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nº 3 março 2022
Nada será
como antes
A reinvenção da cultura no pós-pandemia
Páginas 6 a 18
Negros e indígenas:
Por um lugar ao sol
Páginas 28 a 39
Brasil e França:
A via de mão dupla
Páginas 60 a 70
Entrevista:
Vincent Nédélec
Páginas 81 a 85
Editorial
Culturas nº 3 março 2022
O lugar do
negócio cultura
Em meio ao refluxo do ciclo pandêmico que não se encerrou, mas que, desde
seu início, em 2020, marcou de forma determinante o fazer artístico-cultural, a cultura
enfrenta mais uma urgência: a de se entender como negócio. Por mais histórico que seja
este dilema, em tempo algum se fez tão necessário que o setor se reafirme neste lugar,
como gerador de trabalho e renda. Como fonte de sobrevivência de um sem-número de
trabalhadores, com diferentes perfis sociais e econômicos. Como antídoto para as enfermidades
deste tempo e que, como tal, precisa ser valorado, precificado e reconhecido
como essencial.
Com sua imensa cadeia criativa e produtiva, a cultura não deve ser observada
como mera ferramenta – seja para o riso, reflexão ou inquietação. Não se trata do mérito
do conteúdo, ou da zona de desconforto que a arte alcança. Mas, sim, de posicionar uma
lupa sobre este já gigante território dialético, e entender sua poderosa capacidade de se
oferecer como alicerce para todas as frentes do existir. Cultura é diálogo, transversalidade,
potência e profissão. E assim sendo, faz conviver dimensões simbólicas com práticas
objetivas que precisam ser preservadas.
O resultado do trabalho artístico é socialmente indiscutível. Todos enxergam a presença
e vitalidade da arte no cotidiano, gostando ou não dela. O mesmo não pode ser
dito quanto à consciência de que, para se alcançar um resultado produtivo na cultura, é
necessário conhecimento, dedicação e empenho. A este caminho chamamos trabalho.
Mas, em meio a uma crise sanitária de gravidade sem precedentes, e ainda com impactos
incalculáveis, o setor cultural anoiteceu também por falta de reconhecimento do seu papel
como vetor de desenvolvimento econômico. E o novo dia já não pode demorar.
Mergulhada nesta preocupação, e amparada pelos debates promovidos pelo V
Fórum de Políticas Culturais, realizado pelo Sesc em Minas em parceria com o Governo
de Minas, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo e da Embaixada da
França, esta edição da revista CulturaS reúne reflexões sobre os riscos deste negócio.
E oferece relatos de diferentes protagonistas que emergem do caos com consistentes
ações afirmativas, na contramão da invisibilidade.
Janaina Cunha
Gerente de Cultura
Sesc em Minas
2
Índice
2
Editorial
4 e 5
Visão dos parceiros: Embaixada da França e
Governo de Minas
6
Reportagem de capa: Em busca da
normalidade, dentro do possível
19
Artigo: O audiovisual em novos cenários/
Matthieu Thibaudault
25
Artigo: Futuros possíveis ou impossíveis/
Aline Vila Real
28
Reportagem: Por um lugar ao sol
40
Artigo: A força transformadora dos dados/
Isabela Souza
47
Artigo: Invisíveis na música/
Kaê Guajajara
52
Artigo: Muito mais do que diversão e arte/
Alexandra de Melo e Rita Roldan
60
Reportagem: O exemplo que
vem de fora
71
Artigo: O que o patrocínio pode oferecer/
Bénédicte Chevallier
81
Entrevista: Por um caminho de mão dupla/
Vincent Nédélec
Culturas nº 3 março 2022
Expediente
Sesc em Minas Gerais
Presidente do Conselho Regional: Lázaro
Luiz Gonzaga ● Diretor Regional: Luciano
de Assis Fagundes ● Diretor de Programas
Sociais, Serviços e Operações: Grijalva de
Carvalho Laje Duarte Junior ● Gerente Corporativo
de Programas Sociais: Jacqueline
Corrêa Lustosa ● Gerente de Cultura:
Janaina Helena Cunha Melo
Acordo de Cooperação Internacional entre
Brasil e França para o Desenvolvimento
de Projetos Conjuntos
Grupo Gestor de janeiro de 2021 a março
de 2022: Igor Arci, Janaina Helena Cunha
Melo, Manoel Bernardes, Manuella Abdanur
de Paula M. Paiva, Vincent Nédélec e Philippe
Makany. A Philippe, adido cultural da
Embaixada da França no Brasil, um agradecimento
especial pelo tempo em que esteve à
frente desta parceria por quatro anos.
Revista CulturaS
Execução técnica:
Gerência de Cultura Sesc em Minas ● Conselho
Editorial: Janaina Helena Cunha Melo
(Presidente do Conselho), Jacqueline Corrêa
Lustosa, Marcelo Freitas, Manuella Abdanur
de Paula M. Paiva, João Paulo da Costa Maia
e André Wilson Cardoso Vasconcelos
● Reportagem e edição: Marcelo Freitas ●
Revisão: Edda Cabral ● Tradução: Karina
Barbosa dos Santos ● Projeto gráfico e diagramação:
Carlos Domingos ● Articulistas
que participaram desta edição: Alexandra
Melo, Aline Vila Real, Bénédicte Chevallier,
Isabela Souza, Kaê Guajajara, Matthieu Thibaudault
e Rita Roldan
● Assessoria de Imprensa: Gerência de
Comunicação Sesc em Minas ● Produção
executiva: Manuella Machado Paiva e Camila
Lukschal Collier ● Periodicidade: bianual
3
Uma luz sobre novos caminhos
Culturas nº 3 março 2022
Uma luz
sobre novos
caminhos
Vincent Nédélec
A promissora parceria firmada
entre a Embaixada da França no
Brasil, o Sesc em Minas e a Secretaria
de Estado de Cultura e Turismo de
Minas segue celebrando diálogos, trocas
e projetos comuns. Desde 2016,
quando começávamos a congregar os
parceiros, a sintonia no entendimento
da cultura como política pública vem
favorecendo o intercâmbio de experiências
entre profissionais, permitindo
aos franceses e aos brasileiros o acesso
às ideias e práticas inovadoras que
lhes podem ser úteis. Em especial, ao
elaborar estratégias de longo termo.
Esses últimos anos, na França,
como no Brasil, a cultura conheceu alguns
reveses que impactaram a sustentabilidade
e o desenvolvimento desta
atividade econômica. Frente a este
cenário e seus reflexos nas demandas
societais por oferta cultural, consideramos
fundamental, na quinta edição do
Fórum de Políticas Culturais, pensar os
desafios do setor, as ferramentas disponíveis
para mensuração de viabilidade
e impacto econômico e as iniciativas
de artistas situados fora dos circuitos
convencionais. Uma série de reflexões
sobre a contemporaneidade que ora ganham
a edição deste legado escrito.
A publicação da Revista CulturaS
traduz o anseio a que nos propusemos
desde o início, o alcance e a formação
de um público mais amplo e diverso.
Além de seguir promovendo reflexões
sobre o setor cultural após a realização
do Fórum. A relevância de nossas ações
mostra-se notável face a um cenário de
dificuldades, bastante desafiador para
artistas cujas obras não obedecem aos
padrões tradicionais ou para aqueles
que têm lidado com entraves na busca
por financiamento.
Alternativas em diálogo com os
agentes econômicos territoriais, caso
da Associação Mécènes du Sud, na
França, favorecem a construção de
projetos perenes, sustentáveis, com
uma linha editorial própria e autônoma.
Esta também é uma característica
comum à iniciativa Le Mur, coletivo
mantido por incentivo de atores locais,
aficionados pelo movimento Street Art.
As criações desses artistas, no âmbito
das artes e das ideias para a manutenção
de seus projetos culturais, lançam
luz sobre caminhos possíveis.
Vincent Nédélec é chefe do
Serviço de Cooperação de Ação
Cultural da Embaixada da França para
Minas Gerais
4
Ressignificar e repensar a cultura
Culturas nº 3 março 2022
Ressignificar
e repensar
a cultura
Leônidas Oliveira
A terceira edição da revista traz novos olhares, mais
atentos e demorados, a um mundo que vem se desenhando
frente a cenários cada vez mais desafiadores para o setor
cultural. O período de incertezas nos passados dois anos
causou impactos tão profundos que, ainda hoje, sentimos os
efeitos do isolamento social. Mesmo assim, nos mantivemos
firmes, refletindo sobre o humano, o social e o econômico.
O fazer cultural se ressignificou frente às dificuldades
e se reinventou, como sempre faz, para celebrar nossa identidade,
nossa diversidade e nossa mineiridade. Múltiplas foram
as plataformas que abrigaram a cultura e a imensa capacidade
criativa que movimenta e transforma o setor. Aos poucos,
a vida está voltando aos eixos e, sobre esse novo normal que
nos acena, é preciso pensar, refletir, fazer e refazer.
O Fórum Políticas Culturais em Debate nos convida a
entender a cultura como um segmento e negócio para além
de indicadores. Em 2021, o evento, que contou mais uma vez
com a parceria da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo
de Minas Gerais (Secult), nos convidou a enxergar o futuro
tendo o recente passado pandêmico como ponto de partida
para as potentes conversas e os diálogos necessários sobre
o fazer cultural.
Este novo tempo é fundamental para a constante
transformação do setor cultural em Minas Gerais. Cada vez
mais, essa cadeia produtiva precisa estar atenta às mudanças
e aberta às oportunidades, para ser capaz de continuar
prosperando e contribuir para a geração de emprego e renda
entre artistas e profissionais envolvidos.
Leônidas Oliveira é secretário de
Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
Ampliar
o radar
Chegar a mais uma edição
da Revista CulturaS é uma conquista
para o Sesc em Minas. Realizada
em parceria com o Governo
de Minas, por meio da Secretaria
de Estado de Cultura e Turismo e
a Embaixada da França, a publicação
leva à população rica discussão
acerca das políticas culturais,
da produção artística e das possibilidades
de relacionamento nacional
e internacional neste setor.
Como instituição privada
que historicamente apoia o cidadão
em necessidades essenciais
do cotidiano, o Sesc em Minas
tem, entre suas iniciativas, diversas
atividades artísticas. Da circulação
de espetáculos até a oferta
de cursos e oficinas, o Programa
Cultura visa a transformação social
por meio do estímulo ao desenvolvimento
de habilidades técnicas,
socioafetivas e relacionais. É este
encontro com instituições irmãs
que permite a parceria que dá vida
ao Fórum de Políticas Culturais e,
consequentemente à Revista CulturaS,
cujo foco é ampliar o radar
para reflexões importantes sobre o
papel da cultura na sociedade contemporânea.
Sesc em Minas
5
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
Em busca
da normalidade,
dentro do
possível
Belas Artes/Divulgação
O Cine Belas Artes de BH, que passou por reforma feita com
financiamento coletivo durante a pandemia, em dezembro ainda
operava com ocupação inferior à de antes do isolamento social
6
Culturas nº 3 março 2022
Um dos mais afetados pela
pandemia, por depender de público,
o setor de cultura se reinventou
para manter suas atividades
durante o período de isolamento
social. Como será no pós-pandemia
é um enigma. Da mesma forma que
a cultura teve que abraçar o on-line,
até mesmo por uma questão de
sobrevivência, no pós-pandemia, os
limites entre o presencial e o virtual
tornaram-se tênues.
Em meados de março de 2020, a diretora
da distribuidora de filmes Zeta Filmes, de Belo
Horizonte, Francesca Azzi, estava participando
de um evento no cine Sesc, em São Paulo, quando
recebeu a notícia de que a capital paulista iria
ser fechada por causa da Covid; o ator Odilon Esteves
estava no Rio de Janeiro, participando dos
ensaios da série de TV “Mau Secreto”, que iria ser
gravada pela Globoplay. Com a Covid, o projeto
foi cancelado; o músico Luan Nogueira Barreto, o
Nobat, tinha acabado de criar o show de seu novo
disco e estava no estúdio gravando as músicas.
Com a Covid, o projeto foi suspenso; o ator Vinícius
de Souza estava, junto com Marcelo Castro,
dirigindo os ensaios do novo espetáculo do grupo
de teatro Galpão, que estrearia em abril, em Curitiba.
A pandemia suspendeu os espetáculos.
Francesca Azzi, Odilon Esteves, Nobat e
Vinícius de Souza trabalham com a cultura. Atuam
em um segmento para o qual 2020 foi um ano que
não começou. De uma forma ou de outra, todos
foram afetados pela pandemia e acabaram sendo
obrigados a trilhar outros caminhos que não
imaginavam que seriam possíveis. No momento,
vivem a expectativa da volta da normalidade, dentro
do que for possível ser alcançado, já que uma
nova variante do vírus – a Ômicron – entrou em
cena e pode atrasar o tão sonhado retorno.
Francesca Azzi acredita que as salas de
cinema terão de volta seu público, mas isso não
acontecerá tão rapidamente quanto se espera.
Odilon Esteves também projeta o retorno dos
espectadores aos teatros, mas não pretende
abandonar as pessoas que, durante a pandemia,
descobriram o teatro pelo on-line; o mesmo pensamento
tem Nobat. Ele acredita que o formato
híbrido talvez possa ser um modelo adequado
para a pós-pandemia.
Vinícius não desdenha do on-line, que foi
importante durante o período em que os teatros
7
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
Durante a pandemia, o teatro entrou na vida
das pessoas no formato on-line, tornando-se
uma boa opção, principalmente nas cidades
do interior onde não há casas de espetáculos.
Porém, o modelo híbrido causa polêmica entre
produtores e artistas.
estavam fechados. Porém, as experiências feitas
com o virtual durante a pandemia deixaram nele
a certeza de que a linguagem teatral tem especificidades
que tornam insubstituível o espetáculo
presencial, com os atores no palco e a plateia a
poucos metros dali, apreciando a cena e interagindo
com os atores.
Seja qual for o caminho a ser trilhado no
pós-pandemia, o fato é que durante a pandemia,
os brasileiros aumentaram o consumo de atividades
culturais no ambiente on-line e pretendem
manter o hábito após a volta à normalidade. O
dado é uma das conclusões da pesquisa “Hábitos
culturais II”, realizada pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha
em julho do ano passado.
Segundo a pesquisa, que ouviu 2.276 pessoas
em todo o país, entre os dias 10 de maio e 9
de junho de 2021, o aumento de consumo de cultura
no ambiente virtual ocorreu no momento em
que os brasileiros passaram a ficar mais conectados
à internet. De acordo com o estudo, 76%
dos entrevistados informaram que passaram a se
conectar todos os dias. Em 2020, o índice era de
71%. O consumo de apresentações artísticas de
teatro, dança e música disparou. Em 2020, 20%
dos indivíduos diziam que consumiam esse tipo
de atividade no ambiente on-line. Em 2021, o índice
dobrou e subiu para 40%.
No longo tempo transcorrido entre março
de 2020 e os dias de hoje, e nesse cenário de aumento
do consumo de cultura pelo on-line, Francesca,
Odilon, Nobat e Vinícius também tiveram
que se reinventar. Francesca não esperava que a
pandemia fosse durar o tempo que durou. O mercado
da Zeta é voltado para os chamados filmes
de arte exibidos presencialmente. Com o fechamento
das salas, a saída inicial foi cortar custos.
“Quando a gente viu a proporção gigantesca da
pandemia, começamos a ver o que fazer”. A saída,
em um primeiro momento, foi cortar custos
e fechar o escritório da distribuidora que fica no
bairro do Prado, em Belo Horizonte. “Foi uma loucura”,
contou Francesca.
On-line
A primeira alternativa de retomada da exibição
que ela vislumbrou foi a distribuição do acervo
da Zeta pelo on-line. Isso foi feito com o Serviço
Social do Comércio (Sesc) e com redes de cinemas
do Sul e Nordeste do país. “Isso permitiu
que tivéssemos renda com nosso acervo”, afirmou
Francesca Azzi. Paralelamente, a distribuidora
lançou o projeto “Zeta na quarentena”, para
a exibição de filmes on-line mediante senha no
YouTube. Um dos filmes, Geórgia, foi visto por
quatro mil pessoas.
Um segundo momento foi quando outras
distribuidoras partiram para o streaming em plataformas
próprias, alternativa na qual a Zeta Filmes
não apostou porque acreditava que muito
rapidamente o modelo iria se esgotar, já que as
pessoas não iriam pagar pelo acesso a várias distribuidoras
ao mesmo tempo. A opção da Zeta foi
pela parceria com a Mubi, plataforma com sede
na Turquia e que tem forte penetração entre os
8
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
cinéfilos no Brasil. Em termos de público, trata-se
da plataforma que melhor espelha o mercado da
Zeta. “Meu filme estando lá, estou no ambiente
certo”, afirma Francesca Azzi.
Segundo Francesca, do ponto de vista financeiro,
não se trata de um excelente negócio,
porque a remuneração é baixa. Por isso, ela afirma
que o streaming não é a solução para distribuidoras
como a sua. “O futuro não pode ser
o on-line, porque o on-line não paga as contas”,
afirma. Entretanto, enxerga a necessidade de
ajustes no modelo presencial, de tal forma que
seja possível uma redução no valor dos ingressos,
condição para a ampliação do público frequentador
das salas. “O cinema tem que ser mais
acessível”, pondera a diretora da Zeta Filmes,
que em 2022 tem como meta o lançamento de
algo entre 12 e 15 filmes. Porém, a despeito do
alto custo dos ingressos, ela afirma que o ato de
ir ao cinema tem um sentido que vai além do próprio
filme a ser visto. “O conforto de ir ao cinema
é uma coisa engrandecedora, pois você toma um
café, vê livros. É um programa que envolve muitas
coisas de percepção”.
Quem conhece muito bem o mercado exibidor
de cinema é Adhemar Oliveira. Ele é o diretor
de programação de uma rede de 56 salas em
seis capitais: Porto Alegre, São Paulo, Brasília,
Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte. Na
capital mineira, os cinemas que dirige são os do
complexo Belas Artes, especializados nos chamados
filmes autorais ou de arte. Porém, em sua
rede, em outras capitais, há salas que exibem os
filmes de grande bilheteria como os de super-heróis,
da Marvel. Nestas salas, segundo Adhemar,
o público hoje corresponde a algo em torno de
80% a 90% do que frequentava os cinemas antes
da pandemia. Nas salas de arte, como as de
BH, a recuperação tem sido mais lenta, estando
a ocupação em torno de 60% a 70% em meados
de dezembro.
As três salas que formam o único complexo
de cinemas de rua de Belo Horizonte ficaram
fechadas de 15 de março de 2020 a agosto de
2021. Nesse meio tempo, a rede lançou uma
bem-sucedida operação de financiamento coletivo
para, segundo Adhemar Oliveira, pagar as
despesas básicas de operação das salas, como
os salários dos funcionários, o aluguel das salas,
o escritório de contabilidade e a manutenção
dos elevadores, entre outras. “Para sobrevivermos,
fizemos acordo para tudo quanto é
lado”. Com os recursos do financiamento coletivo
também foi feita a revisão dos equipamentos
de projeção, a pintura e a troca do carpete e das
luzes de piso das três salas, além da reforma
dos banheiros e a colocação de hidrantes com
reserva de água.
Francesca Azzi, da Zeta, diz que salas presenciais
são fundamentais para a remuneração da
produção cinematográfica
Acervo pessoal
9
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
A despeito da migração de parte do público
para o streaming ocorrida durante a pandemia,
ele afirma que o centenário modelo de negócio do
setor, que prevê a exibição dos filmes primeiro nas
salas físicas, para só então irem para o streaming
e a televisão, não foi alterado. Isso significa, para
o frequentador, a garantia de que os lançamentos
continuam sendo primazia do circuito físico de
exibição. Com isso, segundo Adhemar Oliveira, a
continuidade da retomada irá depender apenas
do consumidor entender que o tempo que ele ganhou
no home office, evitando os deslocamentos
para ir e voltar ao trabalho, por exemplo, poderá
ser gasto em uma ida ao cinema, experiência por
ele definida como “uma forma de fruição”.
Otimista, ele afirma que a retomada é um
movimento sem retorno. Da mesma forma que
muitos acreditavam que a televisão iria acabar
com o cinema, o que não acorreu, não será a pandemia
que irá fazer isso. “Se a experiência produz
prazer nas pessoas, a tendência é que elas voltem”,
afirmou o diretor das salas do Belas Artes.
Música
Quem também aposta nisso – no prazer
que a arte propicia – é o músico Nobat. A despeito
do trancamento de sua agenda de shows e da
tragédia que foi a pandemia e seus mais de 600
mil mortos, ele afirma que procurou, ao longo dos
últimos dois anos, aprender com a crise. Um dos
momentos que considera mais revelador, foi a
possibilidade, por ele experimentada entre agosto
de 2020 e janeiro de 2021, de gravar um disco
sem que todos os músicos estivessem no estúdio
ao mesmo tempo, como seria o normal em tempos
de não pandemia.
Os músicos estavam em Belo Horizonte,
Rio de Janeiro e Salvador, desenvolvendo e
testando os arranjos. Segundo ele, em tempos
normais, nada teria sido produzido a distância.
O streaming foi a solução
para o cinema, mas o modelo
de negócios do setor não foi
alterado. Salas de exibição
presenciais permanecem
como local de lançamento dos
novos filmes, que só depois de
lançados irão para o streaming
e para a TV. A dúvida é se
ocupação das salas retornará ao
que era antes.
“Sempre trabalhei com pessoas ao meu redor”,
afirma Nobat, que também nunca imaginou que o
tempo de isolamento seria tão longo. “Se alguém
me dissesse que eu iria viver uma coisa como
essa, tão exótica, trágica e diferente de tudo com
que estávamos acostumados, eu não acreditaria”,
afirma Nobat.
Ele também se define, por outro lado, como
alguém que cultiva o hábito de sempre procurar
tirar algum proveito de situações negativas. “Foi
um período de muitos desafios, de rever o mundo,
transformar velhas ideias e reciclar alguns
pensamentos relacionados à produção musical”.
Uma delas, na produção, foi a de trabalhar a distância.
Outro desafio foi o das apresentações on
-line, que também foi obrigado a realizar durante
a pandemia. Destas, o que de mais estranho ele
guarda é o silêncio após o término das apresentações,
já que o público não estava ali presente
para aplaudir.
Para ele, o mundo da música no pós-pandemia
poderia ser o do formato híbrido, com apresentações
presenciais, porém, com transmissão
pela internet. “Só o fato de ver as pessoas, de estar
perto delas, de ver a reação no rosto delas, é
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Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº nº 3 março março 2022 2022
algo fabuloso”. O presencial carrega, no entender
de Nobat, um potencial que o on-line nunca vai
propiciar. Porém, o virtual oferece a possibilidade
de o artista expandir suas conexões ao redor do
mundo. “Uma não interfere com a outra”, diz o artista,
que tem dez anos de carreira e três discos
já lançados. No momento ele está gravando os
quatro clipes de divulgação do novo álbum, que
será lançado em junho. A ideia é, até lá, lançar um
clipe por mês.
Teatro
A exemplo do que fez Francesca Azzi na exibição
de filmes, no mundo do teatro, Odilon Esteves
e Vinícius de Souza também tiveram que partir
para o on-line durante a pandemia. Odilon Esteves
também não esperava que os dias de confinamento
fossem durar tanto tempo. “No início, foi muito
angustiante”, afirma Odilon Esteves. Antes da pandemia,
além da atividade teatral, ele fazia palestras
presenciais sobre literatura para estudantes de ensino
fundamental e médio. Foi então que recebeu
da diretora de uma escola o pedido para apresentar
a palestra no modelo virtual.
Odilon Esteves conta que sua primeira resposta
foi negativa, porque entendia que a atividade
havia sido concebida apenas para o presencial.
Não satisfeita, a diretora da escola insistiu
que fosse feito um teste para a apresentação
virtual. Surpreso, ele afirma que o primeiro comentário
que recebeu foi de que havia gostado
mais da versão on-line que da presencial. A explicação
era simples: como Odilon Esteves falava
olhando diretamente para a lente da câmera,
ele transmitia sensação de que a apresentação
estava sendo feita exclusivamente para quem
estava do outro lado. A partir daí, ele passou
a receber convites de várias outras escolas e,
com isso, conseguiu manter sua renda durante
os primeiros meses da pandemia.
Na sequência, ele recebeu um convite do
Centro de Cultura do Banco do Brasil (CCBB)
para apresentar, também virtualmente, durante
dois meses, pelo programa CCBB em Casa, o espetáculo
de sua autoria “Na sala com Clarice”. Na
peça, há uma interação entre Odilon e os espectadores,
que podem escolher os textos da escritora
Clarice Lispector que gostariam que fossem
apresentados no dia.
Odilon Esteves conta que “Na sala com
Clarice” abriu para ele um universo de possibilidades
novas, vindas principalmente de cidades
do interior, que não recebiam espetáculos teatrais
e agora, pela internet, podiam ter acesso a este
tipo de manifestação cultural. “Recebi muitos retornos
de pessoas agradecendo a oportunidade
de participar de um evento de teatro ao vivo, que
eles jamais iriam assistir”. Um desses retornos
veio da filha de uma pessoa que era portadora de
deficiência e que não poderia ir ao teatro mesmo
que o espetáculo fosse encenado na cidade onde
elas moravam. Essa pessoa contou que, quando
a apresentação terminou, mesmo estando distante,
sua mãe aplaudiu.
Por razões como esta é que Odilon Esteves
pretende, na retomada, dar atenção ao público
que foi por ele criado durante a pandemia.
“Muita gente me escreveu pedindo que eu não
esquecesse o interior”. Tal situação fez com que
ele passasse a encarar o meio digital como uma
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Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
Na pandemia, Vinícius de Souza, Paulo André, Inês
Peixoto e Teúda Barros, do Grupo Galpão, fizeram
experimentos com o som em “Quer ver escuta”
fotos: Matheus Lustosa
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Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
alternativa real de levar o teatro a esses públicos
que, de outra forma, não iriam ter acesso aos espetáculos.
“Acho que a gente pode passar a ter
mais eventos híbridos”, afirma Odilon Esteves.
Vinícius de Souza afirma que quando a
pandemia chegou, ele e os outros integrantes
do grupo Galpão tinham em mente que a quarentena
também iria durar pouco tempo. Porém,
após cerca de dois meses, além do cancelamento
da temporada de Curitiba, as apresentações
marcadas para São Paulo tiveram que ser
suspensas. “Foi então que percebemos que a
situação era muito mais crítica e mais trágica”,
afirma Vinícius.
Como a apresentação da peça que estavam
ensaiando não iria acontecer tão cedo, eles
passaram a pensar em atividades que pudessem
realizar para manter o processo criativo. Uma
delas foi a produção de um filme – “Éramos em
bando” – que retratava a rotina daquele momento
vivido por um grupo de teatro que, acostumado
aos espetáculos presenciais, estava sendo, pelas
circunstâncias da época, obrigado a se isolar do
convívio social e, ao mesmo tempo, fazer os primeiros
experimentos do uso de outra linguagem
que não apenas do teatro.
Foi nesse instante que, segundo Vinícius
de Souza, foram estudadas outras possibilidades
de o grupo se manter presente na vida do público
e, ao mesmo tempo, feitas algumas experimentações.
Uma delas foi uma peça radiofônica, levada
ao ar pela Rádio Inconfidência e concebida para
ser uma alternativa à predominância que a imagem
estava tendo nos espetáculos on-line. “Tentamos
ir para o caminho do som”, explica Vinícius
de Souza. Depois de apresentada na rádio Inconfidência,
a radionovela passou por outras rádios
e, em seguida, foi para o streaming, onde pode
ser ouvida em https://anchor.fm/grupogalpao.
A despeito de todas as tentativas feitas
pelo Galpão do uso de outras linguagens, as experiências
que misturavam teatro e virtualidade
ainda permanecem, segundo Vinícius Souza, no
meio do caminho, constituindo o que ele define
como “linguagens de emergência”. A conclusão
a que chegou é de que o teatro é uma linguagem
artística que só existe porque se materializa
sem a mediação e o suporte de uma plataforma
tecnológica. “Os experimentos que fizemos reforçam
a ideia de que não é possível fazer teatro na
internet”. Ele deixa claro que não está fazendo
um juízo de valor sobre outras experimentações.
“O virtual não é pior. É apenas diferente”, afirma
Vinícius de Souza, que além de dramaturgo e
ator, é professor do curso de teatro do Palácio
das Artes.
Sobre a volta das apresentações teatrais,
ele está cauteloso quanto a uma recuperação rápida
do setor. Por duas razões: a primeira é porque
nem toda a engrenagem do teatro mineiro sobreviveu
à pandemia, sendo grande o número de
profissionais que, por razões de natureza financeira,
acabaram migando para outras atividades.
A segunda razão é que a pandemia ocorreu em
um momento de fragilização do apoio à cultura
Na música, artistas driblaram
o isolamento investindo nas
gravações a distância, para
posterior mixagem, e nas
apresentações feitas pela
internet. No pós-pandemia, uma
das apostas é nos espetáculos
híbridos, que teriam plateia e
transmissão pela internet.
em todo o país ocorrida durante o atual governo,
por ele definido como o “governo da negação da
arte e dos artistas”. Ainda que a Lei Aldir Blanc e a
13
Em busca da normalidade, dentro do possível Culturas nº 3 março 2022
Felipe Palma
Fernando Badharó
Nobat e Odilon apostam no híbrido para manter e ampliar o público conquistado na pandemia
prefeitura de Belo Horizonte tenham servido para
reduzir essa fragilização, a combinação destes
dois cenários – pandemia e desmonte da cultura
em nível nacional – irão, segundo Vinícius de
Souza, tornar a recuperação um processo mais
lento que o previsto.
Livros
No mercado editorial, o primeiro impacto
da pandemia foi negativo, causado pelo fechamento
temporário das lojas físicas em todo
o país. O resultado foi que, ao final de 2020, o
primeiro ano da pandemia, o faturamento bruto
do setor havia recuado 8,8% em relação a 2019,
segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor
Editorial Brasileiro, realizada pela Nielsen Book,
com coordenação da Câmara Brasileira do Livro
(CBL) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros
(Snel). A pesquisa apontou, também, a redução
em 18,43% do número de exemplares vendidos,
que passou de 434 para 354 milhões de exemplares
de um ano para outro.
A recuperação veio em um segundo momento,
passado o impacto inicial da pandemia e
após os investimentos feitos por livrarias e editoras
no impulsionamento das vendas on-line. De
acordo com a Snel e a CBL, no primeiro semes-
O mercado editorial experimentou queda de vendas nos primeiros
meses da pandemia, mas deu a volta por cima no segundo ano. A
novidade foi o aumento da venda de livros pela internet nas lojas
virtuais das livrarias e das próprias editoras.
14
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
CML/Divulgação
ocorrido em 2020.
Como durante o período de isolamento
social, as pessoas foram obrigadas a ficar em
casa, o livro foi, segundo a presidente da Câmara
Mineira do Livro, uma das opções de entretenimento,
o que acabou ocasionando outra alteração
importante no setor, que foi o incremento
das vendas pela internet, com muitas editoras e
livrarias tendo investido pesado no e-commerce,
mesmo aquelas que não estavam preparadas
para a pandemia.
Com isso, puderam fazer vendas para lugares
onde o livro possivelmente não chegaria.
Gláucia Gonçalves não acredita que o e-commerce
vá acabar com as livrarias físicas, mas a participação
das vendas pela internet tende a crescer,
da mesma forma que, em relação aos formatos,
os mercados de e-books e audiobooks. “O digital
não vai mais sair de nossas vidas”, sentencia a
presidente da Câmara Mineira do Livro.
Remuneração
Gláucia Gonçalves diz que digital estará presente
cada vez mais na vida dos leitores de livros
tre de 2021, a venda de livros apresentou crescimento
de 48,5% em comparação com o primeiro
semestre de 2020. Segundo o Snel, a alta variação
indica dois momentos diferentes do mercado
editorial. Um sob o impacto das medidas de restrição
adotadas em 2020 por causa da pandemia
e outro, mais resiliente e consolidado, que corresponde
ao primeiro semestre de 2021.
De acordo com a presidente da Câmara
Mineira do Livro, Gláucia Gonçalves, o primeiro
impacto, representado pelo fechamento das
livrarias e a impossibilidade de as editoras fazerem
eventos literários e lançamento de novos
títulos com a presença do autor, foi altamente
ruim para o setor, pois restringiu iniciativas que
ela define como muito importantes para formar
novos leitores e permitir que os autores
estreitem o contato com seu público. O lado
positivo foi o aumento da venda de livros
De forma generalizada, a pandemia propiciou,
pelo on-line, uma democratização maior do
acesso à cultura e à arte. Durante o período de
isolamento, especialmente em 2020, um número
incontável de artistas migrou para o digital, realizando
virtualmente apresentações de música e
de teatro, sem contar o mercado de filmes, que
descobriu no streaming o cenário perfeito para
compensar o fechamento das salas de cinema.
O problema é que uma boa parte desse conteúdo
on-line foi disponibilizado a custo zero para o
internauta ou então, como nas plataformas de filmes,
a um custo baixo.
Além disso, uma boa parte do conteúdo
produzido durante este período está armazenado
em plataformas e continuará à disposição das
pessoas mesmo após a pandemia. Dito de outra
forma, em um cenário de normalidade, este con-
15
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
teúdo continuará competindo com o presencial. A
questão que preocupa os produtores de cultura
é: em um cenário de retomada da normalidade
e com as pessoas acostumadas à oferta on-line
de conteúdo sem custo, como garantir, pós-pandemia,
a remuneração dos artistas e de toda a
equipe técnica que fica atrás do palco ou atrás
das câmeras, como no caso do cinema?
Odilon Esteves vê dois caminhos para isso.
O primeiro caberia ao próprio artista trilhar um
novo caminho, que seria o de ele fazer um trabalho
educativo no sentido de sempre procurar mostrar
ao público quantas pessoas trabalharam para
que aquele espetáculo fosse apresentado. No
caso de “Na sala com Clarice”, visível na tela estava
apenas ele. Mas a equipe que garantia que o
espetáculo fosse ao ar pela internet era composta
por 17 outras pessoas. “Cabe a nós explicar
isso para o espectador”, afirmou Odilon Esteves.
Ele conta que sua experiência de apresentação
da peça pela internet com ingresso pago foi bem
aceita pelo público.
O outro caminho que ele enxerga é o do
investimento em políticas públicas de apoio à
cultura, especialmente em projetos culturais que
não são lucrativos, mas são importantes para a
manutenção da diversidade e para a construção
de uma sensibilidade que possa se desenvolver
para infinitos caminhos. “O público precisa ter
consciência de que fazer cultura custa dinheiro”,
acrescenta Nobat.
Esta é a opinião também de Fabiana Batistela,
especialista na produção de eventos culturais.
O mais conhecido deles é a Semana Internacional
de Música de São Paulo (SIM São Paulo)
evento que, há nove anos, reúne profissionais do
mundo da música – artistas, produtores, técnicos
e representantes da indústria de equipamentos
e instrumentos, entre outros segmentos. Em dezembro,
ela foi uma das participantes do V Fórum
Halak, da Mundo Giras, é o produtor do festival
Mucho, que em 2020 migrou para o on-line
Políticas Culturais em Debate, uma iniciativa do
Sesc-MG, da Embaixada da França no Brasil e do
Governo de Minas realizada no início de novembro,
em Belo Horizonte.
Para Fabiana, a cobrança pelo acesso a
eventos culturais tem dois lados. Um é o do acesso
gratuito para pessoas que não podem pagar.
O outro é o do hábito de não se valorizar o conteúdo
artístico. Fabiana afirma que nos eventos
que produz, especialmente os internacionais, há
amigos que a procuram querendo o nome na lista,
ou seja, desejando entrar sem pagar.
“Fazem isso como se não custasse nada.
Mas vai comer no restaurante do amigo de graça?
Ele não vai deixar. Vai dar, no máximo um desconto
de 10%. Vai dizer que tem custo, estrutura,
equipe e material. Mas, e no show? Não tem
isso também?”, indaga Fabiana, que é também
fundadora da Inker Agência Cultural, empresa es-
SIM São Paulo/divulgação
16
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
O grande número de
espetáculos culturais gratuitos
oferecidos durante a pandemia
reaqueceu o debate sobre
quem irá remunerar o setor
no pós-pandemia. Produtores
entendem que o público precisa
ser informado melhor sobre
isso. Mas com a possibilidade
de haver exceções, como
os eventos ligados à cultura
popular, que deveriam ser
gratuitos.
pecializada em assessoria de comunicação para
artistas e eventos de música.
Para Matthieu Thibaudault, adido cultural
no Consulado Geral da França em São Paulo, e
também participante do evento do Sesc-MG, a
pandemia representou a quebra de inúmeros paradigmas.
Um deles é o de que as pessoas não
iriam pagar por eventos on-line no início da pandemia.
Hoje, um ano e meio depois, ele faz um
balanço do que deu certo e do que não deu certo
nesse período. Deu certo, segundo ele, a participação
passiva. Não deu certo querer que os participantes
de eventos on-line sejam participantes
ativos. Leia artigo de Matthieu Thibaudault às páginas
19 a 24.
Para isso, segundo Matthieu, é preciso
que os eventos de comercialização de produtos
culturais, que antes eram realizados apenas presencialmente,
criem plataformas para que passem
a permanecer o ano todo no ar. Nessas plataformas,
o possível comprador poderá assistir a
uma série e fazer contato com o produtor daquele
conteúdo, explica Matthieu Thibaudaut, que tem
vasta experiência em feiras internacionais de negócios
audiovisuais e, no consulado da França, é
responsável pelo setor de audiovisual, realidade
aumentada, games e mídias.
Para o produtor cultural Hernan Halak, da
produtora paulista Mundo Giras, é preciso fazer uma
diferenciação em relação à cobrança de entrada em
eventos culturais. Para ele, nos festivais de cultura
popular, nem sempre isso será possível. Além disso,
nestes eventos costuma haver algo mais importante
que o ingresso, o que leva as pessoas a gastarem
mais, como por exemplo, em uma feira de artesanato,
que é um tipo de cultura.
Por outro lado, há casos em que as pessoas
pagam pelo acesso sem maiores queixas. Ele citou
um grupo argentino de rock que vendeu 95 mil
ingressos em três horas e meia para um show que
seria realizado on-line. O problema foi que, com o
grande número de acessos simultâneos, a plataforma
travou e o show não pôde ser transmitido pela
plataforma prevista. Com isso, a opção foi transferir
a transmissão para o Youtube, só que, neste caso,
sem custo para os internautas. Segundo ele, ninguém
que comprou o ingresso reclamou.
Segundo Herman Halak, isso aconteceu
porque o grupo já tem a tradição de, nos shows
presenciais, quando há excesso de público, abrir
os portões após a segunda música. “E ninguém
fala nada. Todos se abraçam e ninguém reclama.
A banda, quando faz um show, é uma coisa meio
religiosa”, explicou Hernan Halak, que é produtor
do Mucho, evento on-line de música latino-americana
que teve 1.500 pessoas ao vivo em um canal
que tem 4.500 inscritos. Para ele, trata-se de
uma audiência muito boa.
Para o pós-pandemia, o subsecretário de
Estado da Cultura de Minas, Igor Arci, considera
fundamental pensar políticas de Estado para a
formação de novos públicos. Nesse sentido, ele
entende que o modelo presencial, em comparação
com o híbrido ou o virtual, é o que gera mais
17
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
retorno, tanto no que se refere à agregação de novos
públicos, quanto de movimentação da cadeia
produtiva da cultura.
“O presencial impacta desde que a pessoa
sai de casa, pois passa pelo carro, pela
gasolina, pelo aplicativo de transporte, pelo pipoqueiro
e pelo restaurante em que ela vai depois
do evento”, afirma Igor Arci, que, entretanto,
não desmerece o valor do espetáculo virtual,
cujo principal mérito, a seu ver, é o de permitir
o acesso à cultura de qualquer pessoa em qualquer
ponto do planeta onde ela disponha de sinal
de internet.
Porém, do ponto de vista da economia,
o presencial é, no seu entendimento, o modelo
que deveria ser incentivado. “Não tenho dúvidas
de que o presencial gera mais fruição, uma
melhor experiência, move mais dinheiro, que é
importante, não só para o Estado, mas para o
PIB do país. Todos os modelos têm o seu valor;
porém, o presencial causa mais impacto
na vida das pessoas como produto cultural”,
afirma o subsecretário de Cultura de Minas.
Segundo ele, o impacto econômico do modelo
virtual está mais circunscrito aos profissionais
do audiovisual.
Como será o mundo da cultura no pós
-pandemia é um enigma. Da mesma forma que
a cultura teve que abraçar o on-line, até mesmo
por uma questão de sobrevivência, no pós-pandemia,
os limites entre o presencial e o virtual
tornaram-se tênues. E muitas vezes se misturam,
como nos eventos híbridos. De certo, o que
se pode afirmar é que hoje ninguém tem a chave
de como será essa transição.
Verônica Manevy/Imprensa MG
Produtores defendem investimento público em cultura e entendem que cobrança de ingressos deve levar em
conta as especificidades do evento, o que nos eventos de cultura popular, nem sempre isso será possível
18
Culturas nº 3 março 2022
O audiovisual
em novos
cenários
Reprodução Linkedin
Artigo: Matthieu Thibaudault
Matthieu
Thibaudault afirma
que, no mundo
dos negócios,
ninguém estava
preparado para
um evento como a
Covid-19
No início de 2020, eu era brand manager do MIPTV, a segunda maior feira
de negócios do mundo no setor audiovisual. Esse evento, que acontece todos
os anos em Cannes, desde 1964, juntava mais de dez mil participantes de mais
de 90 países. No dia 2 de março de 2020, cerca de um mês antes do início do
MIPTV, eu cheguei cedo ao trabalho. Enquanto ainda estava colocando meu
casaco de inverno sobre a mesa, surgiu o diretor da minha área para me dizer
que eu poderia suspender todas as comunicações, que o evento físico havia sido
cancelado e que nós iríamos seguir com uma versão 100% on-line.
O problema é que nenhum evento mundial dessa dimensão havia passado
por algo similar àquela época. Nós tivemos um mês para improvisar
uma solução e tentar satisfazer o conjunto de expectativas que precisavam
ser cumpridas por uma feira empresarial: gerar oportunidade de negócios,
providenciar visibilidade para clientes e oferecer informações de mercado.
A experiência revelou-se sofrida, pois nós não estávamos preparados para
algo do tipo. Na sequência, descobrimos que ninguém no mundo das feiras
de negócios estava preparado.
Hoje eu sou Adido Cultural e Audiovisual da Embaixada da França no Brasil,
ou seja, não sou mais organizador, mas somente participante de várias feiras de
negócios. Neste artigo, compartilharei com vocês o ponto de vista de um organizador
de feiras de negócios no setor específico do audiovisual. Numa primeira parte,
abordarei conceitos fundamentais do marketing que se aplicam aos eventos B2B,
onde são feitas vendas de empresas para empresas.
Em seguida, apresentarei alguns conceitos de design de evento indispensáveis
ao posicionamento estratégico de uma feira de negócios audiovisuais no
cenário mundial. Para terminar, eu me arriscarei a enunciar tendências de mercado
diante da exigência de hibridação (on-line e presenciais) enquanto a pandemia
segue em curso neste início de 2022.
19
O audiovisual em novos cenários
Culturas nº 3 março 2022
1. Algumas noções de marketing
dos eventos B2B
Os sete comportamentos
As feiras de negócios são indispensáveis na
cadeia de cada um dos setores de atividade econômica.
Existem feiras de negócios para a venda
de armas, material escolar, segurança nos aeroportos,
turismo nos países árabes, materiais metálicos
para construção, arte contemporânea, tinta
O que fideliza um participante
é o ambiente agradável o
suficiente para ele passar
bons momentos com a sua
rede profissional e, assim,
estabelecer boas relações
comerciais. Isso explica por
que a cidade de Cannes, por
exemplo, recebe tantas feiras de
negócios.
para carros, produtos farmacêuticos, piscinas, vinhos,
etc. Isso significa que existem necessidades
comuns a cada setor econômico que as feiras de
negócios tentam satisfazer.
O marketing das feiras de negócios identifica
sete comportamentos básicos dos participantes,
qualquer que seja o setor econômico: reconnecting,
targeting, building, socializing, exploring, fishing e
learning. Nas pesquisas de marketing declarativas
pós-evento B2B, os dois comportamentos predominantes
são o reconnecting e o targeting, ou seja,
manter sua rede comercial e encontrar novos parceiros
de negócios. Adiante, descobriremos que
esse resultado não se aplica aos eventos on-line.
Aquisição versus Fidelização
Na prática cotidiana do marketing das feiras
de negócios, uma parte importante do esforço do
marketing digital foca na aquisição de novos clientes.
O marketing precisa fazer uso de várias mensagens
nos seus canais de comunicação para gerir
a sensação do F.O.M.O. (Fear of Missing Out),
que seria o medo de perder. Destacar logomarcas
de grandes empresas do mercado e nomes de
grandes executivos internacionais despertam uma
necessidade psicológica de pertencimento a um
clube privado de executivos do audiovisual. Todas
as listas de argumentos comerciais insinuando um
potencial R.O.I. (Return on Investment, ou retorno
de investimento, em português) ligado à participação
em uma feira de negócios são somente uma
racionalização acerca de uma decisão cuja base
verdadeira é irracional.
Um executivo que já esteve em um evento
e apreciou a sua participação não demandará
muito esforço para ser convencido a participar novamente.
Ele sabe qual é o real objetivo de sua
participação. O que fideliza um participante é o ambiente
agradável o suficiente para ele passar bons
momentos com a sua rede profissional e, assim,
estabelecer boas relações comerciais. Isso explica
por que a cidade de Cannes, por exemplo, recebe
tantas feiras de negócios.
Uma cidade charmosa à beira-mar, como
Cannes, é pequena o suficiente para se fazer
tudo a pé e garantir oportunidades de networking
o tempo todo, na própria feira, bem como nos entornos,
nas esquinas, nos restaurantes, nos bares,
nos hotéis e também nos clubes. O que importa
realmente não é o R.O.I., mas o R.O.O. (Return
on Objectives), que foge da exigência de venda ou
de compra e busca garantir mais notoriedade para
20
Culturas nº 3 março 2022
Mifa/Divulgação
O MIPCOM, realizado em Cannes, é o principal evento do audiovisual de animação no mundo
sua marca, mais impacto da sua marca ou também
gerar mais intenções de venda.
2. O design de eventos de mercado
no setor audiovisual
Os executivos audiovisuais precisam escolher
entre dezenas de feiras de negócios audiovisuais
acontecendo o ano todo no mundo inteiro.
Algumas são generalistas (exemplo: Mipcom),
outras trabalham apenas com um gênero (exemplo:
Mifa, em Annecy), outras são regionalizadas,
como a ATF, em Singapura. Porém, todas se encaixam
em modelos de negócios distintos:
Feiras de negócios
O evento Mipcom, na cidade de Cannes,
conta com um modelo de negócios baseado na
venda de oportunidades de visibilidade para os
produtores e distribuidores de programas audiovisuais,
que precisam se promover antes, durante e
depois do evento (cabine, banner digital, banner físico,
propaganda nas revistas do evento, ativações
e sessões de screenings especiais). De modo apenas
secundário, a venda de credenciais para visitantes
é também uma fonte de recursos.
Mídia especializada
Content London para as séries de ficção;
Kidscreen para a animação; ou Realscreen Summit
para o documentário e os factuals. Esses três
eventos são mídias especializadas antes de serem
eventos. Organicamente, uma mídia tem uma vantagem
competitiva em termos de marketing e também
em termos comerciais. Uma mídia cria uma
conexão com seus clientes o ano todo, de forma
assertiva, íntima e afetiva. Ela conhece bem a sua
audiência e sabe atendê-la editorialmente, seja
elaborando artigos ou produzindo uma oferta editorial
em um evento. O esforço de marketing digital
é facilitado por contar com uma base ativa e qualificada
de assinantes no momento de comunicar
sobre a venda das credenciais de um evento.
Uma outra vantagem é a possibilidade de
vincular comercialmente a mídia ao evento. Por
exemplo, um distribuidor que aceitaria investir muito
na visibilidade no evento poderia desfrutar de
benefícios como banners, artigos, posts ou stories
ao longo do ano, fora do período do evento. Tudo
isso no pacote da mesma venda.
Ser um festival ou uma mostra
O Festival de Cannes conta todos os anos
com a organização em paralelo da maior feira de
cinema do mundo, o Marché International du Film.
O Festival Series Mania e o Festival du Film d’Animation
d’Annecy também adotaram esse modelo
com sucesso. Antes de qualquer consideração, é
preciso lembrar que um festival é uma festa. Além
dos vendedores e compradores, as equipes artísti-
21
Em busca da normalidade, dentro do possível
cas dos filmes ou programas audiovisuais selecionados
presenciam o evento. Isso gera uma dimensão
glamourosa e um F.O.M.O..
Em virtude disso, esse modelo de negócios
tem como vantagem competitiva o potencial de
promoção das obras selecionadas para os profissionais
e para o público. Uma ressonância que somente
os festivais conseguem proporcionar devido
a uma presença da imprensa que vai muito além
da imprensa especializada no setor audiovisual.
O valor dos conteúdos e serviços para
os participantes
Quando se trata de concretizar a proposta
de valor de um evento e começar a produção, as
equipes pensam em quais serviços on-line e presenciais
vão ser disponibilizados para os clientes e
quais conteúdos vão ser produzidos antes, durante
e depois do evento.
Os serviços presenciais garantem a qualidade
da infraestrutura do evento (cabine, palcos,
recepção, segurança, limpeza, portaria, etc.). Os
serviços on-line têm um propósito central diferente:
ajudar os participantes a preparar devidamente
a participação deles no evento. Entre os serviços
on-line mais comuns propostos nas feiras de negócios
dos últimos anos, se destacam:
▪ Um diretório de contatos;
▪ Um catálogo de conteúdos e de projetos de
conteúdo;
▪ Um software de matchmaking para sugerir reuniões
e projetos de conteúdos para os participantes
que se encaixem com suas preferências;
▪ Uma solução de localização, para ajudar o exi-
Culturas nº 3 março 2022
bidor a reservar seu espaço;
▪ Um serviço de hospedagem e transporte que
tenha convênio com o evento.
Os conteúdos presenciais e on-line têm geralmente
os propósitos comuns de informar, inspirar,
valorizar e conectar os participantes.
Informar: sessões de inteligência de mercado,
sessões de screenings de conteúdos recentes,
sessões de apresentação de estratégia editorial
dos grupos audiovisuais, revistas da própria
feira com artigos sobre tendências, os white papers
A indústria das feiras de negócios é baseada no aperto
de mãos. Inútil lembrar como seus trabalhadores
foram prejudicados pela pandemia.
sobre indústria.
Inspirar: as sessões keynote de personalidades
importantes do setor, os programas
de mentoria, as oficinas, sessões especiais para
apresentar iniciativas sustentáveis ou promovendo
a diversidade.
Valorizar: cerimônia de prêmios durante
o evento, entrevistas na revista do evento,
sessões especiais de screenings, catálogos de
conteúdos recentes, catálogos de novos participantes
específicos.
Conectar: sessões de matchmaking, sessões
de pitching de projetos, café da manhã ou
almoços especiais de encontros de coprodução,
coquetéis, festas temáticas.
3. Como pensar as feiras de negócios
no setor audiovisual em 2022
A indústria das feiras de negócios é baseada
no aperto de mãos. Inútil lembrar como seus
trabalhadores foram prejudicados desde o início da
pandemia de Covid-19. Durante meses, a indústria
22
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
se organizou para oferecer, na medida do possível,
a mesma promessa dos eventos presenciais,
mas integralmente on-line. Depois de dois anos
de pandemia, as feiras de negócios do audiovisual
abraçaram novas práticas híbridas (on-line e
presenciais) e acordaram um novo equilíbrio entre
conteúdos e serviços.
Segundo a UFI – The Global Association of
the Exhibition Industry –, desde o início da pandemia,
houve investimentos massivos dos produtores
de feiras nos serviços de organização de eventos
on-line, nos serviços de matchmaking e também
nos serviços de recuperação e de análise de dados.
Isso permitiu um pulo significativo na qualidade
das ofertas on-line de conteúdos e serviços
durante a pandemia.
Os produtores das feiras de negócios entenderam
que solicitar uma proatividade dos participantes
no contexto de um evento on-line, com
tempo limitado, passando por interfaces pouco
flexíveis, não faz mais sentido. Particularmente
quando se trata de reuniões puramente comerciais.
A emoção do face a face para manter ou
expandir sua rede de contatos profissionais não
pode ser substituída de forma satisfatória por serviços
on-line.
Nos meses de pandemia, do tudo on-line,
os profissionais do setor audiovisual promoveram
conteúdos para serem assistidos sem obrigação
de interação, como conteúdos de inteligência de
mercado ou também conteúdos de capacitação.
O desafio atual é duplo para as feiras de
negócios. Elas precisam entender qual design
de oferta híbrida de serviços e de conteúdos tem
mais valores para os profissionais do setor audiovisual,
levando em consideração os dois anos
durante os quais:
▪ O mercado dos conteúdos foi extremamente
dinâmico, mesmo com a ausência de eventos
de mercado presenciais;
▪ A força das plataformas de streaming aumentou
e o movimento no mercado audiovisual
global com numerosas fusões e aquisições de
grandes grupos continuou.
Dois componentes, antigamente centrais,
das feiras de negócios perderam valor no cenário
dos eventos presenciais de hoje. Primeiro: os painéis
e as palestras de profissionais. Segundo: os
Mipcom/Reprodução
O Mipcom lançou uma plataforma on-line com diretório de contatos, screenings e conteúdo de inteligência
23
Em busca da normalidade, dentro do possível
Culturas nº 3 março 2022
screenings de programas audiovisuais. De repente,
ambos podem ser desfrutados on-line e sem
depender do timing de tal ou tal feira de negócios.
Concretizando essa tendência, os maiores mercados
audiovisuais do mundo (Mipcom e MipTV)
lançaram esse ano a OneMIP, uma plataforma
permanente com diretório de contatos, screenings
e conteúdo de inteligência de mercado. O mercado
asiático, ATF, resolveu promover uma edição com
duração de seis meses.
Atualmente, para entender qual conteúdo
tem mais valor na versão
presencial das feiras de
negócios audiovisuais,
faz-se necessário considerar
a dimensão competitiva
existente a nível
mundial para garantir as
melhores ideias de programas
audiovisuais.
A maioria dos grupos
audiovisuais ocidentais
operou aquisições de
produtoras e de distribuidoras
com grandes catálogos
nos últimos tempos. Isto se deu com o objetivo
de resistir, com poder de barganha, diante das
grandes plataformas americanas de streaming.
A fim de combinar a exigência dos profissionais
do audiovisual de garantir boas ideias de programas
audiovisuais o mais cedo possível e, por
outro lado, oferecer uma programação que justifique
uma participação presencial, alguns eventos,
como por exemplo o Series Mania, enfatizam uma
oferta de sessões de pitchings de autores, roteiristas,
produtores no palco. Ou seja, novos talentos e
novas histórias. Assim, os participantes do Series
Mania compram o valor da curadoria do evento
que justifica uma participação presencial. Uma tal
programação permite atrair os responsáveis pelas
aquisições de séries do mundo inteiro. E quando
24
Eventos on-line não substituem a força do contato
face a face, como na Marché International du Film
os compradores participam, os vendedores também
querem participar.
Para concluir, podemos observar que as
temporalidades mudaram no mundo das feiras de
negócios audiovisuais. A digitalização das programações
dos eventos e a digitalização das relações
comerciais no setor audiovisual induziram novas
práticas de uso dos serviços e do consumo dos
conteúdos de formas não lineares. Para se conformar
com esses novos hábitos, o marketing e
o design de eventos feitos
pelas produtoras de
feiras de negócios já estão
evoluindo.
Podemos antecipar,
infelizmente, uma
redução provável do número
de feiras generalistas
de negócios no setor
audiovisual nos próximos
anos. A competição entre
os eventos é mundial.
Com os numerosos
movimentos de fusões e
aquisições, torna-se reduzido o número de grandes
clientes. Esses mesmos clientes não precisam
estar presentes em um grande volume de eventos
presenciais, quando boas práticas de marketing digital
B2B podem garantir muita visibilidade.
Contando com as ferramentas de análise
de dados e de marketing digital, podemos imaginar
uma multiplicação das feiras de negócios focadas
em nichos de mercado, com pequena audiência,
mas com alto valor para os participantes.
Marché International du Film/Divulgação
Este artigo reflete a opinião de
seu autor, mas não, necessariamente,
a opinião do Sesc em Minas.
Matthieu Thibaudault é Adido Cultural e
Audiovisual da Embaixada da França no Brasil
Culturas nº 3 março 2022
Renca Produções
Futuros
possíveis ou
impossíveis
Artigo: Aline Vila Real
O V Fórum Políticas Culturais em Debate, realizado pelo
Sesc Minas, em parceria com a Embaixada da França no Brasil,
propôs uma discussão acerca da crise do setor cultural desencadeada
pela pandemia da Covid-19 e seus impactos econômicos
no país. Fui convidada a participar de uma roda de conversa com
o tema Reflexões pós-pandemia: Futuros possíveis com a cultura,
no dia 12 de novembro de 2021, mediando o debate com
participação da cineasta Sabrina Fidalgo, o adido de Cooperação
e de Ação cultural do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro,
Alain Arnaudet, e o economista Leandro Valiati.
Apresento aqui, de forma sintética, algumas impressões
sobre o debate que envolve a crise cultural brasileira, as particularidades
da pandemia no nosso país e a profusão de indagações
sobre o futuro.
Ao longo do período em que transcorre a pandemia, ob-
Aline Vila Real
considera fundamental
a participação do
público na retomada do
setor cultural no póspandemia
25
Futuros possíveis ou impossíveis
Culturas nº 3 março 2022
servamos com ainda mais nitidez os efeitos do
desmonte das políticas públicas de cultura, desde
a extinção do Ministério da Cultura, o esvaziamento
da Fundação Cultural Palmares, da Funarte e
de outros órgãos responsáveis por manter projetos
fundamentais para a criação, fruição e pesquisa na
área cultural. Esse desabamento das políticas culturais
anda em linha com a direta responsabilidade
do Governo Federal pelas mais de 600 mil mortes
no Brasil, o desemprego, a fome e a perda de moradia.
Alargou-se o abismo social, evidenciando as
consequências de anos de construção de um país
ancorada no racismo como sistema fundamental
para o desenvolvimento capitalista.
A ausência de diretrizes que pudessem reconhecer
os valores culturais brasileiros e distribuir,
territorialmente, recursos para a manutenção de
uma identidade cultural diversa, forte e inventiva resultou
numa série de descontinuidades; na desarticulação
por parte de estados e municípios, e no desamparo
dos artistas e produtores culturais quanto
às condições de exercício de suas profissões.
No debate realizado no dia 12 de novembro
Marcello Casal Júnior/Agência Brasil
Na pandemia, trabalhadores enfrentaram, além do vírus, a precariedade de alguns serviços, como o de transportes
foi discutido com intensidade o comportamento do
público no processo de retomada das atividades
culturais presenciais; a relevância do setor cultural
e do capital intelectual criativo para o fortalecimento
da economia do país; e a urgência de retomada de
investimentos e fomento para a cultura, voltando a
se impulsionar as produções nacionais também no
âmbito do mercado internacional.
A partir das considerações dos participantes,
constata-se uma nítida importância da participação
do público no processo de retomada das
atividades econômicas culturais. Desse modo, é
fundamental repensar as cidades, seus fluxos e
26
Futuros possíveis ou impossíveis
A pandemia, com seus teatros vazios,
acelerou o processo de desmanche das
políticas públicas federais de cultura
Culturas nº 3 março 2022
Governo do Distrito Federal/Secec/Divulgação
acessos. A Covid-19 destacou questões que sempre
estiveram presentes na dinâmica das cidades
– as categorizações dos sujeitos e suas liberdades
de circulação pelos espaços urbanos. No dia a dia
frenético da pólis observamos como os sujeitos de
diferentes marcadores sociais se movimentam.
O Brasil viveu um isolamento social parcial,
visto que trabalhadores diversos tiveram que enfrentar
a precariedade ainda mais aguda dos serviços
de transporte público e a insegurança em
relação ao vírus. As cenas dos ônibus e metrôs lotados
de trabalhadores em pleno auge pandêmico
revelaram que o planejamento do transporte nas
grandes cidades é pensado apenas para se adequar
às necessidades de “mão de obra” das classes
dominantes.
É uma distorção absurda pensar que nem a
pandemia foi capaz de cessar esse fluxo, enquanto
esses mesmos trabalhadores, moradores de
regiões periféricas, se encontram, na maior parte
das vezes, apartados da programação cultural e
enfrentando dificuldades de acesso aos equipamentos
culturais e espaços de formação.
Em meio a esse cenário, a construção de
futuros possíveis só poderá ser elaborada a partir
da imediata interrupção da ordem de espoliação
dos trabalhadores, entre os quais se incluem os artistas,
para quem a cultura deveria estar no centro
do projeto de desenvolvimento econômico e social.
Só construiremos futuros – possíveis ou impossíveis
– com o redesenho do modelo produtivo
do país. O projeto econômico hoje em vigor traça
uma rota de colapso dos recursos naturais, em favor
da acumulação irracional de riquezas por parte
de uma minoria improdutiva e sustentada por um
sistema financeiro que remunera os seus próprios
controladores.
A valorização da cultura brasileira deve
ser o ponto de partida para o rompimento com a
lógica colonialista e racista que mina a possibilidade
da revelação e socialização da grandeza
do nosso país.
Este artigo reflete a opinião de
sua autora, mas não, necessariamente,
a opinião do Sesc em Minas.
Aline Vila Real é gestora, curadora e
produtora artística. Integrou, por dez anos, o
grupo teatral Espanca!, como coordenadora de
produção e diretora do espetáculo PassAarão
(2017). De 2017 a 2021, realizou curadoria de
alguns festivais de arte. Atualmente, é diretora
de Promoção das Artes na Fundação Municipal
de Cultura de Belo Horizonte.
27
Culturas nº 3 março 2022
“A gente não quer
só comida;
a gente quer
comida,
diversão e arte.”
Por
um
lugar
ao sol
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Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Tomáz Silva/Agência Brasil
De Norte a Sul do
país, uma imensa legião
de brasileiros trava uma
batalha diária para mostrar
que os Titãs estavam certos
quando, ainda nos anos de
1980, compuseram os versos
acima. São populações
pobres, negras e indígenas
que moram, principalmente,
nas periferias das grandes
cidades e lutam por um
espaço onde possam mostrar
sua arte. Conheça um pouco
dessas histórias.
29
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Novecentos e sessenta quilômetros separam,
em linha reta, as capitais de Minas, Belo
Horizonte; e Bahia, Salvador. Porém, ainda que
distantes, as duas cidades abrigam importantes
experiências culturais que as tornam muito próximas
uma da outra. No Aglomerado da Serra, região
Sul da capital mineira, o Baile Funk da Serra
deu visibilidade a DJs e MCs que encontraram na
música um caminho que os retirou do anonimato.
No Beiru, um bairro pobre da região central
de Salvador, habitado, principalmente, por famílias
negras, o artista plástico Anderson AC construiu a
A Pinacoteca do Beiru, o
Baile Funk da Serra e o
Coletivo Nega são exemplos
de projetos oriundos de
populações marginalizadas
que estão cumprindo a
trajetória de profissionalização
que lhes dá maior visibilidade.
Pinacoteca do Beiru, um espaço onde ele produz
seus quadros que, quase sempre, retratam moradores
locais. Na Pinacoteca, ele também oferece
cursos e realiza exposições de arte. De Florianópolis,
no Sul do País, vem a experiência do Coletivo
Nega (Negras Experimentações Grupo de
Arte), um grupo de teatro negro que também percorreu
com sucesso o caminho para deixar sua
marca na cultura. Leia artigo do Coletivo Nega às
páginas 52 a 59.
À frente do Baile Funk da Serra está Cristiane
Pereira, a Kika, uma moradora do Aglomerado
da Serra, um conjunto de oito vilas encravadas na
valorizada região Sul da capital mineira. Seu trabalho
com a cultura começou em 2006, quando o
“som do ponto” começou a chamar sua atenção.
O som era uma Kombi com a qual o idealizador da
Rádio Favela, Mizael Avelino, levava um pouco de
diversão para o morro.
Na época, Kika tinha 12 anos e começou a
aprender os segredos da produção cultural com Mizael.
Com o fim do “som do ponto”, ela resolveu dar
os primeiros passos de sua carreira solo, organizando
alguns pequenos eventos em parceria com o DJ
Marcelo Matos. “Às vezes, era no beco da casa em
que a gente morava. A gente comprava a carne, fazia
churrasco, todo mundo comia e ia bater lata. Foi
assim que começamos a realizar eventos”, explica
Kika, cuja experiência, bem como as de Anderson
AC e do Coletivo Nega foram apresentadas no V
Fórum Políticas Culturais em Debate, uma iniciativa
do Sesc-MG, da Embaixada da França no Brasil e
do Governo de Minas realizada no início de novembro,
em Belo Horizonte.
A história do baiano Anderson com a arte
é o resultado de uma sucessão de trágicos acontecimentos.
O primeiro deles ocorreu em 2003,
quando ele perdeu a mãe vitimada por um câncer.
No ano seguinte, o pai tem um enfarto e morre.
Em 2007, seu irmão mais velho, uma referência
positiva para ele, tem a casa invadida durante
uma reunião com amigos e é assassinado. Para
contar a história da família, restou apenas ele
próprio, que acabou herdando todos os álbuns
fotográficos e documentos dos pais e irmãos,
tornando-se, assim, uma espécie de guardião da
memória da família.
Para não deixar que essa memória se
apagasse, ele começou a produzir obras de arte,
especialmente pinturas, com as quais procurava
relacionar sua memória ancestral com ambientes
abandonados da cidade de Salvador. Para ele, relacionar
os documentos familiares com estes lugares
tinha um sentido muito particular – o de pre-
30
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
servar objetos que guardavam histórias e estavam
presentes em sua memória.
A partir de 2007, Anderson começa a apresentar
seus trabalhos em mostras coletivas de
arte, como a Arte Lusófona Contemporânea, no
Anderson AC
Thuga
Matheus Andrade
Anderson, Kika e Thuanny coordenam projetos que dão visibilidade a populações marginalizadas
Memorial da América Latina, em São Paulo; Afetos
Roubados no Tempo, no Centro Cultural da
Caixa, em Salvador; e Muros, coletiva que reuniu
onze grafiteiros baianos na Galeria do Ferrão,
no Pelourinho.
Em 2010, o talento de Anderson ganhou reconhecimento
internacional, que o levou a dois lugares
relacionados às suas origens. O primeiro foi
Luanda, em Angola, onde realizou residência artística.
O segundo foi a cidade de Évora, em Portugal,
onde realizou sua primeira exposição individual.
A Pinacoteca do Beiru começou a ser montada
em 2015, quando Anderson foi convidado
para uma exposição em Estrasburgo, no Nordeste
da França, e precisava de um local onde produzir
as peças que seriam apresentadas lá. Foi quando
comprou, por R$ 10 mil, um prédio de três andares
com telhado de zinco que havia sido dado como
pagamento de honorários advocatícios ao tio de
Anderson, Lauro da Silva Alves, que havia se tornado
uma lenda no bairro por defender, às vezes
até de graça, moradores encrencados com a polícia
e a justiça. No imóvel, Anderson instalou seu
ateliê e reservou espaço para exposições e a realização
de oficinas para os moradores do bairro.
Para ele, a Pinacoteca se insere na luta
pela ressignificação dos territórios de periferia e
contra o apagamento histórico do Beiru, que, segundo
ele, só é lembrado pelas desgraças e pela
intolerância religiosa. Ao mesmo tempo, é a materialização
do compromisso de mostrar que há
outras possibilidades e que, a partir da cultura e
da arte, e com a autoestima elevada, acreditar que
você pode chegar lá.
Funk
Enquanto Anderson cruzava o Atlântico
para mostrar sua arte e depois fazia o caminho
inverso, retornando ao Beiru, Kika também expandia
sua trajetória no mundo da cultura, porém, sem
cruzar as fronteiras de seu território natal, que é
delimitado, de um lado pela Serra do Curral e, de
31
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
outro, por uma sucessão de bairros de famílias de
classes média e média alta da Capital.
Foi mesmo no Aglomerado da Serra, onde
nasceu, que Kika fez fama como produtora cultural
de bailes que reuniam multidões para dançar funk.
Em média, por evento, eram cerca de seis mil pessoas.
Com isso, a partir de 2006, a prefeitura de Belo
Horizonte passou a exigir alvarás para a realização
dos eventos, o que obrigou Kika a cumprir um ritual
burocrático com o qual não estava habituada.
Em 2017, a morte de um adolescente de
14 anos em um dos bailes chamou a atenção
da polícia, que acabou proibindo os eventos. A
proibição levou Kika a protestar, na Praça da Estação,
no centro de BH, e, ao mesmo tempo, iniciar
gestões junto à prefeitura para que os eventos
pudessem voltar a ser realizados. Depois de
muita negociação, ela conseguiu a liberação,
Observatório das Favelas, do
Rio de Janeiro, defende que
populações marginalizadas
se municiem de informações
estratégicas para que se
posicionem e façam valer seus
direitos na produção cultural.
mas esbarrou na negativa da PM, que vetava
alegando razões de segurança. Depois de certo
tempo e de muita conversa, a PM acabou também
cedendo e liberando os bailes, desde que
fossem realizados com o acompanhamento da
polícia e com hora tanto para começar quanto
para terminar.
O estreitamento dos laços com a PM, segundo
Kika, foi bom para que eles vissem como
era organizado o evento. “Eles foram tomando
confiança de como eram realizadas as festas”,
destaca Kika. Com a pandemia, os bailes foram
interrompidos e, até o final do ano passado, ainda
estavam suspensos.
Porém, independentemente de todos os
imprevistos, o Baile Funk da Serra já tem, a seu
ver, um saldo positivo. O primeiro que ela destaca
é a geração de renda para diversas famílias
do aglomerado, que sempre puderam colocar
suas barraquinhas para a venda de alimentos
e bebidas. Com as barraquinhas, estas famílias
ajudavam a pagar os custos de produção do
baile e, ao mesmo tempo, conseguiam ter uma
renda extra.
Kika afirma que já perdeu a conta do número
de pessoas que a procuravam para dizer que
haviam conseguido reformar o barraco, construir
um novo ou comprar uma televisão com a renda
vinda dos bailes. “As pessoas falavam ‘olha a geladeira
que eu comprei com o dinheiro do baile!’
Não tinha nada melhor do que ouvir isso”, afirma
Kika, que aponta, como segundo ganho propiciado
pelos bailes, a formação de uma geração de
DJs e Mcs no Aglomerado da Serra.
“Você não tem noção da alegria que é ouvir
os depoimentos destes artistas, meninos novos
que tinham todos a ideia de virarem jogador de
futebol. A gente jogava eles no palco sem formação
nenhuma e a galera cantava a música deles.
Foi assim que eles se descobriram.” Para ela, sua
atuação enquanto produtora cultural tem, de certa
forma, o sentido da resistência, tal como, a cerca
de 900 quilômetros dali, em Salvador, pensa, e coloca
em prática, Anderson AC. “O Baile Funk da
Serra é uma cultura nossa. Não é uma coisa fácil
de ser realizada porque nada que vem da periferia
é fácil, o que nos faz sempre perguntar para que
viemos, por que viemos e o que queremos fazer,
ressalta Kika.
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Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Teatro
Quem também conhece muito bem o percurso
da profissionalização é o Coletivo Nega,
um grupo de teatro negro amador criado há dez
anos na Universidade do Estado de Santa Catarina
(Udesc). Com o correr do tempo, a área de
atuação do grupo se ampliou e hoje o Nega trabalha
com projetos nas áreas de teatro, música e
educação que tenham como foco a promoção da
Pinacoteca do Beiru/Divulgação
A Pinacoteca do Beiru oferece oficinas de arte para crianças de Salvador além do espaço para exposições
igualdade racial e de gênero para populações negras,
periféricas, quilombolas, LBTQI+ e mulheres
encarceradas. “Passamos por diversos momentos,
a começar pela não identificação de nosso
trabalho como arte, como algo potente. Assim, de
outras maneiras, a gente foi construindo de forma
independente esse olhar diferente do encontro,
da identificação”, afirma Thuanny Paes, atriz e
gestora do coletivo Nega.
Para ela, a estratégia do grupo passa por
duas vertentes. A primeira é a de buscar o público
esteja ele onde estiver. “Nem todo mundo
quer ouvir, nem todo mundo vai se interessar por
pagar um ingresso para nos assistir. Mas sempre
vai existir um público que vai querer que estas
vozes estejam no palco”, afirma Thuanny. Para
ela, as relações humanas são muito cheias de
brechas pelas quais o grupo vai buscando seu
caminho. “Dependendo de onde a gente se encaixa
enquanto grupo, enquanto coletivo, a gente
vai começando a entender esse jogo”. A segunda
vertente é a do diálogo com as pessoas
que financiam projetos culturais ou, como define
Thuanny Paes, o “mundo da branquitude”.
Nesse cenário, segundo ela, são muitas
as pessoas que desejam que o grupo trabalhe
de forma gratuita, apenas para mostrar sua arte.
Com essas pessoas, o Nega acabou aprenden-
33
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Para as populações marginalizadas, ter
acesso a recursos da cultura significa um
desafio a mais, o de superar os desafios
de capacitação colocados na própria
elaboração dos projetos.
do, ao longo dos anos, que é preciso dialogar, especialmente
pelo fato de o grupo estar em Santa
Catarina, um dos estados com o maior percentual
de população branca em todo o país. Já com
os segmentos que estão na origem do coletivo,
a relação é diferente. “Com escolas, quilombos,
a gente entrega esse trabalho de graça, como
performance, como arte e educação”, explica a
gestora do Nega.
Para ela, o saldo destes dez anos de uma
estratégia centrada nessa dualidade e no diálogo
é extremamente positivo. “Conseguimos,
através do coletivo, construir uma rede, sempre
dialogando com muitas outras pessoas, sempre
criando vínculos com pessoas que se sentem
representadas pelo nosso trabalho. É um desafio
se inserir na indústria cultural, mas é também
uma escolha, pois a gente precisa também
do leite das crianças. A gente também quer ter
qualidade de vida, uma casa. Por isso, a gente
precisa dialogar. A gente conseguiu fazer isso
pelos editais de cultura, mostrando que a gente
tem responsabilidade, ideias e projetos”, afirma
Thuanny Paes.
Kika, Anderson e Thuanny são exemplos
de produtores culturais que conseguiram superar
as barreiras que impedem a livre disseminação da
arte produzida por populações pobres e moradoras
em territórios de exclusão social, como são o
Beiru, o Aglomerado da Serra e os bairros pobres
de Florianópolis onde mora a população negra.
Kika fez valer seu projeto graças à sua persistência
e à rede de colaboradores que criou em torno
dos bailes funk. Anderson, além da persistência e
da rede de colaboradores, conseguiu entrar em
outro universo, o das leis de incentivo, que lhe
permitiu ter acesso a recursos para a manutenção
da Pinacoteca do Beiru. Thuanny, com o Coletivo
Nega, venceu pelo diálogo e pela persistência na
ocupação dos espaços.
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Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Rejeição
Para as populações marginalizadas, ter
acesso a recursos para produzir cultura costuma
ser uma meta difícil de ser alcançada. Por uma razão
muito simples. Participar exige uma certa qualificação
técnica para produzir projetos e, ao mesmo
tempo, apresentar uma série de documentos
que nem sempre é possível conseguir. Por esta
razão é que, no oposto do que pensam Kika e
Anderson, a produtora cultural Kaê Guajajara, do
povo indígena Guajajara, optou pela rejeição do
modelo atual de produção de cultura no país. Leia
artigo de Kaê Guajajara às páginas 47 a 51.
“É uma batalha perdida tentar mudar alguma
coisa dentro desse sistema. O momento agora
é de a gente se unir e pensar um novo modelo,
porque esse modelo está comendo tudo.
Não tem como pensar em ser artista se eu não
consigo respirar um ar, beber uma água, se não
consigo viver, mas apenas sobreviver”, afirmou
Kaê, que é cantora, compositora, atriz, fundadora
do Coletivo Azuruhu e autora do livro Descomplicando
com Kaê Guajajara – o que você precisa
saber sobre os povos originários e como ajudar
na luta antirracista.
Kaê faz parte de um uma iniciativa cultural,
o selo indígena Azuruhu, cujo objetivo é dar visibilidade
aos indígenas que não vivem em aldeias e
sob cuidado da Fundação Nacional do Índio (Funai),
numa situação de dupla marginalização, pois
além de serem indígenas vivem em favelas. Ela
conta que quando começou a se interessar pela
arte, foi obrigada se desdobrar, tendo que ser assistente
administrativa para cadastrar músicas e
cuidar do financeiro, além de realizar um sem-número
de outras atividades, o que acabou desanimando-a
de seguir em frente dentro do modelo
cultural vigente no país.
“Sempre encontramos muita dificuldade
Thugaa
No tempo em que ficou proibido, Baile Funk da Serra atraiu multidões na Praça da Estação, no centro de BH
35
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
para seguir esse caminho da autonomia”, afirma
Kaê, que conta ter esbarrado na dificuldade de inscrever
projetos nos editais de cultura, mais até que
os negros. “Muitos negros conseguem se articular
minimamente para inscrever seus projetos em um
edital, enquanto vejo raríssimos artistas indígenas
fazendo isso”, afirma Kaê Guajajara.
José de Oliveira Júnior, da Secult, considera a
profissionalização importante para evitar que o artista
trabalhe como pedinte de verbas para seu projeto
Outro caminho
Ainda que esteja trabalhando com o mesmo
objetivo dos indígenas – a busca do reconhecimento
e da visibilidade, o Observatório das Favelas,
do Rio de Janeiro, tem um ponto de vista
diferente quanto ao caminho a seguir. O Observatório
é uma ONG fundada em 2001 no Complexo
Secult/MG/Divulgação
da Maré, um aglomerado de 17 bairros de populações
de baixa renda onde moram cerca de 140 mil
pessoas. O Observatório optou por não renegar o
sistema, mas trabalhar para mudá-lo por dentro.
Seu objetivo é produzir conhecimento e políticas
públicas que fortaleçam a democracia a partir da
afirmação das favelas e periferias como território
de potencialidades e direitos.
“Somos contra o sistema, mas estamos
operando nele”, afirma Isabela Souza. Para ela, resultados
efetivos na direção da redução das desigualdades
exigem o uso de ferramentas do próprio
sistema, como os indicadores e os dados abertos.
“Realizadores e realizadoras precisam ter acesso
a esses códigos e com eles defenderem suas narrativas,
seus projetos, e se posicionarem”, pontua
Isabela, que é bacharel em turismo e, atualmente,
é doutoranda em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) e diretora do Observatório
das Favelas. Para saber mais sobre o pensamento
de Isabela Souza, leia artigo nas páginas 40 a 46.
Para ela, ainda faltam às populações marginalizadas
informações estratégicas para que elas
se posicionem e façam valer seus direitos. “É muito
importante levar as populações da periferia ao uso
dos indicadores. Às vezes, faltam condições para
que elas se conectem. Tais ausências podem, na
área de cultura, levar a avaliações incorretas. Às
vezes, a gente tem a expectativa de que nosso
projeto é genial e que todo mundo tem que gostar
dele. Mas não é assim que acontece. As pessoas
podem gostar ou não gostar de dança contemporânea
ou teatro”, afirma Isabela. Por essa razão é
que ela enfatiza a importância do uso de dados e
pesquisas na definição de projetos com os quais
pretendem defender suas narrativas.
Quem também se queixa da desigualdade
na distribuição de recursos para a cultura é a cineasta
Sabrina Fidalgo. Segundo ela, especificamente
na área do audiovisual, a produção oriunda
de cineastas negros não corresponde, em volume
de recursos, nem a 1% do total investido no país.
36
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
“Quem decide para onde vai o capital é a elite branca”,
afirma Sabrina, que já teve filmes exibidos em
mais de 300 festivais nacionais e internacionais.
Seu último curta, “Alfazema”, lançado no final de
2019, foi duplamente premiado no 52º Festival de
Brasília do Cinema Brasileiro com o Candango de
Melhor Direção e Melhor Trilha Sonora.
Ela afirma que a pequena democratização
ocorrida nos últimos anos se deu não pelo governo,
mas sim pelo avanço da tecnologia digital, que
barateou os custos de produção. Na sua avaliação,
o resultado dessa desigual distribuição dos
recursos é que o cinema brasileiro não reverencia
suas próprias raízes e sim o modelo europeu.
Neste cenário, não há, segundo ela, como avançar.
“Temos que falar de narrativas pretas, de narrativas
indígenas, que é o que está faltando em
termos de pujança cultural do Brasil, que tem que
olhar para dentro. Do contrário, vamos continuar
patinando e produzindo muito conteúdo que não
chega a lugar nenhum”, afirma Sabrina, que defende
uma remontagem radical da cadeia produtiva
do audiovisual brasileiro.
Cortar caminho
Em busca de encurtar esse caminho entre
quem produz e quem financia cultura, a operadora
de telefonia Oi fez uma experiência diferente no
aglomerado do Rio das Pedras, na zona oeste da
cidade do Rio de Janeiro. Ao definir os projetos
culturais que iria apoiar, a empresa foi à comunidade
ouvir, presencialmente, a defesa dos projetos
por parte de seus proponentes. Normalmente,
isso é feito à distância. O empreendedor cultural
entra com o projeto no site da empresa que delega
a uma comissão a responsabilidade de analisá-lo
para definir por sua aprovação ou não. Porém,
tudo isso sempre é feito a distância.
O objetivo da ida ao Rio das Pedras era
identificar projetos de um coletivo que desejava
trabalhar cinema e música na praça. Como não
O avanço das tecnologias
digitais permitiu, no
audiovisual, um maior acesso
aos meios de produção
cultural, pois os equipamentos
são de menor custo e
produzem imagens de alta
qualidade.
havia entre os integrantes do coletivo uma instituição
formal que fosse capaz de desenvolver e
apresentar o projeto pelas vias normais, a banca
de seleção foi aos lugares fazer a escuta. “Foi uma
ação muito interessante porque estava descolada
de um certo formalismo”, afirma Luciana Adão,
coordenadora de Patrocínios Culturais Incentivados
da Oi Futuro, instituição por meio da qual
a operadora atua em projetos de responsabilidade
social.
Além da ida ao Rio das Pedras, a empresa
optou, durante a pandemia, por investir na capacitação
de produtores culturais que não teriam como
participar dos processos de seleção por editais.
De acordo com Luciana Adão, o programa de capacitação,
que dura de seis a oito meses, torna os
participantes mais preparados para atuarem como
produtores culturais. “Na pandemia, a gente entendeu
que, mais importante do que soltar editais, era
entrar na estruturação, para que eles chegassem
mais seguros na retomada”, explicou Luciana.
Quem também defende a qualificação dos
empreendedores culturais é José de Oliveira Júnior,
diretor de Economia Criativa da Secretaria
de Estado de Cultura e Turismo de Minas. Para
ele, essa profissionalização é importante porque
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Fabiana Batistela, produtora
da Semana Internacional
da Música de São Paulo,
afirma que, historicamente,
no mundo da música, os
movimentos que delimitaram
épocas vieram do universo
negro.
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Patrícia Sorranso
Culturas nº 3 março 2022
evita que o empreendedor cultural continue, como
é muito comum ainda, na posição de alguém que
depende de um favor – a aprovação de seu projeto
por parte do poder público. A profissionalização
é importante também para que a seleção seja feita
segundo diretrizes de políticas públicas e não na
lógica de atendimento a favores.
Ele reconhece que na área cultural nem todos
os empreendedores que vão atrás de financiamento
público o fazem como profissionais da
cultura, mas sim como alguém que tem a cultura,
primordialmente, como uma ação social. Porém,
mesmo entre os empreendedores profissionais do
setor, há uma lacuna a ser preenchida, pois esse
artista tem dificuldade de lidar com o ambiente
profissional da cultura. Segundo ele, boa parte
não pensa o projeto como um negócio artístico e
não atua como um defensor da ideia de que os artistas
que pretendem trabalhar profissionalmente
façam residência para projetos, a fim de que possam
entender e defender a potencialidade de suas
iniciativas junto aos prováveis patrocinadores.
Em São Paulo, a produtora musical Fabiana
Batistela também tem a mesma preocupação
de Thuanny, Anderson AC e Kika – a de inserção
no mundo profissional de populações marginalizadas,
especialmente os negros. Fabiana é uma
especialista na produção de feiras de música. A
mais famosa delas é a Semana Internacional de
Música de São Paulo (SIM São Paulo) evento que,
há nove anos, reúne profissionais do mundo da
música – artistas, produtores, técnicos e representantes
da indústria de equipamentos e instrumentos,
entre outros segmentos. Fabiana é também
fundadora da Inker Agência Cultural, empresa especializada
em assessoria de comunicação para
artistas e eventos de música.
Ela afirma que no mundo da música, o que
há de mais inovador e interessante nos dias de
hoje, vem da periferia. Sendo assim, um de seus
objetivos atuais é trazer essa periferia que produz
Por um lugar ao sol
Culturas nº 3 março 2022
Alfazema/Reprodução
Cena de Alfazema, de Sabrina Fidalgo, que recebeu dois prêmios no 52º Festival de Cinema de Brasília
música para dentro da Sim São Paulo. Para isso, no
último evento, começou a distribuir credenciais para
que estes grupos conhecessem a feira. “Eu quero
essas pessoas”, afirma Fabiana. Ela diz que não só
hoje, mas historicamente no mundo da música, os
movimentos que delimitaram épocas vieram do universo
negro. Por essa razão, defende que os produtores
de feiras musicais façam o mesmo movimento
que ela está fazendo, de inclusão de artistas negros
ao universo profissional da música, cedendo-lhes
credenciais para garantir-lhes a presença nas feiras.
Na música, no cinema, no audiovisual, nas
artes plásticas, o caminho muitas vezes solitário em
busca de um lugar ao sol é longo e exige uma persistente
perseverança, como atestam, por exemplo, a Pinacoteca
do Beiru, o Baile Funk da Serra e o Coletivo
Nega. “A gente tem sempre que provar o que a gente
quer”, ressalta Kika, do Baile Funk da Serra, em Belo
Horizonte. “Não é fácil, mas se não for você a fazer
Na música, no cinema,
no audiovisual, nas artes
plásticas, o caminho muitas
vezes solitário em busca de
um lugar ao sol é longo e
exige perseverança. É um
caminho sem volta, e, ao
mesmo tempo, sem fim
esse trabalho, não vai ser ninguém”, afirma Anderson
AC, da Pinacoteca do Beiru, em Salvador. Trata-se,
como resume Thuanny, de um caminho sem volta e,
ao mesmo tempo, sem fim. “O grande desafio é equilibrar
o lugar de estar inserido no mercado e, ao mesmo
tempo, estar fiel à nossa arte, à nossa existência,
às nossas vivências. Me pergunto isso todos os dias”,
resume Thuanny, do Coletivo Nega, de Florianópolis.
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Culturas nº 3 março 2022
Davi Marcos
Isabela Souza, do Observatório das Favelas, considera trabalhar com dados fundamental para que se possa
aprofundar olhares e produzir informações sobre o território
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A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
A força
transformadora
dos dados
Artigo: Isabela Souza
A partir do convite do Sesc Minas para integrar a mediação da mesa
Business Intelligence para o setor cultural: levantamento e utilização de indicadores
para o diálogo com o mercado e construção de projetos culturais
do V Fórum Políticas Culturais em Debate, em novembro de 2021, passei a
refletir sobre como minhas inquietações particulares e o histórico de atuação
do Observatório de Favelas 1 podiam contribuir para que saíssemos desse diálogo
com algumas pistas sobre as possibilidades do uso de indicadores para
a cultura tendo em vista o gerenciamento
estratégico da informação e, ainda, sobre
como os dados e o business intelligence podem
ser suporte para a criação de parâmetros
que contribuam para a compreensão de
processos que ocorrem no contexto cultural.
De onde percebo, essa reflexão e
as possibilidades de respostas precisam
ter como premissa um conjunto de desafios
estruturais e conjunturais. Em se tratando
de Brasil e da Améfrica Ladina (Gonzales,
1988), estamos estruturadas/os tendo por
base uma abissal e diariamente renovada
desigualdade socioterritorial, expressa nas
formas destoantes de organização e disponibilização
de recursos materiais, políticos,
simbólicos e culturais, além de violências de
Esse movimento
de, a partir de uma
questão específica
produzir dados, é
necessariamente político
e responde de forma
natural a intenções
determinadas.
41
A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
diversas configurações e grandezas.
Para intervir e superar parte dessa dimensão
estruturante e suas principais expressões no
que concerne às favelas e periferias e suas/seus
moradoras/es, em 2001 surgia o Observatório de
Favelas. Com 20 anos de atuação, somos uma
aposta coletiva que reivindica outras centralidades
para os movimentos que nos organizam em
sociedade. Neste contexto, a realização de pesquisas
e a coleta de dados são parte fundamental
deste compromisso. Nascemos e seguimos existindo
porque é preciso pensar o direito à cidade 2
a partir de outras perspectivas territoriais, sociais,
corpóreas, econômicas e étnico-raciais, para que
possamos construir, cada vez mais, cidades que
garantam direitos plenos para o conjunto de seus
habitantes.
Pistas
Imergindo dos desafios conjunturais do presente,
e ainda comprometida com as aberturas de
conversas que podem nos levar às pistas sobre
o convite de reflexão que nos foi realizado pelo V
Fórum Políticas Culturais em Debate, sugiro que
olhemos com atenção para o fato de que estamos,
há quase dois anos, vivendo um cenário de crises
sobrepostas, especialmente no Brasil, mas também
em contexto global, diante dos impactos sanitários,
políticos, humanos, sociais, econômicos e
culturais da pandemia de Covid-19.
No que diz respeito à cultura, vimos o campo
ser um dos mais prejudicados pelas mudanças
impostas pela pandemia. Segundo a pesquisa
Percepção dos impactos da Covid-19 nos setores
culturais 3 , 40% das organizações culturais e de
economia criativa registraram entre 50% e 100%
de perda de receita e, agravando a situação, a categoria
“artistas”, por exemplo, foi uma das vetadas
pelo Governo Federal para recebimento do auxílio
emergencial.
Apesar da Lei Aldir Blanc e de todas as possibilidades
de suporte que ela representou para
realizadoras/es culturais, em favelas e periferias
vimos as/os realizadoras/es se desdobrarem em
muitas/os e estarem engajadas/os não apenas
na busca de alternativas para suas sustentabilida-
Rosilene Milioti/Imagens do Povo
O Observatório trabalha para reforçar a liberd)ade religiosa e o combate a discriminação e o racismo
42
A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
Francisco César
e grande ativador cultural e militante da ocupação do
espaço público paulistano, destaca que momentos de
fragilidade acabam sobrecarregando figuras ativas e
representativas no território. “O cara, além de agente
cultural e produtor, é também liderança comunitária. A
preocupação dele agora é como ele faz para fortalecer
a comunidade e não levantar sarau”, diz ele. Dialogando
com Black, lembramos que essas pessoas
são, em geral, comprometidas com pautas amplas
e mobilizam debates e articulações que
estão relacionados a diversos direitos fundamentais,
tendo a arte e a cultura como fio
condutor e ferramenta na formulação de
táticas de atuação no território.
Estas correspondências entre
agentes comunitárias/os e práticas
culturais e agentes culturais e práticas
comunitárias, acontece porque muitas
vezes são as práticas artísticas e suas/
eus sujeitas/os dinamizadoras/es as/os
responsáveis por consolidar uma identidade
territorial capaz de exigir e garantir
direitos fundamentais. Além disso,
essas pessoas, em geral, circulam muito
por dentro de seus territórios e isso lhes dá
as possibilidades de serem conhecidas por
muitas/os outras/os moradoras/es e de conhecerem
de perto demandas coletivas. (SILVA e
BRANDÃO, 2021, p.70)
Pelas lentes dos moradores da
Maré, o registro de um cotidiano
diferente do que tradicionalmente
é veiculado pela mídia, ligado à
violência e à pobreza
des individuais e profissionais, mas também comprometidas/os
com demandas comunitárias por
alimentos e produtos de higiene.
A rápida assimilação das demandas comunitárias
por agentes mobilizadoras/es da cultura em
territórios periféricos e favelados não é um fenômeno
novo. Diante dessa constatação e do contexto atual,
Márcio Black, cientista social e mestre em ciência política
pela PUC/SP, doutor em ciência da cultura (USP)
E, diante deste duplo contexto, temos
observado os inúmeros esforços do setor cultural
e de suas/seus diversas/os protagonistas para se
reerguerem e encontrarem caminhos para sustentabilidade
e retomada de projetos e ações e meu
convite é para que avancemos a partir deste sobrevoo
no campo, observado a partir da centralidade
principalmente de territórios e pessoas historicamente
vulnerabilizadas.
Tendo como partida os elementos apresentados
previamente, faço o convite para que olhemos
e pensemos os dados que servem à cultura
diante dos desafios de compreensão dos contextos
(e, vejam, eu disse contextos, no plural, pois é
preciso naturalizar que o contexto é diverso e que
se constitui como singular a partir de uma escolha)
e dimensões estratégicas do nosso campo, sem
43
A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
perder de vista que todas as vezes que optamos
por reunir dados em determinado formato, por algum
motivo específico já estamos expressando aí
uma intenção, por aprofundar em olhares e produzirmos
informações.
Dados ganham corpo e se transformam em
informações que ganham sentidos principalmente
quando são entendidas e aplicadas para o fim ao
que se propuseram. Esse movimento, de a partir
de uma questão específica produzir dados, que
são insumos para reflexões e práticas, é necessariamente
político e responde de forma natural
a intenções. Assim, o mais importante, a meu ver,
é olharmos para a força política e com potencial
de transformação social que as oportunidades de
levantamento e utilização de indicadores em cultura
apresentam. Isso porque esse exercício em
si revela o conjunto dos compromissos que estão
mobilizados pela escolha de tornar pública determinada
narrativa a partir de um percurso de coleta
e análise de dados.
Diálogos
Diante de tamanha diversidade de contextos
e de tamanha responsabilidade, como podemos
dialogar com esse mercado que se institui como
setor cultural? Quais são os indicadores majoritariamente
usados? A que políticas e interesses eles
respondem? Como podemos recentrar o ponto
de onde partem? Quais territórios, corporeidades
e subjetividades estão invisibilizadas/os nos exercícios
de pensar a cultura como negócio? Quais
são as responsabilidades compartilhadas neste
sentido? Quais dados precisam ser produzidos, e
por quem, para que iniciativas públicas e privadas
de fomento reconheçam territórios e sujeitas/os fazedoras/es
culturais historicamente invisibilizadas/
os? Como criamos indicadores para uma inteligência
dedicada à prospecção, não apenas de negócios,
mas também, e sobretudo!!!, de políticas culturais
efetivamente democráticas e comprometidas
Estamos, há quase dois anos,
vivendo um cenário de crises
sobrepostas, especialmente
no Brasil, mas também
em contexto global, diante
dos impactos sanitários,
políticos, humanos, sociais,
econômicos e culturais da
pandemia de Covid-19.
com a redução das desigualdades que nos estruturam?
Como mapeamos impactos econômicos,
sociais, simbólicos e de narrativas de iniciativas
culturais diversas? Como compartilhamos metodologias
para que outras/os sujeitas/os e iniciativas
possam produzir seus próprios dados e figurarem
na cena?
Perguntas
As perguntas são muitas. Eu sei. É que historicamente,
e de forma hegemônica, muitas das
informações e conteúdos produzidos, inclusive na
perspectiva da cultura, não respondem aos interesses
e necessidades de minorias políticas, negras/os
e indígenas, moradoras/es de favelas e
periferias, mulheres, LGBTQIA+. E eu penso que
esse é um espaço para registrar esse diagnóstico
e, ao mesmo tempo, apontar caminhos para rupturas.
Para mobilizar transformações nas leituras
que temos sobre o setor cultural em perspectiva di-
44
A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
Durante a pandemia do coronavírus, o Observatório
das Favelas fez ampla mobilização para reduzir o
contágio entre os moradores das favelas
versa, e neste fluxo sermos agentes de mudanças
efetivas e que beneficiem a diversidade que nos
compõe, precisamos estar atentas/os com o que
nos leva a produzir dados, quem são as/os protagonistas
que desejamos escutar e contemplar com
aquilo que pode vir de diferente ao que já está em
curso para o campo.
A boa notícia é
que já há um conjunto
de pessoas, instituições
e coletivos que vêm se
engajando na criação de
outros espaços, metodologias
e narrativas mais
democráticas e que possam,
progressivamente,
ir contribuindo com a redução
das nossas desigualdades
estruturantes
e conjunturais. É central
que o movimento de
produzir dados na perspectiva
de pautar ações
inteligentes no contexto
cultural parta das perspectivas
da diversidade
como caminho e que
lidem com as informações
como sendo aberturas
de agendas que reivindicam direitos.
Como compartilhei no começo dessa nossa
troca, o Observatório de Favelas foi criado há
20 para responder a lacunas de produção de conhecimentos,
políticas e narrativas que partissem
de favelas e periferias. Olho para o hoje e não
tenho dúvidas de que instituições como a nossa
seguem sendo necessárias porque estas lacunas
continuam presentes. O que mudou em duas décadas
é que hoje nos multiplicamos. Por conta do
trabalho de organizações da sociedade civil e da
participação cada vez maior de pessoas de origem
popular, negras/os, mulheres, LGBTQIA+, nos espaços
formais de educação e política, hoje há mais
indivíduos, coletivos, instituições e representantes
políticos que refletem as questões sociais e recentram
debates.
Diante dos diálogos abertos aqui, é possível
pensarmos em um conjunto de compromissos
a partir dos quais devemos estar engajadas/
os caso desejemos incidir
socialmente com
movimentos de pesquisas
e coleta de dados
de cultura, como campo
de significação da vida
e também do mercado.
Se há um interesse
sincero em fazer deste
exercício um passo
concreto para a redução
das desigualdades que
nos estruturam, precisamos
repactuar de onde
partimos e não fugirmos
das responsabilidades
ampliadas envolvidas.
Precisamos, também,
entender que conjuntos
de dados contam a partir
do momento em que
se transformam em informações.
Vamos juntas (os)?
Patrick Mendes/Imagens do Povo
Este artigo reflete a opinião de
sua autora, mas não, necessariamente,
a opinião do Sesc em Minas.
Isabela Souza é doutoranda em Geografia
pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre
em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem
MBA em Gestão de Projetos pelo Ibmec/RJ e é bacharel
em Turismo pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Isabela nasceu e
cresceu na Maré e desde 2011, integra o quadro da
oscip Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
Atualmente é diretora da organização.
45
A força transformadora dos dados
Culturas nº 3 março 2022
Nos projetos do
Observatório das Favelas,
a preocupação com a
cultura e a discussão de
temas ligados ao cotidiano
dos moradores, como a
segurança e a educação
Reprodução Facebook
Referências bibliográficas
Gonzalez, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade.
Tempo Brasileiro, 92 (93), 69-82, 1988.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais,
São Paulo, n.29. p. 73-89, 2012. LEFEBVRE, Henri. O
Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2008.
SILVA, ISABELA S; GILL, Andréa. B. Renarrando a
história do presente herdado: Práticas, imaginários e
disputas artístico-culturais de uma política de transformação
a partir das periferias – Um olhar sobre o
Galpão Bela Maré. In: 2º CONGRESSO ÍBEROA-
MERICANO DE HISTÓRIA URBANA, 25 a 28 de
novembro de 2019, Ciudad de México. Anais do 2º
Congresso Íberoamericano de História Urbana.
Ciudad de México, 2019, pp. 297-298. Disponível
em: < https://bit.ly/391zWQ8>.
SILVA, Isabela Souza e Brandão, Rebeca. Você tem
fome de quê? Sobre a política cultural necessária
para e a partir de favelas e periferias. Revista Observatório
Itaú Cultural – N. 28 (dez. 2020/jun.2021)
– São Paulo.
1 – O Observatório de Favelas foi fundado em 2001 como um programa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), instituição voltada para a produção
e a disseminação de conhecimento. O então Observatório Social de Favelas, apoiado pela Fundação Ford, tinha objetivos como promover a pesquisa e produção
do conhecimento sobre as favelas e espaços populares, além de apoiar ações nestes territórios que não visassem exclusivamente a elaboração de políticas
sociais compensatórias, características da tradição assistencialista. Hoje, a instituição se define como uma organização social de pesquisa, consultoria e ação
pública dedicada à produção do conhecimento e à elaboração de proposições sociais e políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. Assim, tem como missão
construir experiências que superem as desigualdades e fortaleçam a democracia a partir de ações e projetos nos seguintes campos: Direito à Vida e Segurança
Pública (Direitos Humanos), Arte e Território, Políticas Urbanas, Comunicação e Educação e tendo como temas transversais os debates de raça e gênero. www.
observatoriodefavelas.org.br
2 – A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores
estéticos desejamos. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança
da cidade. Além disso, é um direito comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de moldar o
processo de urbanização. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos mais preciosos e negligenciados
direitos humanos. (HARVEY, 2012, p.74)
3 – Percepção dos impactos da Covid 19 nos setores cultural e criativo do Brasil. 220. Disponível em: <https://iccscovid19.com.br/ >. Acesso em dezembro de 2021.
46
Culturas nº 3 março 2022
Invisíveis
na
música
George Magaraia
Kaê Guajajara afirma que a invisibilização
da música indígena faz parte do processo de
“civilização” dos índios brasileiros, que perdem
os laços com sua cultura original
47
Invisíveis na música
Culturas nº 3 março 2022
Artigo: Kaê Guajajara
Até hoje, muitos compositores da dita música
brasileira bebem de nossas fontes e ritmos,
e se beneficiam da exotificação europeia para se
prevalecerem em suas apropriações. Muitos deles
se dizem donos dos cantos e ritmos que aprenderam,
gerando então o epistemicídio (processo de
invisibilização e ocultação das contribuições culturais
e sociais não assimiladas pelo “saber” ocidental,
segundo definição do sociólogo português
Boaventura de Souza Santos), o apagamento, de
modo que não há hoje a possibilidade de um artista
verdadeiramente indígena registrar sua obra cantada
em sua língua.
Nossas músicas eram tratadas como diabólicas
e as dos brancos impostas a nós como forma
de nos assimilar. Não é de hoje que o mercado da
música no Brasil é monopolizado por uma narrativa
colonial, que é apenas a reprodução de um passado
que nunca passou, onde as estruturas de poder que
regem o país privilegiam conteúdos que têm como
norte a homogeneização dos ditos brasileiros com a
colonização, através de discursos que ditam a “normalidade
colonial” e incentivam pensamentos como
“somos todos iguais”, “tenho que ter mais do que preciso”,
“quero ter muito ouro”, “preciso casar na igreja
e de branco”, “a natureza é linda e nada está acontecendo
com ela” ou “não há diferenças entre nós”. Todos
partem da mesma intenção, que é a de colonizar
corpos para integrá-los em prol do governo.
O ‘desaparecimento’ de nós,
indígenas, está ligado ao
processo de ‘civilização’, pois
para os colonizadores, a forma
de abrir caminho à ‘civilização’
seria transformando os
indígenas em brasileiros.
Um exemplo disso é a União Brasileira de
Compositores (UBC), que é uma das maiores associações
para o registro de músicas e direitos autorais
no Brasil. Não há, dentro do sistema dela, a
opção “língua indígena” ou mesmo “estilo indígena”,
nem mesmo nas distribuidoras. Sendo assim,
somos forçados a registrar nossas músicas como
sendo compostas em português, como música
brasileira e seguindo estilos não indígenas. Há, até
mesmo, a opção de ritmos afro variados, mas não
há uma opção para registro de músicas indígenas.
Isso tudo se funde com o intuito primordial da colonização,
que, por ser considerada pensadora do
mundo, cria mundos racistas e apaga outros povos
e culturas, para que a narrativa dela se sobreponha.
48
A falsidade das rádios
Hoje, os artistas da música mais ricos não
denunciam a realidade do Brasil, e sim alimentam
o que a colonização quer: a monogamia, o dinheiro,
o ouro e deus acima de todos. Os que conseguem
espaço e não estão falando sobre essas coisas,
muitas vezes são perseguidos pelo governo e
presos injustamente. E não necessariamente precisam
alcançar a visibilidade para isso. Para ecoar
a tal música brasileira e suas discussões vieram
as rádios, ditas como “contribuintes diretas da promoção
da cidadania e do fortalecimento da democracia”.
Seus radialistas, tão fiéis ao Brasil, mesmo
que inconscientemente, nunca questionaram a ausência
de artistas indígenas nesses espaços, uma
vez que não é interessante para o Brasil ouvir o
que temos a dizer, já que sempre vamos estar na
contramão do que a colonização quer.
Para eles, é muito melhor a prática do
epistemicídio do que colocar nossos rostos como
agentes da arte, da música, do pensamento. Então,
eles criam meios de ecoar as pseudo-histórias
de conquistas e evolução por meio de ferramentas
que foram feitas apenas para eles e
Invisíveis na música
Culturas nº 3 março 2022
não para todos. Não há democracia nas rádios.
O que há é a disseminação da falsa identidade
que criaram desse território. Chamam as músicas
executadas como músicas daqui, mas que,
na realidade, são europeias com elementos indígenas
e afro.
O que não se vê nesses atores é a iniciativa
de serem agentes de mudança de sua realidade,
servindo apenas para o avanço da colonização
no Brasil, para o entretenimento da branquitude.
Quando esses povos cantam sua realidade, são
vistos como pobres de cultura, como inferiores,
como acontece com os cantos e ritmos indígenas
e também com o funk.
Como indígenas, nunca conseguimos entrar
na bolha do que as rádios e televisões estão
tocando. Se algum de nós conseguiu, com certeza
estava bem ensaiado e, de alguma forma, censurado.
Então, eles pegam algum de nós para falar o
que eles querem, como: “precisamos amar a natureza,
cuidar de tudo para que não acabe, que estamos
vivendo felizes na aldeia, que a natureza é
linda e que estamos muito bem e felizes”; não para
denunciar as consequências da colonização.
Racismo estrutural
É novo para mim, e acredito que para muitos
parentes meus, conseguir expressar nossas vivências
e narrativas por meio da música, já que antes
a usávamos para cantar músicas religiosas, quando
tentavam nos assimilar em nossa infância. Agora,
estamos reivindicando nossas vivências com
essas mesmas ferramentas, e, quando finalmente
o fazemos, damos de cara com o racismo estrutural,
que não nos deixa invadir outras bolhas de interesses
por questões políticas, sempre com aquela
velha história de que vamos impedir a evolução. E
aí deixo a provocação: do que mais poderíamos
falar quando estamos até hoje sendo roubados e
vivendo às margens do Brasil, que vai “avançando”
e nos jogando de lado com a flexibilização de leis
que diziam que eram para nos proteger, mas que
só nos matam a cada dia que passa?
Ser indígena e artista no mundo da música
é tentar respirar quando, nas nossas necessidades
básicas, para viver, estamos sendo atingidos, forçados,
impostos, roubados e censurados, porque sermos
quem somos é contra a proposta do Brasil, que
Heitor Villa-Lobos teria
se utilizado da música
indígena brasileira,
mas sem dar o devido
crédito às fontes nas
quais se inspirava
49
Museu Villa-Lobos/acervo
Invisíveis na música
Culturas nº 3 março 2022
quer crescer criando uma falsa identidade de território
em cima de nossos corpos, e não valorizando os
verdadeiros originários dessa terra que vos pisa.
É importante falar sobre onde esse mercado
musical está inserido. Aí, sim, podemos falar sobre
como ele funciona e em que condições opera.
Toda a estrutura da sociedade brasileira, incluindo
o mercado, está fundada no racismo estrutural, que
começa com a chegada dos colonizadores portugueses.
Enquanto brancos faziam planos para
serem artistas/músicos de seu tempo, a música
estava sendo usada como ferramenta para assimilar
e civilizar indígenas, e assim impor a identidade
brasileira, como descreveu o crítico e pesquisador
da música brasileira José Ramos Tinhorão em A
deculturação da música indígena brasileira (1972).
Ele afirma isso com base em carta de 1549
enviada pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega ao
padre Simão Rodrigues. No documento, ele informa
que um outro integrante da congregação estava ensinando
os meninos índios a entoarem canções na
língua deles, porém com o conteúdo modificado sem
as partes “lascivas e diabólicas que antes usavam”.
Assim, o “desaparecimento” de nós, indígenas, está
ligado ao processo de “civilização”, pois para os colonizadores,
a forma de abrir caminho à “civilização”
seria transformando os indígenas em brasileiros.
Quando chegaram aqui, os colonizadores
encontraram muitos povos indígenas que já eram
músicos e usavam vários instrumentos, como o chocalho,
o maracá (seja segurado por hastes e tocado
com as mãos; seja amarrado nos tornozelos ou
tocado a partir da movimentação dos pés), percussões
em madeira ou em membranas, zumbidores
(instrumentos que emitem sons quando agitados no
ar), flautas de diferentes tipos, materiais, tamanhos
e sonoridades e, especialmente o canto coletivo, de
característica essencialmente monódica.
Quem descreveu o significado da música
para os indígenas foi o museólogo Bruno Kiefer, no
livro História da música brasileira (1997), a partir
Ser indígena e artista no
mundo da música é tentar
respirar quando, nas nossas
necessidades básicas, para viver,
estamos sendo atingidos, forçados,
impostos, roubados e censurados,
porque sermos quem somos é
contra a proposta do Brasil.
de relato de 1557 do francês Jean de Léry. Essas
cerimônias duraram cerca de duas horas e, durante
esse tempo, os quinhentos ou seiscentos selvagens
não cessaram de dançar e cantar de um
modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem
música.
Se, como disse, no início dessa algazarra,
me assustei, já agora me mantinha absorto em
coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e
sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada
copla: Hê, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre,
uêh. E ainda hoje quando recordo essa cena, sinto
palpitar o coração e parece-me a estar ouvindo.
Os jesuítas aprenderam línguas originárias
das várias etnias indígenas que existiam naquela
época para poder introduzir a cultura europeia
naquele contexto. Segundo Vasco Mariz, no livro
História da música no Brasil (1983), o processo
de catequização levou os jesuítas a escreverem
“autos” em português e em língua local, ensinar
as crianças indígenas a cantar, a dançar e a tocar
diferentes instrumentos de origem europeia, como
flautas, gaitas, tambores, viola e até cravo.
Em Música: breve história (1999), o pesquisador
musical Edson Frederico afirma que uma característica
importante do povo indígena era sua relação
com a música, levando os indígenas a poupar as vidas
de seus inimigos sempre que estes demonstras-
50
Invisíveis na música
Culturas nº 3 março 2022
sem serem músicos ou cantores. Essa relação ajudou
os índios a absorverem a proposta catequética
dos jesuítas, sem perceberem que este processo os
distanciava, cada vez mais, de sua cultura.
Vivência e intelectualidade
invisibilizadas
Enquanto estávamos sendo invisibilizados
e dados como seres que precisavam ser assimilados,
integrados e exterminados, Heitor Villa-Lobos
bebia de nossas fontes e garantia o título de maior
compositor clássico brasileiro e presidente da Academia
Brasileira de Música, sendo até chamado de
Villa-Lobos e seu estilo indígena, como descreveu
Paulo Renato Guérios (2003) em Heitor Villa-Lobos,
o caminho sinuoso da predestinação.
Para representar o Brasil musicalmente,
Villa-Lobos achava necessário sintetizar a música
popular e a música indígena. Fica claro que o
Brasil que Villa-Lobos representa em sua música
é o Brasil selvagem e exótico e não qualquer Brasil,
mas o Brasil concebido pelos parisienses. Nos
Choros, Villa-Lobos transportava para a linguagem
musical as imagens europeias sobre a nação brasileira:
a nação da natureza, dos índios e também
dos personagens da música popular.
Villa-Lobos tornou-se um músico brasileiro
conforme a imagem que o espelho europeu lhe
mostrava. Segundo Guérios, não interessava a Villa
-Lobos a citação das fontes das quais originavamse
suas histórias. Sua personagem estava sendo
construída, para francês ver, parodiando um antigo
ditado popular. Ainda que estas fossem apenas recompilações
de histórias transmitidas oralmente.
Este artigo reflete a opinião de sua autora,
mas não, necessariamente,
a opinião do Sesc em Minas.
Kaê Guajajara é cantora, compositora,
arte-educadora, criadora do estilo musical
Música Popular Originária (MPO) e fundadora do
coletivo Azuruhu.
Indígenas produzem
músicas que não podem
ser registradas como tal
pela União Brasileira de
Compositores nem são
executadas nas emissoras
de rádio
Marcello Casal/Agência Brasil
51
A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
Artigo: Alexandra de Melo e Rita Roldan
Maria Luisa Coura
Matheus Trindade
Alexandra de Melo e Rita Roldan defendem modificações estruturais na sociedade brasileira, para que
deixem de existir manifestações culturais marginalizadas
Muito
mais
do que
diversão
e arte
Em Florianópolis, no Sul
do Brasil, capital do Estado mais
branco – em proporção ao número
de negros – do País, nasce em
2010 um grupo que se denomina,
“grupo de teatro negro”, uma
afirmação importante para encarar
a luta pela ocupação cultural e
artística na cena da cidade. O
diferencial de se rotular com o
termo “teatro negro” é abrir espaço
para esta manifestação ganhar
possibilidade de existência, de
autoafirmação enquanto linguagem
artística feita por pessoas
socialmente racializadas, negras.
52
A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
Logo, o grupo é questionado do porquê desta
autoafirmação “negra” e é acusado de racista reverso,
pois “estaria excluindo não negros da participação”.
Segundo Evani Tavares Lima (2010):
[...] essas são as faces distintas que podem ser assumidas
pelo teatro negro: a performática, que abarca
manifestações espetaculares negras, em geral; o de
presença negra, apresentando formas mais especificamente
teatrais; e o engajado que, por seu turno,
prioriza atuar numa esfera de maior posicionamento
político. Resumindo, poderíamos dizer que essas
três categorias nas quais classificamos o teatro negro
constituem as três principais vias de abordagem
desse teatro: a dramaturgia, as formas expressivas
negras e o discurso militante. Essa riqueza de pontos
de vista só aponta para o caldeirão de possibilidades
sugeridas pelo teatro negro. A aproximação e/ou fusão
dessas variantes, ou sua exploração particularizada,
são igualmente fundamentais, pois suas resultantes
ecoarão naturalmente num discurso estético que desenha
esse teatro: temática negra + perspectiva negra
+ formas inspiradas em elementos da performance artística
negro-africana.
Percebemos que seria um grande desafio
conquistar um público interessado no assunto e
na linguagem artística. Desafio ainda maior em se
tratando de remuneração pelas nossas apresentações,
pois além do nosso nome, buscávamos reflexões
sobre o racismo no conteúdo das peças, sendo
considerado, além de “grupo de teatro negro”,
um “grupo de teatro negro engajado”. Na mesma
tese citada anteriormente, Lima revela, enquanto
conceito, visões sobre o que poderia ser considerado
um teatro negro engajado:
De acordo com a estudiosa Leda Martins (1995), o
teatro negro, enquanto conceito, não se limita apenas
ao aspecto da cor, da etnia, mas engloba um conjunto
outro de elementos que lhe dá complexidade e
demarca sua diferença. Para um dos mais importantes
pensadores da militância negra norte-americana,
Du Bois (1) , o teatro negro seria aquele cuja temática
discute questões negras, é produzido e realizado por
artistas negros e dirigido para espectadores negros,
em comunidades de contingente negro. Para Abdias
do Nascimento, esse teatro seria um “instrumento de
redenção e resgate dos valores negro-africanos.”
Portanto, o Coletivo Nega possui em sua trajetória
a luta contra o racismo como cerne da forma
e do conteúdo de suas obras. Desde 2010, o grupo
levanta questionamentos sobre o capitalismo e lida
com a visão de negócios que nos invisibiliza e tenta
nos manter à margem da lógica do mercado e também
do Estado. No presente artigo, vamos trazer
alguns desafios que permeiam nossa caminhada.
Tokenismo
Até hoje vivemos um conceito social que
surgiu 1950, nos EUA, em meio à luta racial por
direitos civis, o tokenismo (termo derivado da palavra
de origem inglesa token, que significa símbolo)
e que é, de acordo com Beth (2018):
[...] uma forma de perpetuação das desigualdades
raciais e de gênero, pela falsa representatividade nos
espaços de decisão e poder. A representatividade,
quando não atende à lógica da proporcionalidade, é
falsa e não atende o principal propósito a que se dispõe:
diminuir a marginalização de sujeitos pertencentes
a grupos minoritários.
Essa prática é comumente utilizada em empresas,
veículos de comunicação, espaço de poder
político e no marketing para justamente criar uma
imagem de um local “que não é racista” por ter um
token, ou seja, um símbolo que representa a sua minoria,
no caso a população negra. O tokenismo apenas
cria uma representatividade distorcida sobre a
parcela a ser presentada pelo token, polariza o grupo
e ainda cria estereótipos de diversas camadas.
Nas artes isso não é diferente, pois chamadas
“minorias” sempre estão em uma parcela muito
reduzida e dificilmente em papéis de protagonismo.
É comum vermos produções teatrais embranquecerem
personagens negros quando em lugar de destaque
ou deixar esse único personagem com sua
identidade racial preservada para preencher a “vaga
de cotas” no espetáculo em que o restante do elenco
e produção continuará majoritariamente branco, cis
(pessoa que se identifica completamente com o seu
53
A gente não quer só comida
gênero de nascimento) e heterossexual.
O tokenismo se alastra para todos os setores
da iniciativa privada e, quando chega nos setores
onde existe uma política cultural, ele age de
forma minuciosa para que seu papel seja cumprido
e as organizações privadas tenham sua imagem
de diversidade e antirracista construídas e preservadas.
Isso significa convidar artistas negros para
falar sobre racismo ou apresentar suas criações
acerca do tema em novembro, por exemplo, para
aproveitar o Mês da Consciência Negra.
Reparem como ao longo do ano pessoas negras não
aparecem em eventos para falar sobre suas atividades
profissionais ou seu estilo de vida de maneira
aleatória. Mas, basta novembro se aproximar e um
punhado de solicitações chega para falar em racismo.
Mas não para falar sobre racismo como se deve falar,
e sim como as mesas determinam e os organizadores
(na maioria das vezes brancos) já decidem de antemão
qual será a temática permitida ali. Não importa se
você é médico, advogado, dançarino ou oceanógrafo.
Importa é que você, pessoa negra, conte alguma história
emotiva de meritocracia e alguns dramas raciais,
romantizados o bastante para não ferir os ouvidos da
audiência branca (BETH, 2018).
Assim, somos condicionados a tratar de
um problema estrutural construído e mantido pela
branquitude em um dos 12 meses que compõem
um ano. Muitas vezes, conseguimos driblar as solicitações
e/ou expectativa dos contratantes, com a
plena consciência de que provavelmente eles nunca
mais nos chamem para participar de nenhum
de seus eventos artísticos e/ou culturais. Desta
forma, nossas produções continuam à margem, da
mesma forma de que nosso povo de origem. Pois
nossas expressões artísticas são perigosas para
um sistema construído com o suor e o sangue dos
nossos antepassados e mantido com o nosso. Beth
(2018) resume bem o tokenismo ao dizer que ele é:
[...] grosso modo, é uma desculpa muito perversa para
pessoas brancas (e homens) não assumirem suas
responsabilidades na desconstrução, pessoal e coletiva,
necessária para que alcancemos a verdadeira
equidade em todas as camadas sociais.
Indústria cultural
Culturas nº 3 março 2022
Aliado ao tokenismo temos a indústria cultural,
com seu poder de exercer a manipulação das
pessoas e resultando num controle social ligado à
ideologia hegemônica, que é uma ideologia capitalista,
imperialista, racista, machista, homofóbica,
gordofóbica, etc.
Enfim, é uma junção de todas as opressões
O diferencial de se rotular com
o termo “teatro negro” é abrir
espaço para esta manifestação
ganhar possibilidade de
existência, de autoafirmação
enquanto linguagem artística
feita por pessoas socialmente
racializadas, negras.
possíveis para que o sistema capitalista continue
funcionando a todo vapor. Além do mais, a indústria
cultural gera muito lucro e influência pelo seu
poder de massificação, o que torna as produções
artísticas que se encaixam no padrão da indústria
cultural muito mais interessantes para a iniciativa
privada, pois esse tipo de produção gera lucro quase
que imediato quando comparado a artes que
não se encaixam nesse nicho e/ou não se enxergam
como nicho.
Aqui, referimo-nos a grupos de teatro com
54
A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
Malira, Maria Luisa Coura, Olavo Kucker e Jhonny Strinde
Formado por Alexandra de Melo, Michele Mafra, Thuanny, Sarah Motta, Franco, Rita Roldan e Fernanda
Rachel, o Coletivo Nega questiona a visão de negócios que tenta mantê-lo fora do mercado da arte
55
A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
foco em processos e desenvolvimento pedagógico,
teatro político e suas diversas vertentes, teatro
negro engajado e outros mais. Também temos outras
áreas artísticas e culturais que estão fora da indústria
cultural, principalmente por não serem passíveis
de massificação nos seus moldes. Dentro
de todo esse processo, as manifestações não são
apenas invisibilizadas, mas também são exploradas
de todas as formas possíveis, aprofundando
ainda mais a precarização dos artistas.
Trabalho pago com visibilidade
Uma máxima atual de reclamações de artistas
tem sido as propostas de troca do valor do pagamento
do trabalho (em dinheiro) por visibilidade.
Num momento em que visibilidade, no sentido literal
(imagem), cabe na mão das pessoas, as mídias
competem para conquistar segundos de atenção
dos olhares. Nesse cenário, a comunicação se dá
O tokenismo é uma prática
muito utilizada em empresas
e pela mídia para criar uma
imagem de um local “que não
é racista” por ter um token,
ou seja, um símbolo que
representa a sua minoria, no
caso a população negra.
de modo quase instantâneo e a visibilidade se torna
uma moeda de troca. Poderia ser um ótimo pagamento,
já que a arte é um instrumento poderoso
de comunicação e disseminação de ideias; logo,
conquistar mais atenção e olhares poderia ser
um objetivo final atraente. O que
gera, então, o repúdio dos
artistas por este tipo de
“pagamento”, que troca
remuneração por “visibilidade”
e é considerado
um grande
desrespeito?
Vou direto
ao ponto com
um exemplo de
uma fala do personagem
Earnest
Earn Marks (Earn),
interpretado pelo ator
Donald Glover, na série
televisiva Atlanta, produzida
e dirigida pelo mesmo: “Eu
sou pobre e pessoas pobres não têm
tempo para investimentos, porque estamos ocupados
tentando não ser pobres. Eu preciso comer
hoje, não em setembro”, disse o personagem.
No contexto desta cena, o personagem
Earn está desempregado e precisa vender seu
aparelho celular para pagar contas. Seu amigo
lhe sugere fazer algumas trocas como investimento
para que, no fim das dos escambos, os
190 dólares que recebeu na primeira proposta
pela venda do celular, se torne um valor entre
2 mil e 4 mil dólares, se tudo ocorrer como pretendem.
De cara, parece-nos uma proposta interessante,
sem margem para dúvidas. A questão
é que esse valor só poderia ser pago depois de
alguns meses. É uma proposta básica de investimento
a longo prazo num mundo capitalista. No
entanto, Earn precisa comprar comida “hoje”.
A visibilidade de um artista também é um
investimento, pois nós trocamos horas de ensaios,
pesquisas, treinos técnicos e criativos
para gerar um resultado promissor, de acordo
com nossas propostas. Buscamos nos apresen-
56
A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
tar – presencial ou virtualmente – para impulsionar
uma certa “fama” e “chegar na boca do
povo”. De início, é muito comum se fazer estas
aparições por conta própria, sem remuneração
em dinheiro. Porém, não é intenção que isso se
mantenha assim, principalmente se somos “pobres”,
apenas para citar novamente a fala do
personagem acima.
A classe artística no mundo ocidental é,
histórica e predominantemente, composta pela
classe economicamente pobre, com cunho político
em relação à crítica aos sistemas de opressão.
A arte também é considerada um respiro da
expressão de subjetividades e individualidades,
mas que, por contextos coletivos, resulta em expressões
populares da arte.
Neste sentido, aparentemente, pode parecer
que a arte não seja um setor importante
na vida cotidiana (numa visão capitalista de
geração de lucro), que pode ser entendida, superficialmente,
como um passatempo/entretenimento,
tanto para quem produz quanto para
quem consome, ou ambos. Ou seja, ela pode
ser considerada um hobby. Isto quando se trata
de pequenos artistas, ou artistas independentes
que não ganharam as grandes mídias.
A falta de remuneração dos artistas, ou o
desmerecimento dela por parte dos contratantes,
se alastra ainda mais quando se trata de
obras que abordam conteúdos que provocam
reflexões mais profundas sobre a sociedade,
que provocam inquietações políticas de protesto
contra as opressões capitalistas. Estas artes,
no geral, não são consideradas lucrativas para
a iniciativa privada.
A arte como profissão, no senso comum
capitalista, só é considerada “pagável” se a obra
está massificada. Mesmo que haja artistas que
Das lutas dos negros americanos pelos direitos civis, nos anos de 1950, surgiu o
tokenismo, que é muito criticado por significar uma integração apenas simbólica
Wikimedia Commons
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A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
A falta de remuneração dos artistas, ou o desmerecimento dela
por parte dos contratantes, se alastra ainda mais quando se trata
de obras que abordam conteúdos que provocam reflexões mais
profundas sobre a sociedade.
não pretendam ser remunerados pelas suas expressões,
há os que se arriscam em tentar “viver
disso”. Digo “se arriscam” porque, no nosso
país, assumir a jornada artística como fonte de
renda não é simples e estável. Mas há quem
faça esta escolha e há muita gente. São aqueles
e aquelas que não estão nos holofotes, nas telas
das emissoras, nos espaços da mídia de massa.
São aqueles e aquelas que estão se apresentando
nas ruas, nos bares, nas suas pequenas
páginas na internet, em busca de um “lugar
ao sol”. E esse “lugar ao sol”, de modo minimamente
ambicioso, é receber dinheiro pelo seu
trabalho. Mesmo nas ruas, bares, pequenas páginas
virtuais, os/as artistas servem de atrativo
para comerciantes próximos, para divulgação de
marcas comerciais, para fins de lucratividade do
mercado financeiro. No entanto, o retorno à altura
do que se gera em publicidade não vem, não
chega no bolso do artista.
Há contratantes que pretendem veicular
propagandas, atrair clientes pagantes às custas
deste tempo de trabalho, mas querem pagar o
trabalhado com “visibilidade”. Não que isso não
seja importante, mas ela, sozinha, não enche o
bolso, não é moeda de troca no mercado para
Netflix/Divulgação
Na série americana Atlanta, o personagem de Donald Glover (d) encarna o dilema entre o presente e o futuro
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A gente não quer só comida
Culturas nº 3 março 2022
comprar comida, pagar o aluguel, o transporte
de ida e volta, nem os serviços de internet para
fazer o upload da sua gravação. A não ser nas
peças publicitárias dos grandes anunciantes, em
que a representatividade comercial das chamadas
diversidades vem crescendo bastante.
Neste sentido, artistas que antes eram excluídos
sistematicamente deste setor (como pessoas
negras, indígenas, deficientes, LGBTQIA+)
estão aparecendo com mais frequência nas telas,
com ênfase na manifestação de suas imagens.
No momento atual, com a pauta das lutas
pela igualdade de direitos sendo uma bandeira
de fachada interessante para ampliar o público
consumidor, as empresas têm se aproveitado
desta “inclusão”, sendo este movimento, contudo,
ainda circunscrito aos limites do tokenismo.
Os conteúdos e os corpos artísticos que protestam
ainda têm presença escassa e pouco valorizada
nestas mesmas mídias. Ou seja, é uma
representatividade que se dá muito mais na imagem
do que na ideia.
Independentemente se o artista se propõe
a um conteúdo de entretenimento, anestesiante
ou transformador politicamente; independentemente
se ele ou ela quer “viver disso” (financeiramente)
ou não; independente se é um artista
massivamente conhecido ou não, o fato é que
nós, artistas, assim como o Earn de Atlanta, também
precisamos comer hoje, depois de amanhã,
todos os dias, em pequeno, médio e longo prazos,
até chegar o tal “setembro”. A “visibilidade”
por si só, não põe comida na mesa. E, detalhe:
“a gente não quer só comida” (2) . Ser um trabalhador,
trabalhadora ou trabalhadores da arte é
um ato de resistência. Isso é indiscutível. É preciso
mudanças estruturais profundas na nossa
sociedade para que não existam manifestações
culturais marginalizadas e invisibilizadas. É com
esse objetivo que continuamos a tirar leite de pedra
para seguir com nosso ofício.
Este artigo reflete a opinião de
suas autoras, mas não, necessariamente,
a opinião do Sesc em Minas.
Rita Roldan é negra, atriz, compositora
musical, poeta, percussionista, estudante de licenciatura
em Teatro da Universidade do Estado de
Santa Catarina (Udesc), metida a cantora, arte-educadora,
trancista, amante do carnaval. É integrante
dos grupos coletivo Nega, bloco Africatarina
e Núcleo de Diversidade e Ações Afirmativas
(Nudha/Ceart/Udesc).
Alexandra de Melo é negra, atriz, profissional
de iluminação, produtora e arte-educadora. É
também integrante dos coletivos Nega e Agemo.
Referências
ATLANTA. Direção: Donald Glover. Produção: Donald
Glover. EUA: FX Networks, 2016. Netflix, temporada
1, episódio 4 (23 minutos), som, cor, legendado, português.
Disponível em: https://bit.ly/3gsZKaE. Acesso
em 12 de novembro de 2021.
ANTUNES, Arnaldo. BRITO, Sérgio. FROMER, Marcelo.
Comida. Rio de Janeiro: WEA, 1987
BETH, Joice. Tokenismo e a Consciência Humana:
uma prática covarde. Medium, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3GrEJY9.
Acesso em 5 de dezembro de 2021.
LIMA, Evani Tavares. Um olhar sobre o Teatro Negro
do Teatro Experimental do Negro e do Bando de
Teatro Olodum. Campinas: UEC, 2010.
MARTINS, L. A Cena em Sombras. São Paulo: Perspectiva,
1995.
NASCIMENTO, A. Teatro Experimental do Negro:
Testemunhos. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.
1 – Willian Edwards Burghardt Du Bois – W.E.B. Du Bois (1868-1919) PhD em Harvard, professor de economia e história, militante negro, jornalista e um dos mais
representativos intelectuais negros atuante no movimento cultural, revolucionário negro norte-americano no início do século XX. Du Bois foi um dos grandes defensores
e incentivadores da criação de um teatro negro norte-americano. Foi integrante da famosa NAACP – National Association para o Advanced of Colored People
(Associação Nacional para o Desenvolvimento de Pessoas de Cor). Em sua revista The Crisis (1900), abriu espaço para veiculação e discussão da especificidade
da arte negra e suas potencialidades como ferramenta política. Criou também o Krigwa Playwriting Contest (1926), revista que publica textos de dramaturgia negra
norte-americana (HILL, 2003). Ver também David Levering Lewis (1994). (LIMA, 2010)
2 – Trecho da música “Comida”, da banda Titãs. Compositores: Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Britto.
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O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
O exemplo que
vem de fora
A França é conhecida por ser um país em que a cultura e as artes têm uma
expressão muito forte, seja nos museus ou no cinema, ou na street art,
apenas para citar algumas áreas. A exemplo do Brasil, a França também
tem seus modelos de financiamento do setor. E, cada vez mais, faz uso de
dados para dar uma dimensão econômica aos seus projetos, ao mesmo
tempo que estuda novos modelos para o financiamento do setor.
M00écènes de Sud/Divulgação
Mécènes du Sud foi criada em 2003, em Marselha, com o
objetivo de apoiar artistas locais e, ao mesmo tempo, levar
a população a descobrir os valores da arte
60
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
No Brasil, o modelo de financiamento da
cultura é híbrido. Há as leis de incentivo, que
funcionam basicamente pela renúncia fiscal,
mecanismo no qual o poder público abre mão
de receber tributos, que são direcionados pelas
empresas para o apoio a determinados projetos
previamente aprovados pelo poder público. Há,
ainda, os fundos, que são aportes de recursos
feitos diretamente pelo governo federal, estados
e municípios. No caso das leis de incentivo, o
patrocínio é feito individualmente, empresa por
empresa. Da França, vem outro modelo, que
ainda não existe no Brasil, no qual uma coalizão
de empresas financia projetos de cultura.
A iniciativa existe desde 2003, na cidade
de Marselha, no Sul da França, e tem o nome de
Mécènes du Sud. É um modelo de financiamento
atípico também naquele país, onde a cultura
é subvencionada pelo Estado ou por empresas
privadas, mas individualmente, como no Brasil.
No início, eram oito empresas unidas na Mécènes
du Sud; em dois anos, passaram a ser 25 e
hoje são 40.
A trajetória da instituição foi apresentada
no V Fórum Políticas Culturais em Debate, uma
iniciativa do Sesc-MG, da Embaixada da França
no Brasil e do Governo de Minas realizada
no início de novembro de 2021, em Belo Horizonte.
No mesmo evento, outras iniciativas da
França e do Brasil também foram apresentadas
e discutidas.
Em 2013, a ação da Mécènes du Sud foi
de grande importância para que a cidade recebesse
o título de Capital Europeia da Cultura.
De acordo com Bénédicte Chevallier, diretora
da instituição, em 2003 quando tudo começou,
Marselha era uma cidade que em nada
lembrava aquela que, dez anos depois,
receberia o reconhecimento internacional.
“Era uma cidade com uma imagem
muito ruim, com lixo nas ruas, ratos e
greves”, afirmou Bénédicte Chevalier,
que, antes de assumir a Mécènes du
Sud, atuou como gerente em diferentes
galerias de arte e centros culturais
na França e no Marrocos. Segundo ela,
foi nesse momento de retração da imagem
da cidade que alguns empresários
se mobilizaram para mudar a realidade lo-
61
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
Mécènes de Sul/Divulgação
Benedict Chevalier afirma que Mécènes de Sud é um modelo de financiamento à cultura atípico na França
cal. E fizeram isso por meio do incentivo a projetos
culturais.
Nos primeiros dez anos de atuação, a Mécènes
du Sud atuou de forma transdisciplinar,
incentivando projetos de áreas diversas, como
artes cênicas, teatro, dança e artes visuais,
além do apoio a feiras de arte contemporânea
e às primeiras residências de artistas em empresas.
A primeira fase terminou em 2013, com
a consagração de Marselha como Capital Europeia
da Cultura. Em 2014, o projeto passou por
mudanças. Em vez de apoiar várias iniciativas
ao mesmo tempo, o grupo decidiu que somente
um projeto passaria a ser apoiado anualmente e
com um grande volume de recursos. A segunda
decisão foi a de reduzir a apenas uma área – a
das artes contemporâneas – o leque dos segmentos
a receberem incentivo.
Para Bénédicte Chevallier, a Mécènes du
Sud contém duas dimensões importantes. A primeira
é a da humildade dos participantes diante
da experiência. “As empresas se comprometem
discretamente, porque não é o nome delas que
aparece, e sim o da Mécènes du Sud”. Além
disso, a coalizão permite que empresas de menor
porte também participem do financiamento
62
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
de projetos culturais, algo que, individualmente,
não faria muito sentido, porque o volume a ser
aportado por cada uma delas talvez não fosse
suficiente para dar sustentabilidade a um projeto.
Entretanto, em grupo, essa sustentabilidade
se torna viável.
No Brasil, de modo geral, quem financia
a cultura via leis de incentivo
são empresas de grande porte.
Raras são as pequenas e médias
que se aventuram por
este terreno, em parte
por desconhecerem
como funcionam
os mecanismos de
renúncia fiscal. Nas
mãos das grandes empresas
o que ocorre é, de um lado,
uma corrida dos empreendedores
culturais pelos recursos privados; de
outro, uma corrida dos financiadores por
empreendimentos que sejam capazes de
lhes dar o máximo de visibilidade. Isto quando
não são as próprias empresas que criam suas
fundações e para estas instituições direcionam
os recursos da renúncia fiscal a que têm direito.
Até onde se sabe, não há no Brasil iniciativa
semelhante ao da Mécènes du Sud, em que
várias empresas se unem para apoiar projetos
culturais. A informação foi confirmada por Luciana
Adão, coordenadora de Patrocínios Culturais
Incentivados da Oi Futuro, instituição por meio
da qual a operadora atua em projetos de responsabilidade
social. Segundo ela, o que há
até agora são discussões embrionárias entre
várias empresas, mas nada ainda formalizado.
Segundo Luciana Adão, para o acerto
das parcerias, há, nas estruturas de compliance
e governança das empresas, barreiras que
impedem que esse processo avance de forma
mais ágil. Porém, a despeito de tais entraves,
ela considera inevitável que tais coalizões venham
a acontecer no futuro. “É um movimento
sem volta”, afirma Luciana Adão, que prevê um
prazo de três a cinco anos para a materialização
das primeiras ações conjuntas. O grande desafio,
segundo ela é definir como será o modelo de
atuação, especialmente por parte das empresas
que já têm uma política cultural fortemente estruturada.
“Mas o desejo e as conversas estão
acontecendo”, ressalta.
Uso de dados
Ainda que Brasil e França estejam distantes
quanto à proposta de coalizão para o financiamento
de projetos culturais, o uso de dados
para a valoração do impacto deste tipo de iniciativa
é algo já comum aos dois países. Na França,
um exemplo da busca por este tipo de informação
veio de um dos mais tradicionais times
de futebol daquele país, o Football Club Nantes,
que tem muitos torcedores no Brasil
O clube pretendia implantar um museu
aberto à visitação pública para abrigar seu
acervo. Para dimensionar o espaço, contratou
uma pesquisa com quatro públicos:
torcedores, habitantes de
Nantes, empresas e turistas. O
projeto inicial era construir
um museu com capacidade
para receber cerca
de 120 mil torcedores por
ano. Porém, o que a pesquisa
revelou foi uma demanda por um
número bem menor – de 56 mil visitantes
por ano.
Para Olivier Allouard, diretor do Instituto
Gace, instituição francesa que coordenou
a pesquisa, iniciativas deste tipo deveriam ser
todas precedidas de um estudo de demanda. E
só após a realização desse estudo é que se partiria
para a elaboração do projeto em si. Como
isso normalmente não ocorre, o mais comum é
63
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
David Gallard
Festival de música Dub Camp, um dos muitos cujo impacto econômico foi estudado por Olivier Allouard
os idealizadores dos projetos serem obrigados a
fazer o caminho inverso, contratando a pesquisa
para saber por que o lugar não tem a frequência
esperada. Só aí eles constatam o erro que poderia
ter sido evitado.
Olivier Allouard acompanha o setor de
cultura há mais de 15 anos, realizando pesquisas
quantitativas e qualitativas para a mensuração
de impactos econômicos gerados por eventos
e espaços culturais. Ele afirma que, hoje, a
indústria cultural francesa está cada vez mais
exigente em relação à adoção de ferramentas
que permitam mensurar o impacto econômico
das iniciativas do setor.
Um dos estudos mais recentes que fez
visou medir o impacto econômico de nove festivais
de música realizados na França. Trata-se
de um tipo de estudo muito importante porque
tem como referência um território delimitado. As
ferramentas utilizadas pelo Instituto Gece visam
identificar que tipos de despesa cada um dos
entrevistados pretendia realizar naquele território
em decorrência do evento, chegando a minúcias,
como a separação da despesa feita por um
participante que já reside no local da de alguém
que vem de fora.
Na lógica das pesquisas que Olivier Allouard
realiza, o dinheiro gasto por uma pessoa que
já reside no local não pode ser incluído na conta
dos ganhos propiciados pelo evento. “Um euro
que já está no território e apenas passa de uma
pessoa para outra não gera valor agregado”, explica
Olivier. Para ele, tais pesquisas são estratégicas
para o setor cultural porque ajudam na
formulação de eventos que tenham um real impacto
econômico sobre sua área de influência.
“Pesquisas são importantes por mostrar onde é
possível progredir”, afirma Olivier Allouard.
Impacto econômico
No Brasil, são poucos os editais de cultura
que pedem aos proponentes uma análise do
impacto econômico dos projetos a serem apresentados.
Normalmente, o que se pede é, no
máximo, uma previsão do número de pessoas
64
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
a serem impactadas. “Nós usamos muito mal os
dados”, afirma a economista e administradora
pública Ana Carla Fonseca, diretora da empresa
Garimpo de Soluções, que desenvolveu uma
plataform (www.calculadoracultural.com.br) que
permite ao autor do projeto cultural mensurar, on
-line, seu impacto econômico.
De acordo com Ana Carla, que é também
autora do livro Economia da Cultura e Desenvolvimento
Sustentável (Prêmio Jabuti 2007),
os estudos de impacto econômico usualmente
trabalham com três ordens de impactos: direto,
indireto e induzido. Embora haja diferentes definições
e diversos métodos de análise, o impacto
econômico direto, como o nome sugere, é, segundo
ela, dado pelo aporte direto de recursos,
por exemplo, pelas despesas envolvidas na realização
de uma festa tradicional.
O impacto econômico indireto corresponde
ao efeito dessas despesas sobre outros setores
econômicos – a cafeteria da cidade investirá
mais em comunicação ou na contratação de um
barista para atrair o público da festa. O impacto
econômico induzido é um efeito associado à
mudança de renda – o proprietário da empresa
de som terá um acréscimo em sua renda, o que
lhe permitirá comprar um novo furgão.
A calculadora cultural permite que sejam
feitos todos estes cálculos. O aplicativo está
disponível para qualquer produtor que quiser
compreender a lógica do impacto econômico
de seu projeto. Para Ana Carla, é importante
que o produtor faça esse cálculo para que possa,
a partir daí, entender-se como parte de um
encadeamento ainda maior que, por sua vez,
irá municiá-lo de argumentos para que possa
ser mais assertivo no momento de fazer a defesa
de seu projeto.
“É importante que o produtor entenda que
ele não está com o chapéu na mão pedindo pelo
amor de deus para que abracem seu projeto. E
sim, que seu projeto é importante porque irá ge-
Ana Carla Fonseca afirma que Calculadora Cultural
ajuda empreendedores a valorizar seus projetos
65
Garimpo de Soluções/Divulgação
O exemplo que vem de fora
Culturas nº 3 março 2022
rar mais recursos, dinamizar a cadeia de hospedagem,
de alimentação, de lembrancinhas,
além de melhorar a própria imagem da cidade”,
ressalta a diretora da Garimpo de Soluções.
Momento delicado
Para o economista Leandro Valiati, o Brasil
vive um momento particularmente delicado
de perda da capacidade de financiamento da
cultura, processo iniciado, segundo ele, há dez
anos e que se agravou pela pandemia e pela
estratégia do atual governo de, deliberadamente,
fragilizar as instituições federais do setor.
Para reverter a situação, ele defende a
refundação do sistema brasileiro de cultura,
processo que se daria a partir de três pilares.
O primeiro seria o do espraiamento desse sistema,
de tal forma que, tanto a União quanto
os estados e os municípios, atuariam para recompor
o funcionamento do sistema brasileiro
de financiamento à cultura, só que não mais
de cima para baixo, mas no sentido contrário.
O segundo mecanismo seria, no entender de
Leandro Valiati, o da democratização do acesso
tanto dos consumidores de cultura quanto
dos produtores. Para ele, o atual modelo é seletivo,
pois funciona para quem é popular, mas
não funciona para a maior parte dos produtos
que estão fragilizados por causa da pandemia,
como os da cultura popular tradicional.
O terceiro seria a refundação dos sistemas
de financiamento propriamente ditos.
“Estes mecanismos precisam chegar onde
não estão chegando, primeiro, porque não
existe dinheiro; segundo, porque mesmo que
exista dinheiro, dentro da atual estrutura, esse
dinheiro não vai chegar para gerar diversidade”,
afirma Leandro Valiati, que trabalha com
pesquisas acadêmicas sobre cultura para instituições
do Reino Unido e Ministério da Cultura
da França. Sobre o Brasil, ele afirma que
a situação é muito delicada. “Infelizmente, a
situação é tão tensa que quando se discute o
sistema de financiamento, fico até constrangido
de criticar o que existe e não funciona,
porque pode-se perder o que não funciona e
ficar com o nada”.
66
A arte das ruas
Culturas nº 3 março 2022
Les Mur de Rennes/Reprodução Twitter
Na cidade de Rennes, ao
Noroeste da França, a street art
valorizou as ruas e tornou-se
atração turística na região
A arte das ruas
Além do incentivo ao uso de dados na mensuração
do impacto de projetos culturais no terreno
da arte – ainda incipiente no Brasil – brasileiros
e franceses se fazem presentes também na arte
das ruas, que colore muros e empenas (fachadas
cegas de edifícios) em várias cidades dos dois
países. Na França, a street art (“arte da rua”, na
tradução da expressão de origem inglesa), como
é conhecido internacionalmente este tipo de manifestação
artística, nasceu anonimamente, muito
como forma de protesto.
Em Belo Horizonte, o projeto Cura é um
exemplo clássico da trajetória da arte nas ruas.
Na capital mineira, desde 2013, grandes empenas
de prédios localizados na região central da cidade
vêm ganhando um colorido especial em uma iniciativa
que é respaldada pelas leis de incentivo e
conta com diversos patrocinadores privados.
67
A arte das ruas
Culturas nº 3 março 2022
Na França, os primórdios da street art remontam
ao icônico ano de 1968, quando o país foi varrido
por um festival de protestos contra o poder estabelecido,
vindos dos estudantes de universidades parisienses.
Suas palavras de ordem eram escritas nos
muros com tinta spray preta. Duas décadas depois,
o preto e as palavras de ordem foram substituídos
por desenhos e cores, materializando o que ficaria
conhecido, anos depois, como street art.
Nesta nova versão, o protesto não era mais o
ponto central. “O que os artistas queriam era apenas
veicular sua imagem, queriam que seu trabalho fosse
visto em todo lugar”, afirma Patrice Daniello, presidente
da associação Les Mur de Rennes, que reúne
os artistas de rua da cidade de Rennes, ao Noroeste
da França, e também pesquisador dos movimentos
da street art francesa. Segundo ele, a ideia dos precursores
era transformar as cidades francesas em
um museu a céu aberto, sem maiores pretensões
quanto a ganhar dinheiro com este tipo de arte.
Nos anos de 1980 e 1990, foi assim. “Estes
artistas continuaram fazendo coisas, mas não tinham
visibilidade e o mercado da arte não se interessava
por eles”, afirma Patrice Daniello. “A ideia era de só
serem vistos e, talvez, observados pelas galerias”.
Porém, com a entrada em cena da internet, ocorreu
uma mudança na forma como os franceses viam o
estilo da street art, que passou a ganhar muitos admiradores
ao redor do planeta, agora não mais nas
ruas, mas nas telas dos computadores.
Kadu Passos
Em Belo Horizonte, o Projeto Cura
levou para a praça Raul Soares a
arte de Kassia Rare Karaja e do
coletivo indígena Mahku
68
A
arte
arte
das
das
ruas
ruas
Culturas nº 3 março 2022
Dos computadores para as galerias de arte e
museus, foi um pulo. “Agora, é um movimento mundial
que, pela primeira vez, ganha as galerias. Até
então, era uma elite que ia descendo. Hoje é o contrário:
é a rua que sobe”, afirma Patrice Daniello, que
considera como ponto de inflexão do movimento os
últimos dez anos. O que está ocorrendo hoje, segundo
ele, é a institucionalização desse tipo de arte, com
muitas galerias querendo dar visibilidade aos artistas
de rua e um número cada vez maior de cidades realizando
seus festivais.
Na França, a despeito da ascensão do estilo
da arte de rua a ambientes mais sofisticados que
não somente os muros e empenas de prédios, permanece
como algo ainda não resolvido o modelo de
remuneração do artista que deseja viver apenas de
sua arte. O problema, segundo Patrice Daniello, é
que quando as pessoas veem uma pintura na rua,
elas acham normal que aquele trabalho não seja
remunerado, esquecendo-se que o artista também
precisa viver, ter uma casa, ter as mesmas aspirações
das outras pessoas.
O resultado disso é que muitas empresas
francesas têm patrocinado trabalhos de artistas de
rua, mas, como contrapartida, querem que a imagem
a ser pintada veicule uma mensagem que seja
de seu interesse. “Há países em que as pessoas
arriscam a vida para fazer desenhos no muro. Mas
há também o lado moda, que evoluiu, e também há
muitas empresas que querem ter grandes pinturas
nas paredes de suas sedes”, afirma Patrice Daniello.
Tal dualidade, de acordo com ele, coloca a street art
em um momento decisivo hoje na França. Caso não
se encontre um ponto de equilíbrio entre a arte e o
desejo dos patrocinadores, é possível, a seu ver, que
este tipo de manifestação perca sua essência.
Projeto Cura
Em Belo Horizonte, a trajetória da street art
é semelhante à da França. Por aqui, há tempos,
ela deixou de ser confundida com a pichação e já
ganhou status de manifestação artística, inclusive
com o apoio das leis de incentivo e de patrocinadores.
Em Belo Horizonte, a galeria de arte a céu
aberto pode ser vista, por exemplo, por quem passa
pela rua Sapucaí, ao lado da estação de metrô,
no centro da capital. De lá, pode-se avistar inúmeros
prédios grafitados, incluindo os murais mais altos
pintados por mulheres da América Latina.
A Sapucaí é considerada o primeiro mirante
de arte urbana do mundo. Lá, para facilitar a observação,
a prefeitura de Belo Horizonte instalou lunetas.
Por meio delas, o observador pode apreciar a
visão dos detalhes de cada obra. Na edição 2019
do Cura, no bairro Lagoinha, a cidade ganhou outro
mirante, agora na rua Diamantina, de onde é
possível apreciar outras obras de arte pública.
O projeto nasceu em 2017, a partir do encontro
de três mulheres – Priscila Amoni, Juliana
Flores e Janaína Macruz –, que já trabalhavam
com arte de rua. Juliana Flores conta que quando
o grupo foi formado, havia a intenção de que a capital
mineira servisse de cenário para algo que a
diferenciasse de outras cidades. “Queríamos fazer
algo que não fosse o mesmo”, afirma Juliana. Foi aí
que, segundo ela, surgiu a ideia de pintar somente
empenas de prédios que pudessem ser vistos por
quem estava na rua Sapucaí. “A ideia era fomentar
a rua como destino turístico”, afirma Juliana Flores.
O objetivo a seu ver, foi plenamente atingido, tendo
em vista o grande número de bares e restaurantes
abertos a partir de 2018 na rua Sapucaí.
Até agora, já foram pintadas 20 empenas
de prédios e dez muros. Ano passado, o projeto
se diversificou e passou a incluir outras manifestações
de arte de rua que não apenas a pintura de
edifícios e muros. Um deles foi a instalação “Entidades”,
uma escultura inflável formada por duas
cobras de 17 metros de comprimento e 1,5 metro
de diâmetro cada que ficou em exibição durante 30
dias nos arcos do Viaduto Santa Tereza.
69
A arte das ruas
Culturas nº 3 março 2022
A obra foi criada
por Jaider Esbell, artista
e curador indígena
da etnia Makuxi. Ele
artistas obedece a algumas
regras. A primeira
é que, em cada
nasceu em Normandia,
temporada, metade
estado de Rorai-
ma, e viveu até os 18
anos onde é hoje a
terra indígena Raposa,
na Serra do Sol.
A outra obra que não
é uma pintura de empena
de prédio, pode
ser vista no asfalto de
uma das duas pistas
de contorno da praça
seja de mulheres, que,
por sua vez, ficam
sempre com as maiores
empenas. O objetivo,
segundo Juliana
Flores, é mostrar que,
por mais que a pintura
seja um trabalho que
envolva um grande esforço
físico, trata-se de
algo que as mulheres
Raul Soares. Trata-se
também conseguem
de uma cobra estilizada
produzida por Shipibo
Sadith Silvano e
realizar. A outra regra
é que o artista anfitrião
seja sempre de Belo
Ronin Koshik, artistas
Horizonte. Os demais
do povo peruano Shipibo.
A opção pela arte
indígena faz parte, segundo
Juliana Flores,
da ideia de que o projeto
deve dialogar com
os temas contemporâneos.
“Na pandemia,
era urgente ouvir a
voz dos povos indígenas”,
afirmou. Patrice Daniello, na França; e Juliana Flores, em Belo
são escolhidos
pelo conselho curador,
a partir da inscrição
dos interessados
nos editais.
A escolha das
empenas envolve uma
negociação com os
moradores dos edifícios
a partir de alguns
critérios. Um deles é o
No circuito da
Horizonte: em defesa da arte das ruas
do sigilo quanto à obra
praça Raul Soares
a ser pintada. A outra é
também foram pintadas três empenas. A do edifício
Levy foi pintada por Kassia Rare Karaja e pelo coletivo
indígena Mahku. A do edifício Paula Ferreira
foi feita pelo artista mineiro Ed-Mun. A terceira empena
foi ocupada por Mag Magrela, selecionada
na convocatória pública entre 327 inscritos de 21
estados brasileiros.
a do não pagamento pela cessão do espaço. O objetivo,
segundo Juliana Flores, é evitar o surgimento
de um “mercado de empenas”, uma distorção
que Patrice Daniello revelou já estar ocorrendo na
França. “Não alugamos empenas”, afirma Juliana
Flores. Quando isso ocorrer, a arte urbana caminhará,
segundo ela, para perder sua relevância.
70
Le Mur de Rennes/Divulgação
Thiago Santos
A escolha dos
O que o patrocínio
pode oferecer?
Culturas nº 3 março 2022
Prefeitura de Marselha/Divulgação/Facebook
Marselha, no Sul da França, tem 2.600 anos e é a mais antiga cidade francesa. Desde 2003, é a sede
da Mécènes du Sud, uma coalizão de empresas cujo objetivo é o financiamento de projetos culturais
Artigo: Bénédicte Chevallier
Desde 2010, o número de empresas patrocinadoras
não para de aumentar na França. Em
média, 10 mil novas empresas se tornam patrocinadoras
a cada ano. (1)
Mas o que é patrocínio? Um pedido de ajuda
para realizar um projeto ou um apelo à generosidade
para financiar um novo empreendimento?
Tirar proveito do dinheiro dos ricos para fazer o
que quiser, como quiser, ou aproveitar a oportunidade
de apresentar o próprio meio de convívio aos
outros enquanto descobre um ambiente novo?
Atender à imposição das comunidades para diversificar
seus financiamentos, ou aprender com
novos encontros?
O fato de uma lei incentivar empresas a
participar do interesse geral não é suficiente para
explicar por que elas estão abandonando a lógica
de ganho e lucratividade em favor de uma lógica
de gasto por meio de doações, sejam elas de dinheiro,
de bens e materiais ou de competências.
Porque o que a lei exige, além disso, é um desinteresse
que se traduz sobretudo na disparidade das
partes envolvidas.
O que torna esse sistema tão interessante
é a grande capacidade que as doações têm de gerar
vínculos ativando duas polaridades: a de saber
doar e a de saber receber. O coletivo Mécènes du
Sud é um exemplo disso.
Uma aventura coletiva
Em 1874, a Academia de Ciências enviou
71
O que o patrocínio pode oferecer?
Culturas nº 3 março 2022
o engenheiro hidrográfico Anatole Bouquet de magia de sua região por meio do apoio a projetos
La Gyre à Nova Zelândia para observar a passagem
de Vênus. A expedição partiu de Marselha. formulá-lo coletivamente, tinham a esperança de
artísticos, despertaram a própria generosidade. Ao
Campbell, a ilha onde a tripulação desembarcou colher um capital de sentido. Algo que, precioso
e se instalou, é o nome da companhia de navegação
australiana que ancorou no local pela ção, a cooperação e a inteligência coletiva.
para eles, incentivasse a observação, a introspec-
primeira vez em 1810. No imaginário coletivo,
Essa aventura coletiva tem um rumo, porém
esse nome evoca mais as serigrafias de Warhol seu destino é incerto. Ela gera valor, um valor intangível:
o da criação e do conhecimento. Produ-
que santificam a lata de sopa mais famosa dos
Estados Unidos.
A evocação de uma
tripulação que aguarda a
aparição de Vênus remete
à imagem de uma deusa
nua de beleza insolente
emergindo das ondas. Mas
a Vênus que era o centro
das atenções de todas as
grandes nações da época
cruzaria o céu entre a Terra
e o Sol, um fenômeno que
à época foi aguardado por
105 anos e que permitiria Da esquerda para a direita, os diretores da Mécènes du Sud: Pierre Allary,
Tatiana de Williencourt, Didier Amphoux, Isabelle Carta e Laure Sarda
medir a distância entre os
dois. Infelizmente, a aparição
foi comprometida por uma nebulosidade zi-lo implica ir em busca de sentido, concordar em
que prejudicou a observação.
buscar, e não exigir encontrar. É uma experiência
No entanto, esse desafio científico (no qual o íntima que o coletivo permite acompanhar.
surgimento da fotografia desempenhou mais tarde
um papel importante) hoje parece insignificante. A A criação da Mécènes du Sud
competição internacional resultante dele, que colocou
em jogo o orgulho dos Estados, ilustra como a
O coletivo Mécènes du Sud nasceu em
confiança na incerteza do resultado permite a 2003 em Aix-Marselha, a partir do desejo de empresas
unidas por uma perspectiva em comum
ousadia e a tomada de riscos. É essa incerteza
que proporciona à arte, senão sua para sua região. Ao apoiar projetos de arte contemporânea,
elas colaboram para sua atrativida-
fortuna, pelo menos sua vitalidade.
Em 2003, em Marselha, imaginou-se
uma forma de aventura ligada
Na mesma década, foi criada uma linha de
de e influência.
à busca pela arte. O questionamento feito TGV (trem de alta velocidade) entre Paris e Marselha.
Como resultado, o setor imobiliário passou a
por Duchamp – “É possível fazer obras que não
sejam arte?” – havia, muito antes, substituído o da crescer, e muitos artistas se mudaram para Berlim,
beleza. As empresas, cujo horizonte era retomar a por motivos financeiros. Essa fuga de talentos agra-
72
François Moura
O que o patrocínio pode oferecer?
Culturas nº 3 março 2022
vou a imagem de uma cidade com má reputação,
manchada por acertos de contas, má gestão e
batalhas políticas infrutíferas. A Câmara de Comércio
e Indústria (CCI) vem mobilizando empresas
para valorizar Marselha, mal classificada
em termos de atratividade, em relação a cidades
europeias com as mesmas dimensões. O mundo
econômico está se conscientizando da alavancagem
cultural e esportiva.
As oito empresas fundadoras têm pouco
em comum, além da região de atuação e da forte
Corinne, Gilles, Ber et Georges é uma série documental em quatro episódios
que se passa em Marselha e conta a história de um grupo de amigos, de 60 a 80
anos de idade, para quem a aposentadoria não é uma opção
ligação que têm com ela. São diferentes graus de
popularidade, tamanhos e setores de atividade. No
entanto, todos os seus líderes têm uma visão extraeconômica
de seu papel.
▪ Ricard: é uma distribuidora de bebidas alcoólicas
mundialmente famosa. Seu fundador, Paul
Ricard, engajou a empresa em ações filantrópicas
que marcarão sua história para sempre. A empresa
Pernod-Ricard é muito influente no cenário da arte
contemporânea.
▪ Pébéo: é uma fabricante de tintas para belas-artes
e passatempos criativos, muito conhecida
entre artistas plásticos de todo o mundo.
▪ Courtage de France Assurance: é administrada
por uma mulher apaixonada por arte.
▪ Société Marseillaise de Crédit: é um banco
“da região”
▪ Féraud-CFM: é, entre outras coisas, um
grupo de empresas de reabastecimento de navios
que está se apaixonando pela arte.
▪ Vacances Bleues: é uma empresa de turismo
que reuniu uma
coleção de obras de jovens
artistas para expor
em seus escritórios, hotéis
e resorts.
▪ HighCo: é uma
empresa de marketing cada
vez mais bem-sucedida.
▪ Olympique de
Marselha: é um dos maiores
símbolos da região.
Trata-se, portanto,
de uma iniciativa privada
de líderes empresariais
que se reúnem
em uma associação sem
estabelecer um modelo.
O projeto assumiu imediatamente
uma forma
coletiva e afirmou a sua
independência, sobretudo
por sua autonomia financeira. Na época, quase
não se falava em fundações corporativas, e os
fundos de doações ainda não existiam. A escolha
da forma associativa (Lei de 1.901) é a mais simples
e mais livre para seus membros, e permite
uma boa governança.
A maturidade do projeto permitiu que, em
2017, o modelo fosse transmitido aos agentes econômicos
da região de Montpellier. Assim, há quatro
anos, dois coletivos de agentes econômicos par-
nne, Gilles, Ber et Georges/Captura de tela
73
O que o patrocínio pode oferecer?
tilham um desejo de enaltecer sua região por
meio do apoio à arte contemporânea. (2)
Princípio do patrocínio
Atualmente, a Mécènes du Sud coproduz,
ano a ano, obras, projetos e eventos, e se define
como uma interface de diálogo entre a cena
artística e o mundo econômico em suas regiões
de influência.
Regras do jogo coletivo
Desde o início, a associação estabelece o
princípio da igualdade dos membros: qualquer que
seja o nível de contribuição, definido pelo Conselho
de Administração e relacionado à sua força de trabalho
regional, a “experiência” de todos é idêntica.
Não se trata, de forma alguma, de “compensação”,
como é habitual no patrocínio tradicional. A ênfase
é colocada no desinteresse do doador, sendo o “benefício”
(3) transferido para a região de atuação de
sua empresa.
Desde o início, os integrantes demonstram
grande humildade diante da expertise necessária
para a escolha dos projetos artísticos. Essa decisão
fica a cargo de um comitê de profissionais qualifica-
Culturas nº 3 março 2022
dos que atuarão de forma independente.
Atualmente, o comitê artístico da Mécènes
du Sud de Aix-Marselha, cujos membros
possuem mandato de três anos, reúne:
▪ Uma artista: Anne Laure Sacriste.
▪ Um colecionador baseado nas Ilhas Maurício,
no Oceano Índico: Salim Currimjee.
▪ Uma diretora de instituição cultural: Keren
Detton, diretora do Fundo Regional de Arte Contemporânea
Grand-Large (Dunquerque).
▪ Uma diretora de fundação privada com
sede na Armênia: Ida Soulard.
▪ Uma curadora de museu: Anne Dressen,
do Museu de Arte Moderna de Paris.
O comitê se reúne em sessão anual e não é
remunerado.
Tipologia de ações
A Mécènes du Sud desenvolve ações voltadas
para três dimensões: dos artistas, dos membros
e da região de atuação.
Apoio à criação artística
As ações voltadas aos artistas abrangem o
apoio à produção de novas obras, à edição, resi-
Stéphane Barbier Bouvet e Pauline Ghersi
Palama, uma cabana vazia em ruínas em um dos pontos mais altos de Marselha, foi restaurada segundo suas
características originais, integrando conhecimentos e materiais contemporâneos sob uma perspectiva artística
74
O que o patrocínio pode oferecer?
Culturas nº 3 março 2022
dências artísticas e divulgação. Uma chamada
para projetos permite selecionar cinco iniciativas
vencedoras, que recebem apoio financeiro
para a realização de sua obra. O valor desse
patrocínio varia de acordo com as necessidades
de cada um. Os candidatos devem comprovar
um vínculo com a região de Aix/Marselha/Mediterrâneo,
em sua definição mais ampla: ser da
região, morar na região, desenvolver um projeto
na região, beneficiar-se de uma residência passada
ou futura, ter tido seu projeto exposto, ter
atuado ou estudado na região. Enfim, devem
possuir vínculos profissionais.
O patrocínio concedido envolve os artistas
numa relação que permite que os membros do
Mécènes du Sud apreciem os projetos e compreendam
seu desenvolvimento. Essa proximidade
é também a garantia de um acompanhamento
benéfico aos projetos, o que implica que os
vencedores vão apresentar seus projetos a um
público leigo, principalmente durante um evento
denominado “Golpe do Amor” (“Coup de Cœur”,
na língua original francesa), que reúne patrocinadores
e profissionais. Esse patrocínio representa
mais de 40 mil euros por ano. Alguns exemplos
de projetos vencedores:
Gethan&myles (Marselha) 2018
Lazare/The Space Between How Things Are
and How We Want Them to Be (O espaço entre como
as coisas são e como queremos que elas sejam)
Este projeto de edição é uma extensão do
trabalho apresentado na exposição Or, no museu
Mucem em Marselha (2018). Nas vitrines,
foram exibidas joias, com sua imagem fantasmagórica
em forma de cianótipos, bem como
as histórias íntimas de seus donos. As joias foram
adquiridas por gethan&myles no leilão do
Crédit Municipal de Marselha, na esperança de
devolver cada uma delas ao seu dono no final
da exposição. A devolução foi condicionada por
uma forma de troca: a de uma história que evoca
como eles se tornaram donos das joias (presente,
herança, tradição) e quais imprevistos,
precauções, contratempos, distanciamentos os
levaram a penhorá-las.
Os critérios estéticos clássicos não prevaleceram
na compra feita pelos artistas: os
objetos foram vendidos sem qualquer indicação
além do seu peso. Assim, as histórias dos
donos abordavam o cotidiano e suas adversidades.
Lazare (…), obra efêmera que evoca
instabilidade, migrações e desaparecimentos,
estava, por natureza, fadada a literalmente
decompor-se por dispersão. A devolução das
joias, em andamento, é uma extensão invisível
para o público, mas cujo significado simbólico
justifica seu acompanhamento. É o que será
documentado nessa análise expandida, ao explorar
seus ecos através das questões e emoções
que ela suscita.
Stéphane Barbier Bouvet (Bruxelas) 2019
Design as we speak (Projeto em tempo real)
Palama é uma cabana vazia em ruínas,
isolada em um dos pontos mais altos de Marselha.
Construída no século XIX, a estrutura foi
projetada de acordo com princípios bioclimáticos
simples: o uso de recursos naturais da região
em equilíbrio com as condições climáticas
locais. A metodologia de trabalho de Stéphane
Barbier Bouvet é clara: ele restaura o imóvel a
fim de encontrar suas características originais e,
ao mesmo tempo, integra conhecimentos e materiais
contemporâneos. Ao realizar essa tarefa
simples e colocá-la sob uma perspectiva artística,
o artista revela uma prática de entre-lugar,
em que, se os objetos produzidos permanecem
funcionais e respondem uns aos outros em um
ambiente, eles reproduzem uma ambiguidade,
ou melhor, um equilíbrio entre sua funcionalidade
anunciada e o caráter escultural que o cenário
pode atribuir a eles, levantando a questão de
sua exibição e de sua ecologia.
75
O que o patrocínio pode oferecer?
Pauline Ghersi 2021
Corinne, Gilles, Ber et Georges
Este projeto é uma série documental em
quatro episódios que se passa em Marselha. Pauline
Ghersi acompanha um grupo de amigos, de 60
a 80 anos de idade, para quem a aposentadoria
não é uma opção. Essas pessoas passam o tempo
nos terraços dos cafés, conversando em bancos
de parques ou tomando sol na praia. Eles se encontram
sem hora marcada, mas obedecem a uma
lógica interna implícita: misturam-se com a cidade,
sempre presentes, sempre vigilantes. O grupo se
expressa à margem da economia convencional de
uma cidade onde os fluxos informais e tráfegos de
todos os tipos são parte constituinte da energia local.
Esses encontros são povoados por contos orais
que refletem a história e o retrato de uma cidade em
transformação, às portas da gentrificação. A série,
feita a partir de encontros e acasos, proporciona ao
documentário uma relação íntima e subjetiva.
Patrocinadores instruídos
Os ateliês “Quel Amour!”
Durante a
As ações voltadas
aos membros
temporada do evento
“Quel Amour!”,
priorizam a iniciação
o festival cultural
à arte, o encontro
com os artistas patrocinados
e a compreensão
de suas
MP2018 e a Mécènes
du Sud quiseram
dar continuidade
à dinâmica de
linhas de pesquisa.
residências artísticas
Todos os anos, são
em empresas,
propostas viagens
que foi iniciada em
em caráter de estudo,
2007 pelo nosso
para enriquecer
coletivo e amplia-
Exposição “Memórias de fogo” transformou resíduos de incêndio
em matéria-prima para a constituição de uma paleta de cores
e inspirar o projeto
da para a Marseille
da Mécènes du Sud.
-Provence Capital
Escolhemos um destino no exterior, palco de um
evento com uma estrutura capaz de agitar uma
cena artística. Podem ser feiras (Art Basel, Frieze
London, ARCO Lisboa, Art Bruxelles, 1-54 Marrakech,
etc.), bienais (Veneza, Helsinque, Berlim, Mani-
Europeia da Cultura (MP2013) (4) sob o nome
“Ateliers de l‘Euroméditerranée”.
Cada “Atelier Quel Amour!” reúne um artista
nacional ou internacional, uma empresa e um
agente cultural, que acompanha a divulgação da
Culturas nº 3 março 2022
festa), ou exposições, como a Documenta.
Também são oferecidas excursões para destinos
nacionais com o mesmo conceito. Uma delas
tem como destino a própria Marselha, graças a seu
“retorno à arte contemporânea”. Combinamos visitas
a museus, espaços dirigidos por artistas, coleções
particulares, fundações privadas, ateliês de
artistas, etc., todas estruturadas com acompanhamento
profissional. Todo ano, a programação inclui
uma série de conferências de arte.
Patrocinadores instrutores
As ações voltadas para a região assumem a
forma de coproduções de grandes exposições com
um parceiro cultural, de apoio a projetos estruturantes
para o setor de artes visuais, ou de parcerias
em projetos relacionados a grandes eventos. Esse
patrocínio representa de 40 mil a 100 mil euros/ano,
dependendo do ano.
76
Mécènes du Sud
O que o patrocínio pode oferecer?
obra original, criada após imersão num contexto
econômico específico.
Como cofundador da associação MPCulture,
(5) e familiarizado com residências corporativas, a
Mécènes du Sud seguiu sua inclinação natural para
vínculos de arte e negócios, tornando-se parceiro
de projetos dos “Ateliers Quel Amour!”. Arrecadamos
100 mil euros, graças à contribuição adicional
de oito dos nossos membros. Como coprodutor
desse conjunto de residências, a Mécènes du Sud
inspirou parcerias entre artistas e empresas, e impulsionou
sete dos nove projetos para empresas
de seu coletivo, as quais os acolheram e cofinanciaram.
Não teria sido possível reunir essa sinfonia
de projetos apenas com um único apoio financeiro.
Acompanhamos as residências, participamos do
comitê gestor e editamos a história que mantém
viva a memória.
Residência “Quel Amour!”
“Mémoires de feu” [Memórias de fogo] de
Christophe Bergaguer e Marie Péjus na A2C Services
Culturas nº 3 março 2022
A questão do cuidado tem permitido a convergência
da pesquisa artística com a atividade da
empresa. Ela apareceu muito rapidamente como
uma forma de terapia aplicada aos objetos e aos
edifícios danificados e deteriorados. Enquanto aos
nossos olhos o seu conhecimento só assume a forma
de intervenções materiais por meio de restaurações
específicas, trata-se também de resiliência e,
portanto, de sentimentos. Prova disso, em relação
aos danos materiais, é que a escolha dos objetos a
serem restaurados não depende (ou não depende
apenas) do seu valor financeiro. Foi assim que Berdaguer
e Péjus, que constantemente abordam a
questão do trauma por meio de suas obras, encontraram
um campo de pesquisa. Os locais queimados
foram o ponto de partida do projeto “Memórias
de fogo”.
Os artistas organizaram uma coleção de
materiais – esponjas encharcadas de fuligem, e
um registro sistemático de informações relacionadas
aos incêndios. Essa etapa ultrapassou o
escopo das atividades da A2C, que convocou a
sua rede de colaboradores para expandir a co-
Jérôme Cabanel
A intervenção de Flore Saunois e Tzu-Chun Ku aconteceu em um túnel de uma avenida que liga bairros ao
sul de Marselha e facilita o acesso ao litoral. É um trabalho imbuído de delicadeza que produz formas por
vezes tênues e contrárias ao imaginário veiculado pelas obras públicas
77
O que o patrocínio pode oferecer?
leta para a região Norte e Aquitânia.
Esses resíduos voláteis, de alguns gramas
de fuligem por incêndio, foram extraídos
de objetos na A2C Services. Em seguida, foram
utilizados como matéria-prima para constituir
uma paleta de cores, graças à colaboração técnica
da empresa Pébéo. As “Memórias de fogo”,
elaboradas com fuligem transformada em tinta,
evocam formalmente esses incêndios. Uma
fumaça parece ter sido capturada pelo papel.
A mudança de tons, mais acentuada na parte
inferior, parece uma tentativa de conjuração.
Os artistas estenderam a pesquisa por meio de
entrevistas com os funcionários presentes nos
incêndios. Um livro de artista nascerá dessa exploração
dos sentimentos
que não são os das próprias
vítimas, mas daqueles
que restauram o que
está arruinado.
Local: 29 de junho a
21 de outubro de 2018, espaço
Friche la Belle de Mai,
por Art Plus
Esta residência recebeu
apoio do Ministério
da Cultura.
A A2C Services é uma empresa de limpeza
específica que oferece soluções de tratamento,
combinando conhecimentos técnicos e logísticos
em universos tão diferentes como o ambiente urbano,
locais de desastres, arquivos, residências,
iates de luxo.
A grande exposição
Ao estreitar a sua atuação na arte contemporânea
e decidir dedicar uma parte significativa
do seu orçamento de patrocínio a uma exposição,
o coletivo Mécènes du Sud tinha como
objetivo, em 2014, viabilizar projetos expositivos
ambiciosos, ligados à cena artística de Aix-Marselha.
De fato, no ano seguinte ao da “Capital
Culturas nº 3 março 2022
Europeia da Cultura”, o medo do desencanto
era legítimo, tanto do ponto de vista financeiro
como do ponto de vista da dinâmica global. Desde
então, a Mécènes du Sud tem atuado como
principal coprodutor de exposições que, sem
abandonar sua relevância artística, sempre simbolizam
os compromissos artísticos presentes e
passados do coletivo e suas convicções para a
região.
Exemplo de exposição:
Écho système, exposição de Gilles Barbier, 2015
O retorno da arte contemporânea
A Mécènes du Sud de Aix-Marselha retoma
suas atividades no último fim de semana de agosto,
à luz da rede metropolitana de arte contemporânea
federada por uma rede de estruturas (PAC
– Provence Art Contemporain). Três feiras internacionais
inauguradas simultaneamente: a feira
internacional Art-o-rama (patrocinada pelo coletivo
nos primeiros 10 anos), a feira de desenho
contemporâneo com Paréidolie (patrocinada nos
primeiros 5 anos) e a feira Polyptyque, dedicada
à fotografia.
Desde 2013, produzimos uma exposição em
nosso estande na Art-o-rama, convidando o(a) vencedor(a)
de uma das edições anteriores.
Exemplo de estande:
Antoine Espinasseau (vencedor de 2014), exposição
em 2019
78
O que o patrocínio pode oferecer?
Culturas nº 3 março 2022
Jean-Christophe Lett
O apoio à arte contemporânea é uma das prioridades da Mécènes du Sud, que sempre realiza exposições
com artistas que atuam neste campo da arte. Na foto, a exposição de Antoine Espinasseau
Residências em empresas
As residências artísticas em empresas
combinam essas três dimensões e, portanto, representam
uma forma de projeto valorizada pelo
nosso coletivo.
Como acolher, no cotidiano de uma empresa,
um projeto de pesquisa artística quando
os próprios trabalhadores enxergam a arte
como uma anomalia? As residências corporativas
abrem janelas e, através delas, todos terão
a chance de ver de forma diferente algo que lhes
é tão familiar que não chama mais sua atenção.
Esse encontro com a arte coloca a sensibilidade
no centro das trocas. A alteridade surge como
uma riqueza. Mas para um líder, como acolher
um projeto autônomo sem administrá-lo? Como
passar do desejo de um projeto à sua realização,
e como compartilhá-lo? A Mécènes du Sud
de Aix-Marselha vem experimentando a relação
entre arte e negócios há mais de quinze anos.
Residência de jovens artistas
Em 2018 e 2019, a Mécènes du Sud participou
do programa “Travail! Travail!” (“Trabalho!
Trabalho!”), acompanhamento profissional oferecido
a estudantes e jovens formados pela Escola
de Belas Artes de Marselha (ESADMM). Viabilizamos
residências em empresas, colocando em
contato uma empresa e dois artistas selecionados
por um júri.
Flore Saunois e Tzuchun Ku, na GTM
SUD (Vinci), em Marselha
A GTM SUD, subsidiária da Vinci Construction,
participa da construção de uma avenida
urbana multimodal destinada a abrir as fronteiras
dos bairros do sul de Marselha e facilitar o
acesso ao litoral. O canteiro de obras, a cargo
de diferentes empresas, inclui um túnel de um
quilômetro, uma ponte que atravessa um rio, e
dois trechos de avenida urbana de 1,5 km cada.
A GTM SUD está construindo uma avenida co-
79
O que o patrocínio pode oferecer?
berta em um trecho de 2 x 2 vias, colocando em
prática seus diversos ofícios: fundações especiais,
engenharia civil (estruturas de concreto),
terraplenagem, redes, estrada, fachadas arquitetônicas.
Flore Saunois e Tzu-Chun Ku desenvolvem
um trabalho imbuído de delicadeza que
produz formas por vezes tênues, contrárias ao
imaginário veiculado pelas obras públicas.
Saunois fez da linguagem seu material. É
uma autora de textos que extrapolam sentido e
forma. Ela materializa significante e significado em
combinações poéticas que enaltecem o comum.
Inversamente, Tzu-Chun Ku intervém pouco, mas
capta, extrai, sublinha. Em busca da poesia indescritível
do comum, ela purifica situações para focar
nossa atenção nos fenômenos discretos que ela
amplifica. Cada uma à sua maneira, as artistas nos
convidam a despertar nossa sensibilidade no fluxo
trivial de nossas vidas.
Modalidades de apoio
Nós utilizamos recursos financeiros para garantir
o pagamento de taxas e/ou direitos autorais
aos artistas; e o pagamento de um orçamento de
produção, que pode incluir custos de transporte e
estadia, custos de exposição e de edição. Esse
apoio financeiro pode ser complementado por uma
contribuição em forma de bens e competências.
Para os projetos, A Mécènes du Sud oferece
o apoio de dois funcionários responsáveis
pelos coletivos, realizado em forma de acompanhamento
aos artistas durante a produção dos
projetos e, mais amplamente, aos agentes culturais
que desejam estabelecer vínculos com empresas
e patrocinadores.
Culturas nº 3 março 2022
Tais ações são ampliadas pelo engajamento
pessoal dos patrocinadores, que, uma vez iniciados
no processo, e incentivados por um programa de
conferências e viagens, vão além, e apoiam os projetos
das seguintes formas:
▪ Compras de obras de artistas vencedores ou
durante as visitas,
▪ Patrocínio de eventos relacionados à região ou
aos artistas vencedores,
▪ Inauguração de locais temporários e permanentes,
▪ Financiamento de residências em empresas.
Conclusão
A busca pela arte é uma história íntima,
mas sua experiência pode ser compartilhada.
Sem questionamento coletivo, não existe arte,
visto que seu reconhecimento depende de uma
forma de consenso. E se as civilizações morrem,
as obras permanecem, como uma fabulosa prova
do conhecimento e da consciência que os artistas
tinham delas. As obras produzidas hoje trazem as
marcas daquelas que as precederam, e encontramos
nelas a nossa humanidade. Dessa forma,
entre os artistas cuja natureza de produção exclui
qualquer valor de uso e as empresas que desafiam
sua lógica de mercado, paira o espírito de
“quem perde ganha”.
Site
http://www.mecenesdusud.fr
Edições
http://www.mecenesdusud.fr/le-reseau-mecenesdu-sud/nos-editions.htm
Bénédicte Chevallier é a diretora-geral da
Mécènes du Sud
1 – A Admical (Associação para o Desenvolvimento de Patrocínio Industrial e Comercial) estima que o número total de empresas patrocinadoras na França ainda
seja de 9% para um total de doações entre 3 e 3,6 bilhões de euros.
2 – As ações e os dados apresentados neste artigo dizem respeito apenas à Mécènes du Sud de Aix-Marselha
3 – A palavra lucro deve ser lida em seu sentido literal. Ao tratar sobre patrocínio, o uso de certas palavras como “parceria” ou “benefício” pode gerar confusão.
4 – Um projeto regional, estruturante, unificador, popular e midiático.
5 – Organizadora de dois eventos culturais emblemáticos (“MP2013 Capital Europeia da Cultura” e “MP2018 Quel Amour!”), a MPCulture é uma associação regida pela
lei de 1901 que tem como objetivo impulsionar um novo movimento artístico e cultural entre os habitantes da região e visitantes nacionais e internacionais. A Mécènes
du Sud é cofundadora, em conjunto com o Club Top 20 (que reúne os maiores líderes de grandes empresas da macrorregião de Aix-Marselha Provence. Cada uma
delas administra mais de 100 milhões de euros em volume de negócios e tem total autonomia local), a CCI de Marselha-Provence e a Universidade Aix-Marseille.
80
Experiências compartilhadas
Culturas nº 3 março 2022
Experiências
compartilhadas
Por sua pujança na área cultural, a França
é, para muitos brasileiros, um modelo a ser
seguido no apoio ao setor. No entanto, para
o adido de Cooperação e de Ação Cultural da
Embaixada da França em Minas Gerais, Vincent
Nédélec, entre os dois países o que pode haver
é o compartilhamento mútuo, como uma via de
mão dupla. O Brasil poderia buscar algumas
ideias com a França, mas os franceses também
podem se inspirar nas experiências brasileiras,
tanto nos projetos exitosos quanto naqueles que
ainda podem ser aprimorados. Em entrevista
à CulturaS, ele citou, como experiência que
pode servir como alternativa aos brasileiros, a
Mécènes du Sud, uma associação de empresas
com o objetivo de financiar
projetos de cultura.
Vincent reconhece que no Brasil
há inúmeros setores da cultura que não
conseguem ter acesso aos recursos para
o financiamento de seus projetos. A esses
segmentos, uma das recomendações feitas é:
organizem-se. “Individualmente, as pessoas
não vão ter força para ganhar visibilidade.
Mas, se elas se estruturam, em associação,
por exemplo, podem conquistar um nicho de
aficionados e assim pretender o financiamento
público”, recomenda o adido cultural da
Embaixada da França em Belo Horizonte.
Vincent Nédélec considera
que franceses e brasileiros
têm muito a aprender, uns com
os outros no financiamento a
projetos culturais
Embaixada da França no Brasil/Divulgação
81
Experiências compartilhadas
Na França, a cultura é uma atividade muito
forte. Como é o sistema francês de financiamento
da cultura? Ele é mais público, mais
privado, ou é misto? Que sistema predomina?
Na França, a cultura é, realmente, muito forte.
Ela está presente em todos os níveis do governo
e da sociedade. Há a cultura que se exporta,
que é a música, o cinema e a dança, que têm um
custo alto. Para isso, muitas vezes, o mecenato
tem sua importância, como para manter os museus
e adquirir novas obras. A Fundação Pinault,
por exemplo, é uma das maiores proprietárias de
arte contemporânea da França e, recentemente,
comprou o prédio da antiga Bolsa de Valores
de Paris e o Palazzo Grassi, em Veneza, para
poder apresentar as suas coleções. Trata-se de
uma empresa francesa de artigos de luxo e, ao
mesmo tempo, um dos principais financiadores
da arte contemporânea no mundo. Muitas vezes,
uma obra não pode ser comprada pelo próprio
museu, algo que ocorre inclusive com o Musée
du Louvre. É comprada, então, por um mecenas,
que a cede ao museu. Nesse caso, o comprador
pode beneficiar-se com a isenção de impostos.
Ou, alternativamente, pode exibir sua
própria coleção no museu. Para grandes obras,
grandes festivais de música, há muitos patrocinadores
privados. O mecenato serve para as
obras mais caras, que fazem também a fama
da França. Agora, na França, a cultura é uma
coisa cotidiana. Na escola, a criança tem aula
de desenho, de música. Tem também atividades
culturais no bairro. Essas atividades, na
maioria das vezes, são financiadas pelo Estado,
pela região [que é o Estado no Brasil], ou o
município. Cada prefeitura tem uma biblioteca,
uma midiateca, um lugar para estudo e prática
de atividades musicais, além dos instrumentos.
Tudo isso é financiado pelas instituições francesas
ou europeias. No cotidiano, a cultura é
um investimento realizado, basicamente, pelo
setor público.
Culturas nº 3 março 2022
São financiamentos a fundo perdido?
Não visam lucro financeiro, mas sim outro tipo
de lucro, que é bem maior, no final, do que o financeiro.
É um lucro para o equilíbrio social, para
integração da população estrangeira nos bairros,
para combater a violência, as drogas. Muitas vezes,
é a cultura que permite solucionar de forma
pacífica esses problemas do cotidiano. Então, o
benefício é muito maior do que o lucro financeiro.
Como ficou o setor de cultura na França durante
a pandemia?
No período de pandemia, o Ministério da Cultura
veio em auxílio aos profissionais do setor, substituindo
os financiamentos privados e as receitas
de bilheteria que eles não obtiveram. Mesmo assim,
é um setor que sofreu muito financeiramente,
mas não apenas. Sofreu também psicologicamente,
por conta do fechamento das salas, da
impossibilidade de realizar produções, da falta
de encontros mais próximos com o público, em
virtude da modalidade remota que foi designada
– em alguns casos e quando possível – para os
espetáculos artísticos.
Na quinta edição do Fórum de Políticas Culturais
franco-brasileiro, foi apresentada a
experiência do Mécènes du Sud, em que um
consórcio de empresas passou a financiar a
cultura. Esse é um modelo comum na França?
Não é comum. Justamente por isso sugeri que o
caso fosse apresentado, porque exemplifica uma
forma original de financiamento da cultura. O que
ocorre muitas vezes é que as empresas são solicitadas
a financiar um evento, mas raramente
têm a opção de escolher que tipo de arte querem
fomentar e ver nas galerias. O Mécènes é uma
associação criada em Marselha, no sul da França,
visando permitir que apreciadores de arte pudessem
se unir para fomentar mostras ou obras
que eles, os próprios financiadores, pudessem
escolher. É uma proposta um pouco diferente do
82
Experiências compartilhadas
mecenato clássico, porque é a própria empresa
criando seu mecenato e participando do processo
curatorial. É uma proposta bem diferente, bem
original. Ver reportagem às páginas 60 a 70.
É diferente, também do modelo brasileiro de mecenato,
porque aqui a empresa, individualmente,
financia a cultura. Não há grupos de empresas
atuando nesse financiamento. E isso impede que
as empresas de pequeno e médio porte também
possam, de fato, contribuir para a cultura. Porque
elas não têm como reunir recursos para financiar
um evento de grande porte sozinhas, como
um festival internacional. Ou seja, elas não têm
condições de fomentar uma atividade cultural de
grande dimensão. Então, não ganharão visibilidade;
ao contrário, juntas, a marca delas aparece
diretamente associada ao evento apoiado pela
associação da qual fazem parte. Deixam de ser
apenas mais um nome na lista de patrocinadores
com aporte minoritário para fazer parte de algo
mais representativo. Dessa forma, as empresas
Culturas nº 3 março 2022
conseguem fazer o que gostam, ganhar visibilidade
na escala regional e nacional e trazer uma
dinâmica para a região, atingindo também, diretamente,
os próprios funcionários. E, dentro da
empresa, todos estarão a par do projeto financiado.
É um trabalho formativo também. Cria-se um
público que talvez não tivesse buscado a oferta
cultural por conta própria e, ao mesmo tempo, trabalha-se
a questão da identidade, pois, ao apoiar
artistas da região, contribuímos para fortalecer o
sentimento de pertencer a um território. Isso me
parece algo inovador e interessante.
Quais seriam os aspectos positivos e negativos
do sistema brasileiro de financiamento
da cultura?
O Brasil é um país grande territorialmente, o que
ocasiona uma série de desafios para democratizar
o acesso às fontes de fomento e expandir a
capilaridade das redes culturais. Como disse há
pouco, o financiamento da cultura pelo mecenato
Museu do Louvre/Divulgação
Na França, grandes empresas estão à frente do financiamento
de iniciativas que dão visibilidade internacional à cultura daquele
país, como o Museu do Louvre
83
Experiências compartilhadas
é positivo, mas pode ofuscar outras possibilidades.
Como as grandes empresas dedicam parte
da rubrica deduzível com o incentivo a projetos
culturais para uma fundação própria, priorizamse
os eventos já respaldados pela crítica e pelo
público, mas não necessariamente esses projetos
oportunizam a realização de residências ou a troca
de experiências entre dois países. Quando você
tem um financiamento de uma empresa de menor
porte, o contato entre a empresa e o artista é diferente.
A forma de fomentar no Brasil vem muito
de cima, do governo, da Funarte, do Ministério da
Cultura, da Lei Rouanet. Porém, para dinamizar a
cultura na escala local, não há muitas alternativas.
Muitas vezes pequenos comércios ou empresas
consideram que incentivar a cultura não é o seu
papel. Isso é algo que deveria ser mais trabalhado
no Brasil e as experiências estrangeiras mostram
que é possível explorar outros caminhos.
Como em Marselha?
Sim, como em Marselha, por exemplo. E aí você
descobre vários empreendedores que têm interesse
na cultura. E se você explica para esses
parceiros as formas de financiamento, ou cria
para eles um fundo especial, você informa que
eles são fundamentais para um outro tipo de cultura,
mais territorial. Acho que isso funcionaria
também no Brasil.
No Brasil há setores invisíveis ao fomento
cultural. Como o senhor imagina a possibilidade
de retirar certos segmentos da invisibilidade?
Seria essa uma atribuição específica
do poder público?
Sim, seria basicamente do setor público, mas
com a colaboração do setor privado. Um exemplo:
algumas expressões artísticas contemporâneas
não contam hoje com a mesma visibilidade
que a arte moderna ou a arte renascentista.
Os projetos de arte contemporânea demandam
apoio institucional, que pode ser uma prefeitura,
Culturas nº 3 março 2022
um Estado, mas também há alguns financiadores
privados que incentivam esses movimentos artísticos.
A título de exemplo, o street art, ou a arte
de rua, ainda encontra obstáculos no acesso aos
editais de fomento para organização de mostras
e de formação de público. Muitas pessoas ainda
confundem a pichação com a street art, que,
muitas vezes, é malvista, da mesma forma que o
hip-hop e as pinturas urbanas. Mas quando você
tem uma associação, como a Le Mur, que oferece
um espaço central, numa zona metropolitana
com altíssima visibilidade para mostrar que arte
de rua também é arte, você sensibiliza o público.
Assim, a municipalidade desperta para essa
demanda de fomento. Então, artistas “invisíveis”
teriam de, a priori, se estruturar em rede, porque
individualmente as pessoas tendem a não reunir
os recursos necessários para ampliar e manter
visibilidade. Mas se elas se estruturam, em associação,
por exemplo, podem conquistar o público
e assim postular às fontes de financiamento. Trata-se
de um trabalho gradual, requer investimento;
é preciso evidenciar que a arte não acontece
apenas em museus. Pode acontecer na rua e em
outros lugares inesperados. Ver reportagem às
páginas 67 a 70.
Mencionaria que a invisibilidade não está relacionada
apenas à obra de arte em si, mas ao público
-alvo. A relação arte-invisibilidade pode ser dupla.
Decerto, a arte pode ser o meio para retirar da
invisibilidade segmentos da sociedade. Temos,
na França, associações que realizam projetos artísticos
com pessoas com deficiência mental. Durante
três a quatro meses, em colaboração com
uma equipe de fotógrafos, constroem os cenários
e os figurinos utilizados em suas próprias sessões
de fotografia. Esta mesma associação realiza
trabalho similar com pessoas acometidas por
câncer em fase terminal, com o intuito de mostrar
que ainda existe sorriso, esperança, brilho nos
olhos. As páginas de seu portfólio são igualmente
ilustradas com fotografias dos trabalhadores
84
Experiências compartilhadas
Culturas nº 3 março 2022
Qual foi importância do V Fórum Políticas
Culturais em Debate?
É uma troca de experiências muito interessante
porque você não foca só em palestras expositivas,
mas no que talvez seja mais importante:
traz experiências. E, com as experiências, você
consegue comparar e criar possibilidade de colaboração
entre as pessoas. Então, muitas vezes,
os brasileiros aproveitam mais o Fórum do que
os franceses, em virtude do horário de realização
(algo que a edição da revista CulturaS contribui
para atenuar, dado o alcance extemporâneo da
publicação). Observei, no entanto, o interesse
dos participantes franceses em compreender
da limpeza urbana. São um relato visual do dia as formas de se lidar com a cultura no Brasil.
a dia deles, quando seguem para o trabalho, em Talvez não se trate de realizar apelos à implementação
brusca de modelos. Aliás, o Brasil
dias de sol, de chuva, de frio. Esses exemplos
ilustram o campo vário de possibilidades que a nos inspira, assim como reconhecemos expressões
artísticas brasileiras que guardam relação
arte possui, sob ângulos que nos acostumamos
a ignorar ou nos recusamos a enxergar.
com redes colaborativas francófonas. O Fórum
Acredito na importância de chamar a atenção do possibilita um diálogo em que o público francês
público para o encontro com a cultura em outros tem a oportunidade de aprender sobre quais
cenários, não necessariamente “uma bela obra experiências daqui que se adaptariam à Fran-
de arte” das tradicionais curadorias
Reprodução Facebook
museológicas. A sensibilização às
artes contribui para o despertar
de novas expressões culturais. E
as associações de moradores, de
profissionais, podem ter esse papel
de dar visibilidade, confiança a
alguns artistas que até há pouco
permaneciam às sombras, invisíveis.
Se você é um artista, você
tem direito à visibilidade. Não
está propondo arte com visibilidade
apenas para os museus. Está
propondo uma obra que tem que
invadir as ruas. E o primeiro passo
No Brasil, financiamento da cultura deveria atender tanto aos grandes
para isso é esses setores invisíveis
se organizarem. Ver reporta-
Mascarenhas, de Pitangui
quanto aos pequenos projetos, como o da Banda José Viriato Bahia
gem às páginas 28 a 39.
ça. Porém, quanto ao financiamento, cada país
deve avaliar como montar o seu próprio modelo
para a cultura. E definir se este deve primar
por uma estratégia voltada ao contato próximo
com o público ou à grande visibilidade. Como
dizia anteriormente, a reciprocidade deve existir.
Estamos dispostos a colaborar com o Brasil.
Aos franceses cabe se inspirar nas experiências
brasileiras, tanto no que rendeu êxitos, quanto
no que ainda pode ser aprimorado. Às vezes,
ocorre de um projeto não ter sustentabilidade
porque oriundo de uma ideia carente de lapidação.
Isto afeta o desenvolvimento e o alcance da
proposta, elementos cruciais para a garantia da
viabilidade econômica de projetos duradouros.
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