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2021_Luzes-ApóstoloPulchrum

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<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Leandro W.<br />

Intimidade que convida<br />

o espírito a se elevar<br />

O estilo burguês, sem levar<br />

diretamente à oração, cria as<br />

condições para o espírito ter<br />

vontade de rezar e sentir-se<br />

bem quando reza. Nele a arte<br />

procura exprimir o bom senso,<br />

o pudor, o recato, a estabilidade,<br />

a continuidade, o equilíbrio das<br />

coisas bem ordenadas desta Terra,<br />

e a criação de uma ordem de coisas<br />

que mais permite ao espírito<br />

humano elevar-se ao mais alto<br />

do que propriamente o eleva.<br />

Creio que em nenhum país do mundo a vida burguesa,<br />

no que ela tem de legítimo e digno, atingiu<br />

graus de desenvolvimento como na Alemanha e,<br />

com ela, o incremento de um valor característico da ordem<br />

burguesa, sem o qual não se compreende o que é a<br />

aristocracia.<br />

O espírito aristocrático e o burguês<br />

Enquanto a tendência para os píncaros e de se servir<br />

dos valores culturais para considerar continuamente o<br />

mais elevado é peculiar ao espírito aristocrático, e estabelece<br />

junção entre este e o espírito religioso; no espírito<br />

Rothemburg,<br />

Alemanha<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Pedro Morais<br />

Catedral de Colônia<br />

burguês, a arte procura exprimir o bom senso, o pudor,<br />

o recato, a estabilidade, a continuidade, o equilíbrio das<br />

coisas bem ordenadas desta Terra, e a criação de uma<br />

ordem que mais permite ao espírito humano elevar-se ao<br />

mais alto do que propriamente o eleva.<br />

Por exemplo, a Catedral de Colônia é um edifício eminentemente<br />

aristocrático. Ela eleva o espírito humano a<br />

tudo quanto há de mais alto.<br />

Já uma casa alemã burguesa, apesar até de ter seu teto<br />

em forma de cone, não se pode dizer que eleva o espírito<br />

humano ao mais alto. Ela cria condições para que<br />

ele se eleve por si, mas é uma coisa diferente.<br />

Ambiente que convida à intimidade<br />

Analisemos, por exemplo, algumas construções alemãs<br />

tipicamente burguesas, uma delas utilizada provavelmente<br />

para a prefeitura ou outro órgão público, o que<br />

se nota por causa do brasão e do relógio, característicos<br />

de edifícios desse gênero. O estilo é típico das pequenas<br />

cidades burguesas, incontáveis na Alemanha medieval,<br />

muitas das quais ainda se conservam hoje.<br />

Vê-se uma casa mais ou menos da mesma época, inteiramente<br />

coadunada com a prefeitura, e, no fundo, uma<br />

igreja barroca, mas que ainda tem o caráter modesto<br />

burguês, de uma igreja de pequena localidade, não como<br />

uma catedral de uma importante cidade como Colônia,<br />

prestigiosíssima metrópole cultural de todo o Reno.<br />

A parte térrea da residência forma uma espécie de<br />

hall aberto solidamente sustentado por um madeirame<br />

trabalhado discretamente, mas com uma certa distinção<br />

de linhas. Vê-se o corpo do edifício, e duas saliências<br />

que se projetam sobre a rua. Há mais um andar em cima<br />

e advinha-se que lá há guardados objetos de toda ordem,<br />

como cadeiras velhas da bisavó, empilhados ali em<br />

quantidade. É o sótão onde, ademais, mora a criada...<br />

Procuremos com a vista da imaginação penetrar janela<br />

adentro. Têm-se uma sensação condizente com a vida<br />

burguesa, mas que não se experimenta no estilo aristocrático:<br />

a intimidade.<br />

A vida aristocrática não convida à intimidade, mas a<br />

um perpétuo estadear magnífico de si mesmo, produzindo<br />

uma naturalidade no esplendor. O verdadeiro aristocrata<br />

é inteiramente natural dentro do esplendor, mas<br />

não tem intimidade. Esta encontra-se em uma casa burguesa.<br />

Imaginemos dentro da sala um armário onde guardam<br />

a roupa de ir para a festa, mas quando chegam em<br />

casa dão um suspiro de alívio, tiram o sapatão, a roupa<br />

que apertava, sentam-se numa cadeirona macia, esticam-se:<br />

“Enfim, em casa!”<br />

É o gosto da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido,<br />

da luz tamisada que não deixa entrar a realidade de<br />

fora, do cortinadinho, dos objetos próximos uns dos outros<br />

e ao alcance da mão, em que o homem descansa do<br />

trabalho manual.<br />

Pormenores do ambiente e da<br />

intimidade do lar burguês alemão<br />

Nada disso é necessário para o aristocrata. Pelo contrário,<br />

vamos supor que ele está junto à mesa, toca uma<br />

sineta e manda o criado pegar um livro. Não se pode pedir<br />

isto a um homem como o burguês que trabalhou o<br />

dia inteiro, e que quando tem um livro, que é uma grossa<br />

Bíblia, já a tem ao alcance da mão. Onde está o criado?<br />

Está a mulher, que quando o marido a solicita muito,<br />

resmunga com uma pitoresca rabugice burguesa...,<br />

de maneira que não é bom mexer muito com ela, pois<br />

também trabalhou o dia inteiro.<br />

Percebe-se uma coisa curiosa: quem está dentro desse<br />

ambiente sente-se a uma légua da rua. A residência é<br />

construída de modo a constituir uma atmosfera completamente<br />

diferente, dentro da qual o ruído da rua não penetra.<br />

A pessoa está na intimidade de um ambiente que<br />

ela marca e onde ela sente até um pequeno gozo.<br />

32


Quando chega o verão, à boa maneira alemã,<br />

abre-se a janela, põem-se pedacinhos de pão e vão<br />

os passarinhos comer, e o alemão fica todo contente.<br />

Ou, então, coloca um pote com gerânio pendurado<br />

ao lado de fora para o concurso de flores da<br />

prefeitura. Precisa ganhar o prêmio, porque é muito<br />

bonito.<br />

Comento com delícias as construções do mundo<br />

alemão, porque acho tudo isso maravilhoso.<br />

Ermell (CC3.0)<br />

Os regalos da vida burguesa<br />

e convite ao recolhimento<br />

O que isso tem de ver com a contemplação?<br />

É o lar sem pretensões, honesto, da família legítima,<br />

constituída segundo os Sacramentos. É<br />

a casa onde o refulge o modesto esplendor da vida<br />

de família, que está longe de ser o do celibato<br />

na vida religiosa ou o da aristocracia, mas um esplendor<br />

próprio que se manifesta com o seu prosaísmo.<br />

É a dignidade do corriqueiro, onde a pessoa<br />

pode recolher-se, isolar-se e, dando repouso<br />

e silêncio ao corpo, começar a meditar. Não é o<br />

conforto do preguiçoso que se afunda numa poltrona<br />

e torna-se amolecido. Não é isso. Tudo é<br />

mais varonil e, por isso, dessas casas, em épocas<br />

de guerra, saem os melhores guerreiros do mundo.<br />

Em tempos de paz, comedores de pão, tocadores<br />

de flauta e violino.<br />

Há, portanto, uma harmonia que convida ao recolhimento,<br />

à oração. Num ambiente como esses, uma pessoa<br />

sentada em uma sala ou ajoelhada num oratório, pode<br />

Antiga Câmara Municipal de Bamberg, junto ao Rio Regnitz<br />

isolar-se de tudo. Assim, essas casas, sem levarem diretamente<br />

à oração, criam as condições para o espírito ter<br />

vontade de rezar e sentir-se bem quando reza. Aí estão<br />

os regalos da intimidade e da vida burguesa.<br />

Vista de Bamberg,<br />

Alemanha<br />

Ermell (CC3.0)<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Heidas (CC3.0)<br />

O espírito de cruz<br />

Não posso terminar esse comentário sem uma bofetada<br />

na Revolução.<br />

A Revolução diz: “O pobre plebeu, esmagado...” Se for<br />

para gozar a vida, eu acho discutível o que é melhor, se<br />

é essa vida numa casa burguesa ou em um palácio. Passar<br />

num palácio quinze dias pode ser muito agradável.<br />

Será igualmente agradável viver a vida inteira nele, numa<br />

contínua representação, numa perpétua ostentação?<br />

Nunca sustentei que o palácio fosse o melhor lugar para<br />

gozar a vida. O gozo da vida, mais na proporção do homem,<br />

é o do burguês da Idade Média. Palácio corresponde<br />

a sacrifício. Parece-me indispensável termos isso em vista.<br />

Na casa burguesa pode haver espírito de cruz. Em certo<br />

sentido, o palácio é uma cruz para o indivíduo que mora<br />

nessa casa e não se dá bem conta de como é o palácio,<br />

pois ele precisa ter muita resignação para não residir e<br />

não invejar quem resida no palácio. Por outro lado, essa<br />

própria vida que estou descrevendo com todo o seu conforto<br />

comporta um lado de trabalho muito duro. De maneira<br />

que não é a casa, mas na vida de trabalho duro do<br />

burguês que entra a cruz.<br />

A patriarcalidade do espírito alemão<br />

Praça do mercado em Hildesheim, Alemanha<br />

Histórica Cervejaria Schlenkerla, desde<br />

1405, Bamberg, Alemanha<br />

Consideremos agora uma praça pública de uma cidade<br />

alemã, já de um certo desenvolvimento, como Frankfurt.<br />

Vê-se uma fonte em estilo rococó, uma grade bonita,<br />

flores maravilhosas que ninguém rouba e nenhum moleque<br />

acha bonito escangalhá-las durante a noite e voltar<br />

com riso de bandido de oito anos para casa, contando<br />

que estraçalhou tudo quanto viu.<br />

O edifício da prefeitura se prestava à maior solenidade<br />

do Sacro Império. Tudo dentro dele é lindíssimo, soleníssimo.<br />

Há um soalho tão precioso que só se entra no<br />

prédio com chinelos de feltro enormes que cobrem os sapatos<br />

para não o estragar.<br />

Do terraço, o Imperador recém-eleito aparecia para o povo,<br />

jogava moedas de ouro e começava a tocar um sininho<br />

que logo depois dava origem ao repicar de todos os sinos da<br />

cidade, anunciando que a Cristandade tinha um novo chefe.<br />

A monarquia alemã era de um fausto, de uma glória<br />

extraordinária, mas conservou sempre uma nota patriarcal<br />

que a monarquia francesa não tinha. Mesmo<br />

São Luís IX, sentado num trono debaixo do carvalho de<br />

Vincennes, julgando, não tinha no seu perfil espiritual<br />

algo que é a síntese de todas as classes sociais. Ele era<br />

um aristocrata que se aproximava do povo.<br />

Os Imperadores do Sacro Império e os da Casa d’Áustria<br />

não eram a culminância da ordem social afável para com o<br />

povo, mas eram uma espécie de síntese de todas as classes,<br />

por onde a monarquia austríaca, mais esplendorosa do que<br />

a francesa por vários lados, comportava cenas como essas:<br />

Século XVIII, a Imperatriz Maria Teresa está no teatro,<br />

Ópera de Viena, soleníssima, e recebe a notícia de<br />

que havia nascido o filho de seu filho mais velho. Ela faz<br />

um sinal, interrompe a orquestra e grita para o povo:<br />

— José teve um filho!<br />

Asio otus (CC3.0)<br />

34


Thomas Wolf (CC3.0)<br />

Prefeitura de Frankfurt<br />

Todo mundo se levanta, aplaude e aclama:<br />

— Viva a Imperatriz e viva o novo Arquiduque!<br />

Tudo numa espécie de intimidade que nós não vemos<br />

Maria Antonieta, austríaca afrancesada, ter. E se ela tivesse<br />

nem ficaria bem para ela.<br />

A um povo compete dizer: “José teve um filho!”; a outro,<br />

aparecer no balcão do Castelo um arauto precedido<br />

por alabardeiros, e que bate três vezes no chão com uma<br />

lança e diz: “Nós temos a honra e a alegria de vos anunciar<br />

que a muito alta e poderosa Princesa foi agraciada<br />

por Deus Nosso Senhor com o nascimento de um Delfim!”,<br />

e faz uma grande reverência. São estilos, cada um<br />

tem sua razão de ser e sua beleza.<br />

Variedade nascida da Igreja<br />

Tenho toda a compreensão e admiração para com o estilo<br />

austríaco e sua beleza. O Imperador jogava desse terraço<br />

ouro para o povo e pouco depois começavam os festejos. As<br />

fontes eram preparadas de maneira a jorrar não água ordinária,<br />

mas vinho. Por conta do novo Imperador, eram trazidos<br />

para a praça pública bois inteiros que eram assados.<br />

O povo começa a dançar. Estava preparado um monte de<br />

trigo, e o Imperador devia sair correndo a cavalo com um<br />

recipiente na mão e enchê-lo com aquele trigo. O povo todo<br />

aplaudia porque o Soberano provara ser bom cavaleiro.<br />

Assim, transcorria essa solenidade, entre festejos<br />

quase infantis, pois o bom alemãozão é um pouco infantilzão.<br />

Mas nisso entra também o melhor do sabor dos<br />

pães que ele faz e dos gerânios que ele cultiva, uma coisa<br />

um pouco infantil, um pouco popular, muito guerreira,<br />

sumamente aristocrática, em todo caso metafísica, mas<br />

que é diferente da frieza azul e ouro das plumas, das se-<br />

das e do esplendor de Versailles. São riquezas diversas<br />

que nos ajudam a amar a Igreja Católica na variedade<br />

das almas que ela produziu.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 10/6/1968)<br />

Detalhe da fonte na Praça da<br />

Prefeitura de Frankfurt<br />

Pedro (CC3.0)<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Como um voo<br />

Alberto Luccaroni (CC3.0)<br />

angélico<br />

Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força muito<br />

grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza que só depois<br />

se exprimiram, do mesmo modo, olhando para ele, no fundo de<br />

nossas almas católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />

magnífico ainda apareça. Nas obras do Espírito Santo não pode haver<br />

contradição. Tudo é lógica por mais que o passo seja enorme.<br />

ACatedral de Ravena, na Itália, é um edifício octogonal<br />

construído num estilo bizantino muito<br />

característico, com aquelas figuras em mosaico,<br />

típicas da arte bizantina, postas numa espécie de estado<br />

contemplativo, desligadas das circunstâncias concretas<br />

de tudo, sobre um fundo dourado.<br />

Os diversos estilos ao sopro do Espírito Santo<br />

Passar desse estilo para o românico constitui, sem dúvida,<br />

um salto. Não se deve confundir o românico com o greco-<br />

-romano. Este último é o estilo grego com pequenas adaptações<br />

feitas pelos romanos. O românico é uma adaptação que<br />

os bárbaros fizeram do estilo romano a algo existente na alma<br />

deles e que não havia no espírito da civilização romana.<br />

Quando consideramos um estilo mais próximo do românico,<br />

como é o da época de Ravena, não é fácil perceber<br />

que de lá surgirá o românico. Entretanto, ao ver o<br />

românico e depois o gótico, percebemos que o gótico estava<br />

nascendo no românico.<br />

Então, podemos dizer que o espírito de Ravena correspondia<br />

a alguma coisa do gótico, mas com interferência<br />

de algo violentamente diferente ligado ao romano antigo.<br />

Já do românico para o gótico, pelo contrário, continua<br />

em linha reta.<br />

Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força<br />

muito grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza<br />

que só depois se exprimiram, mas que já estavam presentes<br />

no gótico originário, poderíamos perguntar o seguinte:<br />

quando o gótico chegou a exprimir a sua delicadeza, a par<br />

de sua força, ele estava esgotado ou tinha mais algo?<br />

A força e a graça são posições ou valores harmônicos,<br />

mas tão diversos entre si que se diria, à primeira vista,<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Marie Thérèse Hébert & Jean Robert Thibault (CC3.0)<br />

Fachada e detalhes<br />

da Catedral de<br />

Ravena, Itália<br />

tratar-se de uma contradição. Mas, de fato, dentro das<br />

coisas da Igreja, como nas obras do Espírito Santo, não<br />

pode haver contradição. Tudo é lógica por mais que o<br />

passo seja enorme.<br />

Algo de novo ainda poderá surgir do gótico<br />

Tomado esse conjunto de força e de graça, qual é a nova<br />

perfeição contida potencialmente no espírito católico<br />

e que viria a se exprimir no Reino de Maria?<br />

Poder-se-ia conjeturar que fosse uma coisa muito ousadamente<br />

diversa e profundamente afim, mais ou menos<br />

como a capa leve e graciosa de uma rainha, capaz de<br />

tremular ao vento de tal maneira que uma pessoa pensasse<br />

ter sido a capa dilacerada pela ventania. Mas, na<br />

realidade, ela nunca se rasgou; voltou-se de um lado e<br />

de outro e deu, por vezes, uma impressão de fragmentação,<br />

porém um olhar bem exercitado perceberia a unidade<br />

que nunca se rompeu. Assim, nós poderíamos conjeturar<br />

o que seria o estilo do Reino de Maria.<br />

Algo, portanto, que seria uma continuação do gótico<br />

surpreendentemente descontínua na aparência, compensando,<br />

por assim dizer, a sensação de fim de caminho,<br />

de perfeição que não há como acrescer ao que o gótico<br />

trazia consigo.<br />

Há como crescer! Com um salto prodigioso, mas um<br />

salto de Anjo. Um voo, não um salto, numa direção inteiramente<br />

diversa, que apareceria e começaria a bri-<br />

Isatz (CC3.0)<br />

Darkugo (CC3.0)<br />

32


lhar de um modo superior à conjetura do espírito humano.<br />

Uma beleza que a graça faria ver em determinado<br />

momento. Então, a nossa exclamação de entusiastas<br />

do gótico, que quereríamos vê-lo conservado com veneração<br />

no esplendor do Reino de Maria, seria: “Ah, era isso<br />

mesmo que faltava!”<br />

Porque, embora olhando para o gótico tenhamos a<br />

impressão de não lhe faltar nada, no fundo de nossas almas<br />

católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />

magnífico, ainda apareça.<br />

Um golpe de gênio<br />

Dou um exemplo que pode chocar alguns rigoristas do<br />

gótico. Bernini 1 foi um artista muito marcado pela Renascença;<br />

entretanto, ele teve um golpe de gênio construindo<br />

aquela colunata do lado de fora da Basílica de<br />

São Pedro. Após ter visto essa colunata<br />

com olhos de homem maduro<br />

capaz de fazer uma análise, ficaram<br />

dois efeitos no meu espírito.<br />

Em primeiro lugar, um conjunto<br />

de colunas coberto, tendo, portanto,<br />

algo em comum com uma igreja<br />

ou casa, mas muito mais arejado<br />

do que qualquer destes ambientes;<br />

uma colunata fora da igreja,<br />

mas continuando o edifício sagrado,<br />

constitui uma espécie de meio-<br />

-termo harmônico entre o templo e o<br />

mundo profano, que agrada ao espírito<br />

conceber.<br />

O próprio traçado da colunata da<br />

Basílica de São Pedro é firme, lógico;<br />

neste ponto pouco renascentista<br />

por ser um traçado forte e sério, não<br />

tendo aquele aspecto trêmulo das<br />

coisas renascentistas.<br />

Ademais, a colunata é majestosa.<br />

Dir-se-ia que cada coluna é como<br />

um soldado invisível prestando armas<br />

e continência ao rei que passa.<br />

Neste caso é o mais alto Rei da Terra,<br />

o Papa, não considerado apenas<br />

como soberano dos Estados Pontifícios,<br />

mas como Rei deste Reino de<br />

tamanho mais do que cesáreo, que é<br />

Igreja Católica Apostólica Romana,<br />

a qual se estende sobre toda a Terra,<br />

penetra em todos os povos e abriga<br />

em si todas as raças.<br />

Outro efeito causado pela colunata<br />

em meu espírito é a ideia<br />

de que, depois de Bernini ter descoberto essa fórmula,<br />

ninguém construiu uma igreja tão magnífica que<br />

merecesse uma colunata, e se fizesse ficaria uma cópia<br />

desagradável porque pretensiosa. Por outro lado,<br />

mais ninguém teve talento para conceber um conjunto<br />

de colunas e dar-lhe um desenho novo, que não seja<br />

uma repetição da colunata de São Pedro. Ficou, portanto,<br />

uma coisa encalhada. Mas vejo na colunata de<br />

Bernini algo no qual talvez se pudesse vislumbrar um<br />

prenúncio falho, abortivo, de um elemento para o Reino<br />

de Maria.<br />

É uma hipótese que eu carrego de incertezas; mas fica-me<br />

uma impressão meio conjectural na alma de que,<br />

para o exterior de igrejas, alguma coisa assim se inventará<br />

no Reino de Maria, e para cuja elaboração essa<br />

obra de Bernini foi apenas um esboço.<br />

Igreja da Abadia de Maria Laach (estilo românico)<br />

Renânia-Palatinado, Alemanha<br />

Nikanos (CC3.0)<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Deus deverá suscitar, a<br />

pedido de Nossa Senhora,<br />

um homem com talento<br />

Dentro da Basílica de São Pedro encontramos<br />

o Altar da Confissão, encimado por<br />

um dossel sustentado por quatro colunas<br />

também esculpidas por Bernini. Como todas<br />

as obras de arquitetura da grande épo-<br />

MarkusMark (CC3.0)<br />

Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)<br />

Colunata de Bernini - Praça de São Pedro, Vaticano<br />

Mathieu_Pinto (CC3.0)<br />

Altar da Confissão - Basílica de São Pedro, Vaticano<br />

ca da Itália, são feitas de mármore. Os mármores italianos<br />

são lindíssimos, e a pedra de que é construído aquele<br />

conjunto é muito bonita. Entretanto, as colunas não<br />

me agradam, por serem esculpidas num formato espiral<br />

grossão e mole.<br />

Mas está ali uma tentativa de representar algo que<br />

correspondesse à seguinte pergunta do espírito humano<br />

diante de uma coluna: “Esta coluna não poderia ter um<br />

traçado em que ela, sem deixar de ser coluna, sugeriria a<br />

ideia de um movimento mais elegante, mais leve?”<br />

O artista tentou dar a resposta com aquela fórmula.<br />

A meu ver, ele fracassou. Mas não haveria uma solução?<br />

Nesta procura de algo que fizesse com que a coluna, sem<br />

deixar de ser majestosa, alta e forte, apresentasse algo<br />

de ligeiro, que é quase a antítese da coluna? Admito a<br />

possibilidade de que seja assim, mas é uma incógnita.<br />

Deus deverá suscitar, a pedido de Nossa Senhora, um<br />

homem com talento igual ou talvez muito maior do que<br />

o de Bernini para apresentar uma fórmula nessa linha.<br />

Simplesmente em torno desses dois elementos – a colunata<br />

externa da Basílica de São Pedro e o sonho que<br />

as colunas do Altar da Confissão não realizaram – quiçá<br />

nascesse um estilo novo.<br />

34<br />

Visão Geral da Praça de São Pedro, Vaticano


Hipóteses que não se podem perder de vista<br />

Na Basílica de São Paulo, situada fora dos muros de<br />

Roma, há também elementos artísticos muito bonitos<br />

que apontam para um novo estilo, e cuja história conto<br />

resumidamente.<br />

No século XIX, aquela Basílica sofreu um incêndio que<br />

danificou gravemente os vitrais. Quando o Papa Pio IX<br />

mandou reconstruir a igreja, surgiu o problema de<br />

substituir os vitrais perdidos, por outros que estivesse<br />

à altura da beleza da Basílica. Às vezes, Deus Se<br />

compraz em ser glorificado pelos seus adversários. O<br />

Sultão da Turquia, maometano, ofereceu ao Pontífice<br />

chapas de alabastro muito finas e bonitas, que davam<br />

cada uma para encher o vácuo de uma janela.<br />

Assim, por presente desse filho de Maomé, apareceu<br />

uma forma de “vitral” muito bonita, porque<br />

tinha o indeciso da luz que penetra através de certo<br />

tipo de alabastro, com a delicadeza dos veios<br />

discretos, mas imaginosos, que as pedras por vezes<br />

apresentam.<br />

Pio IX não teve dúvida nenhuma e mandou colocar<br />

os alabastros.<br />

Em viagem a Roma, pude ver algumas dessas<br />

peças detidamente, e me veio ao espírito esta pergunta:<br />

“Será que matérias homogêneas e não mais<br />

com aquela riqueza cromática dos vitrais, mas com<br />

um colorido homogêneo e discreto, não representariam<br />

a nova fórmula de vitral no Reino de Maria?”<br />

Diz-se com entusiasmo o que eu vou afirmar<br />

sem entusiasmo: a indústria está muito avançada,<br />

e por isso se fabricam joias falsas com toda espécie<br />

de matérias levadas a altas temperaturas. Não haveria<br />

algum grande artista capaz de fabricar matérias<br />

mais bonitas do que o alabastro, e que, entretanto,<br />

representassem uma fórmula nova para os vitrais<br />

de uma igreja, de um palácio ou de um castelo?<br />

São hipóteses que não podemos perder de vista,<br />

compreendendo que se deve sentir nisto sempre<br />

o espírito gótico, e nunca o repúdio desse espírito.<br />

O espírito gótico presente, completado por<br />

mais uma ogiva, que seria o elemento novo por ele<br />

explicitado.<br />

Se pudéssemos imaginar como será um Santo no Reino<br />

de Maria, então conseguiríamos vislumbrar alguma<br />

coisa da arte nesse Reino.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 28/7/1989)<br />

1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 - †1680), arquiteto e escultor<br />

italiano.<br />

Fachada da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />

Interior da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />

Berthold Werner (CC3.0)<br />

Tango7174 (CC3.0)<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Popular Graphic Arts (CC3.0)<br />

A beleza<br />

imortal<br />

da Igreja<br />

refletida nos<br />

funerais de<br />

um Pontífice<br />

Há no gênio do bom desenhista uma “objetiva espiritual” que, para<br />

captar a realidade, vale incomparavelmente mais do que as lentes de<br />

uma máquina fotográfica. Assim, ao analisar algumas ilustrações<br />

da morte de Leão XIII, Dr. Plinio descreve a grandiosidade que<br />

envolve a morte de um Papa e o esplendor eterno da verdadeira<br />

Igreja de Cristo, manifestado até mesmo em suas pompas fúnebres.<br />

Ao longo dos séculos, a Opinião Pública foi se<br />

tornando cada vez mais desejosa de conhecer<br />

os atos da vida cotidiana onde eles se passavam.<br />

E, na época que não havia fotografia, as grandes<br />

revistas contratavam desenhistas para ilustrar seus artigos,<br />

os quais, sem terem presenciado o acontecimento,<br />

conheciam o local em que ele havia se dado e reproduziam<br />

a cena de acordo com o noticiário dos jornais.<br />

Daí surgiram verdadeiras peças de sociologia pois, embora<br />

eles não fossem artistas eminentes, eram bons desenhistas<br />

e compunham a cena de maneira a promover a venda da<br />

revista. Ora, para isso o desenho deveria corresponder tanto<br />

quanto possível à ideia que os leitores faziam do acontecimento<br />

ali estampado; do contrário, recusariam a publicação.<br />

Tratava-se, portanto, de um verdadeiro inquérito silencioso<br />

junto ao grande público, com base no qual o de-<br />

30


senhista procurava captar a cena como aquele a concebia.<br />

Retratavam-se, por exemplo, a morte ou a coroação de<br />

um Papa, a visita de um rei a outro, a posse de um presidente<br />

da República. Essa representação resultava verdadeira,<br />

ao mesmo tempo que revelava a mentalidade das pessoas<br />

da época, como elas consideravam aquela cena e quais eram<br />

suas expectativas em relação aos personagens que a viviam.<br />

Nessa perspectiva vamos considerar o noticiário publicado<br />

na revista Illustration, a respeito da morte do Papa<br />

Leão XIII.<br />

Um ato da augusta justiça divina<br />

A primeira ilustração retrata a constatação da morte<br />

de Leão XIII. Um dos presentes, provavelmente o médico<br />

efetivo e habitual do Papa, chamado naquele tempo<br />

de arquiatra pontifício, verifica sua pulsação. Arquiatra<br />

é uma palavra de origem grega que significa “arquimédico”.<br />

Os outros dois atrás dele são seus assistentes e esperam<br />

a comprovação de que não há mais pulso e, portanto,<br />

de que o Papa morreu.<br />

Analisemos como a ideia da morte de um Sumo Pontífice<br />

é representada pelo desenhista.<br />

Notam-se vários lençóis, um tecido de muita categoria<br />

que chega até o peito do Papa, um assento junto à cama<br />

dele o qual, por uma parte que se vê, parece ser uma poltrona<br />

confortável; ao fundo, vê-se um tecido damasquinado<br />

que reveste a parede e, ao lado, uma cortina. Tudo<br />

fala de finura e abundância.<br />

Dentro da abundância, porém, aparece o fracasso: a<br />

posição da cabeça demonstra que o Pontífice já não respira.<br />

Os braços estão estendidos ao longo de um corpo<br />

completamente inerte. Tem-se a ideia de um navio que<br />

afundou. Paira no ambiente a impressão da insensibilidade<br />

da morte e da dor do último instante. Sobre o Vigário<br />

de Cristo na Terra, como sobre todos os mortais, desfechou-se<br />

o castigo do pecado original. O Papa morreu e,<br />

portanto, Deus acaba de exercer sobre ele um ato de sua<br />

terrível e augusta justiça.<br />

O horror e a gravidade da cena se refletem na atitude<br />

dos médicos. O que verifica o pulso realiza operação correspondente<br />

à sua profissão, ou seja, constatar se há vida,<br />

para prolongá-la, ou se houve a morte, para declarar<br />

encerrada a sua missão e a mudança de status e de destino<br />

daquele corpo, fadado a abandonar todo esse bem-<br />

-estar e a convivência dos vivos a fim de ser posto em um<br />

W. J. Wintle (CC3.0)<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

caixão, murado e entregue à decomposição. O arquiatra<br />

toma, em consequência, o ar frio de quem está numa posição<br />

científica e profissional. Mas algo em sua postura<br />

é solene e sério; ele se prepara para proferir as palavras<br />

que encerram um capítulo da História da Igreja: “O Papa<br />

Leão XIII morreu.”<br />

O ato do médico-chefe é puramente formal. Os dois<br />

assistentes que estão atrás já sabem que o Papa faleceu,<br />

pois percebem que ele não respira mais. Ambos têm atitudes<br />

diversas. O médico mais moço, de bigode preto,<br />

conserva uma postura ereta, como quem olha ao longe e<br />

pensa em coisas graves – evidentemente, na morte e suas<br />

consequências – e exprime, de modo imponderável, uma<br />

certa consternação. Aliás, o bom gosto em todas essas<br />

atitudes está precisamente no fato de terem imponderáveis.<br />

As maneiras escancaradas são artificiais.<br />

O médico que se apoia na cama acaba de exercer alguma<br />

função, pois está usando pince-nez, o qual se utilizava<br />

apenas para ler ou fixar a vista em algo. Ele parece ligeiramente<br />

entristecido, mas muito pensativo, como quem<br />

pondera: “Que grande coisa é uma vida que cessa, um<br />

pontificado que se encerra... O que é a morte!” No fundo,<br />

seja ele ateu ou não, a palavra<br />

“Deus” lhe vem ao<br />

espírito.<br />

Devemos parar,<br />

refletir e meditar nas<br />

grandes verdades<br />

O outro personagem da<br />

cena é um monsenhor. Nota-se<br />

como o colorido do<br />

traje difere dos demais pela<br />

tonalidade e brilho que<br />

o desenhista colocou. Isso<br />

porque a batina e essa<br />

espécie de capa com que<br />

ele está vestido são de cor<br />

violeta. O reluzimento da<br />

batina indica ser ela de<br />

uma bela seda. Os pequenos<br />

botões de alto a baixo<br />

são também revestidos de<br />

fio de linha violeta. Sem<br />

dúvida, uma bonita batina,<br />

cujo aspecto vistoso é<br />

quebrado pelo sobretudo,<br />

também nobre, mas que<br />

parece ocultar o esplendor<br />

de um traje mais próprio<br />

aos dias de festa.<br />

W. J. Wintle (CC3.0)<br />

Percebe-se que esse monsenhor, o qual tem mais ou<br />

menos a idade do médico de bigode preto, vai se retirando<br />

como alguém que estava assistindo o Papa e cuja função<br />

cessou, mas ainda realiza os pequenos serviços a que<br />

estava habituado. Por exemplo, leva na salva, presumivelmente<br />

de prata, um copo provavelmente de cristal, e<br />

assim começa a dar uma pequena ordenação ao quarto<br />

do Pontífice para as cerimônias fúnebres se iniciarem.<br />

Entretanto, vendo que a palavra decisiva vai ser dada, ele<br />

se detém, preocupado e um tanto aflito, para ouvir o médico<br />

declarar, em definitivo, não haver mesmo esperança alguma.<br />

Compreendemos, assim, quanto pensamento o desenhista<br />

pôs ao retratar esta cena. Ele soube transmitir em seu desenho<br />

a ideia de como a morte, episódio tão frequente no<br />

quadro geral da existência, é uma grandiosa cena diante da<br />

qual devemos parar, refletir e meditar em grandes verdades.<br />

Em última análise, tratava-se do supremo poder pontifício,<br />

o fulgor da genialidade – Leão XIII era considerado um gênio<br />

–, que em certo momento se apagaram, e só restou um<br />

cadáver.<br />

Dali a pouco o corpo médico sairia e comunicaria aos<br />

Cardeais, grande número dos quais presumivelmente já<br />

estaria na antessala, que<br />

o Papa havia morrido.<br />

Três discretas<br />

batidas com<br />

um martelinho<br />

de marfim<br />

Depois da constatação<br />

científica, vinha a Igreja<br />

comprovar a morte do<br />

seu chefe. Entrava o Cardeal<br />

Camerlengo, o qual<br />

substitui o Papa de imediato<br />

no caso de morte,<br />

e com um martelinho de<br />

marfim se acercava com<br />

todos os Cardeais presentes,<br />

batia discretamente<br />

sobre a fronte do<br />

Pontífice e perguntava:<br />

— Santíssimo Padre,<br />

vives?<br />

Tendo repetido este cerimonial<br />

por três vezes,<br />

diante da ausência de resposta<br />

ele declarava:<br />

— Sua Santidade Leão<br />

XIII morreu.<br />

32


W. J. Wintle (CC3.0)<br />

A notícia era imediatamente levada aos sineiros, e os<br />

grandes sinos da Basílica de São Pedro começavam a dobrar<br />

finados. Em poucos minutos, os sinos das quatrocentas<br />

igrejas de Roma passavam a ecoá-los.<br />

Declarada a morte do Papa, os Cardeais recitam a<br />

primeira prece oficial por alma do Pontífice morto, oração<br />

que se desdobrará pelo orbe. Em todas as igrejas se<br />

celebram Missas, o mundo inteiro põe-se a gemer, a rezar<br />

e a esperar porque o Papa morreu.<br />

Contraste entre a riqueza e a pobreza,<br />

a altaneria e a humildade<br />

Outra ilustração retrata o momento em que, ainda<br />

antes da morte de Leão XIII, o Santíssimo Sacramento<br />

é levado para o Papa moribundo. O Viático percorre<br />

uma das galerias do Vaticano, e no centro do quadro está<br />

um clérigo, provavelmente um Cardeal, que, utilizando<br />

as vestes litúrgicas e o cerimonial tradicionalmente estabelecidos,<br />

porta o Santíssimo Sacramento sob uma umbrela<br />

carregada por um sacerdote.<br />

O clérigo que conduz a Sagrada Eucaristia vai rezando,<br />

com o rosto próximo do cibório. Ele se mantém recolhido,<br />

não olha para os lados, pois está transportando<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente presente,<br />

sob as Espécies Eucarísticas, em seu Corpo, Sangue,<br />

Alma e Divindade.<br />

À frente vão soldados da Guarda Suíça portando alabardas,<br />

com seu traje bem característico. Ao lado direito<br />

de quem conduz Nosso Senhor Sacramentado, está<br />

um membro da Guarda Nobre Pontifícia, constituída<br />

apenas por aristocratas. Enquanto os da Guarda Suíça<br />

abrem caminho, esse acompanha o Santíssimo como<br />

guarda de honra; por isso leva seu bonito elmo na mão, e<br />

não sobre a cabeça.<br />

Entre o Santíssimo Sacramento e a Guarda Suíça<br />

avança um clérigo tocando uma sineta, para alertar as<br />

pessoas da passagem da Santo Viático, que está ladeado<br />

por clérigos portando velas acesas.<br />

Acompanham a procissão lacaios, camareiros e senhores<br />

da corte pontifícia. Todos se dirigem da capela do<br />

Santíssimo Sacramento para os aposentos papais.<br />

No primeiro plano veem-se dois padres franciscanos<br />

com a cabeça tonsurada, inclinados e rezando. É muito<br />

bonito o contraste entre a simplicidade do traje franciscano,<br />

a humildade com que eles genufletem, o espírito de<br />

prece expresso pelas mãos e pela atitude, de um lado, e,<br />

de outro, a solenidade e o recolhimento dos que acompa-<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

W. J. Wintle (CC3.0)<br />

nham o Santíssimo Sacramento. Esse contraste entre a<br />

riqueza e a pobreza, a nobre altaneria e a suma humildade<br />

constitui uma harmonia especial.<br />

Trata-se de outra cena que o desenhista soube representar<br />

muito bem. Chama a atenção o lustroso do chão,<br />

dir-se-ia que estão andando sobre a água; é o mármore<br />

eximiamente polido e de uma qualidade esplêndida, tão<br />

frequente na Itália e tão belo no Vaticano.<br />

Eis uma cena verdadeiramente magnífica! Nosso Senhor<br />

encontra-Se presente e passa por aquelas galerias;<br />

do alto do Céu, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos<br />

O estão adorando. Jesus Sacramentado Se dirige ao Papa<br />

que está morrendo, e vai haver o último colóquio entre<br />

Cristo e seu Vigário na Terra.<br />

Entretanto, o desenho não é nada em comparação<br />

com o cerimonial elaborado ao longo de séculos, pouco<br />

a pouco, pelo costume, pela tradição e sobretudo pela Fé.<br />

O “pulchrum” eterno da Igreja Católica<br />

Outra ilustração representa a Praça de São Pedro na<br />

noite que precedeu a morte de Leão XIII. A praça começa<br />

a se encher de gente que anda de um lado para<br />

outro à espera de notícias sobre a saúde do Papa, ou do<br />

desenlace final que todos aguardam para qualquer momento.<br />

Não se formam essas multidões compactas de nossos<br />

dias, mas rodinhas, pois as pessoas ainda têm muita<br />

personalidade.<br />

Percebe-se que todos falam baixo. Seria um desrespeito<br />

haver ali um vendedor de balas, um jornaleiro ou<br />

qualquer outro elemento que levasse os presentes a pensar<br />

em algo que não fosse isto: o Vigário de Cristo está<br />

muito doente e, de uma hora para outra, serão dadas notícias<br />

sobre ele.<br />

Veem-se, dos dois lados, os locais de onde parte a colunata<br />

de Bernini. À direita encontra-se o Palácio do Vaticano,<br />

e é junto a uma dessas janelas que o desenlace está<br />

se dando, os últimos momentos de um pontificado, de<br />

uma vida e de um capítulo da História estão escoando.<br />

Todo o mundo confabula...<br />

Como não poderia deixar de ser, na praça aparecem<br />

várias batinas, traje muito característico do tipo de padre<br />

comum naquele tempo, experiente e compenetrado<br />

de sua missão. No primeiro plano há um padre que está<br />

indo embora. Trata-se de um homem alto, corpulento,<br />

com passo decidido, sério, portando um grande cha-<br />

34


péu e aparentando uma idade avançada, uma venerabilidade<br />

acompanhada de uma espécie de maturidade que<br />

se prolonga. A alma é provecta de antiguidade, e o corpo,<br />

decidido e forte. O sacerdote se retira imerso em seus<br />

pensamentos.<br />

Não é verdade que esse desenho nos faz compreender,<br />

mais do que muitas fotografias, o que há de venerável na<br />

Praça de São Pedro e todo o pulchrum eterno da Igreja<br />

Católica?<br />

Expressão da realidade que<br />

a fotografia não capta<br />

O Papa morreu, seu corpo foi posto numa posição um<br />

pouco mais ereta e começou a despedida dos Cardeais. O<br />

desenho representa um deles que oscula a mão do Pontífice.<br />

Atrás, onde a parede faz ângulo, está o futuro Papa<br />

Bento XV, sucessor de São Pio X – a sucessão dos Pontífices<br />

foi: Leão XIII, São Pio X, Bento XV –, na força de<br />

sua maturidade, ainda de cabelos pretos, pensativo. Ele<br />

não olha para ninguém, e ninguém olha para nada a não<br />

ser o morto.<br />

Ao fundo, um Cardeal bem mais velho fita<br />

o infinito. Outro, já mais próximo à cama,<br />

olha para o cadáver com uma espécie de ansiedade,<br />

como quem diz: “Então, meu velho<br />

companheiro de episcopado e de colégio cardinalício,<br />

meu Papa durante tantos anos, tu te<br />

vais? É assim a morte? Ela não está longe de<br />

mim... Ó morte! Fito em ti o meu dia de amanhã.<br />

Mais: morte, contemplo em ti o umbral<br />

da eternidade, o passado que fica e o futuro<br />

que vem. Ó morte! Ó Deus!”<br />

Sentado na poltrona que se via em um dos<br />

desenhos anteriores encontra-se um outro<br />

Cardeal, literalmente affaissé 1 e muito pensativo.<br />

No que ele pensa? Talvez nas palavras<br />

clássicas: Sicut transit gloria mundi – assim<br />

passa a glória do mundo. Tudo se foi, todos os<br />

anseios, realizações, aflições, decepções, tudo<br />

está encerrado, nada permanece, tudo é efêmero...<br />

Ó amargura! Ó Deus que, afinal, sereis<br />

a consolação dos justos!<br />

Um certo desalinho intencional do cabelo<br />

constitui quase o sismógrafo que indica a<br />

sua aflição. Ele não está na postura própria<br />

de quem, na Belle Époque 2 , encontrava-se na<br />

presença de outros. Sua atitude é a de um homem<br />

da Belle Époque quando estava sozinho<br />

no quarto meditando, ou seja, à vontade...<br />

Comparemos a atitude de muita dignidade<br />

dos demais Cardeais – até mesmo o cadáver<br />

de Leão XIII está digno na sua postura – e a desse cardeal<br />

idoso no primeiro plano. É como se ele estivesse sozinho<br />

no seu quarto, numa posição inclinada, mas digna,<br />

em nada ridícula, nem descomposta. Tudo isso reflete a<br />

pompa da Belle Époque.<br />

Eu volto a dizer: na minha opinião, essas ilustrações<br />

têm muito mais expressão do que a fotografia. Entretanto,<br />

não haveria um jornal hoje que as reproduzisse, porque<br />

o público quereria a fotografia que colheu o fato real,<br />

recente. As pessoas não percebem que esses desenhos<br />

dão a essência da realidade que nenhuma fotografia capta.<br />

Há no espírito de análise do bom desenhista uma<br />

“objetiva espiritual”, que vale incomparavelmente mais<br />

do que o click das máquinas fotográficas. v<br />

1) Do francês: abatido, prostrado.<br />

(Extraído de conferência de 21/11/1980)<br />

2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante<br />

o qual a Europa experimentou profundas transformações<br />

culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.<br />

W. J. Wintle (CC3.0)<br />

35


Wolfgang Sauber (CC3.0)<br />

<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Soldados do Senhor<br />

Deus dos exércitos<br />

Gabriel K.<br />

A fortaleza se exprime na vida<br />

humana de um modo mais sensível<br />

na carreira militar. Dos vários<br />

exércitos contemporâneos, nenhum<br />

levou as qualidades militares mais<br />

longe do que o exército alemão do<br />

tempo do Kaiser. Seus membros<br />

estavam impregnados da ideia<br />

de holocausto na defesa de um<br />

princípio, fazendo com que não<br />

medissem riscos nem cansaços.<br />

Segundo a Doutrina Católica, tudo quanto há de nobre<br />

e de belo no mundo é um reflexo de Deus. Portanto,<br />

o Criador possui todas as perfeições em grau<br />

supremo, de um modo inimaginável, mas inteligível.<br />

Mais ainda, não se pode dizer que Deus tenha determinada<br />

perfeição, pois Ele é substancialmente aquela<br />

perfeição. Por exemplo, Ele não possui o mais alto grau<br />

de bondade apenas, mas é a Bondade! Todos os graus e<br />

formas de bondade existentes nos Anjos e nos homens<br />

não constituem senão participações criadas da Bondade<br />

infinita e incriada que é Deus.<br />

Assim, alguém que dissesse: “O Senhor expulsou os<br />

demônios do Céu e, portanto, é muito forte”, diria uma<br />

verdade, mas não a verdade inteira na sua expressão<br />

Cristo, o Rei - Igreja das Bodas<br />

de Caná, Kafr Kanna, Israel<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

mais enérgica. Esta consistiria em afirmar: “Deus expulsou<br />

os demônios do Céu porque Ele é a própria Fortaleza.”<br />

E todas as fortalezas que há na Terra são participações<br />

criadas da divina Fortaleza.<br />

Tive oportunidade de comentar esta virtude simbolizada<br />

em um ente irracional, como é o leão 1 . Entretanto,<br />

pediram-me para tratar a respeito dessa perfeição<br />

divina espelhada nos homens. Para isso julgo mais<br />

adequado analisar fotografias, embora haja o inconveniente<br />

de estas apresentarem elementos infectados de<br />

Revolução.<br />

Qualidades militares dignas<br />

de atenção e análise<br />

A meu ver, a fortaleza se exprime na vida humana de<br />

um modo mais sensível na carreira militar. E parece-me<br />

que, dos vários exércitos contemporâneos – ao menos da<br />

época da fotografia –, nenhum levou as qualidades militares<br />

mais longe do que o exército alemão do tempo do<br />

Kaiser. Não por possuir o monopólio a esse respeito, mas<br />

por ter atingido um grau que, no gênero próprio, não foi<br />

superado e, enquanto tal, resulta muito digno de atenção<br />

e de análise da nossa parte.<br />

É bem evidente que esse exército apresenta defeitos<br />

que o tornam objetável sob vários pontos de vista. O primeiro<br />

deles consiste no seu caráter protestante-prussiano.<br />

A Alemanha da época do Kaiser estava dominada<br />

não mais pela Casa d’Áustria, como fora antes – ou<br />

seja, por uma dinastia católica, paterna, altamente culta,<br />

distinta e nobre –, mas por uma dinastia estritamente<br />

militar, um tanto “sargentona”, protestante, com tudo<br />

aquilo que existe de rígido, inflexível, hirto e agressivo<br />

no Protestantismo.<br />

Estas notas prejudicam em algo – aliás, não pouco –<br />

os aspectos do exército alemão que pretendo comentar.<br />

Mas, para não estar sempre repetindo, deixo isso dito<br />

na introdução, a fim de depois apresentar os lados positivos<br />

que nos interessam, nos quais exatamente se pode<br />

ver alguma semelhança com Deus.<br />

O mundo sem militares ficaria irrespirável<br />

As fotografias que vou comentar datam de pouco antes<br />

da Primeira Guerra Mundial e, portanto, do período em<br />

que a Alemanha kaiseriana havia chegado ao seu apogeu.<br />

Quando estive na Alemanha era tão menino – tinha<br />

quatro anos – que não me lembro de nada a esse respeito.<br />

A única recordação militar que conservo da viagem à<br />

Europa em minha infância não procede da Alemanha,<br />

mas de Paris. Estávamos hospedados num hotel<br />

cujas janelas davam para o Arco do Triunfo e, enquanto<br />

brincava no chão do quarto, de repente ouvi<br />

sons de clarins. Não sei o que aquela clarinada determinou<br />

em mim, mas tive um verdadeiro frisson e<br />

fui correndo para a janela. Vi então um piquete de<br />

dragões de cavalaria que passava, com a couraça,<br />

elmo de metal com aquela crina atrás e montados<br />

em cavalos grandes, que avançavam quase em passo<br />

de parada.<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

Miltitärfotograf (CC3.0)<br />

32


Fiquei maravilhado! Nascia em mim o militarista.<br />

Não sou militar, mas militarista ao último ponto, admiro<br />

muito a carreira militar. A meu ver, o mundo sem militares<br />

ficaria irrespirável pois, para a harmonia do espírito<br />

humano, é preciso haver magníficos exércitos na Terra.<br />

Eles constroem mais em tempos de paz pelo seu exemplo<br />

do que destroem em tempo de guerra.<br />

Passemos aos comentários, nos quais procurarei seguir<br />

o seguinte método: descrição do quadro, análise das<br />

virtudes nele representadas e uma referência metafísica<br />

a Deus nosso Senhor, Autor dessas virtudes.<br />

Personificação do brio e garbo de seu exército<br />

Uma das fotografias nos mostra o Imperador da Alemanha,<br />

Guilherme II, comandante supremo das forças<br />

armadas, passando o bastão de comando a um general<br />

durante uma parada.<br />

Em primeiro lugar, faço notar o uniforme. O Kaiser<br />

está vestido como um general de cavalaria. Na cabeça,<br />

porta um elmo de aço encimado por um penacho branco.<br />

Ao soprar o vento, essas penas esvoaçam mais ou menos<br />

como se fossem as asas de um pássaro. Quando não<br />

há vento, elas descem e formam uma espécie de triângulo<br />

muito bonito sobre o elmo.<br />

As dragonas eram peças de rigor nos exércitos daquele<br />

tempo, destinadas a acentuar a impressão de varonilidade<br />

do corpo do militar, aumentando-lhe os ombros.<br />

Guilherme II tem o peito constelado por numerosas<br />

condecorações. De seu lado pende uma espada, e veem-<br />

-se também as botas de cavalaria. Ele monta um cavalo<br />

de primeiríssima categoria, em cujo dorso há uma cela<br />

esplêndida, belamente bordada.<br />

O general está fardado mais ou menos como o Kaiser,<br />

mas se percebe nele uma condecoração especial: uma<br />

faixa que lhe toma todo o corpo, a qual fazia parte do<br />

uniforme dos generais de maior graduação do exército<br />

alemão daquele tempo.<br />

Na atitude do Kaiser notamos, antes de tudo, o perfeito<br />

domínio do cavalo – um animal fogoso –, que ele monta<br />

com completo desembaraço. Guilherme II está sentado<br />

no cavalo como sobre uma cadeira; todo o seu corpo<br />

apresenta uma postura de firmeza e segurança. Vê-<br />

-se nele o estilo marcial de um homem cônscio de que domina<br />

o exército talvez mais poderoso do mundo e de que<br />

personifica, portanto, o brio e o garbo desse exército.<br />

O Kaiser encontra-se na flor da idade para um oficial<br />

superior, quer dizer, ele deve ter mais ou menos uns quarenta<br />

a quarenta e cinco anos. O general já é um pouco<br />

mais velho e pesadão, representando menos bem o garbo<br />

militar sob este ponto de vista. Porém, o exército alemão<br />

tem nele a figura de um guerreiro supremo: calmo,<br />

seguro, varonil, digno e disposto a tocar as coisas para a<br />

frente.<br />

Desejo de quebrar os resíduos da preguiça<br />

Outra fotografia nos permite ver os soldados de infantaria<br />

fazendo manobras e marchando com o famoso<br />

passo de ganso do exército prussiano, que se comunicou<br />

a todo o exército alemão e também a alguns exércitos<br />

sul-americanos. Consiste em marchar levantando a<br />

perna até a altura da cintura para exprimir resolução,<br />

ausência de preguiça. O homem preguiçoso arrasta os<br />

pés, quase não os levanta; o soldado de infantaria resoluto,<br />

disposto a lutar de toda maneira, que transpõe a pé<br />

distâncias enormes, levanta a perna quase até o inconcebível,<br />

manifestando seus desejos de violentar e quebrar<br />

completamente os resíduos da preguiça que sempre existem<br />

numa criatura humana.<br />

Por outro lado, vê-se os batalhões rigorosamente alinhados,<br />

e as filas que vão se sucedendo com a decisão de<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

lutar e de matar. As baionetas emergem do alto dos fuzis<br />

portados por soldados revestidos de uniformes escuros e<br />

calças brancas. Quem vê um regimento tem a impressão<br />

de uma máquina de disciplina, de energia, de impacto<br />

férreo, disposta a tudo para vencer e diante da qual nada<br />

pode resistir. É exatamente o estilo do militarismo alemão,<br />

bem diferente do militarismo espanhol, mais afeito<br />

à guerra de emboscada, por meio da qual os soldados da<br />

Espanha expulsaram de seu território o maior exército<br />

do tempo, o de Napoleão, organizado segundo os modelos<br />

que mais tarde o exército do Kaiser haveria de seguir.<br />

Podemos imaginar o efeito que causavam milhares de<br />

homens desfilando horas seguidas diante do público eletrizado.<br />

A população se sentia representada naqueles<br />

homens que personificavam o espírito militar alemão; e<br />

o desejo de grandeza, de proeza, de ousadia, o gosto de<br />

organização e disciplina, que distingue os alemães, estavam<br />

ali muito bem expressos. O que encanta toda essa<br />

gente é a ideia de eventualmente até morrer, numa suprema<br />

manifestação de força e coragem.<br />

Uma das mais altas situações que<br />

a vida humana pode oferecer<br />

A próxima fotografia mostra aquele que, a meu ver, é<br />

um dos mais bonitos regimentos do exército alemão. Os<br />

soldados têm sobre o elmo de metal uma águia, emblema<br />

do Império Germânico. Ela representa a força no mundo<br />

dos pássaros e, portanto, simboliza o domínio. Tratam-se<br />

de soldados de cavalaria que vestem um uniforme<br />

branco com grandes botas, as quais vão até acima do<br />

joelho, e portam uma espada.<br />

Em outro batalhão, constituído de oficiais e que deve<br />

ser a guarda pessoal do Imperador, nota-se uma peça do<br />

vestuário, uma espécie de dolman, na qual figura um sol<br />

que, por sua vez, representa o domínio entre os astros. É<br />

o astro-rei, como a águia é o pássaro-rei.<br />

O alinhamento das fileiras é impecável, corretíssimo,<br />

indicando cuidado, disciplina. Nenhum soldado aparece<br />

numa atitude preguiçosa, com ar de quem tem pressa<br />

de cessar esse exercício. Todos estão contentes, felizes<br />

de representar o papel do guerreiro. Por quê? Pela beleza<br />

da luta e da força em si, pelo pulchrum do holocausto<br />

do homem que esgota toda a sua vida no momento em<br />

que realiza isto e pode dizer: “Eu morri no ápice da minha<br />

fortaleza.”<br />

Vemos em outra fotografia uma revista às tropas. Os<br />

destacamentos estão parados e o Kaiser, seguido de seu<br />

Estado-Maior, vai percorrendo os regimentos. Uma vez<br />

mais se faz notar o alinhamento impecável.<br />

A atitude dos soldados é de quem se deixa inspecionar<br />

com entusiasmo. A do Kaiser e de seu séquito, por<br />

sua vez, é de quem compreende a nobreza que há em comandar.<br />

Também eles estão alegres porque comandar a<br />

guerra significa comandar a epopeia e a proeza, realizar<br />

as qualidades de homem numa das mais altas situações<br />

que a vida humana pode oferecer.<br />

A ideia de holocausto na<br />

defesa de um princípio<br />

Em outra fotografia podemos ver uma carga de cavalaria.<br />

Trata-se de um exercício que se prepara para a<br />

guerra. Os oficiais e os soldados cavalgam a todo galope,<br />

de sabre na mão e bradando, para atacarem, no caso<br />

concreto, um adversário imaginário. Mas é uma linda<br />

imagem da guerra.<br />

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, não se tinha<br />

feito ainda a experiência de que, com armas de fogo<br />

muito evoluídas, o uniforme brilhante tornava o soldado<br />

Photogr. Industrie Jens, Altona (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

L. H. Schiffer (Wiesbaden) (CC3.0)


Max Marcus (CC3.0)<br />

German Federal Archives (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

Bain News Service (CC3.0)<br />

iwm.org (CC3.0)<br />

um alvo a longo alcance. De maneira que nessa época os<br />

soldados ainda usavam lindos uniformes, os quais lhes<br />

davam consciência da importância de seu métier.<br />

Qual é a fonte do entusiasmo com que eles avançam?<br />

Todos compreendem como é belo andar a cavalo, dominar<br />

um corcel fogoso e, sobretudo, quanto é belo estimulá-lo<br />

a atacar, ter uma força que se joga de encontro ao<br />

adversário para o derrubar, quanto é belo matar e morrer<br />

na defesa da boa causa! Esta ideia de holocausto, de<br />

destruição do adversário e de si mesmo na defesa de um<br />

princípio, fazia com que esses homens não medissem riscos<br />

nem cansaços. Para viver esses momentos de apogeu,<br />

eles sacrificavam tudo.<br />

Um mundo metafísico, de valores<br />

absolutos, que nos aproxima do Céu<br />

Em uma das fotografias, vê-se a figura primorosa de<br />

um velho general conversando com o Kaiser. Um homem<br />

cuja barba é toda branca, e se nota o cabelo branco aparecer<br />

por debaixo do capacete. Apesar da avançada idade,<br />

porém, ele está teso, reto.<br />

Chamo a atenção para o elmo. Ele é brilhante, luzidio,<br />

possui uma guarnição dourada que vai até o queixo,<br />

e não tem penacho nem águia, mas uma ponta que dá a<br />

ideia de que, à mingua de outra coisa, o soldado alemão<br />

avançará fazendo o papel do touro contra o toureiro, e<br />

lutará até a última resistência.<br />

O general está numa atitude que inspira, não o respeito<br />

que se tem por um idoso, mas o respeito devido a<br />

um militar. Vê-se que, se aparecer um adversário, esse<br />

ancião pega a espada e sai para combater. É um homem<br />

válido para qualquer coisa. A firmeza e a altivez militares<br />

encontram-se esplendidamente representadas nessa<br />

fotografia.<br />

Podemos observar uma vez mais o passo de ganso no<br />

desfile dos estandartes do Império, no qual cada soldado<br />

conduz uma insígnia diversa correspondente a um dos<br />

vários regimentos. Além da variedade e beleza dos estandartes<br />

de gala – todos bordados, riquíssimos –, contemplamos<br />

também a diferença dos elmos: um em forma de<br />

cone truncado, outro com ponta, outro ainda com penacho.<br />

Notem com que garbo e entusiasmo eles marcham.<br />

Cada um dá a sensação de estar carregando nas mãos a<br />

honra do próprio regimento, e conduz a bandeira como<br />

quem porta um princípio, um ideal, e o leva para a luta.<br />

Eles não olham para o público. Representam um papel<br />

para um mundo imaginário, metafísico, de valores<br />

absolutos, que está além do nosso. É o mundo feito de<br />

ideias, de princípios, que já nos aproxima do Céu e de<br />

Deus.<br />

A Escritura atribui ao Altíssimo o título de “Senhor<br />

Deus dos exércitos”, quer dizer, o Deus de toda força, o<br />

qual paira acima dos exércitos que defendem o bem e faz<br />

vencer aqueles que Ele quer proteger. Tem-se a impressão<br />

de que esses homens estão imbuídos da grandeza de<br />

serem soldados do Senhor Deus dos exércitos. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 12/1/1973)<br />

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 251 e 252, p. 30-35.<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Entusiasmo e alegria<br />

pela alma guerreira<br />

Na Idade Média se entendeu que na sociedade temporal a<br />

mais alta carreira era a militar. Exatamente por causa do<br />

princípio enunciado por Nosso Senhor: “Ninguém tem maior<br />

amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.”<br />

Por essa razão, as mais belas guerras da História foram<br />

aquelas que tomaram todo o seu sentido no ideal religioso.<br />

Anação alemã é tão militarista que o estilo militar<br />

invadiu a vida civil. Os estudantes tinham<br />

várias associações, muitas delas fundadas há<br />

séculos. Cada um possuía um uniforme próprio e usava<br />

uma espada para esgrima, que era o esporte preferido<br />

por eles.<br />

O que a alma militar tem de mais belo<br />

Vemos em uma das fotografias uma cerimônia na corte.<br />

O Imperador fardado, de pé sobre o estrado junto a dois tronos<br />

com um dossel. De tal maneira o feitio militar impregnou<br />

a vida alemã que até as velhas senhoras são tesas e hir-<br />

Anton von Werner (CC3.0)<br />

Inauguração do Reichstag no Salão Branco<br />

do Palácio de Berlim por Guilherme II (25 de<br />

junho de 1888) - Museu Histórico Alemão<br />

32


tas como dragão de cavalaria. A<br />

Imperatriz, pessoa aliás muito<br />

afável e simpática, tem um pouco<br />

a postura de uma “generala”.<br />

Mas tudo se passava de um<br />

modo meio militaresco na corte<br />

alemã, sempre impregnada pela<br />

ideia de que o valor supremo da<br />

existência humana é a luta, portanto<br />

a guerra, a imolação da vida ou a<br />

destruição de vidas.<br />

Na música militar alemã as notas saem<br />

como se fossem batalhões, arrasando no ar<br />

um inimigo imaginário. Silêncios preguiçosos se rasgam<br />

diante deles, e vão batendo, cutucando, combatendo,<br />

de maneira a se ter a impressão de que acabam<br />

tomando a cidadela. É a descrição magnífica de<br />

um combate ou a sonorização de uma parada. Quando<br />

determinados instrumentos dão uma nota, tem-se<br />

a sensação de estar vendo o passo do soldado alemão,<br />

moverem-se capacetes, elmos, estandartes... É toda a epopeia<br />

da Alemanha imperial que passa diante de nós.<br />

Por detrás do aparato militar muito bonito e da sonorização<br />

que combina tanto com esse aparato, percebemos<br />

algo mais belo: é a alma militar. O que esta, por sua<br />

vez, tem de mais belo é a decisão decorrente da profundidade<br />

da alma humana de entregar a vida por um determinado<br />

ideal. Não é entregar a vida deixando-se matar,<br />

mas é destruindo algo que não tem o direito de existir,<br />

organizando contra um ilegítimo agressor uma força<br />

metódica, implacável e disposta a tudo.<br />

A vida humana não é o valor supremo<br />

O bonito, então, não é só esta resolução, mas, acima<br />

dela, o idealismo. Se algo fere o Direito, a Lei, a Moral,<br />

não tem a faculdade de ser; e em nome da Lei, do Direito e<br />

da Moral é preciso tomar a iniciativa de lutar contra isso.<br />

Trata-se de uma resolução tomada à luz de um princípio<br />

superior, determinando no homem uma verdadeira<br />

sublevação no sentido etimológico da palavra, um surto<br />

de toda a personalidade, uma mobilização completa.<br />

Não uma mobilização sem distância psíquica, neurótica,<br />

de um gagá que toma um remédio qualquer para ficar<br />

meio alucinado e vai como uma besta se meter em cima<br />

das baionetas dos outros, mas de um homem inteiramente<br />

lúcido, senhor de si, que apela para sua própria personalidade<br />

e a coloca na luta. E o faz numa espécie de ato de<br />

holocausto, que é o seguinte: Se eu devo morrer, a minha<br />

vida teve pleno sentido porque me realizei por inteiro.<br />

O homem se realiza por inteiro quando se dá a algo<br />

que vale completamente. Então ele chegou à sua própria<br />

plenitude. Sobretudo, quando se dá totalmente com<br />

Jesus indicando o caminho<br />

aos cruzados - Igreja Sainte-<br />

Ségolène, Metz, França<br />

o risco de, após a guerra, ficar estropiado, cego, arrastar-se<br />

como um inválido, às vezes um pobre mendigo, ou<br />

morrer na flor da idade, tornar-se prisioneiro, ser maltratado.<br />

Seja qual for o risco, ele resolveu e fará. Executa<br />

e sofre, mas nesse sofrimento o homem se une com<br />

seu ideal e, por assim dizer, se realiza com seu ideal.<br />

Isto, no fundo, tem o sentido seguinte: a vida humana<br />

não é o valor supremo. A comodidade, a prosperidade,<br />

o conforto, o próprio prazer nobre e elevado de ter<br />

uma cultura, uma instrução, a familiaridade com altas<br />

cogitações do espírito, nada disto constitui o fim da vida.<br />

Sua finalidade consiste em algo que é mais alto do que a<br />

vida: o Direito considerado em si, a Moral considerada<br />

em si, o Bem considerado em si, em holocausto do qual o<br />

homem se imola.<br />

A mais perfeita das guerras em todos<br />

os tempos foi a das Cruzadas<br />

Mas, por sua vez, o que é o Direito, o Bem, a Moral<br />

considerados em si? A Doutrina Católica ensina: só<br />

existe um Deus supremo, perfeito, santíssimo, Criador<br />

de todas as coisas, a cuja Lei todos devem obedecer, Ele<br />

é o Bem, o Direito. Deus premia o herói e castiga o injusto<br />

agressor ou o poltrão que não soube resistir a este<br />

último. Quer dizer, ou esses princípios se personificam<br />

num Ser espiritual vivo, perfeito e infinito, ou não<br />

têm sentido.<br />

Flávio Lourenço<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Flávio Lourenço<br />

Porque o Direito em si… é o que os latinos chamam<br />

flatus vocis, uma palavra vácua, um som emitido pela<br />

voz. Moral em si… que sentido tem o vocábulo “moral”<br />

se não há um Deus que me premia e me castiga, o<br />

Qual eu preciso amar porque Ele é Ele? E ainda mesmo<br />

que não me premiasse e não me castigasse, eu O<br />

deveria amar porque Ele é perfeitíssimo e digno de todo<br />

amor.<br />

Isto dá o último sentido da imolação, do senso militar.<br />

Por essa razão a mais bela e nobre forma de guerra que<br />

se possa imaginar é a guerra religiosa.<br />

A guerra das guerras em todos os tempos e a mais perfeita<br />

foi a das Cruzadas para libertar o Santo Sepulcro e<br />

as populações dos católicos do Oriente próximo, que estavam<br />

opressas pelos maometanos. A Cruzada contra os<br />

cátaros e albigenses, as guerras de Religião da Liga Católica<br />

da França, as dos chouans, dos carlistas, dos cristeros<br />

são as mais belas guerras da História, porque tomam<br />

todo o seu sentido no ideal religioso.<br />

E agora vem a mais alta consideração que podemos<br />

fazer: a alma desses guerreiros que morrem pensando<br />

em Deus. De um Roland, par de Carlos Magno, que expira<br />

em Roncesvales, entregando sua alma ao Criador. Essa<br />

alma que O ama tanto é, ela mesma, um reflexo d’Ele,<br />

parecida com Ele, criada à sua imagem. Deus Se espelha<br />

nela e esse heroísmo que há nela é o reflexo de uma<br />

virtude divina. Um reflexo muito mais próximo do que o<br />

leão, o qual é um animal irracional. O herói é um ente<br />

racional e, na sua alma espiritual, o heroísmo já é um reflexo<br />

muito mais próximo de Deus. Porque a alma se parece<br />

muito mais com o espírito do que matéria.<br />

Vitória de São Miguel e seus Anjos contra os demônios - Igreja<br />

de São Lourenço, São Lourenço de Morunys, Espanha<br />

A primeira guerra santa da História<br />

Quantas atitudes de Deus no-Lo mostram como guerreiro!<br />

Ele ordenando a São Miguel Arcanjo que elimine<br />

os demônios que se revoltaram no Céu e os precipite<br />

no Inferno. Que ato supremamente majestoso! Deus,<br />

no fundo de todos os séculos, levantando-Se na sua indignação<br />

e dando a ordem a São Miguel Arcanjo para<br />

expulsar os demônios. Pode-se imaginar esta manifestação<br />

da cólera divina, do desagrado de Deus, da repulsa,<br />

da rejeição, do asco e, depois, o castigo eterno, completo:<br />

“Contra eles o meu ódio implacável. Eu os cancelarei<br />

do local glorioso, a perpétua e feliz permanência na minha<br />

presença, e os atirarei para todo o sempre numa dor<br />

sem remédio, nem diminuição, nem consolação no lugar<br />

do fogo, das imundícies, do asco, da blasfêmia, da tortura,<br />

detestados por Mim por toda a eternidade.”<br />

Imaginem a majestade dessa sentença! A beleza do<br />

triunfo de São Miguel Arcanjo e de todos os Anjos fiéis que,<br />

no Céu, resistiram à prova e, por assim dizer, desfilaram<br />

diante de Deus, recebendo – eles, os bons guerreiros que<br />

empurraram os demônios para o Inferno – o prêmio pela<br />

guerra santa, a primeira da História, que tinham travado.<br />

Que resplendores no Paraíso! Que “paradas”, que “marchas”!<br />

Se, como sabemos, os Anjos entoam um canto espiritual,<br />

o que terão sido os cânticos deles durante a guerra<br />

contra os demônios, e o que poderia ser o cântico de triunfo<br />

dos Anjos fiéis no Céu, mostrando a Deus os demônios derrotados?<br />

Ninguém pode ter ideia da beleza disto!<br />

Mas, com o favor de Nossa Senhora, nós vamos ter<br />

esta ideia. Quando sobre o mundo desolado, devastado,<br />

escangalhado, quase todos ou todos os homens mortos,<br />

a tuba do julgamento final tocar e os corpos<br />

começarem a ressuscitar, e o Verbo de Deus<br />

encarnado baixar à Terra em pompa e majestade,<br />

veremos o Criador dando o final<br />

também da grande batalha da Criação. Ele<br />

vai chamar a Si todos os eleitos que se unirão<br />

a Ele num desfile processional garboso e<br />

marcial. E vai mandar para o Inferno, para<br />

o lugar dos derrotados, os maus que foram<br />

esmagados na luta.<br />

A alma guerreira, santíssima<br />

e perfeitíssima de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

Então, nós teremos o último cântico de<br />

triunfo da Criação que vai celebrar a alegria<br />

e a majestade da vitória de Deus. Nossa<br />

Senhora vai brilhar com toda sua refulgência,<br />

Ela a Quem a Escritura compara textualmente<br />

a um exército em ordem de batalha,<br />

34


Gabriel K.<br />

classe social que seguia essa carreira era a mais alta, ou<br />

seja, a nobreza. Exatamente por causa daquele princípio<br />

enunciado por Nosso Senhor: Ninguém pode amar mais<br />

seu amigo do que dando a vida por ele (cf. Jo 15, 13). Então<br />

é aquele ato de suprema identificação com os mais<br />

nobres ideais, pelos quais alguém se oferece num holocausto<br />

cruento. Eis porque a Igreja tem canonizado homens<br />

em todos os estados de vida, desde príncipes até lixeiros,<br />

desde Papas até humildes sacristães, de todas as<br />

idades, etc., mas quando ela fala dos mártires tem um<br />

tremor na voz e um enlevo especial nos olhos. Nada mais<br />

belo do que oferecer a sua vida. São Paulo já disse: Cristo<br />

crucificado excede a tudo (1Cor 1, 23-25).<br />

O bonito é que Nosso Senhor aceita, mais do que os<br />

nossos atos, os nossos desejos. Se tivéssemos o desejo intensíssimo<br />

e cotidiano de viver e morrer numa guerra<br />

santa, ainda que não fôssemos capazes de lutar durante<br />

ela, quando morrêssemos teríamos a glória do guerreiro.<br />

Mas para isso seria preciso nós termos um espírito tal<br />

que, a qualquer momento em que a guerra santa arrebentasse,<br />

nós entrássemos para ela como Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo tomou sua Cruz: com entusiasmo, com alegria,<br />

osculando-a de satisfação.<br />

v<br />

Juízo Final - Museu Metropolitano<br />

de Arte, Nova Iorque<br />

e que sozinha esmagou todas as heresias no mundo inteiro.<br />

Nós vamos ver Nosso Senhor Jesus Cristo erguer-<br />

-Se com aquela majestade que Ele tem no Santo Sudário,<br />

no furor de sua indignação contra os maus e no esplendor<br />

de seu amor aos bons, e veremos a separação feita. O<br />

exército dos bons vai ficar para todo o sempre no Céu e<br />

o dos maus para todo o sempre no Inferno. Será o fim da<br />

batalha e a vitória permanente dos bons.<br />

Nesse momento nós teremos refulgências de Deus e<br />

veremos aquilo que poderíamos chamar a Alma guerreira,<br />

santíssima e perfeitíssima de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, chamado pela Escritura o Leão de Judá, e de<br />

Nossa Senhora, a Rainha de todos os exércitos.<br />

São Paulo diz que ele só sabia pregar a Jesus Cristo.<br />

E depois acrescentou: a Jesus Cristo crucificado (1Cor 2,<br />

2), entendendo que todas as coisas perfeitíssimas, santíssimas<br />

e insondavelmente sábias que Nosso Senhor fez<br />

em sua vida, sendo elas todas objeto de enlevo constante<br />

dos homens, entretanto como que se compendiavam<br />

no ato em que Ele deu a vida na Cruz. Quer dizer, no<br />

momento em que o homem se imola por algo, ele dá tudo<br />

quanto poderia dar. O holocausto, o sacrifício cruento<br />

contém todo o resto. É um ápice.<br />

Por causa disto, na Idade Média se entendeu que na<br />

sociedade temporal a mais alta carreira era a militar; e a<br />

(Extraído de conferência de 12/1/1973)<br />

Jesus carregando a Cruz - Basílica de<br />

Nossa Senhora do Rosário, Guatemala<br />

J. P. Braido<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

À procura do belo<br />

e do superbelo<br />

Em suas obras, Claude<br />

Lorrain compõe o belo e<br />

introduz o superbelo. Para<br />

isso, capta os “flashes” dos<br />

estados mais bonitos da<br />

natureza e os fixa na tela.<br />

Entretanto, ao pintar uma<br />

paisagem não se limita a<br />

retratá-la como ela é, mas<br />

como ele a imagina.<br />

V<br />

ão ser consideradas fotografias de quadros de<br />

um pintor de origem lorena, mas que pintou a<br />

Itália e se tornou sobretudo célebre na Inglaterra.<br />

O nome dele é francês: Claude Lorrain 1 . Os quadros<br />

correspondem ao desejo de maravilhoso que ilustrava o<br />

Ancien Régime 2 .<br />

“Flashes” dos estados mais belos da natureza<br />

Nos quadros há dois dados que nos interessam realçar.<br />

Em primeiro lugar, é o modo elaborado e cultural de<br />

apresentar a natureza, por onde ela fica vista nos seus<br />

aspectos fugidios mais belos. Ele pega por assim dizer<br />

“flashes” dos estados mais belos da natureza e os fixa na<br />

30


tela. Ademais, tem esta posição que é muito criticada pelos<br />

modernos: compor o belo. Quer dizer, ao pintar uma<br />

paisagem, não a retrata como ela é, mas como ele a imagina.<br />

Pinta, por exemplo, um golfo real, mas figura no<br />

golfo uma ilha que não existe. E na ilha, um castelo que<br />

não existe também. E isto para pôr dentro do belo o superbelo.<br />

Qual a crítica que os modernos fazem a isso? Que não<br />

é real, as coisas não se passam assim e se deve pintar a<br />

realidade. Depois eles vão pintar na tela homens monstruosos<br />

que graças a Deus não existem, mas os partidários<br />

desse tipo de arte não chamam isso de “irrealismo”,<br />

e sim de “surrealismo”. Quer dizer, para eles isso não<br />

só é a realidade, mas a super-realidade. Ora, já se pode-<br />

mQHhySZUHdWMaA (CC3.0)<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

ria impugnar o título: a super-realidade é real ou é a irrealidade?<br />

Além disso, uma coisa que é a super-realidade<br />

deveria ser algo mais belo do que a realidade, e não o<br />

monstruoso, que corresponde à sub-realidade. Há, portanto,<br />

uma inversão completa de conceitos e de valores.<br />

Parece-me que nesta época de poluição do ar, da mente,<br />

do senso estético, os quadros de Claude Lorrain apresentam<br />

qualquer coisa de muito formativo, neste sentido, com<br />

as restrições que se devem fazer às coisas do Ancien Régime.<br />

Ruínas que causam a impressão de<br />

serem feitas de pedras preciosas<br />

No primeiro quadro temos uma paisagem muito misturada:<br />

é uma espécie de meio-termo entre o campo e a cidade.<br />

The Yorck Project (CC3.0)<br />

32


Para melhor compreender a beleza desta obra de arte,<br />

é preciso ter tomado o gosto pelas ruínas e se pôr na perspectiva<br />

do belo tipicamente italiano. Alguns dos monumentos<br />

estão de tal maneira em ruínas que as pedras da<br />

parte de cima caíram, e no lugar nasceu uma vegetaçãozinha<br />

que não o enfeita nem um pouco. Em meio a tudo isso<br />

estão os camponeses se divertindo, conversando.<br />

Notem, entretanto, uma árvore de um formato até<br />

um pouco extravagante, mas com uma vegetação bonita,<br />

felpuda; ela tem um lance muito nobre e seus galhos<br />

pendem com muita dignidade e distinção. É uma árvore<br />

muito cortesã, por assim dizer.<br />

As colunas, apesar de constituírem ruínas, estão bem<br />

conservadas, e sobre elas incide uma luz muito bonita<br />

iluminando-as com distinção, de maneira a se ter quase<br />

a impressão de que são de pedra preciosa ou revestidas<br />

de alguma seda.<br />

A ruína de um monumento, com três colunas e um<br />

frontão em cima, é muito bonita também. Essas colunas<br />

são esguias, distintas, nobres. Os arcos sólidos, vigorosos,<br />

fazem pensar nos desfiles das legiões romanas vitoriosas,<br />

que vinham trazendo milhares de vencidos de<br />

guerra, acorrentados e que iam ser levados ao Capitólio<br />

para a cerimônia faustosa e terrível do triunfo romano,<br />

na qual o rei adversário seria morto. Ele vinha a pé<br />

e acorrentado como um escravo, para ser executado no<br />

Capitólio.<br />

Beleza especial em apreciar o passado<br />

Vê-se também um prédio romano abandonado, mas<br />

que conserva todas as colunas de sua fachada ainda em<br />

pé. Ao lado, um casario modesto, popular. Mais adiante,<br />

uma igreja católica em estilo românico que deve datar<br />

de antes da Idade Média, talvez um pouco depois, quiçá<br />

seja da Renascença, com uma torre, tendo em torno um<br />

convento ou um casario.<br />

Os homens daquele tempo julgavam haver uma beleza<br />

especial em apreciar o passado, tendo o curso dos séculos<br />

transcorrido em cima. De maneira que, sobre toda<br />

a grandeza e a desgraça do Império Romano, tinham decorrido<br />

séculos e séculos de abandono, de desmantelamento,<br />

deixando ver, ao mesmo tempo, a magnitude e o<br />

efêmero das coisas desta Terra.<br />

Então, as pessoas se punham a pensar, rememorando<br />

fatos, fazendo filosofia da História, sob um<br />

céu de um azul muito delicado e com umas nuvens<br />

que já podem ser chamadas de pré-românticas. Elas<br />

não obscurecem o firmamento, mas são um pouco<br />

obscuras e introduzem na paisagem qualquer coisa<br />

de melancólico.<br />

Em um dos quadros parece estar representado um<br />

personagem característico das paisagens italianas: um<br />

mendigo. Mas que mendigo saudável, inteligente! Que<br />

sabe tirar partido da despreocupação, do incerto e do<br />

aventureiro de sua vida. Dois homens do povo conversam<br />

com o mendigo, sobre chuva e bom tempo, sobre<br />

tudo e nada; é a vidoca de todos dos dias que continua<br />

aos pés das faustosas ruínas que os homens cultos admiram.<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Fascínio do desconhecido, do<br />

misterioso e do sublime<br />

Noutra pintura, Claude Lorrain representa um<br />

porto de mar sob um céu cujo colorido é parecido<br />

com o que já analisamos: um azul muito tênue com<br />

um mundo de pequenas nuvens que, nos seus pontos<br />

mais densos, tendem a ficar um pouco escuras.<br />

De maneira que se tem a bonança, mas também algo<br />

que de longe prenuncia uma tempestade, insinua<br />

uma preocupação.<br />

Ao lado vê-se um bosque exuberante, com árvores<br />

muito altas que insinuam ao espírito a ideia do frescor e<br />

da harmonia da natureza ao pé dessas árvores.<br />

Encontramos também dois prédios faustosos, ao gosto<br />

renascentista. O edifício bem junto ao cais pode ser<br />

perfeitamente uma igreja, como também um tribunal ou<br />

qualquer outra repartição pública. Ele está sobre uma<br />

pedra que o defende contra o mar.<br />

O outro edifício está sobre uma espécie de patamar<br />

de onde se erguem as colunas encimadas por um terracinho,<br />

de maneira que alguém pode sair do prédio e contemplar<br />

dois tipos de paisagens: a próxima e a remota<br />

que, por sua vez, apresentam os dois aspectos da vida de<br />

navegação os quais Claude Lorrain quis tornar presentes<br />

nesta obra.<br />

Em primeiro lugar, a caravela muito bonita. Notem<br />

a elegância das bandeirolas tremulando no topo dos<br />

mastros, no alto dos quais há uma espécie de terracinho<br />

para ficarem os vigias, e a beleza das velas enroladas<br />

num oblíquo elegante e distinto. Percebe-se a<br />

madeira faustosamente trabalhada da proa desse navio.<br />

Faz-nos reportar às viagens distantes das caravelas<br />

que iam buscar princesas no Báltico para se casarem<br />

em Nápoles, ou pegar ouro nas Américas para levar<br />

aos portos do Mar Mediterrâneo ou da Península<br />

Ibérica; enfim, caravelas que passavam por todas<br />

as aventuras, singrando todos os mares e cuja saga é<br />

lembrada pelo Sol que se perde no horizonte e cujo<br />

reflexo é mais nítido na água do que no próprio céu.<br />

Tem-se a impressão de um infinito que vai se prolongando<br />

e do qual a caravela vem trazendo todos os mistérios,<br />

todas as mercadorias, todos os estrangeiros,<br />

todas as narrações de aventura dos vários países onde<br />

ela esteve. É o fascínio do desconhecido, do misterioso<br />

e do sublime.<br />

Ao fundo há alguns navios de travessia menor, mas<br />

que também lembram as grandes navegações, de certo<br />

modo.<br />

Mais perto do porto vemos um formigar de barquinhos.<br />

É a vida comercial e social aqui representada: gente<br />

que vai pegar as riquezas das caravelas e levar para a<br />

terra, ou recolher viajantes, muitas vezes ilustres, e conduzi-los<br />

até o cais.<br />

Acaba de chegar um personagem de prol? Há um grupo<br />

de pessoas que o acompanha; alguém anda solícito,<br />

procurando ajudar. É uma cena de certa distinção. Inclusive<br />

está posto do lado de fora um tapete diante do<br />

edifício que bem pode ser um palácio.<br />

34


Veem-se pessoas que olham a cena, outras nem se importam<br />

com ela, estão pensando em coisas diversas. Há<br />

homens dentro dos barquinhos, ou porque trouxeram ou<br />

vão levar gente, ou estão descansando. Desse modo, numa<br />

mesma cena está condensada uma série de circunstâncias<br />

que, assim, raras vezes se encontram, e dão a ideia da vida,<br />

do movimento, da beleza quase pré-romântica da natureza<br />

campestre e da navegação, bem como do formigar<br />

da vida comercial e social de todos os dias. v<br />

(Extraído da conferência de 27/5/1972)<br />

1) Claude Gellée (*1600 - †1682).<br />

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />

em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Arte penetrada de<br />

senso do maravilhoso<br />

O maravilhoso plasmado nas pinturas de Claude<br />

Lorrain consiste em imaginar um mundo irreal<br />

carregado de significados que transportam o<br />

homem à contemplação das belezas eternas. A<br />

tal ponto essa arte está penetrada por um ideal<br />

que o indivíduo se sente morador do Paraíso.<br />

Antes de comentar algumas pinturas de Claude<br />

Lorrain, gostaria de dizer algo à guisa de introdução<br />

ao que vamos analisar nas obras desse pintor.<br />

Entre as belezas existentes na natureza há algumas<br />

proporcionadas com a ordem natural na qual estamos e<br />

outras tão magníficas que têm algo de desproporcionado<br />

com essa ordem. São naturais, mas maravilhosas a ponto<br />

de nos fazerem pensar num outro universo ou mundo<br />

diferente, podendo afigurar-se a nós como irreal, mas<br />

para o qual nossas almas irresistivelmente se inclinam.<br />

Belezas naturais que preparam<br />

o homem para as eternas<br />

Eu daria como exemplo alguns postais da Suíça com<br />

lagos magníficos. Nesse país, em concreto, os pores do sol,<br />

as auroras ou os meios-dias têm uma magnificência quase<br />

irreal. Se não tivéssemos a oportunidade de apalpar essas<br />

belezas com nossos sentidos, nós não as compreenderíamos<br />

bem e nem acreditaríamos na existência delas. Tudo<br />

isso enche o homem de tanto entusiasmo e o compene-<br />

Cornell University Library (CC3.0)<br />

Swiss National Library (CC3.0)<br />

Postais com paisagens da Suíça<br />

30


Fwellisch (CC3.0)<br />

Claudio Cyrne de Macedo (CC3.0)<br />

Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro<br />

tra de tal forma pela impressão causada por aquela magnificência,<br />

que quase o impede de levar uma vida normal.<br />

Essa circunstância nos impele naturalmente a levantar<br />

a seguinte pergunta: por que Deus fez lugares assim?<br />

Ele criou todas as coisas para instrução da alma<br />

humana de maneira a, vendo as imagens e semelhanças<br />

do Criador, o homem procurasse se tornar semelhante<br />

a Ele e assim se preparasse para o Céu. Não há nada na<br />

Criação que não tenha sido ordenado para esse fim.<br />

Ora, qual teria sido a intenção de Deus ao criar esses<br />

lugares tão magníficos que superam a capacidade de<br />

sentir e de pensar do homem nesta vida?<br />

A resposta é evidente: Ele quis despertar em nossas<br />

almas o senso do maravilhoso que repousa no mais profundo<br />

do nosso ser, porque depois de ter pensado e cogitado<br />

em todas as belezas existentes na Terra, a alma humana<br />

fica com certa intuição e desejo de algo superior<br />

que contém uma beleza e perfeição maiores, uma verdade<br />

mais profunda e uma excelência mais magnífica.<br />

Essa percepção leva o homem a se perguntar se existe<br />

algo além desta vida ou, muito mais ainda, se há Alguém,<br />

com A maiúsculo, que personifica todas essas maravilhas<br />

postas diante dos nossos olhos.<br />

As potências da alma em busca<br />

de coisas maravilhosas<br />

Podemos ver algo disso em lugares como, por exemplo,<br />

a Baía de Guanabara. Tive uma sensação um pouco<br />

parecida na Ilha de Paquetá, onde o tranquilíssimo<br />

D. João VI, insatisfeito com a calma magnífica do Rio<br />

de Janeiro do seu tempo, ia passar os fins de semana ou<br />

uma semana inteira de repouso; não sei bem do que ele<br />

repousava, se era do susto que lhe tinha dado Napoleão,<br />

mas o bom Rei ia comer os seus frangos naquela ilha.<br />

Compreendi que ele, de fato, era um homem sutil e requintado,<br />

sentindo uma forma de sossego sorridente, inteligente;<br />

não um sossego idiota, vegetativo, mas uma<br />

tranquilidade da alma.<br />

Criando esses lugares magníficos, a Providência quis<br />

despertar em nós, mais do que o senso do maravilhoso,<br />

tudo quanto no ser humano se aviva com isso, para pôr<br />

a inteligência, a vontade e a sensibilidade humana em<br />

busca de coisas maravilhosas.<br />

Daí vem a procura do maravilhoso, por exemplo, na<br />

poesia. Tomemos Camões, que soube transmitir de modo<br />

esplêndido, em poema, a magnificência da epopeia lusitana.<br />

Se aqueles pensamentos fossem postos em prosa<br />

perderiam enormemente o maravilhoso.<br />

Na pintura, o maravilhoso exprime-se de mil modos.<br />

Um deles corresponde ao seguinte pendor da alma humana.<br />

Ao passar, embora rapidamente, por recantos ou<br />

paisagens que lhe chamam a atenção, uma pessoa teria<br />

vontade de mandar parar o veículo no qual está viajando<br />

e contemplar com mais vagar essas belezas; mas não podendo,<br />

fica propensa a imaginar como seria estar naquele<br />

lugar, fazer um piquenique, rezar ou até morar lá. Por<br />

vezes, vem ao espírito a ideia de como deve ser a mentalidade<br />

dos habitantes daquele recanto do panorama.<br />

Essa propensão leva certos artistas a pintarem paisagens<br />

que não existem, reunindo nelas maravilhas. Por<br />

exemplo, as obras de Claude Lorrain com cidades imaginárias<br />

compostas pela justaposição de elementos reais e<br />

outros muito raros ou de todo inexistentes.<br />

Pintando o maravilhoso<br />

Este pintor representa uma cidade marítima, sem ruas<br />

definidas, na qual entram dois ou três navios oriundos da<br />

América ou da Ásia, carregados de ouro, prata, pedrarias,<br />

joias, porcelanas, tapetes e especiarias, aportando junto<br />

a um cais bordejado de palácios, para descarregar suas<br />

mercadorias, porém, sem o movimento trepidante, intenso<br />

e prosaico dos portos atuais, mas com o encanto do<br />

mar e das embarcações que vêm de uma travessia quase<br />

tão arriscada, naquele tempo, como seria hoje uma viagem<br />

até a Lua. São belezas que se justapõem.<br />

Entretanto, a grande arte de Claude Lorrain está em<br />

pintar quadros nos quais imagina uma névoa dourada<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

iluminada pelo Sol, causando a impressão de uma atmosfera<br />

irreal na qual o homem leva uma vida agradável<br />

toda banhada por um ideal e onde o indivíduo se sente<br />

morador do Paraíso.<br />

Outra nota característica nas pinturas de Claude<br />

Lorrain é que não aparece nenhuma tormenta, nem sequer<br />

uma brisa. Os personagens movem-se devagar, com<br />

majestade, distinção ou simplesmente naturalidade, e as<br />

árvores estão paradas, como quem diz: “Eu atingi o ponto<br />

perfeito do meu bem-estar, e aqui o vento não me incomoda<br />

nem me chacoalha.” Dir-se-ia que a árvore sente<br />

a delícia do ar, o qual a rodeia de agrados. Ela, insensível<br />

por natureza, parece ter sensibilidade nos quadros<br />

de Lorrain.<br />

Em tudo isso vemos o homem sendo transportado para<br />

dentro do maravilhoso.<br />

GCI (CC3.0)<br />

32


Passemos agora à análise de algumas obras de Claude<br />

Lorrain.<br />

O maravilhoso nos aspectos<br />

mais comuns da paisagem<br />

O quadro apresenta uma profundidade muito grande,<br />

com uma longa perspectiva na qual apenas se vislumbram<br />

umas montanhas no fundo do horizonte. A vegetação e<br />

quase todos os pormenores sugerem uma cena comum. Por<br />

exemplo, as árvores são iguais àquelas que se encontram<br />

em qualquer parque de uma cidade. Também as pedras do<br />

chão e até a encosta com a vegetação que desce são como as<br />

de qualquer montanha. Tudo quanto há de mais comum.<br />

No topo encontra-se uma residência construída, não sem<br />

certa falta de senso prático, diretamente em cima das rochas.<br />

Um espírito moderno colocaria objeções a essa localização.<br />

Primeira objeção: por onde se chega até lá? É preciso<br />

subir de corda? Haverá alguma passagem que não se vê? Caso<br />

exista, deve ter sido necessário cortar as árvores fazendo<br />

uma escalada na pedra para abrir essa trilha. Enfim, parece<br />

que a vida fica mais dura morando lá! Pois bem, se a casa estivesse<br />

no chão não teria nada de extraordinário.<br />

Em qual aspecto o autor soube dar a impressão de<br />

maravilhoso nesse quadro, pintando cenas tão comuns<br />

como aquelas que se encontram na natureza?<br />

O maravilhoso está no céu. Não significa que o firmamento<br />

nunca tome tal coloração, mas é esse colorido magnífico<br />

incomum que lhe confere uma beleza especial. É um<br />

azul que eu chamaria de anil, um pouco esbranquiçado.<br />

Percebam que o céu não está completamente limpo, pois<br />

as nuvens estão ali presentes, embora frágeis, quase como<br />

precisando da ação do Sol para condensá-las. Esse céu<br />

tem uma claridade especial, algum tanto mais bela do que<br />

a dos mais belos dias.<br />

Lorrain soube pintar a luz incidindo sobre todos os<br />

elementos da paisagem, conferindo ao panorama uma<br />

participação nas belezas e delícias possíveis que o observador<br />

imagina no próprio firmamento. De tal maneira<br />

que quem vive nesse ambiente sente-se mais banhado<br />

por algo descido do céu, o qual domina a terra com sua<br />

forma peculiar de luz. A este título o maravilhoso se faz<br />

sentir esplendidamente nessa paisagem.<br />

Discernindo novas belezas do mundo<br />

irreal imaginado por Lorrain<br />

A presença dessa luminosidade se percebe não tanto<br />

neste ou naquele lugar, mas sutilmente por toda parte.<br />

Tem-se a impressão de que o vale inteiro está penetrado<br />

da mesma luz que ilumina a fachada da mansão e as árvores,<br />

conferindo-lhe uma participação imponderável e<br />

magnífica com todo o espaço celeste.<br />

Embora o prédio apresente uma fachada simples e comum,<br />

a luz lhe confere tal nobreza que poderíamos dizer<br />

tratar-se da mansão de uma princesa onde se passou um<br />

fato histórico famoso.<br />

Por outro lado, há zonas não iluminadas pelo Sol onde<br />

o obscuro realça a claridade, cuja beleza se percebe<br />

melhor dessa forma. O mesmo fenômeno se dá com<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

as árvores, e talvez até com mais talento. Nos pontos<br />

em que a vegetação é menos densa, a luz incide na fímbria<br />

das árvores e as pontas das folhas se tornam quase<br />

transparentes. Na parte onde a vegetação é mais compacta,<br />

o escuro realça a beleza da luz que banha o outro<br />

lado das folhas.<br />

Essa impressão produzida pela luz sobre as folhas e<br />

a fachada nota-se também nas pedras talhadas de forma<br />

irregular da encosta e do chão, quase por toda parte.<br />

Um detalhe interessante: o artista pinta a vegetação<br />

isenta da ação do vento ou de qualquer outro elemento<br />

estranho a sacudi-la ou impor-lhe uma posição que não<br />

esteja inteiramente de acordo com a sua natureza. Tem-<br />

-se assim a impressão de se estar num lugar onde a alegria<br />

consiste no repouso completo.<br />

Notem como as árvores parecem não fazer força para<br />

sustentar os próprios galhos. Estes são leves, as folhas<br />

são tão macias que nos convidam a brincar passando as<br />

mãos pelo meio delas, certos de encontrar apenas matérias<br />

suaves e agradáveis aos sentidos.<br />

Poder-se-ia perguntar qual é a razão de ser desse arco.<br />

A meu ver, tem um significado especial. Imaginem<br />

que não existisse essa mansão, mas só o arco. Não daria<br />

vontade de contemplar de cima dele tão lindo panorama?<br />

O fato de se tratar de um arco, deixando entrever<br />

por todos os lados o quanto a paisagem é bela, convida a<br />

galgá-lo e a permanecer sobre ele.<br />

Donde a mansão, que poderia chamar-se belvedere,<br />

é o lugar ideal onde uma pessoa passaria as tardes banhando-se<br />

no sol e contemplando a paisagem de dentro<br />

de um quarto decorado com os luxos opulentos do tempo<br />

de Claude Lorrain: magníficos espelhos de Veneza, tapetes<br />

do Oriente, cortinas de Lyon... É um belvedere de um<br />

mundo meio irreal. Assim, essa pintura nos convida para<br />

o maravilhoso.<br />

Tal monumento evoca convulsões, tragédias e guerras,<br />

após as quais desfilaram por ali legiões gloriosas,<br />

presididas por personagens míticos, assinalando vitórias<br />

magníficas e aclamadas por multidões que desapareceram.<br />

Com efeito, a voragem do tempo sepultou<br />

tudo isso, e não passa da recordação de um passado<br />

que, entretanto, esse arco lembra de um modo muito<br />

elegante.<br />

Paisagem que vive da contemplação<br />

do seu passado glorioso<br />

Vemos em outro cenário o que falta no anterior: um rio.<br />

Todo panorama com água possui muito mais abertura para<br />

o maravilhoso do que aquele onde ela não está presente.<br />

Como no anterior, também nesse quadro se nota o<br />

mesmo jogo entre a luz e as trevas. O Arco do Triunfo<br />

aparece na sombra, e sua antiguidade é dada a entender<br />

não só pelo estilo romano ou helenístico, mas pela vegetação<br />

que cresceu no alto do monumento, algo muito comum<br />

em construções velhas e abandonadas. Percebe-se<br />

que as intempéries e os séculos o corroeram e continuarão<br />

a fazê-lo, mas tão devagar que se tem a seguinte a<br />

impressão: enquanto o mundo existir esse arco vai estar<br />

de pé, pois ele desafia o tempo.<br />

34


O maravilhoso desse quadro não está apenas no céu, mas<br />

nessa evocação de um longo passado que dorme definitivamente<br />

o sono de suas glórias e dos dias que não mais voltarão,<br />

dando-nos a entender ser tão irracional tudo isso ter<br />

acabado, tão absurdo nada disso ter deixado qualquer traço<br />

ou vestígio na ordem do ser, que deve existir em algum lugar<br />

e de algum modo algo que, para toda a eternidade, simbolize<br />

essa vida que por ali desfilou e nessa obra de arte se afirmou.<br />

Dir-se-ia que a paisagem vive da contemplação desse passado,<br />

em cujas linhas gerais se pode conjecturar, porque essa<br />

civilização é conhecida, mas não nos dados concretos de<br />

seu passado. A recordação histórica assim imprecisa deixa<br />

caminho para a imaginação e é plasmada na arte de Claude<br />

Lorrain dentro desse ambiente do maravilhoso. v<br />

(Extraído de conferência de 11/1/1977)<br />

GCI (CC3.0)<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Requintes inéditos<br />

do maravilhoso<br />

Claude Lorrain (CC3.0)<br />

Analisando mais uma<br />

obra do famoso pintor<br />

francês Claude Lorrain,<br />

Dr. Plinio nos oferece<br />

ensinamentos sobre o<br />

atuar humano, discernindo<br />

novos e interessantes<br />

aspectos inerentes ao<br />

maravilhoso, com os quais<br />

este se requinta e eleva.<br />

Como temos visto, Claude Lorrain é o pintor de uma<br />

das formas de maravilhoso. Vamos considerar<br />

mais uma de suas obras e depois analisar a crítica<br />

feita por um comentador italiano que prefaciou um álbum<br />

com pinturas desse artista.<br />

Descrevendo o fantástico e<br />

o irreal da paisagem<br />

Percebam o fantástico e o irreal da cena. É manifestamente<br />

um porto. Observem os navios, os barquinhos lá<br />

ancorados, todo o movimento dos personagens; tudo isso<br />

corresponde a um atracadouro. O escuro da água e o<br />

modo de se moverem as ondas indicam que esse porto é<br />

cercado por um mar profundo.<br />

O cais tem junto a si construções magníficas, entre<br />

elas uma torre ainda medieval junto ao muro que separa<br />

um parque com arvoredo. Até mesmo nesse lindo palácio,<br />

onde a influência medieval ainda não é estranha, no-<br />

30


ta-se que o enquadramento do portal de entrada lembra<br />

muito uma porta com ponte levadiça dos castelos da Idade<br />

Média. Porém, a influência clássica também se manifesta<br />

nos dois jarrões que estão no alto do terraço.<br />

A parte superior do edifício é renascentista, mas de<br />

uma construção tal que quase daria a ideia de uma igreja,<br />

se o conjunto do edifício não sugerisse, pelo menos<br />

para mim, a ideia de uma residência.<br />

Mais adiante se avista outra torre, pois é natural que<br />

um porto seja fortificado. Contudo, é uma grande construção<br />

com aparência de ruína abandonada, porque as<br />

janelas parecem não ter vidros, nem venezianas, e não<br />

se percebem móveis dentro, conferindo um pouco de melancolia<br />

à impressão geral do quadro.<br />

Ao fundo, o Sol representado de duas formas curiosas.<br />

De um lado, refletido no mar tão nitidamente que dá<br />

a impressão de ser ele próprio quem brilha e espalha sua<br />

luz sobre as águas escuras. Mas de outro lado, visível e<br />

resplandecente no céu.<br />

De qualquer maneira, a grande beleza do quadro está<br />

na luz que o inunda, a qual eu não chamaria propriamente<br />

de irreal, a não ser porque muito raras vezes ela ilumina<br />

dessa forma. Mas, quando o faz, é de um modo tão esplêndido<br />

que o homem fica encantado, e sob esse aspecto,<br />

tem-se a impressão de que Lorrain exagerou o esplêndido,<br />

uma vez que, na paisagem, a iluminação está discretamente<br />

maior do que a própria luz solar, ou em certas formas<br />

desta, quando aparece na sua maior beleza.<br />

Ademais, na pintura apresenta-se a ideia de toda uma<br />

avenida de mar cercada de palácios muito próximos uns<br />

dos outros. De maneira que quase se tem a ilusão de uma<br />

rua. Esta justaposição de palácios magníficos e de naves<br />

que vêm e vão de um extremo do mundo para outro, a<br />

aventura do comércio, das navegações, das missões, tudo<br />

isso dá indícios de magnificência e esplendor na paisagem<br />

um tanto acima da realidade.<br />

Resumindo, o maravilhoso do quadro reside no fato<br />

de imaginar a composição de um porto ou edifícios desse<br />

tipo, como também, no modo pelo qual a luz do Sol banha<br />

tudo isso. Inclusive o elogio que fiz em ocasiões anteriores<br />

1 da luz pousando sobre as árvores, aqui seria especialmente<br />

merecida.<br />

de viver nesse ambiente que, ao mesmo tempo está inundado<br />

por ele, saboreia-o, mas não lhe dá uma atenção explícita.<br />

É o maravilhoso sossegado, debaixo de cujo esplendor<br />

a vidinha cotidiana se desenvolve banhada nele.<br />

Analisem todos os personagens presentes. Estão conversando<br />

no cais como os moradores das pequenas cidades<br />

do interior conversam na estação de trem, para ver quem<br />

entra ou sai; eles fazem uma rodinha. Observem a perfeita<br />

naturalidade da conversa; é gente com tempo livre e tem<br />

o que conversar; implicitamente, estão como que flutuando<br />

no éter da luminosidade, dando a seguinte impressão: todo<br />

o ritmo das pulsações e pensamentos deles, até o modo<br />

de se relacionarem entre si, é amenizado e elevado por essa<br />

atmosfera e, sobretudo, pela luz que é a alma do ambiente.<br />

Claude Lorrain (CC3.0)<br />

Sossego nobre e elevado<br />

dentro do maravilhoso<br />

Apesar de toda a inquietação que a náutica trazia consigo<br />

naquela época – era a grande aventura dos homens<br />

– Lorrain não dispensou o sossego dentro do maravilhoso,<br />

pois é uma das notas mais características nas pinturas<br />

dele. O maravilhoso em geral provoca uma nobre<br />

tensão. Aqui não. De tal maneira o homem tem o hábito<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Nessas condições, temos Claude Lorrain como o pintor<br />

que assinala o veio de uma época inclinada ao maravilhoso<br />

por muitos meios, e ao inteiro bem-estar dentro<br />

do sossego e do prazer, mas muito nobre e elevado. Dir-<br />

-se-ia que assim se sentiria um fidalgo que pudesse dispor<br />

de um grande e belo salão no palácio de Versailles e<br />

passasse a vidinha dele tomando sua xícara de chocolate<br />

ou o seu cafezinho, inundado das grandezas definitivas,<br />

inarredáveis do Roi Soleil 2 .<br />

Esta é a forma de maravilhoso que o quadro apresenta,<br />

pois, embora contenha os defeitos e as limitações<br />

do Ancien Régime 3 , em comparação com a hediondez do<br />

mundo moderno, realmente eleva o espírito.<br />

Uma discreta melancolia inerente<br />

à grandeza do maravilhoso<br />

Agence Meurisse (CC3.0)<br />

Claude Lorrain (CC3.0)<br />

General Joffre e Marechal Foch,<br />

em 2 de abril de 1923<br />

Passarei a considerar duas doutrinas ali contidas: a<br />

do maravilhoso enquanto existente na terra e a do valor<br />

da melancolia; permitindo-nos fazer uma apreciação da<br />

mentalidade do homem moderno, pois envolve uma interessante<br />

questão de princípios, mais psicológicos do que<br />

propriamente especulativos.<br />

Analisemos essas duas doutrinas sob a seguinte indagação:<br />

existe, nesta vida, um maravilhoso autêntico do<br />

qual esteja ausente uma certa melancolia?<br />

Tomemos como exemplo um homem que deseja o êxito<br />

a cem por cento, o happy end, e outras coisas inerentes<br />

à atual sociedade desenvolvimentista. Quando, por via<br />

natural, esse homem toca no ápice do maravilhoso realizando<br />

seu ideal, eu acredito que o espírito dele pode assumir<br />

duas posturas.<br />

De um lado, ele compreende que isso é uma imagem e<br />

semelhança de Deus e, portanto, atinge um ápice de alegria.<br />

Mas, por outro aspecto, o indivíduo também percebe<br />

aquilo que São Tomás nos ensina a esse respeito: se as<br />

criaturas representam o Criador é porque de algum modo<br />

há uma analogia com Ele; mas, sobretudo, Deus não é<br />

nem pode ser como elas, pois é insondável e incomparável<br />

a tudo. De modo que, no fim, fica uma certa saudade,<br />

Luís XIV e Felipe IV na Ilha dos Faisões,<br />

em 1659 - Museu de Tessé, França<br />

32


nostalgia do que nós conhecemos. De onde todo grande<br />

prazer traz consigo uma notazinha de melancolia.<br />

Por onde se pode concluir: aquilo que não tem uma<br />

discreta nota de melancolia é meio cafajeste, porque se<br />

limita a si próprio e não é capaz de chegar à sua maior<br />

altura, não remete para o último pináculo de si mesmo.<br />

De maneira que uma discreta melancolia – não se trata<br />

de choradeira – suscitada, por exemplo, pelo efêmero<br />

que a coisa tem, é inerente à grandeza e me parece em<br />

extremo adequada a tudo a quanto se possa atribuir um<br />

mínimo de maravilhoso.<br />

Vou dar um caso concreto. O Marechal Foch 4 e o General<br />

Joffre 5 passando pelo Arco do Trinfo depois da I<br />

Guerra Mundial. A meu ver, foi o último triunfo bonito<br />

e estético que houve na História da humanidade. Os<br />

triunfos da segunda Guerra Mundial não tiveram a beleza<br />

dos da primeira.<br />

Quem visse aquele espetáculo, com a população dando<br />

vivas, e tivesse apenas a alegria do happy end, seria, a<br />

meu ver, um espírito meio “vira-lata”. O espírito verdadeiramente<br />

elevado sentiria a beleza daquilo tudo e, ademais,<br />

perceberia de modo implícito algo ainda superior a<br />

ele, que lhe diria: “Sic transit gloria mundi” – assim passa<br />

a glória do mundo. Daqui a pouco esses marechais terão<br />

passado pelo Arco e esse triunfo cessará; porém, alguma<br />

coisa ficará impregnada nesse lugar para todo o sempre.<br />

Ora, também é verdade que será uma mera recordação<br />

porque tudo é transitório. E a alma se volta para o eterno.<br />

Contudo, essa melancolia, intensamente sentida, também<br />

pode chegar a ser pungente. Mas não o é na sua primeira<br />

manifestação, porque, senão, o maravilhoso perderia<br />

o seu caráter normal de ser esplêndido.<br />

Outra questão muito bonita seria: existe maravilhoso<br />

na dor, no desastre e na catástrofe?<br />

Certa ocasião li em um autor a expressão<br />

la tour de la doleur – a torre da dor. Pode-se<br />

falar de uma dor monumental como<br />

uma torre? Portanto, de uma dor magnificamente<br />

pomposa, um palácio da dor? Há<br />

dores com uma magnificência e uma grandeza<br />

que no maravilhoso festivo não há?<br />

Este último ponto é indiscutível, porque<br />

a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

foi isso. São Paulo chegou a dizer que<br />

ele não saberia pregar a não ser Jesus<br />

Cristo crucificado (cf. 1Cor 1, 23). Deus<br />

que criou e dispôs todas as maravilhas<br />

festivas da Criação, entretanto, quis que<br />

houvesse um trágico mais grandioso do<br />

que todas essas festas: a Paixão e Morte<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso não é<br />

contestável.<br />

Jacques Laumosnier (CC3.0)<br />

Jesus crucificado (acervo particular)<br />

Crítica de um autor italiano<br />

a Claude Lorrain<br />

Por fim, consideremos a crítica feita pelo comentador<br />

italiano a Claude Lorrain.<br />

Ele diz o seguinte: Esse quadro tem, de fato, uma apresentação<br />

muito boa da luz. Mas não se pode confundir um<br />

dos componentes do quadro, que é a luz, com o todo. E se<br />

o quadro é muito forte do ponto de vista da luminosidade,<br />

significa que todos os demais elementos nos quais não<br />

há jogo de luzes são apenas comuns. Por exemplo, não se<br />

pode dizer que o prédio seja uma maravilha. Ele apenas é<br />

um casarão muito pitoresco. Mas a torre medieval é como<br />

qualquer outra, o jardim cercado pelo muro é semelhante<br />

a qualquer jardim; a forma dessas escadas ou o palácio<br />

vazado, ao fundo, todas essas coisas são muito comuns.<br />

Percebe-se que o pintor quer apresentar algo, mas nada<br />

disso é muito expressivo, somente a luz o é, e até se poderia<br />

dizer que ela “devorou” o quadro inteiro. Perde-se a<br />

noção de conjunto quando um elemento “devora” os outros,<br />

visto que o conjunto sempre vale mais do que uma<br />

Luis C.R. Abreu<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Claude Lorrain (CC3.0)<br />

das partes. Portanto, esse quadro tem menos<br />

valor pelo fato de ressaltar apenas<br />

uma das partes e não a sua totalidade.<br />

A pergunta que surge, então, é a seguinte:<br />

não será uma fraqueza de Lorrain representar<br />

as coisas de modo tão comum?<br />

Se ele fosse verdadeiramente um bom artista,<br />

seria capaz de fazer o resto também<br />

bom. Logo, Claude Lorrain é um pintor de<br />

segunda categoria.<br />

Verdadeira noção de beleza<br />

num conjunto hierárquico<br />

O primeiro princípio que propõe esse<br />

autor, e com o qual não concordo, é a<br />

noção de conjunto. É verdade que o conjunto<br />

vale mais do que as partes, mas não<br />

se pode tirar disso uma conclusão muito<br />

cartesiana, pois a beleza do todo pode ser<br />

realçada pela ação de um elemento eminente<br />

e simbólico.<br />

Eu dou um exemplo concreto. A nau<br />

que ali aparece é uma caravela e, como tal,<br />

foi retratada como sendo uma construção<br />

marítima comum, com as velas características.<br />

A embarcação, na sua totalidade,<br />

forma um conjunto. Mas, de tal maneira<br />

a nau exprime a beleza daquele todo que,<br />

sendo ela muito mais bonita do que o conjunto,<br />

absorve a expressão simbólica deste<br />

e o realça. Em síntese, ela está inserida no<br />

conjunto, não é um elemento isolado.<br />

Donde acontece que, às vezes, quando<br />

num conjunto há um elemento excelente,<br />

o todo lucra até pelo fato de os<br />

outros elementos secundários ficarem<br />

um pouco negligenciados. Ora, isto não<br />

é absolutamente uma falta de senso do<br />

conjunto, mas uma excelência deste. É<br />

aplicação do princípio monárquico de<br />

forma a apresentar o todo enquanto<br />

personificado, simbolizado por um elemento capital.<br />

De maneira que o princípio dado pelo autor italiano,<br />

de estar tudo sempre bem arranjadinho para se notar<br />

o conjunto, eu não contesto como regra geral, mas nego<br />

que não tenha suas exceções, e estas podem ser geniais.<br />

Eu acho que Lorrain abriu exatamente uma exceção na<br />

apresentação comum dos elementos, realizando de um<br />

modo especial a regra geral, e não a infringindo.<br />

Trata-se de um tal dégagé 6 , se quiserem até um négligé 7<br />

do excelente – tão seguro de si que não se apresenta re-<br />

34


Claude Lorrain (CC3.0)<br />

tesado, mas com certa bonomia – que reforça a nota fundamental.<br />

A meu ver, nessa posição manifesta-se um requinte.<br />

Encontramos um exemplo desse requinte no quadro<br />

de Claude Lorrain, o qual confere aos elementos secundários<br />

uma possibilidade de beleza que eles não teriam<br />

sem a magnificência da luz. O resto ele negligencia, para<br />

realçar a luz.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 14/1/1977)<br />

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 280, p. 33-34.<br />

2) Do francês: Rei Sol. Título dado a Luís XIV.<br />

3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />

em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />

4) Ferdinand Jean Marie Foch. Marechal francês comandante-<br />

-em-Chefe das forças aliadas (*2/10/1851 - †20/3/1929).<br />

5) Joseph Jacques Césaire Joffre. General francês (*12/1/1852<br />

- †3/1/1931).<br />

6) Do francês: descontraído, informal.<br />

7) Do francês: negligenciado, descuidado.<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Hanlu Cao (CC3.0)<br />

Só a arte sacra<br />

pode ser cristã?<br />

Uma obra de arte não é<br />

cristã pelo fato de estar<br />

coberta de símbolos de<br />

nossa santa Religião,<br />

como um homem não<br />

se faz frade por vestir<br />

burel. É preciso que seja<br />

católica a alma que na<br />

obra de arte palpita, para<br />

que esta se possa dizer<br />

genuinamente cristã.<br />

32<br />

Grubernst (CC3.0)<br />

Pelas altas janelas, guarnecidas de vitrais, entra<br />

uma luz abundante, mas suave, que se reflete no<br />

soalho, no metal polido das armaduras e das panóplias,<br />

no bronze e no cristal dos imensos candelabros,<br />

e parece atingir a custo as nervuras e pinturas do teto.<br />

Recolhimento, gravidade, equilíbrio e força<br />

As colunas, fortes e delicadas, se abrem ao alto como<br />

imensas palmeiras que protegessem a sala com sua ramagem<br />

de pedra, de linhas coerentes, nítidas e suaves.<br />

A sala é fortemente impregnada de um ambiente peculiar,<br />

que convida a um repouso sem ócio nem dissipação,<br />

um repouso todo feito de recolhimento, gravidade, equilíbrio<br />

e força.


Palácio de<br />

Frederiksborg,<br />

Dinamarca<br />

GO69 (CC3.0)<br />

Castelo Lednice,<br />

República Checa<br />

Jan Helebrant (CC3.0)<br />

henrivzq (CC3.0)<br />

Castelo de Champs-sur-Marne, França<br />

Castelo de Chapultepec, México<br />

As armaduras, os veados empalhados enriquecem<br />

o ambiente com o eco das proezas praticadas na caça<br />

e na guerra. O lambri de madeira trabalhada quebra<br />

com sua delicadeza e aconchego o que a austeridade da<br />

pedra talvez tivesse de excessivo. Ao fundo, sobre uma<br />

peanha, a imagem de um Santo atrai o pensamento para<br />

o Céu.<br />

Sem dúvida, salas assim espelham uma mentalidade<br />

que poderá agradar a uns, desagradar quiçá a outros,<br />

mas que de um modo ou de outro soube dispor admiravelmente<br />

das cores e das formas para se exprimir. São<br />

salas de uso civil quotidiano. Apresentam o ambiente em<br />

que o espírito de nossos maiores se sentia à vontade para<br />

viver a vida corrente.<br />

Castelo Žleby, República Checa<br />

Herbert Frank (CC3.0)<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Expressão arquetípica da alma cristã<br />

A Sainte-Chapelle de Paris, construída no século XIII<br />

por São Luís IX, Rei de França, para conter alguns espinhos<br />

da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo, exprime a<br />

mesma mentalidade, não enquanto entregue à vida diária,<br />

mas enquanto voltada para a prece.<br />

A nota de delicadeza atinge o sublime. Nem por isto a<br />

força, o equilíbrio, a gravidade e o recolhimento perdem<br />

algo da sua plenitude. Eclesiásticos, artistas, peregrinos<br />

de todos os séculos têm visto na Sainte-Chapelle, no ambiente<br />

que nela palpita, na mentalidade expressa em suas<br />

linhas, suas cores, suas formas, sua configuração geral,<br />

a expressão arquetípica da alma cristã.<br />

Cristã é a sala como cristã é a capela. E isto não só<br />

pelo efeito das imagens e símbolos religiosos que ali se<br />

encontram, como pelo ambiente que ali se respira, pela<br />

mentalidade que fica subjacente a este ambiente.<br />

De onde se chega a uma noção mais ampla. Uma obra<br />

de arte não é cristã pelo simples fato de estar coberta de<br />

símbolos de nossa santa Religião, como um homem não<br />

se faz frade pelo simples fato de vestir burel.<br />

É preciso que seja católica a alma que na obra de arte<br />

palpita, para que esta se possa dizer genuinamente cristã.<br />

E o ambiente cristão não é susceptível de impregnar<br />

apenas um edifício destinado ao culto, mas qualquer local<br />

que tenha em sua configuração a marca inconfundível<br />

com que a alma cristã exprime tudo quanto faz. v<br />

Gabriel K.<br />

(Extraído de Catolicismo n. 24, dezembro de 1952)<br />

Gabriel K.<br />

Flávio Lourenço<br />

34<br />

São Luís IX


Pedro Morais<br />

Gabriel K.<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Dignidade, distinção e<br />

disposição para a luta<br />

Profundamente encantado, Dr. Plinio tece belas considerações<br />

a respeito do espírito medieval impregnado nas muralhas de<br />

Ávila, descrevendo seus múltiplos aspectos bélicos e artísticos,<br />

quase como que discernindo a alma dessa histórica cidade.<br />

Á<br />

vila, na Espanha, é a cidade onde nasceu a<br />

grande Santa Teresa de Jesus. Ali ela fundou o<br />

seu principal convento e nele está sepultada.<br />

Síntese celeste entre a guerra e a paz<br />

Vejam a maravilha de uma cidade pequena dominada<br />

por uma imponente construção; poderá ser uma fortaleza,<br />

uma igreja ou um mosteiro. É muito agradável ver o<br />

contraste entre o casario que dorme, lembrando uma vida<br />

calma, tranquila, pacata, séria, sem as excitações da<br />

vida contemporânea, mas, ao mesmo tempo, cheia de bonomia,<br />

protegida por uma muralha magnificamente iluminada,<br />

onde a beleza do gótico e do medieval se nota<br />

por inteiro.<br />

A iluminação faz sentir muito a força da muralha e<br />

qualquer coisa de épico, de heroico que há dentro disso.<br />

Choniron (CC3.0)<br />

Gabriel K.<br />

30


Flávio Lourenço<br />

Nós imaginamos de bom grado essa muralha guarnecida<br />

por guerreiros com couraças e elmos, com estandartes<br />

e instrumentos musicais, postados ali para homenagear<br />

algum personagem ilustre ou para receber na ponta<br />

da lança os adversários que pretendam tomar Ávila. Essas<br />

muralhas falam da beleza, firmeza de alma, coerência,<br />

seriedade e sacralidade. Tudo isso está ali representado<br />

de um modo magnífico. Em suma, é a Idade Média.<br />

Alguém perguntará: “Mas por que há tanta harmonia<br />

nisso?” Porque ali se encontram a guerra e o direito, ou<br />

seja, a legítima defesa de uma população que na guerra<br />

é protegida, pois suas muralhas a amparam, e por isso,<br />

pode dormir tranquila. A muralha assegura o sono, como<br />

o guerreiro garante a ordem, o direito e a paz. É algo<br />

esplendoroso!<br />

Alguém poderá questionar: “Está bem, Dr. Plinio,<br />

mas essa fotografia apresenta uma realidade ou ela é um<br />

pouco à Claude Lorrain?”<br />

É preciso notar que essa fortificação foi construída<br />

com a preocupação exclusiva da estratégia. A distância<br />

entre os muros não visa apenas a beleza, mas permitir<br />

que o adversário seja atingido por três lados quando<br />

queira atacar o intervalo entre dois torreões.<br />

A torre é muito mais forte do que o muro e se defende<br />

por si mesma. Seu feitio redondo contribui para dispersar<br />

o adversário. O muro, que é mais fraco, fica defendido<br />

pelas duas torres. As diferentes distâncias e alturas<br />

das muralhas são calculadas para opor resistência<br />

aos projéteis lançados. Portanto, tudo planejado de modo<br />

estrito, de acordo com o necessário. Tem-se a impres-<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

são de que cada torre é uma garra que segura o monte e<br />

que domina a terra.<br />

Entretanto, essas muralhas, que abrangem o povoado<br />

como uma cintura, têm uma inegável beleza. O que<br />

há nisso, então, de ideal? É estritamente real, mas tem<br />

qualquer coisa de celeste. Há algo nessa síntese entre a<br />

guerra e a paz, o direito e a luta, o repouso e a batalha,<br />

que nos deixa maravilhados. É a Idade Média em todo o<br />

seu esplendor.<br />

Profundo senso de defesa<br />

Notem a solidez dessa porta de Ávila! Como é robusta<br />

e como a entrada estava bem protegida! Havia duas torres<br />

que guarneciam a passagem. Quem conseguisse entrar<br />

debaixo de uma chuva de pedras e azeite fervendo,<br />

Elena F D (CC3.0)<br />

M.Peinado (CC3.0)<br />

32


Flávio Lourenço<br />

esbarraria com a porta interna. E ali já havia outro passadiço<br />

para jogar flechas e pedras sobre quem atravessava.<br />

Ademais, a certa altura, havia também um patamar<br />

de onde, quando o adversário passava, descia uma<br />

grade e ele ficava encurralado, impossibilitando-o de<br />

voltar para trás. E aí levava uma pancadaria grossa.<br />

Nesses aspectos se traduz o senso de defesa que eles possuíam.<br />

Tudo tático, entretanto, que maravilha! Quando o<br />

defensor da cidade jogava uma flecha da parte superior, escondia-se<br />

atrás de uma dessas ameias para não ser atingido<br />

pelo invasor que respondia de baixo com outra flecha.<br />

Ao perceber que o de baixo estava desprotegido, lá vinha<br />

outra flechada de cima. Nas torres antigas havia seteiras<br />

por onde também podiam jogar projéteis sobre o agressor.<br />

De maneira que era árduo agredir uma cidade assim.<br />

Em outra fotografia vê-se uma bonita vegetação, o chão<br />

está bem cuidado, o canteiro realça a beleza da muralha,<br />

e há até um pequeno monumento acrescentado no século<br />

passado ou neste século. Não podia faltar o poste de<br />

iluminação pública. Mas como ele é bonitinho em comparação<br />

com esses pontos “dinossáuricos” que estão sendo<br />

instalados hoje em dia com luz de mercúrio. Ali não. Como<br />

é bem proporcionado; é quase um escrínio dentro do<br />

qual ainda se encontra, talvez, iluminação a gás.<br />

Há também um edifício que mais parece uma fortificação<br />

central do que uma igreja, com as suas torres pontudas,<br />

e o alto das torres formando uma massa de defesa.<br />

Quando essas torres e muralhas eram forçadas, toda<br />

a população se aninhava ali, e do outro lado continuava<br />

a batalha à espera dos aliados que eram chamados<br />

Flávio Aliança<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

por meio dos pombos correios para correrem em auxílio<br />

dos sitiados.<br />

Vê-se em uma das fotografias um monumento do tempo<br />

dos romanos, ainda no estilo clássico, que foi deixado<br />

lá e tem muita elegância e leveza. Devia ser provavelmente<br />

um templo pagão. Onde outrora houve um altar<br />

pagão, hoje se encontra um altar erguido em honra<br />

da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Magnífica<br />

afirmação do triunfo da Cruz sobre o paganismo. Os<br />

antigos sustentavam que o paganismo nunca poderia ser<br />

destruído. Pois bem, sua carcaça serve hoje para realçar<br />

o esplendor da Cruz.<br />

Contradição entre o antigo e o moderno<br />

Em Ávila encontra-se a Basílica de São Vicente, cuja<br />

arquitetura remonta ao estilo românico. Nota-se nos arcos<br />

das janelas algo já de ogival e, portanto, gótico, embora<br />

o acabado do teto não o seja. É um estilo de transição,<br />

muito bonito e variado. Distinguem-se muito bem as<br />

três partes do edifício.<br />

A iluminação também está muito bem feita. Quem a<br />

concebeu teve a boa ideia de iluminar o interior da galeria,<br />

causando no espectador uma espécie de atração e<br />

dando-lhe vontade de entrar.<br />

Gabriel K.<br />

Por outro lado, os automóveis são como trambolhos<br />

que enfeiam a praça, deixando o moderno completamente<br />

sem face diante do antigo. Quando se justapõem elementos<br />

antigos, por mais distantes que sejam as épocas<br />

a que pertencem, eles não entram em contradição. É o<br />

caso, por exemplo, das casas que circundam a basílica.<br />

Parecem ser de uma idade indefinida. São, por certo, velhas,<br />

e chegam a atingir uma idade na qual não se sabe<br />

se tiveram juventude. Estão entre o provisório e a eternidade.<br />

Entretanto, a contradição entre a praça e os automóveis<br />

é aberrante. Já não causaria estranheza imaginar<br />

ali carros puxados a cavalo, ainda que fossem do século<br />

passado. É a contradição do moderno com todo o passado.<br />

Gabriel K.<br />

34


Pedro Henrique Ponchio (CC3.0)<br />

Gabriel K.<br />

Aspectos vários do ambiente<br />

e das construções<br />

Uma das fotografias nos mostra uma ponte sobre<br />

um rio. Não se trata dessas pontes atuais feitas<br />

de concreto e asfalto, fininhas e suportando dinossauros.<br />

É uma ponte que transmite confiança,<br />

com pilastras bonitas e robustas fincadas no fundo<br />

do rio; arcos harmônicos feitos com uma pedraria<br />

nobre, sólida e leal. Tudo isso sustenta e dá<br />

forma à ponte.<br />

Gabriel K.<br />

No interior da cidade vê-se uma praça pública com um<br />

jardinzinho provincial, ingênuo, bonitinho; até parece ter sido<br />

feita para crianças brincarem, senhoras idosas fazerem<br />

tricô, homens aposentados lerem o jornal e comentarem as<br />

notícias do dia, mais as de Ávila do que as do mundo.<br />

O prédio da Prefeitura é muito engraçadinho e proporcionado.<br />

É um encanto o sino usado para dar os avisos<br />

municipais. Trata-se de um palacinho com janelas muito<br />

dignas, muito compostas flanqueando por duas torres.<br />

Contraste harmônico entre<br />

austeridade e riqueza<br />

A fachada principal do convento de Santa Teresa é<br />

uma verdadeira beleza! Tem uma característica muito<br />

frequente em edifícios espanhóis e que eu acho linda:<br />

as laterais bem simples, enquanto a parte central muito<br />

rica. Esse contraste entre a austeridade e a riqueza dá<br />

uma nobreza excepcional.<br />

O corpo central se compõe de uma cruz no topo de um<br />

triângulo, no meio do qual há uma esfera. Duas janelas ladeiam<br />

um brasão, abaixo do qual há uma grande janela<br />

seguida da imagem de Santa Teresa, ambas rodeadas por<br />

brasões. Por fim, as portas da igreja. Tudo isso forma uma<br />

linha central muito rica, enquanto as duas laterais são menos<br />

ricas, mas constituem um todo sólido, sério e solene.<br />

Dignidade, distinção e disposição para a luta. Assim<br />

como as muralhas, também a igreja e as residências têm<br />

qualquer coisa de guerreiro, é admirável! v<br />

(Extraído de conferência de 27/5/1972)<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Mateus S.<br />

Aliança divina entre<br />

o prático e o belo<br />

Na Terra, o homem não vive só para gozar, mas, sobretudo, para<br />

ser herói e ter uma alma capaz de grandes arrojos. Para isso a<br />

Providência aliou o prático ao belo na Criação, e assim supriu<br />

as necessidades corporais e espirituais do homem, a fim de que<br />

ele pudesse estar sempre convidado a atingir o Paraíso Celeste.<br />

Em meados do século XX, a ideia de arte que entrava<br />

na arquitetura conjugava alguns elementos:<br />

o máximo de uniformidade e simplicidade,<br />

com cores inexpressivas, visando principalmente o aspecto<br />

funcional, tetos baixos, linhas retas, preponderando<br />

a figura geométrica do quadrado.<br />

Decorrem daí dois movimentos, duas tendências: o<br />

prático, o funcional, o simples e o econômico, contra o<br />

artístico, o elegante e o leve. O prático achata. O elegante<br />

eleva.<br />

O prático para o corpo e o belo para a alma<br />

Ora, o conflito dessas tendências, que relação tem<br />

com a doutrina da Igreja e com a luta entre a Revolução<br />

e a Contra-Revolução? A tese a desenvolver é: não há um<br />

conflito verdadeiro entre o prático e o belo, mas é algo<br />

criado pela Revolução para produzir no homem um efeito<br />

que daqui a pouco explicarei. Na realidade, esse conflito<br />

é falso e deixa o homem desnorteado, pois ele precisa<br />

de coisas práticas para viver. Ninguém pode viver<br />

30


Hugo Naves<br />

Luis Samuel<br />

Tomas T.<br />

J.P. ramos<br />

num mundo só de beleza, respirando apenas arte e poesia.<br />

Quando Nosso Senhor disse “Não só de pão vive o homem”<br />

(Mt 4, 4), Ele afirmou de modo implícito ser o pão<br />

também indispensável. E a experiência de todos os dias<br />

o torna evidente. O econômico, o viável, o exequível, o<br />

prático, portanto, corresponde a uma necessidade imperativa;<br />

o útil, inclusive, é um dos valores da ordem do<br />

universo.<br />

O princípio, então, é o seguinte: o homem precisa do<br />

prático para o corpo, mas precisa do belo para a alma,<br />

pois ela não come pão nem respira oxigênio. O ser humano<br />

não é apenas, como se costuma dizer, um conjunto<br />

de alma e corpo, como se fossem dois valores de igual<br />

alcance, justapostos na constituição de um mesmo indivíduo.<br />

O elemento principal do homem é a alma e o corpo<br />

existe para servi-la. A alma humana deseja a verdade<br />

e a beleza, porque foi criada à imagem e semelhança<br />

de Deus, Ele é a Verdade e a Beleza infinitas. Por isso,<br />

o Criador encheu sua Obra destes dois predicados para<br />

que a alma humana, amando na Terra esses dois atribu-<br />

tos, se tornasse, ela mesma, autora de pensamentos verdadeiros<br />

e de realizações belas…<br />

Duas descendências opostas<br />

do espírito humano<br />

Eu chamo as obras do engenho humano de “netas de<br />

Deus”, porque a alma humana é filha, mas o que ela engendra<br />

pode ser considerado como um neto do Criador.<br />

O homem, engendrando as “netas” de Deus, as verdadeiras<br />

obras de arte, prepara-se para o momento de comparecer<br />

diante d’Ele, a Eterna Verdade e a Eterna Beleza;<br />

e, voando de entusiasmo em relação a Ele, o espírito humano<br />

quase poderia compor a seguinte oração:<br />

Meu Deus, durante minha vida inteira procurei a beleza<br />

e a verdade, sabendo que só as encontraria em Vós,<br />

pois só contemplando-vos face a face as poderia conhecer!<br />

Entretanto, posso afirmar: encontrei-as na Santa<br />

Igreja Católica Apostólica Romana! Mas, por santa e<br />

bela que fosse a vossa Igreja, vossa Esposa, Vós éreis, ó<br />

Senhor, não apenas o Deus da verdade e da beleza, mas<br />

31


Gabriel K.<br />

Gabriel K.<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

Tomas T.<br />

Luis Samuel<br />

éreis tudo isso em essência, em grau inimaginável e insondável.<br />

Minha alma agora vos deseja encontrar, Justo<br />

Juiz, Vós sois a minha recompensa demasiadamente<br />

grande!<br />

A Revolução quer eliminar isso da vida, pondo-nos a<br />

alternativa:<br />

— Escolhei: O prático ou a beleza; em matéria de verdade<br />

fique apenas a pequena verdade terra-a-terra das<br />

ciências úteis. O resto é velharia.<br />

A isso nós podemos responder:<br />

— Não! O resto é tradição, é eternidade!<br />

Explicarei agora o prático e o verdadeiro na obra de<br />

Deus, para vermos depois como a Revolução a desfigura,<br />

engendrando realizações netas do demônio. Porque se é<br />

filho do demônio todo aquele que faz a obra da Revolução,<br />

aquilo engendrado por ele é neto do demônio. Veremos,<br />

portanto, duas descendências: Aos pés da Virgem,<br />

os filhos d’Ela; e as obras da serpente. Contemplaremos<br />

o sorriso de Deus, e a maldição de Deus.<br />

Um reflexo do prático e belo<br />

plasmado por Deus na Criação<br />

Vemos em uma das ilustrações um lindo espetáculo<br />

da natureza, diretamente criado por Deus: o litoral, o<br />

mar. Essa massa líquida enorme se move bem próxima à<br />

praia umedecendo a areia, mas não alcança a areia mais<br />

distante. Algumas ondas parecem dar a impressão de serem<br />

enormes, trazendo um vagalhão colossal, mas são<br />

pequenas. Elas são de uma tal beleza, repetem em ponto<br />

pequeno, gracioso e encantador, toda a majestade e toda<br />

a grandeza das coisas enormes.<br />

Se nós imaginássemos um homem pequenininho colocado<br />

em presença dessas ondas, seria uma tragédia.<br />

Mas que linda tragédia enfrentar uma espuma tão bela,<br />

tão banhada pelo Sol, e vista nas culminâncias, quase se<br />

diria ser uma espuma de luz. Por detrás, a massa d’água<br />

parece mais um tecido, um cetim maravilhoso, com movimentos<br />

diversos, plácida no fundo, aproxima-se mais<br />

movediça e cheia de Sol. No raso fica um pouco agitada,<br />

para morrer de modo manso no contato com a terra. Tudo<br />

isso é lindo e tão artístico! Bem poderíamos imaginar,<br />

do fundo daquele Sol invisível e daquele litoral, uma estrada<br />

de luz, e Nossa Senhora vindo, caminhando sobre<br />

as águas nessa estrada de luz. Que maravilha!<br />

Contemplem esse dourado. Nosso Senhor diz no<br />

Evangelho: Nem Salomão, com toda a sua glória, vestiu-se<br />

como os lírios do campo (cf. Mt 6, 28-29). Eu lhes<br />

pergunto: Que potentado, em toda a sua glória, vestiu-se<br />

com um tecido parecido à “seda” desse mar?<br />

Pois bem, esse é o mar profundamente funcional, sem<br />

cujo movimento e influência no equilíbrio do universo,<br />

32


João C. V. Villa<br />

todo o desenvolvimento da Terra seria impossível; ele<br />

é um viveiro enorme de uma quantidade incontável de<br />

bens preciosos para o homem, desde peixes úteis para<br />

a alimentação humana, até o tão precioso petróleo, que<br />

a humanidade começa a adorar… Tudo se encontra no<br />

mar, e se encontra em tal quantidade, que alguns técnicos<br />

da UNESCO chegaram a afirmar que as riquezas<br />

havidas na terra são menores do que as existentes para o<br />

homem no mar. Vejam como tudo isso é belo, e ao mesmo<br />

tempo prático. Essa é a sabedoria de Deus!<br />

Não há dúvida: a água é uma das mais belas criaturas<br />

de Deus! É bela em todos os seus aspectos, inclusive<br />

quando espumante, dir-se-ia que atingiu o auge de sua<br />

beleza; é maravilhosa! Também é bela quando a vemos<br />

plácida, quase parada, esgueirando-se num longo serpentear,<br />

refletindo o céu de um modo tão admirável, parecendo<br />

mais bonito visto dentro d’água. É uma verdadeira<br />

beleza!<br />

Quanto capricho e fantasia nessa linha que nenhum<br />

dedo humano traçou! Que utilidade enorme! Toda a vegetação<br />

da paisagem, brilhando e vicejando à luz do Sol,<br />

existe por causa da água. Imaginem que essa água não<br />

existisse ou não chovesse nessas redondezas, com certeza<br />

teríamos o deserto do Saara. A alegria, a fecundidade<br />

e a beleza da terra vêm do contato com a água. Água plácida<br />

e bela, mais parece uma laje de pedra preciosa feita<br />

para um rei ou para uma princesa caminhar. Água prática<br />

e útil, que maravilha de Deus!<br />

Bens do espírito aliados aos bens do corpo<br />

As obras de Deus são muito variadas. Às vezes elas<br />

têm um ímpeto extraordinário como o trovão, ou uma<br />

avalanche caindo, ou até as ondas do mar num maremoto.<br />

Outras vezes elas são tranquilas e plácidas. Nessa<br />

paisagem, por exemplo, há um rio. Ele não tem nenhuma<br />

pressa de chegar até a embocadura, vai escorrendo tranquilamente,<br />

quase que brincando com a terra. Ele tende<br />

para um lado, mas a terra lhe impõe obstáculo, então<br />

sorri e ladeia sem pressa, e continua para o outro lado.<br />

Há a imensa mata verde atrapalhando o curso do rio...<br />

Que bonita península!<br />

Como seria interessante imaginar se aqui, junto a<br />

esse pequeno bosque refrigerante, houvesse uma casa<br />

agradável, toda cercada de água e de terra fecunda, num<br />

ambiente prático feito por Deus para o homem. Como<br />

seria bom morar ali! E não perto de uma rodoviária feita<br />

pelos homens. Quanta beleza Deus quis que tivessem as<br />

coisas práticas. Como o corpo é bem atendido nesse lugar!<br />

É possível que nesse rio haja peixes.<br />

Essa terra dá tudo. É terra do Brasil, da qual disse Pero<br />

Vaz de Caminha, escrevendo ao rei D. Manuel, na primeira<br />

reportagem feita sobre o Brasil: “Essa terra, senhor,<br />

é dadivosa e boa; e nela, em se plantando, tudo dá”.<br />

Aqui está a terra dadivosa e boa, a água formosa e o<br />

suave movimento de colinas, feitos para o homem sorrir<br />

um pouquinho. Ali desponta uma planta que retém<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

os raios do Sol e parece feita de luz, para os homens pensarem<br />

como o este astro é belo. As nuvens se miram sobre<br />

a superfície tranquila da água. Dir-se-ia que elas se<br />

espantam com sua própria formosura refletida na água.<br />

Bens do espírito ao lado dos bens do corpo. Como a<br />

Providência soube aliar o prático ao belo, de tal maneira<br />

que a primeira coisa notada pelo o homem é o belo e sorri<br />

encantado. E tudo isso nós temos nesta Terra de exílio.<br />

Imaginem o que seria o Paraíso Terrestre. Imaginem, sobretudo,<br />

como será esse lugar incomparável, o Paraíso<br />

Celeste!<br />

Ambiente que convida a alma<br />

para a contemplação<br />

Nessa fotografia a natureza é europeia e, portanto,<br />

bem diversa da nossa. Encontramos no alto desse monte<br />

uma pirâmide, não feita por algum faraó, mas feita<br />

por gigantescos movimentos da crosta terrestre, em épocas<br />

incalculáveis. Vejam a beleza do jogo de luzes nesse<br />

panorama! Aquela luz prateada, discreta, se concentra<br />

na encosta gelada desse pico de morro, parecendo iluminar<br />

toda a parte nevada. Depois, um verde denso e profundo<br />

desemboca num abismo escuro. Não. A luz desce e<br />

é condensada por essa névoa ligeira refletida em vários<br />

pontos, e traz para junto do homem todos os esplendores<br />

desse pico inacessível.<br />

Novamente aparece a água. Desta vez corre compacta,<br />

caudalosa, serena, frígida, quase tanto quanto o pico<br />

desse morro. Todo o panorama é feito de alturas. As próprias<br />

árvores parecem píncaros vegetais tendentes a subir<br />

e a se comparar com o píncaro mineral. Elas são graciosas<br />

e leves para compensar o maciço da montanha.<br />

Porém, veio o frio e a árvore perdeu suas folhas, que aos<br />

poucos começam a renascer. A árvore demonstra aí toda<br />

sua beleza e delicadeza extrema, mas também força,<br />

luz brilhante e radiosa; obscuridade, ambas convidam<br />

à contemplação recolhida e séria. Águas que indicam o<br />

passar contínuo de todas as coisas terrenas. É a frase da<br />

Escritura: Sic transit gloria mundi! 1<br />

As grandes luzes estão nos píncaros da fé<br />

As grandezas desta Terra escoam como a água, mas<br />

só Deus é eterno. Deus está representado naquele monte,<br />

que nunca muda, é sempre o mesmo. O rio da História<br />

passa, os homens passam. Deus, no mais alto de sua<br />

glória e de sua luz, continua intacto. É uma verdadeira<br />

lição de religião, de harmonia de virtudes: delicadeza<br />

e força, pureza, recolhimento, esplendor,<br />

sabedoria, tudo reunido<br />

nesses ambientes. Habitável para<br />

o homem; deleitável. Não há quem<br />

não gostaria de morar lá perto<br />

num chalé bem agasalhado, vendo<br />

essa natureza frígida, mas saudável,<br />

e se nutrindo dos seus frutos e<br />

criações. Prático e belo!<br />

Ora, diante desses grandes panoramas<br />

o homem acaba por ser<br />

desafiado: “Você tem coragem de<br />

subir?” Veja as pedras escorregadias!<br />

Que caminhos resvaladios e<br />

Viccente T. Marques<br />

João C. V. Villa<br />

João C. V. Villa<br />

34


Rodrigo C. B.<br />

Marcus Ramos / Viccente T. Marques<br />

difíceis! O desafio está na atração.<br />

Não há quem não sinta vontade<br />

de chegar até o alto, de se banhar<br />

nessa luz e ficar imerso nela.<br />

Quanta energia é preciso!<br />

Grande lição moral: realmente,<br />

as grandes luzes estão nos píncaros<br />

da virtude, da fé e da sabedoria.<br />

Mas é preciso força para<br />

galgar esses píncaros. Diz Nosso<br />

Senhor no Evangelho: “O Reino<br />

dos Céus é arrebatado à força e<br />

são os violentos que o conquistam”<br />

(Mt 11, 12). Aqui é o alto desse panorama. Ele<br />

convida os violentos às grandes ascensões, aos grandes<br />

feitos. Na Terra, o homem não vive só para gozar.<br />

Ele vive para ser herói, para ter uma alma capaz de<br />

grandes coisas.<br />

De outro lado, quanta coisa prática tem aí! Alguém<br />

me dirá:<br />

— Não vejo. Nessas plantinhas que talvez um gado<br />

coma? O que há de prático em tudo isso?<br />

Imaginem a Terra sem montes, é evidente que todo o<br />

seu equilíbrio se prejudicaria. Essas montanhas enormes,<br />

são colunas do equilíbrio terrestre.<br />

O que dizer? Parece um conto de fadas como o da<br />

“Alice no país das maravilhas”. Nós achamos tão apetecível<br />

essa neve, dá vontade de pegar uma colher e comê-la.<br />

Tão simpático esse caminho, pensamos num trenó<br />

e numas renas para correr por ele velozmente. Mas,<br />

depois disso, quem não teria a tristeza de não poder chegar<br />

até um píncaro desses? Esse, um píncaro acima de<br />

muitos outros que já foram atingidos por ascensões penosas,<br />

e que convida a outras ainda mais arriscadas. E<br />

os montes, postos uns em cima dos outros, banham o<br />

azul profundo que nos fala no céu de todos os ideais.<br />

Há um trecho da Escritura, aplicado a Nossa Senhora,<br />

que diz “Mons domus Domini in vertice montium, et elevabitur<br />

super colles” (Is 2, 2) – a montanha da casa do Senhor<br />

será colocada no cume das montanhas e se elevará<br />

sobre as colinas. Ali está Nossa Senhora: mais virginal,<br />

mais nívea, mais pura do que tudo o que se possa imaginar.<br />

Ali estão os outros Santos da Igreja Católica: alvos,<br />

brilhantes, altos, mas nenhum deles chega até Maria<br />

Santíssima. Por cima d’Ela, apenas está Deus, representado<br />

por esse céu de anil criado por Ele mesmo, para<br />

nos dizer que está por detrás e só na outra vida O atingiremos.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 10/2/1974)<br />

1) Do latim: Assim passa a glória do mundo.<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Pedro Morais<br />

Beleza e praticidade<br />

que conduzem a Deus<br />

Sainte-Chapelle, Paris<br />

O entrelaçamento do prático com o belo, tão característico<br />

da obra de Deus, não está presente na arte moderna. A alma<br />

católica, entretanto, soube unir essas duas prerrogativas<br />

até mesmo na arquitetura, e, sem deixar de servir ao corpo,<br />

procurou sobretudo encantar a alma e elevá-la até Deus.<br />

Ao nos depararmos com um conjunto residencial<br />

moderno, poderíamos imaginar ser uma grande<br />

fábrica ou cadeia, enfim, qualquer coisa enorme,<br />

situada em Oslo, São Paulo ou em outro lugar. Ora, tal<br />

construção tem alguma beleza? Ela nos eleva?<br />

O espírito da Revolução e a<br />

prevalência da matéria<br />

Absolutamente não. Só vemos uma série de quadrados,<br />

com umas pequenas janelinhas à maneira de alvéolos,<br />

onde habitam umas “abelhas” humanas. Cada homenzinho,<br />

cada família ocupa um, dois ou três buraquinhos<br />

desses e se perde nessa imensidade. O corpo talvez<br />

esteja bem servido ali, mas a alma humana fica opres-<br />

sa. É o espírito moderno, o espírito da Revolução onde<br />

prevalece a matéria. Ali a alma não se prepara para ir<br />

ao Céu, porque no Paraíso Celeste não há nada parecido<br />

com essa feiura, nem com essa monotonia. É a idolatria<br />

dos quadradinhos, postos uns sobre os outros.<br />

Em determinados edifícios não se mora, trabalha-se.<br />

Se houvesse cozinha, até seria habitável, pois imagino<br />

que um quadrado desses dá para qualquer coisa. Eu não<br />

entendo desse tipo de engenharia, nem quero entender.<br />

Entre ela e eu há uma incompatibilidade completa, radical.<br />

Um observador dirá: “Dr. Plinio, não é bonito o Sol<br />

que reflete pelas janelas?”<br />

Eu diria: “O arquiteto não fez o Sol, mas sim as janelas,<br />

e estas, quem ousará achar bonitas? Basta abrir<br />

28


uma para ficar um buraco. É um<br />

conjunto de vidros e de buracos,<br />

cujo interior está cheio de gente<br />

trabalhando até arrebentar. Tudo<br />

isso é muito prático para o corpo,<br />

mas para a alma, zero.”<br />

Alguém poderia objetar: “Mas,<br />

Dr. Plinio, não são quadrados de<br />

tamanhos iguais. Não há um pouco<br />

de harmonia dentro disso?” Eu<br />

não sei se o engenheiro pensou<br />

nisso. Estou me esforçando para<br />

ser equânime, mas não encontro<br />

uma resposta positiva.<br />

Ora, por que esse teto é inclinado?<br />

“É para a chuva escorrer”<br />

Então, por que esse outro é chato?<br />

É para a chuva não escorrer?<br />

São mistérios que eu não chego a entender.<br />

Em todo caso, para nos divertir um pouco, há aqui<br />

outro conjunto residencial ou de escritórios, com janelinhas,<br />

buracos e quadrados. Olhem para esse teto. Alguém<br />

dirá: “Maravilhoso! O senhor há de reconhecer<br />

que essas riscas de luz são bonitas.”<br />

Eu digo: “É verdade. A luz é bonita até sobre uma superfície<br />

moderna, pois não foi dado ao homem fazer com<br />

que a luz seja feia. A feiura é das trevas.”<br />

O que são esses “bengalões”? São projetos de muletas<br />

para imensos aleijados? Não, são conjuntos residenciais.<br />

Aplicando a vista, podemos perceber os quadradinhos.<br />

O movimento ondulado dessa rampa, é bonito? Um<br />

pouquinho é. Entrou um pouquinho de beleza dentro<br />

disso. Porém, pensem no artificial de tudo isso. Aliás,<br />

não é possível que a sensação frígida de artificialidade<br />

metálica escape à atenção.<br />

Oslo, Noruega<br />

Hostilidade entre a arte moderna e a beleza<br />

Há uma grande hostilidade contra a beleza na arte e<br />

arquitetura modernas.<br />

Vendo determinados prédios temos uma sensação de<br />

interrupção arbitrária e estúpida, dando-nos a impressão<br />

de um queijo enorme cortado, com algumas fatias<br />

tiradas, restando outras. Qual a razão dessas interrupções<br />

repentinas, sem nenhuma moldurazinha que as<br />

anuncie ou justifique? Isso é bonito? Alguém dirá: “É<br />

prático.”<br />

Isso é duvidoso. Entretanto, na arte moderna, o que é<br />

bonito não é prático; e o que é prático não é bonito. O entrelaçamento<br />

do prático com o bonito, tão característico<br />

da obra de Deus, não está presente.<br />

Analisemos um engarrafamento do trânsito. Nas metrópoles<br />

há grandes artérias retilíneas, feitas para da-<br />

Chell Hill (CC3.0)<br />

Ukjent (CC3.0)<br />

Ópera de Oslo, Noruega<br />

29


Apóstolo do pulchrum<br />

Henrique Boney (CC3.0)<br />

Torstein Frogner (CC3.0)<br />

rem vazão a milhares e milhares de carros por hora; mas,<br />

quando se dá uma pequena trombada, talvez entre dois<br />

motociclistas, é necessário esperar a polícia chegar, e por<br />

ser uma grande avenida, quando para o trânsito, paralisa-se<br />

uma enorme quantidade de veículos. É o urbanismo<br />

moderno, muito bem pensado para as coisas funcionarem<br />

bem, mas não planejado para a hipótese de funcionarem<br />

mal. Buzinas, enervamento, gente atrasada; quando, afinal,<br />

os automóveis podem circular, chocam-se uns nos outros<br />

pelo nervosismo, e ainda há novas trombadas.<br />

O espírito da Igreja une o prático ao belo<br />

Em contraste, temos a Abadia de Vézelay, na França,<br />

atualmente conhecida como Basílica de Santa Maria<br />

Madalena. Como é diferente! Percebam como a porta é<br />

muito prática, pois é bastante grande para facilitar a entrada<br />

e saída das multidões. Também é alta, de maneira<br />

a nada esbarrar nela. Por outro lado, a coluna central<br />

Oslo, Noruega<br />

Congestionamento no Vale do Anhagabaú, São Paulo<br />

divide um pouco a multidão e evita, já de início, que ela<br />

caminhe para uma só direção. Há nisso um lindo simbolismo!<br />

O feitio das portas medievais simbolizava Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo que veio dividir as vias do homem<br />

em duas: a da direita, a do amor de Deus, e a da esquerda,<br />

a da perdição.<br />

No pórtico podemos contemplar um belo trabalho em<br />

pedra representando um fato da História Sagrada, ou<br />

da História da Igreja, ou de algum Santo; ilustra e ensina<br />

a religião aos que vão entrar. A coluna central da porta<br />

principal da Basílica, que suporta todo esse peso com<br />

profunda nobreza, quão diferente é das colunas chatarronas<br />

existentes hoje em dia. Quanta harmonia e distinção!<br />

A seguir, temos a esplêndida Catedral de Reims, onde<br />

eram coroados os reis da França antes da Revolução<br />

Francesa. Eu não vou elogiar o evidente, mas vejam a<br />

magnífica harmonia e beleza dessa esplêndida neta de<br />

Deus. O gótico é considerado o estilo mais prático que<br />

houve na História. Não há nada, num edifício<br />

medieval, que não tenha uma razão<br />

de ser prática, inclusive poder-se-ia fazer<br />

um estudo comprovando isso. Nele, entretanto,<br />

tudo é bonito.<br />

Na fachada da própria Catedral de<br />

Reims observamos as rosáceas. Pareceria<br />

ter sido o prédio construído para dar<br />

beleza a esses grandes vitrais, mas não é<br />

verdade. As rosáceas existem para facilitar<br />

a entrada de luz dentro do templo.<br />

Entretanto, não é a luz clara de todos os<br />

dias, mas um pouco filtrada, convidando<br />

à contemplação e criando um ambiente<br />

místico de recolhimento.<br />

Os medievais aproveitaram os vitrais<br />

para representar cenas da História da<br />

30


Igreja, do Antigo ou do Novo Testamento,<br />

para ensinar aos povos, constituindo<br />

assim, mil símbolos da Doutrina<br />

Católica. Portanto, a rosácea é funcional,<br />

pois através dela entra luz para<br />

o prédio, mas que luz, que ensinamento,<br />

que flores de beleza! Essas igrejas<br />

eram chamadas de “Bíblias dos analfabetos”.<br />

Ora, o que forma mais a alma<br />

humana: a cartilha ou o vitral?<br />

Aliás, é preciso dizer o seguinte: a<br />

Idade Média foi a época na qual mais se<br />

trabalhou – em relação a todas as épocas<br />

anteriores – para a alfabetização do<br />

homem. De tal maneira que quando a<br />

Idade Média terminou, deu-se o aparecimento<br />

da imprensa. Como poderia a<br />

imprensa ter tão grande importância se<br />

ninguém soubesse ler e escrever?<br />

Destas considerações podemos tirar<br />

um ensinamento magnífico e faustoso.<br />

O espírito da Igreja é o mesmo<br />

espírito de Deus que sabe unir o prático<br />

ao belo; de onde o objetivo do prático<br />

é servir o corpo e não atrapalhar<br />

a alma; e o objetivo do belo é encantar<br />

a alma e elevá-la até Deus. Assim,<br />

vendo um objeto, utilizamos o prático<br />

quase sem pensar nele e admiramos o<br />

belo como se só este existisse.<br />

Yannick Pichard. (CC3.0)<br />

Construções que satisfazem<br />

o corpo e elevam a alma<br />

Há uma diversidade inimaginável<br />

de vitrais, alguns representando reis<br />

santos, e outros Nossa Senhora com o Menino Jesus. Contemplem<br />

a variedade de formas e de cores, que esplendor<br />

de luzes! Cada fragmento de um vitral é uma verdadeira<br />

pedra preciosa, e se cada parte é de tal maneira bonita,<br />

o conjunto é tão mais belo, que a alma não tem muita<br />

vontade de pormenorizar. A Bíblia conta que depois de ter<br />

criado o universo, Deus descansou e, contemplando sua<br />

obra, viu como cada coisa era boa, mas o conjunto era ótimo<br />

(cf. Gn 1, 31).<br />

Assim, no conjunto de vitais, que joia e esplendor! Função<br />

prática: iluminação. Função espiritual: apresentar a<br />

beleza, mas nela, a Suma Verdade, a Revelação trazida pelo<br />

Espírito Santo e Nosso Senhor Jesus Cristo à Terra.<br />

Comparem os prédios de quadradinhos e esse teto gótico.<br />

São dois mundos, duas concepções. O que mais prepara<br />

a alma para o Céu?<br />

Abadia de Vézelay, França<br />

A magnífica Catedral de Orvieto, por exemplo, tem<br />

algo de especial, pois é indelevelmente colorida do lado<br />

de fora. Ela ostenta esplêndidos mosaicos refratários à<br />

ação da luz e do tempo. Ademais, o perfeito estado dela<br />

nos faz pensar ter sido construída ontem. No entanto<br />

é, sem dúvida, uma catedral medieval que arrosta os<br />

séculos, não com aquela velhice magnífica e veneranda<br />

das antigas catedrais de granito, mas com a durabilidade<br />

que fala do eterno.<br />

No ponto mais alto da fachada há um mosaico representando<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo coroando Nossa Senhora.<br />

Qual é a pintura, com cores tão frescas, representando<br />

um esplendor e uma louçania de alma tão magnífica?<br />

Nessa catedral tudo aponta para o céu, até os triângulos<br />

e as flechas. Edifícios como esse parecem elevar-se<br />

ao céu e nos levam para lá.<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Almas insaciáveis de dar glória a Deus<br />

Analisemos agora um castelo, quase de conto de fadas:<br />

Neuschwanstein. Ele foi edificado sobre um monte,<br />

a pedido do Rei Luís II, da Baviera, no século XIX.<br />

A nobreza desses torreõezinhos; quanta distinção, beleza<br />

e altanería! Como isso é diferente daqueles mil alvéolos<br />

que parecem transformar seus habitantes em abelhas<br />

humanas. Contrariamente, este nobre castelo faz<br />

dele um guerreiro, e, por sua vez, a catedral faz do homem<br />

um santo.<br />

Observem a beleza do telhado. Dir-se-ia estar revestido<br />

de pedras preciosas! Como é convidativo morar num lugar<br />

desses! Abrir de manhã a janela e contemplar um dos telhados<br />

laterais refulgindo ao Sol. Olhar para baixo e se deparar<br />

com uma das rampas, com água escorrendo depois<br />

de uma chuvarada e gotejando agradavelmente da gárgula.<br />

Quanta beleza, nobreza e harmonia! Entretanto, isso é prático:<br />

esse declive visa impedir o acúmulo de neve.<br />

Já na cidade de Rouen, onde Santa Joana d’Arc foi<br />

queimada pelos ingleses, temos uma imponente Catedral<br />

que mais parece um enorme élan para o céu. A torre<br />

vai adelgaçando à medida que se eleva, quase se transformando<br />

em firmamento; não se sabe bem se seu píncaro<br />

é mais ar do que terra, ou mais luz do que pedra. Assim,<br />

esse belo monumento convida a alma para subir!<br />

Josep Grin (CC3.0)<br />

Eric Pouhier (CC3.0)<br />

Ludovic Péron (CC3.0)<br />

Detalhes da Catedral de Reims, França<br />

32


jplenio (CC3.0)<br />

Castelo de Neuschwanstein, Alemanha<br />

No prefácio da história de Santa Isabel da Hungria,<br />

Charles Montalembert narra que um maometano, preso<br />

pelos cruzados, recebeu licença de viajar pela Europa e,<br />

conhecendo as catedrais, perguntou quem as construía.<br />

Mostraram-lhe, então, o irmão leigo de um convento:<br />

— Ele é um dos homens que constroem esses monumentos.<br />

Surpreso, indagou:<br />

— Como podem homens tão humildes construir edifícios<br />

tão altivos?<br />

Assim é a alma católica: humilde quanto a si mesma,<br />

mas insaciável para dar glória a Deus. Na Catedral de<br />

Rouen está a glória de Deus cantada por uma flecha que<br />

vai mais alto do que todos os edifícios da Terra. Essa é<br />

a Igreja Católica acima da sociedade temporal. A Santa<br />

Igreja está por cima de tudo.<br />

Ambientes que conduzem a Deus<br />

Em outra foto vemos aquilo que São Francisco de Assis<br />

chamava “a irmã água” caindo e correndo, luminosa<br />

e turbulentamente, em meio a pedras, por certo fazendo<br />

aquele ruído mais parecido a um cântico. Próximas<br />

à margem há algumas moradias plebeias. Notem<br />

a sensação de solidez dos prédios e como dão a impressão<br />

de proteger contra as intempéries. Dentro dessas casas,<br />

as pessoas se sentem na intimidade, a léguas da rua,<br />

afastados dos outros, com a possibilidade de estar a sós,<br />

no aconchego da família ou numa solidão completa aos<br />

olhos de Deus.<br />

Catedral de Orvieto, Itália<br />

É um ambiente agradável, à maneira europeia, pois<br />

quando chega o verão o jardim se enche de gerânios vermelhos<br />

e, do lado de dentro, uma pessoa calma lê um livro,<br />

ou uma senhora faz crochet ou tricot enquanto conversa<br />

com o netinho sentado no chão. É a vida tranquila<br />

e cheia de paz de outrora, mais operosa do que a das<br />

multidões se acotovelando nos ônibus. Cidades peque-<br />

Luca Aless (CC3.0)<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

A Torre de Belém, localizada na margem do Rio<br />

Tejo, que banha Lisboa, é uma fortificação composta<br />

de um material tão alvo que em noite<br />

de luar mais parece feita de lua. Na sua<br />

parte inferior se encontram os orifícios<br />

para os canhões. Sob certo ponto de vista,<br />

a torre, tão leve com suas ameias e<br />

torreões, parece um brinquedinho;<br />

mas, tão majestosa e forte que dá impressão<br />

de uma verdadeira fortaleza.<br />

Os antigos tinham horror das fachadas<br />

lambidas e do plano sem arte.<br />

Na superfície principal está a sacada<br />

onde podemos imaginar o rei<br />

vendo as naus partirem, por exemplo,<br />

da frota de Pedro Álvares<br />

Cabral, com a imagem de Nossa<br />

Senhora, a qual hoje se venerajaraman<br />

sundaram (CC3.0)<br />

Cataratas do Reno, Suíça<br />

nas, onde as pessoas vão a pé por toda parte, aonde ninguém<br />

tem pressa, ninguém corre, todo mundo vive e respira<br />

em paz. Em cidades como essas se formaram os povos<br />

europeus, saudáveis, que engendraram a maior civilização<br />

de todos os tempos.<br />

Como seria agradável, por exemplo, no entardecer de<br />

um dia fresco, permanecer num terracinho rezando ou<br />

lendo, ou até fazer uma grande coisa quando a pessoa<br />

tem a alma cheia de altos pensamentos e de verdadeira<br />

fé: não fazer nada. Contudo, não significa flanar ou fazer<br />

o papel de bobo, mas é deixar a memória e as recordações<br />

falarem, ir pensando ao sabor do tempo e das associações<br />

de imagens. É mergulhar na contemplação.<br />

Foi conversando agradavelmente desde uma janela<br />

que Santo Agostinho e Santa Mônica tiveram o famoso<br />

êxtase de Óstia. Quem poderia ter um êxtase dentro de<br />

um arranha-céu contemporâneo? Deus pode tudo, inclusive<br />

levar alguém a entrar em estado místico no interior<br />

de um edifício moderno, mas é preciso dizer que um tal<br />

lugar não propicia um êxtase.<br />

34<br />

Maravilha do espírito católico<br />

Pedro Álvares Cabral<br />

Rio de Janeiro


Herbert Frank (CC3.0)<br />

ra na igreja dos Jerônimos, e é chamada Nossa Senhora<br />

do Brasil.<br />

Imaginemos ali uma série de pendões e de tapeçarias<br />

riquíssimas; o rei com a rainha e sua corte, despedindo-<br />

-se dos navios que partiam para descobrir novas terras e<br />

trazer novos povos para a Igreja Católica Apostólica Romana,<br />

levando nos mastros a Cruz de Cristo. É um cenário<br />

magnífico! Tão bonito que parece ter sido construído<br />

só para essa cena épica.<br />

Ali encontramos a beleza conjugada ao prático. O mirante<br />

é estupendo, e sem dúvida, muito funcional. Foi uma<br />

fortaleza tão boa que, para as condições do tempo, metia<br />

medo em qualquer atrevido desejoso de se adentrar no Tejo.<br />

Nobre e distinta, a Torre de Belém é uma verdadeira<br />

maravilha do espírito católico que formou essa civilização.<br />

Quanto respeito para com a criatura humana há numa<br />

construção como essa! O homem se sente inteiramente<br />

atendido, protegido, defendido e conduzido até<br />

Deus! <br />

v<br />

(Extraído de conferência de 10/2/1974)<br />

Benittes (CC3.0)<br />

Catedral de Rouen, França<br />

Torre de Belém,<br />

Lisboa<br />

Vicente D.<br />

35

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