Sapeca n° 33
Misto de sapo e perereca Nº 33– Dezembro/2021– Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
Misto de sapo e perereca
Nº 33– Dezembro/2021– Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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Sapeca
Misto de sapo e perereca
Nº 33 – Dezembro/2021–Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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MUSO DESTA EDIÇÃO
Retiro dos artistas-RJ – Fundado em 1918, acolhe os que perderam seus
bens e/ou a capacidade de continuar produzindo diversão e arte. Além do prédio
principal, é uma espécie de condomínio, com 60 casas para os assistidos, refeições,
médicos etc. No momento, entre outros, lá estão as cantoras Leny Andrade,
que fez carreira nos Estados Unidos, e Helena de Lima, ícone das noites cariocas.
O goleiro Manga, os atores Paulo César Pereio (disse que apenas por causa da
Covid), Rui Resende (o professor Astromar, da novela Roque santeiro) e a bela
Maria Lúcia Dahl, também roteirista e cronista. Lembram-se do Bruce Kane, do
Chico Anysio? Uma das ideias dela, que interpretava a senhora Kane. Também
bisneta do dono do Rhum Creosotado, que deixou polpuda herança, que proporcionou
a ela e sua irmã Marília Caneiro, figurinista da Globo, uma vida de contos
de fadas que teve final infeliz com a falência de uma empresa de investimentos.
Sérgio Natureza, parceiro de Tunai, Paulinho da Viola, Lenine e outros mais.
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Academias de leras, para quê?
Antônio Jaime Soares
A Academia Brasileira de Letras voltou ao noticiário com as eleições de
Fernanda Montenegro e Gilberto Gil. Sobre a atriz, seu amigo Millôr Fernandes,
estivesse vivo, cairia de pau, como fez com o também amigo Antônio Houaiss. E
quanto a Gil, Chico Anysio deitaria na sopa, no papel de Zelberto Zel. O que ele
gozava era justamente o falar empolado do baiano, como um Rui Barbosa do
candomblé, um falar sem nada dizer, bem típico das hostes acadêmicas. Deixo
claro que continuo gostando do compositor e da “ímpar atriz”, como disse o “ímpar
atroz”, o já citado Millôr, num cartão que vi pregado na parede da casa dela.
Assim como o hábito não faz o monge, o fardão acadêmico não faz o escritor.
Se for ruim, não será melhor. Também porque, ao entrar, já é “quase uma
vaga”, como disse Erico Verissimo de si mesmo, na hipótese de ser candidato.
Drummond era uma unanimidade, mas descartou a ideia. Para um Mário Quintana,
que morava de favor num hotel de propriedade do jogador Falcão, o dindim
da ABL poderia garantir uma velhice mais folgada; para a maioria dos postulantes,
contudo, é por pura vaidade, a mesma que mantém lá o execrável José Ribamar
Sarney, de quem Millôr (sempre ele) revelou a total insignificância.
O crítico José Veríssimo, que muito lutou pela criação daquele “silogeu”,
foi, creio, o único dissidente, depondo as armas em 1912, com a eleição do político
Lauro Müller. Começou ali a puxação de saco. Pegou mal também a eleição
de Getúlio Vargas (1943), um ditador em pleno exercício da ditaduragem. Idem,
em 1970, ao acolher o general Lira Tavares, que havia integrado a junta militar –
os três patetas, no dizer de Yolanda Costa e Silva –, que governou quando o marido
dela adoeceu, dando uma banana para o vice, Pedro Aleixo. Lira foi acadêmico
por ter escrito um livro de poemas assinado com o pseudônimo Adelita.
Portanto, não é uma instituição séria. Muito menos, suas afiliadas, Brasil
afora e, já faz tempo, Cairu Teles Nunes me falou que pós-carnaval explodiria
uma bomba em Cataguases. E fez segredo. Depois soltou a bomba: foi fundada a
Academia Cataguasense de Letras. De cara, recusei o convite e a mesma reação
tiveram Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck. Obteve
apenas três ou quatro adesões e o negócio não ficou de pé. Entanto, estamos cercados,
pois Leopoldina, Muriaé e Ubá têm suas academias. Só sei que, na última,
uma “poetisa” cunhou o epíteto “cidade carinho” para o seu torrão natal.
O objetivo da ABL é o cultivo da língua portuguesa e da literatura nacional.
A língua, pelo jeito, está mal cultivada, com esse acordo ortográfico que só o
Brasil adotou. Sobre literatura, ela edita “obras de grande valor histórico e literário,
e atribui diversos prêmios”. Aí, depende do gosto de quem edita e um dos
trabalhos publicados há algum tempo se chama O estudo da fraseologia na obra
de João Ribeiro. Não deve ser do interesse de muita gente, para dizer o mínimo.
A língua e a literatura têm dinâmica própria e atrás dessa vitalidade só não vai
quem já morreu. Ou ficou perdido nos salões “século XVIII” da Academia. Não
digo que essa dinâmica dê a quem escreve o direito de desrespeitar as normas
gramaticais e dessas pode se encarregar o Ministério da Educação.
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Quanto aos prêmios, acho que ninguém reclamou. Seja como for, a imagem
que se tem da ABL é de uma instituição descartável. E como eles ficam feios,
encadernados pelo fardão. Já foi pior, quando usavam chapéu de plumas e
espada, aqueles mosqueteiros desajeitados, como num baile de carnaval no Quitandinha.
A propósito, um acadêmico, o cientista Silva Melo que, entre outros
méritos, gozava da amizade de Albert Einstein, foi agredido dentro de casa por
seu mordomo. Com a espada da Academia, que, enfim, teve alguma utilidade.
Da Wikipédia, com retoques:
No geral, os críticos da Academia consideram que ela virou um "agrupamento
de escritores conformistas e políticos poderosos e vaidosos".
Foi criticada, inclusive, por nunca ter se aberto para aclamados escritores,
tais como Lima Barreto, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos,
Cecília Meireles, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Erico Verissimo, Mário
Quintana e Paulo Leminski, bem como por ter tornado "imortais" políticos como
Lauro Müller, Getúlio Vargas, Aurélio de Lira Tavares, José Sarney, Fernando
Henrique Cardoso, Marco Maciel. E nomes discutíveis, no contexto, como Ivo
Pitanguy, Assis Chateaubriand, Roberto Marinho, Merval Pereira e Paulo Coelho.
Também ausentes os escritores Jorge de Lima e Gerardo Melo Mourão,
indicados ao Prêmio Nobel de Literatura. Antonio Candido, Autran Dourado,
Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e Raduan Nassar, vencedores do Prêmio Camões,
são outros nomes importantes que não figuram entre seus membros. No
total, uns, por vontade própria, outros, por má vontade do pessoal da casa.
Criticada ainda por acolher pessoas que, muitas vezes, escreviam apenas
para concorrer ao fardão, nunca mais voltando àquela atividade. E o processo
eleitoral nem sempre leva em conta os méritos literários dos candidatos. E mais:
a Academia não empreende projetos em favor da cultura da língua portuguesa,
apesar de dispor de capital para, por exemplo, relançar edições esgotadas e promover
campanhas de alfabetização e incentivo à leitura. Além disso, permaneceu
calada diante das pesadas censuras do governo Vargas e do regime militar.
Plantando água (do Facebook, com retoques)
Ernst Götsch, natural de Zurique, na Suíça, veio para o Brasil na década
de 1980 e, na Bahia, comprou terras esgotadas pelo cultivo sem planejamento da
mandioca, basta dizer que 14 riachos secaram. A prioridade era a recuperação
hídrica das terras, através de reflorestamento de áreas ribeirinhas a fim de preservar
o solo da erosão. Ao mesmo tempo, cavou valas nos cursos originais dos riachos.
Em pouco tempo, o volume de chuvas na área aumentou, ampliando a capacidade
hídrica, recuperando o que o governo da época considerava perdido.
Em menos de dois anos, reflorestou tudo. Seu trabalho chamou a atenção
de entidades agrícolas da região, que o procuraram para consultorias. Algumas
dessas entidades eram próximas ao governo. Hoje, Götsch divide sua renda entre
plantações e exportações de cacau – a maior parte adquirida por Portugal – e pa-
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lestras onde ele difunde o seu trabalho “plantando água”, cujo nome técnico é
evotranspiração. Consiste em incentivar a transpiração das árvores replantadas
para intensificar a formação de nuvens, que aumenta o volume de água devolvida
ao solo por meio de chuvas (fenômeno conhecido como “rio voador”).
O resultado foi o aumento de volume pluviométrico (média de ocorrência
de chuvas) em 70%, numa área de 8 quilômetros. Antes de deixar a Suíça, ele
questionou: “Será que não seria mais inteligente se nos dedicássemos a melhorar
as condições que damos às plantas, em vez de tentar adequá-las às condições cada
vez piores que lhes oferecemos?”. Acertou em cheio, como se vê.
Graças aos esforços mais ecológicos e sem uso de produtos químicos e
agrotóxicos, sua fazenda é mundialmente reconhecida como um polo produtor de
cacau e outros recursos naturais. Isso envolveu o desenvolvimento de práticas de
cultivo que imitassem os ecossistemas originais. No caso do Brasil, “respeitar as
condições de que cada planta usufruía em seu estado natural, como a quantidade
de luz”. Com isso, além de cacau, ele planta abacaxi, café, laranja e banana, entre
outros. Todos as espécies, contudo, obedecem a condições diferentes de cultivo.
Diz ele que a introdução de agrotóxicos e outros produtos químicos empobrece,
até mesmo destrói a capacidade de plantio. A maior parte da fazenda virou
propriedade protegida pelo governo da Bahia, até porque seu método não depende
de nenhuma ação governamental, como a transposição de rios e, de Bolsoraro,
ele disse: “Não é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço”.
Considerando a idade avançada, agora divide seu tempo em passar o que
aprendeu a gerações mais jovens, tendo construído alojamentos em sua propriedade
para receber estagiários e idealizar projetos internacionais que empreguem
seu conceito. “Quando você para de sonhar, não vive mais”, ele disse, pouco depois
de comentar sobre planos de “reflorestar desertos” e confessar um princípio
de conversa com o governo da Arábia Saudita para a criação de áreas verdes.
Fazenda Olhos D'água, onde Ernst vive desde 1984. Terras tidas como
irrecuperáveis hoje produzem alimentos e chamam chuva.
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Um assunto puxa outro
Nos anos 1960, conheci, en passant, um certo Ângelo. Diziam que filho
do barãozinho, este, filho de um barão de verdade. Essa gente existe, sim, fora
dos romances e livros de História, e vim a conhecer na Taberna do Embalo (do
saudoso Turi) um que se dizia descendente do barão de Catas Altas. E trabalhei
com uma viscondessa, no Rio. Voltando ao Ângelo, ele era irmão de Carlos
Egberto, ligado a gente do meio artístico, amigo de Paulo Martins, que dele se
lembrou quando cá esteve a última vez. Suicidou-se. Outro irmão era funcionário
da Receita Federal e adotou crianças. Uma vez, fui com amigos conhecer a casa
que Ângelo mandou construir na Granjaria, utilizando material de demolição,
inclusive uma escada de mármore que pertencera a um extinto cinema do Rio,
corrimão de metal dourado, tudo muito chique. E de cima da casa, disseram que
Ângelo se atirou, ficando paralítico e um dia vi o primeiro helicóptero, manobrando
para pousar naquele bairro e socorrê-lo. Morreu não muito depois.
Ângelo era amigo do Chico Salgado e não lembrei de pedir mais informações
sobre o dito. E a última fantasia de Chico foi um arlequim, que batizou de
Arlequim de Toledo, título de música gravada por Ângela Maria. Me pediu a letra,
mas só lembrei o final: “Uma paixão sufocada, o que restou, mais nada”. E
ele, irônico: “É só isso mesmo que fica”. Meio chatinho, quando começava a falar
de misses, rainha do rádio e rainha das atrizes, estas, conduzidas de liteira por
“escravos” até o salão da festa. Contudo, conversávamos bastante quando foi
meu vizinho, na Vila. Uma história não oficial de Cataguases, no gênero “amores
clandestinos”, que envolvia muita gente respeitável. Aí já é mais interessante.
Curiosidade: o helicóptero deve ter pousado no terreno onde seria o fórum,
que chegou a se chamar praça John F. Kennedy, depois, alcunhada Augusto
Cunha Neto. Algumas cidades grandes do Brasil homenagearam o presidente
americano, quando foi assassinado, vá lá, mas por que fazê-lo numa cidadezinha
dês’tamaniquinho? E uma das entradas de Ipanema era pela rua Apolo 11, que
hoje tem outro nome. No caso, homenageava a primeira nave espacial que pousou
na Lua. Os EUA voltaram lá naquele mesmo ano e a coisa esfriou, a ponto de
o Pasquim ter dito que o maior acontecimento de 1969 foi aquela façanha; o menor,
sua repetição. Também criticou o entusiasmo excessivo dos locutores que
noticiaram o evento, naquele tom de quem anuncia a salvação da humanidade.
Pra nossa praça Kennedy, praquela ruazinha carioca e praqueles locutores, todos
vindos do rádio, quando se chamavam speakers, eu dedico o troféu Jeca Tatu.
O Jeca, como se sabe, foi criado por Monteiro Lobato no livro Urupês,
que contém 14 histórias baseadas no trabalhador rural paulista. Simboliza a situação
do caipira, abandonado pelos poderes públicos brasileiros, às doenças, ao
atraso econômico, educacional e à indigência política. “O Jeca Tatu não é assim,
ele está assim", reagiu Lobato, quando seu personagem incomodou a elite intelectual
da época, acostumada a uma visão romântica do camponês. Lembro dele
num almanaque do Biotônico Fontoura (eu era menino), em que aquela miséria
toda acabou quando Jeca tomou o remédio. Tornou-se um homem forte e saudável,
seu sítio pobre virou uma fazenda e pôs todo mundo para andar calçado, até
as galinhas. Depois, inspirou Mazzaropi, que o interpretou pelo resto da vida.
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Bethânia canta Benito
Estranha figura, o mesmo em relação à voz, Beta estreou no Rio (show
Opinião, um libelo contra a ditadura recém-instalada), substituindo Nara Leão,
que a ouvira na Bahia. Ficou famosa da noite para o dia, caindo nas graças da ala
mais sofisticada da MPB, o pessoal egresso da bossa nova, chegando a dividir
disco com Edu Lobo, que não mais a requisitou. Depois, saiu pelada (palavras
dela) do banho e quebrou um abajur na cara de seu empresário Guilherme Araújo,
que implicava com as músicas bregas de seu repertório. Aí, contratou Benil Santos,
que lhe deu carta branca e entregou-se de corpo e alma ao gênero sentimentaloide.
Aqui e ali, um Chico, um Caetano, um poema, que dão um verniz de cultura,
enquanto Nara era a própria cultura, até ressuscitando modinhas imperiais.
Uma vez vi Beta saindo do Teatro da Praia num Mercedes dourado e achei
a cor muito “cheguei”, coisa de novo rico – “Muito Shangai”, diria Ibrahim Sued.
Agora, a vi cantando “Você cortou o barato do meu amor...”, de Benito di Paula,
mais uma apelação, na linha sucesso a qualquer preço. E o defendeu, alegando
que a crítica não sacou a delicadeza da letra. Há controvérsias, pois Nana Caymmi
disse que o nível das letras tem que ser de Dorival, seu pai, para cima, e Benito
não pode ser mais para baixo. O sempre polêmico mano Caetano grava músicas
“controversas”, mas melhora o original, ela apenas dá um toque de butique.
Em música, não se usa mais aquela postura dramática no palco, à Bibi Ferreira,
voz “poderosa”, como na ópera. Quem ainda bate nessa tecla é o pessoal
descartável do breganejo, aquele(a)s que têm avião e se cobrem de luxos, a turma
que, musicalmente, voa para trás, soltando o gogó, numa pretensa dor de cotovelo
que só faz multiplicar a conta bancária. Não se tocam que “o amor é um samba
tão diferente”, canção de Ary Barroso que Sílvio Caldas lançou e João Gilberto
espalhou pelo mundo civilizado. Beta sabe disso, mas faz ouvidos de mercador.
Num momento dos mais palpitantes, a era dos festivais de música, em que
mesmo o “rei” (põe aspas nisso) Roberto Carlos participou, Beta ficou de fora.
Teria que encarar um público imprevisível, até agressivo, o equivalente a ser atirada
às feras, o que aconteceu uma vez com o citado Caetano, que só faltou ser
linchado, como também, um ano antes, Sérgio Ricardo. Idem, a possibilidade de
perder para as colegas que cantavam mais, sem desafinar. Melhor continuar no
bem-bom com aquele público conformista, que a idolatra feito uma rainha.
Não nego que gosto dela em entrevistas, falando da Bahia, da família, dos
amigos. E achei interessante ela contar que sempre que vai a Paris reserva uma
suíte num hotel em Saint-Germain-des-Prés. Motivo: tem ducha no banheiro, o
que não é muito comum na Europa. E uma vez em que lá estava, pediram-na para
se transferir para outra suíte, pois aquela ducha fora custeada por Marcello Mastroianni,
que estava chegando de Roma. Coisa de gente chique, o que ela também
é, tipo falar francês, o que é cada vez mais raro entre nós. Desde que não cante.
Também no filme Vinicius, de Miguel Faria Jr., em que conta, rindo, que
levou Jesse, amiga baiana, para viver com ela no Rio. Toda noite iam ao Pizzaiolo,
na rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes), lugar mais frequentado por
mulheres. E lá encontraram o poetinha, que se encantou por Jesse. E Bethânia
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voltou sozinha para casa. Jesse, vi com ele, saindo do Teatro Fonte da Saudade
(nome bonito) e tomaram táxi, não Mercedes dourado. Lá estiveram para ele
apresentar o show de lançamento do primeiro disco de João Bosco, a caráter:
sentado num barzinho instalado no palco, servindo-se e sorvendo um bom uísque.
Outra coisa que não gostei foi ouvi-la dizer que de sua casa vê as inscrições
fenícias da Pedra da Gávea, no Rio, coisa de roqueiro pirado, o que ela não é.
“Jethbaal, fenício de Tiro, primogênito de Badezir”, escrito em fenício a 700 metros
de altitude. E mais: de certo ângulo, a Pedra da Gávea tem aparência de um
rosto, que seria o do dito primogênito, naufragado na Baía de Guanabara. Isso
tem muito por aí, como a Pedra do Frade e da Freira, no Espírito Santo ou o Dedo
de Deus, em Teresópolis, mas, por que não no Pão de Açúcar, que fica à entrada
da baía? Cientistas argumentam que tanto o “rosto humano”, como as “inscrições”
têm uma explicação mais óbvia: erosão. Mais fácil crer na ciência, que
pode provar, do que especular no vazio, feito Eram os deuses astronautas?, um
best-seller de décadas passadas. Livro tão implausível quanto os fenícios no Rio.
Na trilha de Bethânia
Conheci a divulgadora dela, Ivone Kassu, que também promovia Tom Jobim,
Chicos Anysio e Buarque, Milton Nascimento, Clara Nunes, Caê-Gil-Gal e Roberto
Carlos, morta em 2012. Era casada com Arthur Laranjeira, que trabalhava
na Odeon e dirigia shows, tendo dado um grande impulso à “redescoberta” de
Carmen Costa. Filho da também cantora Elza Laranjeira, ele e Ivone sabiam de
coisas do arco da velha, inclusive sobre altas patentes (no sentido lato) da política.
Na casa deles, vi um pequeno quadro a óleo que não esqueci, pela raridade:
uns cornos de rinoceronte, da fase que gosto do pintor surrealista Walter Lewy.
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A cassação de Vinicius
Vinicius de Moraes perdeu o cargo de diplomata pelo Ato Institucional nº
5, em1968, o que soube por meio de jornalistas, quando fazia show com Baden
Powell em Lisboa. Na apresentação seguinte, declamou seu poema Minha pátria,
enquanto o parceiro dedilhava nosso hino ao violão. À saída, estudantes salazaristas
estavam aglomerados na porta do teatro para protestar contra ele, que, a-
conselhado a sair pelos fundos, preferiu enfrentar e, diante dos manifestantes,
declamou Poética I ("De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De
noite ardo"). Prontamente, um dos jovens tirou a capa do seu traje acadêmico e a
atirou ao chão para que Vinicius pudesse passar sobre ela – gesto imitado pelos
colegas e que, em Portugal, é uma forma de homenagem acadêmica.
Bem mais tarde, o já ex-presidente João Figueiredo explicou as reais causas:
"Ele até diz que muita gente do Itamaraty foi cassada ou por corrupção ou
por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi por vagabundagem mesmo. Eu
era o chefe da agência central do serviço e recebíamos constantemente informes
de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu, com salário de 6 mil
dólares, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações
Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que
ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por
aí, com o copo de uísque do lado. Nem pestanejamos. Mandamos brasa".
O memorando de fato dizia: "Demita-se esse vagabundo". Contudo, os
militares reconheceram o valor de sua obra e sequer mencionaram suas posições
políticas no documento. A reabilitação ao corpo diplomático só ocorreu trinta
anos depois de sua morte por meio da Lei 12.265 de 21 de junho de 2010. Em
cerimônia no Palácio do Itamaraty, Vinicius de Moraes foi elevado ao cargo de
ministro de primeira classe, cargo frequentemente associado ao de embaixador.
Convenhamos: ausentou-se do serviço por motivos pessoais e biritais, e
por três meses, portanto, forneceu munição ao inimigo. Sem aquele salário, formou
com Toquinho uma dupla que deixou muito a desejar, em termos de qualidade,
que a crítica aceitou por ser Vinicius quem era, poeta de prestígio e um dos
principais artífices da bossa nova, que mostrou ao mundo que não éramos apenas
uma república bananeira, imagem que a diplomacia oficial não conseguiu apagar.
“As pessoas normais não têm o menor interesse.”
Aquiles Branco
Poucas horas antes, conversamos e rimos, como sempre fazíamos, até
porque Cataguases tem muita gente ridícula, daí, a imagem dele que guardei é a
da alegria. Preocupava-me ultimamente o seu andar muito lento, talvez por conta
do diabetes e da coluna. Matou-o o fuzil limpo do ataque cardíaco, como escreveu
João Cabral sobre W. D. Auden, mesma arma que assassinou pai, mãe e meu
primeiro irmão, lá em casa. Quisera ter sorte igual, no devido tempo, bem entendido,
pois, como já escrevi por aí, citando Woody Allen, “Eu não tenho medo da
morte, eu apenas não quero estar lá quando acontecer”. Aquiles aprovaria.
8
Maria Lúcia Alvim, na foto caprichada
do cataguasense Pury, foi uma
prestigiada poeta que recebeu, após sua
morte, no segmento poesia, o mais importante
prêmio literário do Brasil, o
Jabuti, com o livro Batendo pasto. Carioca,
viveu reclusa por muitos anos na
fazenda da família, em Volta Grande e
morreu em fevereiro de 2021 (88 anos),
em Juiz de Fora, de Covid-19, pouco
depois da edição de seu último livro.
Era irmã dos também prestigiados poetas
Maria Ângela e Chico Alvim, cujo
pai foi um dos produtores do filme O
canto da saudade, de Humberto Mauro.
Além Paraíba, 1997: Marilene Barino (senhora C. T. Moura), Álvaro A. Antunes,
Carlos Torres Moura e Maria Lúcia Alvim.
UM INTELECTUAL
Nunca imaginei que moraria em cidade sem cinema e banca de jornal. Cineminhas
de shopping só agradam a menores de 13 anos, observou Ruy Castro. Comentei isso
com um amigo que de cinema até que não faz muita questão, mas não dispensa suplementos
literários e compra na banca o Times Literary Supplement. Como não basta,
assina o New York Review of Books, o London Review of Books e a Literary Review.
Trata-se de um intelectual, como só conheci outros dois, já falecidos. É o mínimo que
uma pessoa precisa para se manter a par dos assuntos relacionados às letras, mundo
afora, como faziam Paulo Francis, Ivan Lessa e continua fazendo Sérgio Augusto. De
outros, não sei. De mim, digo que não me preocupo muito com novidades, estas estão
em qualquer bom livro e ainda tenho muitos para ler. Reler também é fundamental.
9
Pintura de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994). Chocante, mas poderia ocorrer
com certa frequência, não fosse o corpo da vítima reclamado pelos familiares.
A cada dia mais perto de você.
Com a gente, é negócio definitivo.
Você não perde por esperar.
Anúncios de funerárias:
Nossos clientes nunca voltaram para reclamar.
Líder do setor há 20 anos, mesmo perdendo um cliente atrás do outro.
Você pode escolher como e onde passar o resto da sua vida.
Briga de cachorro grande
“...depois de Drummond se tornar padrinho de casamento de Cabral e um dos
jurados do primeiro grande prêmio de poesia que ele recebeu, em 1953, a relação
entre os dois vai aos poucos azedando – e as rusgas, entremeadas eventualmente
com renovações de votos, acompanham toda a vida dos dois poetas. Quando
Drummond lançou Amar se aprende amando, já em 1985, Cabral repetia entre
amigos que era seu livro de cabeceira, “que lia como antídoto, para nunca escrever
assim”. Um ano antes, sobre o Auto do frade, de Cabral, Drummond comentou
que “ele tanto fez que acabou criando poemas sem poesia”.
Victor da Rosa. In "João Cabral sem dor de cabeça"
10
Veja, ilustre passageiro,
o belo tipo faceiro
que o senhor tem ao seu lado.
E, no entanto, acredite,
quase morreu de bronquite,
salvou-o o Rhum Creosotado.
Famosa e graciosa sextilha atribuída
a Olavo Bilac, Bastos Tigre* ou ao
dono do laboratório (de filho bonito
todo mundo quer ser pai), o reclame
ao lado já utilizava sex appeal, há
um século. “No tempo em que o arco-íris
era em preto e branco” – Frase
de um cronista não identificado.
Abaixo, duas oitavas com outros reclames
do mesmo produto, publicados
em O Paiz, do Rio de Janeiro,
em 1896 e 1899, respectivamente.
Santa Bárbara, que magreza!
Não és gente, és um palito!
Irás ao chão com certeza,
se agora te der um grito.
É demais, tão estragado,
creio que assim nunca vi-te,
toma o Rhum Creosotado,
que é muito bom pra bronquite.
As bronquites, rouquidões,
a asma, escarros de sangue
e a fraqueza dos pulmões,
que põem um sujeito exangue,
só abrem a triste lousa
para quem não tem tomado
o belo Rhum Creosotado,
do farmacêutico Souza.
*Bastos Tigre (1882-1957) – Engenheiro, bibliotecário, jornalista, poeta, compositor,
teatrólogo, humorista, publicitário, bem-sucedido em todas, sobretudo na
publicidade, autor do slogan “Se é Bayer, é bom”, usado até hoje. Com Ary Barroso,
compôs o primeiro jingle, para vender chope em garrafa, que veio a ser a
popular cerveja. Pelo amor aos livros, seu aniversário, 12 de março, foi decretado
o Dia do Bibliotecário. A seguir, algumas de suas frases, ainda bem atuais:
• Dizia uma senhora: “Vivo sempre no mais perfeito acordo com o meu marido: fazemos
sempre o que eu quero”.
• Uma mulher considera-se muito econômica pelo fato de usar apenas um grampo para
todos os vinte chapéus que possui.
• Patriotismo: nobre virtude nacional, hediondo crime no país inimigo.
• Tudo que é fácil de fazer mediocremente é dificílimo executar com perfeição. Viver,
por exemplo.
• Os monumentos que se erigem nos cemitérios à memória dos mortos ilustres destinam-se
a mostrar à posteridade como são duradouros o granito, o mármore e o bronze.
11
Poema Para a Nudez de Ítala Nandi
Joaquim Cardozo
Ítala Nandi despiu-se,
tirou suas roupas desnecessárias
e não conseguiu ficar nua:
sua bunda, seus seios minúsculos, sua babaca pequenina,
são as mesmas da primeira nudez em que nasceu.
Apenas ficou lisa,
apenas entrou na periferia
de um corpo nu pintado: de Cranach ou de Baldung.
– Nudez de Eva, a primeira mulher.
Ítala Nandi, por que escondeste
por tanto tempo a todos nós
tua santa e secreta nudez?
Tua nudez sagrada,
nudez para ser beijada.
Com esse nu, tão assim de superfície
todo o teu esforço no sentido da arte erótica
onde a plateia e os atores são os mesmos,
dás apenas o efeito tátil de pouca penetração.
Com essa primeira e indígena nudez,
Ítala Nandi, é quando te vestes
que ficas nua.
Joaquim Cardozo (1897-1978) se refere à peça Na selva das cidades, de
Bertold Brecht, encenada pelo grupo Oficina, que amigos meus viram, gostaram
e, principalmente, ficaram embasbacados com a nudez de Ítala, que só vi no cinema.
E vi a própria, vestida, na Embrafilme: alta, belo rosto e bela voz, nota 10.
Sobre o pouco lembrado Joaquim Cardozo, ele era apenas engenheiro estrutural,
poeta, contista, dramaturgo, professor universitário, tradutor, editor de
revistas de arte e arquitetura, desenhista, ilustrador, caricaturista, crítico de arte e
conhecedor de 15 idiomas. Para Niemeyer, "o brasileiro mais culto que existia".
Era ele que viabilizava as obras do arquiteto, fazendo os cálculos. Pernambucano,
era tido em alta conta pelo trio Bandeira-Drummond-João Cabral.
“Os muros das construções são o papel onde se inscreveram as páginas da
história, onde ainda se inscrevem as mensagens para o futuro”, disse ele e vale
lembrar que a arquitetura é que mais deixa vestígios da passagem do homem pelo
planeta. Publicado só aos 50 anos, deixou cinco livros de poesia e teatro, afirmando:
“Eu não sou bem um poeta. Minha vida é que é cheia de hiatos de poesia”.
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