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Fazendo a diferença<br />
O Neojiba conta com projetos como a escola de luteria, musicalização<br />
infantil, inclusão digital, aquisição de instrumentos,<br />
todos capitalizados por meio de leis de incentivo e<br />
campanhas diretas, que lhe garantiram a captação de quase<br />
2 milhões de reais junto à sociedade civil. Embora seja calcado<br />
na didática do El Sistema, o projeto de Ricardo Castro<br />
faz diferenças profundas em relação à matriz venezuelana.<br />
“Com eles, aprendi o que fazer e o que não fazer”, explica<br />
o pianista. Do lado de lá da fronteira, o programa tem uma<br />
estrutura inchada e uma incômoda associação com o governo,<br />
sendo muito utilizado para atender às demandas de seus<br />
benfeitores — como tocar na estreia da TV estatal e propagandista<br />
do país, em 2008, o que gerou críticas da comunidade<br />
erudita. Já o Neojiba, embora seja política pública da<br />
Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento<br />
Social do Governo da Bahia, é gerido pelo Instituto de Desenvolvimento<br />
Social pela Música, reconhecido pelo estado<br />
como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos.<br />
O instituto tem liberdade de gestão do projeto, flexibilidade<br />
de recebimento dos aportes governamentais e da captação<br />
de recursos externos e está preservado do cumprimento<br />
obrigatório de demandas políticas e partidárias.<br />
Outra diferença profunda é que, enquanto o maior objetivo do<br />
Sistema é criar músicos de orquestra, a ação baiana se concentra<br />
em formar seres humanos. A atitude vai ao encontro<br />
do maestro e pensador Leonard Bernstein, o maior músico<br />
americano do século XX, que defendia o poder da música<br />
na transformação do ser humano. “O segredo está na educação.<br />
Tem aluno do Neojiba que hoje é engenheiro químico<br />
na Noruega. E cerca de dois terços dos aprovados em curso<br />
superior de música na Bahia saíram do Neojiba”, comemora o<br />
pianista. “Procuramos formar cidadãos que também são músicos,<br />
e não músicos que só entram para tocar. Por meio das<br />
práticas, a gente procura abrir a cabeça da nossa juventude<br />
para que ela tenha consciência da importância da participação<br />
no processo cidadão. Isso é um grande presente. Acho<br />
que todo ser humano precisa se sentir necessário, e nossos<br />
jovens sabem que podem fazer a diferença na sua comunidade,<br />
na sua escola, dentro da sua família”, disse o maestro<br />
baiano ao jornal Correio da Bahia. “O sujeito aqui pode tudo, até<br />
virar músico profissional.”<br />
Orquestra Juvenil da Bahia <strong>–</strong> Philharmonie de Paris, encerramento da turnê na Europa, em 2018 | foto: divulgação<br />
Senso coletivo<br />
Segundo os dados mais recentes do IBGE , a Bahia ocupa a 22ª colocação no índice<br />
de desenvolvimento humano (IDH) e a 18ª posição em renda per capita, atualmente<br />
em 965 reais — São Paulo, por exemplo, tem 1.814 reais de renda per capita. Como<br />
a maioria de seus alunos sai de regiões miseráveis, eles recebem um farto material<br />
pedagógico e psicológico. Muitas vezes, ele se estende além da sala de aula e de concertos,<br />
já que os alunos são incentivados a dar aula de música aos membros de sua<br />
família e a jovens estudantes.<br />
Em tempos de crise, a integração da comunidade só aumentou. A pandemia atingiu<br />
diretamente as famílias dos meninos do projeto. Oito em cada dez têm renda de até<br />
três salários mínimos. Destas, 31% possuem renda de um salário mínimo e 10% de<br />
até meio salário mínimo. A solução foi arrecadar cestas básicas para serem distribuídas<br />
às famílias mais necessitadas. “O Neojiba construiu uma imagem de carinho,<br />
de cuidado, de um trato diferenciado com esses jovens e essas crianças, o que faz<br />
com que eles procurem uma porta para entrar no programa. Essa comunicação é<br />
criada no ambiente de prática musical coletiva e isso tem atraído mais do que o conteúdo<br />
em si. Não é porque eles vão tocar uma sinfonia de Beethoven, é porque eles<br />
vão tocar dessa maneira e com essas pessoas. Não é o repertório, o conteúdo do que<br />
se passa, mas como fazemos isso”, diz Ricardo. “Esse momento é realmente muito<br />
difícil para todos, mas somos responsáveis por criar um ambiente para que esses<br />
jovens e essas crianças tenham um futuro melhor.”<br />
Ecletismo<br />
Ricardo Castro é um instrumentista<br />
sem preconceitos musicais. Em 2005,<br />
ele se uniu novamente à amiga Daniela<br />
Mercury. “Coloquei um piano de cauda<br />
no trio elétrico para receber Ricardo.<br />
Decidimos combinar música erudita e<br />
popular. E foi uma experiência espetacular.<br />
Quando executamos Bachianas<br />
Nº 5, de Villa-Lobos, a avenida entrou<br />
num êxtase silencioso”, diz a cantora.<br />
“Toquei repertório erudito com uma<br />
aparelhagem digna de um Michael<br />
Jackson”, brinca Ricardo. Doze anos<br />
depois, retomaram a parceria em uma<br />
apresentação para comemorar os dez<br />
anos do programa Neojiba e os 35 anos<br />
de carreira da cantora. “Ricardo é um<br />
amigo de adolescência e é meu cúmplice<br />
na arte. Sou uma grande fã dele!”,<br />
derrete-se a baiana.<br />
Mas o maestro acha que cada música<br />
tem seu lugar para ser executada. “A<br />
orquestra tem de estar na sala de concerto.<br />
As cadeiras vibram, a experiência<br />
sensorial é outra. Só assim você entende<br />
por que essa música permanece<br />
viva após mais de 200 anos”, explica<br />
ele, que já foi saudado por espectadores<br />
maravilhados em experimentar<br />
essa sensação. “Dizem: ‘Maestro, pela<br />
primeira vez estou escutando o silêncio’”,<br />
emociona-se. Em 2019, o Neojiba<br />
foi contemplado com uma sede, localizada<br />
na histórica região do Parque<br />
do Queimado, no bairro da Liberdade,<br />
que abrigou a primeira central de<br />
tratamento e distribuição de água do<br />
país. O projeto custou 12 milhões de reais<br />
e consiste em seis salas de ensaio<br />
e uma sala de concertos para 140 pessoas.<br />
O tratamento acústico ficou por<br />
conta do engenheiro japonês Yasuhisa<br />
Toyota, da Nagata Acoustics, empresa<br />
que cuidou das salas de concerto<br />
das filarmônicas de Los Angeles e de<br />
Hamburgo. Mais uma vez, o maestro<br />
confirma sua crença de que é preciso<br />
dar ao jovem as melhores condições de<br />
aprendizado e uma estrutura respeitável<br />
para que ele devolva esses presentes<br />
para a sociedade.<br />
Ricardo Castro, 56 anos, é casado com<br />
a clarinetista gaúcha Amanda Müller e<br />
tem um filho de 4 anos. Os laços com a<br />
Suíça lhe renderam dupla nacionalidade<br />
e ele divide seu tempo entre o país<br />
europeu, algumas cidades da região<br />
— deu entrevista à Et cetera prestes<br />
a embarcar em um trem com destino<br />
a Florença, na Itália — e a Bahia natal.<br />
A pandemia atrapalhou os planos do<br />
Neojiba, que traria Martha Argerich e<br />
Maria João Pires para tocar com seus<br />
comandados em 2020. Os tempos de<br />
isolamento, contudo, não interromperam<br />
as atividades desse baiano ligado<br />
nos 220 volts. Ele tem dado aulas online<br />
e feito ensaios com o violoncelista<br />
Antonio Meneses, outro talento do<br />
universo erudito brasileiro radicado na<br />
Suíça. Bendita a hora em que o curioso<br />
Ricardo Castro resolveu brincar no<br />
piano da família.<br />
“O segredo está<br />
na educação.<br />
Tem aluno do<br />
Neojiba que hoje<br />
é engenheiro<br />
químico na<br />
Noruega. E cerca<br />
de dois terços dos<br />
aprovados em<br />
curso superior de<br />
música na Bahia<br />
saíram do Neojiba”<br />
Que dica daria ao<br />
jovem Ricardo?<br />
“Não espere ter 40<br />
anos para começar<br />
a fazer exercícios<br />
físicos”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 51<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 50