Publicação Mensal
Vol. XXV - Nº 286 Janeiro de 2022
Mansidão e intrepidez sob o
maternal sorriso de Maria
O encanto
do dilúculo
Serra do Ibitiraquire, Paraná
Ney Teixeira de Freitas Guimarães Filho (CC3.0)
A
ordem posta por Deus é tal que há no primeiro lampejo da aurora uma be-
leza própria, tão pequena em relação à do meio-dia e, entretanto, não se
confunde com esta. Cada etapa do caminhar do Sol tem um encanto pecu-
liar, mas o passo inicial, à maneira de um primeiro sorriso, possui uma pulcritude
que parece conter todas as outras
Nós estamos nesse passo, no primeiro dilúculo, onde apenas um pouco de luz
contrarrevolucionária se faz sentir, mas notamos que essa luminosidade vai se espalhando
por todo o firmamento como um corisco. Dir-se-ia que esse Sol relampagueia
em vez de nascer, iluminando este mundo transformado em charco, de maneira
a mostrar como tudo quanto os homens pensam ser belo é hediondo, e as verdadeiras
belezas, consideradas mortas, começam a reviver e a sorrir com os ador-
nos da juventude.
(Extraído de conferência de 31/7/1982)
Sumário
Publicação Mensal
Vol. XXV - Nº 286 Janeiro de 2022
Vol. XXV - Nº 286 Janeiro de 2022
Mansidão e intrepidez sob o
maternal sorriso de Maria
Na capa,
Dr. Plinio em 1987.
Foto: Arquivo Revista
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
ISSN - 2595-1599
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ao Assinante
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Segunda página
2 O encanto do dilúculo
Editorial
4 Caminho austero
resplandecente de glória
Piedade pliniana
5 Luzes de consolação e confiança
Dona Lucilia
6 O tônus da personalidade
de Dona Lucilia
Denúncia profética
9 Carola: caricatura do
verdadeiro católico
De Maria nunquam satis
14 Mãe do gênero humano
Calendário dos Santos
18 Santos de Janeiro
Hagiografia
20 Uma prefiguração dos apóstolos
dos últimos tempos
Luzes da Civilização Cristã
26 A Bretanha medieval numa
história em quadrinhos
Última página
36 Vida, doçura e
esperança nossa!
3
Editorial
Caminho austero
resplandecente de glória
Apiedade dos verdadeiros filhos da Igreja não se contenta com saber que Nossa Senhora, em virtude
dos mais sólidos e indiscutíveis argumentos teológicos, é nossa Mãe. Ela se compraz em admirar,
na ordem concreta dos fatos, o poder sem limites e o amor incomensurável com os quais essa
Mãe dirige a vida de cada um de nós, implorando junto ao trono de Deus as melhores graças para seus filhos,
guiando-lhes os passos nos transes tão difíceis da vida espiritual e apartando de seu caminho, no que
diz respeito à vida terrena, todos os sofrimentos que não sejam indispensáveis à santificação.
Nenhum católico pode negar que a Santíssima Virgem é a Medianeira de todas as graças, e que, portanto,
sem o apoio de suas orações ninguém se pode salvar.
A fermentação de um espírito por demais voltado para as coisas mundanas faz alguns católicos imaginarem
que devem ocultar em seu apostolado as exigências austeras da Moral Católica, a qual não raramente
exige dos próprios neófitos, à vista de certas circunstâncias da vida, sacrifícios absolutamente heroicos.
Dizem tais espíritos que a declaração do dever implica em afugentar as almas. Melhor seria falar-lhes
em direitos do que em deveres, em permissões do que em obrigações, em tolerâncias em vez de lutas. Assim
mais facilmente aceitariam a Doutrina Católica.
Sem analisar tudo quanto de errado há em tal concepção, acentuo somente que em lugar de deformar o
Catolicismo subtraindo aos olhos de todos a austeridade de sua Moral, dever-se-ia proclamá-lo completo
como ele é, pregando, juntamente com a austeridade, as verdades suaves e consoladoras que nos tornam
não só suportável, mas empolgante o caminho a seguir.
Em lugar de perpétuos recuos, de indefinições intencionais, de transigências que confinam decididamente
com o mais censurável laxismo, seria muito preferível que se atraíssem as almas com a proclamação
do amor de Deus aos homens manifestado, sobretudo, nos mistérios inefavelmente consoladores da Vida,
Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, na definição do amor do Coração de Jesus e
das graças infinitas que Ele nos dispensa, e na devoção a Nossa Senhora.
São essas verdades que enchem de luz o caminho austero, as quais, em lugar de nos afastar da senda do
bem, nos dão forças de as trilhar resolutamente e que nos conservam igualmente distantes de uma permissividade
e de um rigorismo heréticos.
O apostolado de conquista não pode ter como processo o recuo sistemático ante o espírito do mundo, a
omissão de nossos deveres que não se poderia chamar de simplesmente ardilosa, e a camuflagem do Catolicismo.
Manifestemos com santa ufania as cruzes, os espinhos, as lutas que se encontram nas vias do verdadeiro
católico. Tal atitude não afugentará os neófitos, se lhes soubermos mostrar esse caminho resplendendo
de glória pelo esplendor do Sol das almas que é o Coração de Jesus, e suavizado a cada passo pelo
sorriso maternal de Maria. *
* Cf. O Legionário, 18/2/1940.
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
4
Piedade pliniana
Luzes de consolação
e confiança
Flávio Lourenço
Mãe de Misericórdia e Rainha de Sabedoria,
tornai bem claro à minha alma
frágil o quanto a angústia e a perturbação
me são nocivas.
Fazei-me entender que tendes vosso manto
continuamente posto sobre mim, como
vosso filho e escravo, e vossa
predileção me acompanha, mesmo
nos momentos mais tristes, ó
Refúgio dos pecadores!
Quem assim é assistido por
Vós não tem motivo nenhum para
se angustiar. Antes, pelo contrário,
deve fazer de todas as
horas de seu dia um hino
daquela confiança especial
que vos dá tanta glória,
ó Porta do Céu, isto é, a
confiança dos miseráveis
pecadores.
Peço-vos que afasteis
quanto antes de mim os perigos
e angústias com que o
demônio quer arrastar-me, e
inundeis minha alma com luzes
de consolação e confiança
das quais é sacrário o vosso
Coração Imaculado.
(Composta na
década de 1970)
Nossa Senhora da Aurora
Colegiata de Santa María de la
Aurora, Manresa, Espanha
5
Dona Lucilia
Junto a uma afetividade toda brasileira, Dona
Lucilia possuía o charme francês. Sentindo-se
envolto por esse afeto vivo, Dr. Plinio reconhecia
a conaturalidade do ambiente de sua infância
com aquele descrito no livro de Bécassine.
Fotos: Arquivo Revista
Aformação na juventude de
Dona Lucilia tinha sido feita
em função da França como
sendo a terra da luz, onde as coisas
são como devem ser e de onde
se emanava o padrão de pensamento,
elegância, distinção e de maintien
para toda a Terra.
Por essa razão, ela tinha essa nação
muito viva através de livros, de jornais,
de revistas e da visita feita a esse país.
Minha mãe tinha uma ideia tão exata
daquilo tudo que, para ela, as histórias
da Bécassine eram um encanto de
pequenas descrições de um mundo conhecido
por ela, no qual tinha estado e
tinha sido a luz um pouco longínqua,
mas contínua, de toda a formação intelectual
e psicológica dela.
Uma senhora afrancesada
Podemos ter um pouco a ideia disso
vendo aquela fotografia tirada em
6
Paris, na qual ela aparece
de pé. É um tipo físico
brasileiro, mas o tonus 1 é
francês. Não só porque
foi fotografada na França,
mas se a fotografassem
na Cochinchina, ela
seria exatamente assim!
Se prestamos atenção
num quadro de Da. Gabriela,
minha avó, notamos
que ela não era
uma marquesa, mas tem
qualquer coisa que faz
lembrar a Madame de
Grand-Air! Dona Lucilia
sabia muito bem que
a mãe dela não era marquesa,
mas olhava para a
Madame de Grand-Air
como uma espécie de variante
parisiense de Da.
Gabriela.
Todo mundo no tempo
dela era assim!
Um afeto
delicadíssimo
Como mamãe tinha esse afrancesamento
do modo de ser, junto a uma
afetividade toda brasileira, o afeto
dela era delicadíssimo, educadíssimo,
nobre e de salão até na maior intimidade!
E eu me sentia envolto por esse
afeto vivo, no qual eu reconhecia a
conaturalidade com aquele ambiente
do livro da Bécassine.
Vamos dizer, por exemplo, a Madame
de Grand-Air chegando ao batizado
da Bécassine. Ela tinha para
com o Labornez uma acolhida que
eu sentia multiplicada por mil na
forma de afeto de mamãe para comigo
menino!
Não posso me esquecer, ela, quando
habitualmente falava comigo dizia
“filhão”, ainda que eu fosse muito
menor do que ela. Não sei por quê! E
eu a chamava “mãezinha”.
Mas mesmo o “filhão” – que é um
modo mais íntimo de chamar – era
Quadro de Da. Gabriela, mandado
pintar por Dona Lucilia
tão cerimonioso e no tom de voz havia
inflexões tão nobres, e, ao mesmo
tempo, tão afetuosas, e entravam
no coração de modo tão direto,
que eu pensava: “Isto aqui, do ponto
de vista afetivo, é uma quintessência
do que está narrado nessa história,
porque a Grand-Air não queria
bem àquela gente dela como mamãe
me quer!”
Madame de
Grand-Air recebe
Bécassine em
sua residência
Vamos dizer, por
exemplo, voltando de
Águas da Prata de trem.
Era natural que uma
grande parte da viagem
eu voltasse sentado ao
lado dela. Ainda que
conversando raramente,
porque os assuntos
se esgotam, mas apenas
para nos sentirmos juntos!
Se, em algum momento,
Dona Lucilia
quisesse que eu pegasse
para ela uma maletinha
em cima, nunca diria:
“Plinio, me pegue
a maleta ali em cima!”
Ela diria: “Meu filho –
ou, então, filhão –, você
quer pegar para sua mãe
a maleta ali em cima?”
Eu não estou conseguindo
me exprimir, mas
era mais ou menos inefável,
não se narra por inteiro.
No entanto, era
afrancesado. Mamãe
era para mim uma versão da vida do
mundo da Madame de Grand-Air,
7
J. Pinchon
Dona Lucilia
Dr. João Paulo, pai de Plinio
como, aliás, o era também, a seu modo,
minha avó.
Rasgos da Madame Grand-
-Air em Da. Gabriela
Minha avó, por exemplo, era quem
presidia a mesa. É natural, era a dona
da casa. Naquelas famílias antigas
com muita gente, era frequente ter de
dez a quinze pessoas à mesa para almoçar
e jantar. Ela presidia e mantinha
a conversinha da vida de família,
quando não discutiam temas como
religião e ateísmo.
Em certo momento – era invariável!
– minha avó se levantava da refeição
e ia para uma cadeira de balanço.
Um tempo depois ia para os
aposentos dela tomar sesta ou uma
coisa assim, a vida de uma senhora.
Eu ainda me lembro do jeito de
vovó levantando da cadeira. Tínhamos
a impressão da montagem de um
monumento. Quando ela estava de
pé, o monumento estava constituído.
Só então ela se punha a andar. Ela tinha
pés minúsculos, era gorda como
a Madame de Grand-Air e andava
exatamente naquele passo vagaroso
da personagem, e sumia em seus aposentos
deixando todo mundo conversando.
Contudo, a presença dela ficava
conferindo nobreza a tudo.
Eu olhava para a figura de Madame
de Grand-Air e me lembrava de
vovó.
Completando o quadro com
uma nota portuguesa
Mamãe tratava minha avó com
muito respeito. Por ser mãe dela, mas
também porque via o que havia de
pouco comum em Da. Gabriela. Além
disso, tratava-a com muita cortesia,
com muito afeto, e tudo isso formava
um mundo “grandairoso”, que se misturava
harmonicamente com a influência
portuguesa.
Meu pai, como já disse outras vezes,
era pernambucano de uma cidadezinha
próxima umas três ou quatro
horas de Recife. Naquele tempo
o polo de Recife não era Paris, mas
Lisboa. Então meu pai sabia canções
e poesias portuguesas, era muito lido
em todos os autores dessa nação,
a formação jurídica dele tinha uma
nota lusa muito forte.
Ele representava a nota brasileira
e portuguesa que se juntava à nota
francesa delas, formando um todo.
Por exemplo, ele era um homem
de gargalhadas sonoras, tinha uma
voz forte e de um timbre agradável.
Quando ele ria, a risada dele cobria
a casa. Era uma gargalhada saudável!
Mas quando tratava com mamãe
e com vovó, muito respeitoso, muito
atencioso. E elas achavam graça nas
“portuguesisses” nordestinas dele.
E esse foi o peculiar ambiente
dentro do qual eu me formei, vendo
em muitos aspectos a relação com a
Bécassine.
v
(Extraído de conferência de
15/5/1980)
1) Do latim: tonalidade, tom.
Dr. Plinio em maio de 1980
8
Denúncia profética
Carola:
caricatura
do verdadeiro
Frascaroli Giuseppe (CC3.0)
católico
Flávio Lourenço
O carola só procura praticar a mansidão, a
docilidade, a conformidade, a prudência.
Entretanto, além dessas qualidades, o
verdadeiro católico deve ter em alto grau a
coragem, o denodo, a intrepidez, o espírito de
iniciativa e de realização. O Catolicismo é, por
excelência, a escola das almas grandes e fortes,
capazes das audácias santas, das energias
inquebrantáveis, dos empreendimentos
ousados que a Fé sabe inspirar.
Há uma série de ideias que
implicam na negação dos
princípios mais essenciais
de nossa Religião e que, entretanto,
circulam por nossos ambientes sem
que as pessoas em cujo espírito elas
encontram guarida notem que, na
realidade, estão aceitando doutrinas
condenadas pela Igreja.
Pior do que todos os
panfletos heréticos
Trata-se não propriamente de doutrinas,
mas de preconceitos, impressões,
tendências psicológicas que implicam
na negação da Doutrina Católica.
E só Deus saberá dizer no dia do
Juízo Final quanto esses erros terão
9
Denúncia profética
concorrido para afrouxar
as almas no caminho
do bem, macular
nelas a pureza virginal
da ortodoxia ou dos
costumes, e finalmente
atirá-las pela estrada
larga da heresia até
a perdição eterna.
Faz parte desse conjunto
de preconceitos
todo um mundo de erros,
de antipatias, de
más vontades que se
oculta atrás da palavra
“carola”. Qual o católico
autêntico que já não
a terá ouvido como suprema
injúria que lhe é
atirada por algum adversário
de nossa Fé?
Qual o principiante da
Ação Católica ou das
associações auxiliares
que não terá ouvido a
IABI (CC3.0)
advertência: “Cuidado,
porque assim você
se tornará um carola”?
Quantos rapazes ter-
-se-ão detido no caminho da perfeição
exclusivamente porque não desejam
ser tidos como carolas? Que
dom tem esse vocábulo para inspirar,
em uns, tanto desprezo e, em outros,
tanto terror? Seria talvez uma interessante
página de sociologia analisar
a função exercida entre nós por essa
palavra, como bombarda de efeito seguro
nas mãos de nossos adversários.
Para que algum dia algum estudioso
escreva essa página, aqui fica o despretensioso
subsídio de certas observações
diretas.
O assunto é complexo. O que vem
a ser exatamente um carola? Quais os
defeitos inerentes à “carolice”? Católico
e carola são termos sinônimos?
Qual a categoria de pessoas que gosta
de criticar a “carolice”? Com que direito?
Eis aí uma série de problemas
que apresentam, de um lado, um aspecto
indiscutivelmente jocoso, mas
Godofredo de Bouillon entra em Jerusalém
de outro lado uma inegável importância
concreta. Essa ideia errada sobre
a carolice tem feito ao Brasil mal
talvez maior do que todos os panfletos
heréticos. E, assim, se bem que
do ponto de vista doutrinário o valor
do assunto seja nulo, não deixa ele de
oferecer relevante interesse a quantos
se dedicam aos problemas concretos
do apostolado.
O tipo do carola
Comecemos pelos conceitos mais
elementares. No espírito público, não
há uma noção abstrata do que seja
a “carolice”. Há apenas certas figuras
típicas de “carolas”, que se consideram
como realizadoras autênticas
daquilo a que a piedade leva um
homem e, portanto, como uma prova
exuberante de que homem nenhum
deve praticar o catolicismo, sob pena
de se desfigurar e passar a ser por sua
vez um “carola”. Descrevamos
sumariamente
esses tipos como os
considera a imaginação
popular, e através disto
chegaremos a encontrar,
como resíduo comum
de todas essas figuras
de imaginação,
um conceito mais ou
menos preciso que devemos
examinar.
Injuriosamente, caluniosamente,
contrariando
toda a evidência dos
fatos, o público entende
que encarna bem o tipo
do “carola”, por exemplo,
um homem magro
e esquálido, de longas
pernas um tanto sinuosas,
que mais são arrastadas
pelo corpo do
que servem para o carregar.
Seu peito é curvo
e estreito, e, ao longo
dele, pendem dois braços
longilíneos. “Pendem”
é bem a palavra,
pois que esses braços parecem servir
apenas para estar pendurados ao corpo
como a um cabide, e não para lutar,
trabalhar ou agir. O pescoço é longo e
projetado para a frente. No alto de tudo
isto, uma cabeça vulgar, de cor desbotada,
com olhos muito parados numa
atitude que traduz ao mesmo tempo
incompreensão e espanto. A voz
é vagarosa e de pequeno volume, como
são vagarosos e de pequeno volume
os pensamentos. Os conceitos, os
mais banais: apenas as ideias de que
ninguém discorda, as reflexões que todo
o mundo já fez, as impressões que
todo o mundo já sentiu.
Nas horas de perigo, é a personificação
do medo. Na hora do trabalho
é a encarnação da honestidade
pachorrenta e ininteligente, absolutamente
improdutiva e inteiramente
estéril. Em suma, um infra-homem,
que não se faz mal por falta de co-
10
agem, mas cuja piedade tolheu para
ele todo o horizonte para uma
formação espiritual viril, capaz de
grandes feitos e grandes heroísmos.
Por isto basta vê-lo rezar. Tudo nele
transuda lirismo. Sorri de modo perfeitamente
incompreensivo. Faz gestos
descomedidamente profundos.
Fecha os olhos para se concentrar…
e ao cabo de tudo isto sai idêntico ao
que era antes.
Há, evidentemente, outros perfis
de “carolas”. Há, por exemplo, o
“carola” gordalhão, volumoso, de difícil
locomoção, pachorrento, inerte,
tolo, que se deixa ludibriar por qualquer
pessoa, que se intimida diante
de qualquer perigo, que ama acima
de tudo a inércia, e que exatamente
por isto não pratica o mal, pois ele
pode trazer tantas complicações…;
pelo contrário, a consciência tranquila
proporciona sonos tão leves e
tão doces. O sossego antes de tudo!
Nada de aventuras! O ideal da vida é
mofar em um canto, em paz com os
homens e na doce ilusão de que também
se está em paz com Deus!
E assim os exemplos se poderiam
multiplicar indefinidamente…
A santidade é um grande
heroísmo
É curioso observar
que essa série de conceitos
errados, longe de dominar
apenas os arraiais
anticatólicos, também
se esgueirou em certos
ambientes católicos, ou
supostos tais. Veja-se,
por exemplo, certos manuais
de devoção que
mostram como se ajuda
a Missa, e olhe-se qual o
físico com que ali se desenha
o coroinha: muitas
vezes, é um mocinho
de idade indefinida, que
tem da adolescência a
mocidade sem ter o viço
nem a graça, raquítico, tímido, vestido
com uma “fatiota domingueira”
que há um século ninguém usa, penteado
como jamais ninguém se penteou,
com um sorrisozinho alvar nos lábios,
dando atestado exato de que o “carola”
é aquilo mesmo. O que prova isso
senão que certas almas existentes perderam
completamente a noção da realidade
e, à força de ouvirem dizer que
o “carola” é isso ou é aquilo, acabaram
por achar que é mesmo?
Certos trabalhos que uma ou outra
vez se leem sobre o moço católico
não concorrem para desfazer esta
ideia. As suas grandes virtudes devem
ser a mansidão, a docilidade, a
conformidade, a prudência. Nenhuma
palavra lembra que além destas
preciosas qualidades o verdadeiro
moço católico deve ter em alto grau
a coragem, o denodo, a intrepidez,
o espírito de iniciativa e de realização.
Se um desses coroinhas - não
dos que na realidade temos, mas dos
que as vinhetas de certos manuais
pintam - devesse pegar em armas para
uma nova Cruzada, se tivesse sido
dessa fibra os Godofredo de Bouillon,
quando teríamos tido na História
da Igreja aquelas magníficas expedições
militares destinadas a fen-
Rei Luís VII da França recebe a cruz das mãos de
São Bernardo, aceitando assim a Cruzada
der de meio a meio os muçulmanos,
para libertar o Santo Sepulcro do
Salvador? Quem não vê que essa espécie
de gente deixaria os escudos à
beira das estradas e se poria a chorar?
São esses os verdadeiros filhos
da Igreja? Ou são somente uma triste
caricatura do que deveriam ser?
Todas as ideias que se ocultam
atrás do conceito de “carola” têm
como substractum comum a convicção
de que o católico deve ser dotado
de uma vontade fraca, exímio na
prática de todas as virtudes passivas,
e totalmente incapaz da prática das
grandes virtudes ativas.
Pondo de lado os erros que se poderiam
emboscar nessa distinção entre
as virtudes ativas e passivas, é preciso
lembrar que o Catolicismo é, por
excelência, a escola das almas grandes
e fortes, capazes das audácias
santas, das energias inquebrantáveis,
dos empreendimentos ousados que
a Fé sabe inspirar. Não há heroísmo
verdadeiro e completo fora da Igreja.
A santidade, que é o produto da verdadeira
formação católica, outra coisa
não é senão um grande heroísmo
que empolga toda a alma e a torna
capaz de gestos tão altos e tão grandes
que, sem o auxílio de Deus, o homem
mais enérgico do
mundo não seria suficientemente
forte para
os realizar.
Assim, pois, devemos
trabalhar intensamente
para que esse preconceito
se dissipe de modo
completo. O “carola”
– e a realidade manda
que se confesse que
há alguns tipos correspondendo
à triste descrição
que foi feita – não
é o católico autêntico,
mas a caricatura do verdadeiro
católico. A humildade
não é pieguice,
o amor do próximo não
é lirismo, a boa-fé não é
Sébastien Mamerot, (CC3.0)
11
Denúncia profética
Library of Congress (CC3.0)
a estupidez. Pelo contrário, essas virtudes
em lugar de amesquinhar o homem
o elevam e o engrandecem.
Arrojo, combatividade, altivez
Um pequeno fato pode ilustrar tudo
isto. Certo sultão muçulmano, preso na
Europa durante a Idade Média, visitou
as catedrais famosas que então se construíam
e teve esta exclamação: “Não
posso compreender que as almas tão
humildes dos monges que constroem
esses edifícios possam, entretanto, levantar
monumentos tão altivos”. Nessa
humildade como nessa altivez está o segredo
do perfeito equilíbrio.
A grandeza de alma, o arrojo, o espírito
de combatividade que elimina a
humildade é falso. Mas também é falsa
a humildade que diminua o arrojo,
o espírito de combatividade e a altivez.
Esquecidos de que o Catolicismo
é a única escola do perfeito e
completo heroísmo, daquele heroísmo
que sobrenaturaliza e santifica
a personalidade inteira do indivíduo
e não apenas algumas de suas qualidades,
que implica em uma imolação
total de si mesmo tendo em vista
uma finalidade superior, muitos
católicos chegaram a ter de sua própria
Religião uma visão tão diminuída,
que lembram invencivelmente a
queixa do Apóstolo, quando dizia:
“Estão diminuídas as verdades entre
os filhos dos homens.”
Verdades que não estão repudiadas,
negadas, nem calcadas aos pés.
Mas verdades que pesam duramente
sobre os ombros fracos dos que as professam;
verdades que em lugar de serem
tidas por seus venturosos adeptos
como um meio de triunfo espiritual
sobre o pecado, a concupiscência e o
erro, em lugar de serem consideradas
como o caminho indispensável de uma
esplêndida ascensão espiritual, pesam
duramente como se fossem onerosas
correntes de cativeiro moral, dolorosos
instrumentos de suplício, cujo portador
tudo faz por atenuar seu peso e
amesquinhar seu volume, diminuindo
assim esse ônus que, entretanto, longe
de ser na realidade um peso cruel, um
estigma de cativeiro, é um salva-vidas
sem cujo auxílio o homem não sobrenada
na vida espiritual.
Censuráveis conceitos
de bondade
Catedral de Colônia, Alemanha
Ocupa lugar de destaque nessa
triste galeria de verdades diminuídas,
de virtudes amesquinhadas, de
sofismas interiores mais ou menos
conscientes e mais ou menos covardes,
a noção que habitualmente se
tem de “bondade”.
Segundo a opinião corrente, o que
é uma pessoa boa? Esse conceito é
eminentemente variável. O que se
exige de uma boa senhora não se exige
de um bom ancião; o que se exige
de uma boa criança não se exige de
um bom moço. A moral, para a grande
maioria de nossos contemporâneos,
varia quase completamente segundo
a situação de cada qual e, não
raras vezes, o que em uma pessoa, em
uma senhora por exemplo, seria tido
como imperativo preceito de moral,
em um moço parecerá ridículo e desprezível
defeito.
A bondade, pois, segundo esses
censuráveis conceitos, varia conforme
o sexo e a idade. Vejamos rapidamente
alguns perfis de pessoas habitualmente
tidas por “muito e muito
boas”.
Antes de tudo, o conceito de “bom
rapaz”. Não há, talvez, expressão de
que tão frequentemente se abuse. Verificando-se
a que série incontável de
indivíduos ela é dada, fazendo-se o levantamento
dos defeitos que um rapaz
pode ter, sem por isto deixar de ser
“bom” segundo a opinião corrente, verifica-se
desde logo que, desde que ele
não tenha morto, ferido ou espancado
gravemente alguém, desde que não tenha
roubado pelo processo do arrombamento,
desde que não tome tóxicos,
é qualificado de bom. Pode esse rapaz
esbanjar criminosamente sua mocidade
arrastando-a pelos mais miseráveis
antros da cidade, são “rapaziadas”.
Pode ele ter os vícios os mais lamentáveis,
como por exemplo do jogo:
se ele ainda não perdeu a fortuna na
roleta, ou a embriaguez ainda não lhe
arruinou a saúde, tudo isto não passará
de aprazíveis “rapaziadas”. Pode
ele, ainda, praticar as mais censuráveis
leviandades no terreno sentimental,
como seja de alimentar esperanças
e provocar decepções, movido apenas
12
Flávio Lourenço
Missa na Capela de São Marcos, em Veneza
Museu de Belas Artes, Angers, França
pela vaidade e pelo capricho; tudo isto
será muito engraçado, terá seu “inegável
pitoresco”, será típico de um jovem
que não queira passar por inteiramente
desinteressante.
Evidentemente, segundo essas
abomináveis regras de moral, há restrições
a estabelecer. Um moço que
contraia imprudentemente um noivado
com o intuito de jamais cumprir
sua promessa de casamento fará
uma coisa muito engraçada. Mas
se a vítima da aventura, em vez de
ser uma pessoa estranha aos adeptos
dessa singular moral, for pelo contrário
uma filha, uma irmã, uma parente,
tudo isto passará a ser qualificado
infalivelmente de genuína crapulice.
Um moço que, a título de “rapaziada”,
arme um “rolo” fará algo de
muito divertido. Mas se, durante o
“rolo”, ferir alguém gravemente, o
que em qualquer “rolo” pode suceder,
e com isto andar às voltas com
a polícia, deixará de ser tido como
um “bom rapaz” para ser um “indivíduo
que até tem ficha na polícia”.
Em última análise, tudo isto reverte
em uma adoração do êxito. Tudo
aquilo que não teve mau êxito será
desculpável por pior que seja. Tudo
aquilo que tem mau êxito será censurável.
Tudo o que não fere os interesses
pessoais é jocoso e interessante.
Tudo que os fira será censurável e
digno de condenação.
Sacripantas que o mundo
canoniza como “bons”
Essa moral tem, evidentemente,
também sob outros pontos de vista,
suas contradições. Um comerciante,
ferido às vezes por circunstâncias
imprevistas e invencíveis, pede falência:
foi um homem que não pôde
cumprir a palavra dada aos credores
e, por isto, em torno dele se estabelece
um ambiente de reprovação.
Um homem vai ao altar, jura
manter uma fidelidade plena a sua
esposa, sabe perfeitamente que não
obteria o consentimento desta para
o casamento se ela soubesse que tal
juramento não é sincero e, tudo isto
ponderado, casa-se. Depois, rompe
o compromisso assumido, e isto
por um ato libérrimo de sua vontade.
Mas contra esse homem só existe
a reprovação dos parentes de sua esposa,
os quais acham muito natural
que outros façam o mesmo com pessoas
que lhes são perfeitamente estranhas.
Na moral comercial, presenciam-
-se aberrações do mesmo jaez. Um
indivíduo pode impunemente ocultar
os defeitos da mercadoria por ele
fornecida, elevar desmesuradamente
ou abaixar injustamente os preços,
armar trusts e lançar ao desemprego
centenas ou milhares de empregados:
tudo isto é lícito. Mas ai dele se
roubasse um cigarro ou um charuto
em casa de algum amigo!
E assim por diante, vê-se como a
moral mundana é inteiramente vã,
representando apenas a sobrevivência
de alguns vagos princípios de moral
católica.
Por mais que o tipo humano do
“carola” seja risível, como não o
achar admirável em comparação dos
sacripantas que tão frequentemente
o mundo canoniza como “bons”?v
(Extraído de O Legionário n. 462,
20/7/1941 e n. 463, 27/7/1941)
13
De Maria nunquam satis
Mãe do
Flávio Lourenço
gênero
humano
A Virgem com o Menino - Museu Nacional
do Virreinato, Tepotzotlán, México
A Redenção operada por Jesus Cristo nos veio através de
Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição
sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e profunda, que
se pode afirmar ter Ela cooperado para nos fazer nascer para a
vida da graça. Nossa Senhora é autenticamente nossa Mãe.
Dada a espessa ignorância
religiosa que reina em nossos
dias, não falta quem
suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora
o título de Mãe do gênero humano
simplesmente para descrever
de certo modo os sentimentos afetuosos
e protetores que Ela experimenta
em relação aos homens. Como
estes sentimentos são próprios
às mães, por analogia Nossa Senhora
seria também a nossa Mãe. E nós
seríamos em relação a Ela pobres
mendigos que, na sua generosidade,
Ela protege como se fossem filhos.
Gravidade do pecado original
A realidade, entretanto, é muito
outra. Não somos filhos de Nossa
Senhora simplesmente por uma
adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe
apenas no terreno fictício ou na ordem
sentimental, mas com toda a
objetividade na ordem verídica da
vida sobrenatural.
Antes do pecado original, nossos
primeiros pais, vivendo no Paraíso,
foram criados por Deus para a glória
celeste, que eles poderiam atingir
transpondo os umbrais desta vida
em um trânsito que não teria a tristeza
tétrica da morte, mas o esplendor
de uma glorificação.
O pecado original, entretanto,
rompendo a amizade em que o gênero
humano vivia com Deus, fechou
aos homens a porta do Céu e
obstruiu o livre curso da graça de
Deus para os homens. Em outros
termos, com a punição do pecado
original, os homens perderam qualquer
direito ao Céu e à vida sobrenatural
da graça.
Se bem que não fosse extinto, isto
é, perdesse a vida terrena, o gê-
14
nero humano perdeu, pois, o direito
à vida sobrenatural. E ele só poderia
readquirir tal vida se apresentasse
à justiça divina uma expiação
proporcionada à enormidade de seu
pecado.
Não vem a propósito, aqui, discutir
a natureza deste pecado. É certo
que todos os teólogos, sem exceção,
afirmam nada ter o pecado de Adão
de comum com o pecado da impureza,
ao contrário de uma versão muito
generalizada no povo. Mas a narrativa
bíblica mostra claramente os
requintes de rebeldia que agravaram
sobremaneira o delito de nosso primeiro
pai.
Aliás, um dos elementos para se
aquilatar a gravidade de uma ofensa
consiste em medir a dignidade da
pessoa ofendida. Uma mesma impertinência
quando dita a um irmão
é muito menos grave do que quando
dita a um pai. Um gracejo comum
entre colegas poderia constituir
uma grave irreverência se fosse
feito a um Chefe de Estado, e assim
por diante. Ora, Deus é infinitamente
grande. Por aí não é difícil
avaliar a gravidade do pecado original.
Uma ofensa feita ao Infinito só
poderia ser convenientemente resgatada
por meio de uma expiação
infinitamente grande. E não está no
poder de homem, ser contingente
por natureza e envilecido pelo pecado,
oferecer ao Criador um tão
valioso desagravo. Os pontos que
nos ligavam a Deus pareciam, pois,
definitivamente cortados e irremediável
a decadência a que se atirara
loucamente o gênero humano com
o pecado.
gem, assumiu natureza humana sem
nada perder de sua divindade, e o
Homem-Deus, assim constituído,
Se pôde apresentar à justiça do Pai
como Cordeiro expiatório do gênero
humano. Efetivamente, como
Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo
podia oferecer uma expiação que
fosse realmente humana. Mas em
virtude da dualidade das naturezas
n’Ele existentes, essa expiação, se
bem que humana, tinha um valor infinito,
pois que consistia na efusão
generosa e superabundante do Sangue
infinitamente precioso do Homem-Deus.
Assim, no sacrifício do Calvário,
Nosso Senhor aplacou a justiça divina
e fez renascer para o Céu e a vida
sobrenatural da graça a humanidade,
que estava absolutamente morta
em tudo quanto se referisse ao sobrenatural.
Se Deus, uno e trino, é
nosso Criador, a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, encarnando-
-Se, se tornou nosso Pai por um título
muito especial, que é o da Redenção.
Jesus, morrendo, deu-nos a
Flávio Lourenço
Nossa Senhora
transmitiu ao Salvador
a natureza humana
Foi para remediar tão insolúvel
situação que a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, encarnando-
-se no seio puríssimo de Maria Vir-
Pecado Original - Museu de História, Barcelona
15
De Maria nunquam satis
Flávio Lourenço
vida sobrenatural. E quem dá a vida
é verdadeiramente pai, no sentido
mais amplo da palavra.
Se o gênero humano pôde beneficiar-se
da Redenção é porque a
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade
se fez Homem, pois que o pecado
dos homens deveria ser resgatado.
Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza
humana, fê-lo em Maria Virgem,
e assim Esta cooperou de modo
eminente na obra da Redenção,
transmitindo ao Salvador a natureza
humana que nos desígnios de Deus
era condição essencial da Redenção.
De mais a mais, Maria Santíssima
Coroação da Santíssima Virgem - Museu do Louvre, Paris
ofereceu de modo inteiro, e sumamente
generoso, o seu Filho como
vítima expiatória, e aceitou de sofrer
com Ele, e por causa d’Ele, o oceano
de dores que a Paixão fez brotar em
seu Coração Imaculado.
Assim, pois, a Redenção nos veio
por Maria Virgem, e sua participação
nessa obra de ressurreição sobrenatural
do gênero humano foi
tão essencial e tão profunda, que
se pode afirmar que Maria cooperou
para nos fazer nascer para a vida
da graça. Pelo que Ela é, autenticamente,
nossa Mãe. Autenticamente,
acentuo, pois que não se trata aí
de divagações sentimentais ou literárias,
mas de realidades objetivas
que, se bem que sobrenaturais, não
deixam de ser absolutamente verdadeiras
por isso mesmo são sobrenaturais.
Convidando os fiéis a adorar o
Santíssimo Sacramento, a Igreja exclama
na Sagrada Liturgia: Quantum
potes, tantum aude, isto é, tem o arrojo
de amar tanto quanto te permitir
o teu coração.
Verdade teológica
profundamente substanciosa
O mesmo se deve dizer a esta altura.
Diante da maravilhosa realidade
da maternidade de Maria em
relação aos homens, realidade que
constitui uma verdade séria, teológica,
profundamente substanciosa, o
homem deve romper decididamente
para que se dilate plenamente os
limites acanhados de seu coração,
sem susto, e singre sem cuidado pelo
oceano de amor que se descortina
ante seus olhos. Não são indispensáveis,
aí, os artifícios da retórica humana.
Uma consideração madura da
realidade será suficiente para encher
o homem de amor.
De acordo com toda a Doutrina
Católica, São Luís Grignion de
Montfort aponta para as grandezas
de Maria Santíssima. Demonstrando
que Ela é Mãe, o que há de mais
conveniente e de mais necessário até
do que o conhecimento da suprema
dignidade e da inexcedível misericórdia
que Ela possui?
São Tomás de Aquino diz que
Nossa Senhora recebeu de Deus
todas as qualidades com que seria
possível a Deus cumular uma criatura.
De sorte que Ela se encontra
no ápice da Criação, firmando seu
trono acima dos mais altos coros
angélicos e sendo inferior apenas ao
próprio Deus, que, sendo só Ele infinito,
está infinitamente acima de
todos os seres, inclusive de Nossa
Senhora.
16
Dr. Plinio em 3 de maio de 1939
Costuma-se dizer
que Nossa Senhora brilha
mais do que o Sol,
tem a suavidade da
Lua, a beleza da aurora,
a pureza dos lírios
e a majestade do firmamento
inteiro. Muita
gente supõe que tudo
isso não passa de hipérboles.
Entretanto,
essas comparações pecam
por sua irremediável
deficiência. O Sol,
a Lua, a aurora e todo
o firmamento são seres
inanimados e estão,
portanto, colocados
na última escala da
Criação. Não é admissível
que Deus os fizesse
tão formosos, dando
ao homem dons menores.
E, por isto mesmo,
a mais apagada das almas
das pessoas mortas
em paz com Deus
tem uma formosura
que excede incomparavelmente
a de todas as
criaturas materiais.
Que dizer-se, então,
de Nossa Senhora colocada
incalculavelmente
acima não só dos maiores
Santos, mais ainda dos Anjos
mais elevados em dignidade junto
ao trono de Deus? Um caipira que
fosse assistir à solenidade da coroação
do Rei da Inglaterra, voltando
aos seus pagos natais, possivelmente
não encontrasse outros termos para
explicar a magnificência daquilo
que viu, senão afirmando que foi
mais belo do que as festas em casa
do Nhô Tonico, o homem menos pobre
da zona. Se o Rei da Inglaterra
ouvisse isto, que outra coisa poderia
fazer senão sorrir? Pois nós, quando
procuramos descrever a formosura
de Nossa Senhora com os termos
escassos da linguagem humana, fazemos
o mesmo papel… e Ela também
sorri.
Único canal necessário
Arquivo Revista
Não espanta, pois, que seja verdade
de Fé que Deus se compraz tanto
em Nossa Senhora que um pedido
feito por meio d’Ela é sempre atendido,
ainda que não conte senão com
o apoio d’Ela. E que se todos os Santos
pedissem alguma coisa sem ser
por meio d’Ela nada conseguiriam.
Porque, como diz Dante, querer rezar
sem Ela é o mesmo que querer
voar sem asas…
Assim, pois, todas as graças nos
vêm de Nossa Senhora, e é Ela a Medianeira
universal de todos
os homens junto
a Nosso Senhor Jesus
Cristo.
Mas se todas as graças
nos vêm d’Ela, e se
nossa vida espiritual
não é senão uma longa
sucessão de graças
a que correspondemos,
ou renunciamos a ter
vida espiritual, ou devemos
compreender que
esta será tanto mais
suave, mais intensa e
mais perfeita, quanto
mais próximos estivermos
junto daquele único
canal de graças que
é Nossa Senhora. Deus
é a fonte da graça, Nossa
Senhora o único canal
necessário, e os
Santos meras ramificações,
aliás veneráveis e
dignas de grande amor,
do grande canal que é
Nossa Senhora.
Queremos ter a graça
inestimável do senso
católico? Queremos ter
a virtude inapreciável
da pureza? Queremos
ter o tesouro sem preço
que é o dom da fortaleza,
queremos ser ao mesmo tempo
mansos e enérgicos, humildes e
dignos, piedosos e ativos, meticulosos
em nossos deveres e inimigos do
escrúpulo, pobres de espírito se bem
que jungidos às riquezas do mundo,
em uma palavra, fiéis e devotos servidores
de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Dirijamo-nos ao trono que Deus
deu a Nossa Senhora, e, no recesso
amoroso da Igreja Católica, nossa
mãe, peçamos a Nossa Senhora,
também nossa Mãe, que nos faça semelhantes
a seu Divino Filho. v
(Extraído de O Legionário n. 378
de 10/12/1939)
17
Fotos: Flávio Lourenço
C
alendário
1. Solenidade da Santa Mãe de
Deus, Maria.
São Vicente Maria Strambi, bispo
(†1825). Pouco depois de nomeado
Bispo de Macerata e Tolentino, viveu
sete anos de exílio por negar prestar
juramento de fidelidade a Napoleão.
Teve a honra de ser o biógrafo de seu
fundador, São Paulo da Cruz.
2. Solenidade da Epifania do Senhor
(no Brasil, transferida do dia 6)
Santos Basílio Magno (†379) e
Gregório Nazianzeno (†c. 389), bispos
e Doutores da Igreja.
Beata Estefânia Quinzani, virgem
(†1530). Fundou em Soncino um convento
de terceiras dominicanas.
3. Santíssimo Nome de Jesus.
Santo Antero, Papa (†c. 236). Foi
martirizado na Via Ápia no tempo de
Júlio Maximino. Governou a Sé de Pedro
por apenas quarenta e três dias.
São Pedro Nolasco
dos Santos – ––––––
4. Santa Isabel Ana Seton, fundadora
(†1821). Nasceu em Nova York,
de pais protestantes. Aos vinte nove
anos partiu em viagem à Itália com o
marido e cinco filhos. Antes de retornar
à pátria, seu esposo faleceu e ela
foi acolhida por uma família de católicos.
Impressionada com a caridade
de seus anfitriões, convenceu-se ser
isso fruto da religião que praticavam.
Converteu-se ao Catolicismo, sendo
por isso despojada de todos os seus
bens por seus parentes.
5. São Simeão Estilita, confessor
(†459). Levou uma vida de vigílias,
jejuns e grande austeridade, chegando
a viver a maior parte de sua vida
no cimo de uma estreita coluna. Sua
pronta obediência à voz dos superiores
fazia desvanecer as más línguas
que duvidavam de sua virtude.
6. Santa Rafaela Maria, fundadora
(†1925). Em 1877 fundou em Córdova
as Escravas do Sagrado Coração
de Jesus, religiosas dedicadas a adorar
o Santíssimo Sacramento e a educar
crianças. Em 1893, sua irmã e cofundadora
da Congregação, atiçou os ânimos
das demais religiosas para depor a
Santa do cargo de Superiora Geral. A
partir de então, viveu vinte dois anos
no esquecimento, desprezada, dedicando
sua vida à oração e à humildade.
7. São Raimundo de Penyafort,
presbítero (†1275).
Beata Teresa Haze, religiosa (†1876).
De família abastada belga, sofreu diversas
vicissitudes devido ao ambiente espargido
pela Revolução Francesa.
8. São Pedro Tomás, patriarca,
mártir (†c. 1366). Foi enviado a Constantinopla
como legado papal. Durante
uma batalha em Alexandria, na
qual mantivera-se entre os combatentes
com a cruz alçada, recebeu diversos
golpes cujas feridas o levaram à
morte meses depois.
9. Batismo do Senhor.
Beata Maria Teresa de Jesus Le
Clerc, virgem (†1622). Fundou com
São Pedro Fourier a Congregação das
Cônegas Regulares de Nossa Senhora,
sob a Regra de Santo Agostinho,
em Nancy, França.
10. Beata Francisca de Sales Aviat,
virgem (†1914). Aos seis anos foi confiada
às Irmãs da Visitação de Troyes,
haurindo ali o amor às virtudes que
praticou por toda a vida
11. Santo Higino, papa (†142).
Oriundo de Atenas, foi o oitavo sucessor
de São Pedro. Restituiu e aperfeiçoou
os regulamentos de cada um
dos graus eclesiásticos.
São Vital, monge (†625).
12. São Modesto, mártir (†s. IV).
Santa Margarida Bourgeoys, missionária
(†1700). Nascida em Troys,
França, partiu em missão para o Canadá,
onde faleceu poucos meses antes
de completar oitenta anos de idade.
13. Santo Hilário de Poitiers, bispo
e Doutor da Igreja (†367).
São Gumesindo e Serdiu, mártires
(†850). Decapitados em Córdova por
mulçumanos.
14. Santa Macrina, a Antiga, viúva
(†340). Avó de São Basílio Magno.
15. São Mauro, religioso (†584).
Aos doze anos foi entregue aos cuidados
de São Bento de Núrsia. Cumpria
tão bem o ideal monástico que foi considerado
por seus conterrâneos como
o perfeito herdeiro espiritual de São
Bento.
16. II Domingo do Tempo Comum.
São Bernardo e companheiros, mártires
(†1220). Enviados por São Francisco
de Assis a Marrocos, foram ali
martirizados por ordem do Imperador
Miramolim.
18
––––––––––––––––– * Janeiro * ––––
Santa Rafaela Maria
17. Santo Antão, abade (†356). É
considerado o patriarca dos cenobitas.
Beata Rosalina de Villeneuve, virgem
(†c. 1329).
18. Beata Regina Protmann, virgem
(†1613). Movida pelo amor aos pobres,
fundou em Braniewo, Polônia, a Congregação
das Irmãs de Santa Catarina.
19. Beato Jaime Hilário Barbal Cosán,
mártir (†c. 1937). Durante muitos
anos dedicou-se ao ensino nas Escolas
Cristãs, onde se fez religioso. Acometido
por surdez, passou a exercer a função
de cozinheiro e hortelão. Foi martirizado
durante a guerra civil espanhola.
20. São Neófito, mártir (†s. IV). Foi
martirizado aos quinze anos de idade, durante
a perseguição de Diocleciano. Não
tendo os açoites nem o fogo lhe tirado a vida,
foi decapitado por ódio à Fé.
21. Santa Inês, virgem e mártir
(†s. III/IV). Sentenciada à morte aos
doze anos por negar-se a contrair matrimônio
com um pagão. Com fortale-
za soube manter intacto o amor a Jesus
Cristo.
22. São Vicente, diácono e mártir
(†304).
23. III Domingo do Tempo Comum.
Santo André Chong Hwa-gyong,
catequista e mártir (†1840).
24. São Francisco de Sales, bispo e
Doutor da Igreja (†1622).
Beato Timóteo Giaccardo, religioso
(†1948). Foi um dos primeiros membros
do instituto fundado pelo Pe. Tiago Alberione.
Morreu vítima de leucemia.
25. Conversão de São Paulo, Apóstolo.
Beato Manuel Domingo y Sol, presbítero
(†1909). Fundou em Tortosa,
Espanha, a Sociedade dos Sacerdotes
Operários do Coração de Jesus.
26. São Timóteo e São Tito, bispos.
Santa Paula, viúva (†404). Nobre
romana que foi viver com sua filha,
Santa Júlia Eustóquio, em um mosteiro
por ela fundado, próximo a Belém
da Judeia.
27. Santa Ângela Mérici, virgem
(†1540).
Santos Roberto, Alberico e Estêvão
Harding, abades cistercienses (†1110,
1119, 1134). Estêvão, nascido na Inglaterra,
ao viajar pela França fez-se
monge na abadia de Molesme. De lá
saiu, juntamente com Alberico e Roberto,
com o objetivo de fundar um
mosteiro mais austero. Nascia assim a
Ordem de Cister.
28. São Tomás de Aquino, presbítero
e Doutor da Igreja (†1274).
São Valério, bispo (†315). Bispo de
Zaragoza, foi condenado à deportação
por Daciano.
29. Santo Aquilino, mártir (†584).
Foi decapitado por arianos a quem
desejava converter.
30. IV Domingo do Tempo Comum.
Santa Jacinta Mariscotti, virgem
(†1640). Após passar quinze anos nos
prazeres mundanos, abraçou uma vida
austera na Ordem Terceira Franciscana
e promoveu irmandades para
assistência dos idosos e adoração da
Santíssima Eucaristia.
31. São João Bosco, presbítero
(†1888).
São Pedro Nolasco, confessor
(†1258). De nobre família francesa,
seguiu Simão de Montfort na Cruzada
contra os albingenses. A Rainha
dos Céus lhe apareceu para pedir a
fundação de uma congregação com o
título de Nossa Senhora das Mercês.
Pouco antes de partir para a Cruzada
com São Luís IX, foi acometido por
uma grave doença. Expirou na noite
de Natal de 1258.
São Pedro Tomás
19
Hagiografia
Uma prefiguração dos
apóstolos dos últimos tempos
Antoine Taveneaux (CC3.0)
São Paulo era um
homem violento e queria
exterminar os cristãos.
Deus o converteu e lhe
concedeu a graça de
realizar um apostolado
extraordinário, pela
qualidade ou quantidade
das pessoas que
abraçavam a Fé. Ele
abriu um sulco sobre
o qual a Igreja Católica
se desenvolveu, e
depois deu o primeiro
passo essencial para a
derrubada do paganismo
no Império Romano.
São Paulo
Basílica de
São Paulo
Extramuros,
Roma
Em 25 de janeiro comemora-se a
festa da conversão do Apóstolo
São Paulo. No trecho dos Atos
dos Apóstolos, lido na Liturgia desse
dia, há matéria para comentários.
Respirava ameaças de
morte contra os cristãos
Naqueles dias Saulo, respirando
ainda ameaças de morte contra os
20
discípulos do Senhor, apresentou-se
ao príncipe dos sacerdotes e lhe pediu
cartas para a sinagoga de Damasco, a
fim de que, se achasse homens e mulheres
empenhados naquele caminho,
os levasse presos para Jerusalém.
E indo ele andando, aconteceu
aproximar-se de Damasco. Subitamente
o cercou uma Luz vinda do céu
e, caído por terra, ouviu uma voz que
lhe dizia: “Saulo! Saulo! Por que me
persegues?”
Saulo disse: “Quem sois, Senhor?”
E Ele respondeu: “Eu sou Jesus a
Quem tu persegues. Duro te é recalcitrar
contra o aguilhão.” Então, tremendo
espavorido, disse ele: “Senhor,
que quereis que eu faça?” E o Senhor
lhe respondeu: “Levanta-te e entra na
cidade! E aí te dirão o que convém fazer.”
Ora, aqueles que o acompanharam
estavam espantados ouvindo a voz,
mas sem ver ninguém. Levantou-se
então Saulo do chão e, tendo os olhos
abertos, nada via.
Desta maneira, levado pela mão, o
introduziram em Damasco, onde esteve
três dias sem ver, sem comer nem
beber. Havia em Damasco um discípulo
chamado Ananias. E, numa visão,
o Senhor lhe disse: “Ananias!”; e
ele respondeu: “Eis-me aqui, Senhor!”
E o Senhor acrescentou: “Levanta-te e
vai à rua que se chama Direita e procura
em casa de Judas a um homem
chamado Saulo de Tarso! Porque ele
lá está orando.”
(Saulo viu também um homem
com nome Ananias que entrava e lhe
punha as mãos para que ele recobrasse
a vista.)
Respondeu Ananias: “Senhor, tenho
ouvido falar muito deste homem
e do mal que tem feito aos nossos santos
de Jerusalém. Aqui mesmo ele tem
poder dos príncipes dos sacerdotes para
prender todos aqueles que invocam
o vosso nome.” Mas o Senhor lhe disse:
“Vai porque este é um vaso de eleição
escolhido por Mim para levar o
meu nome diante dos gentios, dos reis
Conversão de São Paulo - Museu da Catedral, Valência
e dos filhos de Israel. Eu lhe mostrarei
quanto deverá ele padecer pelo meu
nome.”
Partiu então Ananias e entrou na
casa. E pondo as mãos sobre ele disse:
“Saulo, irmão, o Senhor Jesus que te
apareceu no caminho por onde vinhas
me enviou para que recobres a vista e
sejas cheio do Espírito Santo.” Imediatamente
caíram dos seus olhos como
que umas escamas e ele recuperou
a vista. E levantando-se foi batizado.
Tendo tomado alimento ficou confortado.
Esteve alguns dias com os discípulos
que se achavam em Damasco.
E logo começou a pregar nas sinagogas
a Jesus, dizendo que Ele era Fi-
lho de Deus. Pasmavam, porém, todos
os que o ouviam e diziam: “Pois
não é este aquele que perseguia em Jerusalém
os que invocavam este nome?
E não veio aqui para levá-los presos e
entregá-los aos príncipes dos sacerdotes?”
Saulo, porém, se fortalecia cada vez
mais e confundiu os judeus que habitavam
em Damasco, afirmando que
Jesus é o Cristo. (At 9, 1-22).
Homem célebre
pela violência
Essa narração é tão rica em pormenores
saborosos que se fica em
Flávio Lourenço
21
Hagiografia
Flávio Lourenço
des meio acomodadas, e ele, zeloso,
queria acabar com aquilo que reputava
uma heresia; então, pede cartas.
Portanto, é ele quem desencadeia a
ação um tanto indolente das autoridades
e põe-se a campo para exterminar,
nos seus vários núcleos, a
pseudo-heresia nascente.
Munido dessas cartas e cheio de
violência – está dito que Saulo respirava
ameaças de extermínio –, ele
vai caminhando para Damasco porque
queria acabar com essa nova seita
naquela cidade.
Na resposta de Ananias a Deus
Nosso Senhor, vê-se que Saulo era
célebre pela violência: “Este homem
tem uma fama de ser muito violento
contra nós.” Quer dizer, era tido como
um inimigo capital dos católicos.
Um aguilhão que atuava
sobre Saulo: a graça
São Paulo, cego, diante de Ananias - Igreja de São Paulo, Zaragoza
dúvida sobre o que comentar. Mas
um dos traços curiosos presente em
toda essa história é a violência. É
uma história toda ela violenta nas
suas linhas gerais e nos seus detalhes
principais.
Saulo é um homem violento. Ele
toma a iniciativa de pedir às autoridades
da sinagoga cartas de perseguição.
Vê-se que eram autorida-
Saulo caminhava pela estrada de
Damasco, e o texto usa até uma expressão
curiosa para indicar essa
marcha em que ele vai respirando
violência. Diz o seguinte: “E indo ele
andando, aconteceu aproximar-se de
Damasco”. Ou seja, é uma marcha
um pouco longa. Tem-se a impressão
de que com aquele galopar a raiva se
torna cada vez maior, até acontecer
que ele se aproximou de Damasco.
Sucede, então, para esse homem
violento, um acontecimento violento:
uma voz que lhe fala. Quer dizer,
é a ordem das coisas invisíveis que
se abre para ele e uma advertência:
“Saulo, por que me persegues?”
É uma pergunta que importa numa
censura violenta. Porque ele estava
resistindo a uma violência interior,
rejeitando graças: “Duro te é recalcitrar
contra o aguilhão” (At 9, 5).
Quer dizer, a graça era um aguilhão
que soprava sobre Saulo, e ele
rejeitava essa graça. Então, para levar
o aguilhão ao máximo há uma
violência ainda maior: ele cai do cavalo.
Para alguém que está montado a
cavalo, a maior violência possível é
cair do cavalo.
E ele sentiu a violência.
— Senhor, o que quereis que eu
faça?
A essa queda sucede uma violência
pior ainda: a cegueira. A não ser
morrer, o pior que poderia acontecer
era cair do cavalo e ficar cego.
22
Para um homem do temperamento
de São Paulo não há coisa pior, pois
a condição humana mais incompatível
com a da violência é a de cego.
E um outro o levava pela mão; era o
único remédio.
Passo essencial para a
derrubada do paganismo
no Império Romano
Podemos imaginar o que significou
para a comunidade católica de
Damasco aquele homem ser levado
para a casa de Ananias, os comentários
ardentíssimos a que essa cena
fantástica dava lugar... Com certeza
isto circulou rápido e foi muita gente
ver Saulo, deitado devido à cegueira,
falar com ele. Quer dizer, aquilo deu
efervescência.
Trato violento dele consigo mesmo:
ficou três dias sem comer nem
beber; jejum duro. Depois lhe caíram
as escamas dos olhos e ele começou
a ver.
A narração explica curiosamente
que ele se confortou muito. Ou seja,
não estava nem um pouco alquebrado,
mas assim que se lhe deu o necessário
ele se esticou, se alçou de novo
e ficou disposto para a luta. Torna-se
um líder que vai para as sinagogas e
lugares públicos pregar o nome de Jesus
contra o qual o sinédrio se levantara.
No diálogo Igreja versus sinagoga
houve uma espécie de mudança
estrepitosa. É o líder da violência que
muda com toda a sua violência para o
outro lado.
Então tudo isto é uma operação
violentíssima a qual precedeu ao
apostolado de São Paulo, que foi o
da violência não só por causa do seu
feitio que marcou tudo quanto fez,
mas porque ele realizou como só um
homem capaz de fazer violência a
si mesmo realiza. Ele enfrentou riscos
que somente o violento enfrenta.
Mas tudo isto não é nada perto da
ação violenta no mundo antigo que
representou o apostolado dele.
Aqui se repete a história: ele era
um líder de um lado que parte para o
outro. Quer dizer, uma espécie de posição
chave que se desloca. Esse homem
chave depois vai atuar na posição
central do mundo antigo, que é a
bacia do Mediterrâneo. E como a palavra
de Deus era para ele semelhante
a um gládio de dois gumes, que
atinge até a juntura da alma com o es-
pírito, Deus lhe tinha dado esta graça
de fazer violência às almas e ser capaz
de operar conversões extraordinárias,
pela qualidade ou quantidade
das pessoas que ele convertia, de maneira
tal que ele abriu um sulco sobre
o qual a Igreja Católica se desenvolveu.
Ele depois deu o primeiro passo
essencial para a derrubada do paganismo
no Império Romano.
São Paulo é batizado por Ananias - Igreja de São Paulo, Zaragoza
Flávio Lourenço
23
Hagiografia
O contrário da
“heresia branca”
A sua oração final tem algo de
santamente violento em relação a
Deus Nosso Senhor. Porque ele diz
uma coisa que a maior parte dos hagiógrafos
e teólogos “heresia branca”
1 qualificaria de falta de humildade.
Mas como é São Paulo, eles
não têm remédio senão ficar quietos.
Na hora de morrer, seria tão legítimo
que ele dissesse: “Senhor, tende
piedade de mim e segundo a multidão
de vossas misericórdias apagai
os meus pecados!” Não. Ele afirmou:
“Senhor, eu combati o bom
combate, dai-me agora o prêmio de
vossa glória!” (Cf. 2 Tm 4, 7-8).
É uma espécie de atestado brilhante
que ele dá à sua própria fidelidade,
e quase como quem diz: “Senhor,
o cheque está preenchido e eu
estou perto do guichê. Pagai-me! A
minha vida valeu o prêmio que vossa
justiça me prometeu.” Como um homem
de consciência tranquila, ele se
apresentou diante de Deus.
Isso tudo é o contrário de uma das
facetas que a “heresia branca” mostra.
Esta não gosta de conversões
violentas, nem de cogitar de conversões
de homens sábios ou que mudam
as coisas. A “heresia branca”
não considera o corpo de Igreja nem
a sociedade humana como um conjunto,
no qual há homens chaves,
mas aprecia umas conversõezinhas
individuais que são narradas assim:
“Fulano estava com a alma muito
agitada. E numa hora em que o rádio
estava reproduzindo uma música
melosa, com muita suavidade, ele se
converteu. Ficou numa paz de alma,
se recolheu, afastou-se do bulício de
todas as coisas humanas, e agora não
faz senão rezar.”
Eu até compreendo que uma conversão
pudesse dar-se assim. Porque
os caminhos de Deus são muitos.
Mas apresentar a conversão como
sendo só desse modo não é legítimo.
E essa espécie de trombada dada
por São Paulo no adversário: primeiro
na sinagoga e depois no Império
Romano. A “heresia branca”
não gosta dessas trombadas nem dos
homens que tenham uma palavra a
qual é como uma espada de dois gu-
Flávio Lourenço
São Paulo no Areópago - Catedral de Faro, Portugal
24
mes, que atinge a junção da alma
com o espírito. Aprecia apenas
as pessoas as quais dão uns
conselhos que deixam os outros
mais tranquilos, mais serenos...
Dom da santa violência
Havia um sacerdote em São
Paulo – muito idoso, tipo do homem
preclaro – do qual se dizia
que era o diretor espiritual dos
ateus da cidade. Tratava-se daqueles
antigos ateus com um restinho
de religião e que, quando
ficavam aborrecidos com qualquer
coisa, procuravam o padre e
diziam-lhe: “Eu lamento não ter
fé porque a religião é uma grande
coisa.” E depois contavam aos
outros: “Que palavra de unção o
sacerdote me disse! Eu saí tranquilizado
de lá.”
Que dizer, a palavra não é para
converter, mas apenas para
adoçar, um bálsamo que se esfrega
sobre a ferida sem curá-
-la. É mais ou menos como uma
pessoa que está com muita febre,
e lhe concedem um torrão
de açúcar para chupar; é uma
coisa doce que distrai um pouco
nas amarguras da febre.
Esse sacerdote atualmente é
mais que nonagenário. Segundo
uma informação muito segura
que eu tive há poucos dias, ele
está com o seu clergyman pronto,
porque quer ser um dos primeiros
padres de São Paulo a tirar a
batina e pôr esse novo traje.
O que devemos pedir a São Paulo?
É evidente que Nossa Senhora lhe
obteve esse dom da santa violência,
porque ele se defrontava com muitos
obstáculos para derrubar. Naquela
época de lutas era preciso derrubar
o paganismo. Nós devemos pedir à
Santíssima Virgem essa santa violência
para destruir a Revolução, que é
hoje muito mais poderosa do que foi
o paganismo no tempo do Império
Dr. Plinio em 1965
Romano. De maneira que se pode
compreender que os apóstolos dos
últimos tempos tenham uma violência
à São Paulo.
Aliás, sob alguns aspectos São
Paulo pode ser considerado uma
prefiguração dos apóstolos dos últimos
tempos. Quando lemos aquela
Oração Abrasada de São Luís Grignion
e comparamos o que ali está dito
com São Paulo, as analogias são
enormes, uma porção de coisas se
reportam umas às outras admiravelmente.
Arquivo Revista
De uma cidade
consagrada a São Paulo
partiu o movimento
contrarrevolucionário
Aqui estão alguns comentários
a respeito de São Paulo.
Ser-nos-ia lícito acrescentar
uma outra consideração.
É uma coisa curiosa que de
uma cidade consagrada a São
Paulo tenha partido o movimento
contrarrevolucionário
no Brasil, que está se irradiando
agora para outros países. Quer
dizer, tem-se a impressão de
que o Apóstolo São Paulo deseja
que os nascidos na sua cidade
tenham essa iniciativa. E por outro
lado aquilo que se chamou
outrora o espírito paulista tinha
qualquer coisa do vigor, da força,
da intrepidez, da iniciativa,
do senso organizativo próprios
àqueles que devem desenvolver
uma larga ação de um certo sentido
universal e imperialista. Os
bandeirantes tinham como que
uma prefiguração natural de algumas
qualidades as quais um
contrarrevolucionário deve possuir
no plano sobrenatural.
Devemos hoje nos lembrar
particularmente de rezar a São
Paulo. É muito natural e justo
para que ele nos dê esse seu espírito,
ou seja, o dos apóstolos
dos últimos tempos. v
(Extraído de conferência de
25/1/1965)
1) Expressão metafórica criada por Dr.
Plinio para designar a mentalidade
sentimental que se manifesta na piedade,
na cultura, na arte, etc. As pessoas
por ela afetadas se tornam moles,
medíocres, pouco propensas à
fortaleza, assim como a tudo que signifique
esplendor.
25
Luzes da Civilização Cristã
A Bretanha
medieval numa história
em quadrinhos
Descrevendo os costumes ainda medievais
da Bretanha, a história de Bécassine marcou
profundamente a formação das crianças de
antes da II Guerra Mundial, pervadindo
a infância de encanto e inocência.
Ilustrações: J. Pinchon
Ameu ver, em fins do século passado até a II Guerra
Mundial, mais ou menos, todas as crianças
francesas, ou grande parte delas, e inclusive as estrangeiras
educadas ao estilo francófilo, encantaram-se na
infância com as histórias de Bécassine.
Reminiscências da Bretanha medieval
Trata-se da história de uma menina bretã pouco dotada
de inteligência, porém, que representava a bondade.
Ela tinha uma prima-irmã, chamada Marie Quillouch
– louche, louchée, em francês, significa vesga; Marie
Quillouch significava Maria Vesga – a qual representava
a maldade. Ambas nascidas na Bretanha.
Esta região fora evangelizada remotamente por São
Luís Maria Grignion de Montfort, constituindo-se um
dos redutos católicos e monarquistas da França, onde os
costumes medievais conservaram muita força até quase a
II Guerra Mundial.
26
Depois deste terrível acontecimento estive na França e,
ao visitar o castelo de Versailles, tive a alegria de ver uma
bretã com sua touquinha entre as pessoas do povo que visitavam
o castelo. No tempo de Bécassine, a Bretanha
tinha ainda castelos com seus castelões; a população
era agrícola, todo mundo se vestia como na
Idade Média. Nas aldeias em que viviam, os automóveis
ainda não tinham penetrado.
Clocher-les-Bécasses era uma aldeiazinha que
tinha ali perto um castelo onde morava a família
dos castelões; o marquês e a marquesa de Grand-
-Air – Grand’air quer dizer grande ar, grande estilo
ou grande categoria.
O marquês, na hierarquia nobiliárquica, é o título que
mais exprime o misto da alta distinção com a delicadeza. O
duque já tem qualquer coisa do imperativo, de mandão, e
está quase na realeza. O marquês, não. Ele é o ápice da nobreza
média, onde ela floresce no que tem de mais delicado,
mais suave, afável, ameno, e quintessenciadíssimo também.
Então, quando se quer dizer que uma senhora tem a plenitude
da graça, do charme, da delicadeza e da fragilidade feminina,
além da quintessência da aristocracia, se diz: é uma
marquesa. Ou então, em estilo masculino, o marquês.
A história de Bécassine nos apresenta muitos desenhos
dispostos em quadrinhos, com dizeres em-
27
Luzes da Civilização Cristã
baixo – naquela época as crianças liam –, contando a história
da menina bretã, e descrevendo os costumes ainda
medievais da Bretanha daquele tempo. Os quadrinhos tinham
desenhados céus bonitos e paisagens repousantes,
com cores claras, pois esse colorido inocente da Bretanha
era muito próprio para formar a mentalidade de uma
criança e dar-lhe todo aquele equilíbrio psíquico e estabilidade
que ela deve ter, totalmente opostos ao Drácula e
ao mostro norte-americano de rosto deformado.
Profunda tradição no ambiente
natal de Bécassine
No primeiro quadrinho aparece a casa onde nasceu
Bécassine e o texto explica o desenho. Era uma casa de
camponeses, em geral, feita de pedra, com o teto de palha,
e uma criação de porcos. Por mais pobre que fosse, a
casa era bonitinha, proporcionada e acolhedora.
Annaïk Labornez, destinada à celebridade com o nome
de Bécassine, teve por primeira morada a granja que seus
pais cultivavam em Clocher-les-Bécasses, não muito longe
de Quimper.
Seu nascimento não foi assinalado, como o dos heróis
da antiguidade, por tremores de terra e chuvas de fogo. Observou-se
somente nessa época uma grande revoada de pássaros
selvagens, gansos, patos e galinholas.
Na cena, os camponeses aparecem muito espantados
vendo passar os bandos de pássaros. Notem os trajes.
Um deles está montado a cavalo, trajando um chapeuzinho
de fita preta, um paletó azul-claro, uma calça
marrom-claro com uma espécie de polaina feita de pano,
e sapatos. Os demais homens que estão a pé, vestem-
-se da mesma forma. As mulheres estão todas cobertas,
com vestidos muito decentes: saiões grandões, tamancões,
uma touca sempre limpa e muito bem arranjada.
Ademais, vemos aquelas construções herdadas dos druidas,
e que são características da paisagem bretã.
Em outra figura podemos ver mais de perto o traje do
camponês e da camponesa. Vestes que não indicam nenhuma
vaidade, mas uma certa preocupação em se apresentar
digna e decentemente; tudo isso dá uma ideia de
gosto e muita inocência. Não há a menor sensualidade
ou faceirice neles.
Notem os personagens: não têm nervosismo; são camponeses
calmos, que andam devagar, comem, pensam e
também vivem devagar.
Annaïk Labornez era um bebê forte, rosado e roliço. Ela
tinha olhos e uma boca minúscula, e seu nariz era tão pequeno
que mal se podia ver.
Aí está ela deitada no berço. É interessante notar como
era bonito o berço de uma criança nesse contexto.
Trabalhado a mão, provavelmente de carvalho, o berço
era feito de tábuas justapostas, com um dispositivo em-
28
aixo para poder rolar enquanto ninavam a criança; e a
parte frontal era toda trabalhada à mão.
Durante a longa temporada do inverno, quando não
tinham o que fazer, pois a natureza estava toda enregelada,
dia e noite os camponeses se dedicavam a fabricar
móveis, tecer roupas, além de aprimorar as respectivas
casas, organizando-as e limpando-as, de maneira que
quando começava o período de trabalho, eles já tinham
tudo pronto para trabalhar.
mas era muito bem intencionada, carregando aquela tradição
bretã de fidelidade, bondade e dedicação.
Esse narizinho curto aborrecia ainda mais ao casal Labornez
por causa de uma prima da mesma idade de Annaïk,
Marie Quillouch, que nada deixava a desejar do ponto
de vista do nariz.
Marie Quillouch, ao contrário, era vesga, tinha o rosto
comprido, o nariz pontudo e sua boca estava sempre
pronta para dizer desaforos, pois era mal-humorada.
Essa estranha crença ligava-se, sem dúvida, ao que se
observava no pequeno burgo, durante a temporada de verão,
ou seja, a presença de um grande sábio, membro de
numerosas academias e que era dotado de um formidável
apêndice nasal.
É a caricatura de um velho professor de antes da I Guerra
Mundial. Este personagem tinha um narigão, era quase
inteiramente calvo, portava um chapéu e vestia uma espécie
de paletó de casimira, sobrecasaca e calças de brim. Na cena,
o grande sábio vê-se na praia e as crianças dos campone-
Nessas longas noites, artesãos anônimos faziam objetos
para serem depois transmitidos como herança familiar
durante séculos. Hoje são objetos expostos nos museus
por causa de seu bom gosto, mas qualquer homem
simples daquele tempo os possuía.
Uma estranha crença entre o povo
O tamanho do nariz desolava seus pais, que todos os dias
mediam o pobre narizinho. “Ele não cresce! Que infelicidade!
Vamos ser a chacota de toda a região.” De fato, em Clocher-les-Bécasses
acreditava-se que a inteligência está em
proporção com o tamanho do nariz.
Annaïk tinha o rosto em forma de lua,
com os olhos aparvalhados e um nariz
minúsculo. Aliás, bécasse é exatamente
um passarinho de bico muito pontudo, e
por irrisão, chamavam a menina de Bécassine,
porque ela quase não tinha nariz;
usava uma touca de camponesa bretã
com aquelas duas abas. Com frequência,
a ingênua menina ficava sem compreender
as coisas que ela própria dizia,
29
Luzes da Civilização Cristã
ses – vestidas com roupas de praia no estilo camponês, não
no sentido ruim da palavra –, conversam com ele muito espantadas,
porque acham-no esquisito. Estão perguntando
qualquer coisa, e estão pasmas com o sábio.
Ora, há muito existia uma rivalidade entre a família Labornez
e a família Quillouch. Yann Quillouch detestava
Conan Labornez porque num almoço oferecido pelo deputado
aos notáveis da região, Labornez sentara-se mais perto
do que ele, do dono da casa.
É o tipo do deputado de antes da I Guerra Mundial.
Porta a faixa tricolor com as cores da república francesa;
é gordão, porque tem amplas remunerações, tem barbicha,
e o cabelo está um pouco à maneira do sábio, porém
é mais moço do que ele; é verboso, demagogo eleitoral,
um orador tal que deixa os camponeses apatetados, sem
saberem o que dizer.
O pai da Bécassine está bem próximo do deputado e
este fala só para o Sr. Labornez. No desenho aparece outra
notabilidade: é um velho meio surdo, que põe a mão
no ouvido para ver se entende o que o deputado fala para
o pai da Bécassine. E o pai da Marie Quillouch está
sentado em terceiro lugar, louco para ouvir e não consegue.
Então, ficou inimigo do seu próprio primo.
Também porque na fanfarra municipal, Conan era encarregado
do bumbo, instrumento que não passa desapercebido,
enquanto que ele, Yann, devia se contentar com a
função modesta de tocador de triângulo.
Chamo a atenção, mais uma vez, para a variedade dos
trajes e das cores. As roupas tinham uma vaga inspiração
na vestimenta da nobreza, mas não era para bancar o nobre.
É a roupa típica de camponês.
De outro lado, Conan Labornez não podia perdoar o
seu primo de haver obtido, no concurso agrícola, uma medalha
para seus porcos, enquanto que ele só obtivera uma
menção honrosa.
Havia então um pouco de ciúme entre eles e isso se
notava na maneira como as mães falavam de suas filhas.
30
Olhem a mãe da Bécassine, como se parece com a filha,
enquanto a mãe da Marie Quillouch, está irritada.
As duas estão brigando no duro.
“A vossa – dizia a Sra. Quillouch – é mais gorda,
mas a nossa tem um nariz mais bonito.” Ao
que a senhora Labornez respondia vivamente:
“Provavelmente ela está orgulhosa
de seu nariz, pois o observa o tempo todo
com os dois olhos ao mesmo tempo.”
Brincadeira bem camponesa... A menina
era vesga.
Batismo carregado de
tradição e inocência
Entretanto, decidiu-se que os dois batizados seriam celebrados
ao mesmo tempo. Quase todo mundo é mais ou menos
primo em Clocher-les-Bécasses. Por isso toda a aldeia
foi convidada para a cerimônia religiosa e para o jantar.
Analisemos o cortejo que vai para o Batizado. É a reprodução
dos costumes da época. Na frente, dois camponeses
tocando um instrumento típico da região chamado
biniú ou cornemuse; depois, a mãe da Bécassine, e a
mãe da Marie Quillouch, cada uma carregando a própria
filha nos braços, entretanto, as duas se olham com desdém.
Atrás delas vêm os respectivos maridos, que, tirando
o chapéu, cumprimentam cerimoniosamente o carteiro.
Em seguida, um personagem do qual se falará mais
adiante, o tio Corentin; e por fim, de dois em dois, o resto
da aldeia seguida pelos patos e porcos.
O tio Corentin, grande caçador, um pouco original, e que
tem sempre uma palavra espirituosa, foi escolhido para padrinho
de Annaïk. “Uma bela menina – disse ele erguendo-a nos
braços – e que vale seu peso. Pena que ela tenha esse nariz, ou
melhor, que ela não tenha nariz.”
“E depois, essa ideia de chamá-la
Annaïk… Com todas as
Annaïks que há na aldeia, haverá
confusão. Quando na rua
eu gritar ‘Annaïk’, serão vinte
meninas que virão. É preciso
encontrar-lhe um apelido.”
O sinal da partida interrompeu
suas reflexões.
Foi um belo Batismo. A proprietária
do castelo, a Senhora
Marquesa de Grand-Air, para
quem a mãe de Annaïk trabalhava
por dia, veio assistir à
31
Luzes da Civilização Cristã
cerimônia. Os Labornezes não ficaram pouco orgulhosos
vendo-a chegar em sua caleça, puxada por dois cavalos.
A cena da chegada de Madame de Grand-Air para um
Batizado é uma obra-prima. Nela podemos ver como é a
nobreza autêntica, além de comprovar como a verdadeira
plebe é simpática, interessante, um foco contínuo de
cultura. É uma organização social ao estilo antigo.
A marquesa, muito esguia, frágil, risonha e amena,
protegendo-se do sol com uma sombrinha, chega numa
caleça imponente, puxada por dois cavalos brancos; segundo
o costume e a etiqueta, a nobre vem sentada no lado
direito da carruagem – posição na qual se deve sentar
a pessoa que está sozinha num transporte –, sorrindo
muito gentilmente para o camponês extasiado com a sua
chegada. Enquanto o cocheiro, trajado com uma espécie
de cartolinha, uma libré com colete vermelho e paletó
preto, e um chicote imponente, está muito mais orgulhoso
a propósito da marquesa do que ela própria, e nem
olha para o camponês.
Na saída da igreja, o tio Corentin lançou para o ar dragées
e moedas para as crianças.
Dragées são umas balas, em geral, de fruta e licor, revestidas
de açúcar. Era costume, terminado o Batizado,
os padrinhos jogarem moedas e balas para a criançada
toda que esperava ao lado de fora da igreja para apanhar
tais objetos. Veem-se os meninos pisando uns em cima
dos outros para pegar as balas e moedas que caíam no
chão. A seguir, dava-se a comemoração.
Annaïk torna-se Bécassine
Depois, ao som do biniú, dançou-se no local.
Aparece, então, uma parte da festa. Os pais dançando
em torno de uma barrica, enquanto as crianças permanecem
deitadas sobre a grama, em cima de um tecido
azul-claro. Bécassine, plácida, faz um gesto amigo e
a prima vesga com seu narigão, ao contrário, já está se
mexendo mal à vontade, pulando e fazendo acrobacias;
são dois tipos, dois caracteres que eles querem representar.
No meio do público está um sujeito cantando e animando
a festa. É a alegria popular de um festejo inocente,
que terminava em comilança e beberagem, mas tudo
numa atmosfera familiar.
As duas meninas tinham sido instaladas à sombra de
um grande carvalho. Annaïk ria com todo o seu rosto redondo,
prenunciando seu bom caráter, enquanto sua prima
era, mais do que nunca, Maria qui-louche: Maria que
olha com inveja.
A hora do jantar chegou: todos os estômagos estavam
famintos, mas houve um movimento de inquietação, o tio
Corentin havia desaparecido. O que acontecera ao padrinho?
Ele chegou, finalmente: “Enquanto vocês dançavam,
32
fui caçar. Toma, minha sobrinha, assa bem essas aves. Não
vai ser este o pior prato do jantar.”
Depois, voltando à sua ideia de antes do batismo, e olhando
Annaïk, disse: “É pena que ela não tenha no meio do rosto
um nariz como o dessas aves.” Dizendo isso, ele tomou uma
das narcejas que trouxera, escondeu o corpo com sua mão
enorme e colocou o bico em frente de sua afilhada. “Uma verdadeira
bécassine – disse, rindo, a Sra. Quillouch”. Eis, tio
Corentin, o apelido que o senhor procurava.
“Sim, sim”, gritou toda a assistência. “Bécassine, Bécassine!”
“Por minha fé, confessou Corentin, isso lhe cai
como uma luva”. E foi assim que, apesar dos protestos indignados
de sua mãe, Annaïk Labornez tornou-se Bécassine.
Bécassine na alta sociedade
Agora, Bécassine já mocinha vai visitar o castelo, onde
se vê a Madame de Grand-Air sentada numa poltrona,
muito lânguida, mas numa posição muito composta e
distinta. A ilustração contém uma cortina e uma palmeira,
objetos que constituíam o sinal de luxo na Europa; e
um cachorrinho com um manto vermelho.
A Sra. Labornez vai frequentemente trabalhar para a
Marquesa de Grand-Air. Um dia esta lhe disse: “Traga-me
a Bécassine na quinta-feira de manhã. Ela almoçará conosco
e depois brincará com minha pequena Simone.”
“Ah, ela fará um papel ridículo entre as pessoas finas” –
exclamou a Sra. Quillouch quando soube da novidade. Mas
o tio Corentin assegurou que Bécassine se sairia galhardamente
da prova. Além do mais, acrescentou ele, eu me encarrego
de ensinar-lhe boas maneiras, pois as conheço bem.
A prova disso é que quando eu era picador do falecido marquês,
o pai do atual, dizia-me ele com frequência: “Corentin,
você está certo de que não é primo do Rei Luís Felipe? É impressionante
sua semelhança com ele.”
A figura apresenta o tio Corentin em traje de caça característico
pelo paletó vermelho, levando a trombeta de
caça em torno do pescoço, segurando o seu chapeuzinho
na mão, com os cabelos brancos, mas muito delicado,
atencioso e distinto, falando com o marquês. Em ou-
33
Luzes da Civilização Cristã
loca teu cesto no chão, pequena, e pendura teu xale no cogumelo.
O que estás procurando no chão?” “Procuro, Sr.
Joseph, o cogumelo.” “É aqui o cogumelo, Bécassine” –
disse Joseph, mostrando um cabide de madeira.
Chamavam de cogumelo àqueles cabides com o mesmo
formato.
Bécassine está muito surpresa. Que cogumelo engraçado!
Ela jamais vira um igual. Provavelmente é uma espécie
rara, que só cresce nos castelos. Joseph deixou-a sozinha.
Ela se aborrece. Que fazer? Vejamos. O tio Corentin
me disse para dizer bom dia a todos. Vou dizê-lo a senhorita
Mélanie, a cozinheira.
Prestem atenção no conjunto de servidores do castelo.
Aquele mordomo está impecavelmente vestido com casaca,
e muito cônscio da dignidade de servir um marquês.
A cozinheira é o tipo de pessoa entregue
a cuidados domésticos, voltada para a
cozinha, satisfeita, vestida semelhante às
camponesas.
E ela entra na cozinha. Mélanie a recebe
com um grito de alegria: “Caíste
do céu! Não tenho cogumelos para o
molho. Vá pedi-los ao jardineiro.”
“Não é preciso, Sra. Mélanie. Eu
tenho o que a senhora precisa.” E
saindo apressadamente, Bécassine
volta triunfante com o cabide que
Joseph havia chamado de cogumelo.
“Vamos – resmungou Mélanie –
não serves para realizar essa incumbência. Vai colocar isso
no lugar e fica no vestíbulo.”
Novamente o vestíbulo… Bécassine percebe então uma armadura
montada num manequim. “Que será isso? Provavelmente
é a bateria da cozinha. Sim, o objeto redondo do alto é a
saladeira. O grande do meio é a assadeira, e essas coisas compridas
dos lados devem ser as travessas para peixes. Que ideia
engraçada essa de colocar isso numa sala tão bonita. E depois
está opaca. Mélanie esqueceu-se de brilhá-la, de lustrá-la e vai
ser repreendida por isso. Eis o momento de me tornar útil.”
Bécassine pega uma pequena toalha de seda colocada
sobre uma mesa e corajosamente lustra o capacete, que lotro
desenho ele está representado quando
ainda moço, com a cabeça alta e
uma enorme costeleta na face, muito
parecido com o Rei Luís Felipe I
da França. Aliás, o tio de Bécassine
surgira como uma caricatura deste
monarca, pois a revista portadora
das historinhas da camponesa bretã
fora feita para a nobreza conservadora,
inimiga de Luís Felipe.
O tio Corentin começou suas lições
de boas maneiras ensinando Bécassine
a fazer reverência.
A maneira com que está representada
a reverência é uma sátira muito leve e amena do
jeito camponês.
Isso não foi sem alguns tropeços, mas o resultado foi muito
bom. Depois vieram os conselhos: “Não deixe esmorecer a
conversa. É preciso dizer bom dia a todos. Dizer algo engraçado,
que faça rir. Ser útil, quando for preciso. Imitar os outros
quando se fica embaraçado e não se sabe como agir, etc., etc.”
Chegado o grande dia, ele colocou no braço de sua sobrinha
um cesto contendo um pato e maçãs, porque, disse
ele, não é polido comer os manjares dos outros sem nada
levar. E conduziu-a até a grade do castelo. O valet de
chambre, Joseph, introduziu Bécassine no vestíbulo. “Co-
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go ficou reluzente como um espelho.
Joseph surpreendeu-a nessa ocupação
e não ficou satisfeito. “Que invenção é
essa? A senhora marquesa recomenda
que se conserve o aspecto antigo dessa
armadura. Entre na antessala e, sobretudo,
não mexa em nada.”
Na sala, na parede em frente à porta, há um
retrato da Senhora de Grand-Air. Bécassine pensou estar
diante da própria marquesa. Fez uma reverência e o mais
polidamente que pôde, desejou bom dia. O retrato, naturalmente,
nada respondeu. Então, Bécassine, se lembrando
das recomendações do tio Corentin, iniciou a conversa.
Perguntava as novidades, falava do tempo das colheitas.
Nenhuma resposta. Ela estava quase sem assunto. Meu
Deus, a conversa vai esmorecer.
Para evitar esse desastre, Bécassine só encontrou um meio:
pôs-se a cantar um cântico que aprendera no catecismo.
Neste momento a porta se abre e a marquesa aparece.
Bécassine permaneceu um momento estupefata. Depois,
fazendo nova reverência: “Senhora Marquesa, eu não sabia
que a senhora tinha uma irmã gêmea. Ela é bonita como a
senhora, mas bem menos amável, pois não responde nem
uma palavra do que se lhe diz.”
A Senhora de Grand-Air teve grande
dificuldade, primeiro em compreender o
que Bécassine lhe dizia, e, depois, em explicar-lhe
o equívoco... v
(Extraído de conferência de 8/7/1972)
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Flávio Lourenço
Maria Santíssima com seu Divino Filho
Igreja de Santa Maria de Jesus, Valência
Vida, doçura e esperança nossa!
Se Nossa Senhora não existisse, não teríamos nenhuma razão para esperar na misericórdia divina,
não haveria nada que justificasse qualquer esperança nossa do Céu, ou alegria na Terra.
Tudo quanto torna nossa vida suportável é o conjunto de esperanças que a intercessão da Santíssima Virgem
nos autoriza a ter. Se não fosse Ela, cairíamos desmaiados. Por isso, Maria é verdadeiramente nossa vida.
Ademais, Ela é inteiramente afável e condescendente com aqueles que A invocam, obtendo-nos as graças
sem as quais nossa existência seria a coisa mais amarga e sinistra. Ao estabelecer uma aliança entre o Céu
e a Terra, a Mãe de Deus torna doce a vida humana. Ela é, portanto, a nossa doçura.
Maria, que torna assim doce e sustentável a nossa vida, é a grande e única esperança, porque é Rainha
e Mãe de misericórdia.
(Extraído de conferência de 21/5/1965)