A vitória da
confiança em
Maria
Luzes da Civilização Cristã
The Yorck Project (CC3.0)
Um belo
complemento
do traje
eclesiástico
Plinio entre seus
companheiros do Colégio
São Luís, em 1921
O barrete e outros sinais distintivos
dos trajes eclesiásticos ou civis foram
sendo abolidos, mostrando a tendência
para a república universal desejada pelo
comunismo, e que representa o reino do
demônio, onde não haja mais raças, línguas,
culturas, nem civilizações diversas, e
todos os homens constituam apenas uma
ordem parda ou cinzenta, indiferente, de
pessoas sem qualquer personalidade.
Lembro-me perfeitamente de minha reação, em menino,
ao ver o barrete eclesiástico, utilizado pelos
padres jesuítas do Colégio São Luís.
Os três gomos do barrete simbolizam
a Santíssima Trindade
Eu tinha conhecido sacerdotes salesianos – religiosos,
portanto – da Igreja do Coração de Jesus, e seculares
da Igreja de Santa Cecília, que era nossa paróquia.
Não conhecia outros, embora os visse passarem pela rua.
Luis Samuel
32
Mas não sei por que razão, quer os salesianos, quer os padres
seculares, eu nunca os tinha visto de barrete. Quando
muito, os via usando-o ao entrarem para a Missa, mas
tiravam logo ou já vinham com ele na mão. O fato é que o
barrete não tinha me chamado especialmente a atenção.
Quando entrei para o Colégio São Luís, quase todos
os padres usavam barrete, sistematicamente, sobretudo
na época mais fria do ano.
As cátedras naquele tempo eram altas, tinham uns
quatro ou cinco degraus, e o professor falava muito de
cima, numa espécie de banco, um quadrilátero vazio e
por detrás uma madeira revestindo a parede, formando
assim uma espécie de cenário para ele. Era uma coisa
muito respeitável e própria a prestigiar o magistério.
Naturalmente isso desapareceu, como desaparecem as
coisas boas sob o influxo da Revolução, perdendo o caráter
honorífico, restando apenas o funcional. Era a morte
gradual da noção de honra e o advento da funcionalidade
não honorífica, onde não mais a função da honra,
mas apenas o útil representa algum papel.
Foi nesse ambiente, acima descrito, da sala de aula
com a cátedra antiga que tive uma impressão magnífica
ao ver o professor usando o barrete. Pensei: “Que coisa
digna, bem arranjada, como vai bem com a batina !”
Ademais, sentado naquela cátedra, com a seriedade com
que falavam naquele tempo, dando aula, quase se diria
que o barrete era uma coroa preta colocada sobre a cabeça.
O barrete é encimado por três gomos, que simbolizam
a Santíssima Trindade, dispostos de tal forma que um
dos lados do barrete fica vazio. Entretanto – vejam como
são as conclusões de uma criança! –, habituado a certo
tipo de simetria, eu julgava que do outro lado o gomo tinha
caído, e que por economia os padres não o tinham
mandado colar. Era a explicação que eu encontrava... E
lamentava comigo. Cheguei a pensar: “Se eu pedisse dinheiro
a papai e mamãe para mandar comprar uns gomos
para eles porem, não será que ficaria bem?” Mas eu
percebia que havia qualquer coisa por onde não era para
mexer nisso, nem perguntar, e deixar a coisa assim. Mais
tarde entendi o porquê.
Luis C.R. Abreu
Quando a Igreja toca em
algo ela faz maravilhas
Mas fiquei encantado e, embora eu fosse muito menino,
veio-me ao espírito a seguinte reflexão: “Eu conheço
muitos homens respeitáveis e de idade avançada,
não eclesiásticos, que lucrariam tanto em usar uma coisa
desse gênero!” Um ou outro até usava, para se proteger
do frio, uma espécie de gorrozinho cilíndrico, em geral
feito de um tecido muito rico e vistoso, com cores ale-
São Pedro Arbués - Catedral
Metropolitana do México
33
Luzes da Civilização Cristã
Cartão-postal representando um cortejo pontifício
gres. Ainda que o homem fosse de idade, ele punha isso
na cabeça. Mas eu pensava: “Esses gorrozinhos que
eles põem não valem nada. Veja o que os eclesiásticos
põem na cabeça! Quem compôs esse barrete? Não foi nenhum
desses padres. Com certeza, se eu perguntar quem
foi eles não sabem, porque isso se perde nos tempos. Então,
quem foi? Foi a Igreja.” E me lembro de ter vindo à
mente esta reflexão claramente: “Observe como na Igreja,
sendo divina e exímia em todas as coisas grandes, há
uma qualidade por onde até nas pequenas, quando ela
toca com a ponta dos dedos, faz uma maravilha!”
Assim, fiquei realmente encantadíssimo com o barrete
eclesiástico. Imaginem a minha tristeza quando comecei
a perceber que o uso do barrete era cada vez mais
abandonado.
Além de compor bem e ser um belo complemento do
traje eclesiástico, o barrete corresponde a uma ideia que
desapareceu completamente. Quando eu era pequeno, os
meninos de minha idade já usavam chapéu. Qualquer
que fosse a espécie do chapéu, ao transpor o limiar de
qualquer das portas de sua própria casa, a fortiori da residência
dos outros, o menino tinha que tirar o chapéu.
Usar chapéu dentro de casa era o auge da impolidez, da
falta de delicadeza. Tratava-se de uma coisa toda convencional,
mas era assim.
Porém, o convencional antes da Revolução Francesa
era outro. O homem passava o dia todo de chapéu, e só
o tirava diante de pessoas de muito respeito, ou quando
ele se referia à Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus
Cristo, Nossa Senhora, Sagrada Eucaristia. Também
quando entrava uma pessoa ilustre no salão, por exemplo
um príncipe, um marechal de França, um membro
da Academia de Letras, um cardeal.
A Revolução promoveu o desaparecimento
do barrete, do chapéu, do uniforme
Essas são atitudes convencionais, não estão ligadas ao direito
natural. Entretanto, é conforme ao direito natural que
haja cerimônias. Como e quais elas sejam, na maior parte
dos casos é uma convenção elaborada ao longo da História
pelos costumes, pela índole de cada povo, etc.; não é imposto
por uma lei moral, não decorre da ordem natural das coisas.
Por exemplo, a nós ocidentais parece a coisa mais
normal do mundo nos cumprimentarmos apertando a
mão. Mas no Oriente isso não é costume nem um pouco.
O cumprimento é feito de longe, com certa forma de reverência,
de vênia. É legítimo, são coisas convencionais.
Contudo, não é meramente convencional que haja cerimônias.
E para atingir a ordem natural, a Revolução
instituindo o igualitarismo tinha que promover o desaparecimento
do barrete, como do chapéu, do uniforme,
tanto para leigos como para eclesiásticos.
Eu assisti a essas três etapas: os leigos que deixaram
de usar o chapéu, depois o paletó, passando já a usar
bermudas. Os militares que abandonam o uniforme e se
vestem como os civis, quando não estão em serviço, confundindo-se,
então, com qualquer um nessas ocasiões.
Ora, era evidente que a Revolução solicitasse ao clero
que abolisse a tonsura, abandonasse a batina e usasse
apenas um distintivo. Depois, não usasse mais distintivo
algum. Nessa demolição entrou também, necessariamente,
o barrete que me deixou tão saudosas recordações.
No completo desaparecimento dos trajes distintivos
das várias condições de vida já se fere, arranha-se a ordem
natural, porque, embora não seja imperativamente
necessário, é da mais alta conveniência para a boa or-
34
Arquivo Revista
dem natural das coisas que as diversas condições de vida
tenham seus distintivos.
É a razão pela qual, por exemplo, o homem e a senhora
casados usam aliança. Quem não é casado não usa. Quem
olha percebe logo qual o estado civil daquela pessoa. Isso
é tão próximo da ordem natural, que a abolição de todos
esses sinais tende para a república universal desejada pelo
comunismo, e que representa o reino de demônio, onde
não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações
diversas, não haja mais nada de diverso, e todos os homens
constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta,
indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.
Estas foram as reflexões sugeridas pela saudosa lembrança
do imponente barrete dos meus mestres jesuítas.v
(Extraído de conferência de 27/7/1983)
Recepção do Grand Condé
em Versailles - Museu de
Orsay, Paris, França
35
Jean-Léon Gérôme (CC3.0)
Publicação Mensal
Vol. XXIII - Nº 263 Fevereiro de 2020
Indefectível
fidelidade
à Cátedra
de Pedro
Luzes da Civilização Cristã
Gabriel K.
Unum de Veneza
e do mar
Entre os belíssimos monumentos de Veneza, cidade cuja conjunção
com o mar atrai turistas do mundo inteiro, destaca-se a Catedral de
São Marcos, poema construído em torno da Santa Missa, onde a Pala
d’Oro, com sua feeria de esmaltes e cores, concorre não apenas para
a cultura artística, mas principalmente para a formação religiosa do
povo de Deus, o que faz dessa obra de arte um verdadeiro tesouro.
Arquivo Revista
Estando em Veneza, em minha última viagem à Europa
1 , tive a oportunidade de transpor de lancha
um braço de mar, saindo de Veneza em direção a
duas ilhas que ficam em frente: São Jorge e Giudecca.
Conclave que elegeu Pio VII
À medida que nos distanciamos de Veneza, vamos tendo
uma mudança de panorama que mereceria ser comentada,
e que é a seguinte: quando a lancha está a uma distância
ainda pequena da cidade, não se goza tanto da proximidade
do mar porque a atenção fica inteiramente absorvida
pelos monumentos. Ademais, o ser humano não
consegue fixar bem a atenção na conjunção monumento-mar,
porque o mar é muito largo, o monumento muito
bonito, e ora um ora outro biparte a atenção do homem.
Com a distância, pelo contrário, vai-se formando um
unum de Veneza e do mar, pelo qual, num primeiro momento,
trata-se de considerar como a cidade é bonita vista
a partir do mar. Bem mais longe, a cidade vai ficando
ao fundo do panorama e o mar atrai mais a atenção. Por
fim, Veneza torna-se apenas uma moldura distante para o
mar, cuja beleza é ressaltada ao ser emoldurado por ela.
A Ilha de São Jorge é toda tomada pela basílica e o mosteiro
do mesmo nome. É, portanto, uma ilha-mosteiro. Em
fins do século XVIII, quando o Papado parecia destroçado,
32
Vicente Torres
o Papa Pio VI, muito doente, foi arrastado à força pelos revolucionários
franceses e levado prisioneiro para a França.
Ao chegar à cidade de Valence, o povo queria vê-lo,
aglutinado do lado de fora da casa onde o Pontífice estava.
Ele se arrastou até o terraço para evitar uma agressão
do povo e apresentou-se dizendo “Ecce homo – Eis o homem”,
que foram as palavras com as quais Pôncio Pilatos
apresentou ao populacho revoltado Nosso Senhor flagelado,
coroado de espinhos, com o manto da ignomínia e a
cana de bobo na mão. Pio VI, para significar como estava
reduzido a quase nada, disse de si mesmo que estava como
Nosso Senhor. É uma coisa que um Vigário de Cristo
pode dizer, quando se encontra nessa situação tristíssima.
Quando ele morreu, muitos tiveram a loucura de pensar
que não haveria mais papas e a Igreja Católica iria
sumindo aos poucos. O Imperador da Áustria era senhor
de Veneza naquele tempo e resolveu realizar um conclave
para os cardeais elegerem um novo pontífice. O soberano
proporcionou todas as condições para que o conclave
se realizasse nessa ilha, e ali foi eleito Pio VII como papa.
A partir da Ilha de São Jorge, a distância de Veneza se
faz sentir menos do que da Ilha Giudecca. Portanto, não
é ainda verdade dizer que a cidade serve de mera moldura
ao mar. Pelo contrário, Veneza e o mar se completam,
um embeleza o outro.
Para melhor avaliar a beleza desse panorama, imaginem
que uma empresa colossal resolvesse propor ao Governo
italiano, por razões de transporte, desviar esse braço
de mar, e construísse em cima disso uma avenida de asfalto.
Podemos imaginar a feiura que isso teria? Por outro
lado, se estourasse uma guerra que destruísse Veneza, por
causa desse mar valeria a pena ir ali? Entretanto, a conjunção
Veneza-mar atrai turistas do mundo inteiro.
Triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã
Temos uma vista da Praça de São Marcos que pode
ser melhor admirada em horas em que está menos tomada
por turistas. Notem a enorme diferença de estilos
existente entre o campanário e a basílica. Contudo, vejam
que variedade agradável isso ocasiona. É uma verdadeira
beleza! Como o jeito, à maneira de bengala, dessa
torre dura, forte e alta contrasta com o rendilhado
gracioso, amável, da basílica! Cada coisa realça a beleza
da outra e forma um conjunto lindíssimo.
A “Torre do Relógio” é um dos monumentos mais famosos
de Veneza. Ele se compõe de um corpo central onde
se encontra o relógio que dá o nome ao edifício, e dois
andares laterais bonitos, mas muito mais discretos, deixando
todo o realce ao prédio principal, servindo-lhe de
moldura, pois ainda que não houvesse essas edificações
em volta, essa parte já constituiria uma torre.
O relógio é muito bonito. O quadrante é de um azul
bem escuro com desenhos em dourado e os números estão
inscritos em círculos de pedra. Em cada ângulo encontra-se
uma pequena circunferência vazada.
A torre é fundamentalmente uma homenagem a Nossa
Senhora. Na parte mais visível dela está a Santíssima
Virgem com o Menino Jesus. Por ocasião do Natal, entram
em cena os Reis Magos precedidos por um Anjo –
movidos por um sistema mecânico –, e passam diante da
Virgem-Mãe com seu Divino Filho para reverenciá-Los.
Na construção da torre, Veneza não se esqueceu de si
própria e colocou num lugar menos central, mas bastante
evidente, o emblema da cidade: um leão alado, símbolo
do Evangelista São Marcos, sob cujo patrocínio está a
Sereníssima República.
Esse é um prédio destinado à vida civil comum, não se
trata de uma igreja. Entretanto, vejam como é impregna-
Mariordo (CC3.0)
33
Luzes da Civilização Cristã
Leonardo C.
péries, enquanto as originais permanecem
num lugar onde estejam a
salvo dos fatores de deterioração.
Um poema construído em
torno da Santa Missa
do profundamente de Religião, de maneira a encontrarmos
em quase todos os motivos decorativos uma alusão religiosa.
Até mesmo em cima, os mouros que estão batendo no sino.
Veneza possuía escravos mouros aprisionados durante
as guerras, as quais, em geral, eram por motivo religioso.
Os venezianos eram católicos e os mouros maometanos. Os
escravos deviam servir os seus senhores; então estão representados
ali os escravos mouros batendo o sino. Ou seja, é
o triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã.
Cavalos que parecem conversar
Os famosos cavalos de Veneza, na realidade, pertenciam
ao Império Bizantino, tendo sido trazidos de Constantinopla
como presa de guerra. São considerados como verdadeira
maravilha no gênero, porque representam com uma
vitalidade e naturalidade assombrosas quatro cavalos que
vão numa marcha um pouco viva, mas não em disparada. É
muito interessante o inter-relacionamento entre eles. Cavalo
não conversa; contudo, estes estão como que conversando.
Notem o movimento de cabeça do primeiro para o segundo
e do terceiro para o quarto. Percebe-se isso nos animais,
às vezes: estão como que convivendo, quase como se
conversassem. Considerem a discrição do movimento das
patas, em nada forçado. É a marcha comum de cavalos numa
rua, mas animais de categoria.
Napoleão, que era um grande ladrão, levou-os para
Paris. Quando ele caiu, o rei legítimo da França, irmão
de Luís XVI, Luís XVIII, restituiu a Veneza esses cavalos
roubados. O rei legítimo não queria ser dono ilegítimo
de um tesouro desses. Então foram reinstalados.
Mais recentemente descobriu-se que o ar do mar e outras
circunstâncias estavam deteriorando os cavalos. Para
evitar isso, que seria uma perda irreparável, foram feitas
cópias exatíssimas, as quais ficam expostas às intem-
No interior da Basílica de São
Marcos nota-se uma série de arcos
que culminam num último, fechado
numa espécie de semicírculo todo
cravejado de mosaicos preciosos. O
corpo da igreja é formado de tal maneira
que possui arcos até o fim. Nos
lados, os arcos se interrompem em
certo momento para recomeçarem
depois, deixando um espaço vazio.
A catedral é construída em forma
de cruz. O Corpo sagrado de Nosso Senhor estaria ao longo
da nave central, e nas laterais os braços, cujo principal, para
onde se inclinou a cabeça sagrada do Redentor na hora da
morte, fica à direita do altar. Então a ideia da Cruz, do sacrifício,
da morte e, portanto, da Redenção infinitamente preciosa
de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de que a Missa renova
de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, fica simbolizada
muito adequadamente por essa disposição.
No primeiro plano vemos uma cruz disposta de maneira
a ser observada por quem entra e por quem está nas naves
laterais. Portanto, em qualquer lado que se esteja vê-se
o símbolo de nossa Redenção, indicando o significado central
da catedral, que é de ser o lugar onde se celebra a Missa,
ato supremo da piedade católica. Assim, essa basílica é
todo um poema construído em torno da Santa Missa.
Para além dessa espécie de vedação com colunatas,
feita de pedras lindíssimas, que separa o altar-mor do
corpo da catedral, vemos à direita
e à esquerda os púlpitos de onde
os sacerdotes e diáconos leem
as Sagradas Escrituras e cantam
o Ofício sagrado.
O solo em Veneza é de tal maneira
úmido que apresenta resistências
desiguais aos pesos que
carrega. Então, há partes do chão
que são um pouco mais afundadas,
outras mais salientes, e é necessária
certa atenção para não se
perder o equilíbrio e cair de repente.
Mas esse piso é feito de tal maneira
que em nenhum lugar esse
movimento de terreno prejudicou
os mosaicos. Estão todos perfeitos.
J.P. Castro
34
Pala d’Oro
Gabriel K.
No alto desta espécie de divisão estão as imagens de Nossa
Senhora, São João Batista e dos doze Apóstolos, reunidos
em torno da Cruz. Notem a beleza dessa divisão e como ela
marca bem a diferença entre o sacerdote e os fiéis. O sacerdote
é o ministro de Deus, escolhido por Ele para representar
os fiéis diante d’Ele. É ele quem tem o poder de celebrar
a Missa, e por suas palavras se opera a transubstanciação.
Nós, os fiéis, não temos esse poder. Porém, essa separação
tão categórica é toda feita com amor, e por causa disso vemos
como a Igreja enfeita e orna essa divisão e acentua nela
a hierarquia estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo.
O retábulo do altar-mor é a famosa Pala d’Oro. Examinando
esses esmaltes, vemos como cada um é uma verdadeira
maravilha. Mas diz o Gênesis que Deus, tendo concluído
a obra da Criação, no sétimo dia repousou e, contemplando
o que tinha feito, viu que o conjunto era muito bom. É bem
verdade, o conjunto das coisas excelentes tem mais beleza do
que a mera soma das excelências que o constituem, individualmente
consideradas. É uma regra de harmonia.
No centro, vemos um esmalte representando Jesus
Cristo rodeado dos quatro Evangelistas. Em cima, à esquerda,
São Marcos; à direita, São João. Embaixo, à esquerda,
São Mateus; à direita, São Lucas.
Nessa obra de arte encontramos, numa feeria de esmaltes
e cores, um grande número de cenas, pessoas, fisionomias.
E no primeiro golpe de olhar consideramos uma beleza
feita da mistura indefinida e multiplicada das cores, formas
e figuras, muito deleitável à vista, mas também muito
conveniente à piedade, porque os olhos ficam atraídos a
se deterem sobre temas santíssimos, cristianíssimos; o que
concorre, em primeiríssimo lugar, para a formação religiosa
e, em segundo, para a cultura artística do povo de Deus.
Tudo isso faz da Pala d’Oro um verdadeiro tesouro. v
(Extraído de conferência de 7/12/1988)
1) Nessa viagem, Dr. Plinio esteve em Veneza de 30 de setembro
a 5 outubro de 1988.
Daperro (CC3.0)
35
Publicação Mensal Vol. XXIII - Nº 264 Março de 2020
Medianeira e
Co-Redentora
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ
Luca Aless (CC3.0)
O Palácio dos Doges
Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, os venezianos
conseguiram transmitir em suas construções o princípio governativo
que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.
OPalácio Ducal era a sede do Governo de Veneza.
Com a vida civil tão menos desenvolvida do que
hoje, não havia os escritórios de advocacia necessários
para fazer os requerimentos. Assim, nesse lugar,
chamado por isso mesmo de “Porta da Carta”, eram colocadas
mesinhas onde escrivães redigiam os documentos e
petições a serem apresentados aos magistrados.
Almas com altos ideais culturais e religiosos
Eu chamo a atenção para a beleza dessa porta. Notam-se
embaixo os batentes grandes, divididos em quadrados
esculpidos. Encimando a porta, vemos o leão
alado acima do qual se abre uma larga ogiva com vitrais.
Tudo enquadrado por duas agulhas de mármore
branco que, por assim dizer, “apresentam armas” ao
lado do pináculo gótico da janela que termina num ornato
no alto.
Diante do leão, símbolo de Veneza, está ajoelhado o
Doge Francesco Foscari. Vejam como a janela é bonita,
com os vitrais e todo o rendilhado maravilhoso que está
acima, formando círculos nos quais se encaixam os vitrais.
Tudo isso dentro de uma ogiva sobre a qual estão
dois Anjos carregando a figura do Evangelista São Marcos.
Por fim, uma sequência de esculturas sobre pedra
que culminam numa figura terminal.
É interessante notar essa tendência do gótico, inclusive
em Veneza, em terminar os monumentos em altas
pontas. Excetua-se o Palácio dos Doges, que se encontra
fora dessa regra porque a inverte de um modo muito
bonito. Mas vemos essa tendência nas duas agulhas,
na ogiva como também no topo de toda essa peça escultural.
A que corresponde essa tendência? Por que aquelas
almas se compraziam tanto nisso? Por serem almas com
altos ideais culturais e religiosos, nos quais agrada muito
ver algo que domina todo um conjunto harmônico de
seres. É propriamente o princípio governativo que leva à
unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.
32
Essa é uma porta tão bonita que valeria a pena fazer
um esforço grande para viajar só para conhecê-la. Entretanto,
ela é apenas um pormenor de um palácio que
contém incontáveis outras maravilhas.
Preocupação de pôr beleza em tudo
O Palácio dos Doges compõe-se de dois andares sobre
uma espécie de galeria coberta que dá para a Praça
de São Marcos. Entre o corpo principal do edifício e essa
galeria térrea encontra-se um terraço todo
ornado por colunas encimadas por rosáceas.
No pátio interno do palácio encontramos
mais uma vez uma galeria inferior,
não mais com os arcos góticos ogivais,
mas com arcos semicirculares, e no
andar superior novamente as ogivas. Por
fim, o famoso “caixotão” – mas que caixotão!
– vazado por janelas grandes e pequenas
que completam belamente o conjunto
do quadro. No topo, um rendilhado
de pedras brancas indicando novamente
o amor às pontas. Imaginem o edifício
sem esse detalhe; não ficaria meio
sombrio? Mas com essa renda de pedras
brancas é uma verdadeira maravilha. A
pessoa se deleita ao ver isso precisamente
porque culmina numa ponta. Tudo o que
termina em ponta é belo porque representa
o governo perfeito.
Vale a pena prestar atenção no chão do
pátio, onde se encontram dois poços, de
água doce naturalmente, para as pessoas
beberem, lavarem-se, etc. Mas para o
chão não ficar muito monótono, fizeram
em pedra mesmo esses desenhos, porque
para plantar aí provavelmente não daria.
Então encheram o espaço dessa maneira
agradável. Vemos assim como há a preocupação
de pôr beleza em tudo.
A sala do Grande Conselho, no interior
do palácio, era o local onde os magistrados
de Veneza se reuniam para deliberar.
Considerem o contraste entre a extrema
ornamentação, de um lado, e a extrema
simplicidade, de outro. O teto é todo
carregado de ouro, com quadros magníficos
encaixados. Ao fundo, vemos um quadro
representando o Paraíso, e que toma
a parede toda. Uma obra maravilhosa,
tendo no alto Nosso Senhor Jesus Cristo,
Nossa Senhora e a Santíssima Trindade.
Portanto, uma sala do Governo dominada por uma cena
fundamentalmente religiosa, de tal maneira Governo e
Igreja viviam em colaboração nesses felizes tempos. Embaixo,
diante dessa obra de arte, encontra-se uma tribuna
ladeada por duas portas que contrastam com o conjunto,
por causa da cor clara dos batentes, a tal pedra branca
veneziana, dando uma nota de alegria a uma sala que estaria
exposta a ficar muito soturna se não tivesse algo de
branco para contrastar com o carregado das cores.
Angelo L.
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ
Benh LIEU SONG (CC3.0)
gioso da decisão a qual será tomada
por autoridade de Deus. Pode
acontecer que o homem tome uma
decisão errada, com ou sem culpa.
Com efeito, em consequência do
pecado original, Deus quis permitir
que houvesse pessoas com pouca
inteligência ou mal intencionadas.
Entretanto, apesar do risco de
“burros” e canalhas governarem
os homens, a Providência quis que
houvesse governo. Este é o princípio
magnificamente expresso aí.
Solenidade dos atos realizados pelo Conselho
A grande tribuna conta com uma presidência e três
lugares de cada lado; um Conselho de sete pessoas, portanto.
Ali se decidiam questões que interessavam aos
particulares. Então, era livre o acesso à sala aos que tinham
assuntos a serem julgados. Não tenho certeza,
mas creio que, como nos tribunais, também ali podiam
falar as pessoas delegadas pelos interessados para resolverem
suas questões junto ao Conselho.
Os membros do Conselho, sobretudo o presidente, participavam
da sessão com roupas riquíssimas, em geral com
tecidos de valor inestimável, conferindo
assim grande realce à solenidade
do ato. Era para fazer
respeitar o poder público que, segundo
nos ensina a Doutrina Católica,
provém de Deus. Não que
Ele escolha a forma de governo,
nem indique quem vai governar.
Isso Deus deixa aos homens. Mas
toda sociedade humana deve ter
um governo. Portanto, é da vontade
divina que haja governos, e
quando os homens obedecem ao
governo, cumprem o desígnio de
Deus. Naturalmente eles só devem
cumprir a vontade dos governos
quando não são contrários à
Lei de Deus, porque esta fica acima
de toda lei humana.
Nota-se, assim, o desejo de inculcar
naqueles que assistem ao
julgamento a ideia do valor reli-
Os doges: homens
inteligentes, espertos,
meio misteriosos
“Doge” é uma palavra italiana derivada do vocábulo
latino “dux”, que deu origem também à palavra “duque”,
título nobiliárquico. O Doge de Veneza tinha as
honras e as prerrogativas de duque.
Ao analisar os bustos de alguns deles, que se encontram
nesse palácio, nota-se que, apesar da natural diferença
dos traços fisionômicos, há qualquer coisa de comum
entre eles, e que corresponde a um elogio que nem
sempre se pode fazer aos chefes de Estado contemporâneos:
são homens inteligentes, sabem o que querem e
querem o que sabem, voluntariosos e, cada um a seu modo,
espertos; meio misteriosos, com a fisionomia enig-
Bonhams (CC3.0)
34
mática, não dizem o que pensam, mas governam mesmo
a República Sereníssima de Veneza. Aliás, como uma pequena
cidade como Veneza poderia ser a Rainha do Adriático
e, ao cabo de algum tempo, também do Mediterrâneo,
se não fosse dirigida por homens capazes disso?
Eles usavam um chapéu denominado “barrete frígio”.
A Frígia era uma região da Ásia antiga onde os homens
usavam esses chapéus com essa espécie de pontinha
atrás. Tornou-se o símbolo dos Estados nos quais o regime
de governo não era a monarquia e sim a república.
Porém, não eram necessariamente repúblicas democráticas.
Veneza era uma república aristocrática, e os doges
pertenciam ao Conselho, tendo seus nomes inscritos no
Livro de Ouro, que era o registro das famílias nobres, e
todos tinham uma grande autoridade sobre Veneza.
A lindíssima Ponte dos Suspiros
A famosa Ponte dos Suspiros comunica o Palácio Ducal
às prisões, e consta fundamentalmente de duas janelas.
Dificilmente se pode imaginar uma ponte mais bonita
do que essa. É lindíssima! É um corredor coberto pelo
qual os prisioneiros eram conduzidos para ser julgados
pelas autoridades competentes. Como se vê, não há
possibilidade de escapar, é uma condução que não oferece
perigo de evasão.
A denominação “Ponte dos Suspiros” é muito bonita.
Mas exagerou-se, na literatura revolucionária,
o alcance disso. Começou-se a dizer que por aí eram
levados os prisioneiros destinados a serem executados.
Depois, provou-se que não era verdade. Eram
conduzidos para comparecer ante as autoridades judiciais,
de onde, quiçá, poderiam sair absolvidos.
Portanto, era um suspiro de tristeza, mas também de
esperança: “Afinal, vou ser julgado. Talvez saio dessa
história...”
❖
(Extraído de conferência de 7/12/1988)
Didier Descouens (CC3.0)
Domenico Tintoretto (CC3.0)
Domenico Tintoretto (CC3.0)
Sailko (CC3.0)
Domenico Tintoretto (CC3.0)
Domenico Tintoretto (CC3.0)
35
Sede de almas
Publicação Mensal
Vol. XXIII - Nº 265 Abril de 2020
Luzes da Civilização Cristã
Cindindo a
História de
alto a baixo
Fotos: Marcus Ramos
Numa piedosa imagem de
Nosso Senhor flagelado,
chama muito a atenção a
sublimidade do olhar, no
qual transparece o sofrimento
intenso do Divino Salvador,
que medita com profundidade
a respeito do significado
transcendente, metafísico,
sobrenatural de todas as
dores pelas quais passa. O
Redentor divide a História
entre os que são d’Ele e
os que são contra Ele.
T
enho a intenção de comentar uma imagem de
Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa
imagem que é bonita é muito pouco, porque mais
do que isso é profundamente impressionante, e de molde
a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo
fazer dela objeto de nossas considerações.
Significado transcendente, metafísico,
sobrenatural das dores
À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos
dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas
30
do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão
apresentadas com um tal realismo e de modo
tão brutal, que o instinto de conservação do homem
clama com aquilo, tem a tendência a fugir e
achar que não é arte representar um horror daqueles
de um modo tão horripilante.
Esse é um primeiro impulso que deve ser
dominado porque é uma ingratidão. Tal será
que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido
tudo o que padeceu por nós, não queiramos
sequer olhar para o Corpo chagado
d’Ele porque isso pode nos desagradar.
Como um primeiro impulso se compreende,
pois é uma reação quase física. Porém,
haveria ingratidão em consentir nesse impulso.
Além de ingratidão é uma falta de
respeito sem nome!
Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado
a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem,
a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola,
com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão
de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de
fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX.
Soube depois que ela se encontra no Canadá.
Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos
dessa imagem.
Algumas coisas me agradam extraordinariamente
nessa figura. A primeira delas que me chama mais a
atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo.
Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor
parece abismado – aliás, santamente – na consideração
da sua própria dor, e onde o artista procura atrair
a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a
fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio
olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar:
“Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”
Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É
bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma
Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor,
31
Luzes da Civilização Cristã
Flávio Lourenço
tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes,
cruéis, ou O adorariam transportados de amor
e admiração na consideração da situação em que Ele está.
Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra
do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que
dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos,
a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações
(cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a
História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os
que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os
outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e
outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao
longe, num ponto indefinido.
O Profeta Simeão recebe em seus braços
o Menino Jesus - Museu da Colegiata
de Santa Maria, Borja, Espanha
nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de
Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está
acontecendo, do significado transcendente, metafísico,
sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está
passando, e que constitui propriamente uma meditação.
Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo
É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como
Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto
olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto
de consideração em que uma mente humana possa se
colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai
até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da
transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa
consideração global não só do que fazem contra Ele, mas
também do que realizam por Ele.
De maneira que estão contemplados não apenas os homens
vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos
32
Flávio Lourenço
Jesus entrega as chaves a
São Pedro - Igreja de São
Demétrio, Loarre, Espanha
São João recostando-se sobre
o peito de Jesus - Igreja de São
Pedro, Estrasburgo, França
O Apóstolo São Bartolomeu
Igreja de São Bartolomeu,
Múrcia, Espanha
O beijo de Judas - Catedral
de Pamplona, Espanha
Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela
qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado.
Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição
que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça
não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira
arrogante, mas posta com uma naturalidade digna
sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue
às suas mais altas cogitações.
Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-
-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo,
de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo
correto de postar os braços diante de um rei ou de uma
rainha é esse. Assim está Ele.
No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne
sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras
arrancadas. Embora esteja cercado por gente que
ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as
transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso,
entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira
que se poderia colocar, entre os muitos títulos que
essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”,
como também “Iesus autem tacebat” 1 .
Três aspectos do divino olhar
Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo,
cai composto, com a parte direita meio voltada para
trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a
força moral que não O abandonaram nem mesmo nas
situações mais terríveis.
Creio ser este semblante a última expressão do
comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo,
orando durante a sua Paixão. Julgo discernir
nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor
Flávio Lourenço
Virgem da Paz - Igreja de São
Mateus, Lucena Espanha
33
Luzes da Civilização Cristã
Flávio Lourenço
Virgem das Dores - Igreja de São
Francisco, Baena, Espanha
física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante
do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno
tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto,
encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu
tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu
tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto,
ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso,
uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce,
suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída.
Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim.
Isto tem um sentido.”
Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma
tristeza moral, como que divinamente decepcionado
com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino
Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis
que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram?
Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por
um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu
a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes
ainda deitara a cabeça
sobre o peito d’Ele para
fazer uma pergunta na
intimidade; em São Bartolomeu,
de quem Ele
mesmo disse que era um
verdadeiro israelita no
qual não havia fraude e
que, entretanto, O abandonou
também... Ele está
pensando em todos os
outros. E lembrando-Se
com horror do filho da
perdição que O vendeu,
Ele está cogitando em todos
aqueles que O trairiam
ao longo dos séculos.
Entretanto, Jesus está
pensando também em algo
que O angustia enormemente,
mas é magnífico:
Nossa Senhora e a
dor que Ela está sofrendo.
Porém, por cima disso,
parece-me ver os olhos
do pensador que está meditando,
fazendo a Filosofia
e a Teologia daquele
acontecimento central da
História, que é a sua Paixão
e Morte. E contemplando
tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto
haver dentro disso uma magnífica oração.
Nosso Senhor sofreu tudo isso
pelos rogos de Maria
Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente
formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde,
na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A
meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes
acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar
a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se
consome, mas se eleva e se santifica.
Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo:
nem tem o contorno comum de um braço, mas
está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços
ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas
no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade
de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo
isso.
Ali vemos amarradas
as mãos sagradas do Onipotente.
É bonito que o
escultor as tenha apresentado
inteiramente descontraídas;
não há contração
nervosa, mas estão
como as mãos de um rei
prontas para serem osculadas.
É o Rei da dor.
Por nós, que somos escravos
da Santíssima Virgem,
essa imagem deve
ser considerada de dentro
dos olhos de São Luís
Grignion de Montfort.
Devemos entender que se
Nosso Senhor sofreu tudo
isso foi pelos rogos de
Maria; se esse Sangue é
aplicável a nós, é pelos rogos
de Nossa Senhora; se
nossa presença não causa
horror a Ele, mas, pelo
contrário, é aceita com
misericórdia, é pelos rogos
de Maria.
É com Ela, por Ela e
n’Ela que nós podemos
nos apresentar a Nosso
Senhor Jesus Cristo. Maria
Santíssima é o cami-
34
nho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos
de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos,
mas pelo menos de algum modo proporcionados para
olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.
Considerações sobre o escultor da imagem
Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse
homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido:
muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão
da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade,
pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu
o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo,
muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se
deixa identificar com o tema, que a expressão de alma
dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura
não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus
Cristo.
O artista de tal maneira viveu, por assim
dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O
representa e se apaga. Não se percebe qual
era o estado de alma dele, a não ser na extrema
inteligência, propriedade, finura e,
sobretudo, na extrema piedade com que
ele apresenta a matéria; de resto, ele está
ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito
dentro da obra de arte.
v
(Extraído de conferência de 10/2/1976)
1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém,
calava.
35
Publicação Mensal
Vol. XXIII - Nº 266 Maio de 2020
A grande intervenção de Maria:
um novo Pentecostes
Luzes da Civilização Cristã
Mario S.
Flor e glória da
Cristandade - I
Flávio Lourenço
Cavaleiro
templário
Ponferrada,
Espanha
Todo o brilho que
circunda a palavra
“cavaleiro” se refere
a uma das noções
fundamentais da
Civilização Cristã.
Embora pareça existir
uma incompatibilidade
completa entre o católico
e a guerra, o exemplo dos
Anjos nos ensina que a
força exercida por amor a
Deus torna-se sagrada.
Não há uma data específica para indicar o
fim da Cavalaria, de maneira a se poder dizer:
“Ela terminou em tal ocasião”, mas é certo
que, assim como os grandes crepúsculos não têm momento
adequado para se afirmar que se fez noite, também
o “pôr do sol” da Cavalaria não se sabe bem quando
se consumou.
Palavra que dignifica o homem a quem se refere
Entretanto, lá pelo século XVII já não se podia propriamente
falar nesta instituição. Havia Ordens que já
não tinham quase nada da Cavalaria antiga. Possuíam
meras recordações, era um título, mas a Cavalaria propriamente
dita tinha desaparecido.
Mais de trezentos anos depois, eu encontro jovens
que, ao serem chamados de “cavaleiros”, sentem-se dignificados,
mesmo sem conhecer tudo quanto a palavra
“cavaleiro” significa.
Quando se quer elogiar alguém que teve um procedimento
bonito, nobre, abnegado, corajoso, diz-se: “Tu
procedeste como um cavalheiro!” Havendo entre dois
homens educados uma altercação que se encerra de um
modo distinto e elegante, afirma-se: “Terminou como
uma contenda de cavalheiros!” Por outro lado, ao quei-
30
xar-se contra quem lhe faltou com o respeito, uma senhora
poderá usar esta fórmula: “O senhor não foi um
cavalheiro!”
Cavaleiro – de onde deriva o termo “cavalheiro” – é,
portanto, uma palavra que circula por toda parte, mas
cujo sentido quase ninguém sabe definir com exatidão.
O termo sugere a ideia de alguém que monta a cavalo.
Entretanto, quando vemos, por exemplo, alguns soldados
da Polícia Militar a cavalo fazendo a ronda do bairro,
embora seja uma tarefa digna, honesta, própria a
despertar a simpatia, podemos dizer que são cavaleiros?
Eles poderão fazer parte de uma força de cavalaria da
Polícia Militar, mas a Cavalaria é uma outra coisa.
O que vem a ser o cavaleiro? O que ficou colado nesta
palavra de modo que, mesmo sem saber defini-la, todos
reconhecem nela um certo brilho, uma certa luz que dignifica
o homem a quem se refere? Vale a pena examinarmos
isto para compreendermos uma das noções fundamentais
da Civilização Cristã, mais ou menos tão perdida
na mente do homem contemporâneo como desaparecida
está a própria ideia de Civilização Cristã.
Há restos, aromas da Civilização Cristã no mundo de
hoje, como num jarro de onde foi retirada uma rosa que
ali esteve durante algum tempo: tira-se a flor, fica o perfume.
Assim também, da Civilização Cristã no mundo de
hoje há um resto de perfume, mas a rosa não está mais
presente.
O tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado
Ora, uma das palavras nas quais se sente o perfume
da Civilização Cristã é “cavaleiro”. Ele é uma flor e uma
glória da Cristandade. A tal ponto que o termo “cavaleiro”
tem um nexo histórico e doutrinário muito merecido
com a ideia de Cruzada. Quando se diz “fulano é um
cruzado de tal ideal, ou de tal causa”, dá-se a entender
que é um homem abnegado, heroico, corajoso, dedicado,
que não conhece obstáculo, enfim, um grande homem.
Os cruzados não só são cavaleiros, mas o tipo mais
perfeito do cavaleiro é o cruzado. Que aroma misterioso
e delicioso impregna essas palavras de maneira a resistir
até à poluição deste fim de era histórica em que estamos
vivendo!
Devemos considerar que, ao falar de cavaleiro, referimo-nos
a alguém que realizou a mais alta perfeição de
um certo tipo de qualidades humanas. Um santo não é
necessariamente um cavaleiro, mas um cavaleiro que leve
as suas qualidades até o extremo torna-se santo. Mais
ainda: um santo, colocado nas condições em que lutaram
os cavaleiros, também ficaria um cavaleiro.
O santo é o homem que atingiu a sua perfeição, que foi
chamado por Deus a um alto grau de virtude e correspondeu
inteiramente, ou de modo exímio, a esse chamado.
O cavaleiro, por sua vez, corresponde a uma forma
de perfeição de que deve ser capaz todo homem coloca-
Marc Baronnet (CC3.0)
Os cruzados agradecem aos Céus por
sua vitória na tomada de Jerusalém
Palácio de Versailles, França
31
Luzes da Civilização Cristã
do nas condições de lutar. O verdadeiro católico, impelido
pelas circunstâncias a combater, torna-se cavaleiro.
Logo, o cavaleiro é o católico em luta. É uma forma de
excelência e de perfeição que se nota no católico quando
as condições da vida, do embate entre o bem e o mal, o
colocam no caso de batalhar. Aí estará o católico emitindo
um particular brilho de sua alma. Esse brilho é o espírito
da Cavalaria.
WGA (CC3.0)
Dralon (CC3.0)
Entre os anjos reinava uma
harmonia perfeitíssima
Para termos uma ideia exata da Cavalaria, reportemo-nos
ao que poderíamos chamar a primeira manhã da
Criação. Deus criou os anjos, puros espíritos; os homens,
compostos de espírito e matéria, tendo um corpo perecível
no qual estão presentes as naturezas animal, vegetal
e mineral; os animais, os vegetais e os minerais. Esse é
o quadro geral da Criação que, tomada no seu todo, teve
a sua primeira manhã no momento
em que Deus criou os anjos.
Podemos imaginar a criação
dos anjos simultânea, de maneira
a todos, desde o primeiro instante
de existência, começarem a
brilhar, conhecer, adorar a Deus
e a cantar as glórias d’Ele.
Também imediatamente
passam a se conhecerem uns
aos outros e se relacionarem
de um modo harmônico, em
coros que cantam a glória de
seu Criador. Entre eles reina
uma harmonia perfeitíssima
porque estão
todos voltados para
Deus.
Essa harmonia
tem o esplendor
da paz, que Santo
Agostinho definiu tão
magnificamente como
sendo a tranquilidade
da ordem. Portanto,
não é a qualquer tranquilidade
que se pode
chamar de paz, mas àquela
que resulta da ordem.
Há formas de desordem
que dão a impressão de paz.
Num charco, por exemplo,
com água estagnada, no
Adoração dos Anjos - Capela dos
Reis Magos, Florença, Itália
qual nada acontece, nada se move, há uma tranquilidade,
mas não oriunda da ordem. Há qualquer coisa de propício
à podridão, à degenerescência, à degradação, que prenuncia
a desordem. Isso não é paz.
Entre os anjos, pelo contrário, por estarem todos ordenados
em função da vontade e da glória divinas, havia a permuta
harmoniosa de bons ofícios para juntos adorarem a Deus.
Quem introduzisse no Céu qualquer semente de desordem,
um espírito mau que tentasse provocar uma intriga
entre dois anjos, instigando o amor-próprio de um
contra outro para produzir uma encrenca ali dentro, nós
o chamaríamos de bandido! Porque ia perturbar a tranquilidade
da ordem, o esplendor do Reino de Deus sobre
todas aquelas criaturas.
Com maior razão ainda, se um puro espírito sacasse
uma espada – para usar uma linguagem metafórica, pois
32
Godofredo de Bouillon - Igreja
da Corte, Innsbruck, Áustria
WGA (CC3.0)
um anjo não tem corpo – e começasse a agredir o outro,
nós o consideraríamos demônio. Por que ele vai atingir e
ferir o outro, pô-lo em desordem e provocar efervescência
de ódio? Colocar o tumulto, as incertezas e as angústias
das guerras onde deveria haver apenas a segurança
esplêndida e diáfana de um futuro que nada perturbaria?
Quem fizesse isso praticaria uma ação muito má. Nela
nós podemos ver o que há de substancialmente mau
na violência, a qual, de si, considerada sem as circunstâncias
que a expliquem, é um ato feio que macula com
a sua própria feiura quem o pratica. O violento fica hediondo.
Não há pior ultraje contra alguém do que dizer:
“Tem cara de assassino.” É uma coisa horrorosa…
Dir-se-ia, pois, existir uma incompatibilidade completa
entre o católico e a guerra, porque ele é membro do
Corpo Místico de Cristo; nele está presente, pela graça,
a própria vida de Deus, é um templo do Espírito Santo,
foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso
Senhor Jesus Cristo, tendo por Co-Redentora Nossa
Senhora, com suas lágrimas indizivelmente preciosas. O
católico é um filho da ordem, da tranquilidade, é a sede
da paz!
Como podemos imaginar um homem nessas condições
que prepara para si uma arma com a intenção de
verter o sangue alheio e, quando a arma está pronta,
procura a quem matar? Ele deseja tanto matar que até
expõe a sua vida para esse efeito, porque tem ódio, quer
ver sangue derramado e gente morta pela destra dele.
Esse é um católico, um templo do Espírito Santo, um
membro d’Aquele que diz: “Aprendei de Mim que sou
manso e humilde de coração…”?! O contraste não é o
mais abrupto possível?
Um prélio magno travou-se nos Céus
Entretanto, quando Lúcifer se levantou contra Deus e
arrastou com sua revolta uma terça parte
dos espíritos celestes, provocando
uma Revolução no Céu contra o Criador,
houve um Anjo que soube
se erguer e bradar: “Quis ut
Deus? – Quem como Deus?”
Foi São Miguel Arcanjo que,
com esse brado, conclamou à
luta dois terços
dos espíritos
celestes, realizando
o que
diz a Escritura:
“Prœlium magnum
factum est in cœlis.”
Na mansão da
paz e da tranquilidade
se fez uma grande guerra,
um prélio magno travou-se nos
Céus e São Miguel com os seus
Anjos jogaram no Inferno a Lúcifer
e seus sequazes. Portanto,
o resultado dessa batalha foi
lançar os vencidos na mansão
da desgraça incessante, total
e inexpiável, sabendo que eles
iriam ter esses tormentos por
toda a eternidade. Os anjos de
paz, que antes se amaram, cindiram-se
e os dois terços capitaneados
por São Miguel – eles, os
pacíficos, os filhos da Luz – quiseram
arrojar na mansão eterna
das trevas e da morte satanás
e seus anjos.
Flávio Lourenço
O Bom Pastor - Catedral de Nossa Senhora
da Assunção, Montauban, França
33
Luzes da Civilização Cristã
Gustave Doré (CC3.0)
zes se tornaram execráveis e hediondos.
Segunda: aqueles anjos que eram de paz,
de cordura, se transmudaram nos maiores
guerreiros que se possa imaginar. Terceira:
a mansão da paz se transformou num terrível
campo de batalha.
A força exercida contra os maus
por amor a Deus se torna sagrada
Entrada dos cruzados em Constantinopla
Usando sempre uma linguagem metafórica, imaginemos
a cena. São Miguel se levanta indignado, esplendoroso,
e brada com uma voz de trombeta que cobre, de
ponta a ponta, as vastidões celestes: “Quis ut Deus?” De
um lado, muitos Anjos se entusiasmam e aderem a ele,
constituindo as gloriosas hostes celestes. Mas, do outro
lado – onde talvez houvesse antes um esplendor maior,
pois os partidários eram capitaneados pelo mais perfeito
dos entes angélicos, aquele que trazia consigo a luz,
outrora a alegria do reino celeste, espelhando a Deus para
os outros anjos – encontra-se Lúcifer, medonho, rubro
de ódio e de cólera. Todas as paixões indignas se manifestam
nele; está cheio de inveja e de todos os outros
pecados capitais, na medida em que esses podem estar
em um anjo. O espírito revoltado encontra-se agora borbulhando
de ódio contra aquele Deus a Quem ele olhava
com amor.
A luz das hostes de São Miguel avança e a batalha começa!
Como terá sido esse embate? Como podem puros
espíritos, que não têm corpo, combater entre si?
O fato concreto é que houve três transformações a
partir da revolta de Lúcifer. Primeira: ele e seus sequa-
A partir desse momento, a violência nos
aparece sob outra cor. Se é verdade que,
considerada na simplicidade de sua figura
primeira, ela é hedionda, quando a vemos
ter origem na oposição a um anjo que se
tornou péssimo ao se revoltar, tentando ele
mesmo a violência contra o Criador, declarando
“non serviam – não servirei a Deus”,
então o uso da violência passa a ter uma
beleza especial.
Deus é supremo e absoluto, todos os direitos
valem na medida em que O servem.
A partir do momento em que esses anjos
se revoltaram contra Ele, opondo-se a todo
o direito, toda a ordem e toda a lei, perderam
o direito de estar no Céu, e o único
lugar proporcionado para eles era o Inferno.
Resultado: tornava-se necessário enxotá-los
para lá. A guerra surge, assim, como
um santo e glorioso dever.
O emprego da força, que pareceria tão contrário à
convivência entre os espíritos celestes, passa a ter um esplendor
peculiar: é o amor a Deus enquanto recusando o
mal e derrubando no Inferno quem é contra Ele.
Como nada pode tornar o espírito humano tão apreciável
e venerável quanto o amor de Deus, assim também
a força exercida por amor a Ele, chegando inclusive
à agressão, quando esta é destinada à defesa da glória
divina, se torna sagrada e resplandece com um brilho
especial.
Daí vem a noção do homem completo. Se lhe foi dada
a ocasião de atacar o mal e não o fez, ele pode não ter desenvolvido
a sua força de alma como era necessário. Assim,
entre dois homens muito virtuosos, um dos quais
pouco lutou na vida, enquanto o outro, de ponta a ponta
de sua existência, foi um guerreiro, qual aquele cuja personalidade
podemos apreciar melhor? Evidentemente a
daquele que, além de ter sido tudo o que o outro foi, ainda
combateu.
v
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 26/5/1984)
34
Samuel Holanda
São Miguel Arcanjo vencendo
o demônio - Museu do
Prado, Madri, Espanha
35
Publicação Mensal
Vol. XXIII - Nº 267 Junho de 2020
Sapiencial e Imaculado Coração
de Maria: garantia da vitória
Luzes da Civilização Cristã
Flor e glória da
Daniel A.
Cristandade - II
Gabriel K.
O cavaleiro era o varão católico
destinado a viver para o
emprego da força em defesa da
Cristandade. Piedoso, humilde,
generoso, previdente e casto, era
o terror dos maus e o encanto
dos bons. Seu amor a Deus e ao
próximo se exteriorizava pelos
modos de ser, que o tornavam
gentil, distinto, apreciador do
cerimonial. Tudo isso define
o perfil de quem, em nossos
dias, é contrarrevolucionário
do fundo da alma.
Ocavaleiro, tal como existiu na Idade Média, é o
varão católico apostólico romano destinado a viver
para o emprego da força em defesa da Cristandade.
Para melhor compreendermos esse papel do
cavaleiro, consideremos alguns dados históricos.
Um alicate gigantesco: mouros e bárbaros
Na Chanson de Roland – obra lendária, épica, mas
que retrata uma situação histórica –, chama-nos a atenção
e comove notar que se fala dos doze pares de Carlos
Magno com admiração, canta-se a glória deles como
sendo grandes guerreiros, mas não há uma referência
aos filhos do grande Imperador, pois estes eram uns son-
gamongas, incapazes de carregar o fardo glorioso do Império
que o pai deles tinha sabido estabelecer.
Resultado: a partir de sua divisão em três reinos, correspondentes
aos três filhos de Carlos Magno, iniciou-
-se o esboroamento do Império. Somava-se a isso a precariedade
das estradas, tornando tão difíceis as comunicações
entre o poder central e as grandes propriedades
rurais que, embora cada proprietário rural ainda obedecesse
teoricamente ao monarca, na prática constituía-se
à maneira de um reizinho do local. Assim, o Império se
esmigalhou, no sentido etimológico da palavra.
Consideremos que esse Império estava sob a pressão,
à maneira de um alicate gigantesco, das invasões dos
31
Luzes da Civilização Cristã
mouros, dos hunos e outros bárbaros. Portanto, assim
esboroado, tinha ainda que oferecer resistência a essas
hordas de invasores.
Consequentemente, os homens mais poderosos começaram
a construir, em torno de suas terras, muralhas para
abrigar sua família, seus trabalhadores, seu gado, suas
colheitas e, sobretudo, a capela com o Santíssimo Sacramento,
imagens e relíquias. Quando ouviam falar que, de
longe, vinha o adversário, todos se refugiavam atrás das
muralhas, de onde passavam a combater o inimigo.
À medida que o invasor encontrava em seu caminho
essas fortificações, ia se tornando enfraquecido. Ainda
quando não fosse esmagado diretamente, avançava mais
ou menos como um touro cada vez mais crivado de banderillas.
Em determinado momento, ele caía e morria.
Era um modo jeitoso de cada proprietário, defendendo a
si e aos seus, proteger a todos.
Constituiu-se, assim, uma situação singular: o proprietário
rural, que era como um fazendeiro de hoje, ficou
com a incumbência de construir as muralhas e dirigir
a guerra. Por conseguinte, deveria dar o exemplo sendo
o guerreiro por excelência que ia montado a cavalo,
de espada em punho; o mais corajoso tinha de ser ele.
Depois, vinham seus filhos e sua parentela. Só mais para
trás estavam os camponeses. Porque os primeiros do
lugar deveriam ser os primeiros na luta e no sacrifício.
Desta maneira, estabeleceu-se uma espécie de identificação
pela qual a classe dos proprietários rurais era
a dos guerreiros, dispostos a dar a vida por aqueles a
quem governavam. Sendo pequenos “reis” locais, eles
compunham a nobreza – o barão, o conde, o marquês –
sob a direção de outro “rei” maior, que era o duque, o
qual, por sua vez, estava sob as ordens do rei propriamente
dito. Constituía-se, assim, a hierarquia feudal.
Havia, portanto, uma classe dos homens mais ricos,
poderosos e nobres, que eram também os mais corajosos
e guerreiros, aos quais os outros deviam obediência,
mas os primeiros tinham uma dedicação como raras vezes
um pai possui em relação a seu filho. Era o equilíbrio
social estabelecido, com uma sabedoria extraordinária,
em função das condições militares e políticas do tempo.
Guerreiros descendentes de bárbaros,
mas civilizados pela ação da Igreja
Esses guerreiros eram descendentes de bárbaros como,
por exemplo, os germanos, cujo perfil os romanos deixaram
descrito para a História. Eram tipos louros de olhos
azuis, mas como quase todos sofriam de oftalmia, aquele
azul ficava banhado num mar de sangue das oftalmias mal
curadas, o que, juntamente com a melena loura suja, mal
cuidada, caída para trás, lhes davam um aspecto monstruoso.
Avançavam brandindo armas e se despejando em cima
das populações com uma ferocidade medonha, matando os
homens, despedaçando os cadáveres, quebrando objetos e
monumentos preciosos, tomando conta das cidades e reduzindo
os romanos moleirões a servos, de maneira que eles
– imundos e broncos – ficavam mandando nos homens cultos,
finos, numa inversão completa de valores.
Project Gutenberg (CC3.0)
Gabriel K.
32
Conta-se que, antes das batalhas, eles passavam a noite
no alto das montanhas bebendo e cantando para se adestrarem
para o combate. Ao amanhecer, desciam em hordas
silvando, uivando como bichos, com uma parte do corpo
nua e toda pintada, tendo amarrados por cima da cabeça
crânios de animais. Era o uso da força no que ela tem de
mais hediondo e brutal. Enquanto os homens desciam as
encostas da montanha, as mulheres ficavam em cima, bebendo
e cantando canções guerreiras para estimulá-los.
Os funcionários do Império Romano fugiam todos para o
Sul, onde os bárbaros ainda não tinham chegado. Havia, entretanto,
quem não fugisse: a Santa Igreja Católica Apostólica
Romana. Os padres e os bispos permaneceram em meio
à barbárie e começaram a converter os bárbaros nos quais,
após várias gerações de gente batizada, entrou a doçura de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Desses bárbaros batizados nasceram
os cavaleiros, herdeiros daquela força, daquele senso
da luta, daquele gosto pelo combate e pela aventura que,
quando bem entendidos, devem caracterizar o homem.
Por outro lado, uma vez convertidos, esses guerreiros se
tornaram verdadeiros artesãos da paz porque não empregavam
a força para fazer mal, mas a fim de se defenderem
do mal que os outros iam lhes fazer. E se promove a paz
quem não faz mal a ninguém, também é um promotor da
paz aquele que defende a ordem por meio da força, se necessário
for. Pois se, como vimos, a paz é a tranquilidade
da ordem, quando alguém luta para restabelecer a ordem e
a tranquilidade está defendendo a paz. Assim, quando em
seus castelos eles defendiam as suas populações, suas riquezas
honestamente acumuladas e, sobretudo, o Santíssimo
Sacramento, agiam enquanto guerreiros da paz.
Sendo a paz um bem, deve ser amada com amor maior
do que a paixão desregrada com que o celerado se entrega
ao mal; eles precisariam ser ardentíssimos defensores
da paz, guerreiros mais ferozes no combate pelo bem
do que os outros eram na luta pelo mal.
O perfil moral do cavaleiro...
Vai surgindo, assim, a figura do cavaleiro: um guerreiro
tremendo, que metia medo no adversário, mas sem ódio
individual. O verdadeiro cavaleiro católico não podia matar
por ódio pessoal. São Bernardo diz na regra dos Templários,
da qual ele foi o autor, que o cavaleiro deve ser sereno
e sem ódio individual, sem nenhuma dessas paixões
que degradam tanto o homem quando ele fica com os furores
do egoísmo; mas precisa ser terrível para fazer prevalecer
a ordem que o Criador quer na Terra, os direitos
de Deus contestados.
Por isso o cavaleiro, terror dos maus, é um encanto dos
bons. Termina a batalha, o cavaleiro volta para o seu castelo,
sua presença é a alegria de todos, porque ele afaga, é
bom, não é vaidoso, recebe as homenagens que lhe são devidas,
mas tem gosto de exaltar o valor dos outros: “Aquele
combateu muito bem... Fulano, você foi um herói, eu lhe
dou um título e tal parte de minhas terras...” Recompensas
aceitas pelos outros, não por egoísmo, mas por encantamento.
“Como é bom o senhor! Como ele é generoso!
Como é grande! Que encanto sua presença no castelo! Lá
fora ele era o terror, aqui é a flor do castelo!”
Então aparece outro lado do cavaleiro: herói por amor a
Deus, piedoso antes de tudo. Acaba a batalha, ele entra na
capela do castelo, ajoelha-se e dá graças por ter escapado
ileso. Agradece, sobretudo, por ter conseguido afugentar o
bárbaro ou o maometano e levar à vitória os fiéis, fazendo
brilhar a glória de Deus sobre o adversário. Diante de uma
imagem de Nossa Senhora, ele reza especialmente agrade-
Samuel Holanda
33
Luzes da Civilização Cristã
Arquivo Revista
cido, enternecido. Todos cantam juntos. Seria uma das maneiras
como se poderia imaginar a celebração da vitória.
No dia seguinte recomeça o trabalho. Todos já estão
saindo da fortaleza, levando para suas casas seus pertences,
as famílias vão se reinstalando, as mulheres retomam
seus afazeres domésticos, os homens voltam a cuidar da
agricultura. Enquanto isso, o castelão está tomando providências:
“A fortaleza ficou quebrada em tal ponto, devemos
consertar depressa, porque ninguém sabe quando
o adversário vem. Quantas armas perdemos? Precisamos
mandá-las refazer logo. A experiência atesta que tal arma
tem melhor efeito se elaborada de tal maneira...” Então,
ele dá ordem para fabricar as novas armas daquele modo.
Quando o castelo é grande, tem no seu interior uma
verdadeira aldeiazinha de carpinteiros, ferreiros e artesãos
que vão preparando todo o necessário para o próximo
combate. Porque o descanso é apenas a respiração entre
duas batalhas.
Vemos, então, mais dois traços do cavaleiro: ele é piedoso,
humilde, gosta de se curvar diante de Deus, é generoso,
sente prazer em dar, elevar os outros, dignificar
os talentos alheios, sua alegria está não em ser o único,
mas o chefe de gente que tem valor. Outro traço: ele é
previdente e já se prepara para a próxima guerra.
Tudo isso vai constituindo o perfil moral do cavaleiro.
Ele é doce, afável, bondoso, mas essa afabilidade, esse
amor cristão que o cavaleiro tem ao próximo se traduz
nas boas ações, como também nas boas maneiras,
que são o modo de exteriorizar a bondade interior. O cavaleiro
é gentil, distinto, trata as pessoas bem. Por ser
filho da paz, ele quer a ordem, e esta prescreve que cada
um seja tratado de acordo com a sua categoria. Assim,
o cavaleiro acolhe cada um segundo a respectiva ca-
Dr. Plinio em 1984
tegoria, mas quer que o respeitem. E se alguém lhe faltar
com o respeito, vem a repreensão e, conforme for, a punição.
É natural.
...define o perfil do autêntico
contrarrevolucionário
Em torno dele vai se constituindo um cerimonial, ao
qual gradualmente são incorporadas sua família e pessoas
dos outros castelos, que são como ele e com ele convivem,
e vão formando uma classe onde a educação é
mais excelente, o palavreado mais elevado, mais florido
e bonito, a distinção dos trajes e das maneiras floresce e
surge a cortesia, a distinção própria dos cavaleiros.
Essa classe não rebaixa as outras, ela vai subindo mais
ou menos como um balão que, ao elevar-se, fosse levando
toda a população consigo. A ascensão dos cavaleiros era
a ascensão da nação inteira. Com os cavaleiros, os outros
mais chucros aprimoravam a linguagem, a educação, iam
se cultivando e acabando de se desbarbarizar.
O cavaleiro era sinônimo de nobre? Todo nobre era cavaleiro,
e todo cavaleiro era nobre? Não era tanto assim. Concebiam-se,
numa situação excepcional, certos plebeus se tornarem
cavaleiros, bem como determinados nobres não serem
cavaleiros, mas não era o normal. A maioria dos cavaleiros
era nobre, e muitos dos plebeus que se tornavam cavaleiros
pela sua coragem ascendiam à nobreza. A fonte do recrutamento
da nobreza era principalmente a Cavalaria.
Temos, então, o sentido do cavaleiro em nossos dias. Por
que a palavra é tão respeitada, bela e significa tanta coisa?
É por ser esse tipo ideal do católico posto na sociedade
temporal e que tem como um dos traços mais preponderantes
de sua alma a combatividade, não a serviço de seus interesses,
mas de Deus, da Igreja, da Cristandade.
Ora, é isso que propriamente define
o perfil de quem, em nossos dias, é
contrarrevolucionário do fundo da alma.
Este é corajoso, terrível, admirável,
bondoso, gentil, acolhedor. Sua palavra
vale como escritura pública, porque
um cavaleiro não peca e, portanto,
não mente nunca. Ele é casto, porque a
impureza é o contrário da Cavalaria.
No cavaleiro reluziam
todas as qualidades do
verdadeiro católico
Na Idade Média, era normal que os
cavaleiros que não entrassem para uma
Ordem Religiosa de Cavalaria se casas-
34
sem. O cavaleiro era o homem
virgem que se casava com a dama
virgem; Cavalaria e virgindade
eram complementares. A
força dele era a do homem casto,
puro, não a do cafajeste frequentador
de botequins.
No cavaleiro reluziam, com
o brilho do aço, todas as qualidades
do verdadeiro católico.
Tanto quanto me lembre, os
meus primeiros encontros com
a Cavalaria foram saboreando
esta palavra, e compreendendo
que ela era como uma misteriosa
pedra preciosa que não brilhava
com a luz vinda de fora,
mas com um fulgor proveniente
de dentro. As palavras “Cavalaria”
e “cavaleiro” pareciam-me
ter em si mesmas uma beleza,
uma dignidade, uma distinção
extraordinárias. Eram como um
brilhante ou um rubi que rutilava
por si mesmo.
Nos remotos anos de minha
infância, usava-se a palavra
“cavalheiro” um pouco mais do que hoje, e ela teve um
importante papel em minha formação. Algumas vezes, recebi
de minha governanta a recomendação de ser um cavalheiro.
Por exemplo, fui educado junto com minha irmã e uma
prima, e com certa frequência fazíamos passeios a pé para
exercitar. As regras de educação, com vagos restos da
Cavalaria, prescreviam que o cavalheiro deveria dar atenção
e precedência à dama por esta ser mais frágil. E as
duas meninas, às vezes, deixavam cair alguma coisa.
Eu, perpetuamente distraído, começava por não notar
aquele objeto jogado no chão. Primeira repreensão
da Fräulein Mathilde: “Quem está com senhoras – imaginem
menininhas de quatro, cinco anos... – deve prestar
contínua atenção nelas para ver se não estão precisando
de qualquer coisa. É assim que age um cavalheiro. Você
não procedeu como um cavalheiro porque não estava
com sua atenção fixa nelas para saber que cortesia deveria
fazer. Agora vá e apanhe o objeto.”
Eu pensava: “Vai me dar menos trabalho apanhar esse
objeto do que brigar com essa alemã. Vou pegar para
não ter amolação.” Pegava e dava para a menina que o
tinha deixado cair. Mas a governanta continuava:
“Não senhor, sorria! Na hora de entregar, precisa
mostrar sua alegria por ter prestado serviço, sorria!”
Cerco de Antioquia - Biblioteca Nacional, Paris, França
Além disso, por
vezes as crianças tendem
a ser descuidadas
quando estão à
mesa, deixando cair
comida, o que não é
bonito. Quando isso
se dava, logo vinha
a recomendação:
“Cavalheiro não deixa
cair grãos de arroz, entretanto
se acontece recolhe-
-os não com seu dedo, mas
com uma colher...” E assim
tantas outras regras de
educação. “Cavalaria” foi
para mim uma palavra que
tinha um som de ouro, mas
batia como uma chicotada,
e isso me fez extraordinariamente
bem. v
(Extraído de conferência
de 26/5/1984)
Jean Colombe (CC3.0)
Flávio Lourenço
Cavaleiro Templário
Priaranza del Bierzo, Espanha
35
Fortaleza e bondade
a serviço da Fé
Luzes da Civilização Cristã
Samuel Holanda
Sacralidade,
renúncia e força
Pórtico da
Catedral de
Amiens, França
de impacto
O cavaleiro medieval era
fundamentalmente religioso,
persuadido de sua Fé e da
legitimidade, e até da obrigação,
de usar o máximo de força a
serviço da verdadeira Religião.
Imbuído da liceidade dos
meios que empregava, ele
se deu por inteiro à Causa
católica, estando disposto a ir
até o fim e a morrer por ela.
V
amos fazer algumas considerações em torno de
uma estátua que representa um guerreiro medieval,
ostentando uma faixa com a palavra
“Credo”.
Diálogo de increpação com quem
se encontra diante dele
É uma peça típica do século XIX. Em geral, as figuras
da Idade Média nada têm de teatral. Por exemplo, as
esculturas que ornamentam as catedrais, postas em ni-
31
Luzes da Civilização Cristã
Horace Vernet (CC3.0)
Château de Versailles (CC3.0)
Napoleão na Batalha da Ponte de Arcole
Galeria Christie’s, Londres
Marechal Michel Ney durante a Batalha de Hohenlinden
Galeria das Batalhas, Palácio de Versailles, França
Yavor Doychinov (CC3.0)
chos, estão para ser vistas, mas o artista teve a preocupação
de esculpi-las como se ignorassem os espectadores.
De maneira que não têm nada de teatral.
O século XIX foi o século do teatro, como o XX foi
o do cinema. Porque a arte teatral teve uma expansão
no século XIX fabulosa, como quantidade e importância
na vida concreta, em comparação com o século posterior.
Catedral de Colônia, Alemanha
Esse caráter teatral é o lado fraco não só da arte, mas
da mentalidade de todo o mundo no século XIX, inclusive
dos contrarrevolucionários.
Assim, esse guerreiro foi representado de maneira a
estar tomando posição perante outrem, num diálogo de
increpação com quem se encontra diante dele.
Por outro lado, o autor representou bem um lado admirável
da alma do cavaleiro medieval: enquanto guerreiro,
de tal maneira fundamentalmente religioso que,
visto de um aspecto, ele não é senão religioso e só se ocupa
com a Religião.
Ademais, está por inteiro persuadido de sua Fé e da
legitimidade, e até obrigação, de usar o máximo de força,
dentro das regras moralmente nobres da Cavalaria,
a serviço da verdadeira Religião. Ele está altamente imbuído
da legitimidade dos meios que emprega e se deu
por inteiro a essa Causa, disposto a ir até o fim e a morrer
por ela. Há, portanto, a meu ver, uma ideia de sacralidade,
de renúncia, de determinação e de força de impacto
extraordinária nesse guerreiro.
Se o comparamos com um guerreiro do século XV, notamos
como são profundamente diferentes. Entretanto,
o cavaleiro do panache 1 acrescenta algo que faltava ao
medieval, embora tenha havido uma defasagem em pontos
fundamentais.
Avançando nos séculos, poderíamos confrontar o cavaleiro
medieval com um guerreiro de Napoleão, e encontraríamos
diferenças ainda mais marcantes, por onde
se vê que a coragem não é apenas a determinação de
enfrentar o fogo e a morte, mas uma deliberação da pessoa
inteira de empreender qualquer coisa em qualquer
campo.
Um guerreiro de Napoleão fora da guerra poderia ser
mentiroso, ladrão, acovardado. Ney 2 , por exemplo, não
era obrigado a ser bravo e ter as virtudes militares na vi-
32
da civil, bastava possuí-las na vida militar. O medieval
não era assim. Esse modo como ele está aqui representado
é o mesmo pelo qual enfrenta qualquer outro perigo,
adversário ou dever. A guerra para ele é um estilo de vida;
para Ney é um estilo de luta. Na hora do combate, o
soldado napoleônico é o bravo, mas na vida civil é um sujeito
qualquer.
Sacral como uma torre de catedral
Um aspecto que me agrada especialmente nessa figura
de cavaleiro medieval é a suprema sacralidade. Ele
é sacral como uma torre de catedral, de uma sacralidade
que leva às mais altas considerações do espírito, misturadas
com muito bom senso. Não vejo esse predicado
nos guerreiros que vieram depois. No extremo oposto
disso estaria Dom Quixote, por exemplo. O medieval
não vai por cima de um moinho de vento, não tem perigo.
Entretanto, Dom Quixote manifesta qualquer coisa
que o medieval possui, mas não desdobrou. Por exemplo,
nesse cavaleiro da Idade Média o gosto da aventura
não se encontra. Está o senso do dever aceito por inteiro,
com uma determinação de alma completa, até admirável,
mas não se pode dizer que está alegre de ser guerreiro.
Não há aquela alegria específica da proeza, com a
qual a pessoa pega a espada, a lança e diz: “Afinal!”
Alguns tinham isso; a maioria, porém, ia para a guerra
porque era preciso, mas não se tinha chegado a destilar
aquilo que se destilou depois, isto é, o gosto da proeza
pela proeza. Contudo – aqui está o mal – deveriam
apreciar a proeza por ser ela um reflexo de Deus, mas
eles gostavam da proeza pela proeza por uma vaidade,
um esporte, e isto é errado. Não obstante, há um gosto
metafísico da proeza que eu encontro nos heróis da Reconquista
espanhola, mas vejo menos nas Ordens de Cavalaria.
A proeza enquanto tal é uma linda posição da alma,
que atinge essa beleza para se parecer com Deus,
seu Criador. Os pregadores, quando viram despontar o
amor da proeza, deveriam ter dito isto para canalizar
esse amor. Este cavaleiro, representado nesta estátua,
leu no compêndio que se deve morrer pela Fé e resolveu
cumprir seu dever de modo fabuloso; pode ser um santo,
mas não tem aquele élan que corresponde à alegria
de realizar essa proeza por ser boa em si, porque reflete
a Deus.
Nostalgia da proeza
Nessa outra representação o gosto da proeza está expresso
de modo bem mais explícito, porque se nota nesse
guerreiro montado a cavalo uma leveza que procede
de uma alegria interior, simbolizada até no modo de a
auriflama tremular ao vento, e na posição da lança; tudo
isso representa a alegria de atacar com todas as forças,
expondo-se ao risco. Os ornamentos do cavalo e do
Артур Орльонов (CC3.0)
Batalha de Grunwald, Polônia
33
Luzes da Civilização Cristã
Barneto, Vicente, il. (CC3.0)
consciência dos medievais. Seria um erro afirmar que
eles não possuíam esse espírito e essas qualidades. Tinham,
mas os homens de séculos posteriores souberam
exprimir melhor do que eles, por causa da nostalgia e do
contraste produzidos pela falta que sentiam dessas riquezas.
Isso aponta para um aspecto da tradição até agora
não considerado. Talvez a alma da tradição seja essa
lembrança sublimada, com lucidez, que é o melhor legado
que uma geração confere a outra.
v
(Extraído de conferência de 23/5/1974)
1) Do francês, em sentido figurado: galhardia, brio.
2) Michel Ney (*1769 - †1815). Comandante francês nas guerras
revolucionárias francesas e nas guerras napoleônicas, e
um dos dezoito Marechais da França instituídos por Napoleão
Bonaparte.
Dom Quixote
Luis de Madrazo. (CC3.0)
cavaleiro têm por objetivo nobilitar o estado
de proeza em que esse homem se encontra.
A viseira erguida indica o desafio
ao risco.
A iconografia do século XIX representou
muito mais o cavaleiro na guerra do
que os próprios medievais representaram.
É mais uma prova de que eles não tinham
sabido ainda explicitar toda a beleza
da proeza que possuíam. Os heróis que
realizaram as proezas não tiveram tanto a
ideia do pulchrum da proeza quanto o século
da burguesia com saudades da proeza,
e que soube cantar o que os outros possuíam.
A partir desse fenômeno poder-se-ia
afirmar um princípio: o século que perdeu
uma determinada qualidade e a considera
com nostalgia, embora já não possua esse
predicado, tem dele uma noção mais definida
do que aquele que o possuiu. Essa
nostalgia não é um elemento de fantasia,
mas de definição.
Então, há uma pós-Idade Média baseada
na História, mas vista por nós de
um modo que não estava inteiramente na
O Rei Dom Pelayo em Covadonga, durante a Reconquista
Espanhola - Museu do Prado, Madri, Espanha
34
35
Luis Samuel
Publicação Mensal
Vol. XXIII - Nº 269 Agosto de 2020
Rainha misericordiosa
e triunfante
Gerd Eichmann (CC3.0)
Apóstolo do pulchrum
Baldaquino
das Relíquias
Sainte-Chapelle,
Paris, França
Visão de conjunto
do verum,
bonum e pulchrum
A Idade Média tendia para pulcritudes que se fundiriam
numa só ordem grandiosa apontando para o Reino de
Maria. O Humanismo procurou provocar sensações
meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo ao
homem uma falsa felicidade nesta Terra. Desse conceito
errado de felicidade deriva todo o desabamento tortuoso
pelo qual precipitou-se o mundo contemporâneo.
Um homem privado inteiramente de qualquer
forma de pulchrum, mesmo das mais modestas,
pereceria primeiro se deformando, depois definhando
em sua personalidade. Levaria uma vida tão arrastada,
tão difícil, tão inconveniente de ser vivida que
equivaleria quase a uma morte.
O homem tem necessidade do pulchrum
Pode-se realizar bem isso imaginando o que se conta
a respeito do Delfim de Luís XVI e Maria Antonieta,
na prisão do Templo. Murado vivo, nunca se limpando,
se lavando, não tendo ar livre, perpetuamente na escuridão,
sem interlocutor, recebendo a alimentação – po-
de-se imaginar que comida e que bebida... – por meio de
uma dessas rodas junto a uma porta, e o resto do tempo
completamente isolado.
Era um ente inteiramente privado de pulchrum. Dir-
-se-ia que o mais terrível era estar privado do afeto paterno
e materno. Isso é evidente, e é nocivo no mais alto
grau. Porém ainda que recebesse demonstrações desse
amor, se ele não tivesse algum contato com uma realidade
sensível bela, por exemplo, jamais visse o pai e a mãe
– apenas tomasse conhecimento de bilhetes que lhe mandavam,
porque estavam proibidos de entrar –, ele teria
a noção da perseverança do afeto de seus pais, mas isso
não bastaria. Precisaria ter algo de belo.
32
Absolutamente falando, a necessidade do pulchrum
não é como a do ar, sem o qual a pessoa morre, mas é a
que conduz a uma situação quase intermediária entre o
estar vivo e o estar morto.
No campo doutrinário, há aqueles que, ao ensinarem
o tomismo, embora não afirmem claramente, insinuam
que para compreender bem o pensamento de São
Tomás é preciso afastar o pulchrum de qualquer cogitação
e pôr-se numa atitude onde só joga o raciocínio. Isso
é completamente falso e antitomista.
Tudo o que é verdadeiramente
belo favorece a virtude
O trecho sobre Maria Antonieta, do historiador inglês
Edmund Burke que tivemos ocasião de comentar 1 , tem uma
beleza inegável. Porém, trata-se de um pulchrum moral.
Tudo aquilo que é autenticamente belo, de si, favorece a
virtude. Não me refiro, é claro, a uma obra de arte esteticamente
bonita, mas imoral, a qual em seus detalhes poderá
despertar lubricidade. Essa é uma outra questão. Mas
se uma obra de arte é verdadeiramente bela, ela desperta a
pureza, porque a inocência se compraz com a beleza.
O pulchrum moral da Contra-Revolução está no fato
de que tudo quanto ela diz e quer, os caminhos por ela
trilhados têm um aspecto de beleza, do contrário não seria
Contra-Revolução. Entretanto, a natureza dessa beleza
varia muito. Por exemplo, Godofredo de Bouillon
galgando as muralhas de Jerusalém, tomando conta da
cidade e dirigindo-se ao Santo Sepulcro, seguido por
seus guerreiros, tem uma beleza de arrepiar. É uma ação
de caráter religioso-moral, tanto mais moral quanto é
religiosa, e possui um pulchrum
duplo: é a beleza do
estabelecimento de uma ordem
e da destruição da desordem
que se opunha a essa
ordem.
Na Idade Média, o pulchrum
não era tomado apenas
em uma determinada
linha. Explico-me tomando
como exemplo um nome
que exprime uma certa ideia
de pulchrum moral: Ricardo
Coração de Leão. Refiro-
-me exclusivamente ao nome,
pois o personagem não
valia nada. O rugido do leão
tem sua majestade, sua beleza.
Um homem que se chama
Coração de Leão dá a
entender que ele quer ter essa coragem. E como ele era ligado
ainda ao ambiente medieval, pensa-se num homem
da Idade Média que tem coração de leão. Ora, fica muito
bonito para um medieval ter coração de leão.
Mas o pulchrum medieval não consistia apenas em tomar
um conceito assim – homem com coração de leão
–, mas em uma ideia sintética da colaboração de todas
as belezas para a constituição de uma resultante da soma
de todos as pulcritudes, a fim de causarem ao mesmo
tempo uma impressão única que seria quase uma visão
sensível do belo enquanto belo, de uma beleza metafísica.
É propriamente o que medieval procurava, por exemplo,
com aqueles vitrais da Sainte-Chapelle. Aquilo é uma
sinfonia de cores onde cada nota tem seu efeito para produzir
não apenas um bonito lilás ou vermelho em tal caquinho
de vidro; isso existe e teríamos vontade de mandar
fazer uma capela só com tons daquele vermelho ou
daquele lilás. Porém o que fica no espírito humano de
ideia e de sensação viva do pulchrum é o que decorre da
coexistência e da coordenação de tudo isso junto.
Engana-se, portanto, quem pensa que são os vitrais o
que há de mais bonito na Sainte-Chapelle. O mais belo é
uma espécie de arquicor aparentemente incolor ali existente,
como se estivéssemos num líquido composto de todas
aquelas cores ao mesmo tempo. É o sublime da beleza
da Sainte-Chapelle.
Ordem grandiosa que apontava
para o Reino de Maria
Em geral, a Idade Média tendia para sínteses gigantescas
dessa natureza, em que pulcritudes de vários ti-
Batalha de Ascalon na qual um dos líderes foi Godofredo de Bouillon
Gustav Dore. (CC3.0)
33
Apóstolo do pulchrum
Arquivo Revista
pos, de si, já constituíam pirâmides de belezas particulares,
fundindo-se numa só ordem grandiosa que apontaria
para algo – que o medieval não sabia, mas que seria
o Reino de Maria – onde tudo fosse de uma harmonia
arquetípica, desde a ordenação das ruas até a plantação
das árvores, à maneira do Céu empíreo, e as pessoas
se sentissem envoltas por tudo isso junto e, prelibando
o Paraíso, dariam um brado de contentamento: “Ó
beleza! Ó alegria!”
Isso nos dá uma ideia do coração humano reto que
procura, já nesta Terra, uma forma de felicidade ordenadíssima
que produz a suma felicidade.
A Revolução – sobretudo no seu começo nascente no
fim da Idade Média, no Humanismo – procurou provocar
sensações meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo
ao homem a felicidade nesta Terra se ele procurasse
qualquer desses prazeres isoladamente e fizesse
disso o campo da sua felicidade. A promessa era: “Goze
disso e de várias coisas assim à vontade, mas não constitua
uma síntese, porque a síntese o tirará da realidade!”
Eis a grande mentira. Desse conceito errado de felicidade
deriva todo o desabamento tortuoso pelo qual nos
precipitamos onde estamos.
A verdadeira felicidade
Para o medieval, a noção de felicidade consistiria na
tendência contínua para o verum, bonum, pulchrum.
Não se pode conceber um homem que procurasse o
pulchrum o tempo inteiro e não buscasse, nas devidas
proporções, também o verum e o bonum, até mesmo um
artista. Evidentemente, ele não os procuraria separadamente,
mas teria a visão de conjunto do verum, bonum e
pulchrum de sua obra de arte.
Se bem que essa visão global dê a verdadeira felicidade
nesta Terra, é necessária muita retidão para a pessoa
querer tê-la. Por isso ela horripila o homem moderno,
mas extasia o verdadeiro católico, embora este se encontre
carregado de cruzes. Eu quase ousaria dizer que
extasia no sentido místico da palavra. Isso porque a sede
da contemplação, e o fato de encontrar-se dessedentado
somente na medida em que se realiza a contemplação,
corresponde a uma primeira graça que a pessoa recebe
de um modo germinativo, um primeiro toque, com a
inocência. O mundo atual está feito para excitar no indivíduo
o abandono disso para se jogar nos prazeres fragmentados.
Antigamente os transatlânticos procuravam realizar
isso. Eram palácios flutuantes onde a todo momento
se oferecia um pequeno prazer. Então, salões magníficos
nos quais garçons serviam sorvetes, bebidas, sanduiches,
etc. Num desses salões se tocava música, em outro
tinha jogo, noutro havia não sei o quê...
No tombadilho ficavam dispostas umas cadeiras espreguiçadeiras
anatômicas, idealmente cômodas, com
colchão de revestimento macio, enfim, tudo era mole. E
quando a pessoa se encontrava inteiramente à vontade,
vinha um empregado que fazia um salamaleque e oferecia,
numa bandeja, refrescos segundo o gosto do cliente,
que bebericava aquilo enquanto olhava o esplendor
do mar.
Ficava subjacente a ideia de que viver num navio desses,
ou num mundo todo ele feito de uma soma justaposta
de sensações agradáveis, era a própria definição de felicidade.
Ora, eu, que por temperamento e modo de ser tenho
uma enorme tendência a apreciar essas coisas e a procurar
nelas a felicidade, estou certo de que, quando tivesse
me saciado com tudo isso, dar-me-ia conta de haver em
mim um vazio que essas delícias não preencheram, mas
se eu entrasse na Sainte-Chapelle, diria: “Encontrei a felicidade!”
v
(Extraído de conferência de 21/8/1994)
Dr. Plinio em 1994
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 268, p. 12-18.
34
Saint-Chapelle
Joe deSousa (CC3.0)
Luzes da Civilização Cristã
The Bridgeman Art Library (CC3.0)
Luís XIV e a
respeitabilidade
Luís XIV - Museu
de Belas Artes,
Tournai, Bélgica
Durante a Revolução Francesa, a turba
revolucionária violou os sarcófagos dos reis
para roubar as riquezas com que estavam
sepultados e profanar seus restos mortais. Ao
abrirem o esquife de Luís XIV, seu cadáver
possuía tal majestade que o populacho
recuou. A verdadeira respeitabilidade produz
estes dois efeitos: a veneração de quem
admira e o ódio de quem se revolta.
Luís XIV era um homem imensamente
majestoso que realizava uma mistura
muito feliz de duas nobilíssimas dinastias:
a mãe dele era Habsburg e o pai, Bourbon.
Aliás, duas nações – Áustria e França –
cujas qualidades se equilibram muito.
Elegância francesa e
grandeza espanhola
Royal Collection (CC3.0)
swbexpo.bsz-bw.de (CC3.0)
É bonito notar que a História francesa, depois
da Idade Média, divide-se em etapas segundo
a influência que sobre a França exerceu
os países próximos. Assim, houve durante
a Renascença o período da influência italiana,
que marcou toda a arte francesa; depois
tivemos o período da influência espanhola,
com a penetração de temas espanhóis
na literatura francesa, fenômeno do qual
encontramos um sinal muito marcante em
Corneille 1 .
Luís XIII da França (Coleção Real, Londres, Inglaterra) e Ana da Áustria
(Museu Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe, Alemanha), pais de Luís XIV
32
Felipe II
Museu Internacional do
Barroco, Puebla,
México
Luís XIV reunia à elegância do francês algo
da solenidade compassada e majestosa
do espanhol. A coexistência da elegância
francesa com certa grandeza espanhola
explica exatamente o que esse monarca
tinha de solar.
Isso uma vez explicitado, sente-se
em Luís XIV qualquer coisa de Felipe
II, o rei que de tal maneira incutia
respeito que, em geral, quando as
pessoas vinham à sua presença, ele
precisava tranquilizá-las, dizendo:
“Sosegaos” 2 . Creio que isso era dito
com uma voz tão majestosa, que
a pessoa não ficava muito mais sossegada…
Acrescentem a essa majestade
a graça francesa e compreenderão
como daí só poderia sair uma verdadeira
obra-prima. Esta foi Luís XIV.
Durante a Revolução Francesa, a
turba revolucionária violava os sarcófagos
dos reis para roubar as riquezas com
que estavam sepultados, e se vingar deles
profanando seus cadáveres e jogando-os em
uma vala comum, em meio à cal para serem consumidos,
pois, devido a um sistema muito eficaz de embalsamamento,
vários desses corpos mantinham-se conservados
por muito tempo.
Ao chegarem ao esquife de Luís XIV, abriram-no e se
depararam com seu cadáver enegrecido, o qual possuía
tal majestade que o populacho, ao invés de se atirar em
cima como fizera com todos os outros, teve um suspense
e recuou um pouco. Portanto até depois de morto o Rei-
-Sol impôs respeito. Depois, recuperados
do impacto, os revolucionários
ficaram furiosos, avançaram, arrancaram
o corpo de dentro do caixão e
lançaram-no na vala comum.
Poder-se-ia dizer que o respeito incutido
por Luís XIV em seus contemporâneos
provinha do fato de ser ele
um monarca absoluto de quem dependia
o futuro de muita gente e, por
isso, metia um certo medo nas pessoas
que o reverenciavam por interesse.
Ora, aqueles facínoras sabiam
perfeitamente que estavam diante de
um cadáver, tinham aberto a sepultura
e não podiam absolutamente esperar,
supor ou recear que um rei morto
fosse capaz de qualquer vingança
contra eles. Logo, a impressão de respeito
provocada pelo monarca nessa ocasião
não tinha nenhuma relação com interesse,
ambição ou temor, e explica melhor a respeitabilidade
irradiada por ele em vida.
Efeitos produzidos pela
verdadeira respeitabilidade
O que é essa respeitabilidade a
qual um homem irradia em torno de
si a ponto de até os malfeitores que
vão estraçalhar o seu cadáver se detêm
um instante, e depois, por ódio à
respeitabilidade, profanam esse cadáver
mais do a todos os outros? De fato,
a verdadeira respeitabilidade produz
estes dois efeitos: a veneração de
quem admira e o ódio de quem se revolta.
A própria majestade de Deus causava
sobre os espíritos angélicos esse duplo
efeito. Satanás e os dele se revoltaram, enquanto
São Miguel e seus Anjos admiraram.
Então, o que vem a ser essa respeitabilidade se,
como vimos, se trata de um sentimento de inferioridade
motivado pelo medo ou pela ambição?
É, por certo, a irradiação de uma superioridade, mas
não de uma superioridade qualquer, precisamente porque
ela é irradiada pela pessoa e não incutida por algo
que se sabe a respeito dela.
Tomemos, por exemplo, Pasteur. Ele foi indiscutivelmente
um grande sábio, um cientista que fez invenções geniais
de uma grande utilidade para o gênero humano. Qualquer
indivíduo que não tivesse o senso moral completamente ob-
Luís XIV recebe Mehmet Riza Beg, embaixador do Xá
Tahmasp II - Palácio de Versailles, França
Flávio Lourenço
Gabriel K.
33
Luzes da Civilização Cristã
château de Versailles (CC3.0)
Luís XIV - Museu de História da França,
Palácio de Versailles, França
tuso, sabendo estar tratando com Pasteur, sentiria respeito.
Contudo esse respeito vinha da constatação de seus feitos e
não de uma irradiação de sua personalidade.
Outro exemplo, o Marechal Foch. Sua figura nunca
me pareceu irradiante de respeitabilidade. Se eu o visse
andando à paisana num ônibus qualquer, meu olhar não
se deteria nele nem um minuto, mas se o reconhecesse,
pensaria: “O grande Marechal Foch, vencedor da Primeira
Guerra Mundial!”, e lhe prestaria todo o respeito.
Para dar um exemplo nacional, cito Santos Dumont.
É inegável que ele proporcionou um importante avanço
na Ciência ao inventar a dirigibilidade do avião, pelo
que merece um lugar saliente na consideração das pessoas.
Entretanto quem vê sua clássica fotografia, com
aquele chapelão, não exclama: “Como sua personalidade
irradia superioridade!” Porque não irradia.
Esses exemplos correspondem, sem dúvida, a uma
respeitabilidade autêntica e muito alta, mas incutida pelo
mérito do sujeito e não irradiada por sua personalidade.
Portanto, não é uma respeitabilidade proveniente do
homem inteiro, mas de uma zona de sua alma, de uma
capacidade. A respeitabilidade de Luís XIV, ao contrário,
vinha de sua personalidade e irradiava dele inteiro.
Analogia com a visão beatífica
Então, em face do conceito segundo o qual há uma
forma especial de superioridade que irradia, o que é essa
superioridade?
Em certo sentido, o corpo é o símbolo da alma, e as
propriedades da alma irradiam através dele quando
a pessoa possui certos gêneros de atributos num grau
muito alto, por onde ao ver o aspecto físico de alguém de
alguma maneira se discerne a alma, e se nota, de modo
espiritual, uma realidade que fica por cima da realidade
física. Assim, percebe-se a respeitabilidade na alma.
Trata-se, pois, de um discernimento que vai além do
olhar, e corresponde a um bem de ordem espiritual percebido
através da consideração dos aspectos físicos. Olhando
para a face de Luís XIV, percebo simbolicamente um
bem de sua alma, a majestade de um rei no sentido pleno
da palavra. Assim, através das aparências sensíveis,
apreendo realidades espirituais que os sentidos não atingem,
mas transparecem nos aspectos físicos.
Quem vê o fenômeno espiritual dessa aparência de uma
qualidade moral num homem acaba adquirindo uma ideia
do que é, em si mesma, essa qualidade moral. Mas não é
uma noção oriunda de uma definição; é uma ideia, por assim
dizer, apalpada e sentida. Por mais que alguém definisse
num dicionário ou tratado de Moral o que é majestade,
não teria a noção de majestade que se teve vendo Luís XIV
e, mediante suas feições físicas, a alma do Rei-Sol.
Apalpar assim uma coisa que, entretanto, é abstrata,
leva a outro passo que conduz a Deus. Porque d’Ele não
podemos dizer apenas que é majestoso, mas devemos
afirmar que é a Majestade, pois Deus não somente possui,
mas é as qualidades. De maneira que Ele não é bom,
mas a Bondade; não é sábio, e sim a Sabedoria.
Por conseguinte, se olhando para um homem vi nele a
majestade de sua alma e, através dela, formei uma ideia
do que é a majestade em abstrato, considerada em seu
modo absoluto, eu adquiri algo que tem certa analogia
com a visão beatífica. De fato, mesmo sem explicitar, em
Luís XIV algo da majestade de Deus foi vista.
Isso nos explica
porque aqueles
bandidos recuaram
quando viram
o cadáver de Luís
XIV. Sempre que
um atributo bom e
digno da alma de
um homem aparece
com tanta intensidade,
a ponto
de provocar um
pasmo, uma surpresa,
um entusiasmo,
um enlevo
ou um sentimento
de veneração recolhida,
há uma
transparência de
Alberto Santos Dumont
Museu Paulista da USP (CC3.0)
34
algo de divino. É o modo pelo qual se chega a conhecer a
Deus pela quarta via indicada por São Tomás de Aquino.
Alguém poderia objetar: “Mas, Dr. Plinio, Luís XIV
não foi um grande pecador?”
Em primeiro lugar, do pecado a que aludem ele se penitenciou
e passou seus últimos vinte anos como um homem
de vida ilibada, modelar. Mas não é propriamente
o que vem ao caso, pois assim como uma pedra ou um
animal pode lembrar a Deus, por alguns lados o pecador
portador de uma tradição católica enquanto tal também
pode recordar a Deus. Por exemplo, um pai que, embora
se encontre em estado de pecado mortal, trata seu filho
carinhosamente, pode lembrar a Deus enquanto o Pai
carinhoso. De maneira que essa seria uma objeção infantil,
a qual podemos descartar.
Modalidades de majestade:
paternalidade e ímpeto para destruir
bem, ela deve se manifestar sob a forma de uma afinidade,
uma adesão, uma homogeneidade e um desejo de ajudar,
socorrer, salvar aquele bem comprometido pelas influências
contrárias que ali existem.
Em sentido oposto, a majestade que encontra uma resistência
empedernida e é insultada, por amor à ordem
que representa ela deseja esmagar. Temos, assim, as duas
modalidades de majestade.
Vemos isso de modo infinito e paradigmático em Nosso
Senhor Jesus Cristo: infinitamente manso, ensinando
que se deve ser manso e humilde de coração, mas de outro
lado, em alguns episódios da vida, incutindo um assombro
que deixava as pessoas sem saber o que dizer, como
aqueles canalhas que foram prendê-Lo e caíram com
a cara no chão, simplesmente pela afirmação: “Sou Eu!”
Era a manifestação da infinita majestade d’Ele. v
(Extraído de conferência de 23/3/1973)
Concluo com uma consideração a respeito da majestade.
A verdadeira majestade, colocada diante da boa vontade
de quem é menor, se traduz em paternalidade e tem
vontade de proteger; posta
diante da resistência de
quem é ruim, ela se traduz
num ímpeto para destruir.
Em tese, ambas disposições
se complementam
e se explicam por
um mesmo fundo, porque
o próprio da majestade
não é ser grã-fina, elegante,
mas é ter a supereminência
do bem. Quem a
possui deve amar todos os
graus que essa supereminência
inclui. Consequentemente,
precisa amar todas
as menores e mais débeis
formas de bem que
possam estar exiladas
numa alma, ainda quando
esta tenha muitos defeitos,
pois, do contrário,
a majestade mentiria a si
mesma.
Ora, não é a majestade
e sim a iniquidade que
mente a si mesma. Logo,
percebendo qualquer
pequena modalidade de
1) Pierre Corneille (*1606 - †1684). Dramaturgo francês, considerado
o fundador da tragédia (estilo de drama) francesa.
2) Do espanhol: sossegai-vos.
O beijo de Judas - Museu de São Marcos, Florença, Itália
Fra Angelico (CC3.0)
35
Luzes da Civilização Cristã
ToucanWings (CC3.0)
Geometria e
assimetrias
Jardins do Palácio
de Versailles
harmônicas
No jardim francês há uma arte altamente geométrica no conjunto,
porém cheia de assimetrias harmônicas e encantadoras nas
suas minúcias, o que gera uma beleza expurgada de socialismo.
Como será o equilíbrio dos arrojos e das inimagináveis
serenidades da arquitetura do Reino de Maria?
Eu gosto muito do jardim francês, mas tenho reservas.
Em minha primeira visita a Versailles, sendo
já adulto, alguns dos que me acompanhavam começaram
a elogiar o palácio, dizendo que tinha superado a
Sainte-Chapelle. Passei todo o tempo discutindo com eles.
O princípio da pluralidade de perspectiva
Eu sustento, naturalmente um pouco na surdina, que
as grandes perspectivas tendem ao socialismo.
Nesse sentido, o Escorial um pouco desola, não tem o
calor da vida: há algo de absolutismo.
Champs-Élysées, por exemplo, tem uma única superperspectiva
e o resto não significa nada. Na construção
medieval, pelo contrário, uma coisinha tem sua perspectiva,
o que é a imagem da sociedade orgânica, sobretudo
composta de sociedades pequenas. Isso porque na arquitetura
medieval há uma figura do universo constituído
sobretudo de homens que valem por si, por Deus, e dos
quais cada um tem sua perspectiva individual. Quer dizer,
há um ensinamento muito grande, lúcido e luminoso
dentro disso, que não devemos perder de vista.
Uma arte que levou quase até ao delírio a exploração
das pequenas perspectivas, mas alcançou triunfos, é a
japonesa. Jardinzinho que tem uma pontezinha, embaixo
tem que criar só uma florzinha, onde passa um rio
que quase não se move, é um espelho. Aquilo pede que se
pare e veja. O jardim japonês não é como o francês que
você olha e… é inteiramente o contrário. Ele é feito de
recantinho e de surpresinhas, que é uma coisa diferente,
e isto é, a meu ver, um dos elementos mais felizes do ponto
de vista de refutação do renascentismo: é o princípio
da pluralidade de perspectiva. Deve haver também grandes
perspectivas, entretanto, é a Igreja Católica que indica
verdadeiramente como é uma perspectiva grandiosa,
mas orgânica.
Geometria como elemento de
beleza no jardim francês
Se formos nos ater até o fim ao princípio que eu acabei
de dar, chegamos à exclusão da geometria de dentro
da arte, e isto me pareceria um exagero. Seria preciso saber
entender qual a razão de ser do jardim francês, da
geometria como elemento de beleza expurgado de socialismo.
Eu estou falando da geometria dos todos geométricos.
O socialismo é geométrico.
32
Refiro-me à geometria dos conjuntos. Por que um
conjunto não pode ter uma grande geometria? É claro
que pode, eu formulo a pergunta com objeção.
Tomemos, por exemplo, o carro de gala dos Habsburgos.
Todo pintado, uma coisa fabulosa. Imaginemos este
carro andando numa cidadezinha medieval com aquelas
ruelas, não vai. Pelo contrário, imaginemos o carro
desfilando numa avenida de Versailles. Ali teríamos longo
tempo para vê-lo vir e para estudar todas as mil belezas
que ele tem. Vejam como a geometria exige um décor
geométrico.
Então, eu seria levado a perguntar se não poderíamos
pensar ao revés: uma arte com um conjunto nada geométrico
e cheia de pequenas perspectivas com geometria
própria; ou também uma arte altamente geométrica no
conjunto e dentro cheia de assimetrias harmônicas e encantadoras.
O espírito francês, até certo ponto, constituiu esta
síntese: o jardim é geométrico em tudo, mas o francês
introduziu formas curvas que o grego não admitia – já é
um elemento de progresso – e um jogo de cores que não
são simétricas, e esse colorido quebra a monotonia.
Nasce aqui um problema delicado: se um colorista de
gênio pintasse a fachada de Versailles, ela não ganharia
em beleza? Então nos perguntamos se naquilo se exprime
inteiramente o espírito francês ou se não há uma espécie
de imolação ao paganismo clássico. É um clássico
que está matando os católicos? Poderíamos imaginar
um clássico ressuscitado pelos católicos? O jardim de
Versailles depõe a favor.
Um ornamento de Versailles:
as pessoas que ali viviam
Para aquelas pessoas aquilo foi feito ao contrário da arte
grega. Esta foi elaborada por um especulador que, sentado,
inventou uma fórmula, e nem um pouco por um povo,
como o francês. A arte do Palácio de Versailles parece
brotada do chão.
Não é para qualquer povo que a arte grega ficaria
bem. Versailles fica bem para o francês, porque este é
um bibelô que dá vida e compensação ao palácio. Sem o
francês, aquilo tudo ficaria sem graça.
Imaginemos, por exemplo, uma série de Grandes de
Espanha saindo de Versailles em passo cadenciando,
vestidos de preto. Não teria graça. Aquilo é feito para o
sorriso francês, para uma porta daquelas estar aberta,
ouvir-se um cravo tocando dentro, minueto na Galeria
dos Espelhos; é feito para um povo que vive em guirlandas.
A definição de guirlanda é: grupo de franceses.
A ordem perfeita entre os homens exprime-se a partir
da pessoa e não das grandes construções, o que é pessoal
se exprime muito mais do que é coletivo, não tem dúvida.
Com efeito, em Versailles está presente um conceito
de bem comum diferente do conceito não expresso, mas
meio implícito nos tratadistas de Direito Natural daquele
tempo, segundo o qual o bem comum se refere mais a
um todo abstrato, não concebido em função dos indivíduos,
do que ao conjunto dos indivíduos.
O equilíbrio e a truculência
no Reino de Maria
Seria muito interessante pensarmos qual é o perfil
moral do homem que aderiu a tudo isso, o que daria um
pouquinho o perfil moral das pessoas no Reino de Maria.
Para resolvermos a questão devemos
considerar as pessoas que tinham
Versailles por quadro. Quer
dizer, as liteiras, as marquesas, as
reverências, os bibelôs, os tapetes, a
música, os cristais... Imaginem se de
Versailles saíssem gregas com aquelas
caras das cariátides! Eu pergunto
se as pessoas vestidas com roupas
coloridas, éclatantes sem serem berrantes,
não constituíam um ornamento
que dava vida à corte. Notamos
isso, por exemplo, em descrições
como esta: “Monseigneur le Duc d’Orléans
apareceu com traje azul claro e
alamares prateados…”
O jardim de Versailles, portanto,
não deveria ser menos geométrico.
Palácio de São Lourenço do Escorial, Espanha
Gabriel K.
33
Luzes da Civilização Cristã
Por exemplo, eu tenho uma teoria que mal ouso esboçar,
que é a da harmonia entre o equilíbrio e a truculência
no Reino de Maria. Primeiramente é preciso considerar
que a palavra truculência é empregada num sentido
tão pejorativo que eu preciso defini-la antes.
Tomemos a Catedral de São Basílio, na Rússia, como
exemplo. Não se pode negar que aquilo é uma coisa
truculenta. Em que sentido? Ela se levou a si própria às
últimas consequências de si mesma, com um arrojo no
qual ela não negou nada, porque não rompeu com nada
do que ela não deveria romper. Ela tomou algo e levou ao
último arrojo de si própria, à última radicalidade. Não é
uma exacerbação desequilibrada.
Tenho a impressão de que o Reino de Maria, por ser a
última época da História e por dever capitular todas as
perfeições anteriores – não à maneira de soma, mas com
qualquer coisa de novo –, precisará ter nesse sentido
uma afirmatividade superarrojada e superequilibrada.
Então, poder-se-ia perguntar, na linha do verum, do bonum
e do pulchrum, qual é essa luz especial do Reino de
Maria, feita de inimagináveis serenidades e borbulhâncias
à gêiser. Em outros termos, constituída de continuadores
fabulosos e de espírito de aventura como nunca ninguém
teve; de simetria de perspectivas individuais bem
calculadas e de conjuntos fabulosos, mas onde todos os
extremos das linhas são de uma riqueza tal que o indivíduo,
se não olhar para um outro extremo, desmaia.
Nossas almas precisavam ser dilatadas para isso a
fim de encontrarem completamente a sua expressão.
Tenho a impressão de que alguma coisa assim seria o
maior equilíbrio que se poderia imaginar, porque envolve,
dentro do mesmo conjunto, os equilíbrios mais arrojados,
os arrojos na aparência menos equilibrados.
Necessidade de varões com abertura
de alma para o infinito
Nessa linha, uma vez que o erro e o mal foram tão
grandes, ou o verum, o bonum e o pulchrum se reerguem
incomparavelmente maiores, ou falta qualquer coisa
nessa simetria.
Desceu-se mais fundo do que era alto o ponto onde se
tinha subido e, portanto, ou se subirá mais alto de onde
se tinha descido ou não tem nada feito. Deve ser o mais
alto grau, de modo que humilhe o mal na proporção em
que o ele humilhou o bem, pelo menos.
O resultado é abertura para o infinito, o epílogo grandioso
da História da Igreja. Então, dois mil anos de Santos,
Doutores, Mártires, de Confessores; também de
abandonos, de traições, ciladas, tudo chega a um determinado
momento em que Nossa Senhora intervém e
constrói o Reino d’Ela. Isto só se desata se houver varões
que sejam e pensem assim.
Tenho a impressão de que, a partir do momento em
que isto se desse, muita coisa se acertava, porque há
muitas almas que gemem e até encontram-se em crise
por não lhes ter sido dada ainda essa figura inteira. Toda
criatura geme e espera essa manifestação.
Claude-Guy Hallé (CC3.0)
Reparação feita a Luís XIV pelo Doge de Gênova
Francesco Maria Lercari Imperiale, 15 de maio
de 1685 - Coleção do Palácio de Versailles
34
Сергей Коровкин 89161230044 (CC3.0)
Catedral de São
Basílio, Rússia
O espírito católico está exausto de
ser apresentado como fraco
Por essa razão, parece-me que algo deveria vir, manifestar-se
de maneira a se abrirem as portas da era da
perfeição, mas daquela perfeição absoluta com uma nota
de força. O espírito católico está exausto de ser apresentado
como fraco. Ele tem uma nostalgia de sua própria
força, que é uma coisa do outro mundo. Ele geme encarcerado
em aspectos de debilidade, ele está nostálgico das
últimas consequências de si mesmo; é como a copa da espada
que tem nostalgia da ponta do florete.
A Igreja Católica está exausta de fraquezas, de condescendências
cúmplices, de delongas e contemporizações
sem sentido, de indecisões e vacilações que a nada
conduzem. Em nós borbulha uma vontade exuberante
de ser, de fazer, de contestar, de destruir e de implantar,
mas logo. É uma urgência de quem morre de sede, mas
de uma sede que não se limita com um copo d’água, quer
beber um rio, um mar! Esta é a nossa cruz diurna e noturna.
v
(Extraído de conferência de 2/10/1974)
35
Apóstolo do pulchrum
Anuragtripathi (CC3.0)
Contrários harmônicos
na arquitetura oriental
Os contrários harmônicos das construções orientais parecem
indicar que não foram pensados de uma só vez. Uma geração
construiu uma torre, mais tarde surgiu o desejo de satisfazer
algo brotado do fundo da alma e acrescentou-se uma cúpula.
O resultado final é algo mítico, próprio ao oriental.
Ao analisar o Taj Mahal, tenho a impressão de
que seria preciso distinguir, nunca separar –
porque ficaria um monstro –, dois elementos
nos quais se realiza um equilíbrio prodigioso: as partes
laterais e a linha constituída pela cúpula e pelo corpo
central, destacado pelas duas torrezinhas. Parece-me in-
dispensável considerar as partes isoladas para compreender
o todo.
Contrários harmônicos do Taj Mahal
Há um aspecto interessantíssimo e muito bonito que
é o seguinte: à primeira vista, na parte central está o pe-
30
so. Entretanto, existe um jogo bivalente pelo qual, ao
mesmo tempo em que, visto de um lado, o conjunto parece
leve, considerado por outro prisma trata-se de um
“cupulão” pesado, de esmagar. Como fazer para um corpo
de edifício carregar essa cúpula pesada não só mantendo
certo ar de leveza, mas até dando a impressão de
que a cúpula suspende e não achata?
A enorme porta, que tem qualquer coisa de ogival e de
vazado – o elemento vazado possui um enorme papel nisso
– sustenta a cúpula num equilíbrio perfeito. De maneira
que não se pode dizer que ela fique propriamente
leve, mas não se percebe o peso. Quando o “balão” remete
para cima, a porta e tudo o mais ficam elevados. Neste
sentido há entre o leve e o pesado uma espécie de jogo
sumamente bem posto e que dá a ideia de harmonia,
a meu ver expressa nos seguintes termos: estabilidade
harmônica perfeita, porque possante e leve.
O conjunto lucra muito em expressão com as torrezinhas
laterais, que constituem uma espécie de analogado
primário em relação à cúpula central, mas têm por
analogados primários os altos dos minaretes laterais, os
quais são muito pequenos em relação às torrezinhas, e
estas, por sua vez, são pequenas em relação à cúpula do
centro. Tal graduação ajuda a dar a ilusão de leveza.
Essa é a simetria dos contrários harmônicos. A genialidade
do artista original consiste em inventar uma forma
de oposição na qual ninguém pensou, mas que não
resulta em nenhum monstro à maneira da arte moderna.
MANISH G. CHAUHAN (CC3.0)
Adithya0376 (CC3.0)
31
Apóstolo do pulchrum
Rameshng (CC3.0)
ser posto num objeto colateral análogo, porque, para o
olhar humano, eles formam um só conjunto.
No Taj Mahal, num primeiro momento, surpreende
um pouco tanto o tamanho da cúpula quanto o da porta.
Seríamos levados quase a dizer: “Exageros harmônicos.”
Entretanto, o que me parece genial é como o arquiteto
conseguiu dar ao retângulo tanta força que, vazando-o,
restabeleceu a leveza. O vazado é muito oriental,
misterioso, quase como um olhar. Está muito bem
feito.
Feudalidade expressa nas torres
das construções russas
É interessante notar a reversibilidade entre os princípios
arquitetônicos e o relacionamento humano.
Na ordem civil monárquica bem
constituída, a aristocracia é um
elemento mais importante
do que a monarquia.
Contudo, na ordem
Sujith Naik (CC3.0)
Sunilbhar (CC3.0)
Tenha gênio, faça
algo que tire desse
mare magnum de possibilidades
dos contrários
harmônicos uma beleza nova, e
não seja cretino.
A unidade artística e o contrário harmônico
Tiramos disso um princípio muito curioso: quando
quisermos dar a um determinado elemento uma expressão
à qual ele não se presta – neste caso, a de leveza –, se
colocarmos ao seu lado algo análogo dotado dessa expressão,
tudo se exprime no espírito humano num todo só.
Nesse sentido, os microminaretes exercem um papel
importante. É um jogo de analogias do menor para
o maior cuja relação se explica no todo, em que cada
elemento torna mais leve o outro, abrindo-se para o infinito.
Ademais, há um princípio de analogia pelo qual, sempre
que numa determinada linha ou unidade artística
não se consegue colocar o contrário harmônico inteiro
como se deseja, algo desse contrário harmônico pode
32
eclesiástica dá-se o contrário: a monarquia é um elemento
mais importante do que a aristocracia.
Não haveria uma contradição nisso? Não, porque a
Igreja tem uma natureza tal que ela abarca o conjunto
de todas as almas batizadas do mundo, e não haverá
nunca um Estado que abranja todas as almas do mundo.
A esfera temporal, como uma ordem mais baixa, pede
uma espécie de federalização que a espiritual não comporta.
Donde um Sacro Império, por exemplo, constituir
uma federação de federações.
Quanto mais penso sobre o feudalismo, mais me convenço
de que a sua debilitação começou a partir do momento
em que os feudos maiores começaram a absorver
os menores. A plenitude de força e de vida do feudo pequeno
é a base viva do sistema feudal. Onde tal senhor
feudal tem dois mil castelos, já se trata de um feudalismo
morto. Ele até pode federar sob sua autoridade dois
mil feudos vivos, mas apenas na medida em que não os
absorver.
Em certas construções russas notamos muito essa
unidade feudal. Cada torre afigura-se estuante de vitalidade
própria e, é curioso, parece ignorar completamente
a outra. Tem-se a impressão de que elas estão cegas uma
para a outra e só se explicam do alto de um cone ou do
fundo de uma distância da qual são vistas juntas. Então
se elucidam fabulosamente e os contrários harmônicos
se afirmam, primeiramente entre a cúpula e a base em
cada uma delas, e depois elas entre si. Cada uma é, até
certo ponto, o contrário harmônico da outra.
Toda a glória e riqueza
encontram-se nas cúpulas
A meu ver, o auge do estilo russo é a Catedral de São
Basílio, onde a tal simetria dos contrários harmônicos
se afirma muito mais ricamente do que em outros edifícios
russos, nos quais, por vezes, há uma igualdade empobrecedora
entre uma torre e outra.
Entretanto, mesmo nessas outras construções, o jogo
dos contrários harmônicos das transcendências aparece
nisto: ora uma torre transcende à outra por analogia,
ora por contrariedade. Esse jogo da analogia e da con-
Uwe Brodrecht (CC3.0)
Alexander Patrikeev (CC3.0)
33
Mario Modesto Mata (CC3.0)
Apóstolo do pulchrum
trariedade está sempre presente, inclusive quando há
uma torre central mais nobre, com a cúpula dourada,
que supera as circunstantes.
Em muitos desses edifícios toda a glória e riqueza
da construção encontram-se nas cúpulas coloridas, nas
quais se veem estrelas que, embora não estejam jogadas
inteiramente a esmo, também não estão dispostas
em linha reta. Outras cúpulas são elaboradas de tal modo
que se tornam sumamente visíveis quando os raios
do Sol incidem sobre elas, mas que, devido ao seu material
e colorido, em certos momentos parece que a cúpula
se diluiu no céu, formando uma espécie de corpo etéreo
de matéria meio sólida, meio gasosa, encimada por uma
cruz e terminando num sonho.
O oriental não planeja tudo
logo, cria ao acaso
Tem-se a impressão de que uma maravilha dessas não
foi planejada de uma vez, mas aos poucos. O arquiteto
diz: “Que interessante seria fazer uma torre com uma cúpula
verde...” E faz a torre. Depois de tê-la feito, ele mesmo
provê o projeto de um contrário harmônico para satisfazer
uma outra apetência da própria alma. Gerações
depois, um artista, à força de contemplar, pensa: “Seria
interessante tal detalhe assim para equilibrar essa catedral...”
E põe. Cada geração vai enriquecendo e embelezando
aquela obra de arte. A meu ver, se não tivesse caído
o regime czarista e não entrasse aquela fixidez do absolutismo,
haveria outros edifícios que aos
poucos iam sendo assim compostos.
Então, se fosse um arquiteto católico
construiria, por exemplo, uma capelinha
a Nossa Senhora de Fátima que teria um
contrário harmônico inteiramente surpreendente,
com um nicho ali perto. Depois,
começaria uma grande popularidade
em torno dessa capelinha, e outro arquiteto
abriria uma espécie de concavidade
na torre para caber o povo... E, assim,
cada um faria o contrário harmônico ao
que fora elaborado na geração anterior,
de um modo meio surpreendente, à medida
que as almas fossem sentindo necessidade
de pôr contrastes harmônicos. v
(Extraído de conferência de
2/10/1974)
Julius Silver (CC3.0)
MarinkaGal (CC3.0)
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Florstein (CC3.0)
Luzes da Civilização Cristã
Raimond Spekking (CC3.0)
Obra de homens,
obra de Deus
A Catedral de Colônia reflete um dos aspectos mais elevados da
alma católica alemã. Nela contemplamos algo que parece irreal, em
parte obra do homem, em parte obra de Deus. Trata-se do senso do
maravilho em busca do metafísico, convidando a altas cogitações
sem se deixar levar pela fantasia, pois mesmo quando sobe às mais
elevadas divagações mantém bases sólidas vincadas na realidade.
Para nós que vivemos na América do Sul e não
estamos habituados a considerar as belezas da
cultura católica da Europa, falta-nos um certo
senso do maravilhoso.
Esse senso tem muita ligação com o amor a Deus, porque
é por meio dele que nós podemos elevar as nossas almas
ao Altíssimo, finalidade para a qual as coisas maravilhosas
foram criadas.
Por exemplo, uma pessoa que vê o Sol tem ocasião de
louvar a Deus de uma maneira especial, e por isso São
Francisco de Assis cantou o Irmão Sol. Por quê? Porque,
sendo maravilhoso, o Astro-Rei eleva as almas para o
Criador mais do que a consideração de um grão de poeira,
que a seu modo também pode conduzi-las até Ele. O
maravilhoso é a obra-prima pela qual Deus Se manifesta
aos homens.
Ora, o maravilhoso não se exprime apenas nos seres
criados diretamente por Deus. A maior maravilha saída
de suas mãos foi o homem, e as maravilhas feitas por este
indicam a grandeza da obra-prima divina e, portanto,
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a grandeza de seu Artífice; de si mesmas, elas são indiretamente
criaturas de Deus.
Com frequência eu tenho dito que Dante chama as
obras de arte humanas de netas de Deus, porque são filhas
do homem, que é filho de Deus. E nós, da consideração
das netas de Deus, podemos nos enlevar com esse
eterno, imperecível e perpétuo avô que jamais envelhece,
Deus Nosso Senhor.
Uma comparação para entender
as obras de arte alemãs
Temos analisado muitas coisas da França, mas a Europa
toda é uma maravilha, com cores, refrações e aspectos variados.
E a Alemanha constitui, por si, um mundo de maravilhas.
Hoje escolhi a famosa catedral gótica de Colônia, para
um comentário do conjunto do espírito alemão e do
modo pelo qual ele condiciona a obra de arte.
Discute-se muito qual das duas catedrais é mais bela,
se a de Colônia ou a de Notre-Dame de Paris.
Algumas pessoas costumam colocar no páreo
também Westminster, Amiens, Reims.
Eu não vou discutir o caso aqui, mas a comparação
com Notre-Dame é muito importante
porque, quando a vemos, temos um sentimento
de admiração, quase um êxtase diante
de seu equilíbrio e de sua harmonia. A fachada,
com todas as suas divisões e subdivisões,
representa a harmonia perfeita, em que se exprime
o gênio francês, que é um gênio estático,
feito, como tudo o que prima pelo equilíbrio,
da justaposição de valores opostos, mas reduzidos
a uma admirável harmonia.
O espírito alemão não é propriamente assim.
O espírito católico alemão
e sua deturpação
a terra e muito equilibradas, porque elas não se prestam
bem à expressão dos valores de caráter metafísico, e com
uma tendência, por causa disso, de evasão da realidade
em busca de uma realidade superior.
Esse grito de alma do alemão encontra-se deteriorado
– mas se encontra – não no sapato do soldado prussiano,
e sim em Wagner 1 . É o metafísico que se embriagou, mas
continua a fazer metafísica em meio à sua bebedeira e
tem ainda uns lances de talento envenenados.
Senso metafísico refletido na
Catedral de Colônia
Esse senso metafísico do alemão encontra-se expresso
na Catedral de Colônia.
A construção quase se restringe às duas torres. O corpo
do edifício, que em Notre-Dame é tão grande e espraiado,
em Colônia praticamente não existe. Ele consiste
apenas em um hífen que une as duas torres. Estas
Coldrerio (CC3.0)
Para nós, o espírito alemão passa por ser o
equilibrado por excelência. Ao pensarmos no
equilíbrio dos alemães, imaginamos o pé de
chumbo de seus soldados marchando, esmagando
cabeças com um sapatão, com salto de
pregos. É o passo de Átila. Não há erva que
resista ao passo do soldado alemão.
Entretanto, esse é o alemão protestante,
“quadrado”, da decadência, não é o alemão
católico. O alemão católico é muito diferente:
pensativo, idealista, continuamente à procura
de uma realidade invisível e metafísica
– e por isso difícil de atingir –, com um certo
desprezo até pelas coisas que são muito terra
33
Luzes da Civilização Cristã
Raimond Spekking (CC3.0)
sobem vertiginosamente e estão concebidas na ideia de
emular entre si e entrar pelos olhos do homem, levando
seu espírito para cima. São leves e esguias, dentro do
caráter sólido alemão – sobre o qual eu exporei daqui a
pouco –, que não as abandona.
Para verem o papel que cada uma dessas torres representa
para a outra, imaginem que existisse uma torre só.
Ela se perderia, ficaria meio desequilibrada, cambaia. Pelo
contrário, as duas torres juntas como que se apoiam
para subir. E a altura total é compensada pela base.
Há um ponto invisível de equilíbrio nelas – mais uma
vez eu digo: de caráter metafísico –, o qual paira nos ares
e constitui o ponto de união insuspeitado das duas torres,
que o espírito concebe e o olhar não percebe. À medida
que sobem, as torres vão insensivelmente se afilan-
do e, em certo momento, transformam-se em cones altíssimos.
Por que elas se afilam? Para dar a ideia de algo que
sobe.
Quando o olhar recai sobre um objeto muito alto, tem-
-se a ilusão de ótica de que ele vai ficando mais esguio
naturalmente. Os que conceberam a Catedral de Colônia,
para acentuar a ideia de elevação, foram afilando
suas torres, de maneira que tudo dá a impressão de uma
altura que se perde nos céus. Tanto mais que uma parte
delas é oca, está formada por um rendilhado. Quem vê
uma fotografia aproximada percebe fragmentos de céu
através desse rendilhado. Quer dizer, trata-se de algo
meio irreal, em parte do céu, em parte da terra, em parte
obra do homem, em parte obra de Deus.
No ponto que dá origem à cúpula final, ainda há umas
pontinhas que também parecem querer acompanhar o jorro
que sobe; não conseguem e morrem sobre si mesmas, mas
com elegância, com distinção. Tudo é feito para ir afilando.
Vê-se uma janela e um pequeno portal. Depois duas
janelas que representam do mesmo modo duas ogivas e
terminam numa grande ogiva, porque afinal trata-se de
uma ogiva que se perde no céu.
É uma concepção completamente diferente da Catedral
de Notre-Dame, mas legítima e que exprime um modo
de ser do espírito humano. Assim como nos extasiamos
com Notre-Dame, devemos também nos rejubilar
com Colônia. Deus criou os homens com características
diferentes, e quer que cada um se exprima como Ele o
criou e que um compreenda o outro.
A fantasia do ocidental e a do oriental
Há outro aspecto muito bonito. Essa catedral não tem
nada do minarete. Numa mesquita mulçumana, o minarete
é aquela torre fininha do alto da qual canta um muezim.
Quase diríamos que o vento vai derrubá-la. Contudo,
o oriental se agrada em vê-la enfrentando o vento, como
um sonho que foi concebido sem base na terra.
Em Colônia, ao contrário, não há a fantasia do
Oriente. A catedral representa a fantasia do ocidental,
muito diferente. Trata-se de algo sólido, de um mundo
de pedras, de uma base muito forte. As torres, possantes,
estão cravadas no chão até o momento em que se
separam.
Assim age o ocidental, em particular o alemão, que é
verdadeiramente sólido: mesmo quando sobe às mais altas
divagações, tem os pés na realidade.
Aqui está algo do espírito católico quando sopra em
uma alma alemã. Tirem a Religião Católica, e o alemão
jamais dará nisso. Quer dizer, todos fomos concebidos
no pecado original e nós, menos a graça, somos iguais a
nada. Dessa equação ninguém escapa.
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Weltenbummler1983 (CC3.0)
A arte ogival explorada de modo ideal
O gênio da Idade Média se exprime em todas essas
belezas, e a ogiva fininha se presta exatamente para isto.
Tem-se então a arte ogival explorada num sentido idealístico,
por assim dizer, como não se encontra em Notre-
-Dame. É algo completamente diferente.
Seria preciso contemplar a beleza da catedral in loco,
com aves levantando voo de dentro das torres e os sinos
tocando. Tem-se a impressão de que são pensamentos
contidos na torre, os quais se desprendem e voam pelo
céu azul. É de uma grandeza enorme! v
(Extraído de conferência de 10/6/1968)
1) Wilhelm Richard Wagner (*1813 - †1883). Maestro, compositor,
diretor de teatro e ensaísta alemão.
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