Luzes da Civilização Cristã
Leandro W.
Intimidade que convida
o espírito a se elevar
O estilo burguês, sem levar
diretamente à oração, cria as
condições para o espírito ter
vontade de rezar e sentir-se
bem quando reza. Nele a arte
procura exprimir o bom senso,
o pudor, o recato, a estabilidade,
a continuidade, o equilíbrio das
coisas bem ordenadas desta Terra,
e a criação de uma ordem de coisas
que mais permite ao espírito
humano elevar-se ao mais alto
do que propriamente o eleva.
Creio que em nenhum país do mundo a vida burguesa,
no que ela tem de legítimo e digno, atingiu
graus de desenvolvimento como na Alemanha e,
com ela, o incremento de um valor característico da ordem
burguesa, sem o qual não se compreende o que é a
aristocracia.
O espírito aristocrático e o burguês
Enquanto a tendência para os píncaros e de se servir
dos valores culturais para considerar continuamente o
mais elevado é peculiar ao espírito aristocrático, e estabelece
junção entre este e o espírito religioso; no espírito
Rothemburg,
Alemanha
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Luzes da Civilização Cristã
Pedro Morais
Catedral de Colônia
burguês, a arte procura exprimir o bom senso, o pudor,
o recato, a estabilidade, a continuidade, o equilíbrio das
coisas bem ordenadas desta Terra, e a criação de uma
ordem que mais permite ao espírito humano elevar-se ao
mais alto do que propriamente o eleva.
Por exemplo, a Catedral de Colônia é um edifício eminentemente
aristocrático. Ela eleva o espírito humano a
tudo quanto há de mais alto.
Já uma casa alemã burguesa, apesar até de ter seu teto
em forma de cone, não se pode dizer que eleva o espírito
humano ao mais alto. Ela cria condições para que
ele se eleve por si, mas é uma coisa diferente.
Ambiente que convida à intimidade
Analisemos, por exemplo, algumas construções alemãs
tipicamente burguesas, uma delas utilizada provavelmente
para a prefeitura ou outro órgão público, o que
se nota por causa do brasão e do relógio, característicos
de edifícios desse gênero. O estilo é típico das pequenas
cidades burguesas, incontáveis na Alemanha medieval,
muitas das quais ainda se conservam hoje.
Vê-se uma casa mais ou menos da mesma época, inteiramente
coadunada com a prefeitura, e, no fundo, uma
igreja barroca, mas que ainda tem o caráter modesto
burguês, de uma igreja de pequena localidade, não como
uma catedral de uma importante cidade como Colônia,
prestigiosíssima metrópole cultural de todo o Reno.
A parte térrea da residência forma uma espécie de
hall aberto solidamente sustentado por um madeirame
trabalhado discretamente, mas com uma certa distinção
de linhas. Vê-se o corpo do edifício, e duas saliências
que se projetam sobre a rua. Há mais um andar em cima
e advinha-se que lá há guardados objetos de toda ordem,
como cadeiras velhas da bisavó, empilhados ali em
quantidade. É o sótão onde, ademais, mora a criada...
Procuremos com a vista da imaginação penetrar janela
adentro. Têm-se uma sensação condizente com a vida
burguesa, mas que não se experimenta no estilo aristocrático:
a intimidade.
A vida aristocrática não convida à intimidade, mas a
um perpétuo estadear magnífico de si mesmo, produzindo
uma naturalidade no esplendor. O verdadeiro aristocrata
é inteiramente natural dentro do esplendor, mas
não tem intimidade. Esta encontra-se em uma casa burguesa.
Imaginemos dentro da sala um armário onde guardam
a roupa de ir para a festa, mas quando chegam em
casa dão um suspiro de alívio, tiram o sapatão, a roupa
que apertava, sentam-se numa cadeirona macia, esticam-se:
“Enfim, em casa!”
É o gosto da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido,
da luz tamisada que não deixa entrar a realidade de
fora, do cortinadinho, dos objetos próximos uns dos outros
e ao alcance da mão, em que o homem descansa do
trabalho manual.
Pormenores do ambiente e da
intimidade do lar burguês alemão
Nada disso é necessário para o aristocrata. Pelo contrário,
vamos supor que ele está junto à mesa, toca uma
sineta e manda o criado pegar um livro. Não se pode pedir
isto a um homem como o burguês que trabalhou o
dia inteiro, e que quando tem um livro, que é uma grossa
Bíblia, já a tem ao alcance da mão. Onde está o criado?
Está a mulher, que quando o marido a solicita muito,
resmunga com uma pitoresca rabugice burguesa...,
de maneira que não é bom mexer muito com ela, pois
também trabalhou o dia inteiro.
Percebe-se uma coisa curiosa: quem está dentro desse
ambiente sente-se a uma légua da rua. A residência é
construída de modo a constituir uma atmosfera completamente
diferente, dentro da qual o ruído da rua não penetra.
A pessoa está na intimidade de um ambiente que
ela marca e onde ela sente até um pequeno gozo.
32
Quando chega o verão, à boa maneira alemã,
abre-se a janela, põem-se pedacinhos de pão e vão
os passarinhos comer, e o alemão fica todo contente.
Ou, então, coloca um pote com gerânio pendurado
ao lado de fora para o concurso de flores da
prefeitura. Precisa ganhar o prêmio, porque é muito
bonito.
Comento com delícias as construções do mundo
alemão, porque acho tudo isso maravilhoso.
Ermell (CC3.0)
Os regalos da vida burguesa
e convite ao recolhimento
O que isso tem de ver com a contemplação?
É o lar sem pretensões, honesto, da família legítima,
constituída segundo os Sacramentos. É
a casa onde o refulge o modesto esplendor da vida
de família, que está longe de ser o do celibato
na vida religiosa ou o da aristocracia, mas um esplendor
próprio que se manifesta com o seu prosaísmo.
É a dignidade do corriqueiro, onde a pessoa
pode recolher-se, isolar-se e, dando repouso
e silêncio ao corpo, começar a meditar. Não é o
conforto do preguiçoso que se afunda numa poltrona
e torna-se amolecido. Não é isso. Tudo é
mais varonil e, por isso, dessas casas, em épocas
de guerra, saem os melhores guerreiros do mundo.
Em tempos de paz, comedores de pão, tocadores
de flauta e violino.
Há, portanto, uma harmonia que convida ao recolhimento,
à oração. Num ambiente como esses, uma pessoa
sentada em uma sala ou ajoelhada num oratório, pode
Antiga Câmara Municipal de Bamberg, junto ao Rio Regnitz
isolar-se de tudo. Assim, essas casas, sem levarem diretamente
à oração, criam as condições para o espírito ter
vontade de rezar e sentir-se bem quando reza. Aí estão
os regalos da intimidade e da vida burguesa.
Vista de Bamberg,
Alemanha
Ermell (CC3.0)
33
Luzes da Civilização Cristã
Heidas (CC3.0)
O espírito de cruz
Não posso terminar esse comentário sem uma bofetada
na Revolução.
A Revolução diz: “O pobre plebeu, esmagado...” Se for
para gozar a vida, eu acho discutível o que é melhor, se
é essa vida numa casa burguesa ou em um palácio. Passar
num palácio quinze dias pode ser muito agradável.
Será igualmente agradável viver a vida inteira nele, numa
contínua representação, numa perpétua ostentação?
Nunca sustentei que o palácio fosse o melhor lugar para
gozar a vida. O gozo da vida, mais na proporção do homem,
é o do burguês da Idade Média. Palácio corresponde
a sacrifício. Parece-me indispensável termos isso em vista.
Na casa burguesa pode haver espírito de cruz. Em certo
sentido, o palácio é uma cruz para o indivíduo que mora
nessa casa e não se dá bem conta de como é o palácio,
pois ele precisa ter muita resignação para não residir e
não invejar quem resida no palácio. Por outro lado, essa
própria vida que estou descrevendo com todo o seu conforto
comporta um lado de trabalho muito duro. De maneira
que não é a casa, mas na vida de trabalho duro do
burguês que entra a cruz.
A patriarcalidade do espírito alemão
Praça do mercado em Hildesheim, Alemanha
Histórica Cervejaria Schlenkerla, desde
1405, Bamberg, Alemanha
Consideremos agora uma praça pública de uma cidade
alemã, já de um certo desenvolvimento, como Frankfurt.
Vê-se uma fonte em estilo rococó, uma grade bonita,
flores maravilhosas que ninguém rouba e nenhum moleque
acha bonito escangalhá-las durante a noite e voltar
com riso de bandido de oito anos para casa, contando
que estraçalhou tudo quanto viu.
O edifício da prefeitura se prestava à maior solenidade
do Sacro Império. Tudo dentro dele é lindíssimo, soleníssimo.
Há um soalho tão precioso que só se entra no
prédio com chinelos de feltro enormes que cobrem os sapatos
para não o estragar.
Do terraço, o Imperador recém-eleito aparecia para o povo,
jogava moedas de ouro e começava a tocar um sininho
que logo depois dava origem ao repicar de todos os sinos da
cidade, anunciando que a Cristandade tinha um novo chefe.
A monarquia alemã era de um fausto, de uma glória
extraordinária, mas conservou sempre uma nota patriarcal
que a monarquia francesa não tinha. Mesmo
São Luís IX, sentado num trono debaixo do carvalho de
Vincennes, julgando, não tinha no seu perfil espiritual
algo que é a síntese de todas as classes sociais. Ele era
um aristocrata que se aproximava do povo.
Os Imperadores do Sacro Império e os da Casa d’Áustria
não eram a culminância da ordem social afável para com o
povo, mas eram uma espécie de síntese de todas as classes,
por onde a monarquia austríaca, mais esplendorosa do que
a francesa por vários lados, comportava cenas como essas:
Século XVIII, a Imperatriz Maria Teresa está no teatro,
Ópera de Viena, soleníssima, e recebe a notícia de
que havia nascido o filho de seu filho mais velho. Ela faz
um sinal, interrompe a orquestra e grita para o povo:
— José teve um filho!
Asio otus (CC3.0)
34
Thomas Wolf (CC3.0)
Prefeitura de Frankfurt
Todo mundo se levanta, aplaude e aclama:
— Viva a Imperatriz e viva o novo Arquiduque!
Tudo numa espécie de intimidade que nós não vemos
Maria Antonieta, austríaca afrancesada, ter. E se ela tivesse
nem ficaria bem para ela.
A um povo compete dizer: “José teve um filho!”; a outro,
aparecer no balcão do Castelo um arauto precedido
por alabardeiros, e que bate três vezes no chão com uma
lança e diz: “Nós temos a honra e a alegria de vos anunciar
que a muito alta e poderosa Princesa foi agraciada
por Deus Nosso Senhor com o nascimento de um Delfim!”,
e faz uma grande reverência. São estilos, cada um
tem sua razão de ser e sua beleza.
Variedade nascida da Igreja
Tenho toda a compreensão e admiração para com o estilo
austríaco e sua beleza. O Imperador jogava desse terraço
ouro para o povo e pouco depois começavam os festejos. As
fontes eram preparadas de maneira a jorrar não água ordinária,
mas vinho. Por conta do novo Imperador, eram trazidos
para a praça pública bois inteiros que eram assados.
O povo começa a dançar. Estava preparado um monte de
trigo, e o Imperador devia sair correndo a cavalo com um
recipiente na mão e enchê-lo com aquele trigo. O povo todo
aplaudia porque o Soberano provara ser bom cavaleiro.
Assim, transcorria essa solenidade, entre festejos
quase infantis, pois o bom alemãozão é um pouco infantilzão.
Mas nisso entra também o melhor do sabor dos
pães que ele faz e dos gerânios que ele cultiva, uma coisa
um pouco infantil, um pouco popular, muito guerreira,
sumamente aristocrática, em todo caso metafísica, mas
que é diferente da frieza azul e ouro das plumas, das se-
das e do esplendor de Versailles. São riquezas diversas
que nos ajudam a amar a Igreja Católica na variedade
das almas que ela produziu.
v
(Extraído de conferência de 10/6/1968)
Detalhe da fonte na Praça da
Prefeitura de Frankfurt
Pedro (CC3.0)
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Luzes da Civilização Cristã
Como um voo
Alberto Luccaroni (CC3.0)
angélico
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força muito
grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza que só depois
se exprimiram, do mesmo modo, olhando para ele, no fundo de
nossas almas católicas há um anseio de que algo novo, realmente
magnífico ainda apareça. Nas obras do Espírito Santo não pode haver
contradição. Tudo é lógica por mais que o passo seja enorme.
ACatedral de Ravena, na Itália, é um edifício octogonal
construído num estilo bizantino muito
característico, com aquelas figuras em mosaico,
típicas da arte bizantina, postas numa espécie de estado
contemplativo, desligadas das circunstâncias concretas
de tudo, sobre um fundo dourado.
Os diversos estilos ao sopro do Espírito Santo
Passar desse estilo para o românico constitui, sem dúvida,
um salto. Não se deve confundir o românico com o greco-
-romano. Este último é o estilo grego com pequenas adaptações
feitas pelos romanos. O românico é uma adaptação que
os bárbaros fizeram do estilo romano a algo existente na alma
deles e que não havia no espírito da civilização romana.
Quando consideramos um estilo mais próximo do românico,
como é o da época de Ravena, não é fácil perceber
que de lá surgirá o românico. Entretanto, ao ver o
românico e depois o gótico, percebemos que o gótico estava
nascendo no românico.
Então, podemos dizer que o espírito de Ravena correspondia
a alguma coisa do gótico, mas com interferência
de algo violentamente diferente ligado ao romano antigo.
Já do românico para o gótico, pelo contrário, continua
em linha reta.
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força
muito grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza
que só depois se exprimiram, mas que já estavam presentes
no gótico originário, poderíamos perguntar o seguinte:
quando o gótico chegou a exprimir a sua delicadeza, a par
de sua força, ele estava esgotado ou tinha mais algo?
A força e a graça são posições ou valores harmônicos,
mas tão diversos entre si que se diria, à primeira vista,
31
Luzes da Civilização Cristã
Marie Thérèse Hébert & Jean Robert Thibault (CC3.0)
Fachada e detalhes
da Catedral de
Ravena, Itália
tratar-se de uma contradição. Mas, de fato, dentro das
coisas da Igreja, como nas obras do Espírito Santo, não
pode haver contradição. Tudo é lógica por mais que o
passo seja enorme.
Algo de novo ainda poderá surgir do gótico
Tomado esse conjunto de força e de graça, qual é a nova
perfeição contida potencialmente no espírito católico
e que viria a se exprimir no Reino de Maria?
Poder-se-ia conjeturar que fosse uma coisa muito ousadamente
diversa e profundamente afim, mais ou menos
como a capa leve e graciosa de uma rainha, capaz de
tremular ao vento de tal maneira que uma pessoa pensasse
ter sido a capa dilacerada pela ventania. Mas, na
realidade, ela nunca se rasgou; voltou-se de um lado e
de outro e deu, por vezes, uma impressão de fragmentação,
porém um olhar bem exercitado perceberia a unidade
que nunca se rompeu. Assim, nós poderíamos conjeturar
o que seria o estilo do Reino de Maria.
Algo, portanto, que seria uma continuação do gótico
surpreendentemente descontínua na aparência, compensando,
por assim dizer, a sensação de fim de caminho,
de perfeição que não há como acrescer ao que o gótico
trazia consigo.
Há como crescer! Com um salto prodigioso, mas um
salto de Anjo. Um voo, não um salto, numa direção inteiramente
diversa, que apareceria e começaria a bri-
Isatz (CC3.0)
Darkugo (CC3.0)
32
lhar de um modo superior à conjetura do espírito humano.
Uma beleza que a graça faria ver em determinado
momento. Então, a nossa exclamação de entusiastas
do gótico, que quereríamos vê-lo conservado com veneração
no esplendor do Reino de Maria, seria: “Ah, era isso
mesmo que faltava!”
Porque, embora olhando para o gótico tenhamos a
impressão de não lhe faltar nada, no fundo de nossas almas
católicas há um anseio de que algo novo, realmente
magnífico, ainda apareça.
Um golpe de gênio
Dou um exemplo que pode chocar alguns rigoristas do
gótico. Bernini 1 foi um artista muito marcado pela Renascença;
entretanto, ele teve um golpe de gênio construindo
aquela colunata do lado de fora da Basílica de
São Pedro. Após ter visto essa colunata
com olhos de homem maduro
capaz de fazer uma análise, ficaram
dois efeitos no meu espírito.
Em primeiro lugar, um conjunto
de colunas coberto, tendo, portanto,
algo em comum com uma igreja
ou casa, mas muito mais arejado
do que qualquer destes ambientes;
uma colunata fora da igreja,
mas continuando o edifício sagrado,
constitui uma espécie de meio-
-termo harmônico entre o templo e o
mundo profano, que agrada ao espírito
conceber.
O próprio traçado da colunata da
Basílica de São Pedro é firme, lógico;
neste ponto pouco renascentista
por ser um traçado forte e sério, não
tendo aquele aspecto trêmulo das
coisas renascentistas.
Ademais, a colunata é majestosa.
Dir-se-ia que cada coluna é como
um soldado invisível prestando armas
e continência ao rei que passa.
Neste caso é o mais alto Rei da Terra,
o Papa, não considerado apenas
como soberano dos Estados Pontifícios,
mas como Rei deste Reino de
tamanho mais do que cesáreo, que é
Igreja Católica Apostólica Romana,
a qual se estende sobre toda a Terra,
penetra em todos os povos e abriga
em si todas as raças.
Outro efeito causado pela colunata
em meu espírito é a ideia
de que, depois de Bernini ter descoberto essa fórmula,
ninguém construiu uma igreja tão magnífica que
merecesse uma colunata, e se fizesse ficaria uma cópia
desagradável porque pretensiosa. Por outro lado,
mais ninguém teve talento para conceber um conjunto
de colunas e dar-lhe um desenho novo, que não seja
uma repetição da colunata de São Pedro. Ficou, portanto,
uma coisa encalhada. Mas vejo na colunata de
Bernini algo no qual talvez se pudesse vislumbrar um
prenúncio falho, abortivo, de um elemento para o Reino
de Maria.
É uma hipótese que eu carrego de incertezas; mas fica-me
uma impressão meio conjectural na alma de que,
para o exterior de igrejas, alguma coisa assim se inventará
no Reino de Maria, e para cuja elaboração essa
obra de Bernini foi apenas um esboço.
Igreja da Abadia de Maria Laach (estilo românico)
Renânia-Palatinado, Alemanha
Nikanos (CC3.0)
33
Luzes da Civilização Cristã
Deus deverá suscitar, a
pedido de Nossa Senhora,
um homem com talento
Dentro da Basílica de São Pedro encontramos
o Altar da Confissão, encimado por
um dossel sustentado por quatro colunas
também esculpidas por Bernini. Como todas
as obras de arquitetura da grande épo-
MarkusMark (CC3.0)
Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)
Colunata de Bernini - Praça de São Pedro, Vaticano
Mathieu_Pinto (CC3.0)
Altar da Confissão - Basílica de São Pedro, Vaticano
ca da Itália, são feitas de mármore. Os mármores italianos
são lindíssimos, e a pedra de que é construído aquele
conjunto é muito bonita. Entretanto, as colunas não
me agradam, por serem esculpidas num formato espiral
grossão e mole.
Mas está ali uma tentativa de representar algo que
correspondesse à seguinte pergunta do espírito humano
diante de uma coluna: “Esta coluna não poderia ter um
traçado em que ela, sem deixar de ser coluna, sugeriria a
ideia de um movimento mais elegante, mais leve?”
O artista tentou dar a resposta com aquela fórmula.
A meu ver, ele fracassou. Mas não haveria uma solução?
Nesta procura de algo que fizesse com que a coluna, sem
deixar de ser majestosa, alta e forte, apresentasse algo
de ligeiro, que é quase a antítese da coluna? Admito a
possibilidade de que seja assim, mas é uma incógnita.
Deus deverá suscitar, a pedido de Nossa Senhora, um
homem com talento igual ou talvez muito maior do que
o de Bernini para apresentar uma fórmula nessa linha.
Simplesmente em torno desses dois elementos – a colunata
externa da Basílica de São Pedro e o sonho que
as colunas do Altar da Confissão não realizaram – quiçá
nascesse um estilo novo.
34
Visão Geral da Praça de São Pedro, Vaticano
Hipóteses que não se podem perder de vista
Na Basílica de São Paulo, situada fora dos muros de
Roma, há também elementos artísticos muito bonitos
que apontam para um novo estilo, e cuja história conto
resumidamente.
No século XIX, aquela Basílica sofreu um incêndio que
danificou gravemente os vitrais. Quando o Papa Pio IX
mandou reconstruir a igreja, surgiu o problema de
substituir os vitrais perdidos, por outros que estivesse
à altura da beleza da Basílica. Às vezes, Deus Se
compraz em ser glorificado pelos seus adversários. O
Sultão da Turquia, maometano, ofereceu ao Pontífice
chapas de alabastro muito finas e bonitas, que davam
cada uma para encher o vácuo de uma janela.
Assim, por presente desse filho de Maomé, apareceu
uma forma de “vitral” muito bonita, porque
tinha o indeciso da luz que penetra através de certo
tipo de alabastro, com a delicadeza dos veios
discretos, mas imaginosos, que as pedras por vezes
apresentam.
Pio IX não teve dúvida nenhuma e mandou colocar
os alabastros.
Em viagem a Roma, pude ver algumas dessas
peças detidamente, e me veio ao espírito esta pergunta:
“Será que matérias homogêneas e não mais
com aquela riqueza cromática dos vitrais, mas com
um colorido homogêneo e discreto, não representariam
a nova fórmula de vitral no Reino de Maria?”
Diz-se com entusiasmo o que eu vou afirmar
sem entusiasmo: a indústria está muito avançada,
e por isso se fabricam joias falsas com toda espécie
de matérias levadas a altas temperaturas. Não haveria
algum grande artista capaz de fabricar matérias
mais bonitas do que o alabastro, e que, entretanto,
representassem uma fórmula nova para os vitrais
de uma igreja, de um palácio ou de um castelo?
São hipóteses que não podemos perder de vista,
compreendendo que se deve sentir nisto sempre
o espírito gótico, e nunca o repúdio desse espírito.
O espírito gótico presente, completado por
mais uma ogiva, que seria o elemento novo por ele
explicitado.
Se pudéssemos imaginar como será um Santo no Reino
de Maria, então conseguiríamos vislumbrar alguma
coisa da arte nesse Reino.
v
(Extraído de conferência de 28/7/1989)
1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 - †1680), arquiteto e escultor
italiano.
Fachada da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma
Interior da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma
Berthold Werner (CC3.0)
Tango7174 (CC3.0)
35
Luzes da Civilização Cristã
Popular Graphic Arts (CC3.0)
A beleza
imortal
da Igreja
refletida nos
funerais de
um Pontífice
Há no gênio do bom desenhista uma “objetiva espiritual” que, para
captar a realidade, vale incomparavelmente mais do que as lentes de
uma máquina fotográfica. Assim, ao analisar algumas ilustrações
da morte de Leão XIII, Dr. Plinio descreve a grandiosidade que
envolve a morte de um Papa e o esplendor eterno da verdadeira
Igreja de Cristo, manifestado até mesmo em suas pompas fúnebres.
Ao longo dos séculos, a Opinião Pública foi se
tornando cada vez mais desejosa de conhecer
os atos da vida cotidiana onde eles se passavam.
E, na época que não havia fotografia, as grandes
revistas contratavam desenhistas para ilustrar seus artigos,
os quais, sem terem presenciado o acontecimento,
conheciam o local em que ele havia se dado e reproduziam
a cena de acordo com o noticiário dos jornais.
Daí surgiram verdadeiras peças de sociologia pois, embora
eles não fossem artistas eminentes, eram bons desenhistas
e compunham a cena de maneira a promover a venda da
revista. Ora, para isso o desenho deveria corresponder tanto
quanto possível à ideia que os leitores faziam do acontecimento
ali estampado; do contrário, recusariam a publicação.
Tratava-se, portanto, de um verdadeiro inquérito silencioso
junto ao grande público, com base no qual o de-
30
senhista procurava captar a cena como aquele a concebia.
Retratavam-se, por exemplo, a morte ou a coroação de
um Papa, a visita de um rei a outro, a posse de um presidente
da República. Essa representação resultava verdadeira,
ao mesmo tempo que revelava a mentalidade das pessoas
da época, como elas consideravam aquela cena e quais eram
suas expectativas em relação aos personagens que a viviam.
Nessa perspectiva vamos considerar o noticiário publicado
na revista Illustration, a respeito da morte do Papa
Leão XIII.
Um ato da augusta justiça divina
A primeira ilustração retrata a constatação da morte
de Leão XIII. Um dos presentes, provavelmente o médico
efetivo e habitual do Papa, chamado naquele tempo
de arquiatra pontifício, verifica sua pulsação. Arquiatra
é uma palavra de origem grega que significa “arquimédico”.
Os outros dois atrás dele são seus assistentes e esperam
a comprovação de que não há mais pulso e, portanto,
de que o Papa morreu.
Analisemos como a ideia da morte de um Sumo Pontífice
é representada pelo desenhista.
Notam-se vários lençóis, um tecido de muita categoria
que chega até o peito do Papa, um assento junto à cama
dele o qual, por uma parte que se vê, parece ser uma poltrona
confortável; ao fundo, vê-se um tecido damasquinado
que reveste a parede e, ao lado, uma cortina. Tudo
fala de finura e abundância.
Dentro da abundância, porém, aparece o fracasso: a
posição da cabeça demonstra que o Pontífice já não respira.
Os braços estão estendidos ao longo de um corpo
completamente inerte. Tem-se a ideia de um navio que
afundou. Paira no ambiente a impressão da insensibilidade
da morte e da dor do último instante. Sobre o Vigário
de Cristo na Terra, como sobre todos os mortais, desfechou-se
o castigo do pecado original. O Papa morreu e,
portanto, Deus acaba de exercer sobre ele um ato de sua
terrível e augusta justiça.
O horror e a gravidade da cena se refletem na atitude
dos médicos. O que verifica o pulso realiza operação correspondente
à sua profissão, ou seja, constatar se há vida,
para prolongá-la, ou se houve a morte, para declarar
encerrada a sua missão e a mudança de status e de destino
daquele corpo, fadado a abandonar todo esse bem-
-estar e a convivência dos vivos a fim de ser posto em um
W. J. Wintle (CC3.0)
31
Luzes da Civilização Cristã
caixão, murado e entregue à decomposição. O arquiatra
toma, em consequência, o ar frio de quem está numa posição
científica e profissional. Mas algo em sua postura
é solene e sério; ele se prepara para proferir as palavras
que encerram um capítulo da História da Igreja: “O Papa
Leão XIII morreu.”
O ato do médico-chefe é puramente formal. Os dois
assistentes que estão atrás já sabem que o Papa faleceu,
pois percebem que ele não respira mais. Ambos têm atitudes
diversas. O médico mais moço, de bigode preto,
conserva uma postura ereta, como quem olha ao longe e
pensa em coisas graves – evidentemente, na morte e suas
consequências – e exprime, de modo imponderável, uma
certa consternação. Aliás, o bom gosto em todas essas
atitudes está precisamente no fato de terem imponderáveis.
As maneiras escancaradas são artificiais.
O médico que se apoia na cama acaba de exercer alguma
função, pois está usando pince-nez, o qual se utilizava
apenas para ler ou fixar a vista em algo. Ele parece ligeiramente
entristecido, mas muito pensativo, como quem
pondera: “Que grande coisa é uma vida que cessa, um
pontificado que se encerra... O que é a morte!” No fundo,
seja ele ateu ou não, a palavra
“Deus” lhe vem ao
espírito.
Devemos parar,
refletir e meditar nas
grandes verdades
O outro personagem da
cena é um monsenhor. Nota-se
como o colorido do
traje difere dos demais pela
tonalidade e brilho que
o desenhista colocou. Isso
porque a batina e essa
espécie de capa com que
ele está vestido são de cor
violeta. O reluzimento da
batina indica ser ela de
uma bela seda. Os pequenos
botões de alto a baixo
são também revestidos de
fio de linha violeta. Sem
dúvida, uma bonita batina,
cujo aspecto vistoso é
quebrado pelo sobretudo,
também nobre, mas que
parece ocultar o esplendor
de um traje mais próprio
aos dias de festa.
W. J. Wintle (CC3.0)
Percebe-se que esse monsenhor, o qual tem mais ou
menos a idade do médico de bigode preto, vai se retirando
como alguém que estava assistindo o Papa e cuja função
cessou, mas ainda realiza os pequenos serviços a que
estava habituado. Por exemplo, leva na salva, presumivelmente
de prata, um copo provavelmente de cristal, e
assim começa a dar uma pequena ordenação ao quarto
do Pontífice para as cerimônias fúnebres se iniciarem.
Entretanto, vendo que a palavra decisiva vai ser dada, ele
se detém, preocupado e um tanto aflito, para ouvir o médico
declarar, em definitivo, não haver mesmo esperança alguma.
Compreendemos, assim, quanto pensamento o desenhista
pôs ao retratar esta cena. Ele soube transmitir em seu desenho
a ideia de como a morte, episódio tão frequente no
quadro geral da existência, é uma grandiosa cena diante da
qual devemos parar, refletir e meditar em grandes verdades.
Em última análise, tratava-se do supremo poder pontifício,
o fulgor da genialidade – Leão XIII era considerado um gênio
–, que em certo momento se apagaram, e só restou um
cadáver.
Dali a pouco o corpo médico sairia e comunicaria aos
Cardeais, grande número dos quais presumivelmente já
estaria na antessala, que
o Papa havia morrido.
Três discretas
batidas com
um martelinho
de marfim
Depois da constatação
científica, vinha a Igreja
comprovar a morte do
seu chefe. Entrava o Cardeal
Camerlengo, o qual
substitui o Papa de imediato
no caso de morte,
e com um martelinho de
marfim se acercava com
todos os Cardeais presentes,
batia discretamente
sobre a fronte do
Pontífice e perguntava:
— Santíssimo Padre,
vives?
Tendo repetido este cerimonial
por três vezes,
diante da ausência de resposta
ele declarava:
— Sua Santidade Leão
XIII morreu.
32
W. J. Wintle (CC3.0)
A notícia era imediatamente levada aos sineiros, e os
grandes sinos da Basílica de São Pedro começavam a dobrar
finados. Em poucos minutos, os sinos das quatrocentas
igrejas de Roma passavam a ecoá-los.
Declarada a morte do Papa, os Cardeais recitam a
primeira prece oficial por alma do Pontífice morto, oração
que se desdobrará pelo orbe. Em todas as igrejas se
celebram Missas, o mundo inteiro põe-se a gemer, a rezar
e a esperar porque o Papa morreu.
Contraste entre a riqueza e a pobreza,
a altaneria e a humildade
Outra ilustração retrata o momento em que, ainda
antes da morte de Leão XIII, o Santíssimo Sacramento
é levado para o Papa moribundo. O Viático percorre
uma das galerias do Vaticano, e no centro do quadro está
um clérigo, provavelmente um Cardeal, que, utilizando
as vestes litúrgicas e o cerimonial tradicionalmente estabelecidos,
porta o Santíssimo Sacramento sob uma umbrela
carregada por um sacerdote.
O clérigo que conduz a Sagrada Eucaristia vai rezando,
com o rosto próximo do cibório. Ele se mantém recolhido,
não olha para os lados, pois está transportando
Nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente presente,
sob as Espécies Eucarísticas, em seu Corpo, Sangue,
Alma e Divindade.
À frente vão soldados da Guarda Suíça portando alabardas,
com seu traje bem característico. Ao lado direito
de quem conduz Nosso Senhor Sacramentado, está
um membro da Guarda Nobre Pontifícia, constituída
apenas por aristocratas. Enquanto os da Guarda Suíça
abrem caminho, esse acompanha o Santíssimo como
guarda de honra; por isso leva seu bonito elmo na mão, e
não sobre a cabeça.
Entre o Santíssimo Sacramento e a Guarda Suíça
avança um clérigo tocando uma sineta, para alertar as
pessoas da passagem da Santo Viático, que está ladeado
por clérigos portando velas acesas.
Acompanham a procissão lacaios, camareiros e senhores
da corte pontifícia. Todos se dirigem da capela do
Santíssimo Sacramento para os aposentos papais.
No primeiro plano veem-se dois padres franciscanos
com a cabeça tonsurada, inclinados e rezando. É muito
bonito o contraste entre a simplicidade do traje franciscano,
a humildade com que eles genufletem, o espírito de
prece expresso pelas mãos e pela atitude, de um lado, e,
de outro, a solenidade e o recolhimento dos que acompa-
33
Luzes da Civilização Cristã
W. J. Wintle (CC3.0)
nham o Santíssimo Sacramento. Esse contraste entre a
riqueza e a pobreza, a nobre altaneria e a suma humildade
constitui uma harmonia especial.
Trata-se de outra cena que o desenhista soube representar
muito bem. Chama a atenção o lustroso do chão,
dir-se-ia que estão andando sobre a água; é o mármore
eximiamente polido e de uma qualidade esplêndida, tão
frequente na Itália e tão belo no Vaticano.
Eis uma cena verdadeiramente magnífica! Nosso Senhor
encontra-Se presente e passa por aquelas galerias;
do alto do Céu, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos
O estão adorando. Jesus Sacramentado Se dirige ao Papa
que está morrendo, e vai haver o último colóquio entre
Cristo e seu Vigário na Terra.
Entretanto, o desenho não é nada em comparação
com o cerimonial elaborado ao longo de séculos, pouco
a pouco, pelo costume, pela tradição e sobretudo pela Fé.
O “pulchrum” eterno da Igreja Católica
Outra ilustração representa a Praça de São Pedro na
noite que precedeu a morte de Leão XIII. A praça começa
a se encher de gente que anda de um lado para
outro à espera de notícias sobre a saúde do Papa, ou do
desenlace final que todos aguardam para qualquer momento.
Não se formam essas multidões compactas de nossos
dias, mas rodinhas, pois as pessoas ainda têm muita
personalidade.
Percebe-se que todos falam baixo. Seria um desrespeito
haver ali um vendedor de balas, um jornaleiro ou
qualquer outro elemento que levasse os presentes a pensar
em algo que não fosse isto: o Vigário de Cristo está
muito doente e, de uma hora para outra, serão dadas notícias
sobre ele.
Veem-se, dos dois lados, os locais de onde parte a colunata
de Bernini. À direita encontra-se o Palácio do Vaticano,
e é junto a uma dessas janelas que o desenlace está
se dando, os últimos momentos de um pontificado, de
uma vida e de um capítulo da História estão escoando.
Todo o mundo confabula...
Como não poderia deixar de ser, na praça aparecem
várias batinas, traje muito característico do tipo de padre
comum naquele tempo, experiente e compenetrado
de sua missão. No primeiro plano há um padre que está
indo embora. Trata-se de um homem alto, corpulento,
com passo decidido, sério, portando um grande cha-
34
péu e aparentando uma idade avançada, uma venerabilidade
acompanhada de uma espécie de maturidade que
se prolonga. A alma é provecta de antiguidade, e o corpo,
decidido e forte. O sacerdote se retira imerso em seus
pensamentos.
Não é verdade que esse desenho nos faz compreender,
mais do que muitas fotografias, o que há de venerável na
Praça de São Pedro e todo o pulchrum eterno da Igreja
Católica?
Expressão da realidade que
a fotografia não capta
O Papa morreu, seu corpo foi posto numa posição um
pouco mais ereta e começou a despedida dos Cardeais. O
desenho representa um deles que oscula a mão do Pontífice.
Atrás, onde a parede faz ângulo, está o futuro Papa
Bento XV, sucessor de São Pio X – a sucessão dos Pontífices
foi: Leão XIII, São Pio X, Bento XV –, na força de
sua maturidade, ainda de cabelos pretos, pensativo. Ele
não olha para ninguém, e ninguém olha para nada a não
ser o morto.
Ao fundo, um Cardeal bem mais velho fita
o infinito. Outro, já mais próximo à cama,
olha para o cadáver com uma espécie de ansiedade,
como quem diz: “Então, meu velho
companheiro de episcopado e de colégio cardinalício,
meu Papa durante tantos anos, tu te
vais? É assim a morte? Ela não está longe de
mim... Ó morte! Fito em ti o meu dia de amanhã.
Mais: morte, contemplo em ti o umbral
da eternidade, o passado que fica e o futuro
que vem. Ó morte! Ó Deus!”
Sentado na poltrona que se via em um dos
desenhos anteriores encontra-se um outro
Cardeal, literalmente affaissé 1 e muito pensativo.
No que ele pensa? Talvez nas palavras
clássicas: Sicut transit gloria mundi – assim
passa a glória do mundo. Tudo se foi, todos os
anseios, realizações, aflições, decepções, tudo
está encerrado, nada permanece, tudo é efêmero...
Ó amargura! Ó Deus que, afinal, sereis
a consolação dos justos!
Um certo desalinho intencional do cabelo
constitui quase o sismógrafo que indica a
sua aflição. Ele não está na postura própria
de quem, na Belle Époque 2 , encontrava-se na
presença de outros. Sua atitude é a de um homem
da Belle Époque quando estava sozinho
no quarto meditando, ou seja, à vontade...
Comparemos a atitude de muita dignidade
dos demais Cardeais – até mesmo o cadáver
de Leão XIII está digno na sua postura – e a desse cardeal
idoso no primeiro plano. É como se ele estivesse sozinho
no seu quarto, numa posição inclinada, mas digna,
em nada ridícula, nem descomposta. Tudo isso reflete a
pompa da Belle Époque.
Eu volto a dizer: na minha opinião, essas ilustrações
têm muito mais expressão do que a fotografia. Entretanto,
não haveria um jornal hoje que as reproduzisse, porque
o público quereria a fotografia que colheu o fato real,
recente. As pessoas não percebem que esses desenhos
dão a essência da realidade que nenhuma fotografia capta.
Há no espírito de análise do bom desenhista uma
“objetiva espiritual”, que vale incomparavelmente mais
do que o click das máquinas fotográficas. v
1) Do francês: abatido, prostrado.
(Extraído de conferência de 21/11/1980)
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante
o qual a Europa experimentou profundas transformações
culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.
W. J. Wintle (CC3.0)
35
Wolfgang Sauber (CC3.0)
Luzes da Civilização Cristã
Soldados do Senhor
Deus dos exércitos
Gabriel K.
A fortaleza se exprime na vida
humana de um modo mais sensível
na carreira militar. Dos vários
exércitos contemporâneos, nenhum
levou as qualidades militares mais
longe do que o exército alemão do
tempo do Kaiser. Seus membros
estavam impregnados da ideia
de holocausto na defesa de um
princípio, fazendo com que não
medissem riscos nem cansaços.
Segundo a Doutrina Católica, tudo quanto há de nobre
e de belo no mundo é um reflexo de Deus. Portanto,
o Criador possui todas as perfeições em grau
supremo, de um modo inimaginável, mas inteligível.
Mais ainda, não se pode dizer que Deus tenha determinada
perfeição, pois Ele é substancialmente aquela
perfeição. Por exemplo, Ele não possui o mais alto grau
de bondade apenas, mas é a Bondade! Todos os graus e
formas de bondade existentes nos Anjos e nos homens
não constituem senão participações criadas da Bondade
infinita e incriada que é Deus.
Assim, alguém que dissesse: “O Senhor expulsou os
demônios do Céu e, portanto, é muito forte”, diria uma
verdade, mas não a verdade inteira na sua expressão
Cristo, o Rei - Igreja das Bodas
de Caná, Kafr Kanna, Israel
31
Luzes da Civilização Cristã
iwm.org (CC3.0)
mais enérgica. Esta consistiria em afirmar: “Deus expulsou
os demônios do Céu porque Ele é a própria Fortaleza.”
E todas as fortalezas que há na Terra são participações
criadas da divina Fortaleza.
Tive oportunidade de comentar esta virtude simbolizada
em um ente irracional, como é o leão 1 . Entretanto,
pediram-me para tratar a respeito dessa perfeição
divina espelhada nos homens. Para isso julgo mais
adequado analisar fotografias, embora haja o inconveniente
de estas apresentarem elementos infectados de
Revolução.
Qualidades militares dignas
de atenção e análise
A meu ver, a fortaleza se exprime na vida humana de
um modo mais sensível na carreira militar. E parece-me
que, dos vários exércitos contemporâneos – ao menos da
época da fotografia –, nenhum levou as qualidades militares
mais longe do que o exército alemão do tempo do
Kaiser. Não por possuir o monopólio a esse respeito, mas
por ter atingido um grau que, no gênero próprio, não foi
superado e, enquanto tal, resulta muito digno de atenção
e de análise da nossa parte.
É bem evidente que esse exército apresenta defeitos
que o tornam objetável sob vários pontos de vista. O primeiro
deles consiste no seu caráter protestante-prussiano.
A Alemanha da época do Kaiser estava dominada
não mais pela Casa d’Áustria, como fora antes – ou
seja, por uma dinastia católica, paterna, altamente culta,
distinta e nobre –, mas por uma dinastia estritamente
militar, um tanto “sargentona”, protestante, com tudo
aquilo que existe de rígido, inflexível, hirto e agressivo
no Protestantismo.
Estas notas prejudicam em algo – aliás, não pouco –
os aspectos do exército alemão que pretendo comentar.
Mas, para não estar sempre repetindo, deixo isso dito
na introdução, a fim de depois apresentar os lados positivos
que nos interessam, nos quais exatamente se pode
ver alguma semelhança com Deus.
O mundo sem militares ficaria irrespirável
As fotografias que vou comentar datam de pouco antes
da Primeira Guerra Mundial e, portanto, do período em
que a Alemanha kaiseriana havia chegado ao seu apogeu.
Quando estive na Alemanha era tão menino – tinha
quatro anos – que não me lembro de nada a esse respeito.
A única recordação militar que conservo da viagem à
Europa em minha infância não procede da Alemanha,
mas de Paris. Estávamos hospedados num hotel
cujas janelas davam para o Arco do Triunfo e, enquanto
brincava no chão do quarto, de repente ouvi
sons de clarins. Não sei o que aquela clarinada determinou
em mim, mas tive um verdadeiro frisson e
fui correndo para a janela. Vi então um piquete de
dragões de cavalaria que passava, com a couraça,
elmo de metal com aquela crina atrás e montados
em cavalos grandes, que avançavam quase em passo
de parada.
iwm.org (CC3.0)
Miltitärfotograf (CC3.0)
32
Fiquei maravilhado! Nascia em mim o militarista.
Não sou militar, mas militarista ao último ponto, admiro
muito a carreira militar. A meu ver, o mundo sem militares
ficaria irrespirável pois, para a harmonia do espírito
humano, é preciso haver magníficos exércitos na Terra.
Eles constroem mais em tempos de paz pelo seu exemplo
do que destroem em tempo de guerra.
Passemos aos comentários, nos quais procurarei seguir
o seguinte método: descrição do quadro, análise das
virtudes nele representadas e uma referência metafísica
a Deus nosso Senhor, Autor dessas virtudes.
Personificação do brio e garbo de seu exército
Uma das fotografias nos mostra o Imperador da Alemanha,
Guilherme II, comandante supremo das forças
armadas, passando o bastão de comando a um general
durante uma parada.
Em primeiro lugar, faço notar o uniforme. O Kaiser
está vestido como um general de cavalaria. Na cabeça,
porta um elmo de aço encimado por um penacho branco.
Ao soprar o vento, essas penas esvoaçam mais ou menos
como se fossem as asas de um pássaro. Quando não
há vento, elas descem e formam uma espécie de triângulo
muito bonito sobre o elmo.
As dragonas eram peças de rigor nos exércitos daquele
tempo, destinadas a acentuar a impressão de varonilidade
do corpo do militar, aumentando-lhe os ombros.
Guilherme II tem o peito constelado por numerosas
condecorações. De seu lado pende uma espada, e veem-
-se também as botas de cavalaria. Ele monta um cavalo
de primeiríssima categoria, em cujo dorso há uma cela
esplêndida, belamente bordada.
O general está fardado mais ou menos como o Kaiser,
mas se percebe nele uma condecoração especial: uma
faixa que lhe toma todo o corpo, a qual fazia parte do
uniforme dos generais de maior graduação do exército
alemão daquele tempo.
Na atitude do Kaiser notamos, antes de tudo, o perfeito
domínio do cavalo – um animal fogoso –, que ele monta
com completo desembaraço. Guilherme II está sentado
no cavalo como sobre uma cadeira; todo o seu corpo
apresenta uma postura de firmeza e segurança. Vê-
-se nele o estilo marcial de um homem cônscio de que domina
o exército talvez mais poderoso do mundo e de que
personifica, portanto, o brio e o garbo desse exército.
O Kaiser encontra-se na flor da idade para um oficial
superior, quer dizer, ele deve ter mais ou menos uns quarenta
a quarenta e cinco anos. O general já é um pouco
mais velho e pesadão, representando menos bem o garbo
militar sob este ponto de vista. Porém, o exército alemão
tem nele a figura de um guerreiro supremo: calmo,
seguro, varonil, digno e disposto a tocar as coisas para a
frente.
Desejo de quebrar os resíduos da preguiça
Outra fotografia nos permite ver os soldados de infantaria
fazendo manobras e marchando com o famoso
passo de ganso do exército prussiano, que se comunicou
a todo o exército alemão e também a alguns exércitos
sul-americanos. Consiste em marchar levantando a
perna até a altura da cintura para exprimir resolução,
ausência de preguiça. O homem preguiçoso arrasta os
pés, quase não os levanta; o soldado de infantaria resoluto,
disposto a lutar de toda maneira, que transpõe a pé
distâncias enormes, levanta a perna quase até o inconcebível,
manifestando seus desejos de violentar e quebrar
completamente os resíduos da preguiça que sempre existem
numa criatura humana.
Por outro lado, vê-se os batalhões rigorosamente alinhados,
e as filas que vão se sucedendo com a decisão de
Bain News Service (CC3.0)
iwm.org (CC3.0)
33
Luzes da Civilização Cristã
lutar e de matar. As baionetas emergem do alto dos fuzis
portados por soldados revestidos de uniformes escuros e
calças brancas. Quem vê um regimento tem a impressão
de uma máquina de disciplina, de energia, de impacto
férreo, disposta a tudo para vencer e diante da qual nada
pode resistir. É exatamente o estilo do militarismo alemão,
bem diferente do militarismo espanhol, mais afeito
à guerra de emboscada, por meio da qual os soldados da
Espanha expulsaram de seu território o maior exército
do tempo, o de Napoleão, organizado segundo os modelos
que mais tarde o exército do Kaiser haveria de seguir.
Podemos imaginar o efeito que causavam milhares de
homens desfilando horas seguidas diante do público eletrizado.
A população se sentia representada naqueles
homens que personificavam o espírito militar alemão; e
o desejo de grandeza, de proeza, de ousadia, o gosto de
organização e disciplina, que distingue os alemães, estavam
ali muito bem expressos. O que encanta toda essa
gente é a ideia de eventualmente até morrer, numa suprema
manifestação de força e coragem.
Uma das mais altas situações que
a vida humana pode oferecer
A próxima fotografia mostra aquele que, a meu ver, é
um dos mais bonitos regimentos do exército alemão. Os
soldados têm sobre o elmo de metal uma águia, emblema
do Império Germânico. Ela representa a força no mundo
dos pássaros e, portanto, simboliza o domínio. Tratam-se
de soldados de cavalaria que vestem um uniforme
branco com grandes botas, as quais vão até acima do
joelho, e portam uma espada.
Em outro batalhão, constituído de oficiais e que deve
ser a guarda pessoal do Imperador, nota-se uma peça do
vestuário, uma espécie de dolman, na qual figura um sol
que, por sua vez, representa o domínio entre os astros. É
o astro-rei, como a águia é o pássaro-rei.
O alinhamento das fileiras é impecável, corretíssimo,
indicando cuidado, disciplina. Nenhum soldado aparece
numa atitude preguiçosa, com ar de quem tem pressa
de cessar esse exercício. Todos estão contentes, felizes
de representar o papel do guerreiro. Por quê? Pela beleza
da luta e da força em si, pelo pulchrum do holocausto
do homem que esgota toda a sua vida no momento em
que realiza isto e pode dizer: “Eu morri no ápice da minha
fortaleza.”
Vemos em outra fotografia uma revista às tropas. Os
destacamentos estão parados e o Kaiser, seguido de seu
Estado-Maior, vai percorrendo os regimentos. Uma vez
mais se faz notar o alinhamento impecável.
A atitude dos soldados é de quem se deixa inspecionar
com entusiasmo. A do Kaiser e de seu séquito, por
sua vez, é de quem compreende a nobreza que há em comandar.
Também eles estão alegres porque comandar a
guerra significa comandar a epopeia e a proeza, realizar
as qualidades de homem numa das mais altas situações
que a vida humana pode oferecer.
A ideia de holocausto na
defesa de um princípio
Em outra fotografia podemos ver uma carga de cavalaria.
Trata-se de um exercício que se prepara para a
guerra. Os oficiais e os soldados cavalgam a todo galope,
de sabre na mão e bradando, para atacarem, no caso
concreto, um adversário imaginário. Mas é uma linda
imagem da guerra.
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, não se tinha
feito ainda a experiência de que, com armas de fogo
muito evoluídas, o uniforme brilhante tornava o soldado
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um alvo a longo alcance. De maneira que nessa época os
soldados ainda usavam lindos uniformes, os quais lhes
davam consciência da importância de seu métier.
Qual é a fonte do entusiasmo com que eles avançam?
Todos compreendem como é belo andar a cavalo, dominar
um corcel fogoso e, sobretudo, quanto é belo estimulá-lo
a atacar, ter uma força que se joga de encontro ao
adversário para o derrubar, quanto é belo matar e morrer
na defesa da boa causa! Esta ideia de holocausto, de
destruição do adversário e de si mesmo na defesa de um
princípio, fazia com que esses homens não medissem riscos
nem cansaços. Para viver esses momentos de apogeu,
eles sacrificavam tudo.
Um mundo metafísico, de valores
absolutos, que nos aproxima do Céu
Em uma das fotografias, vê-se a figura primorosa de
um velho general conversando com o Kaiser. Um homem
cuja barba é toda branca, e se nota o cabelo branco aparecer
por debaixo do capacete. Apesar da avançada idade,
porém, ele está teso, reto.
Chamo a atenção para o elmo. Ele é brilhante, luzidio,
possui uma guarnição dourada que vai até o queixo,
e não tem penacho nem águia, mas uma ponta que dá a
ideia de que, à mingua de outra coisa, o soldado alemão
avançará fazendo o papel do touro contra o toureiro, e
lutará até a última resistência.
O general está numa atitude que inspira, não o respeito
que se tem por um idoso, mas o respeito devido a
um militar. Vê-se que, se aparecer um adversário, esse
ancião pega a espada e sai para combater. É um homem
válido para qualquer coisa. A firmeza e a altivez militares
encontram-se esplendidamente representadas nessa
fotografia.
Podemos observar uma vez mais o passo de ganso no
desfile dos estandartes do Império, no qual cada soldado
conduz uma insígnia diversa correspondente a um dos
vários regimentos. Além da variedade e beleza dos estandartes
de gala – todos bordados, riquíssimos –, contemplamos
também a diferença dos elmos: um em forma de
cone truncado, outro com ponta, outro ainda com penacho.
Notem com que garbo e entusiasmo eles marcham.
Cada um dá a sensação de estar carregando nas mãos a
honra do próprio regimento, e conduz a bandeira como
quem porta um princípio, um ideal, e o leva para a luta.
Eles não olham para o público. Representam um papel
para um mundo imaginário, metafísico, de valores
absolutos, que está além do nosso. É o mundo feito de
ideias, de princípios, que já nos aproxima do Céu e de
Deus.
A Escritura atribui ao Altíssimo o título de “Senhor
Deus dos exércitos”, quer dizer, o Deus de toda força, o
qual paira acima dos exércitos que defendem o bem e faz
vencer aqueles que Ele quer proteger. Tem-se a impressão
de que esses homens estão imbuídos da grandeza de
serem soldados do Senhor Deus dos exércitos. v
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 12/1/1973)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 251 e 252, p. 30-35.
35
Luzes da Civilização Cristã
Entusiasmo e alegria
pela alma guerreira
Na Idade Média se entendeu que na sociedade temporal a
mais alta carreira era a militar. Exatamente por causa do
princípio enunciado por Nosso Senhor: “Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.”
Por essa razão, as mais belas guerras da História foram
aquelas que tomaram todo o seu sentido no ideal religioso.
Anação alemã é tão militarista que o estilo militar
invadiu a vida civil. Os estudantes tinham
várias associações, muitas delas fundadas há
séculos. Cada um possuía um uniforme próprio e usava
uma espada para esgrima, que era o esporte preferido
por eles.
O que a alma militar tem de mais belo
Vemos em uma das fotografias uma cerimônia na corte.
O Imperador fardado, de pé sobre o estrado junto a dois tronos
com um dossel. De tal maneira o feitio militar impregnou
a vida alemã que até as velhas senhoras são tesas e hir-
Anton von Werner (CC3.0)
Inauguração do Reichstag no Salão Branco
do Palácio de Berlim por Guilherme II (25 de
junho de 1888) - Museu Histórico Alemão
32
tas como dragão de cavalaria. A
Imperatriz, pessoa aliás muito
afável e simpática, tem um pouco
a postura de uma “generala”.
Mas tudo se passava de um
modo meio militaresco na corte
alemã, sempre impregnada pela
ideia de que o valor supremo da
existência humana é a luta, portanto
a guerra, a imolação da vida ou a
destruição de vidas.
Na música militar alemã as notas saem
como se fossem batalhões, arrasando no ar
um inimigo imaginário. Silêncios preguiçosos se rasgam
diante deles, e vão batendo, cutucando, combatendo,
de maneira a se ter a impressão de que acabam
tomando a cidadela. É a descrição magnífica de
um combate ou a sonorização de uma parada. Quando
determinados instrumentos dão uma nota, tem-se
a sensação de estar vendo o passo do soldado alemão,
moverem-se capacetes, elmos, estandartes... É toda a epopeia
da Alemanha imperial que passa diante de nós.
Por detrás do aparato militar muito bonito e da sonorização
que combina tanto com esse aparato, percebemos
algo mais belo: é a alma militar. O que esta, por sua
vez, tem de mais belo é a decisão decorrente da profundidade
da alma humana de entregar a vida por um determinado
ideal. Não é entregar a vida deixando-se matar,
mas é destruindo algo que não tem o direito de existir,
organizando contra um ilegítimo agressor uma força
metódica, implacável e disposta a tudo.
A vida humana não é o valor supremo
O bonito, então, não é só esta resolução, mas, acima
dela, o idealismo. Se algo fere o Direito, a Lei, a Moral,
não tem a faculdade de ser; e em nome da Lei, do Direito e
da Moral é preciso tomar a iniciativa de lutar contra isso.
Trata-se de uma resolução tomada à luz de um princípio
superior, determinando no homem uma verdadeira
sublevação no sentido etimológico da palavra, um surto
de toda a personalidade, uma mobilização completa.
Não uma mobilização sem distância psíquica, neurótica,
de um gagá que toma um remédio qualquer para ficar
meio alucinado e vai como uma besta se meter em cima
das baionetas dos outros, mas de um homem inteiramente
lúcido, senhor de si, que apela para sua própria personalidade
e a coloca na luta. E o faz numa espécie de ato de
holocausto, que é o seguinte: Se eu devo morrer, a minha
vida teve pleno sentido porque me realizei por inteiro.
O homem se realiza por inteiro quando se dá a algo
que vale completamente. Então ele chegou à sua própria
plenitude. Sobretudo, quando se dá totalmente com
Jesus indicando o caminho
aos cruzados - Igreja Sainte-
Ségolène, Metz, França
o risco de, após a guerra, ficar estropiado, cego, arrastar-se
como um inválido, às vezes um pobre mendigo, ou
morrer na flor da idade, tornar-se prisioneiro, ser maltratado.
Seja qual for o risco, ele resolveu e fará. Executa
e sofre, mas nesse sofrimento o homem se une com
seu ideal e, por assim dizer, se realiza com seu ideal.
Isto, no fundo, tem o sentido seguinte: a vida humana
não é o valor supremo. A comodidade, a prosperidade,
o conforto, o próprio prazer nobre e elevado de ter
uma cultura, uma instrução, a familiaridade com altas
cogitações do espírito, nada disto constitui o fim da vida.
Sua finalidade consiste em algo que é mais alto do que a
vida: o Direito considerado em si, a Moral considerada
em si, o Bem considerado em si, em holocausto do qual o
homem se imola.
A mais perfeita das guerras em todos
os tempos foi a das Cruzadas
Mas, por sua vez, o que é o Direito, o Bem, a Moral
considerados em si? A Doutrina Católica ensina: só
existe um Deus supremo, perfeito, santíssimo, Criador
de todas as coisas, a cuja Lei todos devem obedecer, Ele
é o Bem, o Direito. Deus premia o herói e castiga o injusto
agressor ou o poltrão que não soube resistir a este
último. Quer dizer, ou esses princípios se personificam
num Ser espiritual vivo, perfeito e infinito, ou não
têm sentido.
Flávio Lourenço
33
Luzes da Civilização Cristã
Flávio Lourenço
Porque o Direito em si… é o que os latinos chamam
flatus vocis, uma palavra vácua, um som emitido pela
voz. Moral em si… que sentido tem o vocábulo “moral”
se não há um Deus que me premia e me castiga, o
Qual eu preciso amar porque Ele é Ele? E ainda mesmo
que não me premiasse e não me castigasse, eu O
deveria amar porque Ele é perfeitíssimo e digno de todo
amor.
Isto dá o último sentido da imolação, do senso militar.
Por essa razão a mais bela e nobre forma de guerra que
se possa imaginar é a guerra religiosa.
A guerra das guerras em todos os tempos e a mais perfeita
foi a das Cruzadas para libertar o Santo Sepulcro e
as populações dos católicos do Oriente próximo, que estavam
opressas pelos maometanos. A Cruzada contra os
cátaros e albigenses, as guerras de Religião da Liga Católica
da França, as dos chouans, dos carlistas, dos cristeros
são as mais belas guerras da História, porque tomam
todo o seu sentido no ideal religioso.
E agora vem a mais alta consideração que podemos
fazer: a alma desses guerreiros que morrem pensando
em Deus. De um Roland, par de Carlos Magno, que expira
em Roncesvales, entregando sua alma ao Criador. Essa
alma que O ama tanto é, ela mesma, um reflexo d’Ele,
parecida com Ele, criada à sua imagem. Deus Se espelha
nela e esse heroísmo que há nela é o reflexo de uma
virtude divina. Um reflexo muito mais próximo do que o
leão, o qual é um animal irracional. O herói é um ente
racional e, na sua alma espiritual, o heroísmo já é um reflexo
muito mais próximo de Deus. Porque a alma se parece
muito mais com o espírito do que matéria.
Vitória de São Miguel e seus Anjos contra os demônios - Igreja
de São Lourenço, São Lourenço de Morunys, Espanha
A primeira guerra santa da História
Quantas atitudes de Deus no-Lo mostram como guerreiro!
Ele ordenando a São Miguel Arcanjo que elimine
os demônios que se revoltaram no Céu e os precipite
no Inferno. Que ato supremamente majestoso! Deus,
no fundo de todos os séculos, levantando-Se na sua indignação
e dando a ordem a São Miguel Arcanjo para
expulsar os demônios. Pode-se imaginar esta manifestação
da cólera divina, do desagrado de Deus, da repulsa,
da rejeição, do asco e, depois, o castigo eterno, completo:
“Contra eles o meu ódio implacável. Eu os cancelarei
do local glorioso, a perpétua e feliz permanência na minha
presença, e os atirarei para todo o sempre numa dor
sem remédio, nem diminuição, nem consolação no lugar
do fogo, das imundícies, do asco, da blasfêmia, da tortura,
detestados por Mim por toda a eternidade.”
Imaginem a majestade dessa sentença! A beleza do
triunfo de São Miguel Arcanjo e de todos os Anjos fiéis que,
no Céu, resistiram à prova e, por assim dizer, desfilaram
diante de Deus, recebendo – eles, os bons guerreiros que
empurraram os demônios para o Inferno – o prêmio pela
guerra santa, a primeira da História, que tinham travado.
Que resplendores no Paraíso! Que “paradas”, que “marchas”!
Se, como sabemos, os Anjos entoam um canto espiritual,
o que terão sido os cânticos deles durante a guerra
contra os demônios, e o que poderia ser o cântico de triunfo
dos Anjos fiéis no Céu, mostrando a Deus os demônios derrotados?
Ninguém pode ter ideia da beleza disto!
Mas, com o favor de Nossa Senhora, nós vamos ter
esta ideia. Quando sobre o mundo desolado, devastado,
escangalhado, quase todos ou todos os homens mortos,
a tuba do julgamento final tocar e os corpos
começarem a ressuscitar, e o Verbo de Deus
encarnado baixar à Terra em pompa e majestade,
veremos o Criador dando o final
também da grande batalha da Criação. Ele
vai chamar a Si todos os eleitos que se unirão
a Ele num desfile processional garboso e
marcial. E vai mandar para o Inferno, para
o lugar dos derrotados, os maus que foram
esmagados na luta.
A alma guerreira, santíssima
e perfeitíssima de Nosso
Senhor Jesus Cristo
Então, nós teremos o último cântico de
triunfo da Criação que vai celebrar a alegria
e a majestade da vitória de Deus. Nossa
Senhora vai brilhar com toda sua refulgência,
Ela a Quem a Escritura compara textualmente
a um exército em ordem de batalha,
34
Gabriel K.
classe social que seguia essa carreira era a mais alta, ou
seja, a nobreza. Exatamente por causa daquele princípio
enunciado por Nosso Senhor: Ninguém pode amar mais
seu amigo do que dando a vida por ele (cf. Jo 15, 13). Então
é aquele ato de suprema identificação com os mais
nobres ideais, pelos quais alguém se oferece num holocausto
cruento. Eis porque a Igreja tem canonizado homens
em todos os estados de vida, desde príncipes até lixeiros,
desde Papas até humildes sacristães, de todas as
idades, etc., mas quando ela fala dos mártires tem um
tremor na voz e um enlevo especial nos olhos. Nada mais
belo do que oferecer a sua vida. São Paulo já disse: Cristo
crucificado excede a tudo (1Cor 1, 23-25).
O bonito é que Nosso Senhor aceita, mais do que os
nossos atos, os nossos desejos. Se tivéssemos o desejo intensíssimo
e cotidiano de viver e morrer numa guerra
santa, ainda que não fôssemos capazes de lutar durante
ela, quando morrêssemos teríamos a glória do guerreiro.
Mas para isso seria preciso nós termos um espírito tal
que, a qualquer momento em que a guerra santa arrebentasse,
nós entrássemos para ela como Nosso Senhor
Jesus Cristo tomou sua Cruz: com entusiasmo, com alegria,
osculando-a de satisfação.
v
Juízo Final - Museu Metropolitano
de Arte, Nova Iorque
e que sozinha esmagou todas as heresias no mundo inteiro.
Nós vamos ver Nosso Senhor Jesus Cristo erguer-
-Se com aquela majestade que Ele tem no Santo Sudário,
no furor de sua indignação contra os maus e no esplendor
de seu amor aos bons, e veremos a separação feita. O
exército dos bons vai ficar para todo o sempre no Céu e
o dos maus para todo o sempre no Inferno. Será o fim da
batalha e a vitória permanente dos bons.
Nesse momento nós teremos refulgências de Deus e
veremos aquilo que poderíamos chamar a Alma guerreira,
santíssima e perfeitíssima de Nosso Senhor Jesus
Cristo, chamado pela Escritura o Leão de Judá, e de
Nossa Senhora, a Rainha de todos os exércitos.
São Paulo diz que ele só sabia pregar a Jesus Cristo.
E depois acrescentou: a Jesus Cristo crucificado (1Cor 2,
2), entendendo que todas as coisas perfeitíssimas, santíssimas
e insondavelmente sábias que Nosso Senhor fez
em sua vida, sendo elas todas objeto de enlevo constante
dos homens, entretanto como que se compendiavam
no ato em que Ele deu a vida na Cruz. Quer dizer, no
momento em que o homem se imola por algo, ele dá tudo
quanto poderia dar. O holocausto, o sacrifício cruento
contém todo o resto. É um ápice.
Por causa disto, na Idade Média se entendeu que na
sociedade temporal a mais alta carreira era a militar; e a
(Extraído de conferência de 12/1/1973)
Jesus carregando a Cruz - Basílica de
Nossa Senhora do Rosário, Guatemala
J. P. Braido
35
Apóstolo do pulchrum
À procura do belo
e do superbelo
Em suas obras, Claude
Lorrain compõe o belo e
introduz o superbelo. Para
isso, capta os “flashes” dos
estados mais bonitos da
natureza e os fixa na tela.
Entretanto, ao pintar uma
paisagem não se limita a
retratá-la como ela é, mas
como ele a imagina.
V
ão ser consideradas fotografias de quadros de
um pintor de origem lorena, mas que pintou a
Itália e se tornou sobretudo célebre na Inglaterra.
O nome dele é francês: Claude Lorrain 1 . Os quadros
correspondem ao desejo de maravilhoso que ilustrava o
Ancien Régime 2 .
“Flashes” dos estados mais belos da natureza
Nos quadros há dois dados que nos interessam realçar.
Em primeiro lugar, é o modo elaborado e cultural de
apresentar a natureza, por onde ela fica vista nos seus
aspectos fugidios mais belos. Ele pega por assim dizer
“flashes” dos estados mais belos da natureza e os fixa na
30
tela. Ademais, tem esta posição que é muito criticada pelos
modernos: compor o belo. Quer dizer, ao pintar uma
paisagem, não a retrata como ela é, mas como ele a imagina.
Pinta, por exemplo, um golfo real, mas figura no
golfo uma ilha que não existe. E na ilha, um castelo que
não existe também. E isto para pôr dentro do belo o superbelo.
Qual a crítica que os modernos fazem a isso? Que não
é real, as coisas não se passam assim e se deve pintar a
realidade. Depois eles vão pintar na tela homens monstruosos
que graças a Deus não existem, mas os partidários
desse tipo de arte não chamam isso de “irrealismo”,
e sim de “surrealismo”. Quer dizer, para eles isso não
só é a realidade, mas a super-realidade. Ora, já se pode-
mQHhySZUHdWMaA (CC3.0)
31
Apóstolo do pulchrum
ria impugnar o título: a super-realidade é real ou é a irrealidade?
Além disso, uma coisa que é a super-realidade
deveria ser algo mais belo do que a realidade, e não o
monstruoso, que corresponde à sub-realidade. Há, portanto,
uma inversão completa de conceitos e de valores.
Parece-me que nesta época de poluição do ar, da mente,
do senso estético, os quadros de Claude Lorrain apresentam
qualquer coisa de muito formativo, neste sentido, com
as restrições que se devem fazer às coisas do Ancien Régime.
Ruínas que causam a impressão de
serem feitas de pedras preciosas
No primeiro quadro temos uma paisagem muito misturada:
é uma espécie de meio-termo entre o campo e a cidade.
The Yorck Project (CC3.0)
32
Para melhor compreender a beleza desta obra de arte,
é preciso ter tomado o gosto pelas ruínas e se pôr na perspectiva
do belo tipicamente italiano. Alguns dos monumentos
estão de tal maneira em ruínas que as pedras da
parte de cima caíram, e no lugar nasceu uma vegetaçãozinha
que não o enfeita nem um pouco. Em meio a tudo isso
estão os camponeses se divertindo, conversando.
Notem, entretanto, uma árvore de um formato até
um pouco extravagante, mas com uma vegetação bonita,
felpuda; ela tem um lance muito nobre e seus galhos
pendem com muita dignidade e distinção. É uma árvore
muito cortesã, por assim dizer.
As colunas, apesar de constituírem ruínas, estão bem
conservadas, e sobre elas incide uma luz muito bonita
iluminando-as com distinção, de maneira a se ter quase
a impressão de que são de pedra preciosa ou revestidas
de alguma seda.
A ruína de um monumento, com três colunas e um
frontão em cima, é muito bonita também. Essas colunas
são esguias, distintas, nobres. Os arcos sólidos, vigorosos,
fazem pensar nos desfiles das legiões romanas vitoriosas,
que vinham trazendo milhares de vencidos de
guerra, acorrentados e que iam ser levados ao Capitólio
para a cerimônia faustosa e terrível do triunfo romano,
na qual o rei adversário seria morto. Ele vinha a pé
e acorrentado como um escravo, para ser executado no
Capitólio.
Beleza especial em apreciar o passado
Vê-se também um prédio romano abandonado, mas
que conserva todas as colunas de sua fachada ainda em
pé. Ao lado, um casario modesto, popular. Mais adiante,
uma igreja católica em estilo românico que deve datar
de antes da Idade Média, talvez um pouco depois, quiçá
seja da Renascença, com uma torre, tendo em torno um
convento ou um casario.
Os homens daquele tempo julgavam haver uma beleza
especial em apreciar o passado, tendo o curso dos séculos
transcorrido em cima. De maneira que, sobre toda
a grandeza e a desgraça do Império Romano, tinham decorrido
séculos e séculos de abandono, de desmantelamento,
deixando ver, ao mesmo tempo, a magnitude e o
efêmero das coisas desta Terra.
Então, as pessoas se punham a pensar, rememorando
fatos, fazendo filosofia da História, sob um
céu de um azul muito delicado e com umas nuvens
que já podem ser chamadas de pré-românticas. Elas
não obscurecem o firmamento, mas são um pouco
obscuras e introduzem na paisagem qualquer coisa
de melancólico.
Em um dos quadros parece estar representado um
personagem característico das paisagens italianas: um
mendigo. Mas que mendigo saudável, inteligente! Que
sabe tirar partido da despreocupação, do incerto e do
aventureiro de sua vida. Dois homens do povo conversam
com o mendigo, sobre chuva e bom tempo, sobre
tudo e nada; é a vidoca de todos dos dias que continua
aos pés das faustosas ruínas que os homens cultos admiram.
33
Apóstolo do pulchrum
Fascínio do desconhecido, do
misterioso e do sublime
Noutra pintura, Claude Lorrain representa um
porto de mar sob um céu cujo colorido é parecido
com o que já analisamos: um azul muito tênue com
um mundo de pequenas nuvens que, nos seus pontos
mais densos, tendem a ficar um pouco escuras.
De maneira que se tem a bonança, mas também algo
que de longe prenuncia uma tempestade, insinua
uma preocupação.
Ao lado vê-se um bosque exuberante, com árvores
muito altas que insinuam ao espírito a ideia do frescor e
da harmonia da natureza ao pé dessas árvores.
Encontramos também dois prédios faustosos, ao gosto
renascentista. O edifício bem junto ao cais pode ser
perfeitamente uma igreja, como também um tribunal ou
qualquer outra repartição pública. Ele está sobre uma
pedra que o defende contra o mar.
O outro edifício está sobre uma espécie de patamar
de onde se erguem as colunas encimadas por um terracinho,
de maneira que alguém pode sair do prédio e contemplar
dois tipos de paisagens: a próxima e a remota
que, por sua vez, apresentam os dois aspectos da vida de
navegação os quais Claude Lorrain quis tornar presentes
nesta obra.
Em primeiro lugar, a caravela muito bonita. Notem
a elegância das bandeirolas tremulando no topo dos
mastros, no alto dos quais há uma espécie de terracinho
para ficarem os vigias, e a beleza das velas enroladas
num oblíquo elegante e distinto. Percebe-se a
madeira faustosamente trabalhada da proa desse navio.
Faz-nos reportar às viagens distantes das caravelas
que iam buscar princesas no Báltico para se casarem
em Nápoles, ou pegar ouro nas Américas para levar
aos portos do Mar Mediterrâneo ou da Península
Ibérica; enfim, caravelas que passavam por todas
as aventuras, singrando todos os mares e cuja saga é
lembrada pelo Sol que se perde no horizonte e cujo
reflexo é mais nítido na água do que no próprio céu.
Tem-se a impressão de um infinito que vai se prolongando
e do qual a caravela vem trazendo todos os mistérios,
todas as mercadorias, todos os estrangeiros,
todas as narrações de aventura dos vários países onde
ela esteve. É o fascínio do desconhecido, do misterioso
e do sublime.
Ao fundo há alguns navios de travessia menor, mas
que também lembram as grandes navegações, de certo
modo.
Mais perto do porto vemos um formigar de barquinhos.
É a vida comercial e social aqui representada: gente
que vai pegar as riquezas das caravelas e levar para a
terra, ou recolher viajantes, muitas vezes ilustres, e conduzi-los
até o cais.
Acaba de chegar um personagem de prol? Há um grupo
de pessoas que o acompanha; alguém anda solícito,
procurando ajudar. É uma cena de certa distinção. Inclusive
está posto do lado de fora um tapete diante do
edifício que bem pode ser um palácio.
34
Veem-se pessoas que olham a cena, outras nem se importam
com ela, estão pensando em coisas diversas. Há
homens dentro dos barquinhos, ou porque trouxeram ou
vão levar gente, ou estão descansando. Desse modo, numa
mesma cena está condensada uma série de circunstâncias
que, assim, raras vezes se encontram, e dão a ideia da vida,
do movimento, da beleza quase pré-romântica da natureza
campestre e da navegação, bem como do formigar
da vida comercial e social de todos os dias. v
(Extraído da conferência de 27/5/1972)
1) Claude Gellée (*1600 - †1682).
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
Divulgação (CC3.0)
35
Apóstolo do pulchrum
Arte penetrada de
senso do maravilhoso
O maravilhoso plasmado nas pinturas de Claude
Lorrain consiste em imaginar um mundo irreal
carregado de significados que transportam o
homem à contemplação das belezas eternas. A
tal ponto essa arte está penetrada por um ideal
que o indivíduo se sente morador do Paraíso.
Antes de comentar algumas pinturas de Claude
Lorrain, gostaria de dizer algo à guisa de introdução
ao que vamos analisar nas obras desse pintor.
Entre as belezas existentes na natureza há algumas
proporcionadas com a ordem natural na qual estamos e
outras tão magníficas que têm algo de desproporcionado
com essa ordem. São naturais, mas maravilhosas a ponto
de nos fazerem pensar num outro universo ou mundo
diferente, podendo afigurar-se a nós como irreal, mas
para o qual nossas almas irresistivelmente se inclinam.
Belezas naturais que preparam
o homem para as eternas
Eu daria como exemplo alguns postais da Suíça com
lagos magníficos. Nesse país, em concreto, os pores do sol,
as auroras ou os meios-dias têm uma magnificência quase
irreal. Se não tivéssemos a oportunidade de apalpar essas
belezas com nossos sentidos, nós não as compreenderíamos
bem e nem acreditaríamos na existência delas. Tudo
isso enche o homem de tanto entusiasmo e o compene-
Cornell University Library (CC3.0)
Swiss National Library (CC3.0)
Postais com paisagens da Suíça
30
Fwellisch (CC3.0)
Claudio Cyrne de Macedo (CC3.0)
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro
tra de tal forma pela impressão causada por aquela magnificência,
que quase o impede de levar uma vida normal.
Essa circunstância nos impele naturalmente a levantar
a seguinte pergunta: por que Deus fez lugares assim?
Ele criou todas as coisas para instrução da alma
humana de maneira a, vendo as imagens e semelhanças
do Criador, o homem procurasse se tornar semelhante
a Ele e assim se preparasse para o Céu. Não há nada na
Criação que não tenha sido ordenado para esse fim.
Ora, qual teria sido a intenção de Deus ao criar esses
lugares tão magníficos que superam a capacidade de
sentir e de pensar do homem nesta vida?
A resposta é evidente: Ele quis despertar em nossas
almas o senso do maravilhoso que repousa no mais profundo
do nosso ser, porque depois de ter pensado e cogitado
em todas as belezas existentes na Terra, a alma humana
fica com certa intuição e desejo de algo superior
que contém uma beleza e perfeição maiores, uma verdade
mais profunda e uma excelência mais magnífica.
Essa percepção leva o homem a se perguntar se existe
algo além desta vida ou, muito mais ainda, se há Alguém,
com A maiúsculo, que personifica todas essas maravilhas
postas diante dos nossos olhos.
As potências da alma em busca
de coisas maravilhosas
Podemos ver algo disso em lugares como, por exemplo,
a Baía de Guanabara. Tive uma sensação um pouco
parecida na Ilha de Paquetá, onde o tranquilíssimo
D. João VI, insatisfeito com a calma magnífica do Rio
de Janeiro do seu tempo, ia passar os fins de semana ou
uma semana inteira de repouso; não sei bem do que ele
repousava, se era do susto que lhe tinha dado Napoleão,
mas o bom Rei ia comer os seus frangos naquela ilha.
Compreendi que ele, de fato, era um homem sutil e requintado,
sentindo uma forma de sossego sorridente, inteligente;
não um sossego idiota, vegetativo, mas uma
tranquilidade da alma.
Criando esses lugares magníficos, a Providência quis
despertar em nós, mais do que o senso do maravilhoso,
tudo quanto no ser humano se aviva com isso, para pôr
a inteligência, a vontade e a sensibilidade humana em
busca de coisas maravilhosas.
Daí vem a procura do maravilhoso, por exemplo, na
poesia. Tomemos Camões, que soube transmitir de modo
esplêndido, em poema, a magnificência da epopeia lusitana.
Se aqueles pensamentos fossem postos em prosa
perderiam enormemente o maravilhoso.
Na pintura, o maravilhoso exprime-se de mil modos.
Um deles corresponde ao seguinte pendor da alma humana.
Ao passar, embora rapidamente, por recantos ou
paisagens que lhe chamam a atenção, uma pessoa teria
vontade de mandar parar o veículo no qual está viajando
e contemplar com mais vagar essas belezas; mas não podendo,
fica propensa a imaginar como seria estar naquele
lugar, fazer um piquenique, rezar ou até morar lá. Por
vezes, vem ao espírito a ideia de como deve ser a mentalidade
dos habitantes daquele recanto do panorama.
Essa propensão leva certos artistas a pintarem paisagens
que não existem, reunindo nelas maravilhas. Por
exemplo, as obras de Claude Lorrain com cidades imaginárias
compostas pela justaposição de elementos reais e
outros muito raros ou de todo inexistentes.
Pintando o maravilhoso
Este pintor representa uma cidade marítima, sem ruas
definidas, na qual entram dois ou três navios oriundos da
América ou da Ásia, carregados de ouro, prata, pedrarias,
joias, porcelanas, tapetes e especiarias, aportando junto
a um cais bordejado de palácios, para descarregar suas
mercadorias, porém, sem o movimento trepidante, intenso
e prosaico dos portos atuais, mas com o encanto do
mar e das embarcações que vêm de uma travessia quase
tão arriscada, naquele tempo, como seria hoje uma viagem
até a Lua. São belezas que se justapõem.
Entretanto, a grande arte de Claude Lorrain está em
pintar quadros nos quais imagina uma névoa dourada
31
Apóstolo do pulchrum
iluminada pelo Sol, causando a impressão de uma atmosfera
irreal na qual o homem leva uma vida agradável
toda banhada por um ideal e onde o indivíduo se sente
morador do Paraíso.
Outra nota característica nas pinturas de Claude
Lorrain é que não aparece nenhuma tormenta, nem sequer
uma brisa. Os personagens movem-se devagar, com
majestade, distinção ou simplesmente naturalidade, e as
árvores estão paradas, como quem diz: “Eu atingi o ponto
perfeito do meu bem-estar, e aqui o vento não me incomoda
nem me chacoalha.” Dir-se-ia que a árvore sente
a delícia do ar, o qual a rodeia de agrados. Ela, insensível
por natureza, parece ter sensibilidade nos quadros
de Lorrain.
Em tudo isso vemos o homem sendo transportado para
dentro do maravilhoso.
GCI (CC3.0)
32
Passemos agora à análise de algumas obras de Claude
Lorrain.
O maravilhoso nos aspectos
mais comuns da paisagem
O quadro apresenta uma profundidade muito grande,
com uma longa perspectiva na qual apenas se vislumbram
umas montanhas no fundo do horizonte. A vegetação e
quase todos os pormenores sugerem uma cena comum. Por
exemplo, as árvores são iguais àquelas que se encontram
em qualquer parque de uma cidade. Também as pedras do
chão e até a encosta com a vegetação que desce são como as
de qualquer montanha. Tudo quanto há de mais comum.
No topo encontra-se uma residência construída, não sem
certa falta de senso prático, diretamente em cima das rochas.
Um espírito moderno colocaria objeções a essa localização.
Primeira objeção: por onde se chega até lá? É preciso
subir de corda? Haverá alguma passagem que não se vê? Caso
exista, deve ter sido necessário cortar as árvores fazendo
uma escalada na pedra para abrir essa trilha. Enfim, parece
que a vida fica mais dura morando lá! Pois bem, se a casa estivesse
no chão não teria nada de extraordinário.
Em qual aspecto o autor soube dar a impressão de
maravilhoso nesse quadro, pintando cenas tão comuns
como aquelas que se encontram na natureza?
O maravilhoso está no céu. Não significa que o firmamento
nunca tome tal coloração, mas é esse colorido magnífico
incomum que lhe confere uma beleza especial. É um
azul que eu chamaria de anil, um pouco esbranquiçado.
Percebam que o céu não está completamente limpo, pois
as nuvens estão ali presentes, embora frágeis, quase como
precisando da ação do Sol para condensá-las. Esse céu
tem uma claridade especial, algum tanto mais bela do que
a dos mais belos dias.
Lorrain soube pintar a luz incidindo sobre todos os
elementos da paisagem, conferindo ao panorama uma
participação nas belezas e delícias possíveis que o observador
imagina no próprio firmamento. De tal maneira
que quem vive nesse ambiente sente-se mais banhado
por algo descido do céu, o qual domina a terra com sua
forma peculiar de luz. A este título o maravilhoso se faz
sentir esplendidamente nessa paisagem.
Discernindo novas belezas do mundo
irreal imaginado por Lorrain
A presença dessa luminosidade se percebe não tanto
neste ou naquele lugar, mas sutilmente por toda parte.
Tem-se a impressão de que o vale inteiro está penetrado
da mesma luz que ilumina a fachada da mansão e as árvores,
conferindo-lhe uma participação imponderável e
magnífica com todo o espaço celeste.
Embora o prédio apresente uma fachada simples e comum,
a luz lhe confere tal nobreza que poderíamos dizer
tratar-se da mansão de uma princesa onde se passou um
fato histórico famoso.
Por outro lado, há zonas não iluminadas pelo Sol onde
o obscuro realça a claridade, cuja beleza se percebe
melhor dessa forma. O mesmo fenômeno se dá com
33
Apóstolo do pulchrum
as árvores, e talvez até com mais talento. Nos pontos
em que a vegetação é menos densa, a luz incide na fímbria
das árvores e as pontas das folhas se tornam quase
transparentes. Na parte onde a vegetação é mais compacta,
o escuro realça a beleza da luz que banha o outro
lado das folhas.
Essa impressão produzida pela luz sobre as folhas e
a fachada nota-se também nas pedras talhadas de forma
irregular da encosta e do chão, quase por toda parte.
Um detalhe interessante: o artista pinta a vegetação
isenta da ação do vento ou de qualquer outro elemento
estranho a sacudi-la ou impor-lhe uma posição que não
esteja inteiramente de acordo com a sua natureza. Tem-
-se assim a impressão de se estar num lugar onde a alegria
consiste no repouso completo.
Notem como as árvores parecem não fazer força para
sustentar os próprios galhos. Estes são leves, as folhas
são tão macias que nos convidam a brincar passando as
mãos pelo meio delas, certos de encontrar apenas matérias
suaves e agradáveis aos sentidos.
Poder-se-ia perguntar qual é a razão de ser desse arco.
A meu ver, tem um significado especial. Imaginem
que não existisse essa mansão, mas só o arco. Não daria
vontade de contemplar de cima dele tão lindo panorama?
O fato de se tratar de um arco, deixando entrever
por todos os lados o quanto a paisagem é bela, convida a
galgá-lo e a permanecer sobre ele.
Donde a mansão, que poderia chamar-se belvedere,
é o lugar ideal onde uma pessoa passaria as tardes banhando-se
no sol e contemplando a paisagem de dentro
de um quarto decorado com os luxos opulentos do tempo
de Claude Lorrain: magníficos espelhos de Veneza, tapetes
do Oriente, cortinas de Lyon... É um belvedere de um
mundo meio irreal. Assim, essa pintura nos convida para
o maravilhoso.
Tal monumento evoca convulsões, tragédias e guerras,
após as quais desfilaram por ali legiões gloriosas,
presididas por personagens míticos, assinalando vitórias
magníficas e aclamadas por multidões que desapareceram.
Com efeito, a voragem do tempo sepultou
tudo isso, e não passa da recordação de um passado
que, entretanto, esse arco lembra de um modo muito
elegante.
Paisagem que vive da contemplação
do seu passado glorioso
Vemos em outro cenário o que falta no anterior: um rio.
Todo panorama com água possui muito mais abertura para
o maravilhoso do que aquele onde ela não está presente.
Como no anterior, também nesse quadro se nota o
mesmo jogo entre a luz e as trevas. O Arco do Triunfo
aparece na sombra, e sua antiguidade é dada a entender
não só pelo estilo romano ou helenístico, mas pela vegetação
que cresceu no alto do monumento, algo muito comum
em construções velhas e abandonadas. Percebe-se
que as intempéries e os séculos o corroeram e continuarão
a fazê-lo, mas tão devagar que se tem a seguinte a
impressão: enquanto o mundo existir esse arco vai estar
de pé, pois ele desafia o tempo.
34
O maravilhoso desse quadro não está apenas no céu, mas
nessa evocação de um longo passado que dorme definitivamente
o sono de suas glórias e dos dias que não mais voltarão,
dando-nos a entender ser tão irracional tudo isso ter
acabado, tão absurdo nada disso ter deixado qualquer traço
ou vestígio na ordem do ser, que deve existir em algum lugar
e de algum modo algo que, para toda a eternidade, simbolize
essa vida que por ali desfilou e nessa obra de arte se afirmou.
Dir-se-ia que a paisagem vive da contemplação desse passado,
em cujas linhas gerais se pode conjecturar, porque essa
civilização é conhecida, mas não nos dados concretos de
seu passado. A recordação histórica assim imprecisa deixa
caminho para a imaginação e é plasmada na arte de Claude
Lorrain dentro desse ambiente do maravilhoso. v
(Extraído de conferência de 11/1/1977)
GCI (CC3.0)
35
Apóstolo do pulchrum
Requintes inéditos
do maravilhoso
Claude Lorrain (CC3.0)
Analisando mais uma
obra do famoso pintor
francês Claude Lorrain,
Dr. Plinio nos oferece
ensinamentos sobre o
atuar humano, discernindo
novos e interessantes
aspectos inerentes ao
maravilhoso, com os quais
este se requinta e eleva.
Como temos visto, Claude Lorrain é o pintor de uma
das formas de maravilhoso. Vamos considerar
mais uma de suas obras e depois analisar a crítica
feita por um comentador italiano que prefaciou um álbum
com pinturas desse artista.
Descrevendo o fantástico e
o irreal da paisagem
Percebam o fantástico e o irreal da cena. É manifestamente
um porto. Observem os navios, os barquinhos lá
ancorados, todo o movimento dos personagens; tudo isso
corresponde a um atracadouro. O escuro da água e o
modo de se moverem as ondas indicam que esse porto é
cercado por um mar profundo.
O cais tem junto a si construções magníficas, entre
elas uma torre ainda medieval junto ao muro que separa
um parque com arvoredo. Até mesmo nesse lindo palácio,
onde a influência medieval ainda não é estranha, no-
30
ta-se que o enquadramento do portal de entrada lembra
muito uma porta com ponte levadiça dos castelos da Idade
Média. Porém, a influência clássica também se manifesta
nos dois jarrões que estão no alto do terraço.
A parte superior do edifício é renascentista, mas de
uma construção tal que quase daria a ideia de uma igreja,
se o conjunto do edifício não sugerisse, pelo menos
para mim, a ideia de uma residência.
Mais adiante se avista outra torre, pois é natural que
um porto seja fortificado. Contudo, é uma grande construção
com aparência de ruína abandonada, porque as
janelas parecem não ter vidros, nem venezianas, e não
se percebem móveis dentro, conferindo um pouco de melancolia
à impressão geral do quadro.
Ao fundo, o Sol representado de duas formas curiosas.
De um lado, refletido no mar tão nitidamente que dá
a impressão de ser ele próprio quem brilha e espalha sua
luz sobre as águas escuras. Mas de outro lado, visível e
resplandecente no céu.
De qualquer maneira, a grande beleza do quadro está
na luz que o inunda, a qual eu não chamaria propriamente
de irreal, a não ser porque muito raras vezes ela ilumina
dessa forma. Mas, quando o faz, é de um modo tão esplêndido
que o homem fica encantado, e sob esse aspecto,
tem-se a impressão de que Lorrain exagerou o esplêndido,
uma vez que, na paisagem, a iluminação está discretamente
maior do que a própria luz solar, ou em certas formas
desta, quando aparece na sua maior beleza.
Ademais, na pintura apresenta-se a ideia de toda uma
avenida de mar cercada de palácios muito próximos uns
dos outros. De maneira que quase se tem a ilusão de uma
rua. Esta justaposição de palácios magníficos e de naves
que vêm e vão de um extremo do mundo para outro, a
aventura do comércio, das navegações, das missões, tudo
isso dá indícios de magnificência e esplendor na paisagem
um tanto acima da realidade.
Resumindo, o maravilhoso do quadro reside no fato
de imaginar a composição de um porto ou edifícios desse
tipo, como também, no modo pelo qual a luz do Sol banha
tudo isso. Inclusive o elogio que fiz em ocasiões anteriores
1 da luz pousando sobre as árvores, aqui seria especialmente
merecida.
de viver nesse ambiente que, ao mesmo tempo está inundado
por ele, saboreia-o, mas não lhe dá uma atenção explícita.
É o maravilhoso sossegado, debaixo de cujo esplendor
a vidinha cotidiana se desenvolve banhada nele.
Analisem todos os personagens presentes. Estão conversando
no cais como os moradores das pequenas cidades
do interior conversam na estação de trem, para ver quem
entra ou sai; eles fazem uma rodinha. Observem a perfeita
naturalidade da conversa; é gente com tempo livre e tem
o que conversar; implicitamente, estão como que flutuando
no éter da luminosidade, dando a seguinte impressão: todo
o ritmo das pulsações e pensamentos deles, até o modo
de se relacionarem entre si, é amenizado e elevado por essa
atmosfera e, sobretudo, pela luz que é a alma do ambiente.
Claude Lorrain (CC3.0)
Sossego nobre e elevado
dentro do maravilhoso
Apesar de toda a inquietação que a náutica trazia consigo
naquela época – era a grande aventura dos homens
– Lorrain não dispensou o sossego dentro do maravilhoso,
pois é uma das notas mais características nas pinturas
dele. O maravilhoso em geral provoca uma nobre
tensão. Aqui não. De tal maneira o homem tem o hábito
31
Apóstolo do pulchrum
Nessas condições, temos Claude Lorrain como o pintor
que assinala o veio de uma época inclinada ao maravilhoso
por muitos meios, e ao inteiro bem-estar dentro
do sossego e do prazer, mas muito nobre e elevado. Dir-
-se-ia que assim se sentiria um fidalgo que pudesse dispor
de um grande e belo salão no palácio de Versailles e
passasse a vidinha dele tomando sua xícara de chocolate
ou o seu cafezinho, inundado das grandezas definitivas,
inarredáveis do Roi Soleil 2 .
Esta é a forma de maravilhoso que o quadro apresenta,
pois, embora contenha os defeitos e as limitações
do Ancien Régime 3 , em comparação com a hediondez do
mundo moderno, realmente eleva o espírito.
Uma discreta melancolia inerente
à grandeza do maravilhoso
Agence Meurisse (CC3.0)
Claude Lorrain (CC3.0)
General Joffre e Marechal Foch,
em 2 de abril de 1923
Passarei a considerar duas doutrinas ali contidas: a
do maravilhoso enquanto existente na terra e a do valor
da melancolia; permitindo-nos fazer uma apreciação da
mentalidade do homem moderno, pois envolve uma interessante
questão de princípios, mais psicológicos do que
propriamente especulativos.
Analisemos essas duas doutrinas sob a seguinte indagação:
existe, nesta vida, um maravilhoso autêntico do
qual esteja ausente uma certa melancolia?
Tomemos como exemplo um homem que deseja o êxito
a cem por cento, o happy end, e outras coisas inerentes
à atual sociedade desenvolvimentista. Quando, por via
natural, esse homem toca no ápice do maravilhoso realizando
seu ideal, eu acredito que o espírito dele pode assumir
duas posturas.
De um lado, ele compreende que isso é uma imagem e
semelhança de Deus e, portanto, atinge um ápice de alegria.
Mas, por outro aspecto, o indivíduo também percebe
aquilo que São Tomás nos ensina a esse respeito: se as
criaturas representam o Criador é porque de algum modo
há uma analogia com Ele; mas, sobretudo, Deus não é
nem pode ser como elas, pois é insondável e incomparável
a tudo. De modo que, no fim, fica uma certa saudade,
Luís XIV e Felipe IV na Ilha dos Faisões,
em 1659 - Museu de Tessé, França
32
nostalgia do que nós conhecemos. De onde todo grande
prazer traz consigo uma notazinha de melancolia.
Por onde se pode concluir: aquilo que não tem uma
discreta nota de melancolia é meio cafajeste, porque se
limita a si próprio e não é capaz de chegar à sua maior
altura, não remete para o último pináculo de si mesmo.
De maneira que uma discreta melancolia – não se trata
de choradeira – suscitada, por exemplo, pelo efêmero
que a coisa tem, é inerente à grandeza e me parece em
extremo adequada a tudo a quanto se possa atribuir um
mínimo de maravilhoso.
Vou dar um caso concreto. O Marechal Foch 4 e o General
Joffre 5 passando pelo Arco do Trinfo depois da I
Guerra Mundial. A meu ver, foi o último triunfo bonito
e estético que houve na História da humanidade. Os
triunfos da segunda Guerra Mundial não tiveram a beleza
dos da primeira.
Quem visse aquele espetáculo, com a população dando
vivas, e tivesse apenas a alegria do happy end, seria, a
meu ver, um espírito meio “vira-lata”. O espírito verdadeiramente
elevado sentiria a beleza daquilo tudo e, ademais,
perceberia de modo implícito algo ainda superior a
ele, que lhe diria: “Sic transit gloria mundi” – assim passa
a glória do mundo. Daqui a pouco esses marechais terão
passado pelo Arco e esse triunfo cessará; porém, alguma
coisa ficará impregnada nesse lugar para todo o sempre.
Ora, também é verdade que será uma mera recordação
porque tudo é transitório. E a alma se volta para o eterno.
Contudo, essa melancolia, intensamente sentida, também
pode chegar a ser pungente. Mas não o é na sua primeira
manifestação, porque, senão, o maravilhoso perderia
o seu caráter normal de ser esplêndido.
Outra questão muito bonita seria: existe maravilhoso
na dor, no desastre e na catástrofe?
Certa ocasião li em um autor a expressão
la tour de la doleur – a torre da dor. Pode-se
falar de uma dor monumental como
uma torre? Portanto, de uma dor magnificamente
pomposa, um palácio da dor? Há
dores com uma magnificência e uma grandeza
que no maravilhoso festivo não há?
Este último ponto é indiscutível, porque
a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
foi isso. São Paulo chegou a dizer que
ele não saberia pregar a não ser Jesus
Cristo crucificado (cf. 1Cor 1, 23). Deus
que criou e dispôs todas as maravilhas
festivas da Criação, entretanto, quis que
houvesse um trágico mais grandioso do
que todas essas festas: a Paixão e Morte
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso não é
contestável.
Jacques Laumosnier (CC3.0)
Jesus crucificado (acervo particular)
Crítica de um autor italiano
a Claude Lorrain
Por fim, consideremos a crítica feita pelo comentador
italiano a Claude Lorrain.
Ele diz o seguinte: Esse quadro tem, de fato, uma apresentação
muito boa da luz. Mas não se pode confundir um
dos componentes do quadro, que é a luz, com o todo. E se
o quadro é muito forte do ponto de vista da luminosidade,
significa que todos os demais elementos nos quais não
há jogo de luzes são apenas comuns. Por exemplo, não se
pode dizer que o prédio seja uma maravilha. Ele apenas é
um casarão muito pitoresco. Mas a torre medieval é como
qualquer outra, o jardim cercado pelo muro é semelhante
a qualquer jardim; a forma dessas escadas ou o palácio
vazado, ao fundo, todas essas coisas são muito comuns.
Percebe-se que o pintor quer apresentar algo, mas nada
disso é muito expressivo, somente a luz o é, e até se poderia
dizer que ela “devorou” o quadro inteiro. Perde-se a
noção de conjunto quando um elemento “devora” os outros,
visto que o conjunto sempre vale mais do que uma
Luis C.R. Abreu
33
Apóstolo do pulchrum
Claude Lorrain (CC3.0)
das partes. Portanto, esse quadro tem menos
valor pelo fato de ressaltar apenas
uma das partes e não a sua totalidade.
A pergunta que surge, então, é a seguinte:
não será uma fraqueza de Lorrain representar
as coisas de modo tão comum?
Se ele fosse verdadeiramente um bom artista,
seria capaz de fazer o resto também
bom. Logo, Claude Lorrain é um pintor de
segunda categoria.
Verdadeira noção de beleza
num conjunto hierárquico
O primeiro princípio que propõe esse
autor, e com o qual não concordo, é a
noção de conjunto. É verdade que o conjunto
vale mais do que as partes, mas não
se pode tirar disso uma conclusão muito
cartesiana, pois a beleza do todo pode ser
realçada pela ação de um elemento eminente
e simbólico.
Eu dou um exemplo concreto. A nau
que ali aparece é uma caravela e, como tal,
foi retratada como sendo uma construção
marítima comum, com as velas características.
A embarcação, na sua totalidade,
forma um conjunto. Mas, de tal maneira
a nau exprime a beleza daquele todo que,
sendo ela muito mais bonita do que o conjunto,
absorve a expressão simbólica deste
e o realça. Em síntese, ela está inserida no
conjunto, não é um elemento isolado.
Donde acontece que, às vezes, quando
num conjunto há um elemento excelente,
o todo lucra até pelo fato de os
outros elementos secundários ficarem
um pouco negligenciados. Ora, isto não
é absolutamente uma falta de senso do
conjunto, mas uma excelência deste. É
aplicação do princípio monárquico de
forma a apresentar o todo enquanto
personificado, simbolizado por um elemento capital.
De maneira que o princípio dado pelo autor italiano,
de estar tudo sempre bem arranjadinho para se notar
o conjunto, eu não contesto como regra geral, mas nego
que não tenha suas exceções, e estas podem ser geniais.
Eu acho que Lorrain abriu exatamente uma exceção na
apresentação comum dos elementos, realizando de um
modo especial a regra geral, e não a infringindo.
Trata-se de um tal dégagé 6 , se quiserem até um négligé 7
do excelente – tão seguro de si que não se apresenta re-
34
Claude Lorrain (CC3.0)
tesado, mas com certa bonomia – que reforça a nota fundamental.
A meu ver, nessa posição manifesta-se um requinte.
Encontramos um exemplo desse requinte no quadro
de Claude Lorrain, o qual confere aos elementos secundários
uma possibilidade de beleza que eles não teriam
sem a magnificência da luz. O resto ele negligencia, para
realçar a luz.
v
(Extraído de conferência de 14/1/1977)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 280, p. 33-34.
2) Do francês: Rei Sol. Título dado a Luís XIV.
3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
4) Ferdinand Jean Marie Foch. Marechal francês comandante-
-em-Chefe das forças aliadas (*2/10/1851 - †20/3/1929).
5) Joseph Jacques Césaire Joffre. General francês (*12/1/1852
- †3/1/1931).
6) Do francês: descontraído, informal.
7) Do francês: negligenciado, descuidado.
35
Luzes da Civilização Cristã
Hanlu Cao (CC3.0)
Só a arte sacra
pode ser cristã?
Uma obra de arte não é
cristã pelo fato de estar
coberta de símbolos de
nossa santa Religião,
como um homem não
se faz frade por vestir
burel. É preciso que seja
católica a alma que na
obra de arte palpita, para
que esta se possa dizer
genuinamente cristã.
32
Grubernst (CC3.0)
Pelas altas janelas, guarnecidas de vitrais, entra
uma luz abundante, mas suave, que se reflete no
soalho, no metal polido das armaduras e das panóplias,
no bronze e no cristal dos imensos candelabros,
e parece atingir a custo as nervuras e pinturas do teto.
Recolhimento, gravidade, equilíbrio e força
As colunas, fortes e delicadas, se abrem ao alto como
imensas palmeiras que protegessem a sala com sua ramagem
de pedra, de linhas coerentes, nítidas e suaves.
A sala é fortemente impregnada de um ambiente peculiar,
que convida a um repouso sem ócio nem dissipação,
um repouso todo feito de recolhimento, gravidade, equilíbrio
e força.
Palácio de
Frederiksborg,
Dinamarca
GO69 (CC3.0)
Castelo Lednice,
República Checa
Jan Helebrant (CC3.0)
henrivzq (CC3.0)
Castelo de Champs-sur-Marne, França
Castelo de Chapultepec, México
As armaduras, os veados empalhados enriquecem
o ambiente com o eco das proezas praticadas na caça
e na guerra. O lambri de madeira trabalhada quebra
com sua delicadeza e aconchego o que a austeridade da
pedra talvez tivesse de excessivo. Ao fundo, sobre uma
peanha, a imagem de um Santo atrai o pensamento para
o Céu.
Sem dúvida, salas assim espelham uma mentalidade
que poderá agradar a uns, desagradar quiçá a outros,
mas que de um modo ou de outro soube dispor admiravelmente
das cores e das formas para se exprimir. São
salas de uso civil quotidiano. Apresentam o ambiente em
que o espírito de nossos maiores se sentia à vontade para
viver a vida corrente.
Castelo Žleby, República Checa
Herbert Frank (CC3.0)
33
Luzes da Civilização Cristã
Expressão arquetípica da alma cristã
A Sainte-Chapelle de Paris, construída no século XIII
por São Luís IX, Rei de França, para conter alguns espinhos
da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo, exprime a
mesma mentalidade, não enquanto entregue à vida diária,
mas enquanto voltada para a prece.
A nota de delicadeza atinge o sublime. Nem por isto a
força, o equilíbrio, a gravidade e o recolhimento perdem
algo da sua plenitude. Eclesiásticos, artistas, peregrinos
de todos os séculos têm visto na Sainte-Chapelle, no ambiente
que nela palpita, na mentalidade expressa em suas
linhas, suas cores, suas formas, sua configuração geral,
a expressão arquetípica da alma cristã.
Cristã é a sala como cristã é a capela. E isto não só
pelo efeito das imagens e símbolos religiosos que ali se
encontram, como pelo ambiente que ali se respira, pela
mentalidade que fica subjacente a este ambiente.
De onde se chega a uma noção mais ampla. Uma obra
de arte não é cristã pelo simples fato de estar coberta de
símbolos de nossa santa Religião, como um homem não
se faz frade pelo simples fato de vestir burel.
É preciso que seja católica a alma que na obra de arte
palpita, para que esta se possa dizer genuinamente cristã.
E o ambiente cristão não é susceptível de impregnar
apenas um edifício destinado ao culto, mas qualquer local
que tenha em sua configuração a marca inconfundível
com que a alma cristã exprime tudo quanto faz. v
Gabriel K.
(Extraído de Catolicismo n. 24, dezembro de 1952)
Gabriel K.
Flávio Lourenço
34
São Luís IX
Pedro Morais
Gabriel K.
35
Luzes da Civilização Cristã
Dignidade, distinção e
disposição para a luta
Profundamente encantado, Dr. Plinio tece belas considerações
a respeito do espírito medieval impregnado nas muralhas de
Ávila, descrevendo seus múltiplos aspectos bélicos e artísticos,
quase como que discernindo a alma dessa histórica cidade.
Á
vila, na Espanha, é a cidade onde nasceu a
grande Santa Teresa de Jesus. Ali ela fundou o
seu principal convento e nele está sepultada.
Síntese celeste entre a guerra e a paz
Vejam a maravilha de uma cidade pequena dominada
por uma imponente construção; poderá ser uma fortaleza,
uma igreja ou um mosteiro. É muito agradável ver o
contraste entre o casario que dorme, lembrando uma vida
calma, tranquila, pacata, séria, sem as excitações da
vida contemporânea, mas, ao mesmo tempo, cheia de bonomia,
protegida por uma muralha magnificamente iluminada,
onde a beleza do gótico e do medieval se nota
por inteiro.
A iluminação faz sentir muito a força da muralha e
qualquer coisa de épico, de heroico que há dentro disso.
Choniron (CC3.0)
Gabriel K.
30
Flávio Lourenço
Nós imaginamos de bom grado essa muralha guarnecida
por guerreiros com couraças e elmos, com estandartes
e instrumentos musicais, postados ali para homenagear
algum personagem ilustre ou para receber na ponta
da lança os adversários que pretendam tomar Ávila. Essas
muralhas falam da beleza, firmeza de alma, coerência,
seriedade e sacralidade. Tudo isso está ali representado
de um modo magnífico. Em suma, é a Idade Média.
Alguém perguntará: “Mas por que há tanta harmonia
nisso?” Porque ali se encontram a guerra e o direito, ou
seja, a legítima defesa de uma população que na guerra
é protegida, pois suas muralhas a amparam, e por isso,
pode dormir tranquila. A muralha assegura o sono, como
o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É algo
esplendoroso!
Alguém poderá questionar: “Está bem, Dr. Plinio,
mas essa fotografia apresenta uma realidade ou ela é um
pouco à Claude Lorrain?”
É preciso notar que essa fortificação foi construída
com a preocupação exclusiva da estratégia. A distância
entre os muros não visa apenas a beleza, mas permitir
que o adversário seja atingido por três lados quando
queira atacar o intervalo entre dois torreões.
A torre é muito mais forte do que o muro e se defende
por si mesma. Seu feitio redondo contribui para dispersar
o adversário. O muro, que é mais fraco, fica defendido
pelas duas torres. As diferentes distâncias e alturas
das muralhas são calculadas para opor resistência
aos projéteis lançados. Portanto, tudo planejado de modo
estrito, de acordo com o necessário. Tem-se a impres-
31
Luzes da Civilização Cristã
são de que cada torre é uma garra que segura o monte e
que domina a terra.
Entretanto, essas muralhas, que abrangem o povoado
como uma cintura, têm uma inegável beleza. O que
há nisso, então, de ideal? É estritamente real, mas tem
qualquer coisa de celeste. Há algo nessa síntese entre a
guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha,
que nos deixa maravilhados. É a Idade Média em todo o
seu esplendor.
Profundo senso de defesa
Notem a solidez dessa porta de Ávila! Como é robusta
e como a entrada estava bem protegida! Havia duas torres
que guarneciam a passagem. Quem conseguisse entrar
debaixo de uma chuva de pedras e azeite fervendo,
Elena F D (CC3.0)
M.Peinado (CC3.0)
32
Flávio Lourenço
esbarraria com a porta interna. E ali já havia outro passadiço
para jogar flechas e pedras sobre quem atravessava.
Ademais, a certa altura, havia também um patamar
de onde, quando o adversário passava, descia uma
grade e ele ficava encurralado, impossibilitando-o de
voltar para trás. E aí levava uma pancadaria grossa.
Nesses aspectos se traduz o senso de defesa que eles possuíam.
Tudo tático, entretanto, que maravilha! Quando o
defensor da cidade jogava uma flecha da parte superior, escondia-se
atrás de uma dessas ameias para não ser atingido
pelo invasor que respondia de baixo com outra flecha.
Ao perceber que o de baixo estava desprotegido, lá vinha
outra flechada de cima. Nas torres antigas havia seteiras
por onde também podiam jogar projéteis sobre o agressor.
De maneira que era árduo agredir uma cidade assim.
Em outra fotografia vê-se uma bonita vegetação, o chão
está bem cuidado, o canteiro realça a beleza da muralha,
e há até um pequeno monumento acrescentado no século
passado ou neste século. Não podia faltar o poste de
iluminação pública. Mas como ele é bonitinho em comparação
com esses pontos “dinossáuricos” que estão sendo
instalados hoje em dia com luz de mercúrio. Ali não. Como
é bem proporcionado; é quase um escrínio dentro do
qual ainda se encontra, talvez, iluminação a gás.
Há também um edifício que mais parece uma fortificação
central do que uma igreja, com as suas torres pontudas,
e o alto das torres formando uma massa de defesa.
Quando essas torres e muralhas eram forçadas, toda
a população se aninhava ali, e do outro lado continuava
a batalha à espera dos aliados que eram chamados
Flávio Aliança
33
Luzes da Civilização Cristã
por meio dos pombos correios para correrem em auxílio
dos sitiados.
Vê-se em uma das fotografias um monumento do tempo
dos romanos, ainda no estilo clássico, que foi deixado
lá e tem muita elegância e leveza. Devia ser provavelmente
um templo pagão. Onde outrora houve um altar
pagão, hoje se encontra um altar erguido em honra
da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Magnífica
afirmação do triunfo da Cruz sobre o paganismo. Os
antigos sustentavam que o paganismo nunca poderia ser
destruído. Pois bem, sua carcaça serve hoje para realçar
o esplendor da Cruz.
Contradição entre o antigo e o moderno
Em Ávila encontra-se a Basílica de São Vicente, cuja
arquitetura remonta ao estilo românico. Nota-se nos arcos
das janelas algo já de ogival e, portanto, gótico, embora
o acabado do teto não o seja. É um estilo de transição,
muito bonito e variado. Distinguem-se muito bem as
três partes do edifício.
A iluminação também está muito bem feita. Quem a
concebeu teve a boa ideia de iluminar o interior da galeria,
causando no espectador uma espécie de atração e
dando-lhe vontade de entrar.
Gabriel K.
Por outro lado, os automóveis são como trambolhos
que enfeiam a praça, deixando o moderno completamente
sem face diante do antigo. Quando se justapõem elementos
antigos, por mais distantes que sejam as épocas
a que pertencem, eles não entram em contradição. É o
caso, por exemplo, das casas que circundam a basílica.
Parecem ser de uma idade indefinida. São, por certo, velhas,
e chegam a atingir uma idade na qual não se sabe
se tiveram juventude. Estão entre o provisório e a eternidade.
Entretanto, a contradição entre a praça e os automóveis
é aberrante. Já não causaria estranheza imaginar
ali carros puxados a cavalo, ainda que fossem do século
passado. É a contradição do moderno com todo o passado.
Gabriel K.
34
Pedro Henrique Ponchio (CC3.0)
Gabriel K.
Aspectos vários do ambiente
e das construções
Uma das fotografias nos mostra uma ponte sobre
um rio. Não se trata dessas pontes atuais feitas
de concreto e asfalto, fininhas e suportando dinossauros.
É uma ponte que transmite confiança,
com pilastras bonitas e robustas fincadas no fundo
do rio; arcos harmônicos feitos com uma pedraria
nobre, sólida e leal. Tudo isso sustenta e dá
forma à ponte.
Gabriel K.
No interior da cidade vê-se uma praça pública com um
jardinzinho provincial, ingênuo, bonitinho; até parece ter sido
feita para crianças brincarem, senhoras idosas fazerem
tricô, homens aposentados lerem o jornal e comentarem as
notícias do dia, mais as de Ávila do que as do mundo.
O prédio da Prefeitura é muito engraçadinho e proporcionado.
É um encanto o sino usado para dar os avisos
municipais. Trata-se de um palacinho com janelas muito
dignas, muito compostas flanqueando por duas torres.
Contraste harmônico entre
austeridade e riqueza
A fachada principal do convento de Santa Teresa é
uma verdadeira beleza! Tem uma característica muito
frequente em edifícios espanhóis e que eu acho linda:
as laterais bem simples, enquanto a parte central muito
rica. Esse contraste entre a austeridade e a riqueza dá
uma nobreza excepcional.
O corpo central se compõe de uma cruz no topo de um
triângulo, no meio do qual há uma esfera. Duas janelas ladeiam
um brasão, abaixo do qual há uma grande janela
seguida da imagem de Santa Teresa, ambas rodeadas por
brasões. Por fim, as portas da igreja. Tudo isso forma uma
linha central muito rica, enquanto as duas laterais são menos
ricas, mas constituem um todo sólido, sério e solene.
Dignidade, distinção e disposição para a luta. Assim
como as muralhas, também a igreja e as residências têm
qualquer coisa de guerreiro, é admirável! v
(Extraído de conferência de 27/5/1972)
35
Apóstolo do pulchrum
Mateus S.
Aliança divina entre
o prático e o belo
Na Terra, o homem não vive só para gozar, mas, sobretudo, para
ser herói e ter uma alma capaz de grandes arrojos. Para isso a
Providência aliou o prático ao belo na Criação, e assim supriu
as necessidades corporais e espirituais do homem, a fim de que
ele pudesse estar sempre convidado a atingir o Paraíso Celeste.
Em meados do século XX, a ideia de arte que entrava
na arquitetura conjugava alguns elementos:
o máximo de uniformidade e simplicidade,
com cores inexpressivas, visando principalmente o aspecto
funcional, tetos baixos, linhas retas, preponderando
a figura geométrica do quadrado.
Decorrem daí dois movimentos, duas tendências: o
prático, o funcional, o simples e o econômico, contra o
artístico, o elegante e o leve. O prático achata. O elegante
eleva.
O prático para o corpo e o belo para a alma
Ora, o conflito dessas tendências, que relação tem
com a doutrina da Igreja e com a luta entre a Revolução
e a Contra-Revolução? A tese a desenvolver é: não há um
conflito verdadeiro entre o prático e o belo, mas é algo
criado pela Revolução para produzir no homem um efeito
que daqui a pouco explicarei. Na realidade, esse conflito
é falso e deixa o homem desnorteado, pois ele precisa
de coisas práticas para viver. Ninguém pode viver
30
Hugo Naves
Luis Samuel
Tomas T.
J.P. ramos
num mundo só de beleza, respirando apenas arte e poesia.
Quando Nosso Senhor disse “Não só de pão vive o homem”
(Mt 4, 4), Ele afirmou de modo implícito ser o pão
também indispensável. E a experiência de todos os dias
o torna evidente. O econômico, o viável, o exequível, o
prático, portanto, corresponde a uma necessidade imperativa;
o útil, inclusive, é um dos valores da ordem do
universo.
O princípio, então, é o seguinte: o homem precisa do
prático para o corpo, mas precisa do belo para a alma,
pois ela não come pão nem respira oxigênio. O ser humano
não é apenas, como se costuma dizer, um conjunto
de alma e corpo, como se fossem dois valores de igual
alcance, justapostos na constituição de um mesmo indivíduo.
O elemento principal do homem é a alma e o corpo
existe para servi-la. A alma humana deseja a verdade
e a beleza, porque foi criada à imagem e semelhança
de Deus, Ele é a Verdade e a Beleza infinitas. Por isso,
o Criador encheu sua Obra destes dois predicados para
que a alma humana, amando na Terra esses dois atribu-
tos, se tornasse, ela mesma, autora de pensamentos verdadeiros
e de realizações belas…
Duas descendências opostas
do espírito humano
Eu chamo as obras do engenho humano de “netas de
Deus”, porque a alma humana é filha, mas o que ela engendra
pode ser considerado como um neto do Criador.
O homem, engendrando as “netas” de Deus, as verdadeiras
obras de arte, prepara-se para o momento de comparecer
diante d’Ele, a Eterna Verdade e a Eterna Beleza;
e, voando de entusiasmo em relação a Ele, o espírito humano
quase poderia compor a seguinte oração:
Meu Deus, durante minha vida inteira procurei a beleza
e a verdade, sabendo que só as encontraria em Vós,
pois só contemplando-vos face a face as poderia conhecer!
Entretanto, posso afirmar: encontrei-as na Santa
Igreja Católica Apostólica Romana! Mas, por santa e
bela que fosse a vossa Igreja, vossa Esposa, Vós éreis, ó
Senhor, não apenas o Deus da verdade e da beleza, mas
31
Gabriel K.
Gabriel K.
Apóstolo do pulchrum
Tomas T.
Luis Samuel
éreis tudo isso em essência, em grau inimaginável e insondável.
Minha alma agora vos deseja encontrar, Justo
Juiz, Vós sois a minha recompensa demasiadamente
grande!
A Revolução quer eliminar isso da vida, pondo-nos a
alternativa:
— Escolhei: O prático ou a beleza; em matéria de verdade
fique apenas a pequena verdade terra-a-terra das
ciências úteis. O resto é velharia.
A isso nós podemos responder:
— Não! O resto é tradição, é eternidade!
Explicarei agora o prático e o verdadeiro na obra de
Deus, para vermos depois como a Revolução a desfigura,
engendrando realizações netas do demônio. Porque se é
filho do demônio todo aquele que faz a obra da Revolução,
aquilo engendrado por ele é neto do demônio. Veremos,
portanto, duas descendências: Aos pés da Virgem,
os filhos d’Ela; e as obras da serpente. Contemplaremos
o sorriso de Deus, e a maldição de Deus.
Um reflexo do prático e belo
plasmado por Deus na Criação
Vemos em uma das ilustrações um lindo espetáculo
da natureza, diretamente criado por Deus: o litoral, o
mar. Essa massa líquida enorme se move bem próxima à
praia umedecendo a areia, mas não alcança a areia mais
distante. Algumas ondas parecem dar a impressão de serem
enormes, trazendo um vagalhão colossal, mas são
pequenas. Elas são de uma tal beleza, repetem em ponto
pequeno, gracioso e encantador, toda a majestade e toda
a grandeza das coisas enormes.
Se nós imaginássemos um homem pequenininho colocado
em presença dessas ondas, seria uma tragédia.
Mas que linda tragédia enfrentar uma espuma tão bela,
tão banhada pelo Sol, e vista nas culminâncias, quase se
diria ser uma espuma de luz. Por detrás, a massa d’água
parece mais um tecido, um cetim maravilhoso, com movimentos
diversos, plácida no fundo, aproxima-se mais
movediça e cheia de Sol. No raso fica um pouco agitada,
para morrer de modo manso no contato com a terra. Tudo
isso é lindo e tão artístico! Bem poderíamos imaginar,
do fundo daquele Sol invisível e daquele litoral, uma estrada
de luz, e Nossa Senhora vindo, caminhando sobre
as águas nessa estrada de luz. Que maravilha!
Contemplem esse dourado. Nosso Senhor diz no
Evangelho: Nem Salomão, com toda a sua glória, vestiu-se
como os lírios do campo (cf. Mt 6, 28-29). Eu lhes
pergunto: Que potentado, em toda a sua glória, vestiu-se
com um tecido parecido à “seda” desse mar?
Pois bem, esse é o mar profundamente funcional, sem
cujo movimento e influência no equilíbrio do universo,
32
João C. V. Villa
todo o desenvolvimento da Terra seria impossível; ele
é um viveiro enorme de uma quantidade incontável de
bens preciosos para o homem, desde peixes úteis para
a alimentação humana, até o tão precioso petróleo, que
a humanidade começa a adorar… Tudo se encontra no
mar, e se encontra em tal quantidade, que alguns técnicos
da UNESCO chegaram a afirmar que as riquezas
havidas na terra são menores do que as existentes para o
homem no mar. Vejam como tudo isso é belo, e ao mesmo
tempo prático. Essa é a sabedoria de Deus!
Não há dúvida: a água é uma das mais belas criaturas
de Deus! É bela em todos os seus aspectos, inclusive
quando espumante, dir-se-ia que atingiu o auge de sua
beleza; é maravilhosa! Também é bela quando a vemos
plácida, quase parada, esgueirando-se num longo serpentear,
refletindo o céu de um modo tão admirável, parecendo
mais bonito visto dentro d’água. É uma verdadeira
beleza!
Quanto capricho e fantasia nessa linha que nenhum
dedo humano traçou! Que utilidade enorme! Toda a vegetação
da paisagem, brilhando e vicejando à luz do Sol,
existe por causa da água. Imaginem que essa água não
existisse ou não chovesse nessas redondezas, com certeza
teríamos o deserto do Saara. A alegria, a fecundidade
e a beleza da terra vêm do contato com a água. Água plácida
e bela, mais parece uma laje de pedra preciosa feita
para um rei ou para uma princesa caminhar. Água prática
e útil, que maravilha de Deus!
Bens do espírito aliados aos bens do corpo
As obras de Deus são muito variadas. Às vezes elas
têm um ímpeto extraordinário como o trovão, ou uma
avalanche caindo, ou até as ondas do mar num maremoto.
Outras vezes elas são tranquilas e plácidas. Nessa
paisagem, por exemplo, há um rio. Ele não tem nenhuma
pressa de chegar até a embocadura, vai escorrendo tranquilamente,
quase que brincando com a terra. Ele tende
para um lado, mas a terra lhe impõe obstáculo, então
sorri e ladeia sem pressa, e continua para o outro lado.
Há a imensa mata verde atrapalhando o curso do rio...
Que bonita península!
Como seria interessante imaginar se aqui, junto a
esse pequeno bosque refrigerante, houvesse uma casa
agradável, toda cercada de água e de terra fecunda, num
ambiente prático feito por Deus para o homem. Como
seria bom morar ali! E não perto de uma rodoviária feita
pelos homens. Quanta beleza Deus quis que tivessem as
coisas práticas. Como o corpo é bem atendido nesse lugar!
É possível que nesse rio haja peixes.
Essa terra dá tudo. É terra do Brasil, da qual disse Pero
Vaz de Caminha, escrevendo ao rei D. Manuel, na primeira
reportagem feita sobre o Brasil: “Essa terra, senhor,
é dadivosa e boa; e nela, em se plantando, tudo dá”.
Aqui está a terra dadivosa e boa, a água formosa e o
suave movimento de colinas, feitos para o homem sorrir
um pouquinho. Ali desponta uma planta que retém
33
Apóstolo do pulchrum
os raios do Sol e parece feita de luz, para os homens pensarem
como o este astro é belo. As nuvens se miram sobre
a superfície tranquila da água. Dir-se-ia que elas se
espantam com sua própria formosura refletida na água.
Bens do espírito ao lado dos bens do corpo. Como a
Providência soube aliar o prático ao belo, de tal maneira
que a primeira coisa notada pelo o homem é o belo e sorri
encantado. E tudo isso nós temos nesta Terra de exílio.
Imaginem o que seria o Paraíso Terrestre. Imaginem, sobretudo,
como será esse lugar incomparável, o Paraíso
Celeste!
Ambiente que convida a alma
para a contemplação
Nessa fotografia a natureza é europeia e, portanto,
bem diversa da nossa. Encontramos no alto desse monte
uma pirâmide, não feita por algum faraó, mas feita
por gigantescos movimentos da crosta terrestre, em épocas
incalculáveis. Vejam a beleza do jogo de luzes nesse
panorama! Aquela luz prateada, discreta, se concentra
na encosta gelada desse pico de morro, parecendo iluminar
toda a parte nevada. Depois, um verde denso e profundo
desemboca num abismo escuro. Não. A luz desce e
é condensada por essa névoa ligeira refletida em vários
pontos, e traz para junto do homem todos os esplendores
desse pico inacessível.
Novamente aparece a água. Desta vez corre compacta,
caudalosa, serena, frígida, quase tanto quanto o pico
desse morro. Todo o panorama é feito de alturas. As próprias
árvores parecem píncaros vegetais tendentes a subir
e a se comparar com o píncaro mineral. Elas são graciosas
e leves para compensar o maciço da montanha.
Porém, veio o frio e a árvore perdeu suas folhas, que aos
poucos começam a renascer. A árvore demonstra aí toda
sua beleza e delicadeza extrema, mas também força,
luz brilhante e radiosa; obscuridade, ambas convidam
à contemplação recolhida e séria. Águas que indicam o
passar contínuo de todas as coisas terrenas. É a frase da
Escritura: Sic transit gloria mundi! 1
As grandes luzes estão nos píncaros da fé
As grandezas desta Terra escoam como a água, mas
só Deus é eterno. Deus está representado naquele monte,
que nunca muda, é sempre o mesmo. O rio da História
passa, os homens passam. Deus, no mais alto de sua
glória e de sua luz, continua intacto. É uma verdadeira
lição de religião, de harmonia de virtudes: delicadeza
e força, pureza, recolhimento, esplendor,
sabedoria, tudo reunido
nesses ambientes. Habitável para
o homem; deleitável. Não há quem
não gostaria de morar lá perto
num chalé bem agasalhado, vendo
essa natureza frígida, mas saudável,
e se nutrindo dos seus frutos e
criações. Prático e belo!
Ora, diante desses grandes panoramas
o homem acaba por ser
desafiado: “Você tem coragem de
subir?” Veja as pedras escorregadias!
Que caminhos resvaladios e
Viccente T. Marques
João C. V. Villa
João C. V. Villa
34
Rodrigo C. B.
Marcus Ramos / Viccente T. Marques
difíceis! O desafio está na atração.
Não há quem não sinta vontade
de chegar até o alto, de se banhar
nessa luz e ficar imerso nela.
Quanta energia é preciso!
Grande lição moral: realmente,
as grandes luzes estão nos píncaros
da virtude, da fé e da sabedoria.
Mas é preciso força para
galgar esses píncaros. Diz Nosso
Senhor no Evangelho: “O Reino
dos Céus é arrebatado à força e
são os violentos que o conquistam”
(Mt 11, 12). Aqui é o alto desse panorama. Ele
convida os violentos às grandes ascensões, aos grandes
feitos. Na Terra, o homem não vive só para gozar.
Ele vive para ser herói, para ter uma alma capaz de
grandes coisas.
De outro lado, quanta coisa prática tem aí! Alguém
me dirá:
— Não vejo. Nessas plantinhas que talvez um gado
coma? O que há de prático em tudo isso?
Imaginem a Terra sem montes, é evidente que todo o
seu equilíbrio se prejudicaria. Essas montanhas enormes,
são colunas do equilíbrio terrestre.
O que dizer? Parece um conto de fadas como o da
“Alice no país das maravilhas”. Nós achamos tão apetecível
essa neve, dá vontade de pegar uma colher e comê-la.
Tão simpático esse caminho, pensamos num trenó
e numas renas para correr por ele velozmente. Mas,
depois disso, quem não teria a tristeza de não poder chegar
até um píncaro desses? Esse, um píncaro acima de
muitos outros que já foram atingidos por ascensões penosas,
e que convida a outras ainda mais arriscadas. E
os montes, postos uns em cima dos outros, banham o
azul profundo que nos fala no céu de todos os ideais.
Há um trecho da Escritura, aplicado a Nossa Senhora,
que diz “Mons domus Domini in vertice montium, et elevabitur
super colles” (Is 2, 2) – a montanha da casa do Senhor
será colocada no cume das montanhas e se elevará
sobre as colinas. Ali está Nossa Senhora: mais virginal,
mais nívea, mais pura do que tudo o que se possa imaginar.
Ali estão os outros Santos da Igreja Católica: alvos,
brilhantes, altos, mas nenhum deles chega até Maria
Santíssima. Por cima d’Ela, apenas está Deus, representado
por esse céu de anil criado por Ele mesmo, para
nos dizer que está por detrás e só na outra vida O atingiremos.
v
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 10/2/1974)
1) Do latim: Assim passa a glória do mundo.
35
Apóstolo do pulchrum
Pedro Morais
Beleza e praticidade
que conduzem a Deus
Sainte-Chapelle, Paris
O entrelaçamento do prático com o belo, tão característico
da obra de Deus, não está presente na arte moderna. A alma
católica, entretanto, soube unir essas duas prerrogativas
até mesmo na arquitetura, e, sem deixar de servir ao corpo,
procurou sobretudo encantar a alma e elevá-la até Deus.
Ao nos depararmos com um conjunto residencial
moderno, poderíamos imaginar ser uma grande
fábrica ou cadeia, enfim, qualquer coisa enorme,
situada em Oslo, São Paulo ou em outro lugar. Ora, tal
construção tem alguma beleza? Ela nos eleva?
O espírito da Revolução e a
prevalência da matéria
Absolutamente não. Só vemos uma série de quadrados,
com umas pequenas janelinhas à maneira de alvéolos,
onde habitam umas “abelhas” humanas. Cada homenzinho,
cada família ocupa um, dois ou três buraquinhos
desses e se perde nessa imensidade. O corpo talvez
esteja bem servido ali, mas a alma humana fica opres-
sa. É o espírito moderno, o espírito da Revolução onde
prevalece a matéria. Ali a alma não se prepara para ir
ao Céu, porque no Paraíso Celeste não há nada parecido
com essa feiura, nem com essa monotonia. É a idolatria
dos quadradinhos, postos uns sobre os outros.
Em determinados edifícios não se mora, trabalha-se.
Se houvesse cozinha, até seria habitável, pois imagino
que um quadrado desses dá para qualquer coisa. Eu não
entendo desse tipo de engenharia, nem quero entender.
Entre ela e eu há uma incompatibilidade completa, radical.
Um observador dirá: “Dr. Plinio, não é bonito o Sol
que reflete pelas janelas?”
Eu diria: “O arquiteto não fez o Sol, mas sim as janelas,
e estas, quem ousará achar bonitas? Basta abrir
28
uma para ficar um buraco. É um
conjunto de vidros e de buracos,
cujo interior está cheio de gente
trabalhando até arrebentar. Tudo
isso é muito prático para o corpo,
mas para a alma, zero.”
Alguém poderia objetar: “Mas,
Dr. Plinio, não são quadrados de
tamanhos iguais. Não há um pouco
de harmonia dentro disso?” Eu
não sei se o engenheiro pensou
nisso. Estou me esforçando para
ser equânime, mas não encontro
uma resposta positiva.
Ora, por que esse teto é inclinado?
“É para a chuva escorrer”
Então, por que esse outro é chato?
É para a chuva não escorrer?
São mistérios que eu não chego a entender.
Em todo caso, para nos divertir um pouco, há aqui
outro conjunto residencial ou de escritórios, com janelinhas,
buracos e quadrados. Olhem para esse teto. Alguém
dirá: “Maravilhoso! O senhor há de reconhecer
que essas riscas de luz são bonitas.”
Eu digo: “É verdade. A luz é bonita até sobre uma superfície
moderna, pois não foi dado ao homem fazer com
que a luz seja feia. A feiura é das trevas.”
O que são esses “bengalões”? São projetos de muletas
para imensos aleijados? Não, são conjuntos residenciais.
Aplicando a vista, podemos perceber os quadradinhos.
O movimento ondulado dessa rampa, é bonito? Um
pouquinho é. Entrou um pouquinho de beleza dentro
disso. Porém, pensem no artificial de tudo isso. Aliás,
não é possível que a sensação frígida de artificialidade
metálica escape à atenção.
Oslo, Noruega
Hostilidade entre a arte moderna e a beleza
Há uma grande hostilidade contra a beleza na arte e
arquitetura modernas.
Vendo determinados prédios temos uma sensação de
interrupção arbitrária e estúpida, dando-nos a impressão
de um queijo enorme cortado, com algumas fatias
tiradas, restando outras. Qual a razão dessas interrupções
repentinas, sem nenhuma moldurazinha que as
anuncie ou justifique? Isso é bonito? Alguém dirá: “É
prático.”
Isso é duvidoso. Entretanto, na arte moderna, o que é
bonito não é prático; e o que é prático não é bonito. O entrelaçamento
do prático com o bonito, tão característico
da obra de Deus, não está presente.
Analisemos um engarrafamento do trânsito. Nas metrópoles
há grandes artérias retilíneas, feitas para da-
Chell Hill (CC3.0)
Ukjent (CC3.0)
Ópera de Oslo, Noruega
29
Apóstolo do pulchrum
Henrique Boney (CC3.0)
Torstein Frogner (CC3.0)
rem vazão a milhares e milhares de carros por hora; mas,
quando se dá uma pequena trombada, talvez entre dois
motociclistas, é necessário esperar a polícia chegar, e por
ser uma grande avenida, quando para o trânsito, paralisa-se
uma enorme quantidade de veículos. É o urbanismo
moderno, muito bem pensado para as coisas funcionarem
bem, mas não planejado para a hipótese de funcionarem
mal. Buzinas, enervamento, gente atrasada; quando, afinal,
os automóveis podem circular, chocam-se uns nos outros
pelo nervosismo, e ainda há novas trombadas.
O espírito da Igreja une o prático ao belo
Em contraste, temos a Abadia de Vézelay, na França,
atualmente conhecida como Basílica de Santa Maria
Madalena. Como é diferente! Percebam como a porta é
muito prática, pois é bastante grande para facilitar a entrada
e saída das multidões. Também é alta, de maneira
a nada esbarrar nela. Por outro lado, a coluna central
Oslo, Noruega
Congestionamento no Vale do Anhagabaú, São Paulo
divide um pouco a multidão e evita, já de início, que ela
caminhe para uma só direção. Há nisso um lindo simbolismo!
O feitio das portas medievais simbolizava Nosso
Senhor Jesus Cristo que veio dividir as vias do homem
em duas: a da direita, a do amor de Deus, e a da esquerda,
a da perdição.
No pórtico podemos contemplar um belo trabalho em
pedra representando um fato da História Sagrada, ou
da História da Igreja, ou de algum Santo; ilustra e ensina
a religião aos que vão entrar. A coluna central da porta
principal da Basílica, que suporta todo esse peso com
profunda nobreza, quão diferente é das colunas chatarronas
existentes hoje em dia. Quanta harmonia e distinção!
A seguir, temos a esplêndida Catedral de Reims, onde
eram coroados os reis da França antes da Revolução
Francesa. Eu não vou elogiar o evidente, mas vejam a
magnífica harmonia e beleza dessa esplêndida neta de
Deus. O gótico é considerado o estilo mais prático que
houve na História. Não há nada, num edifício
medieval, que não tenha uma razão
de ser prática, inclusive poder-se-ia fazer
um estudo comprovando isso. Nele, entretanto,
tudo é bonito.
Na fachada da própria Catedral de
Reims observamos as rosáceas. Pareceria
ter sido o prédio construído para dar
beleza a esses grandes vitrais, mas não é
verdade. As rosáceas existem para facilitar
a entrada de luz dentro do templo.
Entretanto, não é a luz clara de todos os
dias, mas um pouco filtrada, convidando
à contemplação e criando um ambiente
místico de recolhimento.
Os medievais aproveitaram os vitrais
para representar cenas da História da
30
Igreja, do Antigo ou do Novo Testamento,
para ensinar aos povos, constituindo
assim, mil símbolos da Doutrina
Católica. Portanto, a rosácea é funcional,
pois através dela entra luz para
o prédio, mas que luz, que ensinamento,
que flores de beleza! Essas igrejas
eram chamadas de “Bíblias dos analfabetos”.
Ora, o que forma mais a alma
humana: a cartilha ou o vitral?
Aliás, é preciso dizer o seguinte: a
Idade Média foi a época na qual mais se
trabalhou – em relação a todas as épocas
anteriores – para a alfabetização do
homem. De tal maneira que quando a
Idade Média terminou, deu-se o aparecimento
da imprensa. Como poderia a
imprensa ter tão grande importância se
ninguém soubesse ler e escrever?
Destas considerações podemos tirar
um ensinamento magnífico e faustoso.
O espírito da Igreja é o mesmo
espírito de Deus que sabe unir o prático
ao belo; de onde o objetivo do prático
é servir o corpo e não atrapalhar
a alma; e o objetivo do belo é encantar
a alma e elevá-la até Deus. Assim,
vendo um objeto, utilizamos o prático
quase sem pensar nele e admiramos o
belo como se só este existisse.
Yannick Pichard. (CC3.0)
Construções que satisfazem
o corpo e elevam a alma
Há uma diversidade inimaginável
de vitrais, alguns representando reis
santos, e outros Nossa Senhora com o Menino Jesus. Contemplem
a variedade de formas e de cores, que esplendor
de luzes! Cada fragmento de um vitral é uma verdadeira
pedra preciosa, e se cada parte é de tal maneira bonita,
o conjunto é tão mais belo, que a alma não tem muita
vontade de pormenorizar. A Bíblia conta que depois de ter
criado o universo, Deus descansou e, contemplando sua
obra, viu como cada coisa era boa, mas o conjunto era ótimo
(cf. Gn 1, 31).
Assim, no conjunto de vitais, que joia e esplendor! Função
prática: iluminação. Função espiritual: apresentar a
beleza, mas nela, a Suma Verdade, a Revelação trazida pelo
Espírito Santo e Nosso Senhor Jesus Cristo à Terra.
Comparem os prédios de quadradinhos e esse teto gótico.
São dois mundos, duas concepções. O que mais prepara
a alma para o Céu?
Abadia de Vézelay, França
A magnífica Catedral de Orvieto, por exemplo, tem
algo de especial, pois é indelevelmente colorida do lado
de fora. Ela ostenta esplêndidos mosaicos refratários à
ação da luz e do tempo. Ademais, o perfeito estado dela
nos faz pensar ter sido construída ontem. No entanto
é, sem dúvida, uma catedral medieval que arrosta os
séculos, não com aquela velhice magnífica e veneranda
das antigas catedrais de granito, mas com a durabilidade
que fala do eterno.
No ponto mais alto da fachada há um mosaico representando
Nosso Senhor Jesus Cristo coroando Nossa Senhora.
Qual é a pintura, com cores tão frescas, representando
um esplendor e uma louçania de alma tão magnífica?
Nessa catedral tudo aponta para o céu, até os triângulos
e as flechas. Edifícios como esse parecem elevar-se
ao céu e nos levam para lá.
31
Apóstolo do pulchrum
Almas insaciáveis de dar glória a Deus
Analisemos agora um castelo, quase de conto de fadas:
Neuschwanstein. Ele foi edificado sobre um monte,
a pedido do Rei Luís II, da Baviera, no século XIX.
A nobreza desses torreõezinhos; quanta distinção, beleza
e altanería! Como isso é diferente daqueles mil alvéolos
que parecem transformar seus habitantes em abelhas
humanas. Contrariamente, este nobre castelo faz
dele um guerreiro, e, por sua vez, a catedral faz do homem
um santo.
Observem a beleza do telhado. Dir-se-ia estar revestido
de pedras preciosas! Como é convidativo morar num lugar
desses! Abrir de manhã a janela e contemplar um dos telhados
laterais refulgindo ao Sol. Olhar para baixo e se deparar
com uma das rampas, com água escorrendo depois
de uma chuvarada e gotejando agradavelmente da gárgula.
Quanta beleza, nobreza e harmonia! Entretanto, isso é prático:
esse declive visa impedir o acúmulo de neve.
Já na cidade de Rouen, onde Santa Joana d’Arc foi
queimada pelos ingleses, temos uma imponente Catedral
que mais parece um enorme élan para o céu. A torre
vai adelgaçando à medida que se eleva, quase se transformando
em firmamento; não se sabe bem se seu píncaro
é mais ar do que terra, ou mais luz do que pedra. Assim,
esse belo monumento convida a alma para subir!
Josep Grin (CC3.0)
Eric Pouhier (CC3.0)
Ludovic Péron (CC3.0)
Detalhes da Catedral de Reims, França
32
jplenio (CC3.0)
Castelo de Neuschwanstein, Alemanha
No prefácio da história de Santa Isabel da Hungria,
Charles Montalembert narra que um maometano, preso
pelos cruzados, recebeu licença de viajar pela Europa e,
conhecendo as catedrais, perguntou quem as construía.
Mostraram-lhe, então, o irmão leigo de um convento:
— Ele é um dos homens que constroem esses monumentos.
Surpreso, indagou:
— Como podem homens tão humildes construir edifícios
tão altivos?
Assim é a alma católica: humilde quanto a si mesma,
mas insaciável para dar glória a Deus. Na Catedral de
Rouen está a glória de Deus cantada por uma flecha que
vai mais alto do que todos os edifícios da Terra. Essa é
a Igreja Católica acima da sociedade temporal. A Santa
Igreja está por cima de tudo.
Ambientes que conduzem a Deus
Em outra foto vemos aquilo que São Francisco de Assis
chamava “a irmã água” caindo e correndo, luminosa
e turbulentamente, em meio a pedras, por certo fazendo
aquele ruído mais parecido a um cântico. Próximas
à margem há algumas moradias plebeias. Notem
a sensação de solidez dos prédios e como dão a impressão
de proteger contra as intempéries. Dentro dessas casas,
as pessoas se sentem na intimidade, a léguas da rua,
afastados dos outros, com a possibilidade de estar a sós,
no aconchego da família ou numa solidão completa aos
olhos de Deus.
Catedral de Orvieto, Itália
É um ambiente agradável, à maneira europeia, pois
quando chega o verão o jardim se enche de gerânios vermelhos
e, do lado de dentro, uma pessoa calma lê um livro,
ou uma senhora faz crochet ou tricot enquanto conversa
com o netinho sentado no chão. É a vida tranquila
e cheia de paz de outrora, mais operosa do que a das
multidões se acotovelando nos ônibus. Cidades peque-
Luca Aless (CC3.0)
33
Apóstolo do pulchrum
A Torre de Belém, localizada na margem do Rio
Tejo, que banha Lisboa, é uma fortificação composta
de um material tão alvo que em noite
de luar mais parece feita de lua. Na sua
parte inferior se encontram os orifícios
para os canhões. Sob certo ponto de vista,
a torre, tão leve com suas ameias e
torreões, parece um brinquedinho;
mas, tão majestosa e forte que dá impressão
de uma verdadeira fortaleza.
Os antigos tinham horror das fachadas
lambidas e do plano sem arte.
Na superfície principal está a sacada
onde podemos imaginar o rei
vendo as naus partirem, por exemplo,
da frota de Pedro Álvares
Cabral, com a imagem de Nossa
Senhora, a qual hoje se venerajaraman
sundaram (CC3.0)
Cataratas do Reno, Suíça
nas, onde as pessoas vão a pé por toda parte, aonde ninguém
tem pressa, ninguém corre, todo mundo vive e respira
em paz. Em cidades como essas se formaram os povos
europeus, saudáveis, que engendraram a maior civilização
de todos os tempos.
Como seria agradável, por exemplo, no entardecer de
um dia fresco, permanecer num terracinho rezando ou
lendo, ou até fazer uma grande coisa quando a pessoa
tem a alma cheia de altos pensamentos e de verdadeira
fé: não fazer nada. Contudo, não significa flanar ou fazer
o papel de bobo, mas é deixar a memória e as recordações
falarem, ir pensando ao sabor do tempo e das associações
de imagens. É mergulhar na contemplação.
Foi conversando agradavelmente desde uma janela
que Santo Agostinho e Santa Mônica tiveram o famoso
êxtase de Óstia. Quem poderia ter um êxtase dentro de
um arranha-céu contemporâneo? Deus pode tudo, inclusive
levar alguém a entrar em estado místico no interior
de um edifício moderno, mas é preciso dizer que um tal
lugar não propicia um êxtase.
34
Maravilha do espírito católico
Pedro Álvares Cabral
Rio de Janeiro
Herbert Frank (CC3.0)
ra na igreja dos Jerônimos, e é chamada Nossa Senhora
do Brasil.
Imaginemos ali uma série de pendões e de tapeçarias
riquíssimas; o rei com a rainha e sua corte, despedindo-
-se dos navios que partiam para descobrir novas terras e
trazer novos povos para a Igreja Católica Apostólica Romana,
levando nos mastros a Cruz de Cristo. É um cenário
magnífico! Tão bonito que parece ter sido construído
só para essa cena épica.
Ali encontramos a beleza conjugada ao prático. O mirante
é estupendo, e sem dúvida, muito funcional. Foi uma
fortaleza tão boa que, para as condições do tempo, metia
medo em qualquer atrevido desejoso de se adentrar no Tejo.
Nobre e distinta, a Torre de Belém é uma verdadeira
maravilha do espírito católico que formou essa civilização.
Quanto respeito para com a criatura humana há numa
construção como essa! O homem se sente inteiramente
atendido, protegido, defendido e conduzido até
Deus!
v
(Extraído de conferência de 10/2/1974)
Benittes (CC3.0)
Catedral de Rouen, França
Torre de Belém,
Lisboa
Vicente D.
35