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<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Leandro W.<br />
Intimidade que convida<br />
o espírito a se elevar<br />
O estilo burguês, sem levar<br />
diretamente à oração, cria as<br />
condições para o espírito ter<br />
vontade de rezar e sentir-se<br />
bem quando reza. Nele a arte<br />
procura exprimir o bom senso,<br />
o pudor, o recato, a estabilidade,<br />
a continuidade, o equilíbrio das<br />
coisas bem ordenadas desta Terra,<br />
e a criação de uma ordem de coisas<br />
que mais permite ao espírito<br />
humano elevar-se ao mais alto<br />
do que propriamente o eleva.<br />
Creio que em nenhum país do mundo a vida burguesa,<br />
no que ela tem de legítimo e digno, atingiu<br />
graus de desenvolvimento como na Alemanha e,<br />
com ela, o incremento de um valor característico da ordem<br />
burguesa, sem o qual não se compreende o que é a<br />
aristocracia.<br />
O espírito aristocrático e o burguês<br />
Enquanto a tendência para os píncaros e de se servir<br />
dos valores culturais para considerar continuamente o<br />
mais elevado é peculiar ao espírito aristocrático, e estabelece<br />
junção entre este e o espírito religioso; no espírito<br />
Rothemburg,<br />
Alemanha<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Pedro Morais<br />
Catedral de Colônia<br />
burguês, a arte procura exprimir o bom senso, o pudor,<br />
o recato, a estabilidade, a continuidade, o equilíbrio das<br />
coisas bem ordenadas desta Terra, e a criação de uma<br />
ordem que mais permite ao espírito humano elevar-se ao<br />
mais alto do que propriamente o eleva.<br />
Por exemplo, a Catedral de Colônia é um edifício eminentemente<br />
aristocrático. Ela eleva o espírito humano a<br />
tudo quanto há de mais alto.<br />
Já uma casa alemã burguesa, apesar até de ter seu teto<br />
em forma de cone, não se pode dizer que eleva o espírito<br />
humano ao mais alto. Ela cria condições para que<br />
ele se eleve por si, mas é uma coisa diferente.<br />
Ambiente que convida à intimidade<br />
Analisemos, por exemplo, algumas construções alemãs<br />
tipicamente burguesas, uma delas utilizada provavelmente<br />
para a prefeitura ou outro órgão público, o que<br />
se nota por causa do brasão e do relógio, característicos<br />
de edifícios desse gênero. O estilo é típico das pequenas<br />
cidades burguesas, incontáveis na Alemanha medieval,<br />
muitas das quais ainda se conservam hoje.<br />
Vê-se uma casa mais ou menos da mesma época, inteiramente<br />
coadunada com a prefeitura, e, no fundo, uma<br />
igreja barroca, mas que ainda tem o caráter modesto<br />
burguês, de uma igreja de pequena localidade, não como<br />
uma catedral de uma importante cidade como Colônia,<br />
prestigiosíssima metrópole cultural de todo o Reno.<br />
A parte térrea da residência forma uma espécie de<br />
hall aberto solidamente sustentado por um madeirame<br />
trabalhado discretamente, mas com uma certa distinção<br />
de linhas. Vê-se o corpo do edifício, e duas saliências<br />
que se projetam sobre a rua. Há mais um andar em cima<br />
e advinha-se que lá há guardados objetos de toda ordem,<br />
como cadeiras velhas da bisavó, empilhados ali em<br />
quantidade. É o sótão onde, ademais, mora a criada...<br />
Procuremos com a vista da imaginação penetrar janela<br />
adentro. Têm-se uma sensação condizente com a vida<br />
burguesa, mas que não se experimenta no estilo aristocrático:<br />
a intimidade.<br />
A vida aristocrática não convida à intimidade, mas a<br />
um perpétuo estadear magnífico de si mesmo, produzindo<br />
uma naturalidade no esplendor. O verdadeiro aristocrata<br />
é inteiramente natural dentro do esplendor, mas<br />
não tem intimidade. Esta encontra-se em uma casa burguesa.<br />
Imaginemos dentro da sala um armário onde guardam<br />
a roupa de ir para a festa, mas quando chegam em<br />
casa dão um suspiro de alívio, tiram o sapatão, a roupa<br />
que apertava, sentam-se numa cadeirona macia, esticam-se:<br />
“Enfim, em casa!”<br />
É o gosto da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido,<br />
da luz tamisada que não deixa entrar a realidade de<br />
fora, do cortinadinho, dos objetos próximos uns dos outros<br />
e ao alcance da mão, em que o homem descansa do<br />
trabalho manual.<br />
Pormenores do ambiente e da<br />
intimidade do lar burguês alemão<br />
Nada disso é necessário para o aristocrata. Pelo contrário,<br />
vamos supor que ele está junto à mesa, toca uma<br />
sineta e manda o criado pegar um livro. Não se pode pedir<br />
isto a um homem como o burguês que trabalhou o<br />
dia inteiro, e que quando tem um livro, que é uma grossa<br />
Bíblia, já a tem ao alcance da mão. Onde está o criado?<br />
Está a mulher, que quando o marido a solicita muito,<br />
resmunga com uma pitoresca rabugice burguesa...,<br />
de maneira que não é bom mexer muito com ela, pois<br />
também trabalhou o dia inteiro.<br />
Percebe-se uma coisa curiosa: quem está dentro desse<br />
ambiente sente-se a uma légua da rua. A residência é<br />
construída de modo a constituir uma atmosfera completamente<br />
diferente, dentro da qual o ruído da rua não penetra.<br />
A pessoa está na intimidade de um ambiente que<br />
ela marca e onde ela sente até um pequeno gozo.<br />
32
Quando chega o verão, à boa maneira alemã,<br />
abre-se a janela, põem-se pedacinhos de pão e vão<br />
os passarinhos comer, e o alemão fica todo contente.<br />
Ou, então, coloca um pote com gerânio pendurado<br />
ao lado de fora para o concurso de flores da<br />
prefeitura. Precisa ganhar o prêmio, porque é muito<br />
bonito.<br />
Comento com delícias as construções do mundo<br />
alemão, porque acho tudo isso maravilhoso.<br />
Ermell (CC3.0)<br />
Os regalos da vida burguesa<br />
e convite ao recolhimento<br />
O que isso tem de ver com a contemplação?<br />
É o lar sem pretensões, honesto, da família legítima,<br />
constituída segundo os Sacramentos. É<br />
a casa onde o refulge o modesto esplendor da vida<br />
de família, que está longe de ser o do celibato<br />
na vida religiosa ou o da aristocracia, mas um esplendor<br />
próprio que se manifesta com o seu prosaísmo.<br />
É a dignidade do corriqueiro, onde a pessoa<br />
pode recolher-se, isolar-se e, dando repouso<br />
e silêncio ao corpo, começar a meditar. Não é o<br />
conforto do preguiçoso que se afunda numa poltrona<br />
e torna-se amolecido. Não é isso. Tudo é<br />
mais varonil e, por isso, dessas casas, em épocas<br />
de guerra, saem os melhores guerreiros do mundo.<br />
Em tempos de paz, comedores de pão, tocadores<br />
de flauta e violino.<br />
Há, portanto, uma harmonia que convida ao recolhimento,<br />
à oração. Num ambiente como esses, uma pessoa<br />
sentada em uma sala ou ajoelhada num oratório, pode<br />
Antiga Câmara Municipal de Bamberg, junto ao Rio Regnitz<br />
isolar-se de tudo. Assim, essas casas, sem levarem diretamente<br />
à oração, criam as condições para o espírito ter<br />
vontade de rezar e sentir-se bem quando reza. Aí estão<br />
os regalos da intimidade e da vida burguesa.<br />
Vista de Bamberg,<br />
Alemanha<br />
Ermell (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Heidas (CC3.0)<br />
O espírito de cruz<br />
Não posso terminar esse comentário sem uma bofetada<br />
na Revolução.<br />
A Revolução diz: “O pobre plebeu, esmagado...” Se for<br />
para gozar a vida, eu acho discutível o que é melhor, se<br />
é essa vida numa casa burguesa ou em um palácio. Passar<br />
num palácio quinze dias pode ser muito agradável.<br />
Será igualmente agradável viver a vida inteira nele, numa<br />
contínua representação, numa perpétua ostentação?<br />
Nunca sustentei que o palácio fosse o melhor lugar para<br />
gozar a vida. O gozo da vida, mais na proporção do homem,<br />
é o do burguês da Idade Média. Palácio corresponde<br />
a sacrifício. Parece-me indispensável termos isso em vista.<br />
Na casa burguesa pode haver espírito de cruz. Em certo<br />
sentido, o palácio é uma cruz para o indivíduo que mora<br />
nessa casa e não se dá bem conta de como é o palácio,<br />
pois ele precisa ter muita resignação para não residir e<br />
não invejar quem resida no palácio. Por outro lado, essa<br />
própria vida que estou descrevendo com todo o seu conforto<br />
comporta um lado de trabalho muito duro. De maneira<br />
que não é a casa, mas na vida de trabalho duro do<br />
burguês que entra a cruz.<br />
A patriarcalidade do espírito alemão<br />
Praça do mercado em Hildesheim, Alemanha<br />
Histórica Cervejaria Schlenkerla, desde<br />
1405, Bamberg, Alemanha<br />
Consideremos agora uma praça pública de uma cidade<br />
alemã, já de um certo desenvolvimento, como Frankfurt.<br />
Vê-se uma fonte em estilo rococó, uma grade bonita,<br />
flores maravilhosas que ninguém rouba e nenhum moleque<br />
acha bonito escangalhá-las durante a noite e voltar<br />
com riso de bandido de oito anos para casa, contando<br />
que estraçalhou tudo quanto viu.<br />
O edifício da prefeitura se prestava à maior solenidade<br />
do Sacro Império. Tudo dentro dele é lindíssimo, soleníssimo.<br />
Há um soalho tão precioso que só se entra no<br />
prédio com chinelos de feltro enormes que cobrem os sapatos<br />
para não o estragar.<br />
Do terraço, o Imperador recém-eleito aparecia para o povo,<br />
jogava moedas de ouro e começava a tocar um sininho<br />
que logo depois dava origem ao repicar de todos os sinos da<br />
cidade, anunciando que a Cristandade tinha um novo chefe.<br />
A monarquia alemã era de um fausto, de uma glória<br />
extraordinária, mas conservou sempre uma nota patriarcal<br />
que a monarquia francesa não tinha. Mesmo<br />
São Luís IX, sentado num trono debaixo do carvalho de<br />
Vincennes, julgando, não tinha no seu perfil espiritual<br />
algo que é a síntese de todas as classes sociais. Ele era<br />
um aristocrata que se aproximava do povo.<br />
Os Imperadores do Sacro Império e os da Casa d’Áustria<br />
não eram a culminância da ordem social afável para com o<br />
povo, mas eram uma espécie de síntese de todas as classes,<br />
por onde a monarquia austríaca, mais esplendorosa do que<br />
a francesa por vários lados, comportava cenas como essas:<br />
Século XVIII, a Imperatriz Maria Teresa está no teatro,<br />
Ópera de Viena, soleníssima, e recebe a notícia de<br />
que havia nascido o filho de seu filho mais velho. Ela faz<br />
um sinal, interrompe a orquestra e grita para o povo:<br />
— José teve um filho!<br />
Asio otus (CC3.0)<br />
34
Thomas Wolf (CC3.0)<br />
Prefeitura de Frankfurt<br />
Todo mundo se levanta, aplaude e aclama:<br />
— Viva a Imperatriz e viva o novo Arquiduque!<br />
Tudo numa espécie de intimidade que nós não vemos<br />
Maria Antonieta, austríaca afrancesada, ter. E se ela tivesse<br />
nem ficaria bem para ela.<br />
A um povo compete dizer: “José teve um filho!”; a outro,<br />
aparecer no balcão do Castelo um arauto precedido<br />
por alabardeiros, e que bate três vezes no chão com uma<br />
lança e diz: “Nós temos a honra e a alegria de vos anunciar<br />
que a muito alta e poderosa Princesa foi agraciada<br />
por Deus Nosso Senhor com o nascimento de um Delfim!”,<br />
e faz uma grande reverência. São estilos, cada um<br />
tem sua razão de ser e sua beleza.<br />
Variedade nascida da Igreja<br />
Tenho toda a compreensão e admiração para com o estilo<br />
austríaco e sua beleza. O Imperador jogava desse terraço<br />
ouro para o povo e pouco depois começavam os festejos. As<br />
fontes eram preparadas de maneira a jorrar não água ordinária,<br />
mas vinho. Por conta do novo Imperador, eram trazidos<br />
para a praça pública bois inteiros que eram assados.<br />
O povo começa a dançar. Estava preparado um monte de<br />
trigo, e o Imperador devia sair correndo a cavalo com um<br />
recipiente na mão e enchê-lo com aquele trigo. O povo todo<br />
aplaudia porque o Soberano provara ser bom cavaleiro.<br />
Assim, transcorria essa solenidade, entre festejos<br />
quase infantis, pois o bom alemãozão é um pouco infantilzão.<br />
Mas nisso entra também o melhor do sabor dos<br />
pães que ele faz e dos gerânios que ele cultiva, uma coisa<br />
um pouco infantil, um pouco popular, muito guerreira,<br />
sumamente aristocrática, em todo caso metafísica, mas<br />
que é diferente da frieza azul e ouro das plumas, das se-<br />
das e do esplendor de Versailles. São riquezas diversas<br />
que nos ajudam a amar a Igreja Católica na variedade<br />
das almas que ela produziu.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 10/6/1968)<br />
Detalhe da fonte na Praça da<br />
Prefeitura de Frankfurt<br />
Pedro (CC3.0)<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Como um voo<br />
Alberto Luccaroni (CC3.0)<br />
angélico<br />
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força muito<br />
grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza que só depois<br />
se exprimiram, do mesmo modo, olhando para ele, no fundo de<br />
nossas almas católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />
magnífico ainda apareça. Nas obras do Espírito Santo não pode haver<br />
contradição. Tudo é lógica por mais que o passo seja enorme.<br />
ACatedral de Ravena, na Itália, é um edifício octogonal<br />
construído num estilo bizantino muito<br />
característico, com aquelas figuras em mosaico,<br />
típicas da arte bizantina, postas numa espécie de estado<br />
contemplativo, desligadas das circunstâncias concretas<br />
de tudo, sobre um fundo dourado.<br />
Os diversos estilos ao sopro do Espírito Santo<br />
Passar desse estilo para o românico constitui, sem dúvida,<br />
um salto. Não se deve confundir o românico com o greco-<br />
-romano. Este último é o estilo grego com pequenas adaptações<br />
feitas pelos romanos. O românico é uma adaptação que<br />
os bárbaros fizeram do estilo romano a algo existente na alma<br />
deles e que não havia no espírito da civilização romana.<br />
Quando consideramos um estilo mais próximo do românico,<br />
como é o da época de Ravena, não é fácil perceber<br />
que de lá surgirá o românico. Entretanto, ao ver o<br />
românico e depois o gótico, percebemos que o gótico estava<br />
nascendo no românico.<br />
Então, podemos dizer que o espírito de Ravena correspondia<br />
a alguma coisa do gótico, mas com interferência<br />
de algo violentamente diferente ligado ao romano antigo.<br />
Já do românico para o gótico, pelo contrário, continua<br />
em linha reta.<br />
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força<br />
muito grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza<br />
que só depois se exprimiram, mas que já estavam presentes<br />
no gótico originário, poderíamos perguntar o seguinte:<br />
quando o gótico chegou a exprimir a sua delicadeza, a par<br />
de sua força, ele estava esgotado ou tinha mais algo?<br />
A força e a graça são posições ou valores harmônicos,<br />
mas tão diversos entre si que se diria, à primeira vista,<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Marie Thérèse Hébert & Jean Robert Thibault (CC3.0)<br />
Fachada e detalhes<br />
da Catedral de<br />
Ravena, Itália<br />
tratar-se de uma contradição. Mas, de fato, dentro das<br />
coisas da Igreja, como nas obras do Espírito Santo, não<br />
pode haver contradição. Tudo é lógica por mais que o<br />
passo seja enorme.<br />
Algo de novo ainda poderá surgir do gótico<br />
Tomado esse conjunto de força e de graça, qual é a nova<br />
perfeição contida potencialmente no espírito católico<br />
e que viria a se exprimir no Reino de Maria?<br />
Poder-se-ia conjeturar que fosse uma coisa muito ousadamente<br />
diversa e profundamente afim, mais ou menos<br />
como a capa leve e graciosa de uma rainha, capaz de<br />
tremular ao vento de tal maneira que uma pessoa pensasse<br />
ter sido a capa dilacerada pela ventania. Mas, na<br />
realidade, ela nunca se rasgou; voltou-se de um lado e<br />
de outro e deu, por vezes, uma impressão de fragmentação,<br />
porém um olhar bem exercitado perceberia a unidade<br />
que nunca se rompeu. Assim, nós poderíamos conjeturar<br />
o que seria o estilo do Reino de Maria.<br />
Algo, portanto, que seria uma continuação do gótico<br />
surpreendentemente descontínua na aparência, compensando,<br />
por assim dizer, a sensação de fim de caminho,<br />
de perfeição que não há como acrescer ao que o gótico<br />
trazia consigo.<br />
Há como crescer! Com um salto prodigioso, mas um<br />
salto de Anjo. Um voo, não um salto, numa direção inteiramente<br />
diversa, que apareceria e começaria a bri-<br />
Isatz (CC3.0)<br />
Darkugo (CC3.0)<br />
32
lhar de um modo superior à conjetura do espírito humano.<br />
Uma beleza que a graça faria ver em determinado<br />
momento. Então, a nossa exclamação de entusiastas<br />
do gótico, que quereríamos vê-lo conservado com veneração<br />
no esplendor do Reino de Maria, seria: “Ah, era isso<br />
mesmo que faltava!”<br />
Porque, embora olhando para o gótico tenhamos a<br />
impressão de não lhe faltar nada, no fundo de nossas almas<br />
católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />
magnífico, ainda apareça.<br />
Um golpe de gênio<br />
Dou um exemplo que pode chocar alguns rigoristas do<br />
gótico. Bernini 1 foi um artista muito marcado pela Renascença;<br />
entretanto, ele teve um golpe de gênio construindo<br />
aquela colunata do lado de fora da Basílica de<br />
São Pedro. Após ter visto essa colunata<br />
com olhos de homem maduro<br />
capaz de fazer uma análise, ficaram<br />
dois efeitos no meu espírito.<br />
Em primeiro lugar, um conjunto<br />
de colunas coberto, tendo, portanto,<br />
algo em comum com uma igreja<br />
ou casa, mas muito mais arejado<br />
do que qualquer destes ambientes;<br />
uma colunata fora da igreja,<br />
mas continuando o edifício sagrado,<br />
constitui uma espécie de meio-<br />
-termo harmônico entre o templo e o<br />
mundo profano, que agrada ao espírito<br />
conceber.<br />
O próprio traçado da colunata da<br />
Basílica de São Pedro é firme, lógico;<br />
neste ponto pouco renascentista<br />
por ser um traçado forte e sério, não<br />
tendo aquele aspecto trêmulo das<br />
coisas renascentistas.<br />
Ademais, a colunata é majestosa.<br />
Dir-se-ia que cada coluna é como<br />
um soldado invisível prestando armas<br />
e continência ao rei que passa.<br />
Neste caso é o mais alto Rei da Terra,<br />
o Papa, não considerado apenas<br />
como soberano dos Estados Pontifícios,<br />
mas como Rei deste Reino de<br />
tamanho mais do que cesáreo, que é<br />
Igreja Católica Apostólica Romana,<br />
a qual se estende sobre toda a Terra,<br />
penetra em todos os povos e abriga<br />
em si todas as raças.<br />
Outro efeito causado pela colunata<br />
em meu espírito é a ideia<br />
de que, depois de Bernini ter descoberto essa fórmula,<br />
ninguém construiu uma igreja tão magnífica que<br />
merecesse uma colunata, e se fizesse ficaria uma cópia<br />
desagradável porque pretensiosa. Por outro lado,<br />
mais ninguém teve talento para conceber um conjunto<br />
de colunas e dar-lhe um desenho novo, que não seja<br />
uma repetição da colunata de São Pedro. Ficou, portanto,<br />
uma coisa encalhada. Mas vejo na colunata de<br />
Bernini algo no qual talvez se pudesse vislumbrar um<br />
prenúncio falho, abortivo, de um elemento para o Reino<br />
de Maria.<br />
É uma hipótese que eu carrego de incertezas; mas fica-me<br />
uma impressão meio conjectural na alma de que,<br />
para o exterior de igrejas, alguma coisa assim se inventará<br />
no Reino de Maria, e para cuja elaboração essa<br />
obra de Bernini foi apenas um esboço.<br />
Igreja da Abadia de Maria Laach (estilo românico)<br />
Renânia-Palatinado, Alemanha<br />
Nikanos (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Deus deverá suscitar, a<br />
pedido de Nossa Senhora,<br />
um homem com talento<br />
Dentro da Basílica de São Pedro encontramos<br />
o Altar da Confissão, encimado por<br />
um dossel sustentado por quatro colunas<br />
também esculpidas por Bernini. Como todas<br />
as obras de arquitetura da grande épo-<br />
MarkusMark (CC3.0)<br />
Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)<br />
Colunata de Bernini - Praça de São Pedro, Vaticano<br />
Mathieu_Pinto (CC3.0)<br />
Altar da Confissão - Basílica de São Pedro, Vaticano<br />
ca da Itália, são feitas de mármore. Os mármores italianos<br />
são lindíssimos, e a pedra de que é construído aquele<br />
conjunto é muito bonita. Entretanto, as colunas não<br />
me agradam, por serem esculpidas num formato espiral<br />
grossão e mole.<br />
Mas está ali uma tentativa de representar algo que<br />
correspondesse à seguinte pergunta do espírito humano<br />
diante de uma coluna: “Esta coluna não poderia ter um<br />
traçado em que ela, sem deixar de ser coluna, sugeriria a<br />
ideia de um movimento mais elegante, mais leve?”<br />
O artista tentou dar a resposta com aquela fórmula.<br />
A meu ver, ele fracassou. Mas não haveria uma solução?<br />
Nesta procura de algo que fizesse com que a coluna, sem<br />
deixar de ser majestosa, alta e forte, apresentasse algo<br />
de ligeiro, que é quase a antítese da coluna? Admito a<br />
possibilidade de que seja assim, mas é uma incógnita.<br />
Deus deverá suscitar, a pedido de Nossa Senhora, um<br />
homem com talento igual ou talvez muito maior do que<br />
o de Bernini para apresentar uma fórmula nessa linha.<br />
Simplesmente em torno desses dois elementos – a colunata<br />
externa da Basílica de São Pedro e o sonho que<br />
as colunas do Altar da Confissão não realizaram – quiçá<br />
nascesse um estilo novo.<br />
34<br />
Visão Geral da Praça de São Pedro, Vaticano
Hipóteses que não se podem perder de vista<br />
Na Basílica de São Paulo, situada fora dos muros de<br />
Roma, há também elementos artísticos muito bonitos<br />
que apontam para um novo estilo, e cuja história conto<br />
resumidamente.<br />
No século XIX, aquela Basílica sofreu um incêndio que<br />
danificou gravemente os vitrais. Quando o Papa Pio IX<br />
mandou reconstruir a igreja, surgiu o problema de<br />
substituir os vitrais perdidos, por outros que estivesse<br />
à altura da beleza da Basílica. Às vezes, Deus Se<br />
compraz em ser glorificado pelos seus adversários. O<br />
Sultão da Turquia, maometano, ofereceu ao Pontífice<br />
chapas de alabastro muito finas e bonitas, que davam<br />
cada uma para encher o vácuo de uma janela.<br />
Assim, por presente desse filho de Maomé, apareceu<br />
uma forma de “vitral” muito bonita, porque<br />
tinha o indeciso da luz que penetra através de certo<br />
tipo de alabastro, com a delicadeza dos veios<br />
discretos, mas imaginosos, que as pedras por vezes<br />
apresentam.<br />
Pio IX não teve dúvida nenhuma e mandou colocar<br />
os alabastros.<br />
Em viagem a Roma, pude ver algumas dessas<br />
peças detidamente, e me veio ao espírito esta pergunta:<br />
“Será que matérias homogêneas e não mais<br />
com aquela riqueza cromática dos vitrais, mas com<br />
um colorido homogêneo e discreto, não representariam<br />
a nova fórmula de vitral no Reino de Maria?”<br />
Diz-se com entusiasmo o que eu vou afirmar<br />
sem entusiasmo: a indústria está muito avançada,<br />
e por isso se fabricam joias falsas com toda espécie<br />
de matérias levadas a altas temperaturas. Não haveria<br />
algum grande artista capaz de fabricar matérias<br />
mais bonitas do que o alabastro, e que, entretanto,<br />
representassem uma fórmula nova para os vitrais<br />
de uma igreja, de um palácio ou de um castelo?<br />
São hipóteses que não podemos perder de vista,<br />
compreendendo que se deve sentir nisto sempre<br />
o espírito gótico, e nunca o repúdio desse espírito.<br />
O espírito gótico presente, completado por<br />
mais uma ogiva, que seria o elemento novo por ele<br />
explicitado.<br />
Se pudéssemos imaginar como será um Santo no Reino<br />
de Maria, então conseguiríamos vislumbrar alguma<br />
coisa da arte nesse Reino.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 28/7/1989)<br />
1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 - †1680), arquiteto e escultor<br />
italiano.<br />
Fachada da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />
Interior da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />
Berthold Werner (CC3.0)<br />
Tango7174 (CC3.0)<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Popular Graphic Arts (CC3.0)<br />
A beleza<br />
imortal<br />
da Igreja<br />
refletida nos<br />
funerais de<br />
um Pontífice<br />
Há no gênio do bom desenhista uma “objetiva espiritual” que, para<br />
captar a realidade, vale incomparavelmente mais do que as lentes de<br />
uma máquina fotográfica. Assim, ao analisar algumas ilustrações<br />
da morte de Leão XIII, Dr. Plinio descreve a grandiosidade que<br />
envolve a morte de um Papa e o esplendor eterno da verdadeira<br />
Igreja de Cristo, manifestado até mesmo em suas pompas fúnebres.<br />
Ao longo dos séculos, a Opinião Pública foi se<br />
tornando cada vez mais desejosa de conhecer<br />
os atos da vida cotidiana onde eles se passavam.<br />
E, na época que não havia fotografia, as grandes<br />
revistas contratavam desenhistas para ilustrar seus artigos,<br />
os quais, sem terem presenciado o acontecimento,<br />
conheciam o local em que ele havia se dado e reproduziam<br />
a cena de acordo com o noticiário dos jornais.<br />
Daí surgiram verdadeiras peças de sociologia pois, embora<br />
eles não fossem artistas eminentes, eram bons desenhistas<br />
e compunham a cena de maneira a promover a venda da<br />
revista. Ora, para isso o desenho deveria corresponder tanto<br />
quanto possível à ideia que os leitores faziam do acontecimento<br />
ali estampado; do contrário, recusariam a publicação.<br />
Tratava-se, portanto, de um verdadeiro inquérito silencioso<br />
junto ao grande público, com base no qual o de-<br />
30
senhista procurava captar a cena como aquele a concebia.<br />
Retratavam-se, por exemplo, a morte ou a coroação de<br />
um Papa, a visita de um rei a outro, a posse de um presidente<br />
da República. Essa representação resultava verdadeira,<br />
ao mesmo tempo que revelava a mentalidade das pessoas<br />
da época, como elas consideravam aquela cena e quais eram<br />
suas expectativas em relação aos personagens que a viviam.<br />
Nessa perspectiva vamos considerar o noticiário publicado<br />
na revista Illustration, a respeito da morte do Papa<br />
Leão XIII.<br />
Um ato da augusta justiça divina<br />
A primeira ilustração retrata a constatação da morte<br />
de Leão XIII. Um dos presentes, provavelmente o médico<br />
efetivo e habitual do Papa, chamado naquele tempo<br />
de arquiatra pontifício, verifica sua pulsação. Arquiatra<br />
é uma palavra de origem grega que significa “arquimédico”.<br />
Os outros dois atrás dele são seus assistentes e esperam<br />
a comprovação de que não há mais pulso e, portanto,<br />
de que o Papa morreu.<br />
Analisemos como a ideia da morte de um Sumo Pontífice<br />
é representada pelo desenhista.<br />
Notam-se vários lençóis, um tecido de muita categoria<br />
que chega até o peito do Papa, um assento junto à cama<br />
dele o qual, por uma parte que se vê, parece ser uma poltrona<br />
confortável; ao fundo, vê-se um tecido damasquinado<br />
que reveste a parede e, ao lado, uma cortina. Tudo<br />
fala de finura e abundância.<br />
Dentro da abundância, porém, aparece o fracasso: a<br />
posição da cabeça demonstra que o Pontífice já não respira.<br />
Os braços estão estendidos ao longo de um corpo<br />
completamente inerte. Tem-se a ideia de um navio que<br />
afundou. Paira no ambiente a impressão da insensibilidade<br />
da morte e da dor do último instante. Sobre o Vigário<br />
de Cristo na Terra, como sobre todos os mortais, desfechou-se<br />
o castigo do pecado original. O Papa morreu e,<br />
portanto, Deus acaba de exercer sobre ele um ato de sua<br />
terrível e augusta justiça.<br />
O horror e a gravidade da cena se refletem na atitude<br />
dos médicos. O que verifica o pulso realiza operação correspondente<br />
à sua profissão, ou seja, constatar se há vida,<br />
para prolongá-la, ou se houve a morte, para declarar<br />
encerrada a sua missão e a mudança de status e de destino<br />
daquele corpo, fadado a abandonar todo esse bem-<br />
-estar e a convivência dos vivos a fim de ser posto em um<br />
W. J. Wintle (CC3.0)<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
caixão, murado e entregue à decomposição. O arquiatra<br />
toma, em consequência, o ar frio de quem está numa posição<br />
científica e profissional. Mas algo em sua postura<br />
é solene e sério; ele se prepara para proferir as palavras<br />
que encerram um capítulo da História da Igreja: “O Papa<br />
Leão XIII morreu.”<br />
O ato do médico-chefe é puramente formal. Os dois<br />
assistentes que estão atrás já sabem que o Papa faleceu,<br />
pois percebem que ele não respira mais. Ambos têm atitudes<br />
diversas. O médico mais moço, de bigode preto,<br />
conserva uma postura ereta, como quem olha ao longe e<br />
pensa em coisas graves – evidentemente, na morte e suas<br />
consequências – e exprime, de modo imponderável, uma<br />
certa consternação. Aliás, o bom gosto em todas essas<br />
atitudes está precisamente no fato de terem imponderáveis.<br />
As maneiras escancaradas são artificiais.<br />
O médico que se apoia na cama acaba de exercer alguma<br />
função, pois está usando pince-nez, o qual se utilizava<br />
apenas para ler ou fixar a vista em algo. Ele parece ligeiramente<br />
entristecido, mas muito pensativo, como quem<br />
pondera: “Que grande coisa é uma vida que cessa, um<br />
pontificado que se encerra... O que é a morte!” No fundo,<br />
seja ele ateu ou não, a palavra<br />
“Deus” lhe vem ao<br />
espírito.<br />
Devemos parar,<br />
refletir e meditar nas<br />
grandes verdades<br />
O outro personagem da<br />
cena é um monsenhor. Nota-se<br />
como o colorido do<br />
traje difere dos demais pela<br />
tonalidade e brilho que<br />
o desenhista colocou. Isso<br />
porque a batina e essa<br />
espécie de capa com que<br />
ele está vestido são de cor<br />
violeta. O reluzimento da<br />
batina indica ser ela de<br />
uma bela seda. Os pequenos<br />
botões de alto a baixo<br />
são também revestidos de<br />
fio de linha violeta. Sem<br />
dúvida, uma bonita batina,<br />
cujo aspecto vistoso é<br />
quebrado pelo sobretudo,<br />
também nobre, mas que<br />
parece ocultar o esplendor<br />
de um traje mais próprio<br />
aos dias de festa.<br />
W. J. Wintle (CC3.0)<br />
Percebe-se que esse monsenhor, o qual tem mais ou<br />
menos a idade do médico de bigode preto, vai se retirando<br />
como alguém que estava assistindo o Papa e cuja função<br />
cessou, mas ainda realiza os pequenos serviços a que<br />
estava habituado. Por exemplo, leva na salva, presumivelmente<br />
de prata, um copo provavelmente de cristal, e<br />
assim começa a dar uma pequena ordenação ao quarto<br />
do Pontífice para as cerimônias fúnebres se iniciarem.<br />
Entretanto, vendo que a palavra decisiva vai ser dada, ele<br />
se detém, preocupado e um tanto aflito, para ouvir o médico<br />
declarar, em definitivo, não haver mesmo esperança alguma.<br />
Compreendemos, assim, quanto pensamento o desenhista<br />
pôs ao retratar esta cena. Ele soube transmitir em seu desenho<br />
a ideia de como a morte, episódio tão frequente no<br />
quadro geral da existência, é uma grandiosa cena diante da<br />
qual devemos parar, refletir e meditar em grandes verdades.<br />
Em última análise, tratava-se do supremo poder pontifício,<br />
o fulgor da genialidade – Leão XIII era considerado um gênio<br />
–, que em certo momento se apagaram, e só restou um<br />
cadáver.<br />
Dali a pouco o corpo médico sairia e comunicaria aos<br />
Cardeais, grande número dos quais presumivelmente já<br />
estaria na antessala, que<br />
o Papa havia morrido.<br />
Três discretas<br />
batidas com<br />
um martelinho<br />
de marfim<br />
Depois da constatação<br />
científica, vinha a Igreja<br />
comprovar a morte do<br />
seu chefe. Entrava o Cardeal<br />
Camerlengo, o qual<br />
substitui o Papa de imediato<br />
no caso de morte,<br />
e com um martelinho de<br />
marfim se acercava com<br />
todos os Cardeais presentes,<br />
batia discretamente<br />
sobre a fronte do<br />
Pontífice e perguntava:<br />
— Santíssimo Padre,<br />
vives?<br />
Tendo repetido este cerimonial<br />
por três vezes,<br />
diante da ausência de resposta<br />
ele declarava:<br />
— Sua Santidade Leão<br />
XIII morreu.<br />
32
W. J. Wintle (CC3.0)<br />
A notícia era imediatamente levada aos sineiros, e os<br />
grandes sinos da Basílica de São Pedro começavam a dobrar<br />
finados. Em poucos minutos, os sinos das quatrocentas<br />
igrejas de Roma passavam a ecoá-los.<br />
Declarada a morte do Papa, os Cardeais recitam a<br />
primeira prece oficial por alma do Pontífice morto, oração<br />
que se desdobrará pelo orbe. Em todas as igrejas se<br />
celebram Missas, o mundo inteiro põe-se a gemer, a rezar<br />
e a esperar porque o Papa morreu.<br />
Contraste entre a riqueza e a pobreza,<br />
a altaneria e a humildade<br />
Outra ilustração retrata o momento em que, ainda<br />
antes da morte de Leão XIII, o Santíssimo Sacramento<br />
é levado para o Papa moribundo. O Viático percorre<br />
uma das galerias do Vaticano, e no centro do quadro está<br />
um clérigo, provavelmente um Cardeal, que, utilizando<br />
as vestes litúrgicas e o cerimonial tradicionalmente estabelecidos,<br />
porta o Santíssimo Sacramento sob uma umbrela<br />
carregada por um sacerdote.<br />
O clérigo que conduz a Sagrada Eucaristia vai rezando,<br />
com o rosto próximo do cibório. Ele se mantém recolhido,<br />
não olha para os lados, pois está transportando<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente presente,<br />
sob as Espécies Eucarísticas, em seu Corpo, Sangue,<br />
Alma e Divindade.<br />
À frente vão soldados da Guarda Suíça portando alabardas,<br />
com seu traje bem característico. Ao lado direito<br />
de quem conduz Nosso Senhor Sacramentado, está<br />
um membro da Guarda Nobre Pontifícia, constituída<br />
apenas por aristocratas. Enquanto os da Guarda Suíça<br />
abrem caminho, esse acompanha o Santíssimo como<br />
guarda de honra; por isso leva seu bonito elmo na mão, e<br />
não sobre a cabeça.<br />
Entre o Santíssimo Sacramento e a Guarda Suíça<br />
avança um clérigo tocando uma sineta, para alertar as<br />
pessoas da passagem da Santo Viático, que está ladeado<br />
por clérigos portando velas acesas.<br />
Acompanham a procissão lacaios, camareiros e senhores<br />
da corte pontifícia. Todos se dirigem da capela do<br />
Santíssimo Sacramento para os aposentos papais.<br />
No primeiro plano veem-se dois padres franciscanos<br />
com a cabeça tonsurada, inclinados e rezando. É muito<br />
bonito o contraste entre a simplicidade do traje franciscano,<br />
a humildade com que eles genufletem, o espírito de<br />
prece expresso pelas mãos e pela atitude, de um lado, e,<br />
de outro, a solenidade e o recolhimento dos que acompa-<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
W. J. Wintle (CC3.0)<br />
nham o Santíssimo Sacramento. Esse contraste entre a<br />
riqueza e a pobreza, a nobre altaneria e a suma humildade<br />
constitui uma harmonia especial.<br />
Trata-se de outra cena que o desenhista soube representar<br />
muito bem. Chama a atenção o lustroso do chão,<br />
dir-se-ia que estão andando sobre a água; é o mármore<br />
eximiamente polido e de uma qualidade esplêndida, tão<br />
frequente na Itália e tão belo no Vaticano.<br />
Eis uma cena verdadeiramente magnífica! Nosso Senhor<br />
encontra-Se presente e passa por aquelas galerias;<br />
do alto do Céu, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos<br />
O estão adorando. Jesus Sacramentado Se dirige ao Papa<br />
que está morrendo, e vai haver o último colóquio entre<br />
Cristo e seu Vigário na Terra.<br />
Entretanto, o desenho não é nada em comparação<br />
com o cerimonial elaborado ao longo de séculos, pouco<br />
a pouco, pelo costume, pela tradição e sobretudo pela Fé.<br />
O “pulchrum” eterno da Igreja Católica<br />
Outra ilustração representa a Praça de São Pedro na<br />
noite que precedeu a morte de Leão XIII. A praça começa<br />
a se encher de gente que anda de um lado para<br />
outro à espera de notícias sobre a saúde do Papa, ou do<br />
desenlace final que todos aguardam para qualquer momento.<br />
Não se formam essas multidões compactas de nossos<br />
dias, mas rodinhas, pois as pessoas ainda têm muita<br />
personalidade.<br />
Percebe-se que todos falam baixo. Seria um desrespeito<br />
haver ali um vendedor de balas, um jornaleiro ou<br />
qualquer outro elemento que levasse os presentes a pensar<br />
em algo que não fosse isto: o Vigário de Cristo está<br />
muito doente e, de uma hora para outra, serão dadas notícias<br />
sobre ele.<br />
Veem-se, dos dois lados, os locais de onde parte a colunata<br />
de Bernini. À direita encontra-se o Palácio do Vaticano,<br />
e é junto a uma dessas janelas que o desenlace está<br />
se dando, os últimos momentos de um pontificado, de<br />
uma vida e de um capítulo da História estão escoando.<br />
Todo o mundo confabula...<br />
Como não poderia deixar de ser, na praça aparecem<br />
várias batinas, traje muito característico do tipo de padre<br />
comum naquele tempo, experiente e compenetrado<br />
de sua missão. No primeiro plano há um padre que está<br />
indo embora. Trata-se de um homem alto, corpulento,<br />
com passo decidido, sério, portando um grande cha-<br />
34
péu e aparentando uma idade avançada, uma venerabilidade<br />
acompanhada de uma espécie de maturidade que<br />
se prolonga. A alma é provecta de antiguidade, e o corpo,<br />
decidido e forte. O sacerdote se retira imerso em seus<br />
pensamentos.<br />
Não é verdade que esse desenho nos faz compreender,<br />
mais do que muitas fotografias, o que há de venerável na<br />
Praça de São Pedro e todo o pulchrum eterno da Igreja<br />
Católica?<br />
Expressão da realidade que<br />
a fotografia não capta<br />
O Papa morreu, seu corpo foi posto numa posição um<br />
pouco mais ereta e começou a despedida dos Cardeais. O<br />
desenho representa um deles que oscula a mão do Pontífice.<br />
Atrás, onde a parede faz ângulo, está o futuro Papa<br />
Bento XV, sucessor de São Pio X – a sucessão dos Pontífices<br />
foi: Leão XIII, São Pio X, Bento XV –, na força de<br />
sua maturidade, ainda de cabelos pretos, pensativo. Ele<br />
não olha para ninguém, e ninguém olha para nada a não<br />
ser o morto.<br />
Ao fundo, um Cardeal bem mais velho fita<br />
o infinito. Outro, já mais próximo à cama,<br />
olha para o cadáver com uma espécie de ansiedade,<br />
como quem diz: “Então, meu velho<br />
companheiro de episcopado e de colégio cardinalício,<br />
meu Papa durante tantos anos, tu te<br />
vais? É assim a morte? Ela não está longe de<br />
mim... Ó morte! Fito em ti o meu dia de amanhã.<br />
Mais: morte, contemplo em ti o umbral<br />
da eternidade, o passado que fica e o futuro<br />
que vem. Ó morte! Ó Deus!”<br />
Sentado na poltrona que se via em um dos<br />
desenhos anteriores encontra-se um outro<br />
Cardeal, literalmente affaissé 1 e muito pensativo.<br />
No que ele pensa? Talvez nas palavras<br />
clássicas: Sicut transit gloria mundi – assim<br />
passa a glória do mundo. Tudo se foi, todos os<br />
anseios, realizações, aflições, decepções, tudo<br />
está encerrado, nada permanece, tudo é efêmero...<br />
Ó amargura! Ó Deus que, afinal, sereis<br />
a consolação dos justos!<br />
Um certo desalinho intencional do cabelo<br />
constitui quase o sismógrafo que indica a<br />
sua aflição. Ele não está na postura própria<br />
de quem, na Belle Époque 2 , encontrava-se na<br />
presença de outros. Sua atitude é a de um homem<br />
da Belle Époque quando estava sozinho<br />
no quarto meditando, ou seja, à vontade...<br />
Comparemos a atitude de muita dignidade<br />
dos demais Cardeais – até mesmo o cadáver<br />
de Leão XIII está digno na sua postura – e a desse cardeal<br />
idoso no primeiro plano. É como se ele estivesse sozinho<br />
no seu quarto, numa posição inclinada, mas digna,<br />
em nada ridícula, nem descomposta. Tudo isso reflete a<br />
pompa da Belle Époque.<br />
Eu volto a dizer: na minha opinião, essas ilustrações<br />
têm muito mais expressão do que a fotografia. Entretanto,<br />
não haveria um jornal hoje que as reproduzisse, porque<br />
o público quereria a fotografia que colheu o fato real,<br />
recente. As pessoas não percebem que esses desenhos<br />
dão a essência da realidade que nenhuma fotografia capta.<br />
Há no espírito de análise do bom desenhista uma<br />
“objetiva espiritual”, que vale incomparavelmente mais<br />
do que o click das máquinas fotográficas. v<br />
1) Do francês: abatido, prostrado.<br />
(Extraído de conferência de 21/11/1980)<br />
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante<br />
o qual a Europa experimentou profundas transformações<br />
culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.<br />
W. J. Wintle (CC3.0)<br />
35
Wolfgang Sauber (CC3.0)<br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Soldados do Senhor<br />
Deus dos exércitos<br />
Gabriel K.<br />
A fortaleza se exprime na vida<br />
humana de um modo mais sensível<br />
na carreira militar. Dos vários<br />
exércitos contemporâneos, nenhum<br />
levou as qualidades militares mais<br />
longe do que o exército alemão do<br />
tempo do Kaiser. Seus membros<br />
estavam impregnados da ideia<br />
de holocausto na defesa de um<br />
princípio, fazendo com que não<br />
medissem riscos nem cansaços.<br />
Segundo a Doutrina Católica, tudo quanto há de nobre<br />
e de belo no mundo é um reflexo de Deus. Portanto,<br />
o Criador possui todas as perfeições em grau<br />
supremo, de um modo inimaginável, mas inteligível.<br />
Mais ainda, não se pode dizer que Deus tenha determinada<br />
perfeição, pois Ele é substancialmente aquela<br />
perfeição. Por exemplo, Ele não possui o mais alto grau<br />
de bondade apenas, mas é a Bondade! Todos os graus e<br />
formas de bondade existentes nos Anjos e nos homens<br />
não constituem senão participações criadas da Bondade<br />
infinita e incriada que é Deus.<br />
Assim, alguém que dissesse: “O Senhor expulsou os<br />
demônios do Céu e, portanto, é muito forte”, diria uma<br />
verdade, mas não a verdade inteira na sua expressão<br />
Cristo, o Rei - Igreja das Bodas<br />
de Caná, Kafr Kanna, Israel<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
iwm.org (CC3.0)<br />
mais enérgica. Esta consistiria em afirmar: “Deus expulsou<br />
os demônios do Céu porque Ele é a própria Fortaleza.”<br />
E todas as fortalezas que há na Terra são participações<br />
criadas da divina Fortaleza.<br />
Tive oportunidade de comentar esta virtude simbolizada<br />
em um ente irracional, como é o leão 1 . Entretanto,<br />
pediram-me para tratar a respeito dessa perfeição<br />
divina espelhada nos homens. Para isso julgo mais<br />
adequado analisar fotografias, embora haja o inconveniente<br />
de estas apresentarem elementos infectados de<br />
Revolução.<br />
Qualidades militares dignas<br />
de atenção e análise<br />
A meu ver, a fortaleza se exprime na vida humana de<br />
um modo mais sensível na carreira militar. E parece-me<br />
que, dos vários exércitos contemporâneos – ao menos da<br />
época da fotografia –, nenhum levou as qualidades militares<br />
mais longe do que o exército alemão do tempo do<br />
Kaiser. Não por possuir o monopólio a esse respeito, mas<br />
por ter atingido um grau que, no gênero próprio, não foi<br />
superado e, enquanto tal, resulta muito digno de atenção<br />
e de análise da nossa parte.<br />
É bem evidente que esse exército apresenta defeitos<br />
que o tornam objetável sob vários pontos de vista. O primeiro<br />
deles consiste no seu caráter protestante-prussiano.<br />
A Alemanha da época do Kaiser estava dominada<br />
não mais pela Casa d’Áustria, como fora antes – ou<br />
seja, por uma dinastia católica, paterna, altamente culta,<br />
distinta e nobre –, mas por uma dinastia estritamente<br />
militar, um tanto “sargentona”, protestante, com tudo<br />
aquilo que existe de rígido, inflexível, hirto e agressivo<br />
no Protestantismo.<br />
Estas notas prejudicam em algo – aliás, não pouco –<br />
os aspectos do exército alemão que pretendo comentar.<br />
Mas, para não estar sempre repetindo, deixo isso dito<br />
na introdução, a fim de depois apresentar os lados positivos<br />
que nos interessam, nos quais exatamente se pode<br />
ver alguma semelhança com Deus.<br />
O mundo sem militares ficaria irrespirável<br />
As fotografias que vou comentar datam de pouco antes<br />
da Primeira Guerra Mundial e, portanto, do período em<br />
que a Alemanha kaiseriana havia chegado ao seu apogeu.<br />
Quando estive na Alemanha era tão menino – tinha<br />
quatro anos – que não me lembro de nada a esse respeito.<br />
A única recordação militar que conservo da viagem à<br />
Europa em minha infância não procede da Alemanha,<br />
mas de Paris. Estávamos hospedados num hotel<br />
cujas janelas davam para o Arco do Triunfo e, enquanto<br />
brincava no chão do quarto, de repente ouvi<br />
sons de clarins. Não sei o que aquela clarinada determinou<br />
em mim, mas tive um verdadeiro frisson e<br />
fui correndo para a janela. Vi então um piquete de<br />
dragões de cavalaria que passava, com a couraça,<br />
elmo de metal com aquela crina atrás e montados<br />
em cavalos grandes, que avançavam quase em passo<br />
de parada.<br />
iwm.org (CC3.0)<br />
Miltitärfotograf (CC3.0)<br />
32
Fiquei maravilhado! Nascia em mim o militarista.<br />
Não sou militar, mas militarista ao último ponto, admiro<br />
muito a carreira militar. A meu ver, o mundo sem militares<br />
ficaria irrespirável pois, para a harmonia do espírito<br />
humano, é preciso haver magníficos exércitos na Terra.<br />
Eles constroem mais em tempos de paz pelo seu exemplo<br />
do que destroem em tempo de guerra.<br />
Passemos aos comentários, nos quais procurarei seguir<br />
o seguinte método: descrição do quadro, análise das<br />
virtudes nele representadas e uma referência metafísica<br />
a Deus nosso Senhor, Autor dessas virtudes.<br />
Personificação do brio e garbo de seu exército<br />
Uma das fotografias nos mostra o Imperador da Alemanha,<br />
Guilherme II, comandante supremo das forças<br />
armadas, passando o bastão de comando a um general<br />
durante uma parada.<br />
Em primeiro lugar, faço notar o uniforme. O Kaiser<br />
está vestido como um general de cavalaria. Na cabeça,<br />
porta um elmo de aço encimado por um penacho branco.<br />
Ao soprar o vento, essas penas esvoaçam mais ou menos<br />
como se fossem as asas de um pássaro. Quando não<br />
há vento, elas descem e formam uma espécie de triângulo<br />
muito bonito sobre o elmo.<br />
As dragonas eram peças de rigor nos exércitos daquele<br />
tempo, destinadas a acentuar a impressão de varonilidade<br />
do corpo do militar, aumentando-lhe os ombros.<br />
Guilherme II tem o peito constelado por numerosas<br />
condecorações. De seu lado pende uma espada, e veem-<br />
-se também as botas de cavalaria. Ele monta um cavalo<br />
de primeiríssima categoria, em cujo dorso há uma cela<br />
esplêndida, belamente bordada.<br />
O general está fardado mais ou menos como o Kaiser,<br />
mas se percebe nele uma condecoração especial: uma<br />
faixa que lhe toma todo o corpo, a qual fazia parte do<br />
uniforme dos generais de maior graduação do exército<br />
alemão daquele tempo.<br />
Na atitude do Kaiser notamos, antes de tudo, o perfeito<br />
domínio do cavalo – um animal fogoso –, que ele monta<br />
com completo desembaraço. Guilherme II está sentado<br />
no cavalo como sobre uma cadeira; todo o seu corpo<br />
apresenta uma postura de firmeza e segurança. Vê-<br />
-se nele o estilo marcial de um homem cônscio de que domina<br />
o exército talvez mais poderoso do mundo e de que<br />
personifica, portanto, o brio e o garbo desse exército.<br />
O Kaiser encontra-se na flor da idade para um oficial<br />
superior, quer dizer, ele deve ter mais ou menos uns quarenta<br />
a quarenta e cinco anos. O general já é um pouco<br />
mais velho e pesadão, representando menos bem o garbo<br />
militar sob este ponto de vista. Porém, o exército alemão<br />
tem nele a figura de um guerreiro supremo: calmo,<br />
seguro, varonil, digno e disposto a tocar as coisas para a<br />
frente.<br />
Desejo de quebrar os resíduos da preguiça<br />
Outra fotografia nos permite ver os soldados de infantaria<br />
fazendo manobras e marchando com o famoso<br />
passo de ganso do exército prussiano, que se comunicou<br />
a todo o exército alemão e também a alguns exércitos<br />
sul-americanos. Consiste em marchar levantando a<br />
perna até a altura da cintura para exprimir resolução,<br />
ausência de preguiça. O homem preguiçoso arrasta os<br />
pés, quase não os levanta; o soldado de infantaria resoluto,<br />
disposto a lutar de toda maneira, que transpõe a pé<br />
distâncias enormes, levanta a perna quase até o inconcebível,<br />
manifestando seus desejos de violentar e quebrar<br />
completamente os resíduos da preguiça que sempre existem<br />
numa criatura humana.<br />
Por outro lado, vê-se os batalhões rigorosamente alinhados,<br />
e as filas que vão se sucedendo com a decisão de<br />
Bain News Service (CC3.0)<br />
iwm.org (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
lutar e de matar. As baionetas emergem do alto dos fuzis<br />
portados por soldados revestidos de uniformes escuros e<br />
calças brancas. Quem vê um regimento tem a impressão<br />
de uma máquina de disciplina, de energia, de impacto<br />
férreo, disposta a tudo para vencer e diante da qual nada<br />
pode resistir. É exatamente o estilo do militarismo alemão,<br />
bem diferente do militarismo espanhol, mais afeito<br />
à guerra de emboscada, por meio da qual os soldados da<br />
Espanha expulsaram de seu território o maior exército<br />
do tempo, o de Napoleão, organizado segundo os modelos<br />
que mais tarde o exército do Kaiser haveria de seguir.<br />
Podemos imaginar o efeito que causavam milhares de<br />
homens desfilando horas seguidas diante do público eletrizado.<br />
A população se sentia representada naqueles<br />
homens que personificavam o espírito militar alemão; e<br />
o desejo de grandeza, de proeza, de ousadia, o gosto de<br />
organização e disciplina, que distingue os alemães, estavam<br />
ali muito bem expressos. O que encanta toda essa<br />
gente é a ideia de eventualmente até morrer, numa suprema<br />
manifestação de força e coragem.<br />
Uma das mais altas situações que<br />
a vida humana pode oferecer<br />
A próxima fotografia mostra aquele que, a meu ver, é<br />
um dos mais bonitos regimentos do exército alemão. Os<br />
soldados têm sobre o elmo de metal uma águia, emblema<br />
do Império Germânico. Ela representa a força no mundo<br />
dos pássaros e, portanto, simboliza o domínio. Tratam-se<br />
de soldados de cavalaria que vestem um uniforme<br />
branco com grandes botas, as quais vão até acima do<br />
joelho, e portam uma espada.<br />
Em outro batalhão, constituído de oficiais e que deve<br />
ser a guarda pessoal do Imperador, nota-se uma peça do<br />
vestuário, uma espécie de dolman, na qual figura um sol<br />
que, por sua vez, representa o domínio entre os astros. É<br />
o astro-rei, como a águia é o pássaro-rei.<br />
O alinhamento das fileiras é impecável, corretíssimo,<br />
indicando cuidado, disciplina. Nenhum soldado aparece<br />
numa atitude preguiçosa, com ar de quem tem pressa<br />
de cessar esse exercício. Todos estão contentes, felizes<br />
de representar o papel do guerreiro. Por quê? Pela beleza<br />
da luta e da força em si, pelo pulchrum do holocausto<br />
do homem que esgota toda a sua vida no momento em<br />
que realiza isto e pode dizer: “Eu morri no ápice da minha<br />
fortaleza.”<br />
Vemos em outra fotografia uma revista às tropas. Os<br />
destacamentos estão parados e o Kaiser, seguido de seu<br />
Estado-Maior, vai percorrendo os regimentos. Uma vez<br />
mais se faz notar o alinhamento impecável.<br />
A atitude dos soldados é de quem se deixa inspecionar<br />
com entusiasmo. A do Kaiser e de seu séquito, por<br />
sua vez, é de quem compreende a nobreza que há em comandar.<br />
Também eles estão alegres porque comandar a<br />
guerra significa comandar a epopeia e a proeza, realizar<br />
as qualidades de homem numa das mais altas situações<br />
que a vida humana pode oferecer.<br />
A ideia de holocausto na<br />
defesa de um princípio<br />
Em outra fotografia podemos ver uma carga de cavalaria.<br />
Trata-se de um exercício que se prepara para a<br />
guerra. Os oficiais e os soldados cavalgam a todo galope,<br />
de sabre na mão e bradando, para atacarem, no caso<br />
concreto, um adversário imaginário. Mas é uma linda<br />
imagem da guerra.<br />
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, não se tinha<br />
feito ainda a experiência de que, com armas de fogo<br />
muito evoluídas, o uniforme brilhante tornava o soldado<br />
Photogr. Industrie Jens, Altona (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Bain News Service (CC3.0)<br />
Bain News Service (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
L. H. Schiffer (Wiesbaden) (CC3.0)
Max Marcus (CC3.0)<br />
German Federal Archives (CC3.0)<br />
Bain News Service (CC3.0)<br />
Bain News Service (CC3.0)<br />
iwm.org (CC3.0)<br />
um alvo a longo alcance. De maneira que nessa época os<br />
soldados ainda usavam lindos uniformes, os quais lhes<br />
davam consciência da importância de seu métier.<br />
Qual é a fonte do entusiasmo com que eles avançam?<br />
Todos compreendem como é belo andar a cavalo, dominar<br />
um corcel fogoso e, sobretudo, quanto é belo estimulá-lo<br />
a atacar, ter uma força que se joga de encontro ao<br />
adversário para o derrubar, quanto é belo matar e morrer<br />
na defesa da boa causa! Esta ideia de holocausto, de<br />
destruição do adversário e de si mesmo na defesa de um<br />
princípio, fazia com que esses homens não medissem riscos<br />
nem cansaços. Para viver esses momentos de apogeu,<br />
eles sacrificavam tudo.<br />
Um mundo metafísico, de valores<br />
absolutos, que nos aproxima do Céu<br />
Em uma das fotografias, vê-se a figura primorosa de<br />
um velho general conversando com o Kaiser. Um homem<br />
cuja barba é toda branca, e se nota o cabelo branco aparecer<br />
por debaixo do capacete. Apesar da avançada idade,<br />
porém, ele está teso, reto.<br />
Chamo a atenção para o elmo. Ele é brilhante, luzidio,<br />
possui uma guarnição dourada que vai até o queixo,<br />
e não tem penacho nem águia, mas uma ponta que dá a<br />
ideia de que, à mingua de outra coisa, o soldado alemão<br />
avançará fazendo o papel do touro contra o toureiro, e<br />
lutará até a última resistência.<br />
O general está numa atitude que inspira, não o respeito<br />
que se tem por um idoso, mas o respeito devido a<br />
um militar. Vê-se que, se aparecer um adversário, esse<br />
ancião pega a espada e sai para combater. É um homem<br />
válido para qualquer coisa. A firmeza e a altivez militares<br />
encontram-se esplendidamente representadas nessa<br />
fotografia.<br />
Podemos observar uma vez mais o passo de ganso no<br />
desfile dos estandartes do Império, no qual cada soldado<br />
conduz uma insígnia diversa correspondente a um dos<br />
vários regimentos. Além da variedade e beleza dos estandartes<br />
de gala – todos bordados, riquíssimos –, contemplamos<br />
também a diferença dos elmos: um em forma de<br />
cone truncado, outro com ponta, outro ainda com penacho.<br />
Notem com que garbo e entusiasmo eles marcham.<br />
Cada um dá a sensação de estar carregando nas mãos a<br />
honra do próprio regimento, e conduz a bandeira como<br />
quem porta um princípio, um ideal, e o leva para a luta.<br />
Eles não olham para o público. Representam um papel<br />
para um mundo imaginário, metafísico, de valores<br />
absolutos, que está além do nosso. É o mundo feito de<br />
ideias, de princípios, que já nos aproxima do Céu e de<br />
Deus.<br />
A Escritura atribui ao Altíssimo o título de “Senhor<br />
Deus dos exércitos”, quer dizer, o Deus de toda força, o<br />
qual paira acima dos exércitos que defendem o bem e faz<br />
vencer aqueles que Ele quer proteger. Tem-se a impressão<br />
de que esses homens estão imbuídos da grandeza de<br />
serem soldados do Senhor Deus dos exércitos. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 12/1/1973)<br />
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 251 e 252, p. 30-35.<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Entusiasmo e alegria<br />
pela alma guerreira<br />
Na Idade Média se entendeu que na sociedade temporal a<br />
mais alta carreira era a militar. Exatamente por causa do<br />
princípio enunciado por Nosso Senhor: “Ninguém tem maior<br />
amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.”<br />
Por essa razão, as mais belas guerras da História foram<br />
aquelas que tomaram todo o seu sentido no ideal religioso.<br />
Anação alemã é tão militarista que o estilo militar<br />
invadiu a vida civil. Os estudantes tinham<br />
várias associações, muitas delas fundadas há<br />
séculos. Cada um possuía um uniforme próprio e usava<br />
uma espada para esgrima, que era o esporte preferido<br />
por eles.<br />
O que a alma militar tem de mais belo<br />
Vemos em uma das fotografias uma cerimônia na corte.<br />
O Imperador fardado, de pé sobre o estrado junto a dois tronos<br />
com um dossel. De tal maneira o feitio militar impregnou<br />
a vida alemã que até as velhas senhoras são tesas e hir-<br />
Anton von Werner (CC3.0)<br />
Inauguração do Reichstag no Salão Branco<br />
do Palácio de Berlim por Guilherme II (25 de<br />
junho de 1888) - Museu Histórico Alemão<br />
32
tas como dragão de cavalaria. A<br />
Imperatriz, pessoa aliás muito<br />
afável e simpática, tem um pouco<br />
a postura de uma “generala”.<br />
Mas tudo se passava de um<br />
modo meio militaresco na corte<br />
alemã, sempre impregnada pela<br />
ideia de que o valor supremo da<br />
existência humana é a luta, portanto<br />
a guerra, a imolação da vida ou a<br />
destruição de vidas.<br />
Na música militar alemã as notas saem<br />
como se fossem batalhões, arrasando no ar<br />
um inimigo imaginário. Silêncios preguiçosos se rasgam<br />
diante deles, e vão batendo, cutucando, combatendo,<br />
de maneira a se ter a impressão de que acabam<br />
tomando a cidadela. É a descrição magnífica de<br />
um combate ou a sonorização de uma parada. Quando<br />
determinados instrumentos dão uma nota, tem-se<br />
a sensação de estar vendo o passo do soldado alemão,<br />
moverem-se capacetes, elmos, estandartes... É toda a epopeia<br />
da Alemanha imperial que passa diante de nós.<br />
Por detrás do aparato militar muito bonito e da sonorização<br />
que combina tanto com esse aparato, percebemos<br />
algo mais belo: é a alma militar. O que esta, por sua<br />
vez, tem de mais belo é a decisão decorrente da profundidade<br />
da alma humana de entregar a vida por um determinado<br />
ideal. Não é entregar a vida deixando-se matar,<br />
mas é destruindo algo que não tem o direito de existir,<br />
organizando contra um ilegítimo agressor uma força<br />
metódica, implacável e disposta a tudo.<br />
A vida humana não é o valor supremo<br />
O bonito, então, não é só esta resolução, mas, acima<br />
dela, o idealismo. Se algo fere o Direito, a Lei, a Moral,<br />
não tem a faculdade de ser; e em nome da Lei, do Direito e<br />
da Moral é preciso tomar a iniciativa de lutar contra isso.<br />
Trata-se de uma resolução tomada à luz de um princípio<br />
superior, determinando no homem uma verdadeira<br />
sublevação no sentido etimológico da palavra, um surto<br />
de toda a personalidade, uma mobilização completa.<br />
Não uma mobilização sem distância psíquica, neurótica,<br />
de um gagá que toma um remédio qualquer para ficar<br />
meio alucinado e vai como uma besta se meter em cima<br />
das baionetas dos outros, mas de um homem inteiramente<br />
lúcido, senhor de si, que apela para sua própria personalidade<br />
e a coloca na luta. E o faz numa espécie de ato de<br />
holocausto, que é o seguinte: Se eu devo morrer, a minha<br />
vida teve pleno sentido porque me realizei por inteiro.<br />
O homem se realiza por inteiro quando se dá a algo<br />
que vale completamente. Então ele chegou à sua própria<br />
plenitude. Sobretudo, quando se dá totalmente com<br />
Jesus indicando o caminho<br />
aos cruzados - Igreja Sainte-<br />
Ségolène, Metz, França<br />
o risco de, após a guerra, ficar estropiado, cego, arrastar-se<br />
como um inválido, às vezes um pobre mendigo, ou<br />
morrer na flor da idade, tornar-se prisioneiro, ser maltratado.<br />
Seja qual for o risco, ele resolveu e fará. Executa<br />
e sofre, mas nesse sofrimento o homem se une com<br />
seu ideal e, por assim dizer, se realiza com seu ideal.<br />
Isto, no fundo, tem o sentido seguinte: a vida humana<br />
não é o valor supremo. A comodidade, a prosperidade,<br />
o conforto, o próprio prazer nobre e elevado de ter<br />
uma cultura, uma instrução, a familiaridade com altas<br />
cogitações do espírito, nada disto constitui o fim da vida.<br />
Sua finalidade consiste em algo que é mais alto do que a<br />
vida: o Direito considerado em si, a Moral considerada<br />
em si, o Bem considerado em si, em holocausto do qual o<br />
homem se imola.<br />
A mais perfeita das guerras em todos<br />
os tempos foi a das Cruzadas<br />
Mas, por sua vez, o que é o Direito, o Bem, a Moral<br />
considerados em si? A Doutrina Católica ensina: só<br />
existe um Deus supremo, perfeito, santíssimo, Criador<br />
de todas as coisas, a cuja Lei todos devem obedecer, Ele<br />
é o Bem, o Direito. Deus premia o herói e castiga o injusto<br />
agressor ou o poltrão que não soube resistir a este<br />
último. Quer dizer, ou esses princípios se personificam<br />
num Ser espiritual vivo, perfeito e infinito, ou não<br />
têm sentido.<br />
Flávio Lourenço<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Flávio Lourenço<br />
Porque o Direito em si… é o que os latinos chamam<br />
flatus vocis, uma palavra vácua, um som emitido pela<br />
voz. Moral em si… que sentido tem o vocábulo “moral”<br />
se não há um Deus que me premia e me castiga, o<br />
Qual eu preciso amar porque Ele é Ele? E ainda mesmo<br />
que não me premiasse e não me castigasse, eu O<br />
deveria amar porque Ele é perfeitíssimo e digno de todo<br />
amor.<br />
Isto dá o último sentido da imolação, do senso militar.<br />
Por essa razão a mais bela e nobre forma de guerra que<br />
se possa imaginar é a guerra religiosa.<br />
A guerra das guerras em todos os tempos e a mais perfeita<br />
foi a das Cruzadas para libertar o Santo Sepulcro e<br />
as populações dos católicos do Oriente próximo, que estavam<br />
opressas pelos maometanos. A Cruzada contra os<br />
cátaros e albigenses, as guerras de Religião da Liga Católica<br />
da França, as dos chouans, dos carlistas, dos cristeros<br />
são as mais belas guerras da História, porque tomam<br />
todo o seu sentido no ideal religioso.<br />
E agora vem a mais alta consideração que podemos<br />
fazer: a alma desses guerreiros que morrem pensando<br />
em Deus. De um Roland, par de Carlos Magno, que expira<br />
em Roncesvales, entregando sua alma ao Criador. Essa<br />
alma que O ama tanto é, ela mesma, um reflexo d’Ele,<br />
parecida com Ele, criada à sua imagem. Deus Se espelha<br />
nela e esse heroísmo que há nela é o reflexo de uma<br />
virtude divina. Um reflexo muito mais próximo do que o<br />
leão, o qual é um animal irracional. O herói é um ente<br />
racional e, na sua alma espiritual, o heroísmo já é um reflexo<br />
muito mais próximo de Deus. Porque a alma se parece<br />
muito mais com o espírito do que matéria.<br />
Vitória de São Miguel e seus Anjos contra os demônios - Igreja<br />
de São Lourenço, São Lourenço de Morunys, Espanha<br />
A primeira guerra santa da História<br />
Quantas atitudes de Deus no-Lo mostram como guerreiro!<br />
Ele ordenando a São Miguel Arcanjo que elimine<br />
os demônios que se revoltaram no Céu e os precipite<br />
no Inferno. Que ato supremamente majestoso! Deus,<br />
no fundo de todos os séculos, levantando-Se na sua indignação<br />
e dando a ordem a São Miguel Arcanjo para<br />
expulsar os demônios. Pode-se imaginar esta manifestação<br />
da cólera divina, do desagrado de Deus, da repulsa,<br />
da rejeição, do asco e, depois, o castigo eterno, completo:<br />
“Contra eles o meu ódio implacável. Eu os cancelarei<br />
do local glorioso, a perpétua e feliz permanência na minha<br />
presença, e os atirarei para todo o sempre numa dor<br />
sem remédio, nem diminuição, nem consolação no lugar<br />
do fogo, das imundícies, do asco, da blasfêmia, da tortura,<br />
detestados por Mim por toda a eternidade.”<br />
Imaginem a majestade dessa sentença! A beleza do<br />
triunfo de São Miguel Arcanjo e de todos os Anjos fiéis que,<br />
no Céu, resistiram à prova e, por assim dizer, desfilaram<br />
diante de Deus, recebendo – eles, os bons guerreiros que<br />
empurraram os demônios para o Inferno – o prêmio pela<br />
guerra santa, a primeira da História, que tinham travado.<br />
Que resplendores no Paraíso! Que “paradas”, que “marchas”!<br />
Se, como sabemos, os Anjos entoam um canto espiritual,<br />
o que terão sido os cânticos deles durante a guerra<br />
contra os demônios, e o que poderia ser o cântico de triunfo<br />
dos Anjos fiéis no Céu, mostrando a Deus os demônios derrotados?<br />
Ninguém pode ter ideia da beleza disto!<br />
Mas, com o favor de Nossa Senhora, nós vamos ter<br />
esta ideia. Quando sobre o mundo desolado, devastado,<br />
escangalhado, quase todos ou todos os homens mortos,<br />
a tuba do julgamento final tocar e os corpos<br />
começarem a ressuscitar, e o Verbo de Deus<br />
encarnado baixar à Terra em pompa e majestade,<br />
veremos o Criador dando o final<br />
também da grande batalha da Criação. Ele<br />
vai chamar a Si todos os eleitos que se unirão<br />
a Ele num desfile processional garboso e<br />
marcial. E vai mandar para o Inferno, para<br />
o lugar dos derrotados, os maus que foram<br />
esmagados na luta.<br />
A alma guerreira, santíssima<br />
e perfeitíssima de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
Então, nós teremos o último cântico de<br />
triunfo da Criação que vai celebrar a alegria<br />
e a majestade da vitória de Deus. Nossa<br />
Senhora vai brilhar com toda sua refulgência,<br />
Ela a Quem a Escritura compara textualmente<br />
a um exército em ordem de batalha,<br />
34
Gabriel K.<br />
classe social que seguia essa carreira era a mais alta, ou<br />
seja, a nobreza. Exatamente por causa daquele princípio<br />
enunciado por Nosso Senhor: Ninguém pode amar mais<br />
seu amigo do que dando a vida por ele (cf. Jo 15, 13). Então<br />
é aquele ato de suprema identificação com os mais<br />
nobres ideais, pelos quais alguém se oferece num holocausto<br />
cruento. Eis porque a Igreja tem canonizado homens<br />
em todos os estados de vida, desde príncipes até lixeiros,<br />
desde Papas até humildes sacristães, de todas as<br />
idades, etc., mas quando ela fala dos mártires tem um<br />
tremor na voz e um enlevo especial nos olhos. Nada mais<br />
belo do que oferecer a sua vida. São Paulo já disse: Cristo<br />
crucificado excede a tudo (1Cor 1, 23-25).<br />
O bonito é que Nosso Senhor aceita, mais do que os<br />
nossos atos, os nossos desejos. Se tivéssemos o desejo intensíssimo<br />
e cotidiano de viver e morrer numa guerra<br />
santa, ainda que não fôssemos capazes de lutar durante<br />
ela, quando morrêssemos teríamos a glória do guerreiro.<br />
Mas para isso seria preciso nós termos um espírito tal<br />
que, a qualquer momento em que a guerra santa arrebentasse,<br />
nós entrássemos para ela como Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo tomou sua Cruz: com entusiasmo, com alegria,<br />
osculando-a de satisfação.<br />
v<br />
Juízo Final - Museu Metropolitano<br />
de Arte, Nova Iorque<br />
e que sozinha esmagou todas as heresias no mundo inteiro.<br />
Nós vamos ver Nosso Senhor Jesus Cristo erguer-<br />
-Se com aquela majestade que Ele tem no Santo Sudário,<br />
no furor de sua indignação contra os maus e no esplendor<br />
de seu amor aos bons, e veremos a separação feita. O<br />
exército dos bons vai ficar para todo o sempre no Céu e<br />
o dos maus para todo o sempre no Inferno. Será o fim da<br />
batalha e a vitória permanente dos bons.<br />
Nesse momento nós teremos refulgências de Deus e<br />
veremos aquilo que poderíamos chamar a Alma guerreira,<br />
santíssima e perfeitíssima de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, chamado pela Escritura o Leão de Judá, e de<br />
Nossa Senhora, a Rainha de todos os exércitos.<br />
São Paulo diz que ele só sabia pregar a Jesus Cristo.<br />
E depois acrescentou: a Jesus Cristo crucificado (1Cor 2,<br />
2), entendendo que todas as coisas perfeitíssimas, santíssimas<br />
e insondavelmente sábias que Nosso Senhor fez<br />
em sua vida, sendo elas todas objeto de enlevo constante<br />
dos homens, entretanto como que se compendiavam<br />
no ato em que Ele deu a vida na Cruz. Quer dizer, no<br />
momento em que o homem se imola por algo, ele dá tudo<br />
quanto poderia dar. O holocausto, o sacrifício cruento<br />
contém todo o resto. É um ápice.<br />
Por causa disto, na Idade Média se entendeu que na<br />
sociedade temporal a mais alta carreira era a militar; e a<br />
(Extraído de conferência de 12/1/1973)<br />
Jesus carregando a Cruz - Basílica de<br />
Nossa Senhora do Rosário, Guatemala<br />
J. P. Braido<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
À procura do belo<br />
e do superbelo<br />
Em suas obras, Claude<br />
Lorrain compõe o belo e<br />
introduz o superbelo. Para<br />
isso, capta os “flashes” dos<br />
estados mais bonitos da<br />
natureza e os fixa na tela.<br />
Entretanto, ao pintar uma<br />
paisagem não se limita a<br />
retratá-la como ela é, mas<br />
como ele a imagina.<br />
V<br />
ão ser consideradas fotografias de quadros de<br />
um pintor de origem lorena, mas que pintou a<br />
Itália e se tornou sobretudo célebre na Inglaterra.<br />
O nome dele é francês: Claude Lorrain 1 . Os quadros<br />
correspondem ao desejo de maravilhoso que ilustrava o<br />
Ancien Régime 2 .<br />
“Flashes” dos estados mais belos da natureza<br />
Nos quadros há dois dados que nos interessam realçar.<br />
Em primeiro lugar, é o modo elaborado e cultural de<br />
apresentar a natureza, por onde ela fica vista nos seus<br />
aspectos fugidios mais belos. Ele pega por assim dizer<br />
“flashes” dos estados mais belos da natureza e os fixa na<br />
30
tela. Ademais, tem esta posição que é muito criticada pelos<br />
modernos: compor o belo. Quer dizer, ao pintar uma<br />
paisagem, não a retrata como ela é, mas como ele a imagina.<br />
Pinta, por exemplo, um golfo real, mas figura no<br />
golfo uma ilha que não existe. E na ilha, um castelo que<br />
não existe também. E isto para pôr dentro do belo o superbelo.<br />
Qual a crítica que os modernos fazem a isso? Que não<br />
é real, as coisas não se passam assim e se deve pintar a<br />
realidade. Depois eles vão pintar na tela homens monstruosos<br />
que graças a Deus não existem, mas os partidários<br />
desse tipo de arte não chamam isso de “irrealismo”,<br />
e sim de “surrealismo”. Quer dizer, para eles isso não<br />
só é a realidade, mas a super-realidade. Ora, já se pode-<br />
mQHhySZUHdWMaA (CC3.0)<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
ria impugnar o título: a super-realidade é real ou é a irrealidade?<br />
Além disso, uma coisa que é a super-realidade<br />
deveria ser algo mais belo do que a realidade, e não o<br />
monstruoso, que corresponde à sub-realidade. Há, portanto,<br />
uma inversão completa de conceitos e de valores.<br />
Parece-me que nesta época de poluição do ar, da mente,<br />
do senso estético, os quadros de Claude Lorrain apresentam<br />
qualquer coisa de muito formativo, neste sentido, com<br />
as restrições que se devem fazer às coisas do Ancien Régime.<br />
Ruínas que causam a impressão de<br />
serem feitas de pedras preciosas<br />
No primeiro quadro temos uma paisagem muito misturada:<br />
é uma espécie de meio-termo entre o campo e a cidade.<br />
The Yorck Project (CC3.0)<br />
32
Para melhor compreender a beleza desta obra de arte,<br />
é preciso ter tomado o gosto pelas ruínas e se pôr na perspectiva<br />
do belo tipicamente italiano. Alguns dos monumentos<br />
estão de tal maneira em ruínas que as pedras da<br />
parte de cima caíram, e no lugar nasceu uma vegetaçãozinha<br />
que não o enfeita nem um pouco. Em meio a tudo isso<br />
estão os camponeses se divertindo, conversando.<br />
Notem, entretanto, uma árvore de um formato até<br />
um pouco extravagante, mas com uma vegetação bonita,<br />
felpuda; ela tem um lance muito nobre e seus galhos<br />
pendem com muita dignidade e distinção. É uma árvore<br />
muito cortesã, por assim dizer.<br />
As colunas, apesar de constituírem ruínas, estão bem<br />
conservadas, e sobre elas incide uma luz muito bonita<br />
iluminando-as com distinção, de maneira a se ter quase<br />
a impressão de que são de pedra preciosa ou revestidas<br />
de alguma seda.<br />
A ruína de um monumento, com três colunas e um<br />
frontão em cima, é muito bonita também. Essas colunas<br />
são esguias, distintas, nobres. Os arcos sólidos, vigorosos,<br />
fazem pensar nos desfiles das legiões romanas vitoriosas,<br />
que vinham trazendo milhares de vencidos de<br />
guerra, acorrentados e que iam ser levados ao Capitólio<br />
para a cerimônia faustosa e terrível do triunfo romano,<br />
na qual o rei adversário seria morto. Ele vinha a pé<br />
e acorrentado como um escravo, para ser executado no<br />
Capitólio.<br />
Beleza especial em apreciar o passado<br />
Vê-se também um prédio romano abandonado, mas<br />
que conserva todas as colunas de sua fachada ainda em<br />
pé. Ao lado, um casario modesto, popular. Mais adiante,<br />
uma igreja católica em estilo românico que deve datar<br />
de antes da Idade Média, talvez um pouco depois, quiçá<br />
seja da Renascença, com uma torre, tendo em torno um<br />
convento ou um casario.<br />
Os homens daquele tempo julgavam haver uma beleza<br />
especial em apreciar o passado, tendo o curso dos séculos<br />
transcorrido em cima. De maneira que, sobre toda<br />
a grandeza e a desgraça do Império Romano, tinham decorrido<br />
séculos e séculos de abandono, de desmantelamento,<br />
deixando ver, ao mesmo tempo, a magnitude e o<br />
efêmero das coisas desta Terra.<br />
Então, as pessoas se punham a pensar, rememorando<br />
fatos, fazendo filosofia da História, sob um<br />
céu de um azul muito delicado e com umas nuvens<br />
que já podem ser chamadas de pré-românticas. Elas<br />
não obscurecem o firmamento, mas são um pouco<br />
obscuras e introduzem na paisagem qualquer coisa<br />
de melancólico.<br />
Em um dos quadros parece estar representado um<br />
personagem característico das paisagens italianas: um<br />
mendigo. Mas que mendigo saudável, inteligente! Que<br />
sabe tirar partido da despreocupação, do incerto e do<br />
aventureiro de sua vida. Dois homens do povo conversam<br />
com o mendigo, sobre chuva e bom tempo, sobre<br />
tudo e nada; é a vidoca de todos dos dias que continua<br />
aos pés das faustosas ruínas que os homens cultos admiram.<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Fascínio do desconhecido, do<br />
misterioso e do sublime<br />
Noutra pintura, Claude Lorrain representa um<br />
porto de mar sob um céu cujo colorido é parecido<br />
com o que já analisamos: um azul muito tênue com<br />
um mundo de pequenas nuvens que, nos seus pontos<br />
mais densos, tendem a ficar um pouco escuras.<br />
De maneira que se tem a bonança, mas também algo<br />
que de longe prenuncia uma tempestade, insinua<br />
uma preocupação.<br />
Ao lado vê-se um bosque exuberante, com árvores<br />
muito altas que insinuam ao espírito a ideia do frescor e<br />
da harmonia da natureza ao pé dessas árvores.<br />
Encontramos também dois prédios faustosos, ao gosto<br />
renascentista. O edifício bem junto ao cais pode ser<br />
perfeitamente uma igreja, como também um tribunal ou<br />
qualquer outra repartição pública. Ele está sobre uma<br />
pedra que o defende contra o mar.<br />
O outro edifício está sobre uma espécie de patamar<br />
de onde se erguem as colunas encimadas por um terracinho,<br />
de maneira que alguém pode sair do prédio e contemplar<br />
dois tipos de paisagens: a próxima e a remota<br />
que, por sua vez, apresentam os dois aspectos da vida de<br />
navegação os quais Claude Lorrain quis tornar presentes<br />
nesta obra.<br />
Em primeiro lugar, a caravela muito bonita. Notem<br />
a elegância das bandeirolas tremulando no topo dos<br />
mastros, no alto dos quais há uma espécie de terracinho<br />
para ficarem os vigias, e a beleza das velas enroladas<br />
num oblíquo elegante e distinto. Percebe-se a<br />
madeira faustosamente trabalhada da proa desse navio.<br />
Faz-nos reportar às viagens distantes das caravelas<br />
que iam buscar princesas no Báltico para se casarem<br />
em Nápoles, ou pegar ouro nas Américas para levar<br />
aos portos do Mar Mediterrâneo ou da Península<br />
Ibérica; enfim, caravelas que passavam por todas<br />
as aventuras, singrando todos os mares e cuja saga é<br />
lembrada pelo Sol que se perde no horizonte e cujo<br />
reflexo é mais nítido na água do que no próprio céu.<br />
Tem-se a impressão de um infinito que vai se prolongando<br />
e do qual a caravela vem trazendo todos os mistérios,<br />
todas as mercadorias, todos os estrangeiros,<br />
todas as narrações de aventura dos vários países onde<br />
ela esteve. É o fascínio do desconhecido, do misterioso<br />
e do sublime.<br />
Ao fundo há alguns navios de travessia menor, mas<br />
que também lembram as grandes navegações, de certo<br />
modo.<br />
Mais perto do porto vemos um formigar de barquinhos.<br />
É a vida comercial e social aqui representada: gente<br />
que vai pegar as riquezas das caravelas e levar para a<br />
terra, ou recolher viajantes, muitas vezes ilustres, e conduzi-los<br />
até o cais.<br />
Acaba de chegar um personagem de prol? Há um grupo<br />
de pessoas que o acompanha; alguém anda solícito,<br />
procurando ajudar. É uma cena de certa distinção. Inclusive<br />
está posto do lado de fora um tapete diante do<br />
edifício que bem pode ser um palácio.<br />
34
Veem-se pessoas que olham a cena, outras nem se importam<br />
com ela, estão pensando em coisas diversas. Há<br />
homens dentro dos barquinhos, ou porque trouxeram ou<br />
vão levar gente, ou estão descansando. Desse modo, numa<br />
mesma cena está condensada uma série de circunstâncias<br />
que, assim, raras vezes se encontram, e dão a ideia da vida,<br />
do movimento, da beleza quase pré-romântica da natureza<br />
campestre e da navegação, bem como do formigar<br />
da vida comercial e social de todos os dias. v<br />
(Extraído da conferência de 27/5/1972)<br />
1) Claude Gellée (*1600 - †1682).<br />
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Arte penetrada de<br />
senso do maravilhoso<br />
O maravilhoso plasmado nas pinturas de Claude<br />
Lorrain consiste em imaginar um mundo irreal<br />
carregado de significados que transportam o<br />
homem à contemplação das belezas eternas. A<br />
tal ponto essa arte está penetrada por um ideal<br />
que o indivíduo se sente morador do Paraíso.<br />
Antes de comentar algumas pinturas de Claude<br />
Lorrain, gostaria de dizer algo à guisa de introdução<br />
ao que vamos analisar nas obras desse pintor.<br />
Entre as belezas existentes na natureza há algumas<br />
proporcionadas com a ordem natural na qual estamos e<br />
outras tão magníficas que têm algo de desproporcionado<br />
com essa ordem. São naturais, mas maravilhosas a ponto<br />
de nos fazerem pensar num outro universo ou mundo<br />
diferente, podendo afigurar-se a nós como irreal, mas<br />
para o qual nossas almas irresistivelmente se inclinam.<br />
Belezas naturais que preparam<br />
o homem para as eternas<br />
Eu daria como exemplo alguns postais da Suíça com<br />
lagos magníficos. Nesse país, em concreto, os pores do sol,<br />
as auroras ou os meios-dias têm uma magnificência quase<br />
irreal. Se não tivéssemos a oportunidade de apalpar essas<br />
belezas com nossos sentidos, nós não as compreenderíamos<br />
bem e nem acreditaríamos na existência delas. Tudo<br />
isso enche o homem de tanto entusiasmo e o compene-<br />
Cornell University Library (CC3.0)<br />
Swiss National Library (CC3.0)<br />
Postais com paisagens da Suíça<br />
30
Fwellisch (CC3.0)<br />
Claudio Cyrne de Macedo (CC3.0)<br />
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro<br />
tra de tal forma pela impressão causada por aquela magnificência,<br />
que quase o impede de levar uma vida normal.<br />
Essa circunstância nos impele naturalmente a levantar<br />
a seguinte pergunta: por que Deus fez lugares assim?<br />
Ele criou todas as coisas para instrução da alma<br />
humana de maneira a, vendo as imagens e semelhanças<br />
do Criador, o homem procurasse se tornar semelhante<br />
a Ele e assim se preparasse para o Céu. Não há nada na<br />
Criação que não tenha sido ordenado para esse fim.<br />
Ora, qual teria sido a intenção de Deus ao criar esses<br />
lugares tão magníficos que superam a capacidade de<br />
sentir e de pensar do homem nesta vida?<br />
A resposta é evidente: Ele quis despertar em nossas<br />
almas o senso do maravilhoso que repousa no mais profundo<br />
do nosso ser, porque depois de ter pensado e cogitado<br />
em todas as belezas existentes na Terra, a alma humana<br />
fica com certa intuição e desejo de algo superior<br />
que contém uma beleza e perfeição maiores, uma verdade<br />
mais profunda e uma excelência mais magnífica.<br />
Essa percepção leva o homem a se perguntar se existe<br />
algo além desta vida ou, muito mais ainda, se há Alguém,<br />
com A maiúsculo, que personifica todas essas maravilhas<br />
postas diante dos nossos olhos.<br />
As potências da alma em busca<br />
de coisas maravilhosas<br />
Podemos ver algo disso em lugares como, por exemplo,<br />
a Baía de Guanabara. Tive uma sensação um pouco<br />
parecida na Ilha de Paquetá, onde o tranquilíssimo<br />
D. João VI, insatisfeito com a calma magnífica do Rio<br />
de Janeiro do seu tempo, ia passar os fins de semana ou<br />
uma semana inteira de repouso; não sei bem do que ele<br />
repousava, se era do susto que lhe tinha dado Napoleão,<br />
mas o bom Rei ia comer os seus frangos naquela ilha.<br />
Compreendi que ele, de fato, era um homem sutil e requintado,<br />
sentindo uma forma de sossego sorridente, inteligente;<br />
não um sossego idiota, vegetativo, mas uma<br />
tranquilidade da alma.<br />
Criando esses lugares magníficos, a Providência quis<br />
despertar em nós, mais do que o senso do maravilhoso,<br />
tudo quanto no ser humano se aviva com isso, para pôr<br />
a inteligência, a vontade e a sensibilidade humana em<br />
busca de coisas maravilhosas.<br />
Daí vem a procura do maravilhoso, por exemplo, na<br />
poesia. Tomemos Camões, que soube transmitir de modo<br />
esplêndido, em poema, a magnificência da epopeia lusitana.<br />
Se aqueles pensamentos fossem postos em prosa<br />
perderiam enormemente o maravilhoso.<br />
Na pintura, o maravilhoso exprime-se de mil modos.<br />
Um deles corresponde ao seguinte pendor da alma humana.<br />
Ao passar, embora rapidamente, por recantos ou<br />
paisagens que lhe chamam a atenção, uma pessoa teria<br />
vontade de mandar parar o veículo no qual está viajando<br />
e contemplar com mais vagar essas belezas; mas não podendo,<br />
fica propensa a imaginar como seria estar naquele<br />
lugar, fazer um piquenique, rezar ou até morar lá. Por<br />
vezes, vem ao espírito a ideia de como deve ser a mentalidade<br />
dos habitantes daquele recanto do panorama.<br />
Essa propensão leva certos artistas a pintarem paisagens<br />
que não existem, reunindo nelas maravilhas. Por<br />
exemplo, as obras de Claude Lorrain com cidades imaginárias<br />
compostas pela justaposição de elementos reais e<br />
outros muito raros ou de todo inexistentes.<br />
Pintando o maravilhoso<br />
Este pintor representa uma cidade marítima, sem ruas<br />
definidas, na qual entram dois ou três navios oriundos da<br />
América ou da Ásia, carregados de ouro, prata, pedrarias,<br />
joias, porcelanas, tapetes e especiarias, aportando junto<br />
a um cais bordejado de palácios, para descarregar suas<br />
mercadorias, porém, sem o movimento trepidante, intenso<br />
e prosaico dos portos atuais, mas com o encanto do<br />
mar e das embarcações que vêm de uma travessia quase<br />
tão arriscada, naquele tempo, como seria hoje uma viagem<br />
até a Lua. São belezas que se justapõem.<br />
Entretanto, a grande arte de Claude Lorrain está em<br />
pintar quadros nos quais imagina uma névoa dourada<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
iluminada pelo Sol, causando a impressão de uma atmosfera<br />
irreal na qual o homem leva uma vida agradável<br />
toda banhada por um ideal e onde o indivíduo se sente<br />
morador do Paraíso.<br />
Outra nota característica nas pinturas de Claude<br />
Lorrain é que não aparece nenhuma tormenta, nem sequer<br />
uma brisa. Os personagens movem-se devagar, com<br />
majestade, distinção ou simplesmente naturalidade, e as<br />
árvores estão paradas, como quem diz: “Eu atingi o ponto<br />
perfeito do meu bem-estar, e aqui o vento não me incomoda<br />
nem me chacoalha.” Dir-se-ia que a árvore sente<br />
a delícia do ar, o qual a rodeia de agrados. Ela, insensível<br />
por natureza, parece ter sensibilidade nos quadros<br />
de Lorrain.<br />
Em tudo isso vemos o homem sendo transportado para<br />
dentro do maravilhoso.<br />
GCI (CC3.0)<br />
32
Passemos agora à análise de algumas obras de Claude<br />
Lorrain.<br />
O maravilhoso nos aspectos<br />
mais comuns da paisagem<br />
O quadro apresenta uma profundidade muito grande,<br />
com uma longa perspectiva na qual apenas se vislumbram<br />
umas montanhas no fundo do horizonte. A vegetação e<br />
quase todos os pormenores sugerem uma cena comum. Por<br />
exemplo, as árvores são iguais àquelas que se encontram<br />
em qualquer parque de uma cidade. Também as pedras do<br />
chão e até a encosta com a vegetação que desce são como as<br />
de qualquer montanha. Tudo quanto há de mais comum.<br />
No topo encontra-se uma residência construída, não sem<br />
certa falta de senso prático, diretamente em cima das rochas.<br />
Um espírito moderno colocaria objeções a essa localização.<br />
Primeira objeção: por onde se chega até lá? É preciso<br />
subir de corda? Haverá alguma passagem que não se vê? Caso<br />
exista, deve ter sido necessário cortar as árvores fazendo<br />
uma escalada na pedra para abrir essa trilha. Enfim, parece<br />
que a vida fica mais dura morando lá! Pois bem, se a casa estivesse<br />
no chão não teria nada de extraordinário.<br />
Em qual aspecto o autor soube dar a impressão de<br />
maravilhoso nesse quadro, pintando cenas tão comuns<br />
como aquelas que se encontram na natureza?<br />
O maravilhoso está no céu. Não significa que o firmamento<br />
nunca tome tal coloração, mas é esse colorido magnífico<br />
incomum que lhe confere uma beleza especial. É um<br />
azul que eu chamaria de anil, um pouco esbranquiçado.<br />
Percebam que o céu não está completamente limpo, pois<br />
as nuvens estão ali presentes, embora frágeis, quase como<br />
precisando da ação do Sol para condensá-las. Esse céu<br />
tem uma claridade especial, algum tanto mais bela do que<br />
a dos mais belos dias.<br />
Lorrain soube pintar a luz incidindo sobre todos os<br />
elementos da paisagem, conferindo ao panorama uma<br />
participação nas belezas e delícias possíveis que o observador<br />
imagina no próprio firmamento. De tal maneira<br />
que quem vive nesse ambiente sente-se mais banhado<br />
por algo descido do céu, o qual domina a terra com sua<br />
forma peculiar de luz. A este título o maravilhoso se faz<br />
sentir esplendidamente nessa paisagem.<br />
Discernindo novas belezas do mundo<br />
irreal imaginado por Lorrain<br />
A presença dessa luminosidade se percebe não tanto<br />
neste ou naquele lugar, mas sutilmente por toda parte.<br />
Tem-se a impressão de que o vale inteiro está penetrado<br />
da mesma luz que ilumina a fachada da mansão e as árvores,<br />
conferindo-lhe uma participação imponderável e<br />
magnífica com todo o espaço celeste.<br />
Embora o prédio apresente uma fachada simples e comum,<br />
a luz lhe confere tal nobreza que poderíamos dizer<br />
tratar-se da mansão de uma princesa onde se passou um<br />
fato histórico famoso.<br />
Por outro lado, há zonas não iluminadas pelo Sol onde<br />
o obscuro realça a claridade, cuja beleza se percebe<br />
melhor dessa forma. O mesmo fenômeno se dá com<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
as árvores, e talvez até com mais talento. Nos pontos<br />
em que a vegetação é menos densa, a luz incide na fímbria<br />
das árvores e as pontas das folhas se tornam quase<br />
transparentes. Na parte onde a vegetação é mais compacta,<br />
o escuro realça a beleza da luz que banha o outro<br />
lado das folhas.<br />
Essa impressão produzida pela luz sobre as folhas e<br />
a fachada nota-se também nas pedras talhadas de forma<br />
irregular da encosta e do chão, quase por toda parte.<br />
Um detalhe interessante: o artista pinta a vegetação<br />
isenta da ação do vento ou de qualquer outro elemento<br />
estranho a sacudi-la ou impor-lhe uma posição que não<br />
esteja inteiramente de acordo com a sua natureza. Tem-<br />
-se assim a impressão de se estar num lugar onde a alegria<br />
consiste no repouso completo.<br />
Notem como as árvores parecem não fazer força para<br />
sustentar os próprios galhos. Estes são leves, as folhas<br />
são tão macias que nos convidam a brincar passando as<br />
mãos pelo meio delas, certos de encontrar apenas matérias<br />
suaves e agradáveis aos sentidos.<br />
Poder-se-ia perguntar qual é a razão de ser desse arco.<br />
A meu ver, tem um significado especial. Imaginem<br />
que não existisse essa mansão, mas só o arco. Não daria<br />
vontade de contemplar de cima dele tão lindo panorama?<br />
O fato de se tratar de um arco, deixando entrever<br />
por todos os lados o quanto a paisagem é bela, convida a<br />
galgá-lo e a permanecer sobre ele.<br />
Donde a mansão, que poderia chamar-se belvedere,<br />
é o lugar ideal onde uma pessoa passaria as tardes banhando-se<br />
no sol e contemplando a paisagem de dentro<br />
de um quarto decorado com os luxos opulentos do tempo<br />
de Claude Lorrain: magníficos espelhos de Veneza, tapetes<br />
do Oriente, cortinas de Lyon... É um belvedere de um<br />
mundo meio irreal. Assim, essa pintura nos convida para<br />
o maravilhoso.<br />
Tal monumento evoca convulsões, tragédias e guerras,<br />
após as quais desfilaram por ali legiões gloriosas,<br />
presididas por personagens míticos, assinalando vitórias<br />
magníficas e aclamadas por multidões que desapareceram.<br />
Com efeito, a voragem do tempo sepultou<br />
tudo isso, e não passa da recordação de um passado<br />
que, entretanto, esse arco lembra de um modo muito<br />
elegante.<br />
Paisagem que vive da contemplação<br />
do seu passado glorioso<br />
Vemos em outro cenário o que falta no anterior: um rio.<br />
Todo panorama com água possui muito mais abertura para<br />
o maravilhoso do que aquele onde ela não está presente.<br />
Como no anterior, também nesse quadro se nota o<br />
mesmo jogo entre a luz e as trevas. O Arco do Triunfo<br />
aparece na sombra, e sua antiguidade é dada a entender<br />
não só pelo estilo romano ou helenístico, mas pela vegetação<br />
que cresceu no alto do monumento, algo muito comum<br />
em construções velhas e abandonadas. Percebe-se<br />
que as intempéries e os séculos o corroeram e continuarão<br />
a fazê-lo, mas tão devagar que se tem a seguinte a<br />
impressão: enquanto o mundo existir esse arco vai estar<br />
de pé, pois ele desafia o tempo.<br />
34
O maravilhoso desse quadro não está apenas no céu, mas<br />
nessa evocação de um longo passado que dorme definitivamente<br />
o sono de suas glórias e dos dias que não mais voltarão,<br />
dando-nos a entender ser tão irracional tudo isso ter<br />
acabado, tão absurdo nada disso ter deixado qualquer traço<br />
ou vestígio na ordem do ser, que deve existir em algum lugar<br />
e de algum modo algo que, para toda a eternidade, simbolize<br />
essa vida que por ali desfilou e nessa obra de arte se afirmou.<br />
Dir-se-ia que a paisagem vive da contemplação desse passado,<br />
em cujas linhas gerais se pode conjecturar, porque essa<br />
civilização é conhecida, mas não nos dados concretos de<br />
seu passado. A recordação histórica assim imprecisa deixa<br />
caminho para a imaginação e é plasmada na arte de Claude<br />
Lorrain dentro desse ambiente do maravilhoso. v<br />
(Extraído de conferência de 11/1/1977)<br />
GCI (CC3.0)<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Requintes inéditos<br />
do maravilhoso<br />
Claude Lorrain (CC3.0)<br />
Analisando mais uma<br />
obra do famoso pintor<br />
francês Claude Lorrain,<br />
Dr. Plinio nos oferece<br />
ensinamentos sobre o<br />
atuar humano, discernindo<br />
novos e interessantes<br />
aspectos inerentes ao<br />
maravilhoso, com os quais<br />
este se requinta e eleva.<br />
Como temos visto, Claude Lorrain é o pintor de uma<br />
das formas de maravilhoso. Vamos considerar<br />
mais uma de suas obras e depois analisar a crítica<br />
feita por um comentador italiano que prefaciou um álbum<br />
com pinturas desse artista.<br />
Descrevendo o fantástico e<br />
o irreal da paisagem<br />
Percebam o fantástico e o irreal da cena. É manifestamente<br />
um porto. Observem os navios, os barquinhos lá<br />
ancorados, todo o movimento dos personagens; tudo isso<br />
corresponde a um atracadouro. O escuro da água e o<br />
modo de se moverem as ondas indicam que esse porto é<br />
cercado por um mar profundo.<br />
O cais tem junto a si construções magníficas, entre<br />
elas uma torre ainda medieval junto ao muro que separa<br />
um parque com arvoredo. Até mesmo nesse lindo palácio,<br />
onde a influência medieval ainda não é estranha, no-<br />
30
ta-se que o enquadramento do portal de entrada lembra<br />
muito uma porta com ponte levadiça dos castelos da Idade<br />
Média. Porém, a influência clássica também se manifesta<br />
nos dois jarrões que estão no alto do terraço.<br />
A parte superior do edifício é renascentista, mas de<br />
uma construção tal que quase daria a ideia de uma igreja,<br />
se o conjunto do edifício não sugerisse, pelo menos<br />
para mim, a ideia de uma residência.<br />
Mais adiante se avista outra torre, pois é natural que<br />
um porto seja fortificado. Contudo, é uma grande construção<br />
com aparência de ruína abandonada, porque as<br />
janelas parecem não ter vidros, nem venezianas, e não<br />
se percebem móveis dentro, conferindo um pouco de melancolia<br />
à impressão geral do quadro.<br />
Ao fundo, o Sol representado de duas formas curiosas.<br />
De um lado, refletido no mar tão nitidamente que dá<br />
a impressão de ser ele próprio quem brilha e espalha sua<br />
luz sobre as águas escuras. Mas de outro lado, visível e<br />
resplandecente no céu.<br />
De qualquer maneira, a grande beleza do quadro está<br />
na luz que o inunda, a qual eu não chamaria propriamente<br />
de irreal, a não ser porque muito raras vezes ela ilumina<br />
dessa forma. Mas, quando o faz, é de um modo tão esplêndido<br />
que o homem fica encantado, e sob esse aspecto,<br />
tem-se a impressão de que Lorrain exagerou o esplêndido,<br />
uma vez que, na paisagem, a iluminação está discretamente<br />
maior do que a própria luz solar, ou em certas formas<br />
desta, quando aparece na sua maior beleza.<br />
Ademais, na pintura apresenta-se a ideia de toda uma<br />
avenida de mar cercada de palácios muito próximos uns<br />
dos outros. De maneira que quase se tem a ilusão de uma<br />
rua. Esta justaposição de palácios magníficos e de naves<br />
que vêm e vão de um extremo do mundo para outro, a<br />
aventura do comércio, das navegações, das missões, tudo<br />
isso dá indícios de magnificência e esplendor na paisagem<br />
um tanto acima da realidade.<br />
Resumindo, o maravilhoso do quadro reside no fato<br />
de imaginar a composição de um porto ou edifícios desse<br />
tipo, como também, no modo pelo qual a luz do Sol banha<br />
tudo isso. Inclusive o elogio que fiz em ocasiões anteriores<br />
1 da luz pousando sobre as árvores, aqui seria especialmente<br />
merecida.<br />
de viver nesse ambiente que, ao mesmo tempo está inundado<br />
por ele, saboreia-o, mas não lhe dá uma atenção explícita.<br />
É o maravilhoso sossegado, debaixo de cujo esplendor<br />
a vidinha cotidiana se desenvolve banhada nele.<br />
Analisem todos os personagens presentes. Estão conversando<br />
no cais como os moradores das pequenas cidades<br />
do interior conversam na estação de trem, para ver quem<br />
entra ou sai; eles fazem uma rodinha. Observem a perfeita<br />
naturalidade da conversa; é gente com tempo livre e tem<br />
o que conversar; implicitamente, estão como que flutuando<br />
no éter da luminosidade, dando a seguinte impressão: todo<br />
o ritmo das pulsações e pensamentos deles, até o modo<br />
de se relacionarem entre si, é amenizado e elevado por essa<br />
atmosfera e, sobretudo, pela luz que é a alma do ambiente.<br />
Claude Lorrain (CC3.0)<br />
Sossego nobre e elevado<br />
dentro do maravilhoso<br />
Apesar de toda a inquietação que a náutica trazia consigo<br />
naquela época – era a grande aventura dos homens<br />
– Lorrain não dispensou o sossego dentro do maravilhoso,<br />
pois é uma das notas mais características nas pinturas<br />
dele. O maravilhoso em geral provoca uma nobre<br />
tensão. Aqui não. De tal maneira o homem tem o hábito<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
Nessas condições, temos Claude Lorrain como o pintor<br />
que assinala o veio de uma época inclinada ao maravilhoso<br />
por muitos meios, e ao inteiro bem-estar dentro<br />
do sossego e do prazer, mas muito nobre e elevado. Dir-<br />
-se-ia que assim se sentiria um fidalgo que pudesse dispor<br />
de um grande e belo salão no palácio de Versailles e<br />
passasse a vidinha dele tomando sua xícara de chocolate<br />
ou o seu cafezinho, inundado das grandezas definitivas,<br />
inarredáveis do Roi Soleil 2 .<br />
Esta é a forma de maravilhoso que o quadro apresenta,<br />
pois, embora contenha os defeitos e as limitações<br />
do Ancien Régime 3 , em comparação com a hediondez do<br />
mundo moderno, realmente eleva o espírito.<br />
Uma discreta melancolia inerente<br />
à grandeza do maravilhoso<br />
Agence Meurisse (CC3.0)<br />
Claude Lorrain (CC3.0)<br />
General Joffre e Marechal Foch,<br />
em 2 de abril de 1923<br />
Passarei a considerar duas doutrinas ali contidas: a<br />
do maravilhoso enquanto existente na terra e a do valor<br />
da melancolia; permitindo-nos fazer uma apreciação da<br />
mentalidade do homem moderno, pois envolve uma interessante<br />
questão de princípios, mais psicológicos do que<br />
propriamente especulativos.<br />
Analisemos essas duas doutrinas sob a seguinte indagação:<br />
existe, nesta vida, um maravilhoso autêntico do<br />
qual esteja ausente uma certa melancolia?<br />
Tomemos como exemplo um homem que deseja o êxito<br />
a cem por cento, o happy end, e outras coisas inerentes<br />
à atual sociedade desenvolvimentista. Quando, por via<br />
natural, esse homem toca no ápice do maravilhoso realizando<br />
seu ideal, eu acredito que o espírito dele pode assumir<br />
duas posturas.<br />
De um lado, ele compreende que isso é uma imagem e<br />
semelhança de Deus e, portanto, atinge um ápice de alegria.<br />
Mas, por outro aspecto, o indivíduo também percebe<br />
aquilo que São Tomás nos ensina a esse respeito: se as<br />
criaturas representam o Criador é porque de algum modo<br />
há uma analogia com Ele; mas, sobretudo, Deus não é<br />
nem pode ser como elas, pois é insondável e incomparável<br />
a tudo. De modo que, no fim, fica uma certa saudade,<br />
Luís XIV e Felipe IV na Ilha dos Faisões,<br />
em 1659 - Museu de Tessé, França<br />
32
nostalgia do que nós conhecemos. De onde todo grande<br />
prazer traz consigo uma notazinha de melancolia.<br />
Por onde se pode concluir: aquilo que não tem uma<br />
discreta nota de melancolia é meio cafajeste, porque se<br />
limita a si próprio e não é capaz de chegar à sua maior<br />
altura, não remete para o último pináculo de si mesmo.<br />
De maneira que uma discreta melancolia – não se trata<br />
de choradeira – suscitada, por exemplo, pelo efêmero<br />
que a coisa tem, é inerente à grandeza e me parece em<br />
extremo adequada a tudo a quanto se possa atribuir um<br />
mínimo de maravilhoso.<br />
Vou dar um caso concreto. O Marechal Foch 4 e o General<br />
Joffre 5 passando pelo Arco do Trinfo depois da I<br />
Guerra Mundial. A meu ver, foi o último triunfo bonito<br />
e estético que houve na História da humanidade. Os<br />
triunfos da segunda Guerra Mundial não tiveram a beleza<br />
dos da primeira.<br />
Quem visse aquele espetáculo, com a população dando<br />
vivas, e tivesse apenas a alegria do happy end, seria, a<br />
meu ver, um espírito meio “vira-lata”. O espírito verdadeiramente<br />
elevado sentiria a beleza daquilo tudo e, ademais,<br />
perceberia de modo implícito algo ainda superior a<br />
ele, que lhe diria: “Sic transit gloria mundi” – assim passa<br />
a glória do mundo. Daqui a pouco esses marechais terão<br />
passado pelo Arco e esse triunfo cessará; porém, alguma<br />
coisa ficará impregnada nesse lugar para todo o sempre.<br />
Ora, também é verdade que será uma mera recordação<br />
porque tudo é transitório. E a alma se volta para o eterno.<br />
Contudo, essa melancolia, intensamente sentida, também<br />
pode chegar a ser pungente. Mas não o é na sua primeira<br />
manifestação, porque, senão, o maravilhoso perderia<br />
o seu caráter normal de ser esplêndido.<br />
Outra questão muito bonita seria: existe maravilhoso<br />
na dor, no desastre e na catástrofe?<br />
Certa ocasião li em um autor a expressão<br />
la tour de la doleur – a torre da dor. Pode-se<br />
falar de uma dor monumental como<br />
uma torre? Portanto, de uma dor magnificamente<br />
pomposa, um palácio da dor? Há<br />
dores com uma magnificência e uma grandeza<br />
que no maravilhoso festivo não há?<br />
Este último ponto é indiscutível, porque<br />
a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
foi isso. São Paulo chegou a dizer que<br />
ele não saberia pregar a não ser Jesus<br />
Cristo crucificado (cf. 1Cor 1, 23). Deus<br />
que criou e dispôs todas as maravilhas<br />
festivas da Criação, entretanto, quis que<br />
houvesse um trágico mais grandioso do<br />
que todas essas festas: a Paixão e Morte<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso não é<br />
contestável.<br />
Jacques Laumosnier (CC3.0)<br />
Jesus crucificado (acervo particular)<br />
Crítica de um autor italiano<br />
a Claude Lorrain<br />
Por fim, consideremos a crítica feita pelo comentador<br />
italiano a Claude Lorrain.<br />
Ele diz o seguinte: Esse quadro tem, de fato, uma apresentação<br />
muito boa da luz. Mas não se pode confundir um<br />
dos componentes do quadro, que é a luz, com o todo. E se<br />
o quadro é muito forte do ponto de vista da luminosidade,<br />
significa que todos os demais elementos nos quais não<br />
há jogo de luzes são apenas comuns. Por exemplo, não se<br />
pode dizer que o prédio seja uma maravilha. Ele apenas é<br />
um casarão muito pitoresco. Mas a torre medieval é como<br />
qualquer outra, o jardim cercado pelo muro é semelhante<br />
a qualquer jardim; a forma dessas escadas ou o palácio<br />
vazado, ao fundo, todas essas coisas são muito comuns.<br />
Percebe-se que o pintor quer apresentar algo, mas nada<br />
disso é muito expressivo, somente a luz o é, e até se poderia<br />
dizer que ela “devorou” o quadro inteiro. Perde-se a<br />
noção de conjunto quando um elemento “devora” os outros,<br />
visto que o conjunto sempre vale mais do que uma<br />
Luis C.R. Abreu<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Claude Lorrain (CC3.0)<br />
das partes. Portanto, esse quadro tem menos<br />
valor pelo fato de ressaltar apenas<br />
uma das partes e não a sua totalidade.<br />
A pergunta que surge, então, é a seguinte:<br />
não será uma fraqueza de Lorrain representar<br />
as coisas de modo tão comum?<br />
Se ele fosse verdadeiramente um bom artista,<br />
seria capaz de fazer o resto também<br />
bom. Logo, Claude Lorrain é um pintor de<br />
segunda categoria.<br />
Verdadeira noção de beleza<br />
num conjunto hierárquico<br />
O primeiro princípio que propõe esse<br />
autor, e com o qual não concordo, é a<br />
noção de conjunto. É verdade que o conjunto<br />
vale mais do que as partes, mas não<br />
se pode tirar disso uma conclusão muito<br />
cartesiana, pois a beleza do todo pode ser<br />
realçada pela ação de um elemento eminente<br />
e simbólico.<br />
Eu dou um exemplo concreto. A nau<br />
que ali aparece é uma caravela e, como tal,<br />
foi retratada como sendo uma construção<br />
marítima comum, com as velas características.<br />
A embarcação, na sua totalidade,<br />
forma um conjunto. Mas, de tal maneira<br />
a nau exprime a beleza daquele todo que,<br />
sendo ela muito mais bonita do que o conjunto,<br />
absorve a expressão simbólica deste<br />
e o realça. Em síntese, ela está inserida no<br />
conjunto, não é um elemento isolado.<br />
Donde acontece que, às vezes, quando<br />
num conjunto há um elemento excelente,<br />
o todo lucra até pelo fato de os<br />
outros elementos secundários ficarem<br />
um pouco negligenciados. Ora, isto não<br />
é absolutamente uma falta de senso do<br />
conjunto, mas uma excelência deste. É<br />
aplicação do princípio monárquico de<br />
forma a apresentar o todo enquanto<br />
personificado, simbolizado por um elemento capital.<br />
De maneira que o princípio dado pelo autor italiano,<br />
de estar tudo sempre bem arranjadinho para se notar<br />
o conjunto, eu não contesto como regra geral, mas nego<br />
que não tenha suas exceções, e estas podem ser geniais.<br />
Eu acho que Lorrain abriu exatamente uma exceção na<br />
apresentação comum dos elementos, realizando de um<br />
modo especial a regra geral, e não a infringindo.<br />
Trata-se de um tal dégagé 6 , se quiserem até um négligé 7<br />
do excelente – tão seguro de si que não se apresenta re-<br />
34
Claude Lorrain (CC3.0)<br />
tesado, mas com certa bonomia – que reforça a nota fundamental.<br />
A meu ver, nessa posição manifesta-se um requinte.<br />
Encontramos um exemplo desse requinte no quadro<br />
de Claude Lorrain, o qual confere aos elementos secundários<br />
uma possibilidade de beleza que eles não teriam<br />
sem a magnificência da luz. O resto ele negligencia, para<br />
realçar a luz.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 14/1/1977)<br />
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 280, p. 33-34.<br />
2) Do francês: Rei Sol. Título dado a Luís XIV.<br />
3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
4) Ferdinand Jean Marie Foch. Marechal francês comandante-<br />
-em-Chefe das forças aliadas (*2/10/1851 - †20/3/1929).<br />
5) Joseph Jacques Césaire Joffre. General francês (*12/1/1852<br />
- †3/1/1931).<br />
6) Do francês: descontraído, informal.<br />
7) Do francês: negligenciado, descuidado.<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Hanlu Cao (CC3.0)<br />
Só a arte sacra<br />
pode ser cristã?<br />
Uma obra de arte não é<br />
cristã pelo fato de estar<br />
coberta de símbolos de<br />
nossa santa Religião,<br />
como um homem não<br />
se faz frade por vestir<br />
burel. É preciso que seja<br />
católica a alma que na<br />
obra de arte palpita, para<br />
que esta se possa dizer<br />
genuinamente cristã.<br />
32<br />
Grubernst (CC3.0)<br />
Pelas altas janelas, guarnecidas de vitrais, entra<br />
uma luz abundante, mas suave, que se reflete no<br />
soalho, no metal polido das armaduras e das panóplias,<br />
no bronze e no cristal dos imensos candelabros,<br />
e parece atingir a custo as nervuras e pinturas do teto.<br />
Recolhimento, gravidade, equilíbrio e força<br />
As colunas, fortes e delicadas, se abrem ao alto como<br />
imensas palmeiras que protegessem a sala com sua ramagem<br />
de pedra, de linhas coerentes, nítidas e suaves.<br />
A sala é fortemente impregnada de um ambiente peculiar,<br />
que convida a um repouso sem ócio nem dissipação,<br />
um repouso todo feito de recolhimento, gravidade, equilíbrio<br />
e força.
Palácio de<br />
Frederiksborg,<br />
Dinamarca<br />
GO69 (CC3.0)<br />
Castelo Lednice,<br />
República Checa<br />
Jan Helebrant (CC3.0)<br />
henrivzq (CC3.0)<br />
Castelo de Champs-sur-Marne, França<br />
Castelo de Chapultepec, México<br />
As armaduras, os veados empalhados enriquecem<br />
o ambiente com o eco das proezas praticadas na caça<br />
e na guerra. O lambri de madeira trabalhada quebra<br />
com sua delicadeza e aconchego o que a austeridade da<br />
pedra talvez tivesse de excessivo. Ao fundo, sobre uma<br />
peanha, a imagem de um Santo atrai o pensamento para<br />
o Céu.<br />
Sem dúvida, salas assim espelham uma mentalidade<br />
que poderá agradar a uns, desagradar quiçá a outros,<br />
mas que de um modo ou de outro soube dispor admiravelmente<br />
das cores e das formas para se exprimir. São<br />
salas de uso civil quotidiano. Apresentam o ambiente em<br />
que o espírito de nossos maiores se sentia à vontade para<br />
viver a vida corrente.<br />
Castelo Žleby, República Checa<br />
Herbert Frank (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Expressão arquetípica da alma cristã<br />
A Sainte-Chapelle de Paris, construída no século XIII<br />
por São Luís IX, Rei de França, para conter alguns espinhos<br />
da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo, exprime a<br />
mesma mentalidade, não enquanto entregue à vida diária,<br />
mas enquanto voltada para a prece.<br />
A nota de delicadeza atinge o sublime. Nem por isto a<br />
força, o equilíbrio, a gravidade e o recolhimento perdem<br />
algo da sua plenitude. Eclesiásticos, artistas, peregrinos<br />
de todos os séculos têm visto na Sainte-Chapelle, no ambiente<br />
que nela palpita, na mentalidade expressa em suas<br />
linhas, suas cores, suas formas, sua configuração geral,<br />
a expressão arquetípica da alma cristã.<br />
Cristã é a sala como cristã é a capela. E isto não só<br />
pelo efeito das imagens e símbolos religiosos que ali se<br />
encontram, como pelo ambiente que ali se respira, pela<br />
mentalidade que fica subjacente a este ambiente.<br />
De onde se chega a uma noção mais ampla. Uma obra<br />
de arte não é cristã pelo simples fato de estar coberta de<br />
símbolos de nossa santa Religião, como um homem não<br />
se faz frade pelo simples fato de vestir burel.<br />
É preciso que seja católica a alma que na obra de arte<br />
palpita, para que esta se possa dizer genuinamente cristã.<br />
E o ambiente cristão não é susceptível de impregnar<br />
apenas um edifício destinado ao culto, mas qualquer local<br />
que tenha em sua configuração a marca inconfundível<br />
com que a alma cristã exprime tudo quanto faz. v<br />
Gabriel K.<br />
(Extraído de Catolicismo n. 24, dezembro de 1952)<br />
Gabriel K.<br />
Flávio Lourenço<br />
34<br />
São Luís IX
Pedro Morais<br />
Gabriel K.<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Dignidade, distinção e<br />
disposição para a luta<br />
Profundamente encantado, Dr. Plinio tece belas considerações<br />
a respeito do espírito medieval impregnado nas muralhas de<br />
Ávila, descrevendo seus múltiplos aspectos bélicos e artísticos,<br />
quase como que discernindo a alma dessa histórica cidade.<br />
Á<br />
vila, na Espanha, é a cidade onde nasceu a<br />
grande Santa Teresa de Jesus. Ali ela fundou o<br />
seu principal convento e nele está sepultada.<br />
Síntese celeste entre a guerra e a paz<br />
Vejam a maravilha de uma cidade pequena dominada<br />
por uma imponente construção; poderá ser uma fortaleza,<br />
uma igreja ou um mosteiro. É muito agradável ver o<br />
contraste entre o casario que dorme, lembrando uma vida<br />
calma, tranquila, pacata, séria, sem as excitações da<br />
vida contemporânea, mas, ao mesmo tempo, cheia de bonomia,<br />
protegida por uma muralha magnificamente iluminada,<br />
onde a beleza do gótico e do medieval se nota<br />
por inteiro.<br />
A iluminação faz sentir muito a força da muralha e<br />
qualquer coisa de épico, de heroico que há dentro disso.<br />
Choniron (CC3.0)<br />
Gabriel K.<br />
30
Flávio Lourenço<br />
Nós imaginamos de bom grado essa muralha guarnecida<br />
por guerreiros com couraças e elmos, com estandartes<br />
e instrumentos musicais, postados ali para homenagear<br />
algum personagem ilustre ou para receber na ponta<br />
da lança os adversários que pretendam tomar Ávila. Essas<br />
muralhas falam da beleza, firmeza de alma, coerência,<br />
seriedade e sacralidade. Tudo isso está ali representado<br />
de um modo magnífico. Em suma, é a Idade Média.<br />
Alguém perguntará: “Mas por que há tanta harmonia<br />
nisso?” Porque ali se encontram a guerra e o direito, ou<br />
seja, a legítima defesa de uma população que na guerra<br />
é protegida, pois suas muralhas a amparam, e por isso,<br />
pode dormir tranquila. A muralha assegura o sono, como<br />
o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É algo<br />
esplendoroso!<br />
Alguém poderá questionar: “Está bem, Dr. Plinio,<br />
mas essa fotografia apresenta uma realidade ou ela é um<br />
pouco à Claude Lorrain?”<br />
É preciso notar que essa fortificação foi construída<br />
com a preocupação exclusiva da estratégia. A distância<br />
entre os muros não visa apenas a beleza, mas permitir<br />
que o adversário seja atingido por três lados quando<br />
queira atacar o intervalo entre dois torreões.<br />
A torre é muito mais forte do que o muro e se defende<br />
por si mesma. Seu feitio redondo contribui para dispersar<br />
o adversário. O muro, que é mais fraco, fica defendido<br />
pelas duas torres. As diferentes distâncias e alturas<br />
das muralhas são calculadas para opor resistência<br />
aos projéteis lançados. Portanto, tudo planejado de modo<br />
estrito, de acordo com o necessário. Tem-se a impres-<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
são de que cada torre é uma garra que segura o monte e<br />
que domina a terra.<br />
Entretanto, essas muralhas, que abrangem o povoado<br />
como uma cintura, têm uma inegável beleza. O que<br />
há nisso, então, de ideal? É estritamente real, mas tem<br />
qualquer coisa de celeste. Há algo nessa síntese entre a<br />
guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha,<br />
que nos deixa maravilhados. É a Idade Média em todo o<br />
seu esplendor.<br />
Profundo senso de defesa<br />
Notem a solidez dessa porta de Ávila! Como é robusta<br />
e como a entrada estava bem protegida! Havia duas torres<br />
que guarneciam a passagem. Quem conseguisse entrar<br />
debaixo de uma chuva de pedras e azeite fervendo,<br />
Elena F D (CC3.0)<br />
M.Peinado (CC3.0)<br />
32
Flávio Lourenço<br />
esbarraria com a porta interna. E ali já havia outro passadiço<br />
para jogar flechas e pedras sobre quem atravessava.<br />
Ademais, a certa altura, havia também um patamar<br />
de onde, quando o adversário passava, descia uma<br />
grade e ele ficava encurralado, impossibilitando-o de<br />
voltar para trás. E aí levava uma pancadaria grossa.<br />
Nesses aspectos se traduz o senso de defesa que eles possuíam.<br />
Tudo tático, entretanto, que maravilha! Quando o<br />
defensor da cidade jogava uma flecha da parte superior, escondia-se<br />
atrás de uma dessas ameias para não ser atingido<br />
pelo invasor que respondia de baixo com outra flecha.<br />
Ao perceber que o de baixo estava desprotegido, lá vinha<br />
outra flechada de cima. Nas torres antigas havia seteiras<br />
por onde também podiam jogar projéteis sobre o agressor.<br />
De maneira que era árduo agredir uma cidade assim.<br />
Em outra fotografia vê-se uma bonita vegetação, o chão<br />
está bem cuidado, o canteiro realça a beleza da muralha,<br />
e há até um pequeno monumento acrescentado no século<br />
passado ou neste século. Não podia faltar o poste de<br />
iluminação pública. Mas como ele é bonitinho em comparação<br />
com esses pontos “dinossáuricos” que estão sendo<br />
instalados hoje em dia com luz de mercúrio. Ali não. Como<br />
é bem proporcionado; é quase um escrínio dentro do<br />
qual ainda se encontra, talvez, iluminação a gás.<br />
Há também um edifício que mais parece uma fortificação<br />
central do que uma igreja, com as suas torres pontudas,<br />
e o alto das torres formando uma massa de defesa.<br />
Quando essas torres e muralhas eram forçadas, toda<br />
a população se aninhava ali, e do outro lado continuava<br />
a batalha à espera dos aliados que eram chamados<br />
Flávio Aliança<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
por meio dos pombos correios para correrem em auxílio<br />
dos sitiados.<br />
Vê-se em uma das fotografias um monumento do tempo<br />
dos romanos, ainda no estilo clássico, que foi deixado<br />
lá e tem muita elegância e leveza. Devia ser provavelmente<br />
um templo pagão. Onde outrora houve um altar<br />
pagão, hoje se encontra um altar erguido em honra<br />
da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Magnífica<br />
afirmação do triunfo da Cruz sobre o paganismo. Os<br />
antigos sustentavam que o paganismo nunca poderia ser<br />
destruído. Pois bem, sua carcaça serve hoje para realçar<br />
o esplendor da Cruz.<br />
Contradição entre o antigo e o moderno<br />
Em Ávila encontra-se a Basílica de São Vicente, cuja<br />
arquitetura remonta ao estilo românico. Nota-se nos arcos<br />
das janelas algo já de ogival e, portanto, gótico, embora<br />
o acabado do teto não o seja. É um estilo de transição,<br />
muito bonito e variado. Distinguem-se muito bem as<br />
três partes do edifício.<br />
A iluminação também está muito bem feita. Quem a<br />
concebeu teve a boa ideia de iluminar o interior da galeria,<br />
causando no espectador uma espécie de atração e<br />
dando-lhe vontade de entrar.<br />
Gabriel K.<br />
Por outro lado, os automóveis são como trambolhos<br />
que enfeiam a praça, deixando o moderno completamente<br />
sem face diante do antigo. Quando se justapõem elementos<br />
antigos, por mais distantes que sejam as épocas<br />
a que pertencem, eles não entram em contradição. É o<br />
caso, por exemplo, das casas que circundam a basílica.<br />
Parecem ser de uma idade indefinida. São, por certo, velhas,<br />
e chegam a atingir uma idade na qual não se sabe<br />
se tiveram juventude. Estão entre o provisório e a eternidade.<br />
Entretanto, a contradição entre a praça e os automóveis<br />
é aberrante. Já não causaria estranheza imaginar<br />
ali carros puxados a cavalo, ainda que fossem do século<br />
passado. É a contradição do moderno com todo o passado.<br />
Gabriel K.<br />
34
Pedro Henrique Ponchio (CC3.0)<br />
Gabriel K.<br />
Aspectos vários do ambiente<br />
e das construções<br />
Uma das fotografias nos mostra uma ponte sobre<br />
um rio. Não se trata dessas pontes atuais feitas<br />
de concreto e asfalto, fininhas e suportando dinossauros.<br />
É uma ponte que transmite confiança,<br />
com pilastras bonitas e robustas fincadas no fundo<br />
do rio; arcos harmônicos feitos com uma pedraria<br />
nobre, sólida e leal. Tudo isso sustenta e dá<br />
forma à ponte.<br />
Gabriel K.<br />
No interior da cidade vê-se uma praça pública com um<br />
jardinzinho provincial, ingênuo, bonitinho; até parece ter sido<br />
feita para crianças brincarem, senhoras idosas fazerem<br />
tricô, homens aposentados lerem o jornal e comentarem as<br />
notícias do dia, mais as de Ávila do que as do mundo.<br />
O prédio da Prefeitura é muito engraçadinho e proporcionado.<br />
É um encanto o sino usado para dar os avisos<br />
municipais. Trata-se de um palacinho com janelas muito<br />
dignas, muito compostas flanqueando por duas torres.<br />
Contraste harmônico entre<br />
austeridade e riqueza<br />
A fachada principal do convento de Santa Teresa é<br />
uma verdadeira beleza! Tem uma característica muito<br />
frequente em edifícios espanhóis e que eu acho linda:<br />
as laterais bem simples, enquanto a parte central muito<br />
rica. Esse contraste entre a austeridade e a riqueza dá<br />
uma nobreza excepcional.<br />
O corpo central se compõe de uma cruz no topo de um<br />
triângulo, no meio do qual há uma esfera. Duas janelas ladeiam<br />
um brasão, abaixo do qual há uma grande janela<br />
seguida da imagem de Santa Teresa, ambas rodeadas por<br />
brasões. Por fim, as portas da igreja. Tudo isso forma uma<br />
linha central muito rica, enquanto as duas laterais são menos<br />
ricas, mas constituem um todo sólido, sério e solene.<br />
Dignidade, distinção e disposição para a luta. Assim<br />
como as muralhas, também a igreja e as residências têm<br />
qualquer coisa de guerreiro, é admirável! v<br />
(Extraído de conferência de 27/5/1972)<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Mateus S.<br />
Aliança divina entre<br />
o prático e o belo<br />
Na Terra, o homem não vive só para gozar, mas, sobretudo, para<br />
ser herói e ter uma alma capaz de grandes arrojos. Para isso a<br />
Providência aliou o prático ao belo na Criação, e assim supriu<br />
as necessidades corporais e espirituais do homem, a fim de que<br />
ele pudesse estar sempre convidado a atingir o Paraíso Celeste.<br />
Em meados do século XX, a ideia de arte que entrava<br />
na arquitetura conjugava alguns elementos:<br />
o máximo de uniformidade e simplicidade,<br />
com cores inexpressivas, visando principalmente o aspecto<br />
funcional, tetos baixos, linhas retas, preponderando<br />
a figura geométrica do quadrado.<br />
Decorrem daí dois movimentos, duas tendências: o<br />
prático, o funcional, o simples e o econômico, contra o<br />
artístico, o elegante e o leve. O prático achata. O elegante<br />
eleva.<br />
O prático para o corpo e o belo para a alma<br />
Ora, o conflito dessas tendências, que relação tem<br />
com a doutrina da Igreja e com a luta entre a Revolução<br />
e a Contra-Revolução? A tese a desenvolver é: não há um<br />
conflito verdadeiro entre o prático e o belo, mas é algo<br />
criado pela Revolução para produzir no homem um efeito<br />
que daqui a pouco explicarei. Na realidade, esse conflito<br />
é falso e deixa o homem desnorteado, pois ele precisa<br />
de coisas práticas para viver. Ninguém pode viver<br />
30
Hugo Naves<br />
Luis Samuel<br />
Tomas T.<br />
J.P. ramos<br />
num mundo só de beleza, respirando apenas arte e poesia.<br />
Quando Nosso Senhor disse “Não só de pão vive o homem”<br />
(Mt 4, 4), Ele afirmou de modo implícito ser o pão<br />
também indispensável. E a experiência de todos os dias<br />
o torna evidente. O econômico, o viável, o exequível, o<br />
prático, portanto, corresponde a uma necessidade imperativa;<br />
o útil, inclusive, é um dos valores da ordem do<br />
universo.<br />
O princípio, então, é o seguinte: o homem precisa do<br />
prático para o corpo, mas precisa do belo para a alma,<br />
pois ela não come pão nem respira oxigênio. O ser humano<br />
não é apenas, como se costuma dizer, um conjunto<br />
de alma e corpo, como se fossem dois valores de igual<br />
alcance, justapostos na constituição de um mesmo indivíduo.<br />
O elemento principal do homem é a alma e o corpo<br />
existe para servi-la. A alma humana deseja a verdade<br />
e a beleza, porque foi criada à imagem e semelhança<br />
de Deus, Ele é a Verdade e a Beleza infinitas. Por isso,<br />
o Criador encheu sua Obra destes dois predicados para<br />
que a alma humana, amando na Terra esses dois atribu-<br />
tos, se tornasse, ela mesma, autora de pensamentos verdadeiros<br />
e de realizações belas…<br />
Duas descendências opostas<br />
do espírito humano<br />
Eu chamo as obras do engenho humano de “netas de<br />
Deus”, porque a alma humana é filha, mas o que ela engendra<br />
pode ser considerado como um neto do Criador.<br />
O homem, engendrando as “netas” de Deus, as verdadeiras<br />
obras de arte, prepara-se para o momento de comparecer<br />
diante d’Ele, a Eterna Verdade e a Eterna Beleza;<br />
e, voando de entusiasmo em relação a Ele, o espírito humano<br />
quase poderia compor a seguinte oração:<br />
Meu Deus, durante minha vida inteira procurei a beleza<br />
e a verdade, sabendo que só as encontraria em Vós,<br />
pois só contemplando-vos face a face as poderia conhecer!<br />
Entretanto, posso afirmar: encontrei-as na Santa<br />
Igreja Católica Apostólica Romana! Mas, por santa e<br />
bela que fosse a vossa Igreja, vossa Esposa, Vós éreis, ó<br />
Senhor, não apenas o Deus da verdade e da beleza, mas<br />
31
Gabriel K.<br />
Gabriel K.<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
Tomas T.<br />
Luis Samuel<br />
éreis tudo isso em essência, em grau inimaginável e insondável.<br />
Minha alma agora vos deseja encontrar, Justo<br />
Juiz, Vós sois a minha recompensa demasiadamente<br />
grande!<br />
A Revolução quer eliminar isso da vida, pondo-nos a<br />
alternativa:<br />
— Escolhei: O prático ou a beleza; em matéria de verdade<br />
fique apenas a pequena verdade terra-a-terra das<br />
ciências úteis. O resto é velharia.<br />
A isso nós podemos responder:<br />
— Não! O resto é tradição, é eternidade!<br />
Explicarei agora o prático e o verdadeiro na obra de<br />
Deus, para vermos depois como a Revolução a desfigura,<br />
engendrando realizações netas do demônio. Porque se é<br />
filho do demônio todo aquele que faz a obra da Revolução,<br />
aquilo engendrado por ele é neto do demônio. Veremos,<br />
portanto, duas descendências: Aos pés da Virgem,<br />
os filhos d’Ela; e as obras da serpente. Contemplaremos<br />
o sorriso de Deus, e a maldição de Deus.<br />
Um reflexo do prático e belo<br />
plasmado por Deus na Criação<br />
Vemos em uma das ilustrações um lindo espetáculo<br />
da natureza, diretamente criado por Deus: o litoral, o<br />
mar. Essa massa líquida enorme se move bem próxima à<br />
praia umedecendo a areia, mas não alcança a areia mais<br />
distante. Algumas ondas parecem dar a impressão de serem<br />
enormes, trazendo um vagalhão colossal, mas são<br />
pequenas. Elas são de uma tal beleza, repetem em ponto<br />
pequeno, gracioso e encantador, toda a majestade e toda<br />
a grandeza das coisas enormes.<br />
Se nós imaginássemos um homem pequenininho colocado<br />
em presença dessas ondas, seria uma tragédia.<br />
Mas que linda tragédia enfrentar uma espuma tão bela,<br />
tão banhada pelo Sol, e vista nas culminâncias, quase se<br />
diria ser uma espuma de luz. Por detrás, a massa d’água<br />
parece mais um tecido, um cetim maravilhoso, com movimentos<br />
diversos, plácida no fundo, aproxima-se mais<br />
movediça e cheia de Sol. No raso fica um pouco agitada,<br />
para morrer de modo manso no contato com a terra. Tudo<br />
isso é lindo e tão artístico! Bem poderíamos imaginar,<br />
do fundo daquele Sol invisível e daquele litoral, uma estrada<br />
de luz, e Nossa Senhora vindo, caminhando sobre<br />
as águas nessa estrada de luz. Que maravilha!<br />
Contemplem esse dourado. Nosso Senhor diz no<br />
Evangelho: Nem Salomão, com toda a sua glória, vestiu-se<br />
como os lírios do campo (cf. Mt 6, 28-29). Eu lhes<br />
pergunto: Que potentado, em toda a sua glória, vestiu-se<br />
com um tecido parecido à “seda” desse mar?<br />
Pois bem, esse é o mar profundamente funcional, sem<br />
cujo movimento e influência no equilíbrio do universo,<br />
32
João C. V. Villa<br />
todo o desenvolvimento da Terra seria impossível; ele<br />
é um viveiro enorme de uma quantidade incontável de<br />
bens preciosos para o homem, desde peixes úteis para<br />
a alimentação humana, até o tão precioso petróleo, que<br />
a humanidade começa a adorar… Tudo se encontra no<br />
mar, e se encontra em tal quantidade, que alguns técnicos<br />
da UNESCO chegaram a afirmar que as riquezas<br />
havidas na terra são menores do que as existentes para o<br />
homem no mar. Vejam como tudo isso é belo, e ao mesmo<br />
tempo prático. Essa é a sabedoria de Deus!<br />
Não há dúvida: a água é uma das mais belas criaturas<br />
de Deus! É bela em todos os seus aspectos, inclusive<br />
quando espumante, dir-se-ia que atingiu o auge de sua<br />
beleza; é maravilhosa! Também é bela quando a vemos<br />
plácida, quase parada, esgueirando-se num longo serpentear,<br />
refletindo o céu de um modo tão admirável, parecendo<br />
mais bonito visto dentro d’água. É uma verdadeira<br />
beleza!<br />
Quanto capricho e fantasia nessa linha que nenhum<br />
dedo humano traçou! Que utilidade enorme! Toda a vegetação<br />
da paisagem, brilhando e vicejando à luz do Sol,<br />
existe por causa da água. Imaginem que essa água não<br />
existisse ou não chovesse nessas redondezas, com certeza<br />
teríamos o deserto do Saara. A alegria, a fecundidade<br />
e a beleza da terra vêm do contato com a água. Água plácida<br />
e bela, mais parece uma laje de pedra preciosa feita<br />
para um rei ou para uma princesa caminhar. Água prática<br />
e útil, que maravilha de Deus!<br />
Bens do espírito aliados aos bens do corpo<br />
As obras de Deus são muito variadas. Às vezes elas<br />
têm um ímpeto extraordinário como o trovão, ou uma<br />
avalanche caindo, ou até as ondas do mar num maremoto.<br />
Outras vezes elas são tranquilas e plácidas. Nessa<br />
paisagem, por exemplo, há um rio. Ele não tem nenhuma<br />
pressa de chegar até a embocadura, vai escorrendo tranquilamente,<br />
quase que brincando com a terra. Ele tende<br />
para um lado, mas a terra lhe impõe obstáculo, então<br />
sorri e ladeia sem pressa, e continua para o outro lado.<br />
Há a imensa mata verde atrapalhando o curso do rio...<br />
Que bonita península!<br />
Como seria interessante imaginar se aqui, junto a<br />
esse pequeno bosque refrigerante, houvesse uma casa<br />
agradável, toda cercada de água e de terra fecunda, num<br />
ambiente prático feito por Deus para o homem. Como<br />
seria bom morar ali! E não perto de uma rodoviária feita<br />
pelos homens. Quanta beleza Deus quis que tivessem as<br />
coisas práticas. Como o corpo é bem atendido nesse lugar!<br />
É possível que nesse rio haja peixes.<br />
Essa terra dá tudo. É terra do Brasil, da qual disse Pero<br />
Vaz de Caminha, escrevendo ao rei D. Manuel, na primeira<br />
reportagem feita sobre o Brasil: “Essa terra, senhor,<br />
é dadivosa e boa; e nela, em se plantando, tudo dá”.<br />
Aqui está a terra dadivosa e boa, a água formosa e o<br />
suave movimento de colinas, feitos para o homem sorrir<br />
um pouquinho. Ali desponta uma planta que retém<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
os raios do Sol e parece feita de luz, para os homens pensarem<br />
como o este astro é belo. As nuvens se miram sobre<br />
a superfície tranquila da água. Dir-se-ia que elas se<br />
espantam com sua própria formosura refletida na água.<br />
Bens do espírito ao lado dos bens do corpo. Como a<br />
Providência soube aliar o prático ao belo, de tal maneira<br />
que a primeira coisa notada pelo o homem é o belo e sorri<br />
encantado. E tudo isso nós temos nesta Terra de exílio.<br />
Imaginem o que seria o Paraíso Terrestre. Imaginem, sobretudo,<br />
como será esse lugar incomparável, o Paraíso<br />
Celeste!<br />
Ambiente que convida a alma<br />
para a contemplação<br />
Nessa fotografia a natureza é europeia e, portanto,<br />
bem diversa da nossa. Encontramos no alto desse monte<br />
uma pirâmide, não feita por algum faraó, mas feita<br />
por gigantescos movimentos da crosta terrestre, em épocas<br />
incalculáveis. Vejam a beleza do jogo de luzes nesse<br />
panorama! Aquela luz prateada, discreta, se concentra<br />
na encosta gelada desse pico de morro, parecendo iluminar<br />
toda a parte nevada. Depois, um verde denso e profundo<br />
desemboca num abismo escuro. Não. A luz desce e<br />
é condensada por essa névoa ligeira refletida em vários<br />
pontos, e traz para junto do homem todos os esplendores<br />
desse pico inacessível.<br />
Novamente aparece a água. Desta vez corre compacta,<br />
caudalosa, serena, frígida, quase tanto quanto o pico<br />
desse morro. Todo o panorama é feito de alturas. As próprias<br />
árvores parecem píncaros vegetais tendentes a subir<br />
e a se comparar com o píncaro mineral. Elas são graciosas<br />
e leves para compensar o maciço da montanha.<br />
Porém, veio o frio e a árvore perdeu suas folhas, que aos<br />
poucos começam a renascer. A árvore demonstra aí toda<br />
sua beleza e delicadeza extrema, mas também força,<br />
luz brilhante e radiosa; obscuridade, ambas convidam<br />
à contemplação recolhida e séria. Águas que indicam o<br />
passar contínuo de todas as coisas terrenas. É a frase da<br />
Escritura: Sic transit gloria mundi! 1<br />
As grandes luzes estão nos píncaros da fé<br />
As grandezas desta Terra escoam como a água, mas<br />
só Deus é eterno. Deus está representado naquele monte,<br />
que nunca muda, é sempre o mesmo. O rio da História<br />
passa, os homens passam. Deus, no mais alto de sua<br />
glória e de sua luz, continua intacto. É uma verdadeira<br />
lição de religião, de harmonia de virtudes: delicadeza<br />
e força, pureza, recolhimento, esplendor,<br />
sabedoria, tudo reunido<br />
nesses ambientes. Habitável para<br />
o homem; deleitável. Não há quem<br />
não gostaria de morar lá perto<br />
num chalé bem agasalhado, vendo<br />
essa natureza frígida, mas saudável,<br />
e se nutrindo dos seus frutos e<br />
criações. Prático e belo!<br />
Ora, diante desses grandes panoramas<br />
o homem acaba por ser<br />
desafiado: “Você tem coragem de<br />
subir?” Veja as pedras escorregadias!<br />
Que caminhos resvaladios e<br />
Viccente T. Marques<br />
João C. V. Villa<br />
João C. V. Villa<br />
34
Rodrigo C. B.<br />
Marcus Ramos / Viccente T. Marques<br />
difíceis! O desafio está na atração.<br />
Não há quem não sinta vontade<br />
de chegar até o alto, de se banhar<br />
nessa luz e ficar imerso nela.<br />
Quanta energia é preciso!<br />
Grande lição moral: realmente,<br />
as grandes luzes estão nos píncaros<br />
da virtude, da fé e da sabedoria.<br />
Mas é preciso força para<br />
galgar esses píncaros. Diz Nosso<br />
Senhor no Evangelho: “O Reino<br />
dos Céus é arrebatado à força e<br />
são os violentos que o conquistam”<br />
(Mt 11, 12). Aqui é o alto desse panorama. Ele<br />
convida os violentos às grandes ascensões, aos grandes<br />
feitos. Na Terra, o homem não vive só para gozar.<br />
Ele vive para ser herói, para ter uma alma capaz de<br />
grandes coisas.<br />
De outro lado, quanta coisa prática tem aí! Alguém<br />
me dirá:<br />
— Não vejo. Nessas plantinhas que talvez um gado<br />
coma? O que há de prático em tudo isso?<br />
Imaginem a Terra sem montes, é evidente que todo o<br />
seu equilíbrio se prejudicaria. Essas montanhas enormes,<br />
são colunas do equilíbrio terrestre.<br />
O que dizer? Parece um conto de fadas como o da<br />
“Alice no país das maravilhas”. Nós achamos tão apetecível<br />
essa neve, dá vontade de pegar uma colher e comê-la.<br />
Tão simpático esse caminho, pensamos num trenó<br />
e numas renas para correr por ele velozmente. Mas,<br />
depois disso, quem não teria a tristeza de não poder chegar<br />
até um píncaro desses? Esse, um píncaro acima de<br />
muitos outros que já foram atingidos por ascensões penosas,<br />
e que convida a outras ainda mais arriscadas. E<br />
os montes, postos uns em cima dos outros, banham o<br />
azul profundo que nos fala no céu de todos os ideais.<br />
Há um trecho da Escritura, aplicado a Nossa Senhora,<br />
que diz “Mons domus Domini in vertice montium, et elevabitur<br />
super colles” (Is 2, 2) – a montanha da casa do Senhor<br />
será colocada no cume das montanhas e se elevará<br />
sobre as colinas. Ali está Nossa Senhora: mais virginal,<br />
mais nívea, mais pura do que tudo o que se possa imaginar.<br />
Ali estão os outros Santos da Igreja Católica: alvos,<br />
brilhantes, altos, mas nenhum deles chega até Maria<br />
Santíssima. Por cima d’Ela, apenas está Deus, representado<br />
por esse céu de anil criado por Ele mesmo, para<br />
nos dizer que está por detrás e só na outra vida O atingiremos.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 10/2/1974)<br />
1) Do latim: Assim passa a glória do mundo.<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Pedro Morais<br />
Beleza e praticidade<br />
que conduzem a Deus<br />
Sainte-Chapelle, Paris<br />
O entrelaçamento do prático com o belo, tão característico<br />
da obra de Deus, não está presente na arte moderna. A alma<br />
católica, entretanto, soube unir essas duas prerrogativas<br />
até mesmo na arquitetura, e, sem deixar de servir ao corpo,<br />
procurou sobretudo encantar a alma e elevá-la até Deus.<br />
Ao nos depararmos com um conjunto residencial<br />
moderno, poderíamos imaginar ser uma grande<br />
fábrica ou cadeia, enfim, qualquer coisa enorme,<br />
situada em Oslo, São Paulo ou em outro lugar. Ora, tal<br />
construção tem alguma beleza? Ela nos eleva?<br />
O espírito da Revolução e a<br />
prevalência da matéria<br />
Absolutamente não. Só vemos uma série de quadrados,<br />
com umas pequenas janelinhas à maneira de alvéolos,<br />
onde habitam umas “abelhas” humanas. Cada homenzinho,<br />
cada família ocupa um, dois ou três buraquinhos<br />
desses e se perde nessa imensidade. O corpo talvez<br />
esteja bem servido ali, mas a alma humana fica opres-<br />
sa. É o espírito moderno, o espírito da Revolução onde<br />
prevalece a matéria. Ali a alma não se prepara para ir<br />
ao Céu, porque no Paraíso Celeste não há nada parecido<br />
com essa feiura, nem com essa monotonia. É a idolatria<br />
dos quadradinhos, postos uns sobre os outros.<br />
Em determinados edifícios não se mora, trabalha-se.<br />
Se houvesse cozinha, até seria habitável, pois imagino<br />
que um quadrado desses dá para qualquer coisa. Eu não<br />
entendo desse tipo de engenharia, nem quero entender.<br />
Entre ela e eu há uma incompatibilidade completa, radical.<br />
Um observador dirá: “Dr. Plinio, não é bonito o Sol<br />
que reflete pelas janelas?”<br />
Eu diria: “O arquiteto não fez o Sol, mas sim as janelas,<br />
e estas, quem ousará achar bonitas? Basta abrir<br />
28
uma para ficar um buraco. É um<br />
conjunto de vidros e de buracos,<br />
cujo interior está cheio de gente<br />
trabalhando até arrebentar. Tudo<br />
isso é muito prático para o corpo,<br />
mas para a alma, zero.”<br />
Alguém poderia objetar: “Mas,<br />
Dr. Plinio, não são quadrados de<br />
tamanhos iguais. Não há um pouco<br />
de harmonia dentro disso?” Eu<br />
não sei se o engenheiro pensou<br />
nisso. Estou me esforçando para<br />
ser equânime, mas não encontro<br />
uma resposta positiva.<br />
Ora, por que esse teto é inclinado?<br />
“É para a chuva escorrer”<br />
Então, por que esse outro é chato?<br />
É para a chuva não escorrer?<br />
São mistérios que eu não chego a entender.<br />
Em todo caso, para nos divertir um pouco, há aqui<br />
outro conjunto residencial ou de escritórios, com janelinhas,<br />
buracos e quadrados. Olhem para esse teto. Alguém<br />
dirá: “Maravilhoso! O senhor há de reconhecer<br />
que essas riscas de luz são bonitas.”<br />
Eu digo: “É verdade. A luz é bonita até sobre uma superfície<br />
moderna, pois não foi dado ao homem fazer com<br />
que a luz seja feia. A feiura é das trevas.”<br />
O que são esses “bengalões”? São projetos de muletas<br />
para imensos aleijados? Não, são conjuntos residenciais.<br />
Aplicando a vista, podemos perceber os quadradinhos.<br />
O movimento ondulado dessa rampa, é bonito? Um<br />
pouquinho é. Entrou um pouquinho de beleza dentro<br />
disso. Porém, pensem no artificial de tudo isso. Aliás,<br />
não é possível que a sensação frígida de artificialidade<br />
metálica escape à atenção.<br />
Oslo, Noruega<br />
Hostilidade entre a arte moderna e a beleza<br />
Há uma grande hostilidade contra a beleza na arte e<br />
arquitetura modernas.<br />
Vendo determinados prédios temos uma sensação de<br />
interrupção arbitrária e estúpida, dando-nos a impressão<br />
de um queijo enorme cortado, com algumas fatias<br />
tiradas, restando outras. Qual a razão dessas interrupções<br />
repentinas, sem nenhuma moldurazinha que as<br />
anuncie ou justifique? Isso é bonito? Alguém dirá: “É<br />
prático.”<br />
Isso é duvidoso. Entretanto, na arte moderna, o que é<br />
bonito não é prático; e o que é prático não é bonito. O entrelaçamento<br />
do prático com o bonito, tão característico<br />
da obra de Deus, não está presente.<br />
Analisemos um engarrafamento do trânsito. Nas metrópoles<br />
há grandes artérias retilíneas, feitas para da-<br />
Chell Hill (CC3.0)<br />
Ukjent (CC3.0)<br />
Ópera de Oslo, Noruega<br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
Henrique Boney (CC3.0)<br />
Torstein Frogner (CC3.0)<br />
rem vazão a milhares e milhares de carros por hora; mas,<br />
quando se dá uma pequena trombada, talvez entre dois<br />
motociclistas, é necessário esperar a polícia chegar, e por<br />
ser uma grande avenida, quando para o trânsito, paralisa-se<br />
uma enorme quantidade de veículos. É o urbanismo<br />
moderno, muito bem pensado para as coisas funcionarem<br />
bem, mas não planejado para a hipótese de funcionarem<br />
mal. Buzinas, enervamento, gente atrasada; quando, afinal,<br />
os automóveis podem circular, chocam-se uns nos outros<br />
pelo nervosismo, e ainda há novas trombadas.<br />
O espírito da Igreja une o prático ao belo<br />
Em contraste, temos a Abadia de Vézelay, na França,<br />
atualmente conhecida como Basílica de Santa Maria<br />
Madalena. Como é diferente! Percebam como a porta é<br />
muito prática, pois é bastante grande para facilitar a entrada<br />
e saída das multidões. Também é alta, de maneira<br />
a nada esbarrar nela. Por outro lado, a coluna central<br />
Oslo, Noruega<br />
Congestionamento no Vale do Anhagabaú, São Paulo<br />
divide um pouco a multidão e evita, já de início, que ela<br />
caminhe para uma só direção. Há nisso um lindo simbolismo!<br />
O feitio das portas medievais simbolizava Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo que veio dividir as vias do homem<br />
em duas: a da direita, a do amor de Deus, e a da esquerda,<br />
a da perdição.<br />
No pórtico podemos contemplar um belo trabalho em<br />
pedra representando um fato da História Sagrada, ou<br />
da História da Igreja, ou de algum Santo; ilustra e ensina<br />
a religião aos que vão entrar. A coluna central da porta<br />
principal da Basílica, que suporta todo esse peso com<br />
profunda nobreza, quão diferente é das colunas chatarronas<br />
existentes hoje em dia. Quanta harmonia e distinção!<br />
A seguir, temos a esplêndida Catedral de Reims, onde<br />
eram coroados os reis da França antes da Revolução<br />
Francesa. Eu não vou elogiar o evidente, mas vejam a<br />
magnífica harmonia e beleza dessa esplêndida neta de<br />
Deus. O gótico é considerado o estilo mais prático que<br />
houve na História. Não há nada, num edifício<br />
medieval, que não tenha uma razão<br />
de ser prática, inclusive poder-se-ia fazer<br />
um estudo comprovando isso. Nele, entretanto,<br />
tudo é bonito.<br />
Na fachada da própria Catedral de<br />
Reims observamos as rosáceas. Pareceria<br />
ter sido o prédio construído para dar<br />
beleza a esses grandes vitrais, mas não é<br />
verdade. As rosáceas existem para facilitar<br />
a entrada de luz dentro do templo.<br />
Entretanto, não é a luz clara de todos os<br />
dias, mas um pouco filtrada, convidando<br />
à contemplação e criando um ambiente<br />
místico de recolhimento.<br />
Os medievais aproveitaram os vitrais<br />
para representar cenas da História da<br />
30
Igreja, do Antigo ou do Novo Testamento,<br />
para ensinar aos povos, constituindo<br />
assim, mil símbolos da Doutrina<br />
Católica. Portanto, a rosácea é funcional,<br />
pois através dela entra luz para<br />
o prédio, mas que luz, que ensinamento,<br />
que flores de beleza! Essas igrejas<br />
eram chamadas de “Bíblias dos analfabetos”.<br />
Ora, o que forma mais a alma<br />
humana: a cartilha ou o vitral?<br />
Aliás, é preciso dizer o seguinte: a<br />
Idade Média foi a época na qual mais se<br />
trabalhou – em relação a todas as épocas<br />
anteriores – para a alfabetização do<br />
homem. De tal maneira que quando a<br />
Idade Média terminou, deu-se o aparecimento<br />
da imprensa. Como poderia a<br />
imprensa ter tão grande importância se<br />
ninguém soubesse ler e escrever?<br />
Destas considerações podemos tirar<br />
um ensinamento magnífico e faustoso.<br />
O espírito da Igreja é o mesmo<br />
espírito de Deus que sabe unir o prático<br />
ao belo; de onde o objetivo do prático<br />
é servir o corpo e não atrapalhar<br />
a alma; e o objetivo do belo é encantar<br />
a alma e elevá-la até Deus. Assim,<br />
vendo um objeto, utilizamos o prático<br />
quase sem pensar nele e admiramos o<br />
belo como se só este existisse.<br />
Yannick Pichard. (CC3.0)<br />
Construções que satisfazem<br />
o corpo e elevam a alma<br />
Há uma diversidade inimaginável<br />
de vitrais, alguns representando reis<br />
santos, e outros Nossa Senhora com o Menino Jesus. Contemplem<br />
a variedade de formas e de cores, que esplendor<br />
de luzes! Cada fragmento de um vitral é uma verdadeira<br />
pedra preciosa, e se cada parte é de tal maneira bonita,<br />
o conjunto é tão mais belo, que a alma não tem muita<br />
vontade de pormenorizar. A Bíblia conta que depois de ter<br />
criado o universo, Deus descansou e, contemplando sua<br />
obra, viu como cada coisa era boa, mas o conjunto era ótimo<br />
(cf. Gn 1, 31).<br />
Assim, no conjunto de vitais, que joia e esplendor! Função<br />
prática: iluminação. Função espiritual: apresentar a<br />
beleza, mas nela, a Suma Verdade, a Revelação trazida pelo<br />
Espírito Santo e Nosso Senhor Jesus Cristo à Terra.<br />
Comparem os prédios de quadradinhos e esse teto gótico.<br />
São dois mundos, duas concepções. O que mais prepara<br />
a alma para o Céu?<br />
Abadia de Vézelay, França<br />
A magnífica Catedral de Orvieto, por exemplo, tem<br />
algo de especial, pois é indelevelmente colorida do lado<br />
de fora. Ela ostenta esplêndidos mosaicos refratários à<br />
ação da luz e do tempo. Ademais, o perfeito estado dela<br />
nos faz pensar ter sido construída ontem. No entanto<br />
é, sem dúvida, uma catedral medieval que arrosta os<br />
séculos, não com aquela velhice magnífica e veneranda<br />
das antigas catedrais de granito, mas com a durabilidade<br />
que fala do eterno.<br />
No ponto mais alto da fachada há um mosaico representando<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo coroando Nossa Senhora.<br />
Qual é a pintura, com cores tão frescas, representando<br />
um esplendor e uma louçania de alma tão magnífica?<br />
Nessa catedral tudo aponta para o céu, até os triângulos<br />
e as flechas. Edifícios como esse parecem elevar-se<br />
ao céu e nos levam para lá.<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
Almas insaciáveis de dar glória a Deus<br />
Analisemos agora um castelo, quase de conto de fadas:<br />
Neuschwanstein. Ele foi edificado sobre um monte,<br />
a pedido do Rei Luís II, da Baviera, no século XIX.<br />
A nobreza desses torreõezinhos; quanta distinção, beleza<br />
e altanería! Como isso é diferente daqueles mil alvéolos<br />
que parecem transformar seus habitantes em abelhas<br />
humanas. Contrariamente, este nobre castelo faz<br />
dele um guerreiro, e, por sua vez, a catedral faz do homem<br />
um santo.<br />
Observem a beleza do telhado. Dir-se-ia estar revestido<br />
de pedras preciosas! Como é convidativo morar num lugar<br />
desses! Abrir de manhã a janela e contemplar um dos telhados<br />
laterais refulgindo ao Sol. Olhar para baixo e se deparar<br />
com uma das rampas, com água escorrendo depois<br />
de uma chuvarada e gotejando agradavelmente da gárgula.<br />
Quanta beleza, nobreza e harmonia! Entretanto, isso é prático:<br />
esse declive visa impedir o acúmulo de neve.<br />
Já na cidade de Rouen, onde Santa Joana d’Arc foi<br />
queimada pelos ingleses, temos uma imponente Catedral<br />
que mais parece um enorme élan para o céu. A torre<br />
vai adelgaçando à medida que se eleva, quase se transformando<br />
em firmamento; não se sabe bem se seu píncaro<br />
é mais ar do que terra, ou mais luz do que pedra. Assim,<br />
esse belo monumento convida a alma para subir!<br />
Josep Grin (CC3.0)<br />
Eric Pouhier (CC3.0)<br />
Ludovic Péron (CC3.0)<br />
Detalhes da Catedral de Reims, França<br />
32
jplenio (CC3.0)<br />
Castelo de Neuschwanstein, Alemanha<br />
No prefácio da história de Santa Isabel da Hungria,<br />
Charles Montalembert narra que um maometano, preso<br />
pelos cruzados, recebeu licença de viajar pela Europa e,<br />
conhecendo as catedrais, perguntou quem as construía.<br />
Mostraram-lhe, então, o irmão leigo de um convento:<br />
— Ele é um dos homens que constroem esses monumentos.<br />
Surpreso, indagou:<br />
— Como podem homens tão humildes construir edifícios<br />
tão altivos?<br />
Assim é a alma católica: humilde quanto a si mesma,<br />
mas insaciável para dar glória a Deus. Na Catedral de<br />
Rouen está a glória de Deus cantada por uma flecha que<br />
vai mais alto do que todos os edifícios da Terra. Essa é<br />
a Igreja Católica acima da sociedade temporal. A Santa<br />
Igreja está por cima de tudo.<br />
Ambientes que conduzem a Deus<br />
Em outra foto vemos aquilo que São Francisco de Assis<br />
chamava “a irmã água” caindo e correndo, luminosa<br />
e turbulentamente, em meio a pedras, por certo fazendo<br />
aquele ruído mais parecido a um cântico. Próximas<br />
à margem há algumas moradias plebeias. Notem<br />
a sensação de solidez dos prédios e como dão a impressão<br />
de proteger contra as intempéries. Dentro dessas casas,<br />
as pessoas se sentem na intimidade, a léguas da rua,<br />
afastados dos outros, com a possibilidade de estar a sós,<br />
no aconchego da família ou numa solidão completa aos<br />
olhos de Deus.<br />
Catedral de Orvieto, Itália<br />
É um ambiente agradável, à maneira europeia, pois<br />
quando chega o verão o jardim se enche de gerânios vermelhos<br />
e, do lado de dentro, uma pessoa calma lê um livro,<br />
ou uma senhora faz crochet ou tricot enquanto conversa<br />
com o netinho sentado no chão. É a vida tranquila<br />
e cheia de paz de outrora, mais operosa do que a das<br />
multidões se acotovelando nos ônibus. Cidades peque-<br />
Luca Aless (CC3.0)<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
A Torre de Belém, localizada na margem do Rio<br />
Tejo, que banha Lisboa, é uma fortificação composta<br />
de um material tão alvo que em noite<br />
de luar mais parece feita de lua. Na sua<br />
parte inferior se encontram os orifícios<br />
para os canhões. Sob certo ponto de vista,<br />
a torre, tão leve com suas ameias e<br />
torreões, parece um brinquedinho;<br />
mas, tão majestosa e forte que dá impressão<br />
de uma verdadeira fortaleza.<br />
Os antigos tinham horror das fachadas<br />
lambidas e do plano sem arte.<br />
Na superfície principal está a sacada<br />
onde podemos imaginar o rei<br />
vendo as naus partirem, por exemplo,<br />
da frota de Pedro Álvares<br />
Cabral, com a imagem de Nossa<br />
Senhora, a qual hoje se venerajaraman<br />
sundaram (CC3.0)<br />
Cataratas do Reno, Suíça<br />
nas, onde as pessoas vão a pé por toda parte, aonde ninguém<br />
tem pressa, ninguém corre, todo mundo vive e respira<br />
em paz. Em cidades como essas se formaram os povos<br />
europeus, saudáveis, que engendraram a maior civilização<br />
de todos os tempos.<br />
Como seria agradável, por exemplo, no entardecer de<br />
um dia fresco, permanecer num terracinho rezando ou<br />
lendo, ou até fazer uma grande coisa quando a pessoa<br />
tem a alma cheia de altos pensamentos e de verdadeira<br />
fé: não fazer nada. Contudo, não significa flanar ou fazer<br />
o papel de bobo, mas é deixar a memória e as recordações<br />
falarem, ir pensando ao sabor do tempo e das associações<br />
de imagens. É mergulhar na contemplação.<br />
Foi conversando agradavelmente desde uma janela<br />
que Santo Agostinho e Santa Mônica tiveram o famoso<br />
êxtase de Óstia. Quem poderia ter um êxtase dentro de<br />
um arranha-céu contemporâneo? Deus pode tudo, inclusive<br />
levar alguém a entrar em estado místico no interior<br />
de um edifício moderno, mas é preciso dizer que um tal<br />
lugar não propicia um êxtase.<br />
34<br />
Maravilha do espírito católico<br />
Pedro Álvares Cabral<br />
Rio de Janeiro
Herbert Frank (CC3.0)<br />
ra na igreja dos Jerônimos, e é chamada Nossa Senhora<br />
do Brasil.<br />
Imaginemos ali uma série de pendões e de tapeçarias<br />
riquíssimas; o rei com a rainha e sua corte, despedindo-<br />
-se dos navios que partiam para descobrir novas terras e<br />
trazer novos povos para a Igreja Católica Apostólica Romana,<br />
levando nos mastros a Cruz de Cristo. É um cenário<br />
magnífico! Tão bonito que parece ter sido construído<br />
só para essa cena épica.<br />
Ali encontramos a beleza conjugada ao prático. O mirante<br />
é estupendo, e sem dúvida, muito funcional. Foi uma<br />
fortaleza tão boa que, para as condições do tempo, metia<br />
medo em qualquer atrevido desejoso de se adentrar no Tejo.<br />
Nobre e distinta, a Torre de Belém é uma verdadeira<br />
maravilha do espírito católico que formou essa civilização.<br />
Quanto respeito para com a criatura humana há numa<br />
construção como essa! O homem se sente inteiramente<br />
atendido, protegido, defendido e conduzido até<br />
Deus! <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 10/2/1974)<br />
Benittes (CC3.0)<br />
Catedral de Rouen, França<br />
Torre de Belém,<br />
Lisboa<br />
Vicente D.<br />
35