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2020_Luzes-ApostoloPulchrum

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A vitória da<br />

confiança em<br />

Maria


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

The Yorck Project (CC3.0)<br />

Um belo<br />

complemento<br />

do traje<br />

eclesiástico<br />

Plinio entre seus<br />

companheiros do Colégio<br />

São Luís, em 1921<br />

O barrete e outros sinais distintivos<br />

dos trajes eclesiásticos ou civis foram<br />

sendo abolidos, mostrando a tendência<br />

para a república universal desejada pelo<br />

comunismo, e que representa o reino do<br />

demônio, onde não haja mais raças, línguas,<br />

culturas, nem civilizações diversas, e<br />

todos os homens constituam apenas uma<br />

ordem parda ou cinzenta, indiferente, de<br />

pessoas sem qualquer personalidade.<br />

Lembro-me perfeitamente de minha reação, em menino,<br />

ao ver o barrete eclesiástico, utilizado pelos<br />

padres jesuítas do Colégio São Luís.<br />

Os três gomos do barrete simbolizam<br />

a Santíssima Trindade<br />

Eu tinha conhecido sacerdotes salesianos – religiosos,<br />

portanto – da Igreja do Coração de Jesus, e seculares<br />

da Igreja de Santa Cecília, que era nossa paróquia.<br />

Não conhecia outros, embora os visse passarem pela rua.<br />

Luis Samuel<br />

32


Mas não sei por que razão, quer os salesianos, quer os padres<br />

seculares, eu nunca os tinha visto de barrete. Quando<br />

muito, os via usando-o ao entrarem para a Missa, mas<br />

tiravam logo ou já vinham com ele na mão. O fato é que o<br />

barrete não tinha me chamado especialmente a atenção.<br />

Quando entrei para o Colégio São Luís, quase todos<br />

os padres usavam barrete, sistematicamente, sobretudo<br />

na época mais fria do ano.<br />

As cátedras naquele tempo eram altas, tinham uns<br />

quatro ou cinco degraus, e o professor falava muito de<br />

cima, numa espécie de banco, um quadrilátero vazio e<br />

por detrás uma madeira revestindo a parede, formando<br />

assim uma espécie de cenário para ele. Era uma coisa<br />

muito respeitável e própria a prestigiar o magistério.<br />

Naturalmente isso desapareceu, como desaparecem as<br />

coisas boas sob o influxo da Revolução, perdendo o caráter<br />

honorífico, restando apenas o funcional. Era a morte<br />

gradual da noção de honra e o advento da funcionalidade<br />

não honorífica, onde não mais a função da honra,<br />

mas apenas o útil representa algum papel.<br />

Foi nesse ambiente, acima descrito, da sala de aula<br />

com a cátedra antiga que tive uma impressão magnífica<br />

ao ver o professor usando o barrete. Pensei: “Que coisa<br />

digna, bem arranjada, como vai bem com a batina !”<br />

Ademais, sentado naquela cátedra, com a seriedade com<br />

que falavam naquele tempo, dando aula, quase se diria<br />

que o barrete era uma coroa preta colocada sobre a cabeça.<br />

O barrete é encimado por três gomos, que simbolizam<br />

a Santíssima Trindade, dispostos de tal forma que um<br />

dos lados do barrete fica vazio. Entretanto – vejam como<br />

são as conclusões de uma criança! –, habituado a certo<br />

tipo de simetria, eu julgava que do outro lado o gomo tinha<br />

caído, e que por economia os padres não o tinham<br />

mandado colar. Era a explicação que eu encontrava... E<br />

lamentava comigo. Cheguei a pensar: “Se eu pedisse dinheiro<br />

a papai e mamãe para mandar comprar uns gomos<br />

para eles porem, não será que ficaria bem?” Mas eu<br />

percebia que havia qualquer coisa por onde não era para<br />

mexer nisso, nem perguntar, e deixar a coisa assim. Mais<br />

tarde entendi o porquê.<br />

Luis C.R. Abreu<br />

Quando a Igreja toca em<br />

algo ela faz maravilhas<br />

Mas fiquei encantado e, embora eu fosse muito menino,<br />

veio-me ao espírito a seguinte reflexão: “Eu conheço<br />

muitos homens respeitáveis e de idade avançada,<br />

não eclesiásticos, que lucrariam tanto em usar uma coisa<br />

desse gênero!” Um ou outro até usava, para se proteger<br />

do frio, uma espécie de gorrozinho cilíndrico, em geral<br />

feito de um tecido muito rico e vistoso, com cores ale-<br />

São Pedro Arbués - Catedral<br />

Metropolitana do México<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Cartão-postal representando um cortejo pontifício<br />

gres. Ainda que o homem fosse de idade, ele punha isso<br />

na cabeça. Mas eu pensava: “Esses gorrozinhos que<br />

eles põem não valem nada. Veja o que os eclesiásticos<br />

põem na cabeça! Quem compôs esse barrete? Não foi nenhum<br />

desses padres. Com certeza, se eu perguntar quem<br />

foi eles não sabem, porque isso se perde nos tempos. Então,<br />

quem foi? Foi a Igreja.” E me lembro de ter vindo à<br />

mente esta reflexão claramente: “Observe como na Igreja,<br />

sendo divina e exímia em todas as coisas grandes, há<br />

uma qualidade por onde até nas pequenas, quando ela<br />

toca com a ponta dos dedos, faz uma maravilha!”<br />

Assim, fiquei realmente encantadíssimo com o barrete<br />

eclesiástico. Imaginem a minha tristeza quando comecei<br />

a perceber que o uso do barrete era cada vez mais<br />

abandonado.<br />

Além de compor bem e ser um belo complemento do<br />

traje eclesiástico, o barrete corresponde a uma ideia que<br />

desapareceu completamente. Quando eu era pequeno, os<br />

meninos de minha idade já usavam chapéu. Qualquer<br />

que fosse a espécie do chapéu, ao transpor o limiar de<br />

qualquer das portas de sua própria casa, a fortiori da residência<br />

dos outros, o menino tinha que tirar o chapéu.<br />

Usar chapéu dentro de casa era o auge da impolidez, da<br />

falta de delicadeza. Tratava-se de uma coisa toda convencional,<br />

mas era assim.<br />

Porém, o convencional antes da Revolução Francesa<br />

era outro. O homem passava o dia todo de chapéu, e só<br />

o tirava diante de pessoas de muito respeito, ou quando<br />

ele se referia à Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, Nossa Senhora, Sagrada Eucaristia. Também<br />

quando entrava uma pessoa ilustre no salão, por exemplo<br />

um príncipe, um marechal de França, um membro<br />

da Academia de Letras, um cardeal.<br />

A Revolução promoveu o desaparecimento<br />

do barrete, do chapéu, do uniforme<br />

Essas são atitudes convencionais, não estão ligadas ao direito<br />

natural. Entretanto, é conforme ao direito natural que<br />

haja cerimônias. Como e quais elas sejam, na maior parte<br />

dos casos é uma convenção elaborada ao longo da História<br />

pelos costumes, pela índole de cada povo, etc.; não é imposto<br />

por uma lei moral, não decorre da ordem natural das coisas.<br />

Por exemplo, a nós ocidentais parece a coisa mais<br />

normal do mundo nos cumprimentarmos apertando a<br />

mão. Mas no Oriente isso não é costume nem um pouco.<br />

O cumprimento é feito de longe, com certa forma de reverência,<br />

de vênia. É legítimo, são coisas convencionais.<br />

Contudo, não é meramente convencional que haja cerimônias.<br />

E para atingir a ordem natural, a Revolução<br />

instituindo o igualitarismo tinha que promover o desaparecimento<br />

do barrete, como do chapéu, do uniforme,<br />

tanto para leigos como para eclesiásticos.<br />

Eu assisti a essas três etapas: os leigos que deixaram<br />

de usar o chapéu, depois o paletó, passando já a usar<br />

bermudas. Os militares que abandonam o uniforme e se<br />

vestem como os civis, quando não estão em serviço, confundindo-se,<br />

então, com qualquer um nessas ocasiões.<br />

Ora, era evidente que a Revolução solicitasse ao clero<br />

que abolisse a tonsura, abandonasse a batina e usasse<br />

apenas um distintivo. Depois, não usasse mais distintivo<br />

algum. Nessa demolição entrou também, necessariamente,<br />

o barrete que me deixou tão saudosas recordações.<br />

No completo desaparecimento dos trajes distintivos<br />

das várias condições de vida já se fere, arranha-se a ordem<br />

natural, porque, embora não seja imperativamente<br />

necessário, é da mais alta conveniência para a boa or-<br />

34


Arquivo Revista<br />

dem natural das coisas que as diversas condições de vida<br />

tenham seus distintivos.<br />

É a razão pela qual, por exemplo, o homem e a senhora<br />

casados usam aliança. Quem não é casado não usa. Quem<br />

olha percebe logo qual o estado civil daquela pessoa. Isso<br />

é tão próximo da ordem natural, que a abolição de todos<br />

esses sinais tende para a república universal desejada pelo<br />

comunismo, e que representa o reino de demônio, onde<br />

não haja mais raças, línguas, culturas, nem civilizações<br />

diversas, não haja mais nada de diverso, e todos os homens<br />

constituam apenas uma ordem parda ou cinzenta,<br />

indiferente, de pessoas sem qualquer personalidade.<br />

Estas foram as reflexões sugeridas pela saudosa lembrança<br />

do imponente barrete dos meus mestres jesuítas.v<br />

(Extraído de conferência de 27/7/1983)<br />

Recepção do Grand Condé<br />

em Versailles - Museu de<br />

Orsay, Paris, França<br />

35<br />

Jean-Léon Gérôme (CC3.0)


Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº 263 Fevereiro de <strong>2020</strong><br />

Indefectível<br />

fidelidade<br />

à Cátedra<br />

de Pedro


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Gabriel K.<br />

Unum de Veneza<br />

e do mar<br />

Entre os belíssimos monumentos de Veneza, cidade cuja conjunção<br />

com o mar atrai turistas do mundo inteiro, destaca-se a Catedral de<br />

São Marcos, poema construído em torno da Santa Missa, onde a Pala<br />

d’Oro, com sua feeria de esmaltes e cores, concorre não apenas para<br />

a cultura artística, mas principalmente para a formação religiosa do<br />

povo de Deus, o que faz dessa obra de arte um verdadeiro tesouro.<br />

Arquivo Revista<br />

Estando em Veneza, em minha última viagem à Europa<br />

1 , tive a oportunidade de transpor de lancha<br />

um braço de mar, saindo de Veneza em direção a<br />

duas ilhas que ficam em frente: São Jorge e Giudecca.<br />

Conclave que elegeu Pio VII<br />

À medida que nos distanciamos de Veneza, vamos tendo<br />

uma mudança de panorama que mereceria ser comentada,<br />

e que é a seguinte: quando a lancha está a uma distância<br />

ainda pequena da cidade, não se goza tanto da proximidade<br />

do mar porque a atenção fica inteiramente absorvida<br />

pelos monumentos. Ademais, o ser humano não<br />

consegue fixar bem a atenção na conjunção monumento-mar,<br />

porque o mar é muito largo, o monumento muito<br />

bonito, e ora um ora outro biparte a atenção do homem.<br />

Com a distância, pelo contrário, vai-se formando um<br />

unum de Veneza e do mar, pelo qual, num primeiro momento,<br />

trata-se de considerar como a cidade é bonita vista<br />

a partir do mar. Bem mais longe, a cidade vai ficando<br />

ao fundo do panorama e o mar atrai mais a atenção. Por<br />

fim, Veneza torna-se apenas uma moldura distante para o<br />

mar, cuja beleza é ressaltada ao ser emoldurado por ela.<br />

A Ilha de São Jorge é toda tomada pela basílica e o mosteiro<br />

do mesmo nome. É, portanto, uma ilha-mosteiro. Em<br />

fins do século XVIII, quando o Papado parecia destroçado,<br />

32


Vicente Torres<br />

o Papa Pio VI, muito doente, foi arrastado à força pelos revolucionários<br />

franceses e levado prisioneiro para a França.<br />

Ao chegar à cidade de Valence, o povo queria vê-lo,<br />

aglutinado do lado de fora da casa onde o Pontífice estava.<br />

Ele se arrastou até o terraço para evitar uma agressão<br />

do povo e apresentou-se dizendo “Ecce homo – Eis o homem”,<br />

que foram as palavras com as quais Pôncio Pilatos<br />

apresentou ao populacho revoltado Nosso Senhor flagelado,<br />

coroado de espinhos, com o manto da ignomínia e a<br />

cana de bobo na mão. Pio VI, para significar como estava<br />

reduzido a quase nada, disse de si mesmo que estava como<br />

Nosso Senhor. É uma coisa que um Vigário de Cristo<br />

pode dizer, quando se encontra nessa situação tristíssima.<br />

Quando ele morreu, muitos tiveram a loucura de pensar<br />

que não haveria mais papas e a Igreja Católica iria<br />

sumindo aos poucos. O Imperador da Áustria era senhor<br />

de Veneza naquele tempo e resolveu realizar um conclave<br />

para os cardeais elegerem um novo pontífice. O soberano<br />

proporcionou todas as condições para que o conclave<br />

se realizasse nessa ilha, e ali foi eleito Pio VII como papa.<br />

A partir da Ilha de São Jorge, a distância de Veneza se<br />

faz sentir menos do que da Ilha Giudecca. Portanto, não<br />

é ainda verdade dizer que a cidade serve de mera moldura<br />

ao mar. Pelo contrário, Veneza e o mar se completam,<br />

um embeleza o outro.<br />

Para melhor avaliar a beleza desse panorama, imaginem<br />

que uma empresa colossal resolvesse propor ao Governo<br />

italiano, por razões de transporte, desviar esse braço<br />

de mar, e construísse em cima disso uma avenida de asfalto.<br />

Podemos imaginar a feiura que isso teria? Por outro<br />

lado, se estourasse uma guerra que destruísse Veneza, por<br />

causa desse mar valeria a pena ir ali? Entretanto, a conjunção<br />

Veneza-mar atrai turistas do mundo inteiro.<br />

Triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã<br />

Temos uma vista da Praça de São Marcos que pode<br />

ser melhor admirada em horas em que está menos tomada<br />

por turistas. Notem a enorme diferença de estilos<br />

existente entre o campanário e a basílica. Contudo, vejam<br />

que variedade agradável isso ocasiona. É uma verdadeira<br />

beleza! Como o jeito, à maneira de bengala, dessa<br />

torre dura, forte e alta contrasta com o rendilhado<br />

gracioso, amável, da basílica! Cada coisa realça a beleza<br />

da outra e forma um conjunto lindíssimo.<br />

A “Torre do Relógio” é um dos monumentos mais famosos<br />

de Veneza. Ele se compõe de um corpo central onde<br />

se encontra o relógio que dá o nome ao edifício, e dois<br />

andares laterais bonitos, mas muito mais discretos, deixando<br />

todo o realce ao prédio principal, servindo-lhe de<br />

moldura, pois ainda que não houvesse essas edificações<br />

em volta, essa parte já constituiria uma torre.<br />

O relógio é muito bonito. O quadrante é de um azul<br />

bem escuro com desenhos em dourado e os números estão<br />

inscritos em círculos de pedra. Em cada ângulo encontra-se<br />

uma pequena circunferência vazada.<br />

A torre é fundamentalmente uma homenagem a Nossa<br />

Senhora. Na parte mais visível dela está a Santíssima<br />

Virgem com o Menino Jesus. Por ocasião do Natal, entram<br />

em cena os Reis Magos precedidos por um Anjo –<br />

movidos por um sistema mecânico –, e passam diante da<br />

Virgem-Mãe com seu Divino Filho para reverenciá-Los.<br />

Na construção da torre, Veneza não se esqueceu de si<br />

própria e colocou num lugar menos central, mas bastante<br />

evidente, o emblema da cidade: um leão alado, símbolo<br />

do Evangelista São Marcos, sob cujo patrocínio está a<br />

Sereníssima República.<br />

Esse é um prédio destinado à vida civil comum, não se<br />

trata de uma igreja. Entretanto, vejam como é impregna-<br />

Mariordo (CC3.0)<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Leonardo C.<br />

péries, enquanto as originais permanecem<br />

num lugar onde estejam a<br />

salvo dos fatores de deterioração.<br />

Um poema construído em<br />

torno da Santa Missa<br />

do profundamente de Religião, de maneira a encontrarmos<br />

em quase todos os motivos decorativos uma alusão religiosa.<br />

Até mesmo em cima, os mouros que estão batendo no sino.<br />

Veneza possuía escravos mouros aprisionados durante<br />

as guerras, as quais, em geral, eram por motivo religioso.<br />

Os venezianos eram católicos e os mouros maometanos. Os<br />

escravos deviam servir os seus senhores; então estão representados<br />

ali os escravos mouros batendo o sino. Ou seja, é<br />

o triunfo da Cruz sobre o crescente do Islã.<br />

Cavalos que parecem conversar<br />

Os famosos cavalos de Veneza, na realidade, pertenciam<br />

ao Império Bizantino, tendo sido trazidos de Constantinopla<br />

como presa de guerra. São considerados como verdadeira<br />

maravilha no gênero, porque representam com uma<br />

vitalidade e naturalidade assombrosas quatro cavalos que<br />

vão numa marcha um pouco viva, mas não em disparada. É<br />

muito interessante o inter-relacionamento entre eles. Cavalo<br />

não conversa; contudo, estes estão como que conversando.<br />

Notem o movimento de cabeça do primeiro para o segundo<br />

e do terceiro para o quarto. Percebe-se isso nos animais,<br />

às vezes: estão como que convivendo, quase como se<br />

conversassem. Considerem a discrição do movimento das<br />

patas, em nada forçado. É a marcha comum de cavalos numa<br />

rua, mas animais de categoria.<br />

Napoleão, que era um grande ladrão, levou-os para<br />

Paris. Quando ele caiu, o rei legítimo da França, irmão<br />

de Luís XVI, Luís XVIII, restituiu a Veneza esses cavalos<br />

roubados. O rei legítimo não queria ser dono ilegítimo<br />

de um tesouro desses. Então foram reinstalados.<br />

Mais recentemente descobriu-se que o ar do mar e outras<br />

circunstâncias estavam deteriorando os cavalos. Para<br />

evitar isso, que seria uma perda irreparável, foram feitas<br />

cópias exatíssimas, as quais ficam expostas às intem-<br />

No interior da Basílica de São<br />

Marcos nota-se uma série de arcos<br />

que culminam num último, fechado<br />

numa espécie de semicírculo todo<br />

cravejado de mosaicos preciosos. O<br />

corpo da igreja é formado de tal maneira<br />

que possui arcos até o fim. Nos<br />

lados, os arcos se interrompem em<br />

certo momento para recomeçarem<br />

depois, deixando um espaço vazio.<br />

A catedral é construída em forma<br />

de cruz. O Corpo sagrado de Nosso Senhor estaria ao longo<br />

da nave central, e nas laterais os braços, cujo principal, para<br />

onde se inclinou a cabeça sagrada do Redentor na hora da<br />

morte, fica à direita do altar. Então a ideia da Cruz, do sacrifício,<br />

da morte e, portanto, da Redenção infinitamente preciosa<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de que a Missa renova<br />

de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, fica simbolizada<br />

muito adequadamente por essa disposição.<br />

No primeiro plano vemos uma cruz disposta de maneira<br />

a ser observada por quem entra e por quem está nas naves<br />

laterais. Portanto, em qualquer lado que se esteja vê-se<br />

o símbolo de nossa Redenção, indicando o significado central<br />

da catedral, que é de ser o lugar onde se celebra a Missa,<br />

ato supremo da piedade católica. Assim, essa basílica é<br />

todo um poema construído em torno da Santa Missa.<br />

Para além dessa espécie de vedação com colunatas,<br />

feita de pedras lindíssimas, que separa o altar-mor do<br />

corpo da catedral, vemos à direita<br />

e à esquerda os púlpitos de onde<br />

os sacerdotes e diáconos leem<br />

as Sagradas Escrituras e cantam<br />

o Ofício sagrado.<br />

O solo em Veneza é de tal maneira<br />

úmido que apresenta resistências<br />

desiguais aos pesos que<br />

carrega. Então, há partes do chão<br />

que são um pouco mais afundadas,<br />

outras mais salientes, e é necessária<br />

certa atenção para não se<br />

perder o equilíbrio e cair de repente.<br />

Mas esse piso é feito de tal maneira<br />

que em nenhum lugar esse<br />

movimento de terreno prejudicou<br />

os mosaicos. Estão todos perfeitos.<br />

J.P. Castro<br />

34


Pala d’Oro<br />

Gabriel K.<br />

No alto desta espécie de divisão estão as imagens de Nossa<br />

Senhora, São João Batista e dos doze Apóstolos, reunidos<br />

em torno da Cruz. Notem a beleza dessa divisão e como ela<br />

marca bem a diferença entre o sacerdote e os fiéis. O sacerdote<br />

é o ministro de Deus, escolhido por Ele para representar<br />

os fiéis diante d’Ele. É ele quem tem o poder de celebrar<br />

a Missa, e por suas palavras se opera a transubstanciação.<br />

Nós, os fiéis, não temos esse poder. Porém, essa separação<br />

tão categórica é toda feita com amor, e por causa disso vemos<br />

como a Igreja enfeita e orna essa divisão e acentua nela<br />

a hierarquia estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O retábulo do altar-mor é a famosa Pala d’Oro. Examinando<br />

esses esmaltes, vemos como cada um é uma verdadeira<br />

maravilha. Mas diz o Gênesis que Deus, tendo concluído<br />

a obra da Criação, no sétimo dia repousou e, contemplando<br />

o que tinha feito, viu que o conjunto era muito bom. É bem<br />

verdade, o conjunto das coisas excelentes tem mais beleza do<br />

que a mera soma das excelências que o constituem, individualmente<br />

consideradas. É uma regra de harmonia.<br />

No centro, vemos um esmalte representando Jesus<br />

Cristo rodeado dos quatro Evangelistas. Em cima, à esquerda,<br />

São Marcos; à direita, São João. Embaixo, à esquerda,<br />

São Mateus; à direita, São Lucas.<br />

Nessa obra de arte encontramos, numa feeria de esmaltes<br />

e cores, um grande número de cenas, pessoas, fisionomias.<br />

E no primeiro golpe de olhar consideramos uma beleza<br />

feita da mistura indefinida e multiplicada das cores, formas<br />

e figuras, muito deleitável à vista, mas também muito<br />

conveniente à piedade, porque os olhos ficam atraídos a<br />

se deterem sobre temas santíssimos, cristianíssimos; o que<br />

concorre, em primeiríssimo lugar, para a formação religiosa<br />

e, em segundo, para a cultura artística do povo de Deus.<br />

Tudo isso faz da Pala d’Oro um verdadeiro tesouro. v<br />

(Extraído de conferência de 7/12/1988)<br />

1) Nessa viagem, Dr. Plinio esteve em Veneza de 30 de setembro<br />

a 5 outubro de 1988.<br />

Daperro (CC3.0)<br />

35


Publicação Mensal Vol. XXIII - Nº 264 Março de <strong>2020</strong><br />

Medianeira e<br />

Co-Redentora


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Luca Aless (CC3.0)<br />

O Palácio dos Doges<br />

Por serem almas com altos ideais culturais e religiosos, os venezianos<br />

conseguiram transmitir em suas construções o princípio governativo<br />

que leva à unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.<br />

OPalácio Ducal era a sede do Governo de Veneza.<br />

Com a vida civil tão menos desenvolvida do que<br />

hoje, não havia os escritórios de advocacia necessários<br />

para fazer os requerimentos. Assim, nesse lugar,<br />

chamado por isso mesmo de “Porta da Carta”, eram colocadas<br />

mesinhas onde escrivães redigiam os documentos e<br />

petições a serem apresentados aos magistrados.<br />

Almas com altos ideais culturais e religiosos<br />

Eu chamo a atenção para a beleza dessa porta. Notam-se<br />

embaixo os batentes grandes, divididos em quadrados<br />

esculpidos. Encimando a porta, vemos o leão<br />

alado acima do qual se abre uma larga ogiva com vitrais.<br />

Tudo enquadrado por duas agulhas de mármore<br />

branco que, por assim dizer, “apresentam armas” ao<br />

lado do pináculo gótico da janela que termina num ornato<br />

no alto.<br />

Diante do leão, símbolo de Veneza, está ajoelhado o<br />

Doge Francesco Foscari. Vejam como a janela é bonita,<br />

com os vitrais e todo o rendilhado maravilhoso que está<br />

acima, formando círculos nos quais se encaixam os vitrais.<br />

Tudo isso dentro de uma ogiva sobre a qual estão<br />

dois Anjos carregando a figura do Evangelista São Marcos.<br />

Por fim, uma sequência de esculturas sobre pedra<br />

que culminam numa figura terminal.<br />

É interessante notar essa tendência do gótico, inclusive<br />

em Veneza, em terminar os monumentos em altas<br />

pontas. Excetua-se o Palácio dos Doges, que se encontra<br />

fora dessa regra porque a inverte de um modo muito<br />

bonito. Mas vemos essa tendência nas duas agulhas,<br />

na ogiva como também no topo de toda essa peça escultural.<br />

A que corresponde essa tendência? Por que aquelas<br />

almas se compraziam tanto nisso? Por serem almas com<br />

altos ideais culturais e religiosos, nos quais agrada muito<br />

ver algo que domina todo um conjunto harmônico de<br />

seres. É propriamente o princípio governativo que leva à<br />

unidade as coisas sobre as quais exerce seu império.<br />

32


Essa é uma porta tão bonita que valeria a pena fazer<br />

um esforço grande para viajar só para conhecê-la. Entretanto,<br />

ela é apenas um pormenor de um palácio que<br />

contém incontáveis outras maravilhas.<br />

Preocupação de pôr beleza em tudo<br />

O Palácio dos Doges compõe-se de dois andares sobre<br />

uma espécie de galeria coberta que dá para a Praça<br />

de São Marcos. Entre o corpo principal do edifício e essa<br />

galeria térrea encontra-se um terraço todo<br />

ornado por colunas encimadas por rosáceas.<br />

No pátio interno do palácio encontramos<br />

mais uma vez uma galeria inferior,<br />

não mais com os arcos góticos ogivais,<br />

mas com arcos semicirculares, e no<br />

andar superior novamente as ogivas. Por<br />

fim, o famoso “caixotão” – mas que caixotão!<br />

– vazado por janelas grandes e pequenas<br />

que completam belamente o conjunto<br />

do quadro. No topo, um rendilhado<br />

de pedras brancas indicando novamente<br />

o amor às pontas. Imaginem o edifício<br />

sem esse detalhe; não ficaria meio<br />

sombrio? Mas com essa renda de pedras<br />

brancas é uma verdadeira maravilha. A<br />

pessoa se deleita ao ver isso precisamente<br />

porque culmina numa ponta. Tudo o que<br />

termina em ponta é belo porque representa<br />

o governo perfeito.<br />

Vale a pena prestar atenção no chão do<br />

pátio, onde se encontram dois poços, de<br />

água doce naturalmente, para as pessoas<br />

beberem, lavarem-se, etc. Mas para o<br />

chão não ficar muito monótono, fizeram<br />

em pedra mesmo esses desenhos, porque<br />

para plantar aí provavelmente não daria.<br />

Então encheram o espaço dessa maneira<br />

agradável. Vemos assim como há a preocupação<br />

de pôr beleza em tudo.<br />

A sala do Grande Conselho, no interior<br />

do palácio, era o local onde os magistrados<br />

de Veneza se reuniam para deliberar.<br />

Considerem o contraste entre a extrema<br />

ornamentação, de um lado, e a extrema<br />

simplicidade, de outro. O teto é todo<br />

carregado de ouro, com quadros magníficos<br />

encaixados. Ao fundo, vemos um quadro<br />

representando o Paraíso, e que toma<br />

a parede toda. Uma obra maravilhosa,<br />

tendo no alto Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

Nossa Senhora e a Santíssima Trindade.<br />

Portanto, uma sala do Governo dominada por uma cena<br />

fundamentalmente religiosa, de tal maneira Governo e<br />

Igreja viviam em colaboração nesses felizes tempos. Embaixo,<br />

diante dessa obra de arte, encontra-se uma tribuna<br />

ladeada por duas portas que contrastam com o conjunto,<br />

por causa da cor clara dos batentes, a tal pedra branca<br />

veneziana, dando uma nota de alegria a uma sala que estaria<br />

exposta a ficar muito soturna se não tivesse algo de<br />

branco para contrastar com o carregado das cores.<br />

Angelo L.<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Benh LIEU SONG (CC3.0)<br />

gioso da decisão a qual será tomada<br />

por autoridade de Deus. Pode<br />

acontecer que o homem tome uma<br />

decisão errada, com ou sem culpa.<br />

Com efeito, em consequência do<br />

pecado original, Deus quis permitir<br />

que houvesse pessoas com pouca<br />

inteligência ou mal intencionadas.<br />

Entretanto, apesar do risco de<br />

“burros” e canalhas governarem<br />

os homens, a Providência quis que<br />

houvesse governo. Este é o princípio<br />

magnificamente expresso aí.<br />

Solenidade dos atos realizados pelo Conselho<br />

A grande tribuna conta com uma presidência e três<br />

lugares de cada lado; um Conselho de sete pessoas, portanto.<br />

Ali se decidiam questões que interessavam aos<br />

particulares. Então, era livre o acesso à sala aos que tinham<br />

assuntos a serem julgados. Não tenho certeza,<br />

mas creio que, como nos tribunais, também ali podiam<br />

falar as pessoas delegadas pelos interessados para resolverem<br />

suas questões junto ao Conselho.<br />

Os membros do Conselho, sobretudo o presidente, participavam<br />

da sessão com roupas riquíssimas, em geral com<br />

tecidos de valor inestimável, conferindo<br />

assim grande realce à solenidade<br />

do ato. Era para fazer<br />

respeitar o poder público que, segundo<br />

nos ensina a Doutrina Católica,<br />

provém de Deus. Não que<br />

Ele escolha a forma de governo,<br />

nem indique quem vai governar.<br />

Isso Deus deixa aos homens. Mas<br />

toda sociedade humana deve ter<br />

um governo. Portanto, é da vontade<br />

divina que haja governos, e<br />

quando os homens obedecem ao<br />

governo, cumprem o desígnio de<br />

Deus. Naturalmente eles só devem<br />

cumprir a vontade dos governos<br />

quando não são contrários à<br />

Lei de Deus, porque esta fica acima<br />

de toda lei humana.<br />

Nota-se, assim, o desejo de inculcar<br />

naqueles que assistem ao<br />

julgamento a ideia do valor reli-<br />

Os doges: homens<br />

inteligentes, espertos,<br />

meio misteriosos<br />

“Doge” é uma palavra italiana derivada do vocábulo<br />

latino “dux”, que deu origem também à palavra “duque”,<br />

título nobiliárquico. O Doge de Veneza tinha as<br />

honras e as prerrogativas de duque.<br />

Ao analisar os bustos de alguns deles, que se encontram<br />

nesse palácio, nota-se que, apesar da natural diferença<br />

dos traços fisionômicos, há qualquer coisa de comum<br />

entre eles, e que corresponde a um elogio que nem<br />

sempre se pode fazer aos chefes de Estado contemporâneos:<br />

são homens inteligentes, sabem o que querem e<br />

querem o que sabem, voluntariosos e, cada um a seu modo,<br />

espertos; meio misteriosos, com a fisionomia enig-<br />

Bonhams (CC3.0)<br />

34


mática, não dizem o que pensam, mas governam mesmo<br />

a República Sereníssima de Veneza. Aliás, como uma pequena<br />

cidade como Veneza poderia ser a Rainha do Adriático<br />

e, ao cabo de algum tempo, também do Mediterrâneo,<br />

se não fosse dirigida por homens capazes disso?<br />

Eles usavam um chapéu denominado “barrete frígio”.<br />

A Frígia era uma região da Ásia antiga onde os homens<br />

usavam esses chapéus com essa espécie de pontinha<br />

atrás. Tornou-se o símbolo dos Estados nos quais o regime<br />

de governo não era a monarquia e sim a república.<br />

Porém, não eram necessariamente repúblicas democráticas.<br />

Veneza era uma república aristocrática, e os doges<br />

pertenciam ao Conselho, tendo seus nomes inscritos no<br />

Livro de Ouro, que era o registro das famílias nobres, e<br />

todos tinham uma grande autoridade sobre Veneza.<br />

A lindíssima Ponte dos Suspiros<br />

A famosa Ponte dos Suspiros comunica o Palácio Ducal<br />

às prisões, e consta fundamentalmente de duas janelas.<br />

Dificilmente se pode imaginar uma ponte mais bonita<br />

do que essa. É lindíssima! É um corredor coberto pelo<br />

qual os prisioneiros eram conduzidos para ser julgados<br />

pelas autoridades competentes. Como se vê, não há<br />

possibilidade de escapar, é uma condução que não oferece<br />

perigo de evasão.<br />

A denominação “Ponte dos Suspiros” é muito bonita.<br />

Mas exagerou-se, na literatura revolucionária,<br />

o alcance disso. Começou-se a dizer que por aí eram<br />

levados os prisioneiros destinados a serem executados.<br />

Depois, provou-se que não era verdade. Eram<br />

conduzidos para comparecer ante as autoridades judiciais,<br />

de onde, quiçá, poderiam sair absolvidos.<br />

Portanto, era um suspiro de tristeza, mas também de<br />

esperança: “Afinal, vou ser julgado. Talvez saio dessa<br />

história...”<br />

❖<br />

(Extraído de conferência de 7/12/1988)<br />

Didier Descouens (CC3.0)<br />

Domenico Tintoretto (CC3.0)<br />

Domenico Tintoretto (CC3.0)<br />

Sailko (CC3.0)<br />

Domenico Tintoretto (CC3.0)<br />

Domenico Tintoretto (CC3.0)<br />

35


Sede de almas<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº 265 Abril de <strong>2020</strong>


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Cindindo a<br />

História de<br />

alto a baixo<br />

Fotos: Marcus Ramos<br />

Numa piedosa imagem de<br />

Nosso Senhor flagelado,<br />

chama muito a atenção a<br />

sublimidade do olhar, no<br />

qual transparece o sofrimento<br />

intenso do Divino Salvador,<br />

que medita com profundidade<br />

a respeito do significado<br />

transcendente, metafísico,<br />

sobrenatural de todas as<br />

dores pelas quais passa. O<br />

Redentor divide a História<br />

entre os que são d’Ele e<br />

os que são contra Ele.<br />

T<br />

enho a intenção de comentar uma imagem de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa<br />

imagem que é bonita é muito pouco, porque mais<br />

do que isso é profundamente impressionante, e de molde<br />

a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo<br />

fazer dela objeto de nossas considerações.<br />

Significado transcendente, metafísico,<br />

sobrenatural das dores<br />

À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos<br />

dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas<br />

30


do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão<br />

apresentadas com um tal realismo e de modo<br />

tão brutal, que o instinto de conservação do homem<br />

clama com aquilo, tem a tendência a fugir e<br />

achar que não é arte representar um horror daqueles<br />

de um modo tão horripilante.<br />

Esse é um primeiro impulso que deve ser<br />

dominado porque é uma ingratidão. Tal será<br />

que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido<br />

tudo o que padeceu por nós, não queiramos<br />

sequer olhar para o Corpo chagado<br />

d’Ele porque isso pode nos desagradar.<br />

Como um primeiro impulso se compreende,<br />

pois é uma reação quase física. Porém,<br />

haveria ingratidão em consentir nesse impulso.<br />

Além de ingratidão é uma falta de<br />

respeito sem nome!<br />

Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado<br />

a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem,<br />

a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola,<br />

com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de<br />

fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX.<br />

Soube depois que ela se encontra no Canadá.<br />

Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos<br />

dessa imagem.<br />

Algumas coisas me agradam extraordinariamente<br />

nessa figura. A primeira delas que me chama mais a<br />

atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo.<br />

Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor<br />

parece abismado – aliás, santamente – na consideração<br />

da sua própria dor, e onde o artista procura atrair<br />

a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a<br />

fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio<br />

olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar:<br />

“Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”<br />

Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É<br />

bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma<br />

Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor,<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Flávio Lourenço<br />

tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes,<br />

cruéis, ou O adorariam transportados de amor<br />

e admiração na consideração da situação em que Ele está.<br />

Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra<br />

do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que<br />

dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos,<br />

a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações<br />

(cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a<br />

História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os<br />

que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os<br />

outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e<br />

outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao<br />

longe, num ponto indefinido.<br />

O Profeta Simeão recebe em seus braços<br />

o Menino Jesus - Museu da Colegiata<br />

de Santa Maria, Borja, Espanha<br />

nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de<br />

Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está<br />

acontecendo, do significado transcendente, metafísico,<br />

sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está<br />

passando, e que constitui propriamente uma meditação.<br />

Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo<br />

É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como<br />

Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto<br />

olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto<br />

de consideração em que uma mente humana possa se<br />

colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai<br />

até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da<br />

transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa<br />

consideração global não só do que fazem contra Ele, mas<br />

também do que realizam por Ele.<br />

De maneira que estão contemplados não apenas os homens<br />

vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos<br />

32


Flávio Lourenço<br />

Jesus entrega as chaves a<br />

São Pedro - Igreja de São<br />

Demétrio, Loarre, Espanha<br />

São João recostando-se sobre<br />

o peito de Jesus - Igreja de São<br />

Pedro, Estrasburgo, França<br />

O Apóstolo São Bartolomeu<br />

Igreja de São Bartolomeu,<br />

Múrcia, Espanha<br />

O beijo de Judas - Catedral<br />

de Pamplona, Espanha<br />

Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela<br />

qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado.<br />

Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição<br />

que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça<br />

não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira<br />

arrogante, mas posta com uma naturalidade digna<br />

sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue<br />

às suas mais altas cogitações.<br />

Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-<br />

-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo,<br />

de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo<br />

correto de postar os braços diante de um rei ou de uma<br />

rainha é esse. Assim está Ele.<br />

No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne<br />

sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras<br />

arrancadas. Embora esteja cercado por gente que<br />

ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as<br />

transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso,<br />

entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira<br />

que se poderia colocar, entre os muitos títulos que<br />

essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”,<br />

como também “Iesus autem tacebat” 1 .<br />

Três aspectos do divino olhar<br />

Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo,<br />

cai composto, com a parte direita meio voltada para<br />

trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a<br />

força moral que não O abandonaram nem mesmo nas<br />

situações mais terríveis.<br />

Creio ser este semblante a última expressão do<br />

comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo,<br />

orando durante a sua Paixão. Julgo discernir<br />

nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor<br />

Flávio Lourenço<br />

Virgem da Paz - Igreja de São<br />

Mateus, Lucena Espanha<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Flávio Lourenço<br />

Virgem das Dores - Igreja de São<br />

Francisco, Baena, Espanha<br />

física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante<br />

do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno<br />

tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto,<br />

encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu<br />

tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu<br />

tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto,<br />

ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso,<br />

uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce,<br />

suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída.<br />

Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim.<br />

Isto tem um sentido.”<br />

Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma<br />

tristeza moral, como que divinamente decepcionado<br />

com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino<br />

Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis<br />

que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram?<br />

Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por<br />

um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu<br />

a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes<br />

ainda deitara a cabeça<br />

sobre o peito d’Ele para<br />

fazer uma pergunta na<br />

intimidade; em São Bartolomeu,<br />

de quem Ele<br />

mesmo disse que era um<br />

verdadeiro israelita no<br />

qual não havia fraude e<br />

que, entretanto, O abandonou<br />

também... Ele está<br />

pensando em todos os<br />

outros. E lembrando-Se<br />

com horror do filho da<br />

perdição que O vendeu,<br />

Ele está cogitando em todos<br />

aqueles que O trairiam<br />

ao longo dos séculos.<br />

Entretanto, Jesus está<br />

pensando também em algo<br />

que O angustia enormemente,<br />

mas é magnífico:<br />

Nossa Senhora e a<br />

dor que Ela está sofrendo.<br />

Porém, por cima disso,<br />

parece-me ver os olhos<br />

do pensador que está meditando,<br />

fazendo a Filosofia<br />

e a Teologia daquele<br />

acontecimento central da<br />

História, que é a sua Paixão<br />

e Morte. E contemplando<br />

tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto<br />

haver dentro disso uma magnífica oração.<br />

Nosso Senhor sofreu tudo isso<br />

pelos rogos de Maria<br />

Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente<br />

formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde,<br />

na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A<br />

meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes<br />

acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar<br />

a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se<br />

consome, mas se eleva e se santifica.<br />

Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo:<br />

nem tem o contorno comum de um braço, mas<br />

está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços<br />

ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas<br />

no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade<br />

de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo<br />

isso.<br />

Ali vemos amarradas<br />

as mãos sagradas do Onipotente.<br />

É bonito que o<br />

escultor as tenha apresentado<br />

inteiramente descontraídas;<br />

não há contração<br />

nervosa, mas estão<br />

como as mãos de um rei<br />

prontas para serem osculadas.<br />

É o Rei da dor.<br />

Por nós, que somos escravos<br />

da Santíssima Virgem,<br />

essa imagem deve<br />

ser considerada de dentro<br />

dos olhos de São Luís<br />

Grignion de Montfort.<br />

Devemos entender que se<br />

Nosso Senhor sofreu tudo<br />

isso foi pelos rogos de<br />

Maria; se esse Sangue é<br />

aplicável a nós, é pelos rogos<br />

de Nossa Senhora; se<br />

nossa presença não causa<br />

horror a Ele, mas, pelo<br />

contrário, é aceita com<br />

misericórdia, é pelos rogos<br />

de Maria.<br />

É com Ela, por Ela e<br />

n’Ela que nós podemos<br />

nos apresentar a Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. Maria<br />

Santíssima é o cami-<br />

34


nho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos<br />

de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos,<br />

mas pelo menos de algum modo proporcionados para<br />

olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.<br />

Considerações sobre o escultor da imagem<br />

Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse<br />

homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido:<br />

muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão<br />

da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade,<br />

pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu<br />

o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo,<br />

muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se<br />

deixa identificar com o tema, que a expressão de alma<br />

dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura<br />

não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

O artista de tal maneira viveu, por assim<br />

dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O<br />

representa e se apaga. Não se percebe qual<br />

era o estado de alma dele, a não ser na extrema<br />

inteligência, propriedade, finura e,<br />

sobretudo, na extrema piedade com que<br />

ele apresenta a matéria; de resto, ele está<br />

ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito<br />

dentro da obra de arte.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 10/2/1976)<br />

1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém,<br />

calava.<br />

35


Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº 266 Maio de <strong>2020</strong><br />

A grande intervenção de Maria:<br />

um novo Pentecostes


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Mario S.<br />

Flor e glória da<br />

Cristandade - I<br />

Flávio Lourenço<br />

Cavaleiro<br />

templário<br />

Ponferrada,<br />

Espanha<br />

Todo o brilho que<br />

circunda a palavra<br />

“cavaleiro” se refere<br />

a uma das noções<br />

fundamentais da<br />

Civilização Cristã.<br />

Embora pareça existir<br />

uma incompatibilidade<br />

completa entre o católico<br />

e a guerra, o exemplo dos<br />

Anjos nos ensina que a<br />

força exercida por amor a<br />

Deus torna-se sagrada.<br />

Não há uma data específica para indicar o<br />

fim da Cavalaria, de maneira a se poder dizer:<br />

“Ela terminou em tal ocasião”, mas é certo<br />

que, assim como os grandes crepúsculos não têm momento<br />

adequado para se afirmar que se fez noite, também<br />

o “pôr do sol” da Cavalaria não se sabe bem quando<br />

se consumou.<br />

Palavra que dignifica o homem a quem se refere<br />

Entretanto, lá pelo século XVII já não se podia propriamente<br />

falar nesta instituição. Havia Ordens que já<br />

não tinham quase nada da Cavalaria antiga. Possuíam<br />

meras recordações, era um título, mas a Cavalaria propriamente<br />

dita tinha desaparecido.<br />

Mais de trezentos anos depois, eu encontro jovens<br />

que, ao serem chamados de “cavaleiros”, sentem-se dignificados,<br />

mesmo sem conhecer tudo quanto a palavra<br />

“cavaleiro” significa.<br />

Quando se quer elogiar alguém que teve um procedimento<br />

bonito, nobre, abnegado, corajoso, diz-se: “Tu<br />

procedeste como um cavalheiro!” Havendo entre dois<br />

homens educados uma altercação que se encerra de um<br />

modo distinto e elegante, afirma-se: “Terminou como<br />

uma contenda de cavalheiros!” Por outro lado, ao quei-<br />

30


xar-se contra quem lhe faltou com o respeito, uma senhora<br />

poderá usar esta fórmula: “O senhor não foi um<br />

cavalheiro!”<br />

Cavaleiro – de onde deriva o termo “cavalheiro” – é,<br />

portanto, uma palavra que circula por toda parte, mas<br />

cujo sentido quase ninguém sabe definir com exatidão.<br />

O termo sugere a ideia de alguém que monta a cavalo.<br />

Entretanto, quando vemos, por exemplo, alguns soldados<br />

da Polícia Militar a cavalo fazendo a ronda do bairro,<br />

embora seja uma tarefa digna, honesta, própria a<br />

despertar a simpatia, podemos dizer que são cavaleiros?<br />

Eles poderão fazer parte de uma força de cavalaria da<br />

Polícia Militar, mas a Cavalaria é uma outra coisa.<br />

O que vem a ser o cavaleiro? O que ficou colado nesta<br />

palavra de modo que, mesmo sem saber defini-la, todos<br />

reconhecem nela um certo brilho, uma certa luz que dignifica<br />

o homem a quem se refere? Vale a pena examinarmos<br />

isto para compreendermos uma das noções fundamentais<br />

da Civilização Cristã, mais ou menos tão perdida<br />

na mente do homem contemporâneo como desaparecida<br />

está a própria ideia de Civilização Cristã.<br />

Há restos, aromas da Civilização Cristã no mundo de<br />

hoje, como num jarro de onde foi retirada uma rosa que<br />

ali esteve durante algum tempo: tira-se a flor, fica o perfume.<br />

Assim também, da Civilização Cristã no mundo de<br />

hoje há um resto de perfume, mas a rosa não está mais<br />

presente.<br />

O tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado<br />

Ora, uma das palavras nas quais se sente o perfume<br />

da Civilização Cristã é “cavaleiro”. Ele é uma flor e uma<br />

glória da Cristandade. A tal ponto que o termo “cavaleiro”<br />

tem um nexo histórico e doutrinário muito merecido<br />

com a ideia de Cruzada. Quando se diz “fulano é um<br />

cruzado de tal ideal, ou de tal causa”, dá-se a entender<br />

que é um homem abnegado, heroico, corajoso, dedicado,<br />

que não conhece obstáculo, enfim, um grande homem.<br />

Os cruzados não só são cavaleiros, mas o tipo mais<br />

perfeito do cavaleiro é o cruzado. Que aroma misterioso<br />

e delicioso impregna essas palavras de maneira a resistir<br />

até à poluição deste fim de era histórica em que estamos<br />

vivendo!<br />

Devemos considerar que, ao falar de cavaleiro, referimo-nos<br />

a alguém que realizou a mais alta perfeição de<br />

um certo tipo de qualidades humanas. Um santo não é<br />

necessariamente um cavaleiro, mas um cavaleiro que leve<br />

as suas qualidades até o extremo torna-se santo. Mais<br />

ainda: um santo, colocado nas condições em que lutaram<br />

os cavaleiros, também ficaria um cavaleiro.<br />

O santo é o homem que atingiu a sua perfeição, que foi<br />

chamado por Deus a um alto grau de virtude e correspondeu<br />

inteiramente, ou de modo exímio, a esse chamado.<br />

O cavaleiro, por sua vez, corresponde a uma forma<br />

de perfeição de que deve ser capaz todo homem coloca-<br />

Marc Baronnet (CC3.0)<br />

Os cruzados agradecem aos Céus por<br />

sua vitória na tomada de Jerusalém<br />

Palácio de Versailles, França<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

do nas condições de lutar. O verdadeiro católico, impelido<br />

pelas circunstâncias a combater, torna-se cavaleiro.<br />

Logo, o cavaleiro é o católico em luta. É uma forma de<br />

excelência e de perfeição que se nota no católico quando<br />

as condições da vida, do embate entre o bem e o mal, o<br />

colocam no caso de batalhar. Aí estará o católico emitindo<br />

um particular brilho de sua alma. Esse brilho é o espírito<br />

da Cavalaria.<br />

WGA (CC3.0)<br />

Dralon (CC3.0)<br />

Entre os anjos reinava uma<br />

harmonia perfeitíssima<br />

Para termos uma ideia exata da Cavalaria, reportemo-nos<br />

ao que poderíamos chamar a primeira manhã da<br />

Criação. Deus criou os anjos, puros espíritos; os homens,<br />

compostos de espírito e matéria, tendo um corpo perecível<br />

no qual estão presentes as naturezas animal, vegetal<br />

e mineral; os animais, os vegetais e os minerais. Esse é<br />

o quadro geral da Criação que, tomada no seu todo, teve<br />

a sua primeira manhã no momento<br />

em que Deus criou os anjos.<br />

Podemos imaginar a criação<br />

dos anjos simultânea, de maneira<br />

a todos, desde o primeiro instante<br />

de existência, começarem a<br />

brilhar, conhecer, adorar a Deus<br />

e a cantar as glórias d’Ele.<br />

Também imediatamente<br />

passam a se conhecerem uns<br />

aos outros e se relacionarem<br />

de um modo harmônico, em<br />

coros que cantam a glória de<br />

seu Criador. Entre eles reina<br />

uma harmonia perfeitíssima<br />

porque estão<br />

todos voltados para<br />

Deus.<br />

Essa harmonia<br />

tem o esplendor<br />

da paz, que Santo<br />

Agostinho definiu tão<br />

magnificamente como<br />

sendo a tranquilidade<br />

da ordem. Portanto,<br />

não é a qualquer tranquilidade<br />

que se pode<br />

chamar de paz, mas àquela<br />

que resulta da ordem.<br />

Há formas de desordem<br />

que dão a impressão de paz.<br />

Num charco, por exemplo,<br />

com água estagnada, no<br />

Adoração dos Anjos - Capela dos<br />

Reis Magos, Florença, Itália<br />

qual nada acontece, nada se move, há uma tranquilidade,<br />

mas não oriunda da ordem. Há qualquer coisa de propício<br />

à podridão, à degenerescência, à degradação, que prenuncia<br />

a desordem. Isso não é paz.<br />

Entre os anjos, pelo contrário, por estarem todos ordenados<br />

em função da vontade e da glória divinas, havia a permuta<br />

harmoniosa de bons ofícios para juntos adorarem a Deus.<br />

Quem introduzisse no Céu qualquer semente de desordem,<br />

um espírito mau que tentasse provocar uma intriga<br />

entre dois anjos, instigando o amor-próprio de um<br />

contra outro para produzir uma encrenca ali dentro, nós<br />

o chamaríamos de bandido! Porque ia perturbar a tranquilidade<br />

da ordem, o esplendor do Reino de Deus sobre<br />

todas aquelas criaturas.<br />

Com maior razão ainda, se um puro espírito sacasse<br />

uma espada – para usar uma linguagem metafórica, pois<br />

32<br />

Godofredo de Bouillon - Igreja<br />

da Corte, Innsbruck, Áustria


WGA (CC3.0)<br />

um anjo não tem corpo – e começasse a agredir o outro,<br />

nós o consideraríamos demônio. Por que ele vai atingir e<br />

ferir o outro, pô-lo em desordem e provocar efervescência<br />

de ódio? Colocar o tumulto, as incertezas e as angústias<br />

das guerras onde deveria haver apenas a segurança<br />

esplêndida e diáfana de um futuro que nada perturbaria?<br />

Quem fizesse isso praticaria uma ação muito má. Nela<br />

nós podemos ver o que há de substancialmente mau<br />

na violência, a qual, de si, considerada sem as circunstâncias<br />

que a expliquem, é um ato feio que macula com<br />

a sua própria feiura quem o pratica. O violento fica hediondo.<br />

Não há pior ultraje contra alguém do que dizer:<br />

“Tem cara de assassino.” É uma coisa horrorosa…<br />

Dir-se-ia, pois, existir uma incompatibilidade completa<br />

entre o católico e a guerra, porque ele é membro do<br />

Corpo Místico de Cristo; nele está presente, pela graça,<br />

a própria vida de Deus, é um templo do Espírito Santo,<br />

foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, tendo por Co-Redentora Nossa<br />

Senhora, com suas lágrimas indizivelmente preciosas. O<br />

católico é um filho da ordem, da tranquilidade, é a sede<br />

da paz!<br />

Como podemos imaginar um homem nessas condições<br />

que prepara para si uma arma com a intenção de<br />

verter o sangue alheio e, quando a arma está pronta,<br />

procura a quem matar? Ele deseja tanto matar que até<br />

expõe a sua vida para esse efeito, porque tem ódio, quer<br />

ver sangue derramado e gente morta pela destra dele.<br />

Esse é um católico, um templo do Espírito Santo, um<br />

membro d’Aquele que diz: “Aprendei de Mim que sou<br />

manso e humilde de coração…”?! O contraste não é o<br />

mais abrupto possível?<br />

Um prélio magno travou-se nos Céus<br />

Entretanto, quando Lúcifer se levantou contra Deus e<br />

arrastou com sua revolta uma terça parte<br />

dos espíritos celestes, provocando<br />

uma Revolução no Céu contra o Criador,<br />

houve um Anjo que soube<br />

se erguer e bradar: “Quis ut<br />

Deus? – Quem como Deus?”<br />

Foi São Miguel Arcanjo que,<br />

com esse brado, conclamou à<br />

luta dois terços<br />

dos espíritos<br />

celestes, realizando<br />

o que<br />

diz a Escritura:<br />

“Prœlium magnum<br />

factum est in cœlis.”<br />

Na mansão da<br />

paz e da tranquilidade<br />

se fez uma grande guerra,<br />

um prélio magno travou-se nos<br />

Céus e São Miguel com os seus<br />

Anjos jogaram no Inferno a Lúcifer<br />

e seus sequazes. Portanto,<br />

o resultado dessa batalha foi<br />

lançar os vencidos na mansão<br />

da desgraça incessante, total<br />

e inexpiável, sabendo que eles<br />

iriam ter esses tormentos por<br />

toda a eternidade. Os anjos de<br />

paz, que antes se amaram, cindiram-se<br />

e os dois terços capitaneados<br />

por São Miguel – eles, os<br />

pacíficos, os filhos da Luz – quiseram<br />

arrojar na mansão eterna<br />

das trevas e da morte satanás<br />

e seus anjos.<br />

Flávio Lourenço<br />

O Bom Pastor - Catedral de Nossa Senhora<br />

da Assunção, Montauban, França<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Gustave Doré (CC3.0)<br />

zes se tornaram execráveis e hediondos.<br />

Segunda: aqueles anjos que eram de paz,<br />

de cordura, se transmudaram nos maiores<br />

guerreiros que se possa imaginar. Terceira:<br />

a mansão da paz se transformou num terrível<br />

campo de batalha.<br />

A força exercida contra os maus<br />

por amor a Deus se torna sagrada<br />

Entrada dos cruzados em Constantinopla<br />

Usando sempre uma linguagem metafórica, imaginemos<br />

a cena. São Miguel se levanta indignado, esplendoroso,<br />

e brada com uma voz de trombeta que cobre, de<br />

ponta a ponta, as vastidões celestes: “Quis ut Deus?” De<br />

um lado, muitos Anjos se entusiasmam e aderem a ele,<br />

constituindo as gloriosas hostes celestes. Mas, do outro<br />

lado – onde talvez houvesse antes um esplendor maior,<br />

pois os partidários eram capitaneados pelo mais perfeito<br />

dos entes angélicos, aquele que trazia consigo a luz,<br />

outrora a alegria do reino celeste, espelhando a Deus para<br />

os outros anjos – encontra-se Lúcifer, medonho, rubro<br />

de ódio e de cólera. Todas as paixões indignas se manifestam<br />

nele; está cheio de inveja e de todos os outros<br />

pecados capitais, na medida em que esses podem estar<br />

em um anjo. O espírito revoltado encontra-se agora borbulhando<br />

de ódio contra aquele Deus a Quem ele olhava<br />

com amor.<br />

A luz das hostes de São Miguel avança e a batalha começa!<br />

Como terá sido esse embate? Como podem puros<br />

espíritos, que não têm corpo, combater entre si?<br />

O fato concreto é que houve três transformações a<br />

partir da revolta de Lúcifer. Primeira: ele e seus sequa-<br />

A partir desse momento, a violência nos<br />

aparece sob outra cor. Se é verdade que,<br />

considerada na simplicidade de sua figura<br />

primeira, ela é hedionda, quando a vemos<br />

ter origem na oposição a um anjo que se<br />

tornou péssimo ao se revoltar, tentando ele<br />

mesmo a violência contra o Criador, declarando<br />

“non serviam – não servirei a Deus”,<br />

então o uso da violência passa a ter uma<br />

beleza especial.<br />

Deus é supremo e absoluto, todos os direitos<br />

valem na medida em que O servem.<br />

A partir do momento em que esses anjos<br />

se revoltaram contra Ele, opondo-se a todo<br />

o direito, toda a ordem e toda a lei, perderam<br />

o direito de estar no Céu, e o único<br />

lugar proporcionado para eles era o Inferno.<br />

Resultado: tornava-se necessário enxotá-los<br />

para lá. A guerra surge, assim, como<br />

um santo e glorioso dever.<br />

O emprego da força, que pareceria tão contrário à<br />

convivência entre os espíritos celestes, passa a ter um esplendor<br />

peculiar: é o amor a Deus enquanto recusando o<br />

mal e derrubando no Inferno quem é contra Ele.<br />

Como nada pode tornar o espírito humano tão apreciável<br />

e venerável quanto o amor de Deus, assim também<br />

a força exercida por amor a Ele, chegando inclusive<br />

à agressão, quando esta é destinada à defesa da glória<br />

divina, se torna sagrada e resplandece com um brilho<br />

especial.<br />

Daí vem a noção do homem completo. Se lhe foi dada<br />

a ocasião de atacar o mal e não o fez, ele pode não ter desenvolvido<br />

a sua força de alma como era necessário. Assim,<br />

entre dois homens muito virtuosos, um dos quais<br />

pouco lutou na vida, enquanto o outro, de ponta a ponta<br />

de sua existência, foi um guerreiro, qual aquele cuja personalidade<br />

podemos apreciar melhor? Evidentemente a<br />

daquele que, além de ter sido tudo o que o outro foi, ainda<br />

combateu.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 26/5/1984)<br />

34


Samuel Holanda<br />

São Miguel Arcanjo vencendo<br />

o demônio - Museu do<br />

Prado, Madri, Espanha<br />

35


Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº 267 Junho de <strong>2020</strong><br />

Sapiencial e Imaculado Coração<br />

de Maria: garantia da vitória


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Flor e glória da<br />

Daniel A.<br />

Cristandade - II<br />

Gabriel K.<br />

O cavaleiro era o varão católico<br />

destinado a viver para o<br />

emprego da força em defesa da<br />

Cristandade. Piedoso, humilde,<br />

generoso, previdente e casto, era<br />

o terror dos maus e o encanto<br />

dos bons. Seu amor a Deus e ao<br />

próximo se exteriorizava pelos<br />

modos de ser, que o tornavam<br />

gentil, distinto, apreciador do<br />

cerimonial. Tudo isso define<br />

o perfil de quem, em nossos<br />

dias, é contrarrevolucionário<br />

do fundo da alma.<br />

Ocavaleiro, tal como existiu na Idade Média, é o<br />

varão católico apostólico romano destinado a viver<br />

para o emprego da força em defesa da Cristandade.<br />

Para melhor compreendermos esse papel do<br />

cavaleiro, consideremos alguns dados históricos.<br />

Um alicate gigantesco: mouros e bárbaros<br />

Na Chanson de Roland – obra lendária, épica, mas<br />

que retrata uma situação histórica –, chama-nos a atenção<br />

e comove notar que se fala dos doze pares de Carlos<br />

Magno com admiração, canta-se a glória deles como<br />

sendo grandes guerreiros, mas não há uma referência<br />

aos filhos do grande Imperador, pois estes eram uns son-<br />

gamongas, incapazes de carregar o fardo glorioso do Império<br />

que o pai deles tinha sabido estabelecer.<br />

Resultado: a partir de sua divisão em três reinos, correspondentes<br />

aos três filhos de Carlos Magno, iniciou-<br />

-se o esboroamento do Império. Somava-se a isso a precariedade<br />

das estradas, tornando tão difíceis as comunicações<br />

entre o poder central e as grandes propriedades<br />

rurais que, embora cada proprietário rural ainda obedecesse<br />

teoricamente ao monarca, na prática constituía-se<br />

à maneira de um reizinho do local. Assim, o Império se<br />

esmigalhou, no sentido etimológico da palavra.<br />

Consideremos que esse Império estava sob a pressão,<br />

à maneira de um alicate gigantesco, das invasões dos<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

mouros, dos hunos e outros bárbaros. Portanto, assim<br />

esboroado, tinha ainda que oferecer resistência a essas<br />

hordas de invasores.<br />

Consequentemente, os homens mais poderosos começaram<br />

a construir, em torno de suas terras, muralhas para<br />

abrigar sua família, seus trabalhadores, seu gado, suas<br />

colheitas e, sobretudo, a capela com o Santíssimo Sacramento,<br />

imagens e relíquias. Quando ouviam falar que, de<br />

longe, vinha o adversário, todos se refugiavam atrás das<br />

muralhas, de onde passavam a combater o inimigo.<br />

À medida que o invasor encontrava em seu caminho<br />

essas fortificações, ia se tornando enfraquecido. Ainda<br />

quando não fosse esmagado diretamente, avançava mais<br />

ou menos como um touro cada vez mais crivado de banderillas.<br />

Em determinado momento, ele caía e morria.<br />

Era um modo jeitoso de cada proprietário, defendendo a<br />

si e aos seus, proteger a todos.<br />

Constituiu-se, assim, uma situação singular: o proprietário<br />

rural, que era como um fazendeiro de hoje, ficou<br />

com a incumbência de construir as muralhas e dirigir<br />

a guerra. Por conseguinte, deveria dar o exemplo sendo<br />

o guerreiro por excelência que ia montado a cavalo,<br />

de espada em punho; o mais corajoso tinha de ser ele.<br />

Depois, vinham seus filhos e sua parentela. Só mais para<br />

trás estavam os camponeses. Porque os primeiros do<br />

lugar deveriam ser os primeiros na luta e no sacrifício.<br />

Desta maneira, estabeleceu-se uma espécie de identificação<br />

pela qual a classe dos proprietários rurais era<br />

a dos guerreiros, dispostos a dar a vida por aqueles a<br />

quem governavam. Sendo pequenos “reis” locais, eles<br />

compunham a nobreza – o barão, o conde, o marquês –<br />

sob a direção de outro “rei” maior, que era o duque, o<br />

qual, por sua vez, estava sob as ordens do rei propriamente<br />

dito. Constituía-se, assim, a hierarquia feudal.<br />

Havia, portanto, uma classe dos homens mais ricos,<br />

poderosos e nobres, que eram também os mais corajosos<br />

e guerreiros, aos quais os outros deviam obediência,<br />

mas os primeiros tinham uma dedicação como raras vezes<br />

um pai possui em relação a seu filho. Era o equilíbrio<br />

social estabelecido, com uma sabedoria extraordinária,<br />

em função das condições militares e políticas do tempo.<br />

Guerreiros descendentes de bárbaros,<br />

mas civilizados pela ação da Igreja<br />

Esses guerreiros eram descendentes de bárbaros como,<br />

por exemplo, os germanos, cujo perfil os romanos deixaram<br />

descrito para a História. Eram tipos louros de olhos<br />

azuis, mas como quase todos sofriam de oftalmia, aquele<br />

azul ficava banhado num mar de sangue das oftalmias mal<br />

curadas, o que, juntamente com a melena loura suja, mal<br />

cuidada, caída para trás, lhes davam um aspecto monstruoso.<br />

Avançavam brandindo armas e se despejando em cima<br />

das populações com uma ferocidade medonha, matando os<br />

homens, despedaçando os cadáveres, quebrando objetos e<br />

monumentos preciosos, tomando conta das cidades e reduzindo<br />

os romanos moleirões a servos, de maneira que eles<br />

– imundos e broncos – ficavam mandando nos homens cultos,<br />

finos, numa inversão completa de valores.<br />

Project Gutenberg (CC3.0)<br />

Gabriel K.<br />

32


Conta-se que, antes das batalhas, eles passavam a noite<br />

no alto das montanhas bebendo e cantando para se adestrarem<br />

para o combate. Ao amanhecer, desciam em hordas<br />

silvando, uivando como bichos, com uma parte do corpo<br />

nua e toda pintada, tendo amarrados por cima da cabeça<br />

crânios de animais. Era o uso da força no que ela tem de<br />

mais hediondo e brutal. Enquanto os homens desciam as<br />

encostas da montanha, as mulheres ficavam em cima, bebendo<br />

e cantando canções guerreiras para estimulá-los.<br />

Os funcionários do Império Romano fugiam todos para o<br />

Sul, onde os bárbaros ainda não tinham chegado. Havia, entretanto,<br />

quem não fugisse: a Santa Igreja Católica Apostólica<br />

Romana. Os padres e os bispos permaneceram em meio<br />

à barbárie e começaram a converter os bárbaros nos quais,<br />

após várias gerações de gente batizada, entrou a doçura de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo. Desses bárbaros batizados nasceram<br />

os cavaleiros, herdeiros daquela força, daquele senso<br />

da luta, daquele gosto pelo combate e pela aventura que,<br />

quando bem entendidos, devem caracterizar o homem.<br />

Por outro lado, uma vez convertidos, esses guerreiros se<br />

tornaram verdadeiros artesãos da paz porque não empregavam<br />

a força para fazer mal, mas a fim de se defenderem<br />

do mal que os outros iam lhes fazer. E se promove a paz<br />

quem não faz mal a ninguém, também é um promotor da<br />

paz aquele que defende a ordem por meio da força, se necessário<br />

for. Pois se, como vimos, a paz é a tranquilidade<br />

da ordem, quando alguém luta para restabelecer a ordem e<br />

a tranquilidade está defendendo a paz. Assim, quando em<br />

seus castelos eles defendiam as suas populações, suas riquezas<br />

honestamente acumuladas e, sobretudo, o Santíssimo<br />

Sacramento, agiam enquanto guerreiros da paz.<br />

Sendo a paz um bem, deve ser amada com amor maior<br />

do que a paixão desregrada com que o celerado se entrega<br />

ao mal; eles precisariam ser ardentíssimos defensores<br />

da paz, guerreiros mais ferozes no combate pelo bem<br />

do que os outros eram na luta pelo mal.<br />

O perfil moral do cavaleiro...<br />

Vai surgindo, assim, a figura do cavaleiro: um guerreiro<br />

tremendo, que metia medo no adversário, mas sem ódio<br />

individual. O verdadeiro cavaleiro católico não podia matar<br />

por ódio pessoal. São Bernardo diz na regra dos Templários,<br />

da qual ele foi o autor, que o cavaleiro deve ser sereno<br />

e sem ódio individual, sem nenhuma dessas paixões<br />

que degradam tanto o homem quando ele fica com os furores<br />

do egoísmo; mas precisa ser terrível para fazer prevalecer<br />

a ordem que o Criador quer na Terra, os direitos<br />

de Deus contestados.<br />

Por isso o cavaleiro, terror dos maus, é um encanto dos<br />

bons. Termina a batalha, o cavaleiro volta para o seu castelo,<br />

sua presença é a alegria de todos, porque ele afaga, é<br />

bom, não é vaidoso, recebe as homenagens que lhe são devidas,<br />

mas tem gosto de exaltar o valor dos outros: “Aquele<br />

combateu muito bem... Fulano, você foi um herói, eu lhe<br />

dou um título e tal parte de minhas terras...” Recompensas<br />

aceitas pelos outros, não por egoísmo, mas por encantamento.<br />

“Como é bom o senhor! Como ele é generoso!<br />

Como é grande! Que encanto sua presença no castelo! Lá<br />

fora ele era o terror, aqui é a flor do castelo!”<br />

Então aparece outro lado do cavaleiro: herói por amor a<br />

Deus, piedoso antes de tudo. Acaba a batalha, ele entra na<br />

capela do castelo, ajoelha-se e dá graças por ter escapado<br />

ileso. Agradece, sobretudo, por ter conseguido afugentar o<br />

bárbaro ou o maometano e levar à vitória os fiéis, fazendo<br />

brilhar a glória de Deus sobre o adversário. Diante de uma<br />

imagem de Nossa Senhora, ele reza especialmente agrade-<br />

Samuel Holanda<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Arquivo Revista<br />

cido, enternecido. Todos cantam juntos. Seria uma das maneiras<br />

como se poderia imaginar a celebração da vitória.<br />

No dia seguinte recomeça o trabalho. Todos já estão<br />

saindo da fortaleza, levando para suas casas seus pertences,<br />

as famílias vão se reinstalando, as mulheres retomam<br />

seus afazeres domésticos, os homens voltam a cuidar da<br />

agricultura. Enquanto isso, o castelão está tomando providências:<br />

“A fortaleza ficou quebrada em tal ponto, devemos<br />

consertar depressa, porque ninguém sabe quando<br />

o adversário vem. Quantas armas perdemos? Precisamos<br />

mandá-las refazer logo. A experiência atesta que tal arma<br />

tem melhor efeito se elaborada de tal maneira...” Então,<br />

ele dá ordem para fabricar as novas armas daquele modo.<br />

Quando o castelo é grande, tem no seu interior uma<br />

verdadeira aldeiazinha de carpinteiros, ferreiros e artesãos<br />

que vão preparando todo o necessário para o próximo<br />

combate. Porque o descanso é apenas a respiração entre<br />

duas batalhas.<br />

Vemos, então, mais dois traços do cavaleiro: ele é piedoso,<br />

humilde, gosta de se curvar diante de Deus, é generoso,<br />

sente prazer em dar, elevar os outros, dignificar<br />

os talentos alheios, sua alegria está não em ser o único,<br />

mas o chefe de gente que tem valor. Outro traço: ele é<br />

previdente e já se prepara para a próxima guerra.<br />

Tudo isso vai constituindo o perfil moral do cavaleiro.<br />

Ele é doce, afável, bondoso, mas essa afabilidade, esse<br />

amor cristão que o cavaleiro tem ao próximo se traduz<br />

nas boas ações, como também nas boas maneiras,<br />

que são o modo de exteriorizar a bondade interior. O cavaleiro<br />

é gentil, distinto, trata as pessoas bem. Por ser<br />

filho da paz, ele quer a ordem, e esta prescreve que cada<br />

um seja tratado de acordo com a sua categoria. Assim,<br />

o cavaleiro acolhe cada um segundo a respectiva ca-<br />

Dr. Plinio em 1984<br />

tegoria, mas quer que o respeitem. E se alguém lhe faltar<br />

com o respeito, vem a repreensão e, conforme for, a punição.<br />

É natural.<br />

...define o perfil do autêntico<br />

contrarrevolucionário<br />

Em torno dele vai se constituindo um cerimonial, ao<br />

qual gradualmente são incorporadas sua família e pessoas<br />

dos outros castelos, que são como ele e com ele convivem,<br />

e vão formando uma classe onde a educação é<br />

mais excelente, o palavreado mais elevado, mais florido<br />

e bonito, a distinção dos trajes e das maneiras floresce e<br />

surge a cortesia, a distinção própria dos cavaleiros.<br />

Essa classe não rebaixa as outras, ela vai subindo mais<br />

ou menos como um balão que, ao elevar-se, fosse levando<br />

toda a população consigo. A ascensão dos cavaleiros era<br />

a ascensão da nação inteira. Com os cavaleiros, os outros<br />

mais chucros aprimoravam a linguagem, a educação, iam<br />

se cultivando e acabando de se desbarbarizar.<br />

O cavaleiro era sinônimo de nobre? Todo nobre era cavaleiro,<br />

e todo cavaleiro era nobre? Não era tanto assim. Concebiam-se,<br />

numa situação excepcional, certos plebeus se tornarem<br />

cavaleiros, bem como determinados nobres não serem<br />

cavaleiros, mas não era o normal. A maioria dos cavaleiros<br />

era nobre, e muitos dos plebeus que se tornavam cavaleiros<br />

pela sua coragem ascendiam à nobreza. A fonte do recrutamento<br />

da nobreza era principalmente a Cavalaria.<br />

Temos, então, o sentido do cavaleiro em nossos dias. Por<br />

que a palavra é tão respeitada, bela e significa tanta coisa?<br />

É por ser esse tipo ideal do católico posto na sociedade<br />

temporal e que tem como um dos traços mais preponderantes<br />

de sua alma a combatividade, não a serviço de seus interesses,<br />

mas de Deus, da Igreja, da Cristandade.<br />

Ora, é isso que propriamente define<br />

o perfil de quem, em nossos dias, é<br />

contrarrevolucionário do fundo da alma.<br />

Este é corajoso, terrível, admirável,<br />

bondoso, gentil, acolhedor. Sua palavra<br />

vale como escritura pública, porque<br />

um cavaleiro não peca e, portanto,<br />

não mente nunca. Ele é casto, porque a<br />

impureza é o contrário da Cavalaria.<br />

No cavaleiro reluziam<br />

todas as qualidades do<br />

verdadeiro católico<br />

Na Idade Média, era normal que os<br />

cavaleiros que não entrassem para uma<br />

Ordem Religiosa de Cavalaria se casas-<br />

34


sem. O cavaleiro era o homem<br />

virgem que se casava com a dama<br />

virgem; Cavalaria e virgindade<br />

eram complementares. A<br />

força dele era a do homem casto,<br />

puro, não a do cafajeste frequentador<br />

de botequins.<br />

No cavaleiro reluziam, com<br />

o brilho do aço, todas as qualidades<br />

do verdadeiro católico.<br />

Tanto quanto me lembre, os<br />

meus primeiros encontros com<br />

a Cavalaria foram saboreando<br />

esta palavra, e compreendendo<br />

que ela era como uma misteriosa<br />

pedra preciosa que não brilhava<br />

com a luz vinda de fora,<br />

mas com um fulgor proveniente<br />

de dentro. As palavras “Cavalaria”<br />

e “cavaleiro” pareciam-me<br />

ter em si mesmas uma beleza,<br />

uma dignidade, uma distinção<br />

extraordinárias. Eram como um<br />

brilhante ou um rubi que rutilava<br />

por si mesmo.<br />

Nos remotos anos de minha<br />

infância, usava-se a palavra<br />

“cavalheiro” um pouco mais do que hoje, e ela teve um<br />

importante papel em minha formação. Algumas vezes, recebi<br />

de minha governanta a recomendação de ser um cavalheiro.<br />

Por exemplo, fui educado junto com minha irmã e uma<br />

prima, e com certa frequência fazíamos passeios a pé para<br />

exercitar. As regras de educação, com vagos restos da<br />

Cavalaria, prescreviam que o cavalheiro deveria dar atenção<br />

e precedência à dama por esta ser mais frágil. E as<br />

duas meninas, às vezes, deixavam cair alguma coisa.<br />

Eu, perpetuamente distraído, começava por não notar<br />

aquele objeto jogado no chão. Primeira repreensão<br />

da Fräulein Mathilde: “Quem está com senhoras – imaginem<br />

menininhas de quatro, cinco anos... – deve prestar<br />

contínua atenção nelas para ver se não estão precisando<br />

de qualquer coisa. É assim que age um cavalheiro. Você<br />

não procedeu como um cavalheiro porque não estava<br />

com sua atenção fixa nelas para saber que cortesia deveria<br />

fazer. Agora vá e apanhe o objeto.”<br />

Eu pensava: “Vai me dar menos trabalho apanhar esse<br />

objeto do que brigar com essa alemã. Vou pegar para<br />

não ter amolação.” Pegava e dava para a menina que o<br />

tinha deixado cair. Mas a governanta continuava:<br />

“Não senhor, sorria! Na hora de entregar, precisa<br />

mostrar sua alegria por ter prestado serviço, sorria!”<br />

Cerco de Antioquia - Biblioteca Nacional, Paris, França<br />

Além disso, por<br />

vezes as crianças tendem<br />

a ser descuidadas<br />

quando estão à<br />

mesa, deixando cair<br />

comida, o que não é<br />

bonito. Quando isso<br />

se dava, logo vinha<br />

a recomendação:<br />

“Cavalheiro não deixa<br />

cair grãos de arroz, entretanto<br />

se acontece recolhe-<br />

-os não com seu dedo, mas<br />

com uma colher...” E assim<br />

tantas outras regras de<br />

educação. “Cavalaria” foi<br />

para mim uma palavra que<br />

tinha um som de ouro, mas<br />

batia como uma chicotada,<br />

e isso me fez extraordinariamente<br />

bem. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 26/5/1984)<br />

Jean Colombe (CC3.0)<br />

Flávio Lourenço<br />

Cavaleiro Templário<br />

Priaranza del Bierzo, Espanha<br />

35


Fortaleza e bondade<br />

a serviço da Fé


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Samuel Holanda<br />

Sacralidade,<br />

renúncia e força<br />

Pórtico da<br />

Catedral de<br />

Amiens, França<br />

de impacto<br />

O cavaleiro medieval era<br />

fundamentalmente religioso,<br />

persuadido de sua Fé e da<br />

legitimidade, e até da obrigação,<br />

de usar o máximo de força a<br />

serviço da verdadeira Religião.<br />

Imbuído da liceidade dos<br />

meios que empregava, ele<br />

se deu por inteiro à Causa<br />

católica, estando disposto a ir<br />

até o fim e a morrer por ela.<br />

V<br />

amos fazer algumas considerações em torno de<br />

uma estátua que representa um guerreiro medieval,<br />

ostentando uma faixa com a palavra<br />

“Credo”.<br />

Diálogo de increpação com quem<br />

se encontra diante dele<br />

É uma peça típica do século XIX. Em geral, as figuras<br />

da Idade Média nada têm de teatral. Por exemplo, as<br />

esculturas que ornamentam as catedrais, postas em ni-<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Horace Vernet (CC3.0)<br />

Château de Versailles (CC3.0)<br />

Napoleão na Batalha da Ponte de Arcole<br />

Galeria Christie’s, Londres<br />

Marechal Michel Ney durante a Batalha de Hohenlinden<br />

Galeria das Batalhas, Palácio de Versailles, França<br />

Yavor Doychinov (CC3.0)<br />

chos, estão para ser vistas, mas o artista teve a preocupação<br />

de esculpi-las como se ignorassem os espectadores.<br />

De maneira que não têm nada de teatral.<br />

O século XIX foi o século do teatro, como o XX foi<br />

o do cinema. Porque a arte teatral teve uma expansão<br />

no século XIX fabulosa, como quantidade e importância<br />

na vida concreta, em comparação com o século posterior.<br />

Catedral de Colônia, Alemanha<br />

Esse caráter teatral é o lado fraco não só da arte, mas<br />

da mentalidade de todo o mundo no século XIX, inclusive<br />

dos contrarrevolucionários.<br />

Assim, esse guerreiro foi representado de maneira a<br />

estar tomando posição perante outrem, num diálogo de<br />

increpação com quem se encontra diante dele.<br />

Por outro lado, o autor representou bem um lado admirável<br />

da alma do cavaleiro medieval: enquanto guerreiro,<br />

de tal maneira fundamentalmente religioso que,<br />

visto de um aspecto, ele não é senão religioso e só se ocupa<br />

com a Religião.<br />

Ademais, está por inteiro persuadido de sua Fé e da<br />

legitimidade, e até obrigação, de usar o máximo de força,<br />

dentro das regras moralmente nobres da Cavalaria,<br />

a serviço da verdadeira Religião. Ele está altamente imbuído<br />

da legitimidade dos meios que emprega e se deu<br />

por inteiro a essa Causa, disposto a ir até o fim e a morrer<br />

por ela. Há, portanto, a meu ver, uma ideia de sacralidade,<br />

de renúncia, de determinação e de força de impacto<br />

extraordinária nesse guerreiro.<br />

Se o comparamos com um guerreiro do século XV, notamos<br />

como são profundamente diferentes. Entretanto,<br />

o cavaleiro do panache 1 acrescenta algo que faltava ao<br />

medieval, embora tenha havido uma defasagem em pontos<br />

fundamentais.<br />

Avançando nos séculos, poderíamos confrontar o cavaleiro<br />

medieval com um guerreiro de Napoleão, e encontraríamos<br />

diferenças ainda mais marcantes, por onde<br />

se vê que a coragem não é apenas a determinação de<br />

enfrentar o fogo e a morte, mas uma deliberação da pessoa<br />

inteira de empreender qualquer coisa em qualquer<br />

campo.<br />

Um guerreiro de Napoleão fora da guerra poderia ser<br />

mentiroso, ladrão, acovardado. Ney 2 , por exemplo, não<br />

era obrigado a ser bravo e ter as virtudes militares na vi-<br />

32


da civil, bastava possuí-las na vida militar. O medieval<br />

não era assim. Esse modo como ele está aqui representado<br />

é o mesmo pelo qual enfrenta qualquer outro perigo,<br />

adversário ou dever. A guerra para ele é um estilo de vida;<br />

para Ney é um estilo de luta. Na hora do combate, o<br />

soldado napoleônico é o bravo, mas na vida civil é um sujeito<br />

qualquer.<br />

Sacral como uma torre de catedral<br />

Um aspecto que me agrada especialmente nessa figura<br />

de cavaleiro medieval é a suprema sacralidade. Ele<br />

é sacral como uma torre de catedral, de uma sacralidade<br />

que leva às mais altas considerações do espírito, misturadas<br />

com muito bom senso. Não vejo esse predicado<br />

nos guerreiros que vieram depois. No extremo oposto<br />

disso estaria Dom Quixote, por exemplo. O medieval<br />

não vai por cima de um moinho de vento, não tem perigo.<br />

Entretanto, Dom Quixote manifesta qualquer coisa<br />

que o medieval possui, mas não desdobrou. Por exemplo,<br />

nesse cavaleiro da Idade Média o gosto da aventura<br />

não se encontra. Está o senso do dever aceito por inteiro,<br />

com uma determinação de alma completa, até admirável,<br />

mas não se pode dizer que está alegre de ser guerreiro.<br />

Não há aquela alegria específica da proeza, com a<br />

qual a pessoa pega a espada, a lança e diz: “Afinal!”<br />

Alguns tinham isso; a maioria, porém, ia para a guerra<br />

porque era preciso, mas não se tinha chegado a destilar<br />

aquilo que se destilou depois, isto é, o gosto da proeza<br />

pela proeza. Contudo – aqui está o mal – deveriam<br />

apreciar a proeza por ser ela um reflexo de Deus, mas<br />

eles gostavam da proeza pela proeza por uma vaidade,<br />

um esporte, e isto é errado. Não obstante, há um gosto<br />

metafísico da proeza que eu encontro nos heróis da Reconquista<br />

espanhola, mas vejo menos nas Ordens de Cavalaria.<br />

A proeza enquanto tal é uma linda posição da alma,<br />

que atinge essa beleza para se parecer com Deus,<br />

seu Criador. Os pregadores, quando viram despontar o<br />

amor da proeza, deveriam ter dito isto para canalizar<br />

esse amor. Este cavaleiro, representado nesta estátua,<br />

leu no compêndio que se deve morrer pela Fé e resolveu<br />

cumprir seu dever de modo fabuloso; pode ser um santo,<br />

mas não tem aquele élan que corresponde à alegria<br />

de realizar essa proeza por ser boa em si, porque reflete<br />

a Deus.<br />

Nostalgia da proeza<br />

Nessa outra representação o gosto da proeza está expresso<br />

de modo bem mais explícito, porque se nota nesse<br />

guerreiro montado a cavalo uma leveza que procede<br />

de uma alegria interior, simbolizada até no modo de a<br />

auriflama tremular ao vento, e na posição da lança; tudo<br />

isso representa a alegria de atacar com todas as forças,<br />

expondo-se ao risco. Os ornamentos do cavalo e do<br />

Артур Орльонов (CC3.0)<br />

Batalha de Grunwald, Polônia<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Barneto, Vicente, il. (CC3.0)<br />

consciência dos medievais. Seria um erro afirmar que<br />

eles não possuíam esse espírito e essas qualidades. Tinham,<br />

mas os homens de séculos posteriores souberam<br />

exprimir melhor do que eles, por causa da nostalgia e do<br />

contraste produzidos pela falta que sentiam dessas riquezas.<br />

Isso aponta para um aspecto da tradição até agora<br />

não considerado. Talvez a alma da tradição seja essa<br />

lembrança sublimada, com lucidez, que é o melhor legado<br />

que uma geração confere a outra.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 23/5/1974)<br />

1) Do francês, em sentido figurado: galhardia, brio.<br />

2) Michel Ney (*1769 - †1815). Comandante francês nas guerras<br />

revolucionárias francesas e nas guerras napoleônicas, e<br />

um dos dezoito Marechais da França instituídos por Napoleão<br />

Bonaparte.<br />

Dom Quixote<br />

Luis de Madrazo. (CC3.0)<br />

cavaleiro têm por objetivo nobilitar o estado<br />

de proeza em que esse homem se encontra.<br />

A viseira erguida indica o desafio<br />

ao risco.<br />

A iconografia do século XIX representou<br />

muito mais o cavaleiro na guerra do<br />

que os próprios medievais representaram.<br />

É mais uma prova de que eles não tinham<br />

sabido ainda explicitar toda a beleza<br />

da proeza que possuíam. Os heróis que<br />

realizaram as proezas não tiveram tanto a<br />

ideia do pulchrum da proeza quanto o século<br />

da burguesia com saudades da proeza,<br />

e que soube cantar o que os outros possuíam.<br />

A partir desse fenômeno poder-se-ia<br />

afirmar um princípio: o século que perdeu<br />

uma determinada qualidade e a considera<br />

com nostalgia, embora já não possua esse<br />

predicado, tem dele uma noção mais definida<br />

do que aquele que o possuiu. Essa<br />

nostalgia não é um elemento de fantasia,<br />

mas de definição.<br />

Então, há uma pós-Idade Média baseada<br />

na História, mas vista por nós de<br />

um modo que não estava inteiramente na<br />

O Rei Dom Pelayo em Covadonga, durante a Reconquista<br />

Espanhola - Museu do Prado, Madri, Espanha<br />

34


35<br />

Luis Samuel


Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº 269 Agosto de <strong>2020</strong><br />

Rainha misericordiosa<br />

e triunfante


Gerd Eichmann (CC3.0)<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

Baldaquino<br />

das Relíquias<br />

Sainte-Chapelle,<br />

Paris, França<br />

Visão de conjunto<br />

do verum,<br />

bonum e pulchrum<br />

A Idade Média tendia para pulcritudes que se fundiriam<br />

numa só ordem grandiosa apontando para o Reino de<br />

Maria. O Humanismo procurou provocar sensações<br />

meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo ao<br />

homem uma falsa felicidade nesta Terra. Desse conceito<br />

errado de felicidade deriva todo o desabamento tortuoso<br />

pelo qual precipitou-se o mundo contemporâneo.<br />

Um homem privado inteiramente de qualquer<br />

forma de pulchrum, mesmo das mais modestas,<br />

pereceria primeiro se deformando, depois definhando<br />

em sua personalidade. Levaria uma vida tão arrastada,<br />

tão difícil, tão inconveniente de ser vivida que<br />

equivaleria quase a uma morte.<br />

O homem tem necessidade do pulchrum<br />

Pode-se realizar bem isso imaginando o que se conta<br />

a respeito do Delfim de Luís XVI e Maria Antonieta,<br />

na prisão do Templo. Murado vivo, nunca se limpando,<br />

se lavando, não tendo ar livre, perpetuamente na escuridão,<br />

sem interlocutor, recebendo a alimentação – po-<br />

de-se imaginar que comida e que bebida... – por meio de<br />

uma dessas rodas junto a uma porta, e o resto do tempo<br />

completamente isolado.<br />

Era um ente inteiramente privado de pulchrum. Dir-<br />

-se-ia que o mais terrível era estar privado do afeto paterno<br />

e materno. Isso é evidente, e é nocivo no mais alto<br />

grau. Porém ainda que recebesse demonstrações desse<br />

amor, se ele não tivesse algum contato com uma realidade<br />

sensível bela, por exemplo, jamais visse o pai e a mãe<br />

– apenas tomasse conhecimento de bilhetes que lhe mandavam,<br />

porque estavam proibidos de entrar –, ele teria<br />

a noção da perseverança do afeto de seus pais, mas isso<br />

não bastaria. Precisaria ter algo de belo.<br />

32


Absolutamente falando, a necessidade do pulchrum<br />

não é como a do ar, sem o qual a pessoa morre, mas é a<br />

que conduz a uma situação quase intermediária entre o<br />

estar vivo e o estar morto.<br />

No campo doutrinário, há aqueles que, ao ensinarem<br />

o tomismo, embora não afirmem claramente, insinuam<br />

que para compreender bem o pensamento de São<br />

Tomás é preciso afastar o pulchrum de qualquer cogitação<br />

e pôr-se numa atitude onde só joga o raciocínio. Isso<br />

é completamente falso e antitomista.<br />

Tudo o que é verdadeiramente<br />

belo favorece a virtude<br />

O trecho sobre Maria Antonieta, do historiador inglês<br />

Edmund Burke que tivemos ocasião de comentar 1 , tem uma<br />

beleza inegável. Porém, trata-se de um pulchrum moral.<br />

Tudo aquilo que é autenticamente belo, de si, favorece a<br />

virtude. Não me refiro, é claro, a uma obra de arte esteticamente<br />

bonita, mas imoral, a qual em seus detalhes poderá<br />

despertar lubricidade. Essa é uma outra questão. Mas<br />

se uma obra de arte é verdadeiramente bela, ela desperta a<br />

pureza, porque a inocência se compraz com a beleza.<br />

O pulchrum moral da Contra-Revolução está no fato<br />

de que tudo quanto ela diz e quer, os caminhos por ela<br />

trilhados têm um aspecto de beleza, do contrário não seria<br />

Contra-Revolução. Entretanto, a natureza dessa beleza<br />

varia muito. Por exemplo, Godofredo de Bouillon<br />

galgando as muralhas de Jerusalém, tomando conta da<br />

cidade e dirigindo-se ao Santo Sepulcro, seguido por<br />

seus guerreiros, tem uma beleza de arrepiar. É uma ação<br />

de caráter religioso-moral, tanto mais moral quanto é<br />

religiosa, e possui um pulchrum<br />

duplo: é a beleza do<br />

estabelecimento de uma ordem<br />

e da destruição da desordem<br />

que se opunha a essa<br />

ordem.<br />

Na Idade Média, o pulchrum<br />

não era tomado apenas<br />

em uma determinada<br />

linha. Explico-me tomando<br />

como exemplo um nome<br />

que exprime uma certa ideia<br />

de pulchrum moral: Ricardo<br />

Coração de Leão. Refiro-<br />

-me exclusivamente ao nome,<br />

pois o personagem não<br />

valia nada. O rugido do leão<br />

tem sua majestade, sua beleza.<br />

Um homem que se chama<br />

Coração de Leão dá a<br />

entender que ele quer ter essa coragem. E como ele era ligado<br />

ainda ao ambiente medieval, pensa-se num homem<br />

da Idade Média que tem coração de leão. Ora, fica muito<br />

bonito para um medieval ter coração de leão.<br />

Mas o pulchrum medieval não consistia apenas em tomar<br />

um conceito assim – homem com coração de leão<br />

–, mas em uma ideia sintética da colaboração de todas<br />

as belezas para a constituição de uma resultante da soma<br />

de todos as pulcritudes, a fim de causarem ao mesmo<br />

tempo uma impressão única que seria quase uma visão<br />

sensível do belo enquanto belo, de uma beleza metafísica.<br />

É propriamente o que medieval procurava, por exemplo,<br />

com aqueles vitrais da Sainte-Chapelle. Aquilo é uma<br />

sinfonia de cores onde cada nota tem seu efeito para produzir<br />

não apenas um bonito lilás ou vermelho em tal caquinho<br />

de vidro; isso existe e teríamos vontade de mandar<br />

fazer uma capela só com tons daquele vermelho ou<br />

daquele lilás. Porém o que fica no espírito humano de<br />

ideia e de sensação viva do pulchrum é o que decorre da<br />

coexistência e da coordenação de tudo isso junto.<br />

Engana-se, portanto, quem pensa que são os vitrais o<br />

que há de mais bonito na Sainte-Chapelle. O mais belo é<br />

uma espécie de arquicor aparentemente incolor ali existente,<br />

como se estivéssemos num líquido composto de todas<br />

aquelas cores ao mesmo tempo. É o sublime da beleza<br />

da Sainte-Chapelle.<br />

Ordem grandiosa que apontava<br />

para o Reino de Maria<br />

Em geral, a Idade Média tendia para sínteses gigantescas<br />

dessa natureza, em que pulcritudes de vários ti-<br />

Batalha de Ascalon na qual um dos líderes foi Godofredo de Bouillon<br />

Gustav Dore. (CC3.0)<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Arquivo Revista<br />

pos, de si, já constituíam pirâmides de belezas particulares,<br />

fundindo-se numa só ordem grandiosa que apontaria<br />

para algo – que o medieval não sabia, mas que seria<br />

o Reino de Maria – onde tudo fosse de uma harmonia<br />

arquetípica, desde a ordenação das ruas até a plantação<br />

das árvores, à maneira do Céu empíreo, e as pessoas<br />

se sentissem envoltas por tudo isso junto e, prelibando<br />

o Paraíso, dariam um brado de contentamento: “Ó<br />

beleza! Ó alegria!”<br />

Isso nos dá uma ideia do coração humano reto que<br />

procura, já nesta Terra, uma forma de felicidade ordenadíssima<br />

que produz a suma felicidade.<br />

A Revolução – sobretudo no seu começo nascente no<br />

fim da Idade Média, no Humanismo – procurou provocar<br />

sensações meramente sensíveis e fragmentadas, prometendo<br />

ao homem a felicidade nesta Terra se ele procurasse<br />

qualquer desses prazeres isoladamente e fizesse<br />

disso o campo da sua felicidade. A promessa era: “Goze<br />

disso e de várias coisas assim à vontade, mas não constitua<br />

uma síntese, porque a síntese o tirará da realidade!”<br />

Eis a grande mentira. Desse conceito errado de felicidade<br />

deriva todo o desabamento tortuoso pelo qual nos<br />

precipitamos onde estamos.<br />

A verdadeira felicidade<br />

Para o medieval, a noção de felicidade consistiria na<br />

tendência contínua para o verum, bonum, pulchrum.<br />

Não se pode conceber um homem que procurasse o<br />

pulchrum o tempo inteiro e não buscasse, nas devidas<br />

proporções, também o verum e o bonum, até mesmo um<br />

artista. Evidentemente, ele não os procuraria separadamente,<br />

mas teria a visão de conjunto do verum, bonum e<br />

pulchrum de sua obra de arte.<br />

Se bem que essa visão global dê a verdadeira felicidade<br />

nesta Terra, é necessária muita retidão para a pessoa<br />

querer tê-la. Por isso ela horripila o homem moderno,<br />

mas extasia o verdadeiro católico, embora este se encontre<br />

carregado de cruzes. Eu quase ousaria dizer que<br />

extasia no sentido místico da palavra. Isso porque a sede<br />

da contemplação, e o fato de encontrar-se dessedentado<br />

somente na medida em que se realiza a contemplação,<br />

corresponde a uma primeira graça que a pessoa recebe<br />

de um modo germinativo, um primeiro toque, com a<br />

inocência. O mundo atual está feito para excitar no indivíduo<br />

o abandono disso para se jogar nos prazeres fragmentados.<br />

Antigamente os transatlânticos procuravam realizar<br />

isso. Eram palácios flutuantes onde a todo momento<br />

se oferecia um pequeno prazer. Então, salões magníficos<br />

nos quais garçons serviam sorvetes, bebidas, sanduiches,<br />

etc. Num desses salões se tocava música, em outro<br />

tinha jogo, noutro havia não sei o quê...<br />

No tombadilho ficavam dispostas umas cadeiras espreguiçadeiras<br />

anatômicas, idealmente cômodas, com<br />

colchão de revestimento macio, enfim, tudo era mole. E<br />

quando a pessoa se encontrava inteiramente à vontade,<br />

vinha um empregado que fazia um salamaleque e oferecia,<br />

numa bandeja, refrescos segundo o gosto do cliente,<br />

que bebericava aquilo enquanto olhava o esplendor<br />

do mar.<br />

Ficava subjacente a ideia de que viver num navio desses,<br />

ou num mundo todo ele feito de uma soma justaposta<br />

de sensações agradáveis, era a própria definição de felicidade.<br />

Ora, eu, que por temperamento e modo de ser tenho<br />

uma enorme tendência a apreciar essas coisas e a procurar<br />

nelas a felicidade, estou certo de que, quando tivesse<br />

me saciado com tudo isso, dar-me-ia conta de haver em<br />

mim um vazio que essas delícias não preencheram, mas<br />

se eu entrasse na Sainte-Chapelle, diria: “Encontrei a felicidade!”<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 21/8/1994)<br />

Dr. Plinio em 1994<br />

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 268, p. 12-18.<br />

34


Saint-Chapelle<br />

Joe deSousa (CC3.0)


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

The Bridgeman Art Library (CC3.0)<br />

Luís XIV e a<br />

respeitabilidade<br />

Luís XIV - Museu<br />

de Belas Artes,<br />

Tournai, Bélgica<br />

Durante a Revolução Francesa, a turba<br />

revolucionária violou os sarcófagos dos reis<br />

para roubar as riquezas com que estavam<br />

sepultados e profanar seus restos mortais. Ao<br />

abrirem o esquife de Luís XIV, seu cadáver<br />

possuía tal majestade que o populacho<br />

recuou. A verdadeira respeitabilidade produz<br />

estes dois efeitos: a veneração de quem<br />

admira e o ódio de quem se revolta.<br />

Luís XIV era um homem imensamente<br />

majestoso que realizava uma mistura<br />

muito feliz de duas nobilíssimas dinastias:<br />

a mãe dele era Habsburg e o pai, Bourbon.<br />

Aliás, duas nações – Áustria e França –<br />

cujas qualidades se equilibram muito.<br />

Elegância francesa e<br />

grandeza espanhola<br />

Royal Collection (CC3.0)<br />

swbexpo.bsz-bw.de (CC3.0)<br />

É bonito notar que a História francesa, depois<br />

da Idade Média, divide-se em etapas segundo<br />

a influência que sobre a França exerceu<br />

os países próximos. Assim, houve durante<br />

a Renascença o período da influência italiana,<br />

que marcou toda a arte francesa; depois<br />

tivemos o período da influência espanhola,<br />

com a penetração de temas espanhóis<br />

na literatura francesa, fenômeno do qual<br />

encontramos um sinal muito marcante em<br />

Corneille 1 .<br />

Luís XIII da França (Coleção Real, Londres, Inglaterra) e Ana da Áustria<br />

(Museu Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe, Alemanha), pais de Luís XIV<br />

32


Felipe II<br />

Museu Internacional do<br />

Barroco, Puebla,<br />

México<br />

Luís XIV reunia à elegância do francês algo<br />

da solenidade compassada e majestosa<br />

do espanhol. A coexistência da elegância<br />

francesa com certa grandeza espanhola<br />

explica exatamente o que esse monarca<br />

tinha de solar.<br />

Isso uma vez explicitado, sente-se<br />

em Luís XIV qualquer coisa de Felipe<br />

II, o rei que de tal maneira incutia<br />

respeito que, em geral, quando as<br />

pessoas vinham à sua presença, ele<br />

precisava tranquilizá-las, dizendo:<br />

“Sosegaos” 2 . Creio que isso era dito<br />

com uma voz tão majestosa, que<br />

a pessoa não ficava muito mais sossegada…<br />

Acrescentem a essa majestade<br />

a graça francesa e compreenderão<br />

como daí só poderia sair uma verdadeira<br />

obra-prima. Esta foi Luís XIV.<br />

Durante a Revolução Francesa, a<br />

turba revolucionária violava os sarcófagos<br />

dos reis para roubar as riquezas com<br />

que estavam sepultados, e se vingar deles<br />

profanando seus cadáveres e jogando-os em<br />

uma vala comum, em meio à cal para serem consumidos,<br />

pois, devido a um sistema muito eficaz de embalsamamento,<br />

vários desses corpos mantinham-se conservados<br />

por muito tempo.<br />

Ao chegarem ao esquife de Luís XIV, abriram-no e se<br />

depararam com seu cadáver enegrecido, o qual possuía<br />

tal majestade que o populacho, ao invés de se atirar em<br />

cima como fizera com todos os outros, teve um suspense<br />

e recuou um pouco. Portanto até depois de morto o Rei-<br />

-Sol impôs respeito. Depois, recuperados<br />

do impacto, os revolucionários<br />

ficaram furiosos, avançaram, arrancaram<br />

o corpo de dentro do caixão e<br />

lançaram-no na vala comum.<br />

Poder-se-ia dizer que o respeito incutido<br />

por Luís XIV em seus contemporâneos<br />

provinha do fato de ser ele<br />

um monarca absoluto de quem dependia<br />

o futuro de muita gente e, por<br />

isso, metia um certo medo nas pessoas<br />

que o reverenciavam por interesse.<br />

Ora, aqueles facínoras sabiam<br />

perfeitamente que estavam diante de<br />

um cadáver, tinham aberto a sepultura<br />

e não podiam absolutamente esperar,<br />

supor ou recear que um rei morto<br />

fosse capaz de qualquer vingança<br />

contra eles. Logo, a impressão de respeito<br />

provocada pelo monarca nessa ocasião<br />

não tinha nenhuma relação com interesse,<br />

ambição ou temor, e explica melhor a respeitabilidade<br />

irradiada por ele em vida.<br />

Efeitos produzidos pela<br />

verdadeira respeitabilidade<br />

O que é essa respeitabilidade a<br />

qual um homem irradia em torno de<br />

si a ponto de até os malfeitores que<br />

vão estraçalhar o seu cadáver se detêm<br />

um instante, e depois, por ódio à<br />

respeitabilidade, profanam esse cadáver<br />

mais do a todos os outros? De fato,<br />

a verdadeira respeitabilidade produz<br />

estes dois efeitos: a veneração de<br />

quem admira e o ódio de quem se revolta.<br />

A própria majestade de Deus causava<br />

sobre os espíritos angélicos esse duplo<br />

efeito. Satanás e os dele se revoltaram, enquanto<br />

São Miguel e seus Anjos admiraram.<br />

Então, o que vem a ser essa respeitabilidade se,<br />

como vimos, se trata de um sentimento de inferioridade<br />

motivado pelo medo ou pela ambição?<br />

É, por certo, a irradiação de uma superioridade, mas<br />

não de uma superioridade qualquer, precisamente porque<br />

ela é irradiada pela pessoa e não incutida por algo<br />

que se sabe a respeito dela.<br />

Tomemos, por exemplo, Pasteur. Ele foi indiscutivelmente<br />

um grande sábio, um cientista que fez invenções geniais<br />

de uma grande utilidade para o gênero humano. Qualquer<br />

indivíduo que não tivesse o senso moral completamente ob-<br />

Luís XIV recebe Mehmet Riza Beg, embaixador do Xá<br />

Tahmasp II - Palácio de Versailles, França<br />

Flávio Lourenço<br />

Gabriel K.<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

château de Versailles (CC3.0)<br />

Luís XIV - Museu de História da França,<br />

Palácio de Versailles, França<br />

tuso, sabendo estar tratando com Pasteur, sentiria respeito.<br />

Contudo esse respeito vinha da constatação de seus feitos e<br />

não de uma irradiação de sua personalidade.<br />

Outro exemplo, o Marechal Foch. Sua figura nunca<br />

me pareceu irradiante de respeitabilidade. Se eu o visse<br />

andando à paisana num ônibus qualquer, meu olhar não<br />

se deteria nele nem um minuto, mas se o reconhecesse,<br />

pensaria: “O grande Marechal Foch, vencedor da Primeira<br />

Guerra Mundial!”, e lhe prestaria todo o respeito.<br />

Para dar um exemplo nacional, cito Santos Dumont.<br />

É inegável que ele proporcionou um importante avanço<br />

na Ciência ao inventar a dirigibilidade do avião, pelo<br />

que merece um lugar saliente na consideração das pessoas.<br />

Entretanto quem vê sua clássica fotografia, com<br />

aquele chapelão, não exclama: “Como sua personalidade<br />

irradia superioridade!” Porque não irradia.<br />

Esses exemplos correspondem, sem dúvida, a uma<br />

respeitabilidade autêntica e muito alta, mas incutida pelo<br />

mérito do sujeito e não irradiada por sua personalidade.<br />

Portanto, não é uma respeitabilidade proveniente do<br />

homem inteiro, mas de uma zona de sua alma, de uma<br />

capacidade. A respeitabilidade de Luís XIV, ao contrário,<br />

vinha de sua personalidade e irradiava dele inteiro.<br />

Analogia com a visão beatífica<br />

Então, em face do conceito segundo o qual há uma<br />

forma especial de superioridade que irradia, o que é essa<br />

superioridade?<br />

Em certo sentido, o corpo é o símbolo da alma, e as<br />

propriedades da alma irradiam através dele quando<br />

a pessoa possui certos gêneros de atributos num grau<br />

muito alto, por onde ao ver o aspecto físico de alguém de<br />

alguma maneira se discerne a alma, e se nota, de modo<br />

espiritual, uma realidade que fica por cima da realidade<br />

física. Assim, percebe-se a respeitabilidade na alma.<br />

Trata-se, pois, de um discernimento que vai além do<br />

olhar, e corresponde a um bem de ordem espiritual percebido<br />

através da consideração dos aspectos físicos. Olhando<br />

para a face de Luís XIV, percebo simbolicamente um<br />

bem de sua alma, a majestade de um rei no sentido pleno<br />

da palavra. Assim, através das aparências sensíveis,<br />

apreendo realidades espirituais que os sentidos não atingem,<br />

mas transparecem nos aspectos físicos.<br />

Quem vê o fenômeno espiritual dessa aparência de uma<br />

qualidade moral num homem acaba adquirindo uma ideia<br />

do que é, em si mesma, essa qualidade moral. Mas não é<br />

uma noção oriunda de uma definição; é uma ideia, por assim<br />

dizer, apalpada e sentida. Por mais que alguém definisse<br />

num dicionário ou tratado de Moral o que é majestade,<br />

não teria a noção de majestade que se teve vendo Luís XIV<br />

e, mediante suas feições físicas, a alma do Rei-Sol.<br />

Apalpar assim uma coisa que, entretanto, é abstrata,<br />

leva a outro passo que conduz a Deus. Porque d’Ele não<br />

podemos dizer apenas que é majestoso, mas devemos<br />

afirmar que é a Majestade, pois Deus não somente possui,<br />

mas é as qualidades. De maneira que Ele não é bom,<br />

mas a Bondade; não é sábio, e sim a Sabedoria.<br />

Por conseguinte, se olhando para um homem vi nele a<br />

majestade de sua alma e, através dela, formei uma ideia<br />

do que é a majestade em abstrato, considerada em seu<br />

modo absoluto, eu adquiri algo que tem certa analogia<br />

com a visão beatífica. De fato, mesmo sem explicitar, em<br />

Luís XIV algo da majestade de Deus foi vista.<br />

Isso nos explica<br />

porque aqueles<br />

bandidos recuaram<br />

quando viram<br />

o cadáver de Luís<br />

XIV. Sempre que<br />

um atributo bom e<br />

digno da alma de<br />

um homem aparece<br />

com tanta intensidade,<br />

a ponto<br />

de provocar um<br />

pasmo, uma surpresa,<br />

um entusiasmo,<br />

um enlevo<br />

ou um sentimento<br />

de veneração recolhida,<br />

há uma<br />

transparência de<br />

Alberto Santos Dumont<br />

Museu Paulista da USP (CC3.0)<br />

34


algo de divino. É o modo pelo qual se chega a conhecer a<br />

Deus pela quarta via indicada por São Tomás de Aquino.<br />

Alguém poderia objetar: “Mas, Dr. Plinio, Luís XIV<br />

não foi um grande pecador?”<br />

Em primeiro lugar, do pecado a que aludem ele se penitenciou<br />

e passou seus últimos vinte anos como um homem<br />

de vida ilibada, modelar. Mas não é propriamente<br />

o que vem ao caso, pois assim como uma pedra ou um<br />

animal pode lembrar a Deus, por alguns lados o pecador<br />

portador de uma tradição católica enquanto tal também<br />

pode recordar a Deus. Por exemplo, um pai que, embora<br />

se encontre em estado de pecado mortal, trata seu filho<br />

carinhosamente, pode lembrar a Deus enquanto o Pai<br />

carinhoso. De maneira que essa seria uma objeção infantil,<br />

a qual podemos descartar.<br />

Modalidades de majestade:<br />

paternalidade e ímpeto para destruir<br />

bem, ela deve se manifestar sob a forma de uma afinidade,<br />

uma adesão, uma homogeneidade e um desejo de ajudar,<br />

socorrer, salvar aquele bem comprometido pelas influências<br />

contrárias que ali existem.<br />

Em sentido oposto, a majestade que encontra uma resistência<br />

empedernida e é insultada, por amor à ordem<br />

que representa ela deseja esmagar. Temos, assim, as duas<br />

modalidades de majestade.<br />

Vemos isso de modo infinito e paradigmático em Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo: infinitamente manso, ensinando<br />

que se deve ser manso e humilde de coração, mas de outro<br />

lado, em alguns episódios da vida, incutindo um assombro<br />

que deixava as pessoas sem saber o que dizer, como<br />

aqueles canalhas que foram prendê-Lo e caíram com<br />

a cara no chão, simplesmente pela afirmação: “Sou Eu!”<br />

Era a manifestação da infinita majestade d’Ele. v<br />

(Extraído de conferência de 23/3/1973)<br />

Concluo com uma consideração a respeito da majestade.<br />

A verdadeira majestade, colocada diante da boa vontade<br />

de quem é menor, se traduz em paternalidade e tem<br />

vontade de proteger; posta<br />

diante da resistência de<br />

quem é ruim, ela se traduz<br />

num ímpeto para destruir.<br />

Em tese, ambas disposições<br />

se complementam<br />

e se explicam por<br />

um mesmo fundo, porque<br />

o próprio da majestade<br />

não é ser grã-fina, elegante,<br />

mas é ter a supereminência<br />

do bem. Quem a<br />

possui deve amar todos os<br />

graus que essa supereminência<br />

inclui. Consequentemente,<br />

precisa amar todas<br />

as menores e mais débeis<br />

formas de bem que<br />

possam estar exiladas<br />

numa alma, ainda quando<br />

esta tenha muitos defeitos,<br />

pois, do contrário,<br />

a majestade mentiria a si<br />

mesma.<br />

Ora, não é a majestade<br />

e sim a iniquidade que<br />

mente a si mesma. Logo,<br />

percebendo qualquer<br />

pequena modalidade de<br />

1) Pierre Corneille (*1606 - †1684). Dramaturgo francês, considerado<br />

o fundador da tragédia (estilo de drama) francesa.<br />

2) Do espanhol: sossegai-vos.<br />

O beijo de Judas - Museu de São Marcos, Florença, Itália<br />

Fra Angelico (CC3.0)<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

ToucanWings (CC3.0)<br />

Geometria e<br />

assimetrias<br />

Jardins do Palácio<br />

de Versailles<br />

harmônicas<br />

No jardim francês há uma arte altamente geométrica no conjunto,<br />

porém cheia de assimetrias harmônicas e encantadoras nas<br />

suas minúcias, o que gera uma beleza expurgada de socialismo.<br />

Como será o equilíbrio dos arrojos e das inimagináveis<br />

serenidades da arquitetura do Reino de Maria?<br />

Eu gosto muito do jardim francês, mas tenho reservas.<br />

Em minha primeira visita a Versailles, sendo<br />

já adulto, alguns dos que me acompanhavam começaram<br />

a elogiar o palácio, dizendo que tinha superado a<br />

Sainte-Chapelle. Passei todo o tempo discutindo com eles.<br />

O princípio da pluralidade de perspectiva<br />

Eu sustento, naturalmente um pouco na surdina, que<br />

as grandes perspectivas tendem ao socialismo.<br />

Nesse sentido, o Escorial um pouco desola, não tem o<br />

calor da vida: há algo de absolutismo.<br />

Champs-Élysées, por exemplo, tem uma única superperspectiva<br />

e o resto não significa nada. Na construção<br />

medieval, pelo contrário, uma coisinha tem sua perspectiva,<br />

o que é a imagem da sociedade orgânica, sobretudo<br />

composta de sociedades pequenas. Isso porque na arquitetura<br />

medieval há uma figura do universo constituído<br />

sobretudo de homens que valem por si, por Deus, e dos<br />

quais cada um tem sua perspectiva individual. Quer dizer,<br />

há um ensinamento muito grande, lúcido e luminoso<br />

dentro disso, que não devemos perder de vista.<br />

Uma arte que levou quase até ao delírio a exploração<br />

das pequenas perspectivas, mas alcançou triunfos, é a<br />

japonesa. Jardinzinho que tem uma pontezinha, embaixo<br />

tem que criar só uma florzinha, onde passa um rio<br />

que quase não se move, é um espelho. Aquilo pede que se<br />

pare e veja. O jardim japonês não é como o francês que<br />

você olha e… é inteiramente o contrário. Ele é feito de<br />

recantinho e de surpresinhas, que é uma coisa diferente,<br />

e isto é, a meu ver, um dos elementos mais felizes do ponto<br />

de vista de refutação do renascentismo: é o princípio<br />

da pluralidade de perspectiva. Deve haver também grandes<br />

perspectivas, entretanto, é a Igreja Católica que indica<br />

verdadeiramente como é uma perspectiva grandiosa,<br />

mas orgânica.<br />

Geometria como elemento de<br />

beleza no jardim francês<br />

Se formos nos ater até o fim ao princípio que eu acabei<br />

de dar, chegamos à exclusão da geometria de dentro<br />

da arte, e isto me pareceria um exagero. Seria preciso saber<br />

entender qual a razão de ser do jardim francês, da<br />

geometria como elemento de beleza expurgado de socialismo.<br />

Eu estou falando da geometria dos todos geométricos.<br />

O socialismo é geométrico.<br />

32


Refiro-me à geometria dos conjuntos. Por que um<br />

conjunto não pode ter uma grande geometria? É claro<br />

que pode, eu formulo a pergunta com objeção.<br />

Tomemos, por exemplo, o carro de gala dos Habsburgos.<br />

Todo pintado, uma coisa fabulosa. Imaginemos este<br />

carro andando numa cidadezinha medieval com aquelas<br />

ruelas, não vai. Pelo contrário, imaginemos o carro<br />

desfilando numa avenida de Versailles. Ali teríamos longo<br />

tempo para vê-lo vir e para estudar todas as mil belezas<br />

que ele tem. Vejam como a geometria exige um décor<br />

geométrico.<br />

Então, eu seria levado a perguntar se não poderíamos<br />

pensar ao revés: uma arte com um conjunto nada geométrico<br />

e cheia de pequenas perspectivas com geometria<br />

própria; ou também uma arte altamente geométrica no<br />

conjunto e dentro cheia de assimetrias harmônicas e encantadoras.<br />

O espírito francês, até certo ponto, constituiu esta<br />

síntese: o jardim é geométrico em tudo, mas o francês<br />

introduziu formas curvas que o grego não admitia – já é<br />

um elemento de progresso – e um jogo de cores que não<br />

são simétricas, e esse colorido quebra a monotonia.<br />

Nasce aqui um problema delicado: se um colorista de<br />

gênio pintasse a fachada de Versailles, ela não ganharia<br />

em beleza? Então nos perguntamos se naquilo se exprime<br />

inteiramente o espírito francês ou se não há uma espécie<br />

de imolação ao paganismo clássico. É um clássico<br />

que está matando os católicos? Poderíamos imaginar<br />

um clássico ressuscitado pelos católicos? O jardim de<br />

Versailles depõe a favor.<br />

Um ornamento de Versailles:<br />

as pessoas que ali viviam<br />

Para aquelas pessoas aquilo foi feito ao contrário da arte<br />

grega. Esta foi elaborada por um especulador que, sentado,<br />

inventou uma fórmula, e nem um pouco por um povo,<br />

como o francês. A arte do Palácio de Versailles parece<br />

brotada do chão.<br />

Não é para qualquer povo que a arte grega ficaria<br />

bem. Versailles fica bem para o francês, porque este é<br />

um bibelô que dá vida e compensação ao palácio. Sem o<br />

francês, aquilo tudo ficaria sem graça.<br />

Imaginemos, por exemplo, uma série de Grandes de<br />

Espanha saindo de Versailles em passo cadenciando,<br />

vestidos de preto. Não teria graça. Aquilo é feito para o<br />

sorriso francês, para uma porta daquelas estar aberta,<br />

ouvir-se um cravo tocando dentro, minueto na Galeria<br />

dos Espelhos; é feito para um povo que vive em guirlandas.<br />

A definição de guirlanda é: grupo de franceses.<br />

A ordem perfeita entre os homens exprime-se a partir<br />

da pessoa e não das grandes construções, o que é pessoal<br />

se exprime muito mais do que é coletivo, não tem dúvida.<br />

Com efeito, em Versailles está presente um conceito<br />

de bem comum diferente do conceito não expresso, mas<br />

meio implícito nos tratadistas de Direito Natural daquele<br />

tempo, segundo o qual o bem comum se refere mais a<br />

um todo abstrato, não concebido em função dos indivíduos,<br />

do que ao conjunto dos indivíduos.<br />

O equilíbrio e a truculência<br />

no Reino de Maria<br />

Seria muito interessante pensarmos qual é o perfil<br />

moral do homem que aderiu a tudo isso, o que daria um<br />

pouquinho o perfil moral das pessoas no Reino de Maria.<br />

Para resolvermos a questão devemos<br />

considerar as pessoas que tinham<br />

Versailles por quadro. Quer<br />

dizer, as liteiras, as marquesas, as<br />

reverências, os bibelôs, os tapetes, a<br />

música, os cristais... Imaginem se de<br />

Versailles saíssem gregas com aquelas<br />

caras das cariátides! Eu pergunto<br />

se as pessoas vestidas com roupas<br />

coloridas, éclatantes sem serem berrantes,<br />

não constituíam um ornamento<br />

que dava vida à corte. Notamos<br />

isso, por exemplo, em descrições<br />

como esta: “Monseigneur le Duc d’Orléans<br />

apareceu com traje azul claro e<br />

alamares prateados…”<br />

O jardim de Versailles, portanto,<br />

não deveria ser menos geométrico.<br />

Palácio de São Lourenço do Escorial, Espanha<br />

Gabriel K.<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Por exemplo, eu tenho uma teoria que mal ouso esboçar,<br />

que é a da harmonia entre o equilíbrio e a truculência<br />

no Reino de Maria. Primeiramente é preciso considerar<br />

que a palavra truculência é empregada num sentido<br />

tão pejorativo que eu preciso defini-la antes.<br />

Tomemos a Catedral de São Basílio, na Rússia, como<br />

exemplo. Não se pode negar que aquilo é uma coisa<br />

truculenta. Em que sentido? Ela se levou a si própria às<br />

últimas consequências de si mesma, com um arrojo no<br />

qual ela não negou nada, porque não rompeu com nada<br />

do que ela não deveria romper. Ela tomou algo e levou ao<br />

último arrojo de si própria, à última radicalidade. Não é<br />

uma exacerbação desequilibrada.<br />

Tenho a impressão de que o Reino de Maria, por ser a<br />

última época da História e por dever capitular todas as<br />

perfeições anteriores – não à maneira de soma, mas com<br />

qualquer coisa de novo –, precisará ter nesse sentido<br />

uma afirmatividade superarrojada e superequilibrada.<br />

Então, poder-se-ia perguntar, na linha do verum, do bonum<br />

e do pulchrum, qual é essa luz especial do Reino de<br />

Maria, feita de inimagináveis serenidades e borbulhâncias<br />

à gêiser. Em outros termos, constituída de continuadores<br />

fabulosos e de espírito de aventura como nunca ninguém<br />

teve; de simetria de perspectivas individuais bem<br />

calculadas e de conjuntos fabulosos, mas onde todos os<br />

extremos das linhas são de uma riqueza tal que o indivíduo,<br />

se não olhar para um outro extremo, desmaia.<br />

Nossas almas precisavam ser dilatadas para isso a<br />

fim de encontrarem completamente a sua expressão.<br />

Tenho a impressão de que alguma coisa assim seria o<br />

maior equilíbrio que se poderia imaginar, porque envolve,<br />

dentro do mesmo conjunto, os equilíbrios mais arrojados,<br />

os arrojos na aparência menos equilibrados.<br />

Necessidade de varões com abertura<br />

de alma para o infinito<br />

Nessa linha, uma vez que o erro e o mal foram tão<br />

grandes, ou o verum, o bonum e o pulchrum se reerguem<br />

incomparavelmente maiores, ou falta qualquer coisa<br />

nessa simetria.<br />

Desceu-se mais fundo do que era alto o ponto onde se<br />

tinha subido e, portanto, ou se subirá mais alto de onde<br />

se tinha descido ou não tem nada feito. Deve ser o mais<br />

alto grau, de modo que humilhe o mal na proporção em<br />

que o ele humilhou o bem, pelo menos.<br />

O resultado é abertura para o infinito, o epílogo grandioso<br />

da História da Igreja. Então, dois mil anos de Santos,<br />

Doutores, Mártires, de Confessores; também de<br />

abandonos, de traições, ciladas, tudo chega a um determinado<br />

momento em que Nossa Senhora intervém e<br />

constrói o Reino d’Ela. Isto só se desata se houver varões<br />

que sejam e pensem assim.<br />

Tenho a impressão de que, a partir do momento em<br />

que isto se desse, muita coisa se acertava, porque há<br />

muitas almas que gemem e até encontram-se em crise<br />

por não lhes ter sido dada ainda essa figura inteira. Toda<br />

criatura geme e espera essa manifestação.<br />

Claude-Guy Hallé (CC3.0)<br />

Reparação feita a Luís XIV pelo Doge de Gênova<br />

Francesco Maria Lercari Imperiale, 15 de maio<br />

de 1685 - Coleção do Palácio de Versailles<br />

34


Сергей Коровкин 89161230044 (CC3.0)<br />

Catedral de São<br />

Basílio, Rússia<br />

O espírito católico está exausto de<br />

ser apresentado como fraco<br />

Por essa razão, parece-me que algo deveria vir, manifestar-se<br />

de maneira a se abrirem as portas da era da<br />

perfeição, mas daquela perfeição absoluta com uma nota<br />

de força. O espírito católico está exausto de ser apresentado<br />

como fraco. Ele tem uma nostalgia de sua própria<br />

força, que é uma coisa do outro mundo. Ele geme encarcerado<br />

em aspectos de debilidade, ele está nostálgico das<br />

últimas consequências de si mesmo; é como a copa da espada<br />

que tem nostalgia da ponta do florete.<br />

A Igreja Católica está exausta de fraquezas, de condescendências<br />

cúmplices, de delongas e contemporizações<br />

sem sentido, de indecisões e vacilações que a nada<br />

conduzem. Em nós borbulha uma vontade exuberante<br />

de ser, de fazer, de contestar, de destruir e de implantar,<br />

mas logo. É uma urgência de quem morre de sede, mas<br />

de uma sede que não se limita com um copo d’água, quer<br />

beber um rio, um mar! Esta é a nossa cruz diurna e noturna.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 2/10/1974)<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Anuragtripathi (CC3.0)<br />

Contrários harmônicos<br />

na arquitetura oriental<br />

Os contrários harmônicos das construções orientais parecem<br />

indicar que não foram pensados de uma só vez. Uma geração<br />

construiu uma torre, mais tarde surgiu o desejo de satisfazer<br />

algo brotado do fundo da alma e acrescentou-se uma cúpula.<br />

O resultado final é algo mítico, próprio ao oriental.<br />

Ao analisar o Taj Mahal, tenho a impressão de<br />

que seria preciso distinguir, nunca separar –<br />

porque ficaria um monstro –, dois elementos<br />

nos quais se realiza um equilíbrio prodigioso: as partes<br />

laterais e a linha constituída pela cúpula e pelo corpo<br />

central, destacado pelas duas torrezinhas. Parece-me in-<br />

dispensável considerar as partes isoladas para compreender<br />

o todo.<br />

Contrários harmônicos do Taj Mahal<br />

Há um aspecto interessantíssimo e muito bonito que<br />

é o seguinte: à primeira vista, na parte central está o pe-<br />

30


so. Entretanto, existe um jogo bivalente pelo qual, ao<br />

mesmo tempo em que, visto de um lado, o conjunto parece<br />

leve, considerado por outro prisma trata-se de um<br />

“cupulão” pesado, de esmagar. Como fazer para um corpo<br />

de edifício carregar essa cúpula pesada não só mantendo<br />

certo ar de leveza, mas até dando a impressão de<br />

que a cúpula suspende e não achata?<br />

A enorme porta, que tem qualquer coisa de ogival e de<br />

vazado – o elemento vazado possui um enorme papel nisso<br />

– sustenta a cúpula num equilíbrio perfeito. De maneira<br />

que não se pode dizer que ela fique propriamente<br />

leve, mas não se percebe o peso. Quando o “balão” remete<br />

para cima, a porta e tudo o mais ficam elevados. Neste<br />

sentido há entre o leve e o pesado uma espécie de jogo<br />

sumamente bem posto e que dá a ideia de harmonia,<br />

a meu ver expressa nos seguintes termos: estabilidade<br />

harmônica perfeita, porque possante e leve.<br />

O conjunto lucra muito em expressão com as torrezinhas<br />

laterais, que constituem uma espécie de analogado<br />

primário em relação à cúpula central, mas têm por<br />

analogados primários os altos dos minaretes laterais, os<br />

quais são muito pequenos em relação às torrezinhas, e<br />

estas, por sua vez, são pequenas em relação à cúpula do<br />

centro. Tal graduação ajuda a dar a ilusão de leveza.<br />

Essa é a simetria dos contrários harmônicos. A genialidade<br />

do artista original consiste em inventar uma forma<br />

de oposição na qual ninguém pensou, mas que não<br />

resulta em nenhum monstro à maneira da arte moderna.<br />

MANISH G. CHAUHAN (CC3.0)<br />

Adithya0376 (CC3.0)<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Rameshng (CC3.0)<br />

ser posto num objeto colateral análogo, porque, para o<br />

olhar humano, eles formam um só conjunto.<br />

No Taj Mahal, num primeiro momento, surpreende<br />

um pouco tanto o tamanho da cúpula quanto o da porta.<br />

Seríamos levados quase a dizer: “Exageros harmônicos.”<br />

Entretanto, o que me parece genial é como o arquiteto<br />

conseguiu dar ao retângulo tanta força que, vazando-o,<br />

restabeleceu a leveza. O vazado é muito oriental,<br />

misterioso, quase como um olhar. Está muito bem<br />

feito.<br />

Feudalidade expressa nas torres<br />

das construções russas<br />

É interessante notar a reversibilidade entre os princípios<br />

arquitetônicos e o relacionamento humano.<br />

Na ordem civil monárquica bem<br />

constituída, a aristocracia é um<br />

elemento mais importante<br />

do que a monarquia.<br />

Contudo, na ordem<br />

Sujith Naik (CC3.0)<br />

Sunilbhar (CC3.0)<br />

Tenha gênio, faça<br />

algo que tire desse<br />

mare magnum de possibilidades<br />

dos contrários<br />

harmônicos uma beleza nova, e<br />

não seja cretino.<br />

A unidade artística e o contrário harmônico<br />

Tiramos disso um princípio muito curioso: quando<br />

quisermos dar a um determinado elemento uma expressão<br />

à qual ele não se presta – neste caso, a de leveza –, se<br />

colocarmos ao seu lado algo análogo dotado dessa expressão,<br />

tudo se exprime no espírito humano num todo só.<br />

Nesse sentido, os microminaretes exercem um papel<br />

importante. É um jogo de analogias do menor para<br />

o maior cuja relação se explica no todo, em que cada<br />

elemento torna mais leve o outro, abrindo-se para o infinito.<br />

Ademais, há um princípio de analogia pelo qual, sempre<br />

que numa determinada linha ou unidade artística<br />

não se consegue colocar o contrário harmônico inteiro<br />

como se deseja, algo desse contrário harmônico pode<br />

32


eclesiástica dá-se o contrário: a monarquia é um elemento<br />

mais importante do que a aristocracia.<br />

Não haveria uma contradição nisso? Não, porque a<br />

Igreja tem uma natureza tal que ela abarca o conjunto<br />

de todas as almas batizadas do mundo, e não haverá<br />

nunca um Estado que abranja todas as almas do mundo.<br />

A esfera temporal, como uma ordem mais baixa, pede<br />

uma espécie de federalização que a espiritual não comporta.<br />

Donde um Sacro Império, por exemplo, constituir<br />

uma federação de federações.<br />

Quanto mais penso sobre o feudalismo, mais me convenço<br />

de que a sua debilitação começou a partir do momento<br />

em que os feudos maiores começaram a absorver<br />

os menores. A plenitude de força e de vida do feudo pequeno<br />

é a base viva do sistema feudal. Onde tal senhor<br />

feudal tem dois mil castelos, já se trata de um feudalismo<br />

morto. Ele até pode federar sob sua autoridade dois<br />

mil feudos vivos, mas apenas na medida em que não os<br />

absorver.<br />

Em certas construções russas notamos muito essa<br />

unidade feudal. Cada torre afigura-se estuante de vitalidade<br />

própria e, é curioso, parece ignorar completamente<br />

a outra. Tem-se a impressão de que elas estão cegas uma<br />

para a outra e só se explicam do alto de um cone ou do<br />

fundo de uma distância da qual são vistas juntas. Então<br />

se elucidam fabulosamente e os contrários harmônicos<br />

se afirmam, primeiramente entre a cúpula e a base em<br />

cada uma delas, e depois elas entre si. Cada uma é, até<br />

certo ponto, o contrário harmônico da outra.<br />

Toda a glória e riqueza<br />

encontram-se nas cúpulas<br />

A meu ver, o auge do estilo russo é a Catedral de São<br />

Basílio, onde a tal simetria dos contrários harmônicos<br />

se afirma muito mais ricamente do que em outros edifícios<br />

russos, nos quais, por vezes, há uma igualdade empobrecedora<br />

entre uma torre e outra.<br />

Entretanto, mesmo nessas outras construções, o jogo<br />

dos contrários harmônicos das transcendências aparece<br />

nisto: ora uma torre transcende à outra por analogia,<br />

ora por contrariedade. Esse jogo da analogia e da con-<br />

Uwe Brodrecht (CC3.0)<br />

Alexander Patrikeev (CC3.0)<br />

33


Mario Modesto Mata (CC3.0)<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

trariedade está sempre presente, inclusive quando há<br />

uma torre central mais nobre, com a cúpula dourada,<br />

que supera as circunstantes.<br />

Em muitos desses edifícios toda a glória e riqueza<br />

da construção encontram-se nas cúpulas coloridas, nas<br />

quais se veem estrelas que, embora não estejam jogadas<br />

inteiramente a esmo, também não estão dispostas<br />

em linha reta. Outras cúpulas são elaboradas de tal modo<br />

que se tornam sumamente visíveis quando os raios<br />

do Sol incidem sobre elas, mas que, devido ao seu material<br />

e colorido, em certos momentos parece que a cúpula<br />

se diluiu no céu, formando uma espécie de corpo etéreo<br />

de matéria meio sólida, meio gasosa, encimada por uma<br />

cruz e terminando num sonho.<br />

O oriental não planeja tudo<br />

logo, cria ao acaso<br />

Tem-se a impressão de que uma maravilha dessas não<br />

foi planejada de uma vez, mas aos poucos. O arquiteto<br />

diz: “Que interessante seria fazer uma torre com uma cúpula<br />

verde...” E faz a torre. Depois de tê-la feito, ele mesmo<br />

provê o projeto de um contrário harmônico para satisfazer<br />

uma outra apetência da própria alma. Gerações<br />

depois, um artista, à força de contemplar, pensa: “Seria<br />

interessante tal detalhe assim para equilibrar essa catedral...”<br />

E põe. Cada geração vai enriquecendo e embelezando<br />

aquela obra de arte. A meu ver, se não tivesse caído<br />

o regime czarista e não entrasse aquela fixidez do absolutismo,<br />

haveria outros edifícios que aos<br />

poucos iam sendo assim compostos.<br />

Então, se fosse um arquiteto católico<br />

construiria, por exemplo, uma capelinha<br />

a Nossa Senhora de Fátima que teria um<br />

contrário harmônico inteiramente surpreendente,<br />

com um nicho ali perto. Depois,<br />

começaria uma grande popularidade<br />

em torno dessa capelinha, e outro arquiteto<br />

abriria uma espécie de concavidade<br />

na torre para caber o povo... E, assim,<br />

cada um faria o contrário harmônico ao<br />

que fora elaborado na geração anterior,<br />

de um modo meio surpreendente, à medida<br />

que as almas fossem sentindo necessidade<br />

de pôr contrastes harmônicos. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

2/10/1974)<br />

Julius Silver (CC3.0)<br />

MarinkaGal (CC3.0)<br />

34


Florstein (CC3.0)


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Raimond Spekking (CC3.0)<br />

Obra de homens,<br />

obra de Deus<br />

A Catedral de Colônia reflete um dos aspectos mais elevados da<br />

alma católica alemã. Nela contemplamos algo que parece irreal, em<br />

parte obra do homem, em parte obra de Deus. Trata-se do senso do<br />

maravilho em busca do metafísico, convidando a altas cogitações<br />

sem se deixar levar pela fantasia, pois mesmo quando sobe às mais<br />

elevadas divagações mantém bases sólidas vincadas na realidade.<br />

Para nós que vivemos na América do Sul e não<br />

estamos habituados a considerar as belezas da<br />

cultura católica da Europa, falta-nos um certo<br />

senso do maravilhoso.<br />

Esse senso tem muita ligação com o amor a Deus, porque<br />

é por meio dele que nós podemos elevar as nossas almas<br />

ao Altíssimo, finalidade para a qual as coisas maravilhosas<br />

foram criadas.<br />

Por exemplo, uma pessoa que vê o Sol tem ocasião de<br />

louvar a Deus de uma maneira especial, e por isso São<br />

Francisco de Assis cantou o Irmão Sol. Por quê? Porque,<br />

sendo maravilhoso, o Astro-Rei eleva as almas para o<br />

Criador mais do que a consideração de um grão de poeira,<br />

que a seu modo também pode conduzi-las até Ele. O<br />

maravilhoso é a obra-prima pela qual Deus Se manifesta<br />

aos homens.<br />

Ora, o maravilhoso não se exprime apenas nos seres<br />

criados diretamente por Deus. A maior maravilha saída<br />

de suas mãos foi o homem, e as maravilhas feitas por este<br />

indicam a grandeza da obra-prima divina e, portanto,<br />

32


a grandeza de seu Artífice; de si mesmas, elas são indiretamente<br />

criaturas de Deus.<br />

Com frequência eu tenho dito que Dante chama as<br />

obras de arte humanas de netas de Deus, porque são filhas<br />

do homem, que é filho de Deus. E nós, da consideração<br />

das netas de Deus, podemos nos enlevar com esse<br />

eterno, imperecível e perpétuo avô que jamais envelhece,<br />

Deus Nosso Senhor.<br />

Uma comparação para entender<br />

as obras de arte alemãs<br />

Temos analisado muitas coisas da França, mas a Europa<br />

toda é uma maravilha, com cores, refrações e aspectos variados.<br />

E a Alemanha constitui, por si, um mundo de maravilhas.<br />

Hoje escolhi a famosa catedral gótica de Colônia, para<br />

um comentário do conjunto do espírito alemão e do<br />

modo pelo qual ele condiciona a obra de arte.<br />

Discute-se muito qual das duas catedrais é mais bela,<br />

se a de Colônia ou a de Notre-Dame de Paris.<br />

Algumas pessoas costumam colocar no páreo<br />

também Westminster, Amiens, Reims.<br />

Eu não vou discutir o caso aqui, mas a comparação<br />

com Notre-Dame é muito importante<br />

porque, quando a vemos, temos um sentimento<br />

de admiração, quase um êxtase diante<br />

de seu equilíbrio e de sua harmonia. A fachada,<br />

com todas as suas divisões e subdivisões,<br />

representa a harmonia perfeita, em que se exprime<br />

o gênio francês, que é um gênio estático,<br />

feito, como tudo o que prima pelo equilíbrio,<br />

da justaposição de valores opostos, mas reduzidos<br />

a uma admirável harmonia.<br />

O espírito alemão não é propriamente assim.<br />

O espírito católico alemão<br />

e sua deturpação<br />

a terra e muito equilibradas, porque elas não se prestam<br />

bem à expressão dos valores de caráter metafísico, e com<br />

uma tendência, por causa disso, de evasão da realidade<br />

em busca de uma realidade superior.<br />

Esse grito de alma do alemão encontra-se deteriorado<br />

– mas se encontra – não no sapato do soldado prussiano,<br />

e sim em Wagner 1 . É o metafísico que se embriagou, mas<br />

continua a fazer metafísica em meio à sua bebedeira e<br />

tem ainda uns lances de talento envenenados.<br />

Senso metafísico refletido na<br />

Catedral de Colônia<br />

Esse senso metafísico do alemão encontra-se expresso<br />

na Catedral de Colônia.<br />

A construção quase se restringe às duas torres. O corpo<br />

do edifício, que em Notre-Dame é tão grande e espraiado,<br />

em Colônia praticamente não existe. Ele consiste<br />

apenas em um hífen que une as duas torres. Estas<br />

Coldrerio (CC3.0)<br />

Para nós, o espírito alemão passa por ser o<br />

equilibrado por excelência. Ao pensarmos no<br />

equilíbrio dos alemães, imaginamos o pé de<br />

chumbo de seus soldados marchando, esmagando<br />

cabeças com um sapatão, com salto de<br />

pregos. É o passo de Átila. Não há erva que<br />

resista ao passo do soldado alemão.<br />

Entretanto, esse é o alemão protestante,<br />

“quadrado”, da decadência, não é o alemão<br />

católico. O alemão católico é muito diferente:<br />

pensativo, idealista, continuamente à procura<br />

de uma realidade invisível e metafísica<br />

– e por isso difícil de atingir –, com um certo<br />

desprezo até pelas coisas que são muito terra<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Raimond Spekking (CC3.0)<br />

sobem vertiginosamente e estão concebidas na ideia de<br />

emular entre si e entrar pelos olhos do homem, levando<br />

seu espírito para cima. São leves e esguias, dentro do<br />

caráter sólido alemão – sobre o qual eu exporei daqui a<br />

pouco –, que não as abandona.<br />

Para verem o papel que cada uma dessas torres representa<br />

para a outra, imaginem que existisse uma torre só.<br />

Ela se perderia, ficaria meio desequilibrada, cambaia. Pelo<br />

contrário, as duas torres juntas como que se apoiam<br />

para subir. E a altura total é compensada pela base.<br />

Há um ponto invisível de equilíbrio nelas – mais uma<br />

vez eu digo: de caráter metafísico –, o qual paira nos ares<br />

e constitui o ponto de união insuspeitado das duas torres,<br />

que o espírito concebe e o olhar não percebe. À medida<br />

que sobem, as torres vão insensivelmente se afilan-<br />

do e, em certo momento, transformam-se em cones altíssimos.<br />

Por que elas se afilam? Para dar a ideia de algo que<br />

sobe.<br />

Quando o olhar recai sobre um objeto muito alto, tem-<br />

-se a ilusão de ótica de que ele vai ficando mais esguio<br />

naturalmente. Os que conceberam a Catedral de Colônia,<br />

para acentuar a ideia de elevação, foram afilando<br />

suas torres, de maneira que tudo dá a impressão de uma<br />

altura que se perde nos céus. Tanto mais que uma parte<br />

delas é oca, está formada por um rendilhado. Quem vê<br />

uma fotografia aproximada percebe fragmentos de céu<br />

através desse rendilhado. Quer dizer, trata-se de algo<br />

meio irreal, em parte do céu, em parte da terra, em parte<br />

obra do homem, em parte obra de Deus.<br />

No ponto que dá origem à cúpula final, ainda há umas<br />

pontinhas que também parecem querer acompanhar o jorro<br />

que sobe; não conseguem e morrem sobre si mesmas, mas<br />

com elegância, com distinção. Tudo é feito para ir afilando.<br />

Vê-se uma janela e um pequeno portal. Depois duas<br />

janelas que representam do mesmo modo duas ogivas e<br />

terminam numa grande ogiva, porque afinal trata-se de<br />

uma ogiva que se perde no céu.<br />

É uma concepção completamente diferente da Catedral<br />

de Notre-Dame, mas legítima e que exprime um modo<br />

de ser do espírito humano. Assim como nos extasiamos<br />

com Notre-Dame, devemos também nos rejubilar<br />

com Colônia. Deus criou os homens com características<br />

diferentes, e quer que cada um se exprima como Ele o<br />

criou e que um compreenda o outro.<br />

A fantasia do ocidental e a do oriental<br />

Há outro aspecto muito bonito. Essa catedral não tem<br />

nada do minarete. Numa mesquita mulçumana, o minarete<br />

é aquela torre fininha do alto da qual canta um muezim.<br />

Quase diríamos que o vento vai derrubá-la. Contudo,<br />

o oriental se agrada em vê-la enfrentando o vento, como<br />

um sonho que foi concebido sem base na terra.<br />

Em Colônia, ao contrário, não há a fantasia do<br />

Oriente. A catedral representa a fantasia do ocidental,<br />

muito diferente. Trata-se de algo sólido, de um mundo<br />

de pedras, de uma base muito forte. As torres, possantes,<br />

estão cravadas no chão até o momento em que se<br />

separam.<br />

Assim age o ocidental, em particular o alemão, que é<br />

verdadeiramente sólido: mesmo quando sobe às mais altas<br />

divagações, tem os pés na realidade.<br />

Aqui está algo do espírito católico quando sopra em<br />

uma alma alemã. Tirem a Religião Católica, e o alemão<br />

jamais dará nisso. Quer dizer, todos fomos concebidos<br />

no pecado original e nós, menos a graça, somos iguais a<br />

nada. Dessa equação ninguém escapa.<br />

34


Weltenbummler1983 (CC3.0)<br />

A arte ogival explorada de modo ideal<br />

O gênio da Idade Média se exprime em todas essas<br />

belezas, e a ogiva fininha se presta exatamente para isto.<br />

Tem-se então a arte ogival explorada num sentido idealístico,<br />

por assim dizer, como não se encontra em Notre-<br />

-Dame. É algo completamente diferente.<br />

Seria preciso contemplar a beleza da catedral in loco,<br />

com aves levantando voo de dentro das torres e os sinos<br />

tocando. Tem-se a impressão de que são pensamentos<br />

contidos na torre, os quais se desprendem e voam pelo<br />

céu azul. É de uma grandeza enorme! v<br />

(Extraído de conferência de 10/6/1968)<br />

1) Wilhelm Richard Wagner (*1813 - †1883). Maestro, compositor,<br />

diretor de teatro e ensaísta alemão.<br />

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