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VERÃO 2022 – EDIÇÃO 6

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Lugar de fala<br />

“A felicidade é uma ideia idiota. A vida é luta, é conflito<br />

que nos faz crescer, que nos faz aprender. É um lugar<br />

de aprendizado, de expansão de si. Nós estamos em<br />

expansão, junto com o Universo, e expandir dói”<br />

A<br />

filósofa, poeta e psicóloga Viviane Mosé resume de<br />

maneira brilhante o sentido da vida: para ela, a razão<br />

de viver seria justamente aprender a lidar com a vida.<br />

Aos 57 anos, a pensadora que traz ciência e arte na bagagem<br />

entende que viver não deve ser uma eterna busca pela felicidade.<br />

E ela não recorre a discursos empolados para enterrar<br />

o ideal de vida feliz. Vai direto ao ponto: “A felicidade é uma<br />

ideia idiota. A vida é luta, é conflito que nos faz crescer, que<br />

nos faz aprender. É um lugar de aprendizado, de expansão<br />

de si. Nós estamos em expansão, junto com o Universo, e expandir<br />

dói”.<br />

Ao longo do último ano, Viviane mergulhou fundo na dor. No<br />

início de 2021, seu casamento de quase seis anos com a economista<br />

Eduarda La Rocque terminou abruptamente. “Levei<br />

um fora, fui mandada embora”, resume. Viviane teve de sair<br />

de casa e viu ruir, no auge da pandemia, uma estrutura familiar<br />

que escorava sua saúde mental. “Foi muito inesperado, e<br />

eu sustento a minha vida na minha casa. Tenho um poema<br />

que diz ‘A casa é o corpo que me sustenta quando o meu próprio<br />

me falta’.” A separação na vida pessoal não interrompeu<br />

a convivência, já que ambas são sócias na Usina Pensamento,<br />

uma empresa de produção de conteúdo e editora de livros, o<br />

que deixa a experiência ainda mais dolorosa, como sabe qualquer<br />

pessoa que já levou um fora. Entre os vários projetos desenvolvidos<br />

em parceria <strong>–</strong> antes e depois da separação <strong>–</strong> está<br />

o livro Política: Nós Também Sabemos Fazer, que a dupla produziu<br />

ao lado dos professores Clóvis Barros de Filho e Oswaldo<br />

Giacoia Junior.<br />

O sofrimento da separação é o tema de seu novo livro, ainda<br />

sem título definido. Viviane pretende explorar um sentimento<br />

real por meio de uma obra de ficção. “É preciso demonstrar<br />

respeito e carinho por casais que se separam. A gente trata o<br />

amor como se fosse frescura, diz ‘Ah, tá sofrendo por amor,<br />

não é nada’. Mas é um luto terrível”, diz. Assim como fala<br />

abertamente sobre um assunto tão pessoal, a filósofa pretende<br />

transmitir as lições que tirou de seu próprio luto. “Estou<br />

entrando na terceira idade como uma criança. Com rugas,<br />

sim, mas me sinto uma criança. Eu fui ao fundo do meu poço<br />

e saí com uma energia incrível pra carregar o mundo nas costas,<br />

se for preciso.”<br />

A filósofa teve de aprender a lidar<br />

com intempéries relacionadas à saúde<br />

mental logo na infância. Ainda antes<br />

de completar 10 anos de idade, já<br />

manifestava uma hipersensibilidade<br />

emocional e corporal, característica<br />

percebida pela família e pela própria<br />

Viviane. “Todos temos uma ferida na<br />

alma, esta é a minha. Sinto tudo o tempo<br />

todo, este poema me define bem:<br />

Não tenho pele / Tudo me fere / Sofro<br />

de carne viva / De carne vida eu sofro<br />

/ De vida”, explica. Essa hipersensibilidade<br />

ganhou nome, décadas depois,<br />

nos consultórios de analistas e psicanalistas:<br />

transtorno de personalidade<br />

limítrofe, também conhecido como<br />

borderline. “Quando eu falo de luta psíquica,<br />

eu sei do que estou falando. Sinto<br />

dores imensas até hoje, então falo de<br />

cadeira, não levianamente”, afirma.<br />

Com o tempo, aprendeu a transformar<br />

a dor em ação. “Primeiro: eu não<br />

fujo do sofrimento; eu vou nele, e sofro<br />

mesmo. Naquele momento, parece<br />

que a vida acaba, mas o sofrimento<br />

sempre passa”, ensina. E complementa<br />

com outra lição valiosa: “Não culpe<br />

ninguém. O sofrimento é sempre seu.<br />

Isto é maturidade: aprender a lidar<br />

com a frustração”. Aqui, mais uma<br />

vez, Viviane ilustra a teoria com suas<br />

próprias experiências: “Quando eu fui<br />

abandonada pelo meu amor, que eu<br />

achava que era para sempre, eu não<br />

tive ódio dela. Eu entendi que aquele<br />

era um corte que estava acontecendo<br />

comigo. Era eu quem precisava lidar<br />

com aquilo. E eu me tornei mais forte”.<br />

Diferentemente de muita gente que<br />

atravessa sem apoio os vales solitários<br />

dos transtornos psiquiátricos, Viviane<br />

teve a sorte de sempre contar com<br />

a família e com a psicanálise, combinação<br />

que a afastou de crises graves.<br />

Filha da dona de casa Joêmia e de Anselmo,<br />

um protético (profissional que,<br />

no passado, realizava procedimentos<br />

odontológicos tendo aprendido o ofício<br />

com um mestre), a filósofa cresceu<br />

com a casa cheia, na Vitória das<br />

décadas de 1960 e 1970. O pai, que era<br />

autodidata, criou um cursinho pré-<br />

-vestibular e “discutia mitocôndrias na<br />

mesa de jantar” com os seis filhos, fazia<br />

questão de gastar o que sobrava em<br />

diversão para a família. “Não passava<br />

um final de semana sem que recebêssemos<br />

amigos em casa. Aos sábados,<br />

éramos acordados ao som de Mozart,<br />

Beethoven, logo às 8 horas da manhã,<br />

com meu pai dizendo ‘Tem que acordar<br />

pra ser feliz!’”, lembra.<br />

A união dos irmãos Mosé se estendia<br />

além do portão de casa, principalmente<br />

quando a turma se juntava para defender<br />

a irmã mais velha, Neusa, que fora<br />

adotada por Anselmo e Joêmia antes<br />

mesmo do casamento <strong>–</strong> a menina até<br />

acompanhou o casal na lua de mel.<br />

“Neusa é negra, e nós brigávamos na<br />

rua quando ela era vítima de racismo”,<br />

conta. “Quando saíamos todos juntos,<br />

ela tinha que ir à nossa frente, na entrada<br />

dos lugares, porque era barrada<br />

se tentasse entrar depois da gente. Ela<br />

era tratada pelos outros como se fosse<br />

a empregada da família.” Mais tarde, o<br />

casal adotaria outra criança negra, a<br />

caçula da turma, Alina.<br />

Aos 3 anos no jardim da casa da avó | foto: arquivo pessoal<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 47<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 46

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