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INVERNO 2021 – EDIÇÃO 4

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Fazendo a diferença<br />

O Neojiba conta com projetos como a escola de luteria, musicalização<br />

infantil, inclusão digital, aquisição de instrumentos,<br />

todos capitalizados por meio de leis de incentivo e<br />

campanhas diretas, que lhe garantiram a captação de quase<br />

2 milhões de reais junto à sociedade civil. Embora seja calcado<br />

na didática do El Sistema, o projeto de Ricardo Castro<br />

faz diferenças profundas em relação à matriz venezuelana.<br />

“Com eles, aprendi o que fazer e o que não fazer”, explica<br />

o pianista. Do lado de lá da fronteira, o programa tem uma<br />

estrutura inchada e uma incômoda associação com o governo,<br />

sendo muito utilizado para atender às demandas de seus<br />

benfeitores — como tocar na estreia da TV estatal e propagandista<br />

do país, em 2008, o que gerou críticas da comunidade<br />

erudita. Já o Neojiba, embora seja política pública da<br />

Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento<br />

Social do Governo da Bahia, é gerido pelo Instituto de Desenvolvimento<br />

Social pela Música, reconhecido pelo estado<br />

como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos.<br />

O instituto tem liberdade de gestão do projeto, flexibilidade<br />

de recebimento dos aportes governamentais e da captação<br />

de recursos externos e está preservado do cumprimento<br />

obrigatório de demandas políticas e partidárias.<br />

Outra diferença profunda é que, enquanto o maior objetivo do<br />

Sistema é criar músicos de orquestra, a ação baiana se concentra<br />

em formar seres humanos. A atitude vai ao encontro<br />

do maestro e pensador Leonard Bernstein, o maior músico<br />

americano do século XX, que defendia o poder da música<br />

na transformação do ser humano. “O segredo está na educação.<br />

Tem aluno do Neojiba que hoje é engenheiro químico<br />

na Noruega. E cerca de dois terços dos aprovados em curso<br />

superior de música na Bahia saíram do Neojiba”, comemora o<br />

pianista. “Procuramos formar cidadãos que também são músicos,<br />

e não músicos que só entram para tocar. Por meio das<br />

práticas, a gente procura abrir a cabeça da nossa juventude<br />

para que ela tenha consciência da importância da participação<br />

no processo cidadão. Isso é um grande presente. Acho<br />

que todo ser humano precisa se sentir necessário, e nossos<br />

jovens sabem que podem fazer a diferença na sua comunidade,<br />

na sua escola, dentro da sua família”, disse o maestro<br />

baiano ao jornal Correio da Bahia. “O sujeito aqui pode tudo, até<br />

virar músico profissional.”<br />

Orquestra Juvenil da Bahia <strong>–</strong> Philharmonie de Paris, encerramento da turnê na Europa, em 2018 | foto: divulgação<br />

Senso coletivo<br />

Segundo os dados mais recentes do IBGE , a Bahia ocupa a 22ª colocação no índice<br />

de desenvolvimento humano (IDH) e a 18ª posição em renda per capita, atualmente<br />

em 965 reais — São Paulo, por exemplo, tem 1.814 reais de renda per capita. Como<br />

a maioria de seus alunos sai de regiões miseráveis, eles recebem um farto material<br />

pedagógico e psicológico. Muitas vezes, ele se estende além da sala de aula e de concertos,<br />

já que os alunos são incentivados a dar aula de música aos membros de sua<br />

família e a jovens estudantes.<br />

Em tempos de crise, a integração da comunidade só aumentou. A pandemia atingiu<br />

diretamente as famílias dos meninos do projeto. Oito em cada dez têm renda de até<br />

três salários mínimos. Destas, 31% possuem renda de um salário mínimo e 10% de<br />

até meio salário mínimo. A solução foi arrecadar cestas básicas para serem distribuídas<br />

às famílias mais necessitadas. “O Neojiba construiu uma imagem de carinho,<br />

de cuidado, de um trato diferenciado com esses jovens e essas crianças, o que faz<br />

com que eles procurem uma porta para entrar no programa. Essa comunicação é<br />

criada no ambiente de prática musical coletiva e isso tem atraído mais do que o conteúdo<br />

em si. Não é porque eles vão tocar uma sinfonia de Beethoven, é porque eles<br />

vão tocar dessa maneira e com essas pessoas. Não é o repertório, o conteúdo do que<br />

se passa, mas como fazemos isso”, diz Ricardo. “Esse momento é realmente muito<br />

difícil para todos, mas somos responsáveis por criar um ambiente para que esses<br />

jovens e essas crianças tenham um futuro melhor.”<br />

Ecletismo<br />

Ricardo Castro é um instrumentista<br />

sem preconceitos musicais. Em 2005,<br />

ele se uniu novamente à amiga Daniela<br />

Mercury. “Coloquei um piano de cauda<br />

no trio elétrico para receber Ricardo.<br />

Decidimos combinar música erudita e<br />

popular. E foi uma experiência espetacular.<br />

Quando executamos Bachianas<br />

Nº 5, de Villa-Lobos, a avenida entrou<br />

num êxtase silencioso”, diz a cantora.<br />

“Toquei repertório erudito com uma<br />

aparelhagem digna de um Michael<br />

Jackson”, brinca Ricardo. Doze anos<br />

depois, retomaram a parceria em uma<br />

apresentação para comemorar os dez<br />

anos do programa Neojiba e os 35 anos<br />

de carreira da cantora. “Ricardo é um<br />

amigo de adolescência e é meu cúmplice<br />

na arte. Sou uma grande fã dele!”,<br />

derrete-se a baiana.<br />

Mas o maestro acha que cada música<br />

tem seu lugar para ser executada. “A<br />

orquestra tem de estar na sala de concerto.<br />

As cadeiras vibram, a experiência<br />

sensorial é outra. Só assim você entende<br />

por que essa música permanece<br />

viva após mais de 200 anos”, explica<br />

ele, que já foi saudado por espectadores<br />

maravilhados em experimentar<br />

essa sensação. “Dizem: ‘Maestro, pela<br />

primeira vez estou escutando o silêncio’”,<br />

emociona-se. Em 2019, o Neojiba<br />

foi contemplado com uma sede, localizada<br />

na histórica região do Parque<br />

do Queimado, no bairro da Liberdade,<br />

que abrigou a primeira central de<br />

tratamento e distribuição de água do<br />

país. O projeto custou 12 milhões de reais<br />

e consiste em seis salas de ensaio<br />

e uma sala de concertos para 140 pessoas.<br />

O tratamento acústico ficou por<br />

conta do engenheiro japonês Yasuhisa<br />

Toyota, da Nagata Acoustics, empresa<br />

que cuidou das salas de concerto<br />

das filarmônicas de Los Angeles e de<br />

Hamburgo. Mais uma vez, o maestro<br />

confirma sua crença de que é preciso<br />

dar ao jovem as melhores condições de<br />

aprendizado e uma estrutura respeitável<br />

para que ele devolva esses presentes<br />

para a sociedade.<br />

Ricardo Castro, 56 anos, é casado com<br />

a clarinetista gaúcha Amanda Müller e<br />

tem um filho de 4 anos. Os laços com a<br />

Suíça lhe renderam dupla nacionalidade<br />

e ele divide seu tempo entre o país<br />

europeu, algumas cidades da região<br />

— deu entrevista à Et cetera prestes<br />

a embarcar em um trem com destino<br />

a Florença, na Itália — e a Bahia natal.<br />

A pandemia atrapalhou os planos do<br />

Neojiba, que traria Martha Argerich e<br />

Maria João Pires para tocar com seus<br />

comandados em 2020. Os tempos de<br />

isolamento, contudo, não interromperam<br />

as atividades desse baiano ligado<br />

nos 220 volts. Ele tem dado aulas online<br />

e feito ensaios com o violoncelista<br />

Antonio Meneses, outro talento do<br />

universo erudito brasileiro radicado na<br />

Suíça. Bendita a hora em que o curioso<br />

Ricardo Castro resolveu brincar no<br />

piano da família.<br />

“O segredo está<br />

na educação.<br />

Tem aluno do<br />

Neojiba que hoje<br />

é engenheiro<br />

químico na<br />

Noruega. E cerca<br />

de dois terços dos<br />

aprovados em<br />

curso superior de<br />

música na Bahia<br />

saíram do Neojiba”<br />

Que dica daria ao<br />

jovem Ricardo?<br />

“Não espere ter 40<br />

anos para começar<br />

a fazer exercícios<br />

físicos”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 51<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2021</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 4 • PÁG. 50

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