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Lugar de fala<br />
“A felicidade é uma ideia idiota. A vida é luta, é conflito<br />
que nos faz crescer, que nos faz aprender. É um lugar<br />
de aprendizado, de expansão de si. Nós estamos em<br />
expansão, junto com o Universo, e expandir dói”<br />
A<br />
filósofa, poeta e psicóloga Viviane Mosé resume de<br />
maneira brilhante o sentido da vida: para ela, a razão<br />
de viver seria justamente aprender a lidar com a vida.<br />
Aos 57 anos, a pensadora que traz ciência e arte na bagagem<br />
entende que viver não deve ser uma eterna busca pela felicidade.<br />
E ela não recorre a discursos empolados para enterrar<br />
o ideal de vida feliz. Vai direto ao ponto: “A felicidade é uma<br />
ideia idiota. A vida é luta, é conflito que nos faz crescer, que<br />
nos faz aprender. É um lugar de aprendizado, de expansão<br />
de si. Nós estamos em expansão, junto com o Universo, e expandir<br />
dói”.<br />
Ao longo do último ano, Viviane mergulhou fundo na dor. No<br />
início de 2021, seu casamento de quase seis anos com a economista<br />
Eduarda La Rocque terminou abruptamente. “Levei<br />
um fora, fui mandada embora”, resume. Viviane teve de sair<br />
de casa e viu ruir, no auge da pandemia, uma estrutura familiar<br />
que escorava sua saúde mental. “Foi muito inesperado, e<br />
eu sustento a minha vida na minha casa. Tenho um poema<br />
que diz ‘A casa é o corpo que me sustenta quando o meu próprio<br />
me falta’.” A separação na vida pessoal não interrompeu<br />
a convivência, já que ambas são sócias na Usina Pensamento,<br />
uma empresa de produção de conteúdo e editora de livros, o<br />
que deixa a experiência ainda mais dolorosa, como sabe qualquer<br />
pessoa que já levou um fora. Entre os vários projetos desenvolvidos<br />
em parceria <strong>–</strong> antes e depois da separação <strong>–</strong> está<br />
o livro Política: Nós Também Sabemos Fazer, que a dupla produziu<br />
ao lado dos professores Clóvis Barros de Filho e Oswaldo<br />
Giacoia Junior.<br />
O sofrimento da separação é o tema de seu novo livro, ainda<br />
sem título definido. Viviane pretende explorar um sentimento<br />
real por meio de uma obra de ficção. “É preciso demonstrar<br />
respeito e carinho por casais que se separam. A gente trata o<br />
amor como se fosse frescura, diz ‘Ah, tá sofrendo por amor,<br />
não é nada’. Mas é um luto terrível”, diz. Assim como fala<br />
abertamente sobre um assunto tão pessoal, a filósofa pretende<br />
transmitir as lições que tirou de seu próprio luto. “Estou<br />
entrando na terceira idade como uma criança. Com rugas,<br />
sim, mas me sinto uma criança. Eu fui ao fundo do meu poço<br />
e saí com uma energia incrível pra carregar o mundo nas costas,<br />
se for preciso.”<br />
A filósofa teve de aprender a lidar<br />
com intempéries relacionadas à saúde<br />
mental logo na infância. Ainda antes<br />
de completar 10 anos de idade, já<br />
manifestava uma hipersensibilidade<br />
emocional e corporal, característica<br />
percebida pela família e pela própria<br />
Viviane. “Todos temos uma ferida na<br />
alma, esta é a minha. Sinto tudo o tempo<br />
todo, este poema me define bem:<br />
Não tenho pele / Tudo me fere / Sofro<br />
de carne viva / De carne vida eu sofro<br />
/ De vida”, explica. Essa hipersensibilidade<br />
ganhou nome, décadas depois,<br />
nos consultórios de analistas e psicanalistas:<br />
transtorno de personalidade<br />
limítrofe, também conhecido como<br />
borderline. “Quando eu falo de luta psíquica,<br />
eu sei do que estou falando. Sinto<br />
dores imensas até hoje, então falo de<br />
cadeira, não levianamente”, afirma.<br />
Com o tempo, aprendeu a transformar<br />
a dor em ação. “Primeiro: eu não<br />
fujo do sofrimento; eu vou nele, e sofro<br />
mesmo. Naquele momento, parece<br />
que a vida acaba, mas o sofrimento<br />
sempre passa”, ensina. E complementa<br />
com outra lição valiosa: “Não culpe<br />
ninguém. O sofrimento é sempre seu.<br />
Isto é maturidade: aprender a lidar<br />
com a frustração”. Aqui, mais uma<br />
vez, Viviane ilustra a teoria com suas<br />
próprias experiências: “Quando eu fui<br />
abandonada pelo meu amor, que eu<br />
achava que era para sempre, eu não<br />
tive ódio dela. Eu entendi que aquele<br />
era um corte que estava acontecendo<br />
comigo. Era eu quem precisava lidar<br />
com aquilo. E eu me tornei mais forte”.<br />
Diferentemente de muita gente que<br />
atravessa sem apoio os vales solitários<br />
dos transtornos psiquiátricos, Viviane<br />
teve a sorte de sempre contar com<br />
a família e com a psicanálise, combinação<br />
que a afastou de crises graves.<br />
Filha da dona de casa Joêmia e de Anselmo,<br />
um protético (profissional que,<br />
no passado, realizava procedimentos<br />
odontológicos tendo aprendido o ofício<br />
com um mestre), a filósofa cresceu<br />
com a casa cheia, na Vitória das<br />
décadas de 1960 e 1970. O pai, que era<br />
autodidata, criou um cursinho pré-<br />
-vestibular e “discutia mitocôndrias na<br />
mesa de jantar” com os seis filhos, fazia<br />
questão de gastar o que sobrava em<br />
diversão para a família. “Não passava<br />
um final de semana sem que recebêssemos<br />
amigos em casa. Aos sábados,<br />
éramos acordados ao som de Mozart,<br />
Beethoven, logo às 8 horas da manhã,<br />
com meu pai dizendo ‘Tem que acordar<br />
pra ser feliz!’”, lembra.<br />
A união dos irmãos Mosé se estendia<br />
além do portão de casa, principalmente<br />
quando a turma se juntava para defender<br />
a irmã mais velha, Neusa, que fora<br />
adotada por Anselmo e Joêmia antes<br />
mesmo do casamento <strong>–</strong> a menina até<br />
acompanhou o casal na lua de mel.<br />
“Neusa é negra, e nós brigávamos na<br />
rua quando ela era vítima de racismo”,<br />
conta. “Quando saíamos todos juntos,<br />
ela tinha que ir à nossa frente, na entrada<br />
dos lugares, porque era barrada<br />
se tentasse entrar depois da gente. Ela<br />
era tratada pelos outros como se fosse<br />
a empregada da família.” Mais tarde, o<br />
casal adotaria outra criança negra, a<br />
caçula da turma, Alina.<br />
Aos 3 anos no jardim da casa da avó | foto: arquivo pessoal<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 47<br />
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