formação profissional negra,
do Programa de Pós-graduação em Serviço Social
da UFRJ, este livro traz para a cena das produções
o racismo como questão social.
Cibele Henriques, assistente social, mulher
negra, filha, esposa e mãe de duas meninas, fez
uma pesquisa potente e de fôlego, seja no levantamento
e estudo de produções teóricas com
presença periódica na Biblioteca Nacional, seja
na pesquisa de campo com toda a complexidade
que a abordagem sobre a questão racial requer.
A abordagem do racismo estrutural e dos
processos de expropriação de mulheres negras
diaspóricas reúne variáveis à crítica da modernidade,
do colonialismo e do sexismo, o que ajuda
na identificação de mecanismos de lactificação
por meio do silenciamento e da invisibilização de
sua ancestralidade na formação e dinâmicas de
trabalho.
Na apresentação da defesa da tese indaguei
sobre a disposição da sankofa ao lado da
minerva e Cibele me apresentou este pássaro que
traz a história em perspectiva, na temporalidade
dos processos na qual passado e presente servem
à construção do futuro. Este trabalho coloca em
evidência a agência negra coletiva, cuja luta é
antirracista, antisexista e anticapitalista.
lilia guimarães pougy
professora titular da ess/ufrj
cibele henriques
Trabalho e formação
profissional
Todos os direitos desta edição reservados
à MV Serviços e Editora Ltda.
conselho editorial
Ana Lole, Eduardo Granja Coutinho, José Paulo Netto,
Lia Rocha, Mauro Iasi, Márcia Leite e Virginia Fontes
revisão
Natalia Von Korsh
design
Patrícia Oliveira
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Elaborado por Camila Donis Hartmann — crb 7/6472
H449r
Henriques, Cibele
Racismo colonial : trabalho e formação profissional /
Cibele Henriques. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Mórula, 2021.
268 p. ; 21 cm.
Inclui bibliografia e índice
isbn 978-65-86464-34-4
1. Negros – Condições sociais – Brasil. 2. Discriminação
racial – Brasil. 3. Racismo. 4. Diáspora africana. I. Título.
21-69664 cdd: 305.896
cdu: 316.347
Rua Teotônio Regadas 26 sala 904
20021_360 _ Lapa _ Rio de Janeiro _ RJ
www.morula.com.br _ contato@morula.com.br
/morulaeditorial /morula_editorial
Ao meu Orí e aos Orixás que me sustentam para as
lutas cotidianas. A minha família afetiva, meu pai Celso
Pestana (in memorian) e minha mãe Neide da Silva, irmãs
Cinara e Simone, minhas filhas Maria Eduarda e Maria
Fernanda. Ao companheiro Francisco.
Aos professores Lilia Pougy e Vantuil Pereira pelos
ensinamentos e pela escrita tão generosa na construção
desse livro e a todas usuárias e usuários e alunas e alunos
de Serviço Social que me propiciaram reflexões sobre
a realidade concreta.
sumário
8
introdução
22 Diáspora negra, acumulação primitiva e expropriações
23 A modernidade e o contrato de dominação étnico-racial,
sexual e de gênero
40 Mulheres negras e expropriações: o desterro da diáspora negra
54 O racismo, o sexismo e o colonialismo nas relações sociais
brasileiras
55 Os determinantes econômicos, políticos e religiosos do racismo
no Brasil: a materialização da “maldição de Cam”
75 O racismo, o sexismo e o colonialismo na constituição do mercado de
trabalho no Brasil: o preterimento das/dos trabalhadoras/es de ganho
97 O racismo, o sexismo e as colonialidades na constituição das políticas
sociais no Brasil: a alienação das/dos indigentes negras/os libertas/os
114 Silenciamento e invisibilidade da diáspora negra
115 O racismo, o patriarcado e as colonialidades: o processo
de silenciamento e invisibilidade da diáspora afro-brasileira
142 Eu não sou mulher negra? A lactificação da diáspora trabalhadora
afro-brasileira no sistema educacional
153 As colonialidades no processo de trabalho e formação profissional
da diáspora negra trabalhadora afro-brasileira
236 considerações finais
250 referências
introdução
observando aquilo que é familiar e sentindo as (des)potencializações
de ser uma mulher diaspórica afro-brasileira1 na sociedade,
refletimos sobre a necessidade de se construir uma narrativa sobre os
lugares sociais reservados para negras/os diaspóricas/os trabalhadoras/
es no processo de formação de trabalho profissional, com vistas a (re)
potencializar itinerários de vida e trabalho.
A diáspora é aqui entendida como o sequestro e o cárcere sócio-
-racial dos povos africanos que foram violentamente desterrados e
escravizados em várias partes do mundo pelos colonizadores europeus
(Mortari, 2015). Nesta pesquisa focamos especificamente na diáspora
brasileira, também conhecida como afro-brasileira. Apesar de polêmica,
a escolha desta terminologia expressa uma crítica implícita — a construção
sincrética da afro-brasilidade que contém em si aculturações,
coloniadades e africanidade.
Utilizaremos a categoria “negra” para descrever o conjunto de pretos
e pardos, de acordo como é categorizado pelo sistema classificatório de
“raça e cor” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013).
Tal escolha se deu porque o sistema classificatório do IBGE é utilizado
na política de cotas raciais na educação superior e no funcionalismo
público federal para fins de classificação racial mista: autodeclaração
e heteroatribuição2 de pertença racial. Contudo, tal uso será realizado
com ressalvas, pois a classificação não define a negritude diaspórica
brasileira, que consideramos ser uma construção social de resistência
e sobrevivência no Brasil.
O nosso intiuito foi trazer à tona experiências coletivas de racismo
que foram silenciadas, ocultadas e não publicizadas e que são estruturais
1 Denominamos de mulheres diaspóricas trabalhadoras afro-brasileiras as mulheres que se autodeclaram
pardas e pretas, que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviver e sustentar
sua família e que possuem ancestralidade diaspórica. Assim sendo, tal caracterização consiste
numa percepção interseccional de raça, gênero, classe e de geração que objetiva compreender
o que é ser mulher negra trabalhadora herdeira do legado da escravidão no Brasil.
2 A heteroatribuição ou heteroidentificação é quando outra pessoa atribui/define o grupo racial
ao qual a/o sujeita/o pertence (IBGE, 2013).
9
e reproduzem práticas sociais que se constituem em cargas coloniais
pesadas, pois operam opressões raciais de classe, gênero, sexualidade,
idade, território e religiosidade, que denominamos de colonialidades.
A pesquisa bibliográfica e empírica realizada ao longo de quatro
anos (2016-2020) teve como objetivo geral identificar as estruturas
colonialistas e racistas presentes no cotidiano profissional de negras/
os diaspóricas/os trabalhadoras/es afro-brasileiras/os, pelas quais são
produzidas as condições de apagamento, subordinação e silenciamento
numa universidade pública federal.
Assim, peço licença ao leitor para fazer uma escrita coletiva do que é
ser negra/o diaspórica/o trabalhadora/or afro-brasileira/o na sociedade
brasileira. Portanto, não se trata de uma escrita singular com autoria e
responsabilidade, mas coletiva, afrocentrada e diaspórica. É uma escrita
que envolve o sujeito histórico e os saberes filosóficos pretos.
Velho aponta a necessidade do pesquisador se colocar “no lugar
do outro” (1996, p. 127), mas fazendo uma travessia da perspectiva
ocidental do olhar para uma perspectiva afrocentrada e diaspórica.
Com isso pretendemos nos colocar no lugar da mulher negra diaspórica
trabalhadora afro-brasileira que, como Grada Kilomba (2019) define, é
o “outro do outro”.
Em franca travessia diaspórica, não pretendo ter a “neutralidade
científica ocidental”, pelo contrário, preciso falar sobre a diáspora para
entender as particularidades estruturais que compõem o racismo, o
sexismo e o colonialismo no processo de trabalho e formação profissional.
Então, é a partir da (re)ancestralização e da (re)potencialização
em África e do entendimento da história do meu povo que pretendo
encontrar estratégias para a luta coletiva. Não adianta uma corrente se
quebrar, é preciso que todas se quebrem para que as mãos pretas e pardas
possam construir novos lugares sociais e existenciais (Ribeiro, 2016).
A realização desta pesquisa pretendeu refletir como se gestam as
relações sociais de raça, gênero e classe que são atravessadas pelas
colonialidades e, portanto, são estruturalmente hierárquicas e desiguais.
10
Sua validade se renova porque visa gerar potência em negras/os diaspóricas/os
para que coletivamente possam construir ferramentas que
as/os libertem do jugo do colonizador/opressor.
A escolha do título – Racismo colonial: trabalho e formação profissional
– não foi aleatória. Objetiva anunciar ao leitor a presença do racismo
e das colonialidades imprimindo embranquecimentos às/aos diaspóricas/os
e, portanto, cargas coloniais pesadas que fomentam cárceres
epistemológicos e institucionais. Enquanto precisarmos associar o
termo “negra/o” a conceitos, categorias e movimentos estético-políticos
da “branquidade”3, ainda estamos colonizados por uma epistemologia
embranquecida, a qual não serve para pensar nossa existência.
Enegrecer os “ismos” não nos liberta e não nos reconecta com nossa
filosofia útero-mítica ancestral africana.
A hipótese central do presente estudo é de que, no sistema educacional
e no mercado de trabalho, o racismo é estrutural e colonial, pois
mimetiza colonialidades que fazem com que negras/os diaspóricas/os
trabalhadoras/es afro-brasileiras/os sejam tratadas/os como mentes
e corpos de escravizados, fazendo com que a diáspora afro-brasileira
rememore as cargas coloniais pesadas do racismo, do sexismo e do
colonialismo sentidas pela diáspora negra africana.
Com vistas a desvelar as expressões do racismo colonial utilizaremos
um conjunto de instrumentos e procedimentos que visam fornecer as bases
lógicas da investigação científica, bem como propiciar a construção de
uma linha de raciocínio que nos forneça subsídios teórico-metodológicos
3 O termo “branquidade” expressa a relação de poder e dominação dos brancos sobre os negros.
Para fins elucidativos, o termo “branquitude” está associado ao termo “negritude”, que surge
como um movimento de reparação aos valores culturais e individuais do negro, além de um
forte propulsionador da descolonização da África (Senghor, 1945; Césaire, 1978; Munanga,
1988). Portanto, não seria lógico utilizarmos o termo “branquitude”, pois despotencializa o
movimento revolucionário da “negritude” que buscou fissurar o poder branco. Assim, optamos
por utilizar o termo “branquidade” para expressar o poder branco, que apenas aceita a “negridade”
(cultura e valores negros embranquecidos) como única forma de expressão de luta dos
negros, o que acaba por criar barreiras para a constituição da “negritude” que é revolucionária.
11
para a interpretação qualitativa do cotidiano profissional da diáspora
negra trabalhadora na particularidade brasileira (Gil, 1999; Lakatos e
Marconi, 1993).
Para tanto, realizamos um breve levantamento empírico, respaldado
pelo Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE)
02026918.7.0000.5582. O público-alvo escolhido é negro, constituído por
pretas/os e pardas/os autodeclaradas/os, composto por cotistas e não
cotistas na educação superior e no funcionalismo público federal que
exercem atividades laborativas numa universidade pública brasileira.
Estrategicamente optamos por um universo de 15 entrevistadas/os,
para que pudéssemos tratar qualitativamente com mais afinco os dados
coletados e interpretar os discursos, as situações raciais e os determinantes
do racismo estrutural colonialista.
No que concerne às entrevistas, utilizamos um roteiro de entrevista
aberto e flexível, que objetivou captar as situações de racismo no cotidiano
profissional das/os negras/os diaspóricas/os trabalhadoras/es
afro-brasileiras/os, bem como os itinerários de resistência no processo
de formação e trabalho profissional.
As/os participantes consentiram previamente de forma livre e esclarecida
a sua participação na presente pesquisa, por meio do Registro de
Consentimento Livre e Esclarecido. Foram informados dos objetivos,
riscos e benefícios e das condições da realização da pesquisa de modo
claro, objetivo e conciso.
O itinerário de pesquisa previu a coleta de dados funcionais no setor
de departamento pessoal de uma instituição pública de ensino superior.
Apontamos como dificuldades: a procrastinação institucional no
fornecimento dos dados, a falta de publicidade dos dados para pesquisa
e mapeamento e a falta de um acervo público.
Convidamos um total de 25 negras/os trabalhadoras/es diaspóricas/
os afro-brasileiras/os o que inclui servidores públicos, temporários, estudantes
em treinamento profissional, cotistas e não cotistas. Desse total,
15 pessoas aceitaram o convite e foram entrevistadas.
12
quadro I
tema: perfil das/os negras/os entrevistadas/os
subtema: descrição do perfil das/os negras/os diaspóricas/os
trabalhadoras/es afro-brasileiras/os com vínculo numa universidade
pública brasileira
qt.
sigla
id.
gênero
ingresso
área de trabalho/
conhecimento
escolaridade
nível
funcional
(ppctae)
1A
Mulher
Cisgênero
Administrativa/
Tecnológica
Nível Superior
completo
D
4
3C
6F
Mulher
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Quadro
Permanente
a partir da
CF/1988
Assistência
Estudantil/
Ciências Sociais
Aplicadas
Administrativa/
Ciências da Saúde
Nível Superior
completo
E
Nível Superior D
9L
Mulher
Cisgênero
Administrativa/
Ciências Humanas
Nível Superior D
2B*
Mulher
Cisgênero
Assistência
Hospitalar/ Ciências
Sociais Aplicadas
Doutoranda
E
5
15Q
5E
10J
Mulher
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Quadro
Permanente
após CF/1988
(concurso
público sem
reserva de
vagas)
Docência Superior/
Centro de Filosofia e
Ciências Humanas
Assistência
Estudantil/
Ciências Sociais
Aplicadas
Assistência
Hospitalar/ Ciências
da Saúde
Doutoranda
E
Nível Superior E
Nível
Médio
D
12M
Mulher
Cisgênero
Assistência
Hospitalar/ Ciências
da Saúde
Nível
Superior
D
1 4D Mulher
Cisgênero
Temporário
Assistência
Hospitalar/ Ciências
Sociais Aplicadas
Nível
Superior
E
13
qt.
sigla
id.
gênero
ingresso
na ufrj
área de trabalho/
conhecimento
escolaridade
nível
funcional
(ppctae)
2
11L
14P
Homem
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Treinamento
Profissional
(cota racial)
Graduando/ Ciências
Humanas
Graduando/ Ciências
Humanas
Nível Superior
cursando
Nível Superior
cursando
D
D
3
7G
8H
13N
Homem
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Mulher
Cisgênero
Quadro
permanente
(concurso
público com
reserva de
vagas/cota
racial)
Assistência Predial/
Ciências da Saúde
Assistência
Hospitalar/ Ciências
da Saúde
Assistência
Hospitalar/ Ciências
da Saúde
Nível Superior
cursando
Nível
Superior
Nível
Superior
D
E
E
fonte: Elaboração própria, 2020
*Funcionária e cotista em curso de Pós-Graduação.
Como descrito no quadro acima, a amostra foi composta por 11
participantes não cotistas e quatro cotistas. A maior parte das/os entrevistadas/os
possui nível superior completo (11), contudo, nem todos
estão alocados na estrutura funcional de acordo com sua escolaridade
— cerca de 50% desse total exerce atividades de nível médio, não são
vistos como “trabalhadores intelectuais”, pelo contrário, são vistos
como “auxiliares”. Por conta disso não são identificados pelo nome nos
créditos dos projetos de pesquisa e programas assistenciais desenvolvidos
na instituição pública pesquisada.
No decorrer do levantamento tivemos dificuldades: três entrevistas
foram recusadas por cotistas que ingressaram no funcionalismo público
e expuseram que não queriam falar sobre cotas raciais. E ainda tivemos
três entrevistas com docentes negras não cotistas que não foram confirmadas,
portanto não foram realizadas.
14
As entrevistas foram gravadas com autorização dos participantes e,
posteriormente, transcritas para a análise dos dados qualitativamente.
Alguns entrevistados se sentiram desconfortáveis em falar das situações
de racismo no ambiente de trabalho, mesmo numa sala fechada.
Cerca de 40% das entrevistas foi realizada fora do ambiente de trabalho.
Além disso, algumas mulheres entrevistadas choraram ao relatar as situações
raciais vividas. A pesquisa empírica foi concluída no decorrer do
primeiro trimestre de 2020.
Visando uma aproximação maior com o objeto estudado – as expressões
de racismo colonial no processo de formação e trabalho da diáspora
negra afro-brasileira –, realizamos uma ampla revisão bibliográfica
que nos forneceu subsídios para a análise do conteúdo das entrevistas
realizadas no campo empírico.
No primeiro capítulo, intitulado Diáspora negra, acumulação primitiva
e expropriações, abordamos o processo de hierarquização das relações
sociais entre homens e mulheres de diversas raças e etnias, que não foi
exclusivo do sistema capitalista. Houve experiências precedentes no
período feudal (Federeci, 2017), mas, sem dúvida, tal processo de organização
do trabalho coletivo ganhou maior capilaridade no modo de
produção capitalista, no qual passou a ser concebido a partir de uma
nova determinação social — a expropriação mercantil — basilar no
processo de hierarquização das desigualdades raciais de gênero e de
classe que consubstanciam a chamada “acumulação primitiva”.
Marx (2005) aponta que a “expropriação” — apropriação da terra,
do capital e da renda — arregimentou o processo de assalariamento
e a formação de duas classes: a classe de proprietários (provida de
riquezas) e a classe de trabalhadores (desprovida de propriedade e
riqueza). No entanto, o estudioso alemão não analisou tal processo a
partir das categorias de raça e gênero, por isso se faz importante a releitura
ampla desse processo que fixou as mulheres na divisão social do
trabalho como meras responsáveis pelo processo de produção e reprodução
social dos trabalhadores.
15
Partindo da crítica a essa conceituação, denominamos a chamada
“acumulação primitiva” como o amplo processo de despojo capitalista
que englobou a expropriação da terra; a usurpação dos meios de
produção; a apartação dos trabalhadores do produto final do trabalho
coletivo; a apropriação do corpo das mulheres e de seus saberes milenares;
e o genocídio das bruxas, curandeiras e mulheres africanas, que
em diáspora continuaram a sofrer “expropriações permanentes” cuja
capilaridade está nas relações sociais de raça, gênero e classe que se
alicerçaram sob o trabalho escravo.
Enfim, objetivamos compreender como se forjou o contrato de dominação
étnico-racial, sexual e de gênero que fomentou as bases da modernidade,
a qual constituiu para a diáspora negra o seu encarceramento
no conceito político da raça, justificativa usada para a escravidão e as
“expropriações permanentes” dos corpos negros diaspóricos no mundo
e na sociedade diaspórica brasileira.
A partir deste pressuposto fundante, no segundo capítulo, O racismo,
o sexismo e o colonialismo nas relações sociais brasileiras, pretendemos
entender as bases sócio-históricas, ideo-políticas e mítico-religiosas
do processo de construção da diáspora afro-brasileira, bem como seus
processos viscerais de resistência que possibilitaram a sobrevivência
coletiva do povo africano e de seus descendentes, a partir da construção
de códigos culturais e religiosos de luta que ainda sustentam a diáspora
negra trabalhadora afro-brasileira no Brasil.
Neste capítulo visamos compreender como o racismo — relação
econômica, social e política — se constituiu como estruturante das relações
sociais de raça, gênero e classe. É sabido que o racismo foi experimentado
em outros modos de organização social, como o feudalismo
e o escravismo, mas se intensificou de modo mais violento e estrutural
no capitalismo, pois condenou milhões de africanos, indígenas e árabes
à escravidão física e cultural, enfim, a morte em vida.
No Brasil, o racismo é estrutural e estruturante das relações sociais
porque está associado ao contrato de dominação étnico-racial e de
16
gênero que foi transplantado através do colonialismo europeu e edificado
pelo sequestro de africanas/os e pela escravidão da diáspora, com
vistas a promover a acumulação de capitais.
Tal processo de escravização se estruturou por meio de práticas
sociais racistas, sexistas e colonialistas que asseguraram a manutenção
da acumulação de capitais em nível global. A pilhagem e a extração de
riquezas do solo foram sustentadas pelo sangue e suor negro, ou seja,
por meio do trabalho compulsório forçado da diáspora negra afro-
-brasileira, principalmente das mulheres negras africanas que foram
exploradas física e sexualmente, sendo o útero-motor do processo de
reprodução do trabalho escravo.
O processo de aniquilação subjetiva e física da diáspora negra foi
contrarrestado por quilombos e irmandades que se constituíram em
estratégias de circulação/territorialização negra nas cidades brasileiras,
ao mesmo tempo que se constituíram em transgressão ao modelo liberal
conservador das elites lusitanas e nacionais. O projeto de embranquecimento
foi materializado por migração incentivada, miscigenação e
progressivo extermínio geracional da diáspora, que resistiu com a instituição
de “trabalhos de ganho” de base comunitária, construídos a partir
da (re)ancestralização da filosofia africana no Brasil.
Ainda neste capítulo, discorremos sobre o processo de constituição
do mercado de trabalho e das políticas sociais a partir da compreensão
da estrutura racista, sexista e colonialista do Estado Brasileiro que
destinou para negras/os diaspóricas/os, na condição de forras/os ou
libertas/os, um mercado de trabalho racializado e, por conseguinte, a
edificação de um aparato educacional racializado, no qual sua entrada
foi refreada e sua cidadania foi preterida em função da construção de
políticas sócio-raciais embranquecidas, na qual as/os pretas/os e pardas/
os foram lidas como não sujeitas/os, como incivilizadas/os, para os
quais coube a indigência e a repressão militar e policial desumanizante.
Assim, a não participação das diversas frações raciais da classe
trabalhadora na política brasileira — a qual predominantemente foi
17
composta de famílias brancas oriundas da oligarquia rural brasileira
que ocupavam cargos nos poderes legislativo, executivo e judiciário
— foi fulcral para a constituição de um modelo peculiar de cidadania,
uma cidadania racializada e regulada pelo mercado, a qual apartou os
trabalhadores informais negros da mísera rede de proteção social da
Era Vargas (1930-1945).
Santos, ao estudar as relações de trabalho no Brasil a partir da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que foi sancionada pelo Governo
Vargas por meio do decreto 5.452/43, denominou essa concepção restrita
de civilidade de “Cidadania Regulada” (1979 apud Carvalho, 2008), pois
apenas destinou proteção social para os trabalhadores que possuíam
contrato de trabalho regulamentado pelo poder público e, por conseguinte,
que tinham escolaridade maior e eram sindicalizados. Enfim, a
“branquidade” brasileira que historicamente obteve acesso ao ensino
regular nas escolas municipais, estaduais e federais (Ware, 2004).
A partir das lutas sociais, proletárias e insurgências negras no Brasil,
que culminaram na Revolução de 1930 e na reestruturação do poder
oligárquico, o Estado se travestiu de senhor benevolente e, em associação
com a Igreja e o empresariado, passou a gestar formas sofisticadas
de controle social dos desterrados – negras/os diaspóricas/os
pobres — ao mesmo tempo que instilou seguranças sociais mínimas
para as/os trabalhadoras/es nacionais brancas/os imigrantes, entre as
quais o letramento obrigatório e continuado e o acesso aos melhores
postos de trabalho.
Associou-se a esse cenário a constituição de leis infraconstitucionais
que institucionalizaram práticas sociais e assistenciais pelas quais os
agentes sociais passaram a classificar e rotular a diáspora negra brasileira
em “capazes e não capazes”, “aptos e não aptos”, “merecedores e
não merecedores”, “perigosas/os e não perigosas/os”, criando nichos
de inferioridade e periculosidade para a diáspora negra afro-brasileira.
No terceiro capítulo, Silenciamento e invisibilidade da diáspora negra,
buscamos verificar como se constituíram os processos coletivos de
18
silenciamento e invisibilidade da diáspora negra no Brasil. Tendo como
pressuposto que o colonialismo, o patriarcado e o racismo no Brasil
continuam a promover epistemicídios cotidianos da diáspora negra
trabalhadora afro-brasileira por meio da “necro-colonial”4 política do
Estado Brasileiro que ainda trata negras/os diaspóricas/os como “mentes
e corpos de escravizadas/os”.
Destacamos a denúncia de Lélia Gonzalez (1984) do “racismo linguístico”
existente que calou a voz do povo negro, matou suas possibilidades
reais e concretas de existir em diáspora, matou sua subjetividade, sua
linguagem, seu “pretuguês”, e aniquilou sua expressão corporal. Por
isso buscamos pesquisar quais processos de “lactificação” se constituíram
como transversais à socialização e ao letramento educacional da
diáspora negra afro-brasileira.
Procuramos compreender o processo sócio-histórico desse silenciamento
linguístico coletivo que fez com que o povo preto e pardo não
conseguisse constituir uma autonomia linguística, alimentar, territorial,
religiosa e educacional frente à “branquidade”. E, por conseguinte,
entender os processos racistas e colonialistas que são estruturais na
reprodução social e formação profissional negra – expressões vivas do
racismo colonial.
Portanto, buscamos refletir as dificuldades existentes para a construção
de uma identidade coletiva e linguística de resistência, em especial
para as mulheres negras diaspóricas que sofrem duplamente com
o racismo e o sexismo, ademais do classismo. Por fim, que fique claro
que não queremos apontar erros e/ou acertos, mas suscitar reflexões
que possam ajudar na construção de decolonialidades. Enfim, entender
como se forja a alienação de “negras/os letradas/os” em relação às/aos
“negras/os plebeus” (Moura, 1994) para pensar a construção de uma
4 Nomeamos a experiência brasileira da “necropolítica” (MBEMBE, 2018) como a política
“necro-colonial” do Estado Brasileiro, pois gesta “colonialidades de morte” para negras/os
diaspóricas/os afro-brasileiras/os.
19
agência negra de lutas contra a necrocolonial política estatal brasileira,
bem como promover deslocamentos epistemológicos e institucionais
que possibilitem (re)ancestralizar a diáspora.
Cabe esclarecer que a presente pesquisa não objetiva questionar
a construção institucional nem as decisões institucionais “ao norte”,
inclusive a seleção étnico-racial embranquecida realizada para ingresso
de negras/os nas instituições educacionais. Pelo contrário, objetivamos
refletir os usos e os sentidos da “raça”, com vistas a pensar o que é ser
“negra/o letrada/o diaspórica/o afro-brasileira/o” dentro da estrutura
embranquecida e de matriz epistemológica ocidental e promover deslocamentos
ao “Sul Global negro”.
Seguindo, pretendemos compreender a associação dos sistemas de
educação, direito e justiça no processo de reestruturação do sistema
de cotas numa sociedade racista e autoritária como a brasileira, que
pune, encarcera e extermina negras/os diaspóricas/os afro-brasileiras/
os pobres diariamente em nome da justiça.
Queremos compreender o porquê de negras/os letradas/os diaspóricas/os
trabalhadoras/es afro-brasileiras/os apoiarem acriticamente
aqueles que nos matam subjetivamente e fisicamente por meio de leis
racializadas e racistas que não ampliam o acesso ao “fundo público”,
que compreende a riqueza social produzida pelos trabalhadores e é
negro, haja vista que a maioria da população brasileira (56%) se autodeclara
negra, como aponta o informativo Desigualdades sociais por cor
e raça do IBGE (2018).
Nossa crítica se sustenta na aposta da construção de “negritudes
diaspóricas pluriversais” que sejam potência de construção para uma
práxis diaspórica de ruptura com a filosofia eurocêntrica, a qual perpassa
pela apreensão sistemática da filosofia africana nas práticas sociais e
institucionais e, inclusive, nos currículos educacionais para a construção
de ressignificação da experiência dessa negritude estético-política que
tem promovido leituras estéticas e políticas importantes, mas fenotipicamente
idealizadas e esvaziadas do conteúdo africanista.
20
Tal aposta deriva da vontade de enfrentar o racismo estrutural e
colonial, que rememora e planta visceralmente dores coloniais em
corpos negros para que se tornem palatáveis para a exploração mercantil
(Kilomba, 2019).
De tal modo, intencionamos com a análise do levantamento empírico
abordar as expressões do racismo colonial por meio do “vivido”,
que tem um viés economicista, mas também um viés coercitivo-educativo,
mediatizado pela escola do colonizador — a universidade pública.
Apresentamos situações racistas vivenciadas pela diáspora negra trabalhadora
afro-brasileira no cotidiano profissional universitário, as quais
circunscrevem corpos negros e mentes negras em “lugares escravizados”
para a construção de uma “excelência universitária” que remete
os créditos apenas para os representantes da “branquidade”.
Nossas irmãs e irmãos negras/os diaspóricas/os varrem, limpam,
abrem unidades acadêmicas e portões, abastecem materiais, promovem
cuidados assistenciais aos usuários, mas nem sequer são colocados
seus nomes nas laudas dos projetos de pesquisa e assistenciais e quiçá
recebem os emolumentos das patentes registradas.
Esperamos que essa pesquisa seja um rito de passagem que nos
possibilite dar um grito: “Existimos, não somos invisíveis!”. Bem como
colaborar com a construção de “diálogos mulheristas nos campos profissional
e acadêmico, pautados na afrocentricidade” (Assante, 2014, p.
94), que é a conscientização sobre a agência dos povos africanos de seu
lugar de produção de conhecimento no mundo, bem como reivindicar
a construção de um sistema de educação que esteja a serviço do povo
preto. Enfim, que seja potência geradora de lutas de libertação do jugo
colonial e racista do Estado Brasileiro.
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1ª edição junho 2021
impressão meta
papel miolo pólen soft 80g/m 2
papel capa cartão supremo 300g/m 2
tipografia spinoza e jonze
cibele henriques, mulher negra de àsé,
mãe, assistente social e professora substituta
da Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem doutorado
em Serviço Social pela UFRJ e mestrado
pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj).
A envergadura de abordagens e perspectivas teóricas como a afrocentricidade e a
decolonidade criaram as condições para que as reflexões acadêmicas avançassem
para searas que colocavam temas como gênero, raça e classe em patamares, antes
concorrentes, em níveis similares. Cada sociedade, a sua maneira, processa as três
questões de forma bastante peculiar. Assim, em experiências como a brasileira, não
podemos desconsiderar o quesito raça como um componente determinante e
estruturante em relação à classe e de como ele afeta em cheio as relações de gênero.
É desta forma que o trabalho de Cibele Henriques se apresenta. Ao mesmo tempo
em que utiliza as teorias acima mencionadas, mergulha na experiência do mundo
do trabalho para fazer deslocar a perspectiva e a relação sujeito-objeto, rompendo
com que essa fronteira, tão ilusória, desapareça.
A partir do esforço reflexivo da autora, o silenciamento é rompido, fazendo-se notar
históricas e estruturais questões como o racismo e o sexismo em nossa sociedade.
Isso potencializa não somente as práticas, como também cria as condições para
uma nova perspectiva de autonomia e emancipação.
vantuil pereira
ISBN 978658646434-4
9 78 6 5 8 6 4 6 4 3 4 4