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Revista CulturaS - n.03

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nº 3 março 2022

Nada será

como antes

A reinvenção da cultura no pós-pandemia

Páginas 6 a 18

Negros e indígenas:

Por um lugar ao sol

Páginas 28 a 39

Brasil e França:

A via de mão dupla

Páginas 60 a 70

Entrevista:

Vincent Nédélec

Páginas 81 a 85


Editorial

Culturas nº 3 março 2022

O lugar do

negócio cultura

Em meio ao refluxo do ciclo pandêmico que não se encerrou, mas que, desde

seu início, em 2020, marcou de forma determinante o fazer artístico-cultural, a cultura

enfrenta mais uma urgência: a de se entender como negócio. Por mais histórico que seja

este dilema, em tempo algum se fez tão necessário que o setor se reafirme neste lugar,

como gerador de trabalho e renda. Como fonte de sobrevivência de um sem-número de

trabalhadores, com diferentes perfis sociais e econômicos. Como antídoto para as enfermidades

deste tempo e que, como tal, precisa ser valorado, precificado e reconhecido

como essencial.

Com sua imensa cadeia criativa e produtiva, a cultura não deve ser observada

como mera ferramenta – seja para o riso, reflexão ou inquietação. Não se trata do mérito

do conteúdo, ou da zona de desconforto que a arte alcança. Mas, sim, de posicionar uma

lupa sobre este já gigante território dialético, e entender sua poderosa capacidade de se

oferecer como alicerce para todas as frentes do existir. Cultura é diálogo, transversalidade,

potência e profissão. E assim sendo, faz conviver dimensões simbólicas com práticas

objetivas que precisam ser preservadas.

O resultado do trabalho artístico é socialmente indiscutível. Todos enxergam a presença

e vitalidade da arte no cotidiano, gostando ou não dela. O mesmo não pode ser

dito quanto à consciência de que, para se alcançar um resultado produtivo na cultura, é

necessário conhecimento, dedicação e empenho. A este caminho chamamos trabalho.

Mas, em meio a uma crise sanitária de gravidade sem precedentes, e ainda com impactos

incalculáveis, o setor cultural anoiteceu também por falta de reconhecimento do seu papel

como vetor de desenvolvimento econômico. E o novo dia já não pode demorar.

Mergulhada nesta preocupação, e amparada pelos debates promovidos pelo V

Fórum de Políticas Culturais, realizado pelo Sesc em Minas em parceria com o Governo

de Minas, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo e da Embaixada da

França, esta edição da revista CulturaS reúne reflexões sobre os riscos deste negócio.

E oferece relatos de diferentes protagonistas que emergem do caos com consistentes

ações afirmativas, na contramão da invisibilidade.

Janaina Cunha

Gerente de Cultura

Sesc em Minas

2


Índice

2

Editorial

4 e 5

Visão dos parceiros: Embaixada da França e

Governo de Minas

6

Reportagem de capa: Em busca da

normalidade, dentro do possível

19

Artigo: O audiovisual em novos cenários/

Matthieu Thibaudault

25

Artigo: Futuros possíveis ou impossíveis/

Aline Vila Real

28

Reportagem: Por um lugar ao sol

40

Artigo: A força transformadora dos dados/

Isabela Souza

47

Artigo: Invisíveis na música/

Kaê Guajajara

52

Artigo: Muito mais do que diversão e arte/

Alexandra de Melo e Rita Roldan

60

Reportagem: O exemplo que

vem de fora

71

Artigo: O que o patrocínio pode oferecer/

Bénédicte Chevallier

81

Entrevista: Por um caminho de mão dupla/

Vincent Nédélec

Culturas nº 3 março 2022

Expediente

Sesc em Minas Gerais

Presidente do Conselho Regional: Lázaro

Luiz Gonzaga ● Diretor Regional: Luciano

de Assis Fagundes ● Diretor de Programas

Sociais, Serviços e Operações: Grijalva de

Carvalho Laje Duarte Junior ● Gerente Corporativo

de Programas Sociais: Jacqueline

Corrêa Lustosa ● Gerente de Cultura:

Janaina Helena Cunha Melo

Acordo de Cooperação Internacional entre

Brasil e França para o Desenvolvimento

de Projetos Conjuntos

Grupo Gestor de janeiro de 2021 a março

de 2022: Igor Arci, Janaina Helena Cunha

Melo, Manoel Bernardes, Manuella Abdanur

de Paula M. Paiva, Vincent Nédélec e Philippe

Makany. A Philippe, adido cultural da

Embaixada da França no Brasil, um agradecimento

especial pelo tempo em que esteve à

frente desta parceria por quatro anos.

Revista CulturaS

Execução técnica:

Gerência de Cultura Sesc em Minas ● Conselho

Editorial: Janaina Helena Cunha Melo

(Presidente do Conselho), Jacqueline Corrêa

Lustosa, Marcelo Freitas, Manuella Abdanur

de Paula M. Paiva, João Paulo da Costa Maia

e André Wilson Cardoso Vasconcelos

● Reportagem e edição: Marcelo Freitas ●

Revisão: Edda Cabral ● Tradução: Karina

Barbosa dos Santos ● Projeto gráfico e diagramação:

Carlos Domingos ● Articulistas

que participaram desta edição: Alexandra

Melo, Aline Vila Real, Bénédicte Chevallier,

Isabela Souza, Kaê Guajajara, Matthieu Thibaudault

e Rita Roldan

● Assessoria de Imprensa: Gerência de

Comunicação Sesc em Minas ● Produção

executiva: Manuella Machado Paiva e Camila

Lukschal Collier ● Periodicidade: bianual

3


Uma luz sobre novos caminhos

Culturas nº 3 março 2022

Uma luz

sobre novos

caminhos

Vincent Nédélec

A promissora parceria firmada

entre a Embaixada da França no

Brasil, o Sesc em Minas e a Secretaria

de Estado de Cultura e Turismo de

Minas segue celebrando diálogos, trocas

e projetos comuns. Desde 2016,

quando começávamos a congregar os

parceiros, a sintonia no entendimento

da cultura como política pública vem

favorecendo o intercâmbio de experiências

entre profissionais, permitindo

aos franceses e aos brasileiros o acesso

às ideias e práticas inovadoras que

lhes podem ser úteis. Em especial, ao

elaborar estratégias de longo termo.

Esses últimos anos, na França,

como no Brasil, a cultura conheceu alguns

reveses que impactaram a sustentabilidade

e o desenvolvimento desta

atividade econômica. Frente a este

cenário e seus reflexos nas demandas

societais por oferta cultural, consideramos

fundamental, na quinta edição do

Fórum de Políticas Culturais, pensar os

desafios do setor, as ferramentas disponíveis

para mensuração de viabilidade

e impacto econômico e as iniciativas

de artistas situados fora dos circuitos

convencionais. Uma série de reflexões

sobre a contemporaneidade que ora ganham

a edição deste legado escrito.

A publicação da Revista CulturaS

traduz o anseio a que nos propusemos

desde o início, o alcance e a formação

de um público mais amplo e diverso.

Além de seguir promovendo reflexões

sobre o setor cultural após a realização

do Fórum. A relevância de nossas ações

mostra-se notável face a um cenário de

dificuldades, bastante desafiador para

artistas cujas obras não obedecem aos

padrões tradicionais ou para aqueles

que têm lidado com entraves na busca

por financiamento.

Alternativas em diálogo com os

agentes econômicos territoriais, caso

da Associação Mécènes du Sud, na

França, favorecem a construção de

projetos perenes, sustentáveis, com

uma linha editorial própria e autônoma.

Esta também é uma característica

comum à iniciativa Le Mur, coletivo

mantido por incentivo de atores locais,

aficionados pelo movimento Street Art.

As criações desses artistas, no âmbito

das artes e das ideias para a manutenção

de seus projetos culturais, lançam

luz sobre caminhos possíveis.

Vincent Nédélec é chefe do

Serviço de Cooperação de Ação

Cultural da Embaixada da França para

Minas Gerais

4


Ressignificar e repensar a cultura

Culturas nº 3 março 2022

Ressignificar

e repensar

a cultura

Leônidas Oliveira

A terceira edição da revista traz novos olhares, mais

atentos e demorados, a um mundo que vem se desenhando

frente a cenários cada vez mais desafiadores para o setor

cultural. O período de incertezas nos passados dois anos

causou impactos tão profundos que, ainda hoje, sentimos os

efeitos do isolamento social. Mesmo assim, nos mantivemos

firmes, refletindo sobre o humano, o social e o econômico.

O fazer cultural se ressignificou frente às dificuldades

e se reinventou, como sempre faz, para celebrar nossa identidade,

nossa diversidade e nossa mineiridade. Múltiplas foram

as plataformas que abrigaram a cultura e a imensa capacidade

criativa que movimenta e transforma o setor. Aos poucos,

a vida está voltando aos eixos e, sobre esse novo normal que

nos acena, é preciso pensar, refletir, fazer e refazer.

O Fórum Políticas Culturais em Debate nos convida a

entender a cultura como um segmento e negócio para além

de indicadores. Em 2021, o evento, que contou mais uma vez

com a parceria da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo

de Minas Gerais (Secult), nos convidou a enxergar o futuro

tendo o recente passado pandêmico como ponto de partida

para as potentes conversas e os diálogos necessários sobre

o fazer cultural.

Este novo tempo é fundamental para a constante

transformação do setor cultural em Minas Gerais. Cada vez

mais, essa cadeia produtiva precisa estar atenta às mudanças

e aberta às oportunidades, para ser capaz de continuar

prosperando e contribuir para a geração de emprego e renda

entre artistas e profissionais envolvidos.

Leônidas Oliveira é secretário de

Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais

Ampliar

o radar

Chegar a mais uma edição

da Revista CulturaS é uma conquista

para o Sesc em Minas. Realizada

em parceria com o Governo

de Minas, por meio da Secretaria

de Estado de Cultura e Turismo e

a Embaixada da França, a publicação

leva à população rica discussão

acerca das políticas culturais,

da produção artística e das possibilidades

de relacionamento nacional

e internacional neste setor.

Como instituição privada

que historicamente apoia o cidadão

em necessidades essenciais

do cotidiano, o Sesc em Minas

tem, entre suas iniciativas, diversas

atividades artísticas. Da circulação

de espetáculos até a oferta

de cursos e oficinas, o Programa

Cultura visa a transformação social

por meio do estímulo ao desenvolvimento

de habilidades técnicas,

socioafetivas e relacionais. É este

encontro com instituições irmãs

que permite a parceria que dá vida

ao Fórum de Políticas Culturais e,

consequentemente à Revista CulturaS,

cujo foco é ampliar o radar

para reflexões importantes sobre o

papel da cultura na sociedade contemporânea.

Sesc em Minas

5


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

Em busca

da normalidade,

dentro do

possível

Belas Artes/Divulgação

O Cine Belas Artes de BH, que passou por reforma feita com

financiamento coletivo durante a pandemia, em dezembro ainda

operava com ocupação inferior à de antes do isolamento social

6


Culturas nº 3 março 2022

Um dos mais afetados pela

pandemia, por depender de público,

o setor de cultura se reinventou

para manter suas atividades

durante o período de isolamento

social. Como será no pós-pandemia

é um enigma. Da mesma forma que

a cultura teve que abraçar o on-line,

até mesmo por uma questão de

sobrevivência, no pós-pandemia, os

limites entre o presencial e o virtual

tornaram-se tênues.

Em meados de março de 2020, a diretora

da distribuidora de filmes Zeta Filmes, de Belo

Horizonte, Francesca Azzi, estava participando

de um evento no cine Sesc, em São Paulo, quando

recebeu a notícia de que a capital paulista iria

ser fechada por causa da Covid; o ator Odilon Esteves

estava no Rio de Janeiro, participando dos

ensaios da série de TV “Mau Secreto”, que iria ser

gravada pela Globoplay. Com a Covid, o projeto

foi cancelado; o músico Luan Nogueira Barreto, o

Nobat, tinha acabado de criar o show de seu novo

disco e estava no estúdio gravando as músicas.

Com a Covid, o projeto foi suspenso; o ator Vinícius

de Souza estava, junto com Marcelo Castro,

dirigindo os ensaios do novo espetáculo do grupo

de teatro Galpão, que estrearia em abril, em Curitiba.

A pandemia suspendeu os espetáculos.

Francesca Azzi, Odilon Esteves, Nobat e

Vinícius de Souza trabalham com a cultura. Atuam

em um segmento para o qual 2020 foi um ano que

não começou. De uma forma ou de outra, todos

foram afetados pela pandemia e acabaram sendo

obrigados a trilhar outros caminhos que não

imaginavam que seriam possíveis. No momento,

vivem a expectativa da volta da normalidade, dentro

do que for possível ser alcançado, já que uma

nova variante do vírus – a Ômicron – entrou em

cena e pode atrasar o tão sonhado retorno.

Francesca Azzi acredita que as salas de

cinema terão de volta seu público, mas isso não

acontecerá tão rapidamente quanto se espera.

Odilon Esteves também projeta o retorno dos

espectadores aos teatros, mas não pretende

abandonar as pessoas que, durante a pandemia,

descobriram o teatro pelo on-line; o mesmo pensamento

tem Nobat. Ele acredita que o formato

híbrido talvez possa ser um modelo adequado

para a pós-pandemia.

Vinícius não desdenha do on-line, que foi

importante durante o período em que os teatros

7


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

Durante a pandemia, o teatro entrou na vida

das pessoas no formato on-line, tornando-se

uma boa opção, principalmente nas cidades

do interior onde não há casas de espetáculos.

Porém, o modelo híbrido causa polêmica entre

produtores e artistas.

estavam fechados. Porém, as experiências feitas

com o virtual durante a pandemia deixaram nele

a certeza de que a linguagem teatral tem especificidades

que tornam insubstituível o espetáculo

presencial, com os atores no palco e a plateia a

poucos metros dali, apreciando a cena e interagindo

com os atores.

Seja qual for o caminho a ser trilhado no

pós-pandemia, o fato é que durante a pandemia,

os brasileiros aumentaram o consumo de atividades

culturais no ambiente on-line e pretendem

manter o hábito após a volta à normalidade. O

dado é uma das conclusões da pesquisa “Hábitos

culturais II”, realizada pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha

em julho do ano passado.

Segundo a pesquisa, que ouviu 2.276 pessoas

em todo o país, entre os dias 10 de maio e 9

de junho de 2021, o aumento de consumo de cultura

no ambiente virtual ocorreu no momento em

que os brasileiros passaram a ficar mais conectados

à internet. De acordo com o estudo, 76%

dos entrevistados informaram que passaram a se

conectar todos os dias. Em 2020, o índice era de

71%. O consumo de apresentações artísticas de

teatro, dança e música disparou. Em 2020, 20%

dos indivíduos diziam que consumiam esse tipo

de atividade no ambiente on-line. Em 2021, o índice

dobrou e subiu para 40%.

No longo tempo transcorrido entre março

de 2020 e os dias de hoje, e nesse cenário de aumento

do consumo de cultura pelo on-line, Francesca,

Odilon, Nobat e Vinícius também tiveram

que se reinventar. Francesca não esperava que a

pandemia fosse durar o tempo que durou. O mercado

da Zeta é voltado para os chamados filmes

de arte exibidos presencialmente. Com o fechamento

das salas, a saída inicial foi cortar custos.

“Quando a gente viu a proporção gigantesca da

pandemia, começamos a ver o que fazer”. A saída,

em um primeiro momento, foi cortar custos

e fechar o escritório da distribuidora que fica no

bairro do Prado, em Belo Horizonte. “Foi uma loucura”,

contou Francesca.

On-line

A primeira alternativa de retomada da exibição

que ela vislumbrou foi a distribuição do acervo

da Zeta pelo on-line. Isso foi feito com o Serviço

Social do Comércio (Sesc) e com redes de cinemas

do Sul e Nordeste do país. “Isso permitiu

que tivéssemos renda com nosso acervo”, afirmou

Francesca Azzi. Paralelamente, a distribuidora

lançou o projeto “Zeta na quarentena”, para

a exibição de filmes on-line mediante senha no

YouTube. Um dos filmes, Geórgia, foi visto por

quatro mil pessoas.

Um segundo momento foi quando outras

distribuidoras partiram para o streaming em plataformas

próprias, alternativa na qual a Zeta Filmes

não apostou porque acreditava que muito

rapidamente o modelo iria se esgotar, já que as

pessoas não iriam pagar pelo acesso a várias distribuidoras

ao mesmo tempo. A opção da Zeta foi

pela parceria com a Mubi, plataforma com sede

na Turquia e que tem forte penetração entre os

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Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

cinéfilos no Brasil. Em termos de público, trata-se

da plataforma que melhor espelha o mercado da

Zeta. “Meu filme estando lá, estou no ambiente

certo”, afirma Francesca Azzi.

Segundo Francesca, do ponto de vista financeiro,

não se trata de um excelente negócio,

porque a remuneração é baixa. Por isso, ela afirma

que o streaming não é a solução para distribuidoras

como a sua. “O futuro não pode ser

o on-line, porque o on-line não paga as contas”,

afirma. Entretanto, enxerga a necessidade de

ajustes no modelo presencial, de tal forma que

seja possível uma redução no valor dos ingressos,

condição para a ampliação do público frequentador

das salas. “O cinema tem que ser mais

acessível”, pondera a diretora da Zeta Filmes,

que em 2022 tem como meta o lançamento de

algo entre 12 e 15 filmes. Porém, a despeito do

alto custo dos ingressos, ela afirma que o ato de

ir ao cinema tem um sentido que vai além do próprio

filme a ser visto. “O conforto de ir ao cinema

é uma coisa engrandecedora, pois você toma um

café, vê livros. É um programa que envolve muitas

coisas de percepção”.

Quem conhece muito bem o mercado exibidor

de cinema é Adhemar Oliveira. Ele é o diretor

de programação de uma rede de 56 salas em

seis capitais: Porto Alegre, São Paulo, Brasília,

Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte. Na

capital mineira, os cinemas que dirige são os do

complexo Belas Artes, especializados nos chamados

filmes autorais ou de arte. Porém, em sua

rede, em outras capitais, há salas que exibem os

filmes de grande bilheteria como os de super-heróis,

da Marvel. Nestas salas, segundo Adhemar,

o público hoje corresponde a algo em torno de

80% a 90% do que frequentava os cinemas antes

da pandemia. Nas salas de arte, como as de

BH, a recuperação tem sido mais lenta, estando

a ocupação em torno de 60% a 70% em meados

de dezembro.

As três salas que formam o único complexo

de cinemas de rua de Belo Horizonte ficaram

fechadas de 15 de março de 2020 a agosto de

2021. Nesse meio tempo, a rede lançou uma

bem-sucedida operação de financiamento coletivo

para, segundo Adhemar Oliveira, pagar as

despesas básicas de operação das salas, como

os salários dos funcionários, o aluguel das salas,

o escritório de contabilidade e a manutenção

dos elevadores, entre outras. “Para sobrevivermos,

fizemos acordo para tudo quanto é

lado”. Com os recursos do financiamento coletivo

também foi feita a revisão dos equipamentos

de projeção, a pintura e a troca do carpete e das

luzes de piso das três salas, além da reforma

dos banheiros e a colocação de hidrantes com

reserva de água.

Francesca Azzi, da Zeta, diz que salas presenciais

são fundamentais para a remuneração da

produção cinematográfica

Acervo pessoal

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Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

A despeito da migração de parte do público

para o streaming ocorrida durante a pandemia,

ele afirma que o centenário modelo de negócio do

setor, que prevê a exibição dos filmes primeiro nas

salas físicas, para só então irem para o streaming

e a televisão, não foi alterado. Isso significa, para

o frequentador, a garantia de que os lançamentos

continuam sendo primazia do circuito físico de

exibição. Com isso, segundo Adhemar Oliveira, a

continuidade da retomada irá depender apenas

do consumidor entender que o tempo que ele ganhou

no home office, evitando os deslocamentos

para ir e voltar ao trabalho, por exemplo, poderá

ser gasto em uma ida ao cinema, experiência por

ele definida como “uma forma de fruição”.

Otimista, ele afirma que a retomada é um

movimento sem retorno. Da mesma forma que

muitos acreditavam que a televisão iria acabar

com o cinema, o que não acorreu, não será a pandemia

que irá fazer isso. “Se a experiência produz

prazer nas pessoas, a tendência é que elas voltem”,

afirmou o diretor das salas do Belas Artes.

Música

Quem também aposta nisso – no prazer

que a arte propicia – é o músico Nobat. A despeito

do trancamento de sua agenda de shows e da

tragédia que foi a pandemia e seus mais de 600

mil mortos, ele afirma que procurou, ao longo dos

últimos dois anos, aprender com a crise. Um dos

momentos que considera mais revelador, foi a

possibilidade, por ele experimentada entre agosto

de 2020 e janeiro de 2021, de gravar um disco

sem que todos os músicos estivessem no estúdio

ao mesmo tempo, como seria o normal em tempos

de não pandemia.

Os músicos estavam em Belo Horizonte,

Rio de Janeiro e Salvador, desenvolvendo e

testando os arranjos. Segundo ele, em tempos

normais, nada teria sido produzido a distância.

O streaming foi a solução

para o cinema, mas o modelo

de negócios do setor não foi

alterado. Salas de exibição

presenciais permanecem

como local de lançamento dos

novos filmes, que só depois de

lançados irão para o streaming

e para a TV. A dúvida é se

ocupação das salas retornará ao

que era antes.

“Sempre trabalhei com pessoas ao meu redor”,

afirma Nobat, que também nunca imaginou que o

tempo de isolamento seria tão longo. “Se alguém

me dissesse que eu iria viver uma coisa como

essa, tão exótica, trágica e diferente de tudo com

que estávamos acostumados, eu não acreditaria”,

afirma Nobat.

Ele também se define, por outro lado, como

alguém que cultiva o hábito de sempre procurar

tirar algum proveito de situações negativas. “Foi

um período de muitos desafios, de rever o mundo,

transformar velhas ideias e reciclar alguns

pensamentos relacionados à produção musical”.

Uma delas, na produção, foi a de trabalhar a distância.

Outro desafio foi o das apresentações on

-line, que também foi obrigado a realizar durante

a pandemia. Destas, o que de mais estranho ele

guarda é o silêncio após o término das apresentações,

já que o público não estava ali presente

para aplaudir.

Para ele, o mundo da música no pós-pandemia

poderia ser o do formato híbrido, com apresentações

presenciais, porém, com transmissão

pela internet. “Só o fato de ver as pessoas, de estar

perto delas, de ver a reação no rosto delas, é

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Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº nº 3 março março 2022 2022

algo fabuloso”. O presencial carrega, no entender

de Nobat, um potencial que o on-line nunca vai

propiciar. Porém, o virtual oferece a possibilidade

de o artista expandir suas conexões ao redor do

mundo. “Uma não interfere com a outra”, diz o artista,

que tem dez anos de carreira e três discos

já lançados. No momento ele está gravando os

quatro clipes de divulgação do novo álbum, que

será lançado em junho. A ideia é, até lá, lançar um

clipe por mês.

Teatro

A exemplo do que fez Francesca Azzi na exibição

de filmes, no mundo do teatro, Odilon Esteves

e Vinícius de Souza também tiveram que partir

para o on-line durante a pandemia. Odilon Esteves

também não esperava que os dias de confinamento

fossem durar tanto tempo. “No início, foi muito

angustiante”, afirma Odilon Esteves. Antes da pandemia,

além da atividade teatral, ele fazia palestras

presenciais sobre literatura para estudantes de ensino

fundamental e médio. Foi então que recebeu

da diretora de uma escola o pedido para apresentar

a palestra no modelo virtual.

Odilon Esteves conta que sua primeira resposta

foi negativa, porque entendia que a atividade

havia sido concebida apenas para o presencial.

Não satisfeita, a diretora da escola insistiu

que fosse feito um teste para a apresentação

virtual. Surpreso, ele afirma que o primeiro comentário

que recebeu foi de que havia gostado

mais da versão on-line que da presencial. A explicação

era simples: como Odilon Esteves falava

olhando diretamente para a lente da câmera,

ele transmitia sensação de que a apresentação

estava sendo feita exclusivamente para quem

estava do outro lado. A partir daí, ele passou

a receber convites de várias outras escolas e,

com isso, conseguiu manter sua renda durante

os primeiros meses da pandemia.

Na sequência, ele recebeu um convite do

Centro de Cultura do Banco do Brasil (CCBB)

para apresentar, também virtualmente, durante

dois meses, pelo programa CCBB em Casa, o espetáculo

de sua autoria “Na sala com Clarice”. Na

peça, há uma interação entre Odilon e os espectadores,

que podem escolher os textos da escritora

Clarice Lispector que gostariam que fossem

apresentados no dia.

Odilon Esteves conta que “Na sala com

Clarice” abriu para ele um universo de possibilidades

novas, vindas principalmente de cidades

do interior, que não recebiam espetáculos teatrais

e agora, pela internet, podiam ter acesso a este

tipo de manifestação cultural. “Recebi muitos retornos

de pessoas agradecendo a oportunidade

de participar de um evento de teatro ao vivo, que

eles jamais iriam assistir”. Um desses retornos

veio da filha de uma pessoa que era portadora de

deficiência e que não poderia ir ao teatro mesmo

que o espetáculo fosse encenado na cidade onde

elas moravam. Essa pessoa contou que, quando

a apresentação terminou, mesmo estando distante,

sua mãe aplaudiu.

Por razões como esta é que Odilon Esteves

pretende, na retomada, dar atenção ao público

que foi por ele criado durante a pandemia.

“Muita gente me escreveu pedindo que eu não

esquecesse o interior”. Tal situação fez com que

ele passasse a encarar o meio digital como uma

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Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

Na pandemia, Vinícius de Souza, Paulo André, Inês

Peixoto e Teúda Barros, do Grupo Galpão, fizeram

experimentos com o som em “Quer ver escuta”

fotos: Matheus Lustosa

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Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

alternativa real de levar o teatro a esses públicos

que, de outra forma, não iriam ter acesso aos espetáculos.

“Acho que a gente pode passar a ter

mais eventos híbridos”, afirma Odilon Esteves.

Vinícius de Souza afirma que quando a

pandemia chegou, ele e os outros integrantes

do grupo Galpão tinham em mente que a quarentena

também iria durar pouco tempo. Porém,

após cerca de dois meses, além do cancelamento

da temporada de Curitiba, as apresentações

marcadas para São Paulo tiveram que ser

suspensas. “Foi então que percebemos que a

situação era muito mais crítica e mais trágica”,

afirma Vinícius.

Como a apresentação da peça que estavam

ensaiando não iria acontecer tão cedo, eles

passaram a pensar em atividades que pudessem

realizar para manter o processo criativo. Uma

delas foi a produção de um filme – “Éramos em

bando” – que retratava a rotina daquele momento

vivido por um grupo de teatro que, acostumado

aos espetáculos presenciais, estava sendo, pelas

circunstâncias da época, obrigado a se isolar do

convívio social e, ao mesmo tempo, fazer os primeiros

experimentos do uso de outra linguagem

que não apenas do teatro.

Foi nesse instante que, segundo Vinícius

de Souza, foram estudadas outras possibilidades

de o grupo se manter presente na vida do público

e, ao mesmo tempo, feitas algumas experimentações.

Uma delas foi uma peça radiofônica, levada

ao ar pela Rádio Inconfidência e concebida para

ser uma alternativa à predominância que a imagem

estava tendo nos espetáculos on-line. “Tentamos

ir para o caminho do som”, explica Vinícius

de Souza. Depois de apresentada na rádio Inconfidência,

a radionovela passou por outras rádios

e, em seguida, foi para o streaming, onde pode

ser ouvida em https://anchor.fm/grupogalpao.

A despeito de todas as tentativas feitas

pelo Galpão do uso de outras linguagens, as experiências

que misturavam teatro e virtualidade

ainda permanecem, segundo Vinícius Souza, no

meio do caminho, constituindo o que ele define

como “linguagens de emergência”. A conclusão

a que chegou é de que o teatro é uma linguagem

artística que só existe porque se materializa

sem a mediação e o suporte de uma plataforma

tecnológica. “Os experimentos que fizemos reforçam

a ideia de que não é possível fazer teatro na

internet”. Ele deixa claro que não está fazendo

um juízo de valor sobre outras experimentações.

“O virtual não é pior. É apenas diferente”, afirma

Vinícius de Souza, que além de dramaturgo e

ator, é professor do curso de teatro do Palácio

das Artes.

Sobre a volta das apresentações teatrais,

ele está cauteloso quanto a uma recuperação rápida

do setor. Por duas razões: a primeira é porque

nem toda a engrenagem do teatro mineiro sobreviveu

à pandemia, sendo grande o número de

profissionais que, por razões de natureza financeira,

acabaram migando para outras atividades.

A segunda razão é que a pandemia ocorreu em

um momento de fragilização do apoio à cultura

Na música, artistas driblaram

o isolamento investindo nas

gravações a distância, para

posterior mixagem, e nas

apresentações feitas pela

internet. No pós-pandemia, uma

das apostas é nos espetáculos

híbridos, que teriam plateia e

transmissão pela internet.

em todo o país ocorrida durante o atual governo,

por ele definido como o “governo da negação da

arte e dos artistas”. Ainda que a Lei Aldir Blanc e a

13


Em busca da normalidade, dentro do possível Culturas nº 3 março 2022

Felipe Palma

Fernando Badharó

Nobat e Odilon apostam no híbrido para manter e ampliar o público conquistado na pandemia

prefeitura de Belo Horizonte tenham servido para

reduzir essa fragilização, a combinação destes

dois cenários – pandemia e desmonte da cultura

em nível nacional – irão, segundo Vinícius de

Souza, tornar a recuperação um processo mais

lento que o previsto.

Livros

No mercado editorial, o primeiro impacto

da pandemia foi negativo, causado pelo fechamento

temporário das lojas físicas em todo

o país. O resultado foi que, ao final de 2020, o

primeiro ano da pandemia, o faturamento bruto

do setor havia recuado 8,8% em relação a 2019,

segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor

Editorial Brasileiro, realizada pela Nielsen Book,

com coordenação da Câmara Brasileira do Livro

(CBL) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros

(Snel). A pesquisa apontou, também, a redução

em 18,43% do número de exemplares vendidos,

que passou de 434 para 354 milhões de exemplares

de um ano para outro.

A recuperação veio em um segundo momento,

passado o impacto inicial da pandemia e

após os investimentos feitos por livrarias e editoras

no impulsionamento das vendas on-line. De

acordo com a Snel e a CBL, no primeiro semes-

O mercado editorial experimentou queda de vendas nos primeiros

meses da pandemia, mas deu a volta por cima no segundo ano. A

novidade foi o aumento da venda de livros pela internet nas lojas

virtuais das livrarias e das próprias editoras.

14


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

CML/Divulgação

ocorrido em 2020.

Como durante o período de isolamento

social, as pessoas foram obrigadas a ficar em

casa, o livro foi, segundo a presidente da Câmara

Mineira do Livro, uma das opções de entretenimento,

o que acabou ocasionando outra alteração

importante no setor, que foi o incremento

das vendas pela internet, com muitas editoras e

livrarias tendo investido pesado no e-commerce,

mesmo aquelas que não estavam preparadas

para a pandemia.

Com isso, puderam fazer vendas para lugares

onde o livro possivelmente não chegaria.

Gláucia Gonçalves não acredita que o e-commerce

vá acabar com as livrarias físicas, mas a participação

das vendas pela internet tende a crescer,

da mesma forma que, em relação aos formatos,

os mercados de e-books e audiobooks. “O digital

não vai mais sair de nossas vidas”, sentencia a

presidente da Câmara Mineira do Livro.

Remuneração

Gláucia Gonçalves diz que digital estará presente

cada vez mais na vida dos leitores de livros

tre de 2021, a venda de livros apresentou crescimento

de 48,5% em comparação com o primeiro

semestre de 2020. Segundo o Snel, a alta variação

indica dois momentos diferentes do mercado

editorial. Um sob o impacto das medidas de restrição

adotadas em 2020 por causa da pandemia

e outro, mais resiliente e consolidado, que corresponde

ao primeiro semestre de 2021.

De acordo com a presidente da Câmara

Mineira do Livro, Gláucia Gonçalves, o primeiro

impacto, representado pelo fechamento das

livrarias e a impossibilidade de as editoras fazerem

eventos literários e lançamento de novos

títulos com a presença do autor, foi altamente

ruim para o setor, pois restringiu iniciativas que

ela define como muito importantes para formar

novos leitores e permitir que os autores

estreitem o contato com seu público. O lado

positivo foi o aumento da venda de livros

De forma generalizada, a pandemia propiciou,

pelo on-line, uma democratização maior do

acesso à cultura e à arte. Durante o período de

isolamento, especialmente em 2020, um número

incontável de artistas migrou para o digital, realizando

virtualmente apresentações de música e

de teatro, sem contar o mercado de filmes, que

descobriu no streaming o cenário perfeito para

compensar o fechamento das salas de cinema.

O problema é que uma boa parte desse conteúdo

on-line foi disponibilizado a custo zero para o

internauta ou então, como nas plataformas de filmes,

a um custo baixo.

Além disso, uma boa parte do conteúdo

produzido durante este período está armazenado

em plataformas e continuará à disposição das

pessoas mesmo após a pandemia. Dito de outra

forma, em um cenário de normalidade, este con-

15


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

teúdo continuará competindo com o presencial. A

questão que preocupa os produtores de cultura

é: em um cenário de retomada da normalidade

e com as pessoas acostumadas à oferta on-line

de conteúdo sem custo, como garantir, pós-pandemia,

a remuneração dos artistas e de toda a

equipe técnica que fica atrás do palco ou atrás

das câmeras, como no caso do cinema?

Odilon Esteves vê dois caminhos para isso.

O primeiro caberia ao próprio artista trilhar um

novo caminho, que seria o de ele fazer um trabalho

educativo no sentido de sempre procurar mostrar

ao público quantas pessoas trabalharam para

que aquele espetáculo fosse apresentado. No

caso de “Na sala com Clarice”, visível na tela estava

apenas ele. Mas a equipe que garantia que o

espetáculo fosse ao ar pela internet era composta

por 17 outras pessoas. “Cabe a nós explicar

isso para o espectador”, afirmou Odilon Esteves.

Ele conta que sua experiência de apresentação

da peça pela internet com ingresso pago foi bem

aceita pelo público.

O outro caminho que ele enxerga é o do

investimento em políticas públicas de apoio à

cultura, especialmente em projetos culturais que

não são lucrativos, mas são importantes para a

manutenção da diversidade e para a construção

de uma sensibilidade que possa se desenvolver

para infinitos caminhos. “O público precisa ter

consciência de que fazer cultura custa dinheiro”,

acrescenta Nobat.

Esta é a opinião também de Fabiana Batistela,

especialista na produção de eventos culturais.

O mais conhecido deles é a Semana Internacional

de Música de São Paulo (SIM São Paulo)

evento que, há nove anos, reúne profissionais do

mundo da música – artistas, produtores, técnicos

e representantes da indústria de equipamentos

e instrumentos, entre outros segmentos. Em dezembro,

ela foi uma das participantes do V Fórum

Halak, da Mundo Giras, é o produtor do festival

Mucho, que em 2020 migrou para o on-line

Políticas Culturais em Debate, uma iniciativa do

Sesc-MG, da Embaixada da França no Brasil e do

Governo de Minas realizada no início de novembro,

em Belo Horizonte.

Para Fabiana, a cobrança pelo acesso a

eventos culturais tem dois lados. Um é o do acesso

gratuito para pessoas que não podem pagar.

O outro é o do hábito de não se valorizar o conteúdo

artístico. Fabiana afirma que nos eventos

que produz, especialmente os internacionais, há

amigos que a procuram querendo o nome na lista,

ou seja, desejando entrar sem pagar.

“Fazem isso como se não custasse nada.

Mas vai comer no restaurante do amigo de graça?

Ele não vai deixar. Vai dar, no máximo um desconto

de 10%. Vai dizer que tem custo, estrutura,

equipe e material. Mas, e no show? Não tem

isso também?”, indaga Fabiana, que é também

fundadora da Inker Agência Cultural, empresa es-

SIM São Paulo/divulgação

16


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

O grande número de

espetáculos culturais gratuitos

oferecidos durante a pandemia

reaqueceu o debate sobre

quem irá remunerar o setor

no pós-pandemia. Produtores

entendem que o público precisa

ser informado melhor sobre

isso. Mas com a possibilidade

de haver exceções, como

os eventos ligados à cultura

popular, que deveriam ser

gratuitos.

pecializada em assessoria de comunicação para

artistas e eventos de música.

Para Matthieu Thibaudault, adido cultural

no Consulado Geral da França em São Paulo, e

também participante do evento do Sesc-MG, a

pandemia representou a quebra de inúmeros paradigmas.

Um deles é o de que as pessoas não

iriam pagar por eventos on-line no início da pandemia.

Hoje, um ano e meio depois, ele faz um

balanço do que deu certo e do que não deu certo

nesse período. Deu certo, segundo ele, a participação

passiva. Não deu certo querer que os participantes

de eventos on-line sejam participantes

ativos. Leia artigo de Matthieu Thibaudault às páginas

19 a 24.

Para isso, segundo Matthieu, é preciso

que os eventos de comercialização de produtos

culturais, que antes eram realizados apenas presencialmente,

criem plataformas para que passem

a permanecer o ano todo no ar. Nessas plataformas,

o possível comprador poderá assistir a

uma série e fazer contato com o produtor daquele

conteúdo, explica Matthieu Thibaudaut, que tem

vasta experiência em feiras internacionais de negócios

audiovisuais e, no consulado da França, é

responsável pelo setor de audiovisual, realidade

aumentada, games e mídias.

Para o produtor cultural Hernan Halak, da

produtora paulista Mundo Giras, é preciso fazer uma

diferenciação em relação à cobrança de entrada em

eventos culturais. Para ele, nos festivais de cultura

popular, nem sempre isso será possível. Além disso,

nestes eventos costuma haver algo mais importante

que o ingresso, o que leva as pessoas a gastarem

mais, como por exemplo, em uma feira de artesanato,

que é um tipo de cultura.

Por outro lado, há casos em que as pessoas

pagam pelo acesso sem maiores queixas. Ele citou

um grupo argentino de rock que vendeu 95 mil

ingressos em três horas e meia para um show que

seria realizado on-line. O problema foi que, com o

grande número de acessos simultâneos, a plataforma

travou e o show não pôde ser transmitido pela

plataforma prevista. Com isso, a opção foi transferir

a transmissão para o Youtube, só que, neste caso,

sem custo para os internautas. Segundo ele, ninguém

que comprou o ingresso reclamou.

Segundo Herman Halak, isso aconteceu

porque o grupo já tem a tradição de, nos shows

presenciais, quando há excesso de público, abrir

os portões após a segunda música. “E ninguém

fala nada. Todos se abraçam e ninguém reclama.

A banda, quando faz um show, é uma coisa meio

religiosa”, explicou Hernan Halak, que é produtor

do Mucho, evento on-line de música latino-americana

que teve 1.500 pessoas ao vivo em um canal

que tem 4.500 inscritos. Para ele, trata-se de

uma audiência muito boa.

Para o pós-pandemia, o subsecretário de

Estado da Cultura de Minas, Igor Arci, considera

fundamental pensar políticas de Estado para a

formação de novos públicos. Nesse sentido, ele

entende que o modelo presencial, em comparação

com o híbrido ou o virtual, é o que gera mais

17


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

retorno, tanto no que se refere à agregação de novos

públicos, quanto de movimentação da cadeia

produtiva da cultura.

“O presencial impacta desde que a pessoa

sai de casa, pois passa pelo carro, pela

gasolina, pelo aplicativo de transporte, pelo pipoqueiro

e pelo restaurante em que ela vai depois

do evento”, afirma Igor Arci, que, entretanto,

não desmerece o valor do espetáculo virtual,

cujo principal mérito, a seu ver, é o de permitir

o acesso à cultura de qualquer pessoa em qualquer

ponto do planeta onde ela disponha de sinal

de internet.

Porém, do ponto de vista da economia,

o presencial é, no seu entendimento, o modelo

que deveria ser incentivado. “Não tenho dúvidas

de que o presencial gera mais fruição, uma

melhor experiência, move mais dinheiro, que é

importante, não só para o Estado, mas para o

PIB do país. Todos os modelos têm o seu valor;

porém, o presencial causa mais impacto

na vida das pessoas como produto cultural”,

afirma o subsecretário de Cultura de Minas.

Segundo ele, o impacto econômico do modelo

virtual está mais circunscrito aos profissionais

do audiovisual.

Como será o mundo da cultura no pós

-pandemia é um enigma. Da mesma forma que

a cultura teve que abraçar o on-line, até mesmo

por uma questão de sobrevivência, no pós-pandemia,

os limites entre o presencial e o virtual

tornaram-se tênues. E muitas vezes se misturam,

como nos eventos híbridos. De certo, o que

se pode afirmar é que hoje ninguém tem a chave

de como será essa transição.

Verônica Manevy/Imprensa MG

Produtores defendem investimento público em cultura e entendem que cobrança de ingressos deve levar em

conta as especificidades do evento, o que nos eventos de cultura popular, nem sempre isso será possível

18


Culturas nº 3 março 2022

O audiovisual

em novos

cenários

Reprodução Linkedin

Artigo: Matthieu Thibaudault

Matthieu

Thibaudault afirma

que, no mundo

dos negócios,

ninguém estava

preparado para

um evento como a

Covid-19

No início de 2020, eu era brand manager do MIPTV, a segunda maior feira

de negócios do mundo no setor audiovisual. Esse evento, que acontece todos

os anos em Cannes, desde 1964, juntava mais de dez mil participantes de mais

de 90 países. No dia 2 de março de 2020, cerca de um mês antes do início do

MIPTV, eu cheguei cedo ao trabalho. Enquanto ainda estava colocando meu

casaco de inverno sobre a mesa, surgiu o diretor da minha área para me dizer

que eu poderia suspender todas as comunicações, que o evento físico havia sido

cancelado e que nós iríamos seguir com uma versão 100% on-line.

O problema é que nenhum evento mundial dessa dimensão havia passado

por algo similar àquela época. Nós tivemos um mês para improvisar

uma solução e tentar satisfazer o conjunto de expectativas que precisavam

ser cumpridas por uma feira empresarial: gerar oportunidade de negócios,

providenciar visibilidade para clientes e oferecer informações de mercado.

A experiência revelou-se sofrida, pois nós não estávamos preparados para

algo do tipo. Na sequência, descobrimos que ninguém no mundo das feiras

de negócios estava preparado.

Hoje eu sou Adido Cultural e Audiovisual da Embaixada da França no Brasil,

ou seja, não sou mais organizador, mas somente participante de várias feiras de

negócios. Neste artigo, compartilharei com vocês o ponto de vista de um organizador

de feiras de negócios no setor específico do audiovisual. Numa primeira parte,

abordarei conceitos fundamentais do marketing que se aplicam aos eventos B2B,

onde são feitas vendas de empresas para empresas.

Em seguida, apresentarei alguns conceitos de design de evento indispensáveis

ao posicionamento estratégico de uma feira de negócios audiovisuais no

cenário mundial. Para terminar, eu me arriscarei a enunciar tendências de mercado

diante da exigência de hibridação (on-line e presenciais) enquanto a pandemia

segue em curso neste início de 2022.

19


O audiovisual em novos cenários

Culturas nº 3 março 2022

1. Algumas noções de marketing

dos eventos B2B

Os sete comportamentos

As feiras de negócios são indispensáveis na

cadeia de cada um dos setores de atividade econômica.

Existem feiras de negócios para a venda

de armas, material escolar, segurança nos aeroportos,

turismo nos países árabes, materiais metálicos

para construção, arte contemporânea, tinta

O que fideliza um participante

é o ambiente agradável o

suficiente para ele passar

bons momentos com a sua

rede profissional e, assim,

estabelecer boas relações

comerciais. Isso explica por

que a cidade de Cannes, por

exemplo, recebe tantas feiras de

negócios.

para carros, produtos farmacêuticos, piscinas, vinhos,

etc. Isso significa que existem necessidades

comuns a cada setor econômico que as feiras de

negócios tentam satisfazer.

O marketing das feiras de negócios identifica

sete comportamentos básicos dos participantes,

qualquer que seja o setor econômico: reconnecting,

targeting, building, socializing, exploring, fishing e

learning. Nas pesquisas de marketing declarativas

pós-evento B2B, os dois comportamentos predominantes

são o reconnecting e o targeting, ou seja,

manter sua rede comercial e encontrar novos parceiros

de negócios. Adiante, descobriremos que

esse resultado não se aplica aos eventos on-line.

Aquisição versus Fidelização

Na prática cotidiana do marketing das feiras

de negócios, uma parte importante do esforço do

marketing digital foca na aquisição de novos clientes.

O marketing precisa fazer uso de várias mensagens

nos seus canais de comunicação para gerir

a sensação do F.O.M.O. (Fear of Missing Out),

que seria o medo de perder. Destacar logomarcas

de grandes empresas do mercado e nomes de

grandes executivos internacionais despertam uma

necessidade psicológica de pertencimento a um

clube privado de executivos do audiovisual. Todas

as listas de argumentos comerciais insinuando um

potencial R.O.I. (Return on Investment, ou retorno

de investimento, em português) ligado à participação

em uma feira de negócios são somente uma

racionalização acerca de uma decisão cuja base

verdadeira é irracional.

Um executivo que já esteve em um evento

e apreciou a sua participação não demandará

muito esforço para ser convencido a participar novamente.

Ele sabe qual é o real objetivo de sua

participação. O que fideliza um participante é o ambiente

agradável o suficiente para ele passar bons

momentos com a sua rede profissional e, assim,

estabelecer boas relações comerciais. Isso explica

por que a cidade de Cannes, por exemplo, recebe

tantas feiras de negócios.

Uma cidade charmosa à beira-mar, como

Cannes, é pequena o suficiente para se fazer

tudo a pé e garantir oportunidades de networking

o tempo todo, na própria feira, bem como nos entornos,

nas esquinas, nos restaurantes, nos bares,

nos hotéis e também nos clubes. O que importa

realmente não é o R.O.I., mas o R.O.O. (Return

on Objectives), que foge da exigência de venda ou

de compra e busca garantir mais notoriedade para

20


Culturas nº 3 março 2022

Mifa/Divulgação

O MIPCOM, realizado em Cannes, é o principal evento do audiovisual de animação no mundo

sua marca, mais impacto da sua marca ou também

gerar mais intenções de venda.

2. O design de eventos de mercado

no setor audiovisual

Os executivos audiovisuais precisam escolher

entre dezenas de feiras de negócios audiovisuais

acontecendo o ano todo no mundo inteiro.

Algumas são generalistas (exemplo: Mipcom),

outras trabalham apenas com um gênero (exemplo:

Mifa, em Annecy), outras são regionalizadas,

como a ATF, em Singapura. Porém, todas se encaixam

em modelos de negócios distintos:

Feiras de negócios

O evento Mipcom, na cidade de Cannes,

conta com um modelo de negócios baseado na

venda de oportunidades de visibilidade para os

produtores e distribuidores de programas audiovisuais,

que precisam se promover antes, durante e

depois do evento (cabine, banner digital, banner físico,

propaganda nas revistas do evento, ativações

e sessões de screenings especiais). De modo apenas

secundário, a venda de credenciais para visitantes

é também uma fonte de recursos.

Mídia especializada

Content London para as séries de ficção;

Kidscreen para a animação; ou Realscreen Summit

para o documentário e os factuals. Esses três

eventos são mídias especializadas antes de serem

eventos. Organicamente, uma mídia tem uma vantagem

competitiva em termos de marketing e também

em termos comerciais. Uma mídia cria uma

conexão com seus clientes o ano todo, de forma

assertiva, íntima e afetiva. Ela conhece bem a sua

audiência e sabe atendê-la editorialmente, seja

elaborando artigos ou produzindo uma oferta editorial

em um evento. O esforço de marketing digital

é facilitado por contar com uma base ativa e qualificada

de assinantes no momento de comunicar

sobre a venda das credenciais de um evento.

Uma outra vantagem é a possibilidade de

vincular comercialmente a mídia ao evento. Por

exemplo, um distribuidor que aceitaria investir muito

na visibilidade no evento poderia desfrutar de

benefícios como banners, artigos, posts ou stories

ao longo do ano, fora do período do evento. Tudo

isso no pacote da mesma venda.

Ser um festival ou uma mostra

O Festival de Cannes conta todos os anos

com a organização em paralelo da maior feira de

cinema do mundo, o Marché International du Film.

O Festival Series Mania e o Festival du Film d’Animation

d’Annecy também adotaram esse modelo

com sucesso. Antes de qualquer consideração, é

preciso lembrar que um festival é uma festa. Além

dos vendedores e compradores, as equipes artísti-

21


Em busca da normalidade, dentro do possível

cas dos filmes ou programas audiovisuais selecionados

presenciam o evento. Isso gera uma dimensão

glamourosa e um F.O.M.O..

Em virtude disso, esse modelo de negócios

tem como vantagem competitiva o potencial de

promoção das obras selecionadas para os profissionais

e para o público. Uma ressonância que somente

os festivais conseguem proporcionar devido

a uma presença da imprensa que vai muito além

da imprensa especializada no setor audiovisual.

O valor dos conteúdos e serviços para

os participantes

Quando se trata de concretizar a proposta

de valor de um evento e começar a produção, as

equipes pensam em quais serviços on-line e presenciais

vão ser disponibilizados para os clientes e

quais conteúdos vão ser produzidos antes, durante

e depois do evento.

Os serviços presenciais garantem a qualidade

da infraestrutura do evento (cabine, palcos,

recepção, segurança, limpeza, portaria, etc.). Os

serviços on-line têm um propósito central diferente:

ajudar os participantes a preparar devidamente

a participação deles no evento. Entre os serviços

on-line mais comuns propostos nas feiras de negócios

dos últimos anos, se destacam:

▪ Um diretório de contatos;

▪ Um catálogo de conteúdos e de projetos de

conteúdo;

▪ Um software de matchmaking para sugerir reuniões

e projetos de conteúdos para os participantes

que se encaixem com suas preferências;

▪ Uma solução de localização, para ajudar o exi-

Culturas nº 3 março 2022

bidor a reservar seu espaço;

▪ Um serviço de hospedagem e transporte que

tenha convênio com o evento.

Os conteúdos presenciais e on-line têm geralmente

os propósitos comuns de informar, inspirar,

valorizar e conectar os participantes.

Informar: sessões de inteligência de mercado,

sessões de screenings de conteúdos recentes,

sessões de apresentação de estratégia editorial

dos grupos audiovisuais, revistas da própria

feira com artigos sobre tendências, os white papers

A indústria das feiras de negócios é baseada no aperto

de mãos. Inútil lembrar como seus trabalhadores

foram prejudicados pela pandemia.

sobre indústria.

Inspirar: as sessões keynote de personalidades

importantes do setor, os programas

de mentoria, as oficinas, sessões especiais para

apresentar iniciativas sustentáveis ou promovendo

a diversidade.

Valorizar: cerimônia de prêmios durante

o evento, entrevistas na revista do evento,

sessões especiais de screenings, catálogos de

conteúdos recentes, catálogos de novos participantes

específicos.

Conectar: sessões de matchmaking, sessões

de pitching de projetos, café da manhã ou

almoços especiais de encontros de coprodução,

coquetéis, festas temáticas.

3. Como pensar as feiras de negócios

no setor audiovisual em 2022

A indústria das feiras de negócios é baseada

no aperto de mãos. Inútil lembrar como seus

trabalhadores foram prejudicados desde o início da

pandemia de Covid-19. Durante meses, a indústria

22


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

se organizou para oferecer, na medida do possível,

a mesma promessa dos eventos presenciais,

mas integralmente on-line. Depois de dois anos

de pandemia, as feiras de negócios do audiovisual

abraçaram novas práticas híbridas (on-line e

presenciais) e acordaram um novo equilíbrio entre

conteúdos e serviços.

Segundo a UFI – The Global Association of

the Exhibition Industry –, desde o início da pandemia,

houve investimentos massivos dos produtores

de feiras nos serviços de organização de eventos

on-line, nos serviços de matchmaking e também

nos serviços de recuperação e de análise de dados.

Isso permitiu um pulo significativo na qualidade

das ofertas on-line de conteúdos e serviços

durante a pandemia.

Os produtores das feiras de negócios entenderam

que solicitar uma proatividade dos participantes

no contexto de um evento on-line, com

tempo limitado, passando por interfaces pouco

flexíveis, não faz mais sentido. Particularmente

quando se trata de reuniões puramente comerciais.

A emoção do face a face para manter ou

expandir sua rede de contatos profissionais não

pode ser substituída de forma satisfatória por serviços

on-line.

Nos meses de pandemia, do tudo on-line,

os profissionais do setor audiovisual promoveram

conteúdos para serem assistidos sem obrigação

de interação, como conteúdos de inteligência de

mercado ou também conteúdos de capacitação.

O desafio atual é duplo para as feiras de

negócios. Elas precisam entender qual design

de oferta híbrida de serviços e de conteúdos tem

mais valores para os profissionais do setor audiovisual,

levando em consideração os dois anos

durante os quais:

▪ O mercado dos conteúdos foi extremamente

dinâmico, mesmo com a ausência de eventos

de mercado presenciais;

▪ A força das plataformas de streaming aumentou

e o movimento no mercado audiovisual

global com numerosas fusões e aquisições de

grandes grupos continuou.

Dois componentes, antigamente centrais,

das feiras de negócios perderam valor no cenário

dos eventos presenciais de hoje. Primeiro: os painéis

e as palestras de profissionais. Segundo: os

Mipcom/Reprodução

O Mipcom lançou uma plataforma on-line com diretório de contatos, screenings e conteúdo de inteligência

23


Em busca da normalidade, dentro do possível

Culturas nº 3 março 2022

screenings de programas audiovisuais. De repente,

ambos podem ser desfrutados on-line e sem

depender do timing de tal ou tal feira de negócios.

Concretizando essa tendência, os maiores mercados

audiovisuais do mundo (Mipcom e MipTV)

lançaram esse ano a OneMIP, uma plataforma

permanente com diretório de contatos, screenings

e conteúdo de inteligência de mercado. O mercado

asiático, ATF, resolveu promover uma edição com

duração de seis meses.

Atualmente, para entender qual conteúdo

tem mais valor na versão

presencial das feiras de

negócios audiovisuais,

faz-se necessário considerar

a dimensão competitiva

existente a nível

mundial para garantir as

melhores ideias de programas

audiovisuais.

A maioria dos grupos

audiovisuais ocidentais

operou aquisições de

produtoras e de distribuidoras

com grandes catálogos

nos últimos tempos. Isto se deu com o objetivo

de resistir, com poder de barganha, diante das

grandes plataformas americanas de streaming.

A fim de combinar a exigência dos profissionais

do audiovisual de garantir boas ideias de programas

audiovisuais o mais cedo possível e, por

outro lado, oferecer uma programação que justifique

uma participação presencial, alguns eventos,

como por exemplo o Series Mania, enfatizam uma

oferta de sessões de pitchings de autores, roteiristas,

produtores no palco. Ou seja, novos talentos e

novas histórias. Assim, os participantes do Series

Mania compram o valor da curadoria do evento

que justifica uma participação presencial. Uma tal

programação permite atrair os responsáveis pelas

aquisições de séries do mundo inteiro. E quando

24

Eventos on-line não substituem a força do contato

face a face, como na Marché International du Film

os compradores participam, os vendedores também

querem participar.

Para concluir, podemos observar que as

temporalidades mudaram no mundo das feiras de

negócios audiovisuais. A digitalização das programações

dos eventos e a digitalização das relações

comerciais no setor audiovisual induziram novas

práticas de uso dos serviços e do consumo dos

conteúdos de formas não lineares. Para se conformar

com esses novos hábitos, o marketing e

o design de eventos feitos

pelas produtoras de

feiras de negócios já estão

evoluindo.

Podemos antecipar,

infelizmente, uma

redução provável do número

de feiras generalistas

de negócios no setor

audiovisual nos próximos

anos. A competição entre

os eventos é mundial.

Com os numerosos

movimentos de fusões e

aquisições, torna-se reduzido o número de grandes

clientes. Esses mesmos clientes não precisam

estar presentes em um grande volume de eventos

presenciais, quando boas práticas de marketing digital

B2B podem garantir muita visibilidade.

Contando com as ferramentas de análise

de dados e de marketing digital, podemos imaginar

uma multiplicação das feiras de negócios focadas

em nichos de mercado, com pequena audiência,

mas com alto valor para os participantes.

Marché International du Film/Divulgação

Este artigo reflete a opinião de

seu autor, mas não, necessariamente,

a opinião do Sesc em Minas.

Matthieu Thibaudault é Adido Cultural e

Audiovisual da Embaixada da França no Brasil


Culturas nº 3 março 2022

Renca Produções

Futuros

possíveis ou

impossíveis

Artigo: Aline Vila Real

O V Fórum Políticas Culturais em Debate, realizado pelo

Sesc Minas, em parceria com a Embaixada da França no Brasil,

propôs uma discussão acerca da crise do setor cultural desencadeada

pela pandemia da Covid-19 e seus impactos econômicos

no país. Fui convidada a participar de uma roda de conversa com

o tema Reflexões pós-pandemia: Futuros possíveis com a cultura,

no dia 12 de novembro de 2021, mediando o debate com

participação da cineasta Sabrina Fidalgo, o adido de Cooperação

e de Ação cultural do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro,

Alain Arnaudet, e o economista Leandro Valiati.

Apresento aqui, de forma sintética, algumas impressões

sobre o debate que envolve a crise cultural brasileira, as particularidades

da pandemia no nosso país e a profusão de indagações

sobre o futuro.

Ao longo do período em que transcorre a pandemia, ob-

Aline Vila Real

considera fundamental

a participação do

público na retomada do

setor cultural no póspandemia

25


Futuros possíveis ou impossíveis

Culturas nº 3 março 2022

servamos com ainda mais nitidez os efeitos do

desmonte das políticas públicas de cultura, desde

a extinção do Ministério da Cultura, o esvaziamento

da Fundação Cultural Palmares, da Funarte e

de outros órgãos responsáveis por manter projetos

fundamentais para a criação, fruição e pesquisa na

área cultural. Esse desabamento das políticas culturais

anda em linha com a direta responsabilidade

do Governo Federal pelas mais de 600 mil mortes

no Brasil, o desemprego, a fome e a perda de moradia.

Alargou-se o abismo social, evidenciando as

consequências de anos de construção de um país

ancorada no racismo como sistema fundamental

para o desenvolvimento capitalista.

A ausência de diretrizes que pudessem reconhecer

os valores culturais brasileiros e distribuir,

territorialmente, recursos para a manutenção de

uma identidade cultural diversa, forte e inventiva resultou

numa série de descontinuidades; na desarticulação

por parte de estados e municípios, e no desamparo

dos artistas e produtores culturais quanto

às condições de exercício de suas profissões.

No debate realizado no dia 12 de novembro

Marcello Casal Júnior/Agência Brasil

Na pandemia, trabalhadores enfrentaram, além do vírus, a precariedade de alguns serviços, como o de transportes

foi discutido com intensidade o comportamento do

público no processo de retomada das atividades

culturais presenciais; a relevância do setor cultural

e do capital intelectual criativo para o fortalecimento

da economia do país; e a urgência de retomada de

investimentos e fomento para a cultura, voltando a

se impulsionar as produções nacionais também no

âmbito do mercado internacional.

A partir das considerações dos participantes,

constata-se uma nítida importância da participação

do público no processo de retomada das

atividades econômicas culturais. Desse modo, é

fundamental repensar as cidades, seus fluxos e

26


Futuros possíveis ou impossíveis

A pandemia, com seus teatros vazios,

acelerou o processo de desmanche das

políticas públicas federais de cultura

Culturas nº 3 março 2022

Governo do Distrito Federal/Secec/Divulgação

acessos. A Covid-19 destacou questões que sempre

estiveram presentes na dinâmica das cidades

– as categorizações dos sujeitos e suas liberdades

de circulação pelos espaços urbanos. No dia a dia

frenético da pólis observamos como os sujeitos de

diferentes marcadores sociais se movimentam.

O Brasil viveu um isolamento social parcial,

visto que trabalhadores diversos tiveram que enfrentar

a precariedade ainda mais aguda dos serviços

de transporte público e a insegurança em

relação ao vírus. As cenas dos ônibus e metrôs lotados

de trabalhadores em pleno auge pandêmico

revelaram que o planejamento do transporte nas

grandes cidades é pensado apenas para se adequar

às necessidades de “mão de obra” das classes

dominantes.

É uma distorção absurda pensar que nem a

pandemia foi capaz de cessar esse fluxo, enquanto

esses mesmos trabalhadores, moradores de

regiões periféricas, se encontram, na maior parte

das vezes, apartados da programação cultural e

enfrentando dificuldades de acesso aos equipamentos

culturais e espaços de formação.

Em meio a esse cenário, a construção de

futuros possíveis só poderá ser elaborada a partir

da imediata interrupção da ordem de espoliação

dos trabalhadores, entre os quais se incluem os artistas,

para quem a cultura deveria estar no centro

do projeto de desenvolvimento econômico e social.

Só construiremos futuros – possíveis ou impossíveis

– com o redesenho do modelo produtivo

do país. O projeto econômico hoje em vigor traça

uma rota de colapso dos recursos naturais, em favor

da acumulação irracional de riquezas por parte

de uma minoria improdutiva e sustentada por um

sistema financeiro que remunera os seus próprios

controladores.

A valorização da cultura brasileira deve

ser o ponto de partida para o rompimento com a

lógica colonialista e racista que mina a possibilidade

da revelação e socialização da grandeza

do nosso país.

Este artigo reflete a opinião de

sua autora, mas não, necessariamente,

a opinião do Sesc em Minas.

Aline Vila Real é gestora, curadora e

produtora artística. Integrou, por dez anos, o

grupo teatral Espanca!, como coordenadora de

produção e diretora do espetáculo PassAarão

(2017). De 2017 a 2021, realizou curadoria de

alguns festivais de arte. Atualmente, é diretora

de Promoção das Artes na Fundação Municipal

de Cultura de Belo Horizonte.

27


Culturas nº 3 março 2022

“A gente não quer

só comida;

a gente quer

comida,

diversão e arte.”

Por

um

lugar

ao sol

28


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Tomáz Silva/Agência Brasil

De Norte a Sul do

país, uma imensa legião

de brasileiros trava uma

batalha diária para mostrar

que os Titãs estavam certos

quando, ainda nos anos de

1980, compuseram os versos

acima. São populações

pobres, negras e indígenas

que moram, principalmente,

nas periferias das grandes

cidades e lutam por um

espaço onde possam mostrar

sua arte. Conheça um pouco

dessas histórias.

29


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Novecentos e sessenta quilômetros separam,

em linha reta, as capitais de Minas, Belo

Horizonte; e Bahia, Salvador. Porém, ainda que

distantes, as duas cidades abrigam importantes

experiências culturais que as tornam muito próximas

uma da outra. No Aglomerado da Serra, região

Sul da capital mineira, o Baile Funk da Serra

deu visibilidade a DJs e MCs que encontraram na

música um caminho que os retirou do anonimato.

No Beiru, um bairro pobre da região central

de Salvador, habitado, principalmente, por famílias

negras, o artista plástico Anderson AC construiu a

A Pinacoteca do Beiru, o

Baile Funk da Serra e o

Coletivo Nega são exemplos

de projetos oriundos de

populações marginalizadas

que estão cumprindo a

trajetória de profissionalização

que lhes dá maior visibilidade.

Pinacoteca do Beiru, um espaço onde ele produz

seus quadros que, quase sempre, retratam moradores

locais. Na Pinacoteca, ele também oferece

cursos e realiza exposições de arte. De Florianópolis,

no Sul do País, vem a experiência do Coletivo

Nega (Negras Experimentações Grupo de

Arte), um grupo de teatro negro que também percorreu

com sucesso o caminho para deixar sua

marca na cultura. Leia artigo do Coletivo Nega às

páginas 52 a 59.

À frente do Baile Funk da Serra está Cristiane

Pereira, a Kika, uma moradora do Aglomerado

da Serra, um conjunto de oito vilas encravadas na

valorizada região Sul da capital mineira. Seu trabalho

com a cultura começou em 2006, quando o

“som do ponto” começou a chamar sua atenção.

O som era uma Kombi com a qual o idealizador da

Rádio Favela, Mizael Avelino, levava um pouco de

diversão para o morro.

Na época, Kika tinha 12 anos e começou a

aprender os segredos da produção cultural com Mizael.

Com o fim do “som do ponto”, ela resolveu dar

os primeiros passos de sua carreira solo, organizando

alguns pequenos eventos em parceria com o DJ

Marcelo Matos. “Às vezes, era no beco da casa em

que a gente morava. A gente comprava a carne, fazia

churrasco, todo mundo comia e ia bater lata. Foi

assim que começamos a realizar eventos”, explica

Kika, cuja experiência, bem como as de Anderson

AC e do Coletivo Nega foram apresentadas no V

Fórum Políticas Culturais em Debate, uma iniciativa

do Sesc-MG, da Embaixada da França no Brasil e

do Governo de Minas realizada no início de novembro,

em Belo Horizonte.

A história do baiano Anderson com a arte

é o resultado de uma sucessão de trágicos acontecimentos.

O primeiro deles ocorreu em 2003,

quando ele perdeu a mãe vitimada por um câncer.

No ano seguinte, o pai tem um enfarto e morre.

Em 2007, seu irmão mais velho, uma referência

positiva para ele, tem a casa invadida durante

uma reunião com amigos e é assassinado. Para

contar a história da família, restou apenas ele

próprio, que acabou herdando todos os álbuns

fotográficos e documentos dos pais e irmãos,

tornando-se, assim, uma espécie de guardião da

memória da família.

Para não deixar que essa memória se

apagasse, ele começou a produzir obras de arte,

especialmente pinturas, com as quais procurava

relacionar sua memória ancestral com ambientes

abandonados da cidade de Salvador. Para ele, relacionar

os documentos familiares com estes lugares

tinha um sentido muito particular – o de pre-

30


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

servar objetos que guardavam histórias e estavam

presentes em sua memória.

A partir de 2007, Anderson começa a apresentar

seus trabalhos em mostras coletivas de

arte, como a Arte Lusófona Contemporânea, no

Anderson AC

Thuga

Matheus Andrade

Anderson, Kika e Thuanny coordenam projetos que dão visibilidade a populações marginalizadas

Memorial da América Latina, em São Paulo; Afetos

Roubados no Tempo, no Centro Cultural da

Caixa, em Salvador; e Muros, coletiva que reuniu

onze grafiteiros baianos na Galeria do Ferrão,

no Pelourinho.

Em 2010, o talento de Anderson ganhou reconhecimento

internacional, que o levou a dois lugares

relacionados às suas origens. O primeiro foi

Luanda, em Angola, onde realizou residência artística.

O segundo foi a cidade de Évora, em Portugal,

onde realizou sua primeira exposição individual.

A Pinacoteca do Beiru começou a ser montada

em 2015, quando Anderson foi convidado

para uma exposição em Estrasburgo, no Nordeste

da França, e precisava de um local onde produzir

as peças que seriam apresentadas lá. Foi quando

comprou, por R$ 10 mil, um prédio de três andares

com telhado de zinco que havia sido dado como

pagamento de honorários advocatícios ao tio de

Anderson, Lauro da Silva Alves, que havia se tornado

uma lenda no bairro por defender, às vezes

até de graça, moradores encrencados com a polícia

e a justiça. No imóvel, Anderson instalou seu

ateliê e reservou espaço para exposições e a realização

de oficinas para os moradores do bairro.

Para ele, a Pinacoteca se insere na luta

pela ressignificação dos territórios de periferia e

contra o apagamento histórico do Beiru, que, segundo

ele, só é lembrado pelas desgraças e pela

intolerância religiosa. Ao mesmo tempo, é a materialização

do compromisso de mostrar que há

outras possibilidades e que, a partir da cultura e

da arte, e com a autoestima elevada, acreditar que

você pode chegar lá.

Funk

Enquanto Anderson cruzava o Atlântico

para mostrar sua arte e depois fazia o caminho

inverso, retornando ao Beiru, Kika também expandia

sua trajetória no mundo da cultura, porém, sem

cruzar as fronteiras de seu território natal, que é

delimitado, de um lado pela Serra do Curral e, de

31


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

outro, por uma sucessão de bairros de famílias de

classes média e média alta da Capital.

Foi mesmo no Aglomerado da Serra, onde

nasceu, que Kika fez fama como produtora cultural

de bailes que reuniam multidões para dançar funk.

Em média, por evento, eram cerca de seis mil pessoas.

Com isso, a partir de 2006, a prefeitura de Belo

Horizonte passou a exigir alvarás para a realização

dos eventos, o que obrigou Kika a cumprir um ritual

burocrático com o qual não estava habituada.

Em 2017, a morte de um adolescente de

14 anos em um dos bailes chamou a atenção

da polícia, que acabou proibindo os eventos. A

proibição levou Kika a protestar, na Praça da Estação,

no centro de BH, e, ao mesmo tempo, iniciar

gestões junto à prefeitura para que os eventos

pudessem voltar a ser realizados. Depois de

muita negociação, ela conseguiu a liberação,

Observatório das Favelas, do

Rio de Janeiro, defende que

populações marginalizadas

se municiem de informações

estratégicas para que se

posicionem e façam valer seus

direitos na produção cultural.

mas esbarrou na negativa da PM, que vetava

alegando razões de segurança. Depois de certo

tempo e de muita conversa, a PM acabou também

cedendo e liberando os bailes, desde que

fossem realizados com o acompanhamento da

polícia e com hora tanto para começar quanto

para terminar.

O estreitamento dos laços com a PM, segundo

Kika, foi bom para que eles vissem como

era organizado o evento. “Eles foram tomando

confiança de como eram realizadas as festas”,

destaca Kika. Com a pandemia, os bailes foram

interrompidos e, até o final do ano passado, ainda

estavam suspensos.

Porém, independentemente de todos os

imprevistos, o Baile Funk da Serra já tem, a seu

ver, um saldo positivo. O primeiro que ela destaca

é a geração de renda para diversas famílias

do aglomerado, que sempre puderam colocar

suas barraquinhas para a venda de alimentos

e bebidas. Com as barraquinhas, estas famílias

ajudavam a pagar os custos de produção do

baile e, ao mesmo tempo, conseguiam ter uma

renda extra.

Kika afirma que já perdeu a conta do número

de pessoas que a procuravam para dizer que

haviam conseguido reformar o barraco, construir

um novo ou comprar uma televisão com a renda

vinda dos bailes. “As pessoas falavam ‘olha a geladeira

que eu comprei com o dinheiro do baile!’

Não tinha nada melhor do que ouvir isso”, afirma

Kika, que aponta, como segundo ganho propiciado

pelos bailes, a formação de uma geração de

DJs e Mcs no Aglomerado da Serra.

“Você não tem noção da alegria que é ouvir

os depoimentos destes artistas, meninos novos

que tinham todos a ideia de virarem jogador de

futebol. A gente jogava eles no palco sem formação

nenhuma e a galera cantava a música deles.

Foi assim que eles se descobriram.” Para ela, sua

atuação enquanto produtora cultural tem, de certa

forma, o sentido da resistência, tal como, a cerca

de 900 quilômetros dali, em Salvador, pensa, e coloca

em prática, Anderson AC. “O Baile Funk da

Serra é uma cultura nossa. Não é uma coisa fácil

de ser realizada porque nada que vem da periferia

é fácil, o que nos faz sempre perguntar para que

viemos, por que viemos e o que queremos fazer,

ressalta Kika.

32


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Teatro

Quem também conhece muito bem o percurso

da profissionalização é o Coletivo Nega,

um grupo de teatro negro amador criado há dez

anos na Universidade do Estado de Santa Catarina

(Udesc). Com o correr do tempo, a área de

atuação do grupo se ampliou e hoje o Nega trabalha

com projetos nas áreas de teatro, música e

educação que tenham como foco a promoção da

Pinacoteca do Beiru/Divulgação

A Pinacoteca do Beiru oferece oficinas de arte para crianças de Salvador além do espaço para exposições

igualdade racial e de gênero para populações negras,

periféricas, quilombolas, LBTQI+ e mulheres

encarceradas. “Passamos por diversos momentos,

a começar pela não identificação de nosso

trabalho como arte, como algo potente. Assim, de

outras maneiras, a gente foi construindo de forma

independente esse olhar diferente do encontro,

da identificação”, afirma Thuanny Paes, atriz e

gestora do coletivo Nega.

Para ela, a estratégia do grupo passa por

duas vertentes. A primeira é a de buscar o público

esteja ele onde estiver. “Nem todo mundo

quer ouvir, nem todo mundo vai se interessar por

pagar um ingresso para nos assistir. Mas sempre

vai existir um público que vai querer que estas

vozes estejam no palco”, afirma Thuanny. Para

ela, as relações humanas são muito cheias de

brechas pelas quais o grupo vai buscando seu

caminho. “Dependendo de onde a gente se encaixa

enquanto grupo, enquanto coletivo, a gente

vai começando a entender esse jogo”. A segunda

vertente é a do diálogo com as pessoas

que financiam projetos culturais ou, como define

Thuanny Paes, o “mundo da branquitude”.

Nesse cenário, segundo ela, são muitas

as pessoas que desejam que o grupo trabalhe

de forma gratuita, apenas para mostrar sua arte.

Com essas pessoas, o Nega acabou aprenden-

33


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Para as populações marginalizadas, ter

acesso a recursos da cultura significa um

desafio a mais, o de superar os desafios

de capacitação colocados na própria

elaboração dos projetos.

do, ao longo dos anos, que é preciso dialogar, especialmente

pelo fato de o grupo estar em Santa

Catarina, um dos estados com o maior percentual

de população branca em todo o país. Já com

os segmentos que estão na origem do coletivo,

a relação é diferente. “Com escolas, quilombos,

a gente entrega esse trabalho de graça, como

performance, como arte e educação”, explica a

gestora do Nega.

Para ela, o saldo destes dez anos de uma

estratégia centrada nessa dualidade e no diálogo

é extremamente positivo. “Conseguimos,

através do coletivo, construir uma rede, sempre

dialogando com muitas outras pessoas, sempre

criando vínculos com pessoas que se sentem

representadas pelo nosso trabalho. É um desafio

se inserir na indústria cultural, mas é também

uma escolha, pois a gente precisa também

do leite das crianças. A gente também quer ter

qualidade de vida, uma casa. Por isso, a gente

precisa dialogar. A gente conseguiu fazer isso

pelos editais de cultura, mostrando que a gente

tem responsabilidade, ideias e projetos”, afirma

Thuanny Paes.

Kika, Anderson e Thuanny são exemplos

de produtores culturais que conseguiram superar

as barreiras que impedem a livre disseminação da

arte produzida por populações pobres e moradoras

em territórios de exclusão social, como são o

Beiru, o Aglomerado da Serra e os bairros pobres

de Florianópolis onde mora a população negra.

Kika fez valer seu projeto graças à sua persistência

e à rede de colaboradores que criou em torno

dos bailes funk. Anderson, além da persistência e

da rede de colaboradores, conseguiu entrar em

outro universo, o das leis de incentivo, que lhe

permitiu ter acesso a recursos para a manutenção

da Pinacoteca do Beiru. Thuanny, com o Coletivo

Nega, venceu pelo diálogo e pela persistência na

ocupação dos espaços.

34


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Rejeição

Para as populações marginalizadas, ter

acesso a recursos para produzir cultura costuma

ser uma meta difícil de ser alcançada. Por uma razão

muito simples. Participar exige uma certa qualificação

técnica para produzir projetos e, ao mesmo

tempo, apresentar uma série de documentos

que nem sempre é possível conseguir. Por esta

razão é que, no oposto do que pensam Kika e

Anderson, a produtora cultural Kaê Guajajara, do

povo indígena Guajajara, optou pela rejeição do

modelo atual de produção de cultura no país. Leia

artigo de Kaê Guajajara às páginas 47 a 51.

“É uma batalha perdida tentar mudar alguma

coisa dentro desse sistema. O momento agora

é de a gente se unir e pensar um novo modelo,

porque esse modelo está comendo tudo.

Não tem como pensar em ser artista se eu não

consigo respirar um ar, beber uma água, se não

consigo viver, mas apenas sobreviver”, afirmou

Kaê, que é cantora, compositora, atriz, fundadora

do Coletivo Azuruhu e autora do livro Descomplicando

com Kaê Guajajara – o que você precisa

saber sobre os povos originários e como ajudar

na luta antirracista.

Kaê faz parte de um uma iniciativa cultural,

o selo indígena Azuruhu, cujo objetivo é dar visibilidade

aos indígenas que não vivem em aldeias e

sob cuidado da Fundação Nacional do Índio (Funai),

numa situação de dupla marginalização, pois

além de serem indígenas vivem em favelas. Ela

conta que quando começou a se interessar pela

arte, foi obrigada se desdobrar, tendo que ser assistente

administrativa para cadastrar músicas e

cuidar do financeiro, além de realizar um sem-número

de outras atividades, o que acabou desanimando-a

de seguir em frente dentro do modelo

cultural vigente no país.

“Sempre encontramos muita dificuldade

Thugaa

No tempo em que ficou proibido, Baile Funk da Serra atraiu multidões na Praça da Estação, no centro de BH

35


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

para seguir esse caminho da autonomia”, afirma

Kaê, que conta ter esbarrado na dificuldade de inscrever

projetos nos editais de cultura, mais até que

os negros. “Muitos negros conseguem se articular

minimamente para inscrever seus projetos em um

edital, enquanto vejo raríssimos artistas indígenas

fazendo isso”, afirma Kaê Guajajara.

José de Oliveira Júnior, da Secult, considera a

profissionalização importante para evitar que o artista

trabalhe como pedinte de verbas para seu projeto

Outro caminho

Ainda que esteja trabalhando com o mesmo

objetivo dos indígenas – a busca do reconhecimento

e da visibilidade, o Observatório das Favelas,

do Rio de Janeiro, tem um ponto de vista

diferente quanto ao caminho a seguir. O Observatório

é uma ONG fundada em 2001 no Complexo

Secult/MG/Divulgação

da Maré, um aglomerado de 17 bairros de populações

de baixa renda onde moram cerca de 140 mil

pessoas. O Observatório optou por não renegar o

sistema, mas trabalhar para mudá-lo por dentro.

Seu objetivo é produzir conhecimento e políticas

públicas que fortaleçam a democracia a partir da

afirmação das favelas e periferias como território

de potencialidades e direitos.

“Somos contra o sistema, mas estamos

operando nele”, afirma Isabela Souza. Para ela, resultados

efetivos na direção da redução das desigualdades

exigem o uso de ferramentas do próprio

sistema, como os indicadores e os dados abertos.

“Realizadores e realizadoras precisam ter acesso

a esses códigos e com eles defenderem suas narrativas,

seus projetos, e se posicionarem”, pontua

Isabela, que é bacharel em turismo e, atualmente,

é doutoranda em Geografia pela Universidade Federal

Fluminense (UFF) e diretora do Observatório

das Favelas. Para saber mais sobre o pensamento

de Isabela Souza, leia artigo nas páginas 40 a 46.

Para ela, ainda faltam às populações marginalizadas

informações estratégicas para que elas

se posicionem e façam valer seus direitos. “É muito

importante levar as populações da periferia ao uso

dos indicadores. Às vezes, faltam condições para

que elas se conectem. Tais ausências podem, na

área de cultura, levar a avaliações incorretas. Às

vezes, a gente tem a expectativa de que nosso

projeto é genial e que todo mundo tem que gostar

dele. Mas não é assim que acontece. As pessoas

podem gostar ou não gostar de dança contemporânea

ou teatro”, afirma Isabela. Por essa razão é

que ela enfatiza a importância do uso de dados e

pesquisas na definição de projetos com os quais

pretendem defender suas narrativas.

Quem também se queixa da desigualdade

na distribuição de recursos para a cultura é a cineasta

Sabrina Fidalgo. Segundo ela, especificamente

na área do audiovisual, a produção oriunda

de cineastas negros não corresponde, em volume

de recursos, nem a 1% do total investido no país.

36


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

“Quem decide para onde vai o capital é a elite branca”,

afirma Sabrina, que já teve filmes exibidos em

mais de 300 festivais nacionais e internacionais.

Seu último curta, “Alfazema”, lançado no final de

2019, foi duplamente premiado no 52º Festival de

Brasília do Cinema Brasileiro com o Candango de

Melhor Direção e Melhor Trilha Sonora.

Ela afirma que a pequena democratização

ocorrida nos últimos anos se deu não pelo governo,

mas sim pelo avanço da tecnologia digital, que

barateou os custos de produção. Na sua avaliação,

o resultado dessa desigual distribuição dos

recursos é que o cinema brasileiro não reverencia

suas próprias raízes e sim o modelo europeu.

Neste cenário, não há, segundo ela, como avançar.

“Temos que falar de narrativas pretas, de narrativas

indígenas, que é o que está faltando em

termos de pujança cultural do Brasil, que tem que

olhar para dentro. Do contrário, vamos continuar

patinando e produzindo muito conteúdo que não

chega a lugar nenhum”, afirma Sabrina, que defende

uma remontagem radical da cadeia produtiva

do audiovisual brasileiro.

Cortar caminho

Em busca de encurtar esse caminho entre

quem produz e quem financia cultura, a operadora

de telefonia Oi fez uma experiência diferente no

aglomerado do Rio das Pedras, na zona oeste da

cidade do Rio de Janeiro. Ao definir os projetos

culturais que iria apoiar, a empresa foi à comunidade

ouvir, presencialmente, a defesa dos projetos

por parte de seus proponentes. Normalmente,

isso é feito à distância. O empreendedor cultural

entra com o projeto no site da empresa que delega

a uma comissão a responsabilidade de analisá-lo

para definir por sua aprovação ou não. Porém,

tudo isso sempre é feito a distância.

O objetivo da ida ao Rio das Pedras era

identificar projetos de um coletivo que desejava

trabalhar cinema e música na praça. Como não

O avanço das tecnologias

digitais permitiu, no

audiovisual, um maior acesso

aos meios de produção

cultural, pois os equipamentos

são de menor custo e

produzem imagens de alta

qualidade.

havia entre os integrantes do coletivo uma instituição

formal que fosse capaz de desenvolver e

apresentar o projeto pelas vias normais, a banca

de seleção foi aos lugares fazer a escuta. “Foi uma

ação muito interessante porque estava descolada

de um certo formalismo”, afirma Luciana Adão,

coordenadora de Patrocínios Culturais Incentivados

da Oi Futuro, instituição por meio da qual

a operadora atua em projetos de responsabilidade

social.

Além da ida ao Rio das Pedras, a empresa

optou, durante a pandemia, por investir na capacitação

de produtores culturais que não teriam como

participar dos processos de seleção por editais.

De acordo com Luciana Adão, o programa de capacitação,

que dura de seis a oito meses, torna os

participantes mais preparados para atuarem como

produtores culturais. “Na pandemia, a gente entendeu

que, mais importante do que soltar editais, era

entrar na estruturação, para que eles chegassem

mais seguros na retomada”, explicou Luciana.

Quem também defende a qualificação dos

empreendedores culturais é José de Oliveira Júnior,

diretor de Economia Criativa da Secretaria

de Estado de Cultura e Turismo de Minas. Para

ele, essa profissionalização é importante porque

37


Fabiana Batistela, produtora

da Semana Internacional

da Música de São Paulo,

afirma que, historicamente,

no mundo da música, os

movimentos que delimitaram

épocas vieram do universo

negro.

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Patrícia Sorranso

Culturas nº 3 março 2022

evita que o empreendedor cultural continue, como

é muito comum ainda, na posição de alguém que

depende de um favor – a aprovação de seu projeto

por parte do poder público. A profissionalização

é importante também para que a seleção seja feita

segundo diretrizes de políticas públicas e não na

lógica de atendimento a favores.

Ele reconhece que na área cultural nem todos

os empreendedores que vão atrás de financiamento

público o fazem como profissionais da

cultura, mas sim como alguém que tem a cultura,

primordialmente, como uma ação social. Porém,

mesmo entre os empreendedores profissionais do

setor, há uma lacuna a ser preenchida, pois esse

artista tem dificuldade de lidar com o ambiente

profissional da cultura. Segundo ele, boa parte

não pensa o projeto como um negócio artístico e

não atua como um defensor da ideia de que os artistas

que pretendem trabalhar profissionalmente

façam residência para projetos, a fim de que possam

entender e defender a potencialidade de suas

iniciativas junto aos prováveis patrocinadores.

Em São Paulo, a produtora musical Fabiana

Batistela também tem a mesma preocupação

de Thuanny, Anderson AC e Kika – a de inserção

no mundo profissional de populações marginalizadas,

especialmente os negros. Fabiana é uma

especialista na produção de feiras de música. A

mais famosa delas é a Semana Internacional de

Música de São Paulo (SIM São Paulo) evento que,

há nove anos, reúne profissionais do mundo da

música – artistas, produtores, técnicos e representantes

da indústria de equipamentos e instrumentos,

entre outros segmentos. Fabiana é também

fundadora da Inker Agência Cultural, empresa especializada

em assessoria de comunicação para

artistas e eventos de música.

Ela afirma que no mundo da música, o que

há de mais inovador e interessante nos dias de

hoje, vem da periferia. Sendo assim, um de seus

objetivos atuais é trazer essa periferia que produz


Por um lugar ao sol

Culturas nº 3 março 2022

Alfazema/Reprodução

Cena de Alfazema, de Sabrina Fidalgo, que recebeu dois prêmios no 52º Festival de Cinema de Brasília

música para dentro da Sim São Paulo. Para isso, no

último evento, começou a distribuir credenciais para

que estes grupos conhecessem a feira. “Eu quero

essas pessoas”, afirma Fabiana. Ela diz que não só

hoje, mas historicamente no mundo da música, os

movimentos que delimitaram épocas vieram do universo

negro. Por essa razão, defende que os produtores

de feiras musicais façam o mesmo movimento

que ela está fazendo, de inclusão de artistas negros

ao universo profissional da música, cedendo-lhes

credenciais para garantir-lhes a presença nas feiras.

Na música, no cinema, no audiovisual, nas

artes plásticas, o caminho muitas vezes solitário em

busca de um lugar ao sol é longo e exige uma persistente

perseverança, como atestam, por exemplo, a Pinacoteca

do Beiru, o Baile Funk da Serra e o Coletivo

Nega. “A gente tem sempre que provar o que a gente

quer”, ressalta Kika, do Baile Funk da Serra, em Belo

Horizonte. “Não é fácil, mas se não for você a fazer

Na música, no cinema,

no audiovisual, nas artes

plásticas, o caminho muitas

vezes solitário em busca de

um lugar ao sol é longo e

exige perseverança. É um

caminho sem volta, e, ao

mesmo tempo, sem fim

esse trabalho, não vai ser ninguém”, afirma Anderson

AC, da Pinacoteca do Beiru, em Salvador. Trata-se,

como resume Thuanny, de um caminho sem volta e,

ao mesmo tempo, sem fim. “O grande desafio é equilibrar

o lugar de estar inserido no mercado e, ao mesmo

tempo, estar fiel à nossa arte, à nossa existência,

às nossas vivências. Me pergunto isso todos os dias”,

resume Thuanny, do Coletivo Nega, de Florianópolis.

39


Culturas nº 3 março 2022

Davi Marcos

Isabela Souza, do Observatório das Favelas, considera trabalhar com dados fundamental para que se possa

aprofundar olhares e produzir informações sobre o território

40


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

A força

transformadora

dos dados

Artigo: Isabela Souza

A partir do convite do Sesc Minas para integrar a mediação da mesa

Business Intelligence para o setor cultural: levantamento e utilização de indicadores

para o diálogo com o mercado e construção de projetos culturais

do V Fórum Políticas Culturais em Debate, em novembro de 2021, passei a

refletir sobre como minhas inquietações particulares e o histórico de atuação

do Observatório de Favelas 1 podiam contribuir para que saíssemos desse diálogo

com algumas pistas sobre as possibilidades do uso de indicadores para

a cultura tendo em vista o gerenciamento

estratégico da informação e, ainda, sobre

como os dados e o business intelligence podem

ser suporte para a criação de parâmetros

que contribuam para a compreensão de

processos que ocorrem no contexto cultural.

De onde percebo, essa reflexão e

as possibilidades de respostas precisam

ter como premissa um conjunto de desafios

estruturais e conjunturais. Em se tratando

de Brasil e da Améfrica Ladina (Gonzales,

1988), estamos estruturadas/os tendo por

base uma abissal e diariamente renovada

desigualdade socioterritorial, expressa nas

formas destoantes de organização e disponibilização

de recursos materiais, políticos,

simbólicos e culturais, além de violências de

Esse movimento

de, a partir de uma

questão específica

produzir dados, é

necessariamente político

e responde de forma

natural a intenções

determinadas.

41


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

diversas configurações e grandezas.

Para intervir e superar parte dessa dimensão

estruturante e suas principais expressões no

que concerne às favelas e periferias e suas/seus

moradoras/es, em 2001 surgia o Observatório de

Favelas. Com 20 anos de atuação, somos uma

aposta coletiva que reivindica outras centralidades

para os movimentos que nos organizam em

sociedade. Neste contexto, a realização de pesquisas

e a coleta de dados são parte fundamental

deste compromisso. Nascemos e seguimos existindo

porque é preciso pensar o direito à cidade 2

a partir de outras perspectivas territoriais, sociais,

corpóreas, econômicas e étnico-raciais, para que

possamos construir, cada vez mais, cidades que

garantam direitos plenos para o conjunto de seus

habitantes.

Pistas

Imergindo dos desafios conjunturais do presente,

e ainda comprometida com as aberturas de

conversas que podem nos levar às pistas sobre

o convite de reflexão que nos foi realizado pelo V

Fórum Políticas Culturais em Debate, sugiro que

olhemos com atenção para o fato de que estamos,

há quase dois anos, vivendo um cenário de crises

sobrepostas, especialmente no Brasil, mas também

em contexto global, diante dos impactos sanitários,

políticos, humanos, sociais, econômicos e

culturais da pandemia de Covid-19.

No que diz respeito à cultura, vimos o campo

ser um dos mais prejudicados pelas mudanças

impostas pela pandemia. Segundo a pesquisa

Percepção dos impactos da Covid-19 nos setores

culturais 3 , 40% das organizações culturais e de

economia criativa registraram entre 50% e 100%

de perda de receita e, agravando a situação, a categoria

“artistas”, por exemplo, foi uma das vetadas

pelo Governo Federal para recebimento do auxílio

emergencial.

Apesar da Lei Aldir Blanc e de todas as possibilidades

de suporte que ela representou para

realizadoras/es culturais, em favelas e periferias

vimos as/os realizadoras/es se desdobrarem em

muitas/os e estarem engajadas/os não apenas

na busca de alternativas para suas sustentabilida-

Rosilene Milioti/Imagens do Povo

O Observatório trabalha para reforçar a liberd)ade religiosa e o combate a discriminação e o racismo

42


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

Francisco César

e grande ativador cultural e militante da ocupação do

espaço público paulistano, destaca que momentos de

fragilidade acabam sobrecarregando figuras ativas e

representativas no território. “O cara, além de agente

cultural e produtor, é também liderança comunitária. A

preocupação dele agora é como ele faz para fortalecer

a comunidade e não levantar sarau”, diz ele. Dialogando

com Black, lembramos que essas pessoas

são, em geral, comprometidas com pautas amplas

e mobilizam debates e articulações que

estão relacionados a diversos direitos fundamentais,

tendo a arte e a cultura como fio

condutor e ferramenta na formulação de

táticas de atuação no território.

Estas correspondências entre

agentes comunitárias/os e práticas

culturais e agentes culturais e práticas

comunitárias, acontece porque muitas

vezes são as práticas artísticas e suas/

eus sujeitas/os dinamizadoras/es as/os

responsáveis por consolidar uma identidade

territorial capaz de exigir e garantir

direitos fundamentais. Além disso,

essas pessoas, em geral, circulam muito

por dentro de seus territórios e isso lhes dá

as possibilidades de serem conhecidas por

muitas/os outras/os moradoras/es e de conhecerem

de perto demandas coletivas. (SILVA e

BRANDÃO, 2021, p.70)

Pelas lentes dos moradores da

Maré, o registro de um cotidiano

diferente do que tradicionalmente

é veiculado pela mídia, ligado à

violência e à pobreza

des individuais e profissionais, mas também comprometidas/os

com demandas comunitárias por

alimentos e produtos de higiene.

A rápida assimilação das demandas comunitárias

por agentes mobilizadoras/es da cultura em

territórios periféricos e favelados não é um fenômeno

novo. Diante dessa constatação e do contexto atual,

Márcio Black, cientista social e mestre em ciência política

pela PUC/SP, doutor em ciência da cultura (USP)

E, diante deste duplo contexto, temos

observado os inúmeros esforços do setor cultural

e de suas/seus diversas/os protagonistas para se

reerguerem e encontrarem caminhos para sustentabilidade

e retomada de projetos e ações e meu

convite é para que avancemos a partir deste sobrevoo

no campo, observado a partir da centralidade

principalmente de territórios e pessoas historicamente

vulnerabilizadas.

Tendo como partida os elementos apresentados

previamente, faço o convite para que olhemos

e pensemos os dados que servem à cultura

diante dos desafios de compreensão dos contextos

(e, vejam, eu disse contextos, no plural, pois é

preciso naturalizar que o contexto é diverso e que

se constitui como singular a partir de uma escolha)

e dimensões estratégicas do nosso campo, sem

43


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

perder de vista que todas as vezes que optamos

por reunir dados em determinado formato, por algum

motivo específico já estamos expressando aí

uma intenção, por aprofundar em olhares e produzirmos

informações.

Dados ganham corpo e se transformam em

informações que ganham sentidos principalmente

quando são entendidas e aplicadas para o fim ao

que se propuseram. Esse movimento, de a partir

de uma questão específica produzir dados, que

são insumos para reflexões e práticas, é necessariamente

político e responde de forma natural

a intenções. Assim, o mais importante, a meu ver,

é olharmos para a força política e com potencial

de transformação social que as oportunidades de

levantamento e utilização de indicadores em cultura

apresentam. Isso porque esse exercício em

si revela o conjunto dos compromissos que estão

mobilizados pela escolha de tornar pública determinada

narrativa a partir de um percurso de coleta

e análise de dados.

Diálogos

Diante de tamanha diversidade de contextos

e de tamanha responsabilidade, como podemos

dialogar com esse mercado que se institui como

setor cultural? Quais são os indicadores majoritariamente

usados? A que políticas e interesses eles

respondem? Como podemos recentrar o ponto

de onde partem? Quais territórios, corporeidades

e subjetividades estão invisibilizadas/os nos exercícios

de pensar a cultura como negócio? Quais

são as responsabilidades compartilhadas neste

sentido? Quais dados precisam ser produzidos, e

por quem, para que iniciativas públicas e privadas

de fomento reconheçam territórios e sujeitas/os fazedoras/es

culturais historicamente invisibilizadas/

os? Como criamos indicadores para uma inteligência

dedicada à prospecção, não apenas de negócios,

mas também, e sobretudo!!!, de políticas culturais

efetivamente democráticas e comprometidas

Estamos, há quase dois anos,

vivendo um cenário de crises

sobrepostas, especialmente

no Brasil, mas também

em contexto global, diante

dos impactos sanitários,

políticos, humanos, sociais,

econômicos e culturais da

pandemia de Covid-19.

com a redução das desigualdades que nos estruturam?

Como mapeamos impactos econômicos,

sociais, simbólicos e de narrativas de iniciativas

culturais diversas? Como compartilhamos metodologias

para que outras/os sujeitas/os e iniciativas

possam produzir seus próprios dados e figurarem

na cena?

Perguntas

As perguntas são muitas. Eu sei. É que historicamente,

e de forma hegemônica, muitas das

informações e conteúdos produzidos, inclusive na

perspectiva da cultura, não respondem aos interesses

e necessidades de minorias políticas, negras/os

e indígenas, moradoras/es de favelas e

periferias, mulheres, LGBTQIA+. E eu penso que

esse é um espaço para registrar esse diagnóstico

e, ao mesmo tempo, apontar caminhos para rupturas.

Para mobilizar transformações nas leituras

que temos sobre o setor cultural em perspectiva di-

44


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

Durante a pandemia do coronavírus, o Observatório

das Favelas fez ampla mobilização para reduzir o

contágio entre os moradores das favelas

versa, e neste fluxo sermos agentes de mudanças

efetivas e que beneficiem a diversidade que nos

compõe, precisamos estar atentas/os com o que

nos leva a produzir dados, quem são as/os protagonistas

que desejamos escutar e contemplar com

aquilo que pode vir de diferente ao que já está em

curso para o campo.

A boa notícia é

que já há um conjunto

de pessoas, instituições

e coletivos que vêm se

engajando na criação de

outros espaços, metodologias

e narrativas mais

democráticas e que possam,

progressivamente,

ir contribuindo com a redução

das nossas desigualdades

estruturantes

e conjunturais. É central

que o movimento de

produzir dados na perspectiva

de pautar ações

inteligentes no contexto

cultural parta das perspectivas

da diversidade

como caminho e que

lidem com as informações

como sendo aberturas

de agendas que reivindicam direitos.

Como compartilhei no começo dessa nossa

troca, o Observatório de Favelas foi criado há

20 para responder a lacunas de produção de conhecimentos,

políticas e narrativas que partissem

de favelas e periferias. Olho para o hoje e não

tenho dúvidas de que instituições como a nossa

seguem sendo necessárias porque estas lacunas

continuam presentes. O que mudou em duas décadas

é que hoje nos multiplicamos. Por conta do

trabalho de organizações da sociedade civil e da

participação cada vez maior de pessoas de origem

popular, negras/os, mulheres, LGBTQIA+, nos espaços

formais de educação e política, hoje há mais

indivíduos, coletivos, instituições e representantes

políticos que refletem as questões sociais e recentram

debates.

Diante dos diálogos abertos aqui, é possível

pensarmos em um conjunto de compromissos

a partir dos quais devemos estar engajadas/

os caso desejemos incidir

socialmente com

movimentos de pesquisas

e coleta de dados

de cultura, como campo

de significação da vida

e também do mercado.

Se há um interesse

sincero em fazer deste

exercício um passo

concreto para a redução

das desigualdades que

nos estruturam, precisamos

repactuar de onde

partimos e não fugirmos

das responsabilidades

ampliadas envolvidas.

Precisamos, também,

entender que conjuntos

de dados contam a partir

do momento em que

se transformam em informações.

Vamos juntas (os)?

Patrick Mendes/Imagens do Povo

Este artigo reflete a opinião de

sua autora, mas não, necessariamente,

a opinião do Sesc em Minas.

Isabela Souza é doutoranda em Geografia

pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre

em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem

MBA em Gestão de Projetos pelo Ibmec/RJ e é bacharel

em Turismo pela Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Isabela nasceu e

cresceu na Maré e desde 2011, integra o quadro da

oscip Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

Atualmente é diretora da organização.

45


A força transformadora dos dados

Culturas nº 3 março 2022

Nos projetos do

Observatório das Favelas,

a preocupação com a

cultura e a discussão de

temas ligados ao cotidiano

dos moradores, como a

segurança e a educação

Reprodução Facebook

Referências bibliográficas

Gonzalez, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade.

Tempo Brasileiro, 92 (93), 69-82, 1988.

HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais,

São Paulo, n.29. p. 73-89, 2012. LEFEBVRE, Henri. O

Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2008.

SILVA, ISABELA S; GILL, Andréa. B. Renarrando a

história do presente herdado: Práticas, imaginários e

disputas artístico-culturais de uma política de transformação

a partir das periferias – Um olhar sobre o

Galpão Bela Maré. In: 2º CONGRESSO ÍBEROA-

MERICANO DE HISTÓRIA URBANA, 25 a 28 de

novembro de 2019, Ciudad de México. Anais do 2º

Congresso Íberoamericano de História Urbana.

Ciudad de México, 2019, pp. 297-298. Disponível

em: < https://bit.ly/391zWQ8>.

SILVA, Isabela Souza e Brandão, Rebeca. Você tem

fome de quê? Sobre a política cultural necessária

para e a partir de favelas e periferias. Revista Observatório

Itaú Cultural – N. 28 (dez. 2020/jun.2021)

– São Paulo.

1 – O Observatório de Favelas foi fundado em 2001 como um programa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), instituição voltada para a produção

e a disseminação de conhecimento. O então Observatório Social de Favelas, apoiado pela Fundação Ford, tinha objetivos como promover a pesquisa e produção

do conhecimento sobre as favelas e espaços populares, além de apoiar ações nestes territórios que não visassem exclusivamente a elaboração de políticas

sociais compensatórias, características da tradição assistencialista. Hoje, a instituição se define como uma organização social de pesquisa, consultoria e ação

pública dedicada à produção do conhecimento e à elaboração de proposições sociais e políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. Assim, tem como missão

construir experiências que superem as desigualdades e fortaleçam a democracia a partir de ações e projetos nos seguintes campos: Direito à Vida e Segurança

Pública (Direitos Humanos), Arte e Território, Políticas Urbanas, Comunicação e Educação e tendo como temas transversais os debates de raça e gênero. www.

observatoriodefavelas.org.br

2 – A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores

estéticos desejamos. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança

da cidade. Além disso, é um direito comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de moldar o

processo de urbanização. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos mais preciosos e negligenciados

direitos humanos. (HARVEY, 2012, p.74)

3 – Percepção dos impactos da Covid 19 nos setores cultural e criativo do Brasil. 220. Disponível em: <https://iccscovid19.com.br/ >. Acesso em dezembro de 2021.

46


Culturas nº 3 março 2022

Invisíveis

na

música

George Magaraia

Kaê Guajajara afirma que a invisibilização

da música indígena faz parte do processo de

“civilização” dos índios brasileiros, que perdem

os laços com sua cultura original

47


Invisíveis na música

Culturas nº 3 março 2022

Artigo: Kaê Guajajara

Até hoje, muitos compositores da dita música

brasileira bebem de nossas fontes e ritmos,

e se beneficiam da exotificação europeia para se

prevalecerem em suas apropriações. Muitos deles

se dizem donos dos cantos e ritmos que aprenderam,

gerando então o epistemicídio (processo de

invisibilização e ocultação das contribuições culturais

e sociais não assimiladas pelo “saber” ocidental,

segundo definição do sociólogo português

Boaventura de Souza Santos), o apagamento, de

modo que não há hoje a possibilidade de um artista

verdadeiramente indígena registrar sua obra cantada

em sua língua.

Nossas músicas eram tratadas como diabólicas

e as dos brancos impostas a nós como forma

de nos assimilar. Não é de hoje que o mercado da

música no Brasil é monopolizado por uma narrativa

colonial, que é apenas a reprodução de um passado

que nunca passou, onde as estruturas de poder que

regem o país privilegiam conteúdos que têm como

norte a homogeneização dos ditos brasileiros com a

colonização, através de discursos que ditam a “normalidade

colonial” e incentivam pensamentos como

“somos todos iguais”, “tenho que ter mais do que preciso”,

“quero ter muito ouro”, “preciso casar na igreja

e de branco”, “a natureza é linda e nada está acontecendo

com ela” ou “não há diferenças entre nós”. Todos

partem da mesma intenção, que é a de colonizar

corpos para integrá-los em prol do governo.

O ‘desaparecimento’ de nós,

indígenas, está ligado ao

processo de ‘civilização’, pois

para os colonizadores, a forma

de abrir caminho à ‘civilização’

seria transformando os

indígenas em brasileiros.

Um exemplo disso é a União Brasileira de

Compositores (UBC), que é uma das maiores associações

para o registro de músicas e direitos autorais

no Brasil. Não há, dentro do sistema dela, a

opção “língua indígena” ou mesmo “estilo indígena”,

nem mesmo nas distribuidoras. Sendo assim,

somos forçados a registrar nossas músicas como

sendo compostas em português, como música

brasileira e seguindo estilos não indígenas. Há, até

mesmo, a opção de ritmos afro variados, mas não

há uma opção para registro de músicas indígenas.

Isso tudo se funde com o intuito primordial da colonização,

que, por ser considerada pensadora do

mundo, cria mundos racistas e apaga outros povos

e culturas, para que a narrativa dela se sobreponha.

48

A falsidade das rádios

Hoje, os artistas da música mais ricos não

denunciam a realidade do Brasil, e sim alimentam

o que a colonização quer: a monogamia, o dinheiro,

o ouro e deus acima de todos. Os que conseguem

espaço e não estão falando sobre essas coisas,

muitas vezes são perseguidos pelo governo e

presos injustamente. E não necessariamente precisam

alcançar a visibilidade para isso. Para ecoar

a tal música brasileira e suas discussões vieram

as rádios, ditas como “contribuintes diretas da promoção

da cidadania e do fortalecimento da democracia”.

Seus radialistas, tão fiéis ao Brasil, mesmo

que inconscientemente, nunca questionaram a ausência

de artistas indígenas nesses espaços, uma

vez que não é interessante para o Brasil ouvir o

que temos a dizer, já que sempre vamos estar na

contramão do que a colonização quer.

Para eles, é muito melhor a prática do

epistemicídio do que colocar nossos rostos como

agentes da arte, da música, do pensamento. Então,

eles criam meios de ecoar as pseudo-histórias

de conquistas e evolução por meio de ferramentas

que foram feitas apenas para eles e


Invisíveis na música

Culturas nº 3 março 2022

não para todos. Não há democracia nas rádios.

O que há é a disseminação da falsa identidade

que criaram desse território. Chamam as músicas

executadas como músicas daqui, mas que,

na realidade, são europeias com elementos indígenas

e afro.

O que não se vê nesses atores é a iniciativa

de serem agentes de mudança de sua realidade,

servindo apenas para o avanço da colonização

no Brasil, para o entretenimento da branquitude.

Quando esses povos cantam sua realidade, são

vistos como pobres de cultura, como inferiores,

como acontece com os cantos e ritmos indígenas

e também com o funk.

Como indígenas, nunca conseguimos entrar

na bolha do que as rádios e televisões estão

tocando. Se algum de nós conseguiu, com certeza

estava bem ensaiado e, de alguma forma, censurado.

Então, eles pegam algum de nós para falar o

que eles querem, como: “precisamos amar a natureza,

cuidar de tudo para que não acabe, que estamos

vivendo felizes na aldeia, que a natureza é

linda e que estamos muito bem e felizes”; não para

denunciar as consequências da colonização.

Racismo estrutural

É novo para mim, e acredito que para muitos

parentes meus, conseguir expressar nossas vivências

e narrativas por meio da música, já que antes

a usávamos para cantar músicas religiosas, quando

tentavam nos assimilar em nossa infância. Agora,

estamos reivindicando nossas vivências com

essas mesmas ferramentas, e, quando finalmente

o fazemos, damos de cara com o racismo estrutural,

que não nos deixa invadir outras bolhas de interesses

por questões políticas, sempre com aquela

velha história de que vamos impedir a evolução. E

aí deixo a provocação: do que mais poderíamos

falar quando estamos até hoje sendo roubados e

vivendo às margens do Brasil, que vai “avançando”

e nos jogando de lado com a flexibilização de leis

que diziam que eram para nos proteger, mas que

só nos matam a cada dia que passa?

Ser indígena e artista no mundo da música

é tentar respirar quando, nas nossas necessidades

básicas, para viver, estamos sendo atingidos, forçados,

impostos, roubados e censurados, porque sermos

quem somos é contra a proposta do Brasil, que

Heitor Villa-Lobos teria

se utilizado da música

indígena brasileira,

mas sem dar o devido

crédito às fontes nas

quais se inspirava

49

Museu Villa-Lobos/acervo


Invisíveis na música

Culturas nº 3 março 2022

quer crescer criando uma falsa identidade de território

em cima de nossos corpos, e não valorizando os

verdadeiros originários dessa terra que vos pisa.

É importante falar sobre onde esse mercado

musical está inserido. Aí, sim, podemos falar sobre

como ele funciona e em que condições opera.

Toda a estrutura da sociedade brasileira, incluindo

o mercado, está fundada no racismo estrutural, que

começa com a chegada dos colonizadores portugueses.

Enquanto brancos faziam planos para

serem artistas/músicos de seu tempo, a música

estava sendo usada como ferramenta para assimilar

e civilizar indígenas, e assim impor a identidade

brasileira, como descreveu o crítico e pesquisador

da música brasileira José Ramos Tinhorão em A

deculturação da música indígena brasileira (1972).

Ele afirma isso com base em carta de 1549

enviada pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega ao

padre Simão Rodrigues. No documento, ele informa

que um outro integrante da congregação estava ensinando

os meninos índios a entoarem canções na

língua deles, porém com o conteúdo modificado sem

as partes “lascivas e diabólicas que antes usavam”.

Assim, o “desaparecimento” de nós, indígenas, está

ligado ao processo de “civilização”, pois para os colonizadores,

a forma de abrir caminho à “civilização”

seria transformando os indígenas em brasileiros.

Quando chegaram aqui, os colonizadores

encontraram muitos povos indígenas que já eram

músicos e usavam vários instrumentos, como o chocalho,

o maracá (seja segurado por hastes e tocado

com as mãos; seja amarrado nos tornozelos ou

tocado a partir da movimentação dos pés), percussões

em madeira ou em membranas, zumbidores

(instrumentos que emitem sons quando agitados no

ar), flautas de diferentes tipos, materiais, tamanhos

e sonoridades e, especialmente o canto coletivo, de

característica essencialmente monódica.

Quem descreveu o significado da música

para os indígenas foi o museólogo Bruno Kiefer, no

livro História da música brasileira (1997), a partir

Ser indígena e artista no

mundo da música é tentar

respirar quando, nas nossas

necessidades básicas, para viver,

estamos sendo atingidos, forçados,

impostos, roubados e censurados,

porque sermos quem somos é

contra a proposta do Brasil.

de relato de 1557 do francês Jean de Léry. Essas

cerimônias duraram cerca de duas horas e, durante

esse tempo, os quinhentos ou seiscentos selvagens

não cessaram de dançar e cantar de um

modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem

música.

Se, como disse, no início dessa algazarra,

me assustei, já agora me mantinha absorto em

coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e

sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada

copla: Hê, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre,

uêh. E ainda hoje quando recordo essa cena, sinto

palpitar o coração e parece-me a estar ouvindo.

Os jesuítas aprenderam línguas originárias

das várias etnias indígenas que existiam naquela

época para poder introduzir a cultura europeia

naquele contexto. Segundo Vasco Mariz, no livro

História da música no Brasil (1983), o processo

de catequização levou os jesuítas a escreverem

“autos” em português e em língua local, ensinar

as crianças indígenas a cantar, a dançar e a tocar

diferentes instrumentos de origem europeia, como

flautas, gaitas, tambores, viola e até cravo.

Em Música: breve história (1999), o pesquisador

musical Edson Frederico afirma que uma característica

importante do povo indígena era sua relação

com a música, levando os indígenas a poupar as vidas

de seus inimigos sempre que estes demonstras-

50


Invisíveis na música

Culturas nº 3 março 2022

sem serem músicos ou cantores. Essa relação ajudou

os índios a absorverem a proposta catequética

dos jesuítas, sem perceberem que este processo os

distanciava, cada vez mais, de sua cultura.

Vivência e intelectualidade

invisibilizadas

Enquanto estávamos sendo invisibilizados

e dados como seres que precisavam ser assimilados,

integrados e exterminados, Heitor Villa-Lobos

bebia de nossas fontes e garantia o título de maior

compositor clássico brasileiro e presidente da Academia

Brasileira de Música, sendo até chamado de

Villa-Lobos e seu estilo indígena, como descreveu

Paulo Renato Guérios (2003) em Heitor Villa-Lobos,

o caminho sinuoso da predestinação.

Para representar o Brasil musicalmente,

Villa-Lobos achava necessário sintetizar a música

popular e a música indígena. Fica claro que o

Brasil que Villa-Lobos representa em sua música

é o Brasil selvagem e exótico e não qualquer Brasil,

mas o Brasil concebido pelos parisienses. Nos

Choros, Villa-Lobos transportava para a linguagem

musical as imagens europeias sobre a nação brasileira:

a nação da natureza, dos índios e também

dos personagens da música popular.

Villa-Lobos tornou-se um músico brasileiro

conforme a imagem que o espelho europeu lhe

mostrava. Segundo Guérios, não interessava a Villa

-Lobos a citação das fontes das quais originavamse

suas histórias. Sua personagem estava sendo

construída, para francês ver, parodiando um antigo

ditado popular. Ainda que estas fossem apenas recompilações

de histórias transmitidas oralmente.

Este artigo reflete a opinião de sua autora,

mas não, necessariamente,

a opinião do Sesc em Minas.

Kaê Guajajara é cantora, compositora,

arte-educadora, criadora do estilo musical

Música Popular Originária (MPO) e fundadora do

coletivo Azuruhu.

Indígenas produzem

músicas que não podem

ser registradas como tal

pela União Brasileira de

Compositores nem são

executadas nas emissoras

de rádio

Marcello Casal/Agência Brasil

51


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

Artigo: Alexandra de Melo e Rita Roldan

Maria Luisa Coura

Matheus Trindade

Alexandra de Melo e Rita Roldan defendem modificações estruturais na sociedade brasileira, para que

deixem de existir manifestações culturais marginalizadas

Muito

mais

do que

diversão

e arte

Em Florianópolis, no Sul

do Brasil, capital do Estado mais

branco – em proporção ao número

de negros – do País, nasce em

2010 um grupo que se denomina,

“grupo de teatro negro”, uma

afirmação importante para encarar

a luta pela ocupação cultural e

artística na cena da cidade. O

diferencial de se rotular com o

termo “teatro negro” é abrir espaço

para esta manifestação ganhar

possibilidade de existência, de

autoafirmação enquanto linguagem

artística feita por pessoas

socialmente racializadas, negras.

52


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

Logo, o grupo é questionado do porquê desta

autoafirmação “negra” e é acusado de racista reverso,

pois “estaria excluindo não negros da participação”.

Segundo Evani Tavares Lima (2010):

[...] essas são as faces distintas que podem ser assumidas

pelo teatro negro: a performática, que abarca

manifestações espetaculares negras, em geral; o de

presença negra, apresentando formas mais especificamente

teatrais; e o engajado que, por seu turno,

prioriza atuar numa esfera de maior posicionamento

político. Resumindo, poderíamos dizer que essas

três categorias nas quais classificamos o teatro negro

constituem as três principais vias de abordagem

desse teatro: a dramaturgia, as formas expressivas

negras e o discurso militante. Essa riqueza de pontos

de vista só aponta para o caldeirão de possibilidades

sugeridas pelo teatro negro. A aproximação e/ou fusão

dessas variantes, ou sua exploração particularizada,

são igualmente fundamentais, pois suas resultantes

ecoarão naturalmente num discurso estético que desenha

esse teatro: temática negra + perspectiva negra

+ formas inspiradas em elementos da performance artística

negro-africana.

Percebemos que seria um grande desafio

conquistar um público interessado no assunto e

na linguagem artística. Desafio ainda maior em se

tratando de remuneração pelas nossas apresentações,

pois além do nosso nome, buscávamos reflexões

sobre o racismo no conteúdo das peças, sendo

considerado, além de “grupo de teatro negro”,

um “grupo de teatro negro engajado”. Na mesma

tese citada anteriormente, Lima revela, enquanto

conceito, visões sobre o que poderia ser considerado

um teatro negro engajado:

De acordo com a estudiosa Leda Martins (1995), o

teatro negro, enquanto conceito, não se limita apenas

ao aspecto da cor, da etnia, mas engloba um conjunto

outro de elementos que lhe dá complexidade e

demarca sua diferença. Para um dos mais importantes

pensadores da militância negra norte-americana,

Du Bois (1) , o teatro negro seria aquele cuja temática

discute questões negras, é produzido e realizado por

artistas negros e dirigido para espectadores negros,

em comunidades de contingente negro. Para Abdias

do Nascimento, esse teatro seria um “instrumento de

redenção e resgate dos valores negro-africanos.”

Portanto, o Coletivo Nega possui em sua trajetória

a luta contra o racismo como cerne da forma

e do conteúdo de suas obras. Desde 2010, o grupo

levanta questionamentos sobre o capitalismo e lida

com a visão de negócios que nos invisibiliza e tenta

nos manter à margem da lógica do mercado e também

do Estado. No presente artigo, vamos trazer

alguns desafios que permeiam nossa caminhada.

Tokenismo

Até hoje vivemos um conceito social que

surgiu 1950, nos EUA, em meio à luta racial por

direitos civis, o tokenismo (termo derivado da palavra

de origem inglesa token, que significa símbolo)

e que é, de acordo com Beth (2018):

[...] uma forma de perpetuação das desigualdades

raciais e de gênero, pela falsa representatividade nos

espaços de decisão e poder. A representatividade,

quando não atende à lógica da proporcionalidade, é

falsa e não atende o principal propósito a que se dispõe:

diminuir a marginalização de sujeitos pertencentes

a grupos minoritários.

Essa prática é comumente utilizada em empresas,

veículos de comunicação, espaço de poder

político e no marketing para justamente criar uma

imagem de um local “que não é racista” por ter um

token, ou seja, um símbolo que representa a sua minoria,

no caso a população negra. O tokenismo apenas

cria uma representatividade distorcida sobre a

parcela a ser presentada pelo token, polariza o grupo

e ainda cria estereótipos de diversas camadas.

Nas artes isso não é diferente, pois chamadas

“minorias” sempre estão em uma parcela muito

reduzida e dificilmente em papéis de protagonismo.

É comum vermos produções teatrais embranquecerem

personagens negros quando em lugar de destaque

ou deixar esse único personagem com sua

identidade racial preservada para preencher a “vaga

de cotas” no espetáculo em que o restante do elenco

e produção continuará majoritariamente branco, cis

(pessoa que se identifica completamente com o seu

53


A gente não quer só comida

gênero de nascimento) e heterossexual.

O tokenismo se alastra para todos os setores

da iniciativa privada e, quando chega nos setores

onde existe uma política cultural, ele age de

forma minuciosa para que seu papel seja cumprido

e as organizações privadas tenham sua imagem

de diversidade e antirracista construídas e preservadas.

Isso significa convidar artistas negros para

falar sobre racismo ou apresentar suas criações

acerca do tema em novembro, por exemplo, para

aproveitar o Mês da Consciência Negra.

Reparem como ao longo do ano pessoas negras não

aparecem em eventos para falar sobre suas atividades

profissionais ou seu estilo de vida de maneira

aleatória. Mas, basta novembro se aproximar e um

punhado de solicitações chega para falar em racismo.

Mas não para falar sobre racismo como se deve falar,

e sim como as mesas determinam e os organizadores

(na maioria das vezes brancos) já decidem de antemão

qual será a temática permitida ali. Não importa se

você é médico, advogado, dançarino ou oceanógrafo.

Importa é que você, pessoa negra, conte alguma história

emotiva de meritocracia e alguns dramas raciais,

romantizados o bastante para não ferir os ouvidos da

audiência branca (BETH, 2018).

Assim, somos condicionados a tratar de

um problema estrutural construído e mantido pela

branquitude em um dos 12 meses que compõem

um ano. Muitas vezes, conseguimos driblar as solicitações

e/ou expectativa dos contratantes, com a

plena consciência de que provavelmente eles nunca

mais nos chamem para participar de nenhum

de seus eventos artísticos e/ou culturais. Desta

forma, nossas produções continuam à margem, da

mesma forma de que nosso povo de origem. Pois

nossas expressões artísticas são perigosas para

um sistema construído com o suor e o sangue dos

nossos antepassados e mantido com o nosso. Beth

(2018) resume bem o tokenismo ao dizer que ele é:

[...] grosso modo, é uma desculpa muito perversa para

pessoas brancas (e homens) não assumirem suas

responsabilidades na desconstrução, pessoal e coletiva,

necessária para que alcancemos a verdadeira

equidade em todas as camadas sociais.

Indústria cultural

Culturas nº 3 março 2022

Aliado ao tokenismo temos a indústria cultural,

com seu poder de exercer a manipulação das

pessoas e resultando num controle social ligado à

ideologia hegemônica, que é uma ideologia capitalista,

imperialista, racista, machista, homofóbica,

gordofóbica, etc.

Enfim, é uma junção de todas as opressões

O diferencial de se rotular com

o termo “teatro negro” é abrir

espaço para esta manifestação

ganhar possibilidade de

existência, de autoafirmação

enquanto linguagem artística

feita por pessoas socialmente

racializadas, negras.

possíveis para que o sistema capitalista continue

funcionando a todo vapor. Além do mais, a indústria

cultural gera muito lucro e influência pelo seu

poder de massificação, o que torna as produções

artísticas que se encaixam no padrão da indústria

cultural muito mais interessantes para a iniciativa

privada, pois esse tipo de produção gera lucro quase

que imediato quando comparado a artes que

não se encaixam nesse nicho e/ou não se enxergam

como nicho.

Aqui, referimo-nos a grupos de teatro com

54


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

Malira, Maria Luisa Coura, Olavo Kucker e Jhonny Strinde

Formado por Alexandra de Melo, Michele Mafra, Thuanny, Sarah Motta, Franco, Rita Roldan e Fernanda

Rachel, o Coletivo Nega questiona a visão de negócios que tenta mantê-lo fora do mercado da arte

55


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

foco em processos e desenvolvimento pedagógico,

teatro político e suas diversas vertentes, teatro

negro engajado e outros mais. Também temos outras

áreas artísticas e culturais que estão fora da indústria

cultural, principalmente por não serem passíveis

de massificação nos seus moldes. Dentro

de todo esse processo, as manifestações não são

apenas invisibilizadas, mas também são exploradas

de todas as formas possíveis, aprofundando

ainda mais a precarização dos artistas.

Trabalho pago com visibilidade

Uma máxima atual de reclamações de artistas

tem sido as propostas de troca do valor do pagamento

do trabalho (em dinheiro) por visibilidade.

Num momento em que visibilidade, no sentido literal

(imagem), cabe na mão das pessoas, as mídias

competem para conquistar segundos de atenção

dos olhares. Nesse cenário, a comunicação se dá

O tokenismo é uma prática

muito utilizada em empresas

e pela mídia para criar uma

imagem de um local “que não

é racista” por ter um token,

ou seja, um símbolo que

representa a sua minoria, no

caso a população negra.

de modo quase instantâneo e a visibilidade se torna

uma moeda de troca. Poderia ser um ótimo pagamento,

já que a arte é um instrumento poderoso

de comunicação e disseminação de ideias; logo,

conquistar mais atenção e olhares poderia ser

um objetivo final atraente. O que

gera, então, o repúdio dos

artistas por este tipo de

“pagamento”, que troca

remuneração por “visibilidade”

e é considerado

um grande

desrespeito?

Vou direto

ao ponto com

um exemplo de

uma fala do personagem

Earnest

Earn Marks (Earn),

interpretado pelo ator

Donald Glover, na série

televisiva Atlanta, produzida

e dirigida pelo mesmo: “Eu

sou pobre e pessoas pobres não têm

tempo para investimentos, porque estamos ocupados

tentando não ser pobres. Eu preciso comer

hoje, não em setembro”, disse o personagem.

No contexto desta cena, o personagem

Earn está desempregado e precisa vender seu

aparelho celular para pagar contas. Seu amigo

lhe sugere fazer algumas trocas como investimento

para que, no fim das dos escambos, os

190 dólares que recebeu na primeira proposta

pela venda do celular, se torne um valor entre

2 mil e 4 mil dólares, se tudo ocorrer como pretendem.

De cara, parece-nos uma proposta interessante,

sem margem para dúvidas. A questão

é que esse valor só poderia ser pago depois de

alguns meses. É uma proposta básica de investimento

a longo prazo num mundo capitalista. No

entanto, Earn precisa comprar comida “hoje”.

A visibilidade de um artista também é um

investimento, pois nós trocamos horas de ensaios,

pesquisas, treinos técnicos e criativos

para gerar um resultado promissor, de acordo

com nossas propostas. Buscamos nos apresen-

56


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

tar – presencial ou virtualmente – para impulsionar

uma certa “fama” e “chegar na boca do

povo”. De início, é muito comum se fazer estas

aparições por conta própria, sem remuneração

em dinheiro. Porém, não é intenção que isso se

mantenha assim, principalmente se somos “pobres”,

apenas para citar novamente a fala do

personagem acima.

A classe artística no mundo ocidental é,

histórica e predominantemente, composta pela

classe economicamente pobre, com cunho político

em relação à crítica aos sistemas de opressão.

A arte também é considerada um respiro da

expressão de subjetividades e individualidades,

mas que, por contextos coletivos, resulta em expressões

populares da arte.

Neste sentido, aparentemente, pode parecer

que a arte não seja um setor importante

na vida cotidiana (numa visão capitalista de

geração de lucro), que pode ser entendida, superficialmente,

como um passatempo/entretenimento,

tanto para quem produz quanto para

quem consome, ou ambos. Ou seja, ela pode

ser considerada um hobby. Isto quando se trata

de pequenos artistas, ou artistas independentes

que não ganharam as grandes mídias.

A falta de remuneração dos artistas, ou o

desmerecimento dela por parte dos contratantes,

se alastra ainda mais quando se trata de

obras que abordam conteúdos que provocam

reflexões mais profundas sobre a sociedade,

que provocam inquietações políticas de protesto

contra as opressões capitalistas. Estas artes,

no geral, não são consideradas lucrativas para

a iniciativa privada.

A arte como profissão, no senso comum

capitalista, só é considerada “pagável” se a obra

está massificada. Mesmo que haja artistas que

Das lutas dos negros americanos pelos direitos civis, nos anos de 1950, surgiu o

tokenismo, que é muito criticado por significar uma integração apenas simbólica

Wikimedia Commons

57


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

A falta de remuneração dos artistas, ou o desmerecimento dela

por parte dos contratantes, se alastra ainda mais quando se trata

de obras que abordam conteúdos que provocam reflexões mais

profundas sobre a sociedade.

não pretendam ser remunerados pelas suas expressões,

há os que se arriscam em tentar “viver

disso”. Digo “se arriscam” porque, no nosso

país, assumir a jornada artística como fonte de

renda não é simples e estável. Mas há quem

faça esta escolha e há muita gente. São aqueles

e aquelas que não estão nos holofotes, nas telas

das emissoras, nos espaços da mídia de massa.

São aqueles e aquelas que estão se apresentando

nas ruas, nos bares, nas suas pequenas

páginas na internet, em busca de um “lugar

ao sol”. E esse “lugar ao sol”, de modo minimamente

ambicioso, é receber dinheiro pelo seu

trabalho. Mesmo nas ruas, bares, pequenas páginas

virtuais, os/as artistas servem de atrativo

para comerciantes próximos, para divulgação de

marcas comerciais, para fins de lucratividade do

mercado financeiro. No entanto, o retorno à altura

do que se gera em publicidade não vem, não

chega no bolso do artista.

Há contratantes que pretendem veicular

propagandas, atrair clientes pagantes às custas

deste tempo de trabalho, mas querem pagar o

trabalhado com “visibilidade”. Não que isso não

seja importante, mas ela, sozinha, não enche o

bolso, não é moeda de troca no mercado para

Netflix/Divulgação

Na série americana Atlanta, o personagem de Donald Glover (d) encarna o dilema entre o presente e o futuro

58


A gente não quer só comida

Culturas nº 3 março 2022

comprar comida, pagar o aluguel, o transporte

de ida e volta, nem os serviços de internet para

fazer o upload da sua gravação. A não ser nas

peças publicitárias dos grandes anunciantes, em

que a representatividade comercial das chamadas

diversidades vem crescendo bastante.

Neste sentido, artistas que antes eram excluídos

sistematicamente deste setor (como pessoas

negras, indígenas, deficientes, LGBTQIA+)

estão aparecendo com mais frequência nas telas,

com ênfase na manifestação de suas imagens.

No momento atual, com a pauta das lutas

pela igualdade de direitos sendo uma bandeira

de fachada interessante para ampliar o público

consumidor, as empresas têm se aproveitado

desta “inclusão”, sendo este movimento, contudo,

ainda circunscrito aos limites do tokenismo.

Os conteúdos e os corpos artísticos que protestam

ainda têm presença escassa e pouco valorizada

nestas mesmas mídias. Ou seja, é uma

representatividade que se dá muito mais na imagem

do que na ideia.

Independentemente se o artista se propõe

a um conteúdo de entretenimento, anestesiante

ou transformador politicamente; independentemente

se ele ou ela quer “viver disso” (financeiramente)

ou não; independente se é um artista

massivamente conhecido ou não, o fato é que

nós, artistas, assim como o Earn de Atlanta, também

precisamos comer hoje, depois de amanhã,

todos os dias, em pequeno, médio e longo prazos,

até chegar o tal “setembro”. A “visibilidade”

por si só, não põe comida na mesa. E, detalhe:

“a gente não quer só comida” (2) . Ser um trabalhador,

trabalhadora ou trabalhadores da arte é

um ato de resistência. Isso é indiscutível. É preciso

mudanças estruturais profundas na nossa

sociedade para que não existam manifestações

culturais marginalizadas e invisibilizadas. É com

esse objetivo que continuamos a tirar leite de pedra

para seguir com nosso ofício.

Este artigo reflete a opinião de

suas autoras, mas não, necessariamente,

a opinião do Sesc em Minas.

Rita Roldan é negra, atriz, compositora

musical, poeta, percussionista, estudante de licenciatura

em Teatro da Universidade do Estado de

Santa Catarina (Udesc), metida a cantora, arte-educadora,

trancista, amante do carnaval. É integrante

dos grupos coletivo Nega, bloco Africatarina

e Núcleo de Diversidade e Ações Afirmativas

(Nudha/Ceart/Udesc).

Alexandra de Melo é negra, atriz, profissional

de iluminação, produtora e arte-educadora. É

também integrante dos coletivos Nega e Agemo.

Referências

ATLANTA. Direção: Donald Glover. Produção: Donald

Glover. EUA: FX Networks, 2016. Netflix, temporada

1, episódio 4 (23 minutos), som, cor, legendado, português.

Disponível em: https://bit.ly/3gsZKaE. Acesso

em 12 de novembro de 2021.

ANTUNES, Arnaldo. BRITO, Sérgio. FROMER, Marcelo.

Comida. Rio de Janeiro: WEA, 1987

BETH, Joice. Tokenismo e a Consciência Humana:

uma prática covarde. Medium, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3GrEJY9.

Acesso em 5 de dezembro de 2021.

LIMA, Evani Tavares. Um olhar sobre o Teatro Negro

do Teatro Experimental do Negro e do Bando de

Teatro Olodum. Campinas: UEC, 2010.

MARTINS, L. A Cena em Sombras. São Paulo: Perspectiva,

1995.

NASCIMENTO, A. Teatro Experimental do Negro:

Testemunhos. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.

1 – Willian Edwards Burghardt Du Bois – W.E.B. Du Bois (1868-1919) PhD em Harvard, professor de economia e história, militante negro, jornalista e um dos mais

representativos intelectuais negros atuante no movimento cultural, revolucionário negro norte-americano no início do século XX. Du Bois foi um dos grandes defensores

e incentivadores da criação de um teatro negro norte-americano. Foi integrante da famosa NAACP – National Association para o Advanced of Colored People

(Associação Nacional para o Desenvolvimento de Pessoas de Cor). Em sua revista The Crisis (1900), abriu espaço para veiculação e discussão da especificidade

da arte negra e suas potencialidades como ferramenta política. Criou também o Krigwa Playwriting Contest (1926), revista que publica textos de dramaturgia negra

norte-americana (HILL, 2003). Ver também David Levering Lewis (1994). (LIMA, 2010)

2 – Trecho da música “Comida”, da banda Titãs. Compositores: Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Britto.

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O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

O exemplo que

vem de fora

A França é conhecida por ser um país em que a cultura e as artes têm uma

expressão muito forte, seja nos museus ou no cinema, ou na street art,

apenas para citar algumas áreas. A exemplo do Brasil, a França também

tem seus modelos de financiamento do setor. E, cada vez mais, faz uso de

dados para dar uma dimensão econômica aos seus projetos, ao mesmo

tempo que estuda novos modelos para o financiamento do setor.

M00écènes de Sud/Divulgação

Mécènes du Sud foi criada em 2003, em Marselha, com o

objetivo de apoiar artistas locais e, ao mesmo tempo, levar

a população a descobrir os valores da arte

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O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

No Brasil, o modelo de financiamento da

cultura é híbrido. Há as leis de incentivo, que

funcionam basicamente pela renúncia fiscal,

mecanismo no qual o poder público abre mão

de receber tributos, que são direcionados pelas

empresas para o apoio a determinados projetos

previamente aprovados pelo poder público. Há,

ainda, os fundos, que são aportes de recursos

feitos diretamente pelo governo federal, estados

e municípios. No caso das leis de incentivo, o

patrocínio é feito individualmente, empresa por

empresa. Da França, vem outro modelo, que

ainda não existe no Brasil, no qual uma coalizão

de empresas financia projetos de cultura.

A iniciativa existe desde 2003, na cidade

de Marselha, no Sul da França, e tem o nome de

Mécènes du Sud. É um modelo de financiamento

atípico também naquele país, onde a cultura

é subvencionada pelo Estado ou por empresas

privadas, mas individualmente, como no Brasil.

No início, eram oito empresas unidas na Mécènes

du Sud; em dois anos, passaram a ser 25 e

hoje são 40.

A trajetória da instituição foi apresentada

no V Fórum Políticas Culturais em Debate, uma

iniciativa do Sesc-MG, da Embaixada da França

no Brasil e do Governo de Minas realizada

no início de novembro de 2021, em Belo Horizonte.

No mesmo evento, outras iniciativas da

França e do Brasil também foram apresentadas

e discutidas.

Em 2013, a ação da Mécènes du Sud foi

de grande importância para que a cidade recebesse

o título de Capital Europeia da Cultura.

De acordo com Bénédicte Chevallier, diretora

da instituição, em 2003 quando tudo começou,

Marselha era uma cidade que em nada

lembrava aquela que, dez anos depois,

receberia o reconhecimento internacional.

“Era uma cidade com uma imagem

muito ruim, com lixo nas ruas, ratos e

greves”, afirmou Bénédicte Chevalier,

que, antes de assumir a Mécènes du

Sud, atuou como gerente em diferentes

galerias de arte e centros culturais

na França e no Marrocos. Segundo ela,

foi nesse momento de retração da imagem

da cidade que alguns empresários

se mobilizaram para mudar a realidade lo-

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O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

Mécènes de Sul/Divulgação

Benedict Chevalier afirma que Mécènes de Sud é um modelo de financiamento à cultura atípico na França

cal. E fizeram isso por meio do incentivo a projetos

culturais.

Nos primeiros dez anos de atuação, a Mécènes

du Sud atuou de forma transdisciplinar,

incentivando projetos de áreas diversas, como

artes cênicas, teatro, dança e artes visuais,

além do apoio a feiras de arte contemporânea

e às primeiras residências de artistas em empresas.

A primeira fase terminou em 2013, com

a consagração de Marselha como Capital Europeia

da Cultura. Em 2014, o projeto passou por

mudanças. Em vez de apoiar várias iniciativas

ao mesmo tempo, o grupo decidiu que somente

um projeto passaria a ser apoiado anualmente e

com um grande volume de recursos. A segunda

decisão foi a de reduzir a apenas uma área – a

das artes contemporâneas – o leque dos segmentos

a receberem incentivo.

Para Bénédicte Chevallier, a Mécènes du

Sud contém duas dimensões importantes. A primeira

é a da humildade dos participantes diante

da experiência. “As empresas se comprometem

discretamente, porque não é o nome delas que

aparece, e sim o da Mécènes du Sud”. Além

disso, a coalizão permite que empresas de menor

porte também participem do financiamento

62


O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

de projetos culturais, algo que, individualmente,

não faria muito sentido, porque o volume a ser

aportado por cada uma delas talvez não fosse

suficiente para dar sustentabilidade a um projeto.

Entretanto, em grupo, essa sustentabilidade

se torna viável.

No Brasil, de modo geral, quem financia

a cultura via leis de incentivo

são empresas de grande porte.

Raras são as pequenas e médias

que se aventuram por

este terreno, em parte

por desconhecerem

como funcionam

os mecanismos de

renúncia fiscal. Nas

mãos das grandes empresas

o que ocorre é, de um lado,

uma corrida dos empreendedores

culturais pelos recursos privados; de

outro, uma corrida dos financiadores por

empreendimentos que sejam capazes de

lhes dar o máximo de visibilidade. Isto quando

não são as próprias empresas que criam suas

fundações e para estas instituições direcionam

os recursos da renúncia fiscal a que têm direito.

Até onde se sabe, não há no Brasil iniciativa

semelhante ao da Mécènes du Sud, em que

várias empresas se unem para apoiar projetos

culturais. A informação foi confirmada por Luciana

Adão, coordenadora de Patrocínios Culturais

Incentivados da Oi Futuro, instituição por meio

da qual a operadora atua em projetos de responsabilidade

social. Segundo ela, o que há

até agora são discussões embrionárias entre

várias empresas, mas nada ainda formalizado.

Segundo Luciana Adão, para o acerto

das parcerias, há, nas estruturas de compliance

e governança das empresas, barreiras que

impedem que esse processo avance de forma

mais ágil. Porém, a despeito de tais entraves,

ela considera inevitável que tais coalizões venham

a acontecer no futuro. “É um movimento

sem volta”, afirma Luciana Adão, que prevê um

prazo de três a cinco anos para a materialização

das primeiras ações conjuntas. O grande desafio,

segundo ela é definir como será o modelo de

atuação, especialmente por parte das empresas

que já têm uma política cultural fortemente estruturada.

“Mas o desejo e as conversas estão

acontecendo”, ressalta.

Uso de dados

Ainda que Brasil e França estejam distantes

quanto à proposta de coalizão para o financiamento

de projetos culturais, o uso de dados

para a valoração do impacto deste tipo de iniciativa

é algo já comum aos dois países. Na França,

um exemplo da busca por este tipo de informação

veio de um dos mais tradicionais times

de futebol daquele país, o Football Club Nantes,

que tem muitos torcedores no Brasil

O clube pretendia implantar um museu

aberto à visitação pública para abrigar seu

acervo. Para dimensionar o espaço, contratou

uma pesquisa com quatro públicos:

torcedores, habitantes de

Nantes, empresas e turistas. O

projeto inicial era construir

um museu com capacidade

para receber cerca

de 120 mil torcedores por

ano. Porém, o que a pesquisa

revelou foi uma demanda por um

número bem menor – de 56 mil visitantes

por ano.

Para Olivier Allouard, diretor do Instituto

Gace, instituição francesa que coordenou

a pesquisa, iniciativas deste tipo deveriam ser

todas precedidas de um estudo de demanda. E

só após a realização desse estudo é que se partiria

para a elaboração do projeto em si. Como

isso normalmente não ocorre, o mais comum é

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O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

David Gallard

Festival de música Dub Camp, um dos muitos cujo impacto econômico foi estudado por Olivier Allouard

os idealizadores dos projetos serem obrigados a

fazer o caminho inverso, contratando a pesquisa

para saber por que o lugar não tem a frequência

esperada. Só aí eles constatam o erro que poderia

ter sido evitado.

Olivier Allouard acompanha o setor de

cultura há mais de 15 anos, realizando pesquisas

quantitativas e qualitativas para a mensuração

de impactos econômicos gerados por eventos

e espaços culturais. Ele afirma que, hoje, a

indústria cultural francesa está cada vez mais

exigente em relação à adoção de ferramentas

que permitam mensurar o impacto econômico

das iniciativas do setor.

Um dos estudos mais recentes que fez

visou medir o impacto econômico de nove festivais

de música realizados na França. Trata-se

de um tipo de estudo muito importante porque

tem como referência um território delimitado. As

ferramentas utilizadas pelo Instituto Gece visam

identificar que tipos de despesa cada um dos

entrevistados pretendia realizar naquele território

em decorrência do evento, chegando a minúcias,

como a separação da despesa feita por um

participante que já reside no local da de alguém

que vem de fora.

Na lógica das pesquisas que Olivier Allouard

realiza, o dinheiro gasto por uma pessoa que

já reside no local não pode ser incluído na conta

dos ganhos propiciados pelo evento. “Um euro

que já está no território e apenas passa de uma

pessoa para outra não gera valor agregado”, explica

Olivier. Para ele, tais pesquisas são estratégicas

para o setor cultural porque ajudam na

formulação de eventos que tenham um real impacto

econômico sobre sua área de influência.

“Pesquisas são importantes por mostrar onde é

possível progredir”, afirma Olivier Allouard.

Impacto econômico

No Brasil, são poucos os editais de cultura

que pedem aos proponentes uma análise do

impacto econômico dos projetos a serem apresentados.

Normalmente, o que se pede é, no

máximo, uma previsão do número de pessoas

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O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

a serem impactadas. “Nós usamos muito mal os

dados”, afirma a economista e administradora

pública Ana Carla Fonseca, diretora da empresa

Garimpo de Soluções, que desenvolveu uma

plataform (www.calculadoracultural.com.br) que

permite ao autor do projeto cultural mensurar, on

-line, seu impacto econômico.

De acordo com Ana Carla, que é também

autora do livro Economia da Cultura e Desenvolvimento

Sustentável (Prêmio Jabuti 2007),

os estudos de impacto econômico usualmente

trabalham com três ordens de impactos: direto,

indireto e induzido. Embora haja diferentes definições

e diversos métodos de análise, o impacto

econômico direto, como o nome sugere, é, segundo

ela, dado pelo aporte direto de recursos,

por exemplo, pelas despesas envolvidas na realização

de uma festa tradicional.

O impacto econômico indireto corresponde

ao efeito dessas despesas sobre outros setores

econômicos – a cafeteria da cidade investirá

mais em comunicação ou na contratação de um

barista para atrair o público da festa. O impacto

econômico induzido é um efeito associado à

mudança de renda – o proprietário da empresa

de som terá um acréscimo em sua renda, o que

lhe permitirá comprar um novo furgão.

A calculadora cultural permite que sejam

feitos todos estes cálculos. O aplicativo está

disponível para qualquer produtor que quiser

compreender a lógica do impacto econômico

de seu projeto. Para Ana Carla, é importante

que o produtor faça esse cálculo para que possa,

a partir daí, entender-se como parte de um

encadeamento ainda maior que, por sua vez,

irá municiá-lo de argumentos para que possa

ser mais assertivo no momento de fazer a defesa

de seu projeto.

“É importante que o produtor entenda que

ele não está com o chapéu na mão pedindo pelo

amor de deus para que abracem seu projeto. E

sim, que seu projeto é importante porque irá ge-

Ana Carla Fonseca afirma que Calculadora Cultural

ajuda empreendedores a valorizar seus projetos

65

Garimpo de Soluções/Divulgação


O exemplo que vem de fora

Culturas nº 3 março 2022

rar mais recursos, dinamizar a cadeia de hospedagem,

de alimentação, de lembrancinhas,

além de melhorar a própria imagem da cidade”,

ressalta a diretora da Garimpo de Soluções.

Momento delicado

Para o economista Leandro Valiati, o Brasil

vive um momento particularmente delicado

de perda da capacidade de financiamento da

cultura, processo iniciado, segundo ele, há dez

anos e que se agravou pela pandemia e pela

estratégia do atual governo de, deliberadamente,

fragilizar as instituições federais do setor.

Para reverter a situação, ele defende a

refundação do sistema brasileiro de cultura,

processo que se daria a partir de três pilares.

O primeiro seria o do espraiamento desse sistema,

de tal forma que, tanto a União quanto

os estados e os municípios, atuariam para recompor

o funcionamento do sistema brasileiro

de financiamento à cultura, só que não mais

de cima para baixo, mas no sentido contrário.

O segundo mecanismo seria, no entender de

Leandro Valiati, o da democratização do acesso

tanto dos consumidores de cultura quanto

dos produtores. Para ele, o atual modelo é seletivo,

pois funciona para quem é popular, mas

não funciona para a maior parte dos produtos

que estão fragilizados por causa da pandemia,

como os da cultura popular tradicional.

O terceiro seria a refundação dos sistemas

de financiamento propriamente ditos.

“Estes mecanismos precisam chegar onde

não estão chegando, primeiro, porque não

existe dinheiro; segundo, porque mesmo que

exista dinheiro, dentro da atual estrutura, esse

dinheiro não vai chegar para gerar diversidade”,

afirma Leandro Valiati, que trabalha com

pesquisas acadêmicas sobre cultura para instituições

do Reino Unido e Ministério da Cultura

da França. Sobre o Brasil, ele afirma que

a situação é muito delicada. “Infelizmente, a

situação é tão tensa que quando se discute o

sistema de financiamento, fico até constrangido

de criticar o que existe e não funciona,

porque pode-se perder o que não funciona e

ficar com o nada”.

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A arte das ruas

Culturas nº 3 março 2022

Les Mur de Rennes/Reprodução Twitter

Na cidade de Rennes, ao

Noroeste da França, a street art

valorizou as ruas e tornou-se

atração turística na região

A arte das ruas

Além do incentivo ao uso de dados na mensuração

do impacto de projetos culturais no terreno

da arte – ainda incipiente no Brasil – brasileiros

e franceses se fazem presentes também na arte

das ruas, que colore muros e empenas (fachadas

cegas de edifícios) em várias cidades dos dois

países. Na França, a street art (“arte da rua”, na

tradução da expressão de origem inglesa), como

é conhecido internacionalmente este tipo de manifestação

artística, nasceu anonimamente, muito

como forma de protesto.

Em Belo Horizonte, o projeto Cura é um

exemplo clássico da trajetória da arte nas ruas.

Na capital mineira, desde 2013, grandes empenas

de prédios localizados na região central da cidade

vêm ganhando um colorido especial em uma iniciativa

que é respaldada pelas leis de incentivo e

conta com diversos patrocinadores privados.

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A arte das ruas

Culturas nº 3 março 2022

Na França, os primórdios da street art remontam

ao icônico ano de 1968, quando o país foi varrido

por um festival de protestos contra o poder estabelecido,

vindos dos estudantes de universidades parisienses.

Suas palavras de ordem eram escritas nos

muros com tinta spray preta. Duas décadas depois,

o preto e as palavras de ordem foram substituídos

por desenhos e cores, materializando o que ficaria

conhecido, anos depois, como street art.

Nesta nova versão, o protesto não era mais o

ponto central. “O que os artistas queriam era apenas

veicular sua imagem, queriam que seu trabalho fosse

visto em todo lugar”, afirma Patrice Daniello, presidente

da associação Les Mur de Rennes, que reúne

os artistas de rua da cidade de Rennes, ao Noroeste

da França, e também pesquisador dos movimentos

da street art francesa. Segundo ele, a ideia dos precursores

era transformar as cidades francesas em

um museu a céu aberto, sem maiores pretensões

quanto a ganhar dinheiro com este tipo de arte.

Nos anos de 1980 e 1990, foi assim. “Estes

artistas continuaram fazendo coisas, mas não tinham

visibilidade e o mercado da arte não se interessava

por eles”, afirma Patrice Daniello. “A ideia era de só

serem vistos e, talvez, observados pelas galerias”.

Porém, com a entrada em cena da internet, ocorreu

uma mudança na forma como os franceses viam o

estilo da street art, que passou a ganhar muitos admiradores

ao redor do planeta, agora não mais nas

ruas, mas nas telas dos computadores.

Kadu Passos

Em Belo Horizonte, o Projeto Cura

levou para a praça Raul Soares a

arte de Kassia Rare Karaja e do

coletivo indígena Mahku

68


A

arte

arte

das

das

ruas

ruas

Culturas nº 3 março 2022

Dos computadores para as galerias de arte e

museus, foi um pulo. “Agora, é um movimento mundial

que, pela primeira vez, ganha as galerias. Até

então, era uma elite que ia descendo. Hoje é o contrário:

é a rua que sobe”, afirma Patrice Daniello, que

considera como ponto de inflexão do movimento os

últimos dez anos. O que está ocorrendo hoje, segundo

ele, é a institucionalização desse tipo de arte, com

muitas galerias querendo dar visibilidade aos artistas

de rua e um número cada vez maior de cidades realizando

seus festivais.

Na França, a despeito da ascensão do estilo

da arte de rua a ambientes mais sofisticados que

não somente os muros e empenas de prédios, permanece

como algo ainda não resolvido o modelo de

remuneração do artista que deseja viver apenas de

sua arte. O problema, segundo Patrice Daniello, é

que quando as pessoas veem uma pintura na rua,

elas acham normal que aquele trabalho não seja

remunerado, esquecendo-se que o artista também

precisa viver, ter uma casa, ter as mesmas aspirações

das outras pessoas.

O resultado disso é que muitas empresas

francesas têm patrocinado trabalhos de artistas de

rua, mas, como contrapartida, querem que a imagem

a ser pintada veicule uma mensagem que seja

de seu interesse. “Há países em que as pessoas

arriscam a vida para fazer desenhos no muro. Mas

há também o lado moda, que evoluiu, e também há

muitas empresas que querem ter grandes pinturas

nas paredes de suas sedes”, afirma Patrice Daniello.

Tal dualidade, de acordo com ele, coloca a street art

em um momento decisivo hoje na França. Caso não

se encontre um ponto de equilíbrio entre a arte e o

desejo dos patrocinadores, é possível, a seu ver, que

este tipo de manifestação perca sua essência.

Projeto Cura

Em Belo Horizonte, a trajetória da street art

é semelhante à da França. Por aqui, há tempos,

ela deixou de ser confundida com a pichação e já

ganhou status de manifestação artística, inclusive

com o apoio das leis de incentivo e de patrocinadores.

Em Belo Horizonte, a galeria de arte a céu

aberto pode ser vista, por exemplo, por quem passa

pela rua Sapucaí, ao lado da estação de metrô,

no centro da capital. De lá, pode-se avistar inúmeros

prédios grafitados, incluindo os murais mais altos

pintados por mulheres da América Latina.

A Sapucaí é considerada o primeiro mirante

de arte urbana do mundo. Lá, para facilitar a observação,

a prefeitura de Belo Horizonte instalou lunetas.

Por meio delas, o observador pode apreciar a

visão dos detalhes de cada obra. Na edição 2019

do Cura, no bairro Lagoinha, a cidade ganhou outro

mirante, agora na rua Diamantina, de onde é

possível apreciar outras obras de arte pública.

O projeto nasceu em 2017, a partir do encontro

de três mulheres – Priscila Amoni, Juliana

Flores e Janaína Macruz –, que já trabalhavam

com arte de rua. Juliana Flores conta que quando

o grupo foi formado, havia a intenção de que a capital

mineira servisse de cenário para algo que a

diferenciasse de outras cidades. “Queríamos fazer

algo que não fosse o mesmo”, afirma Juliana. Foi aí

que, segundo ela, surgiu a ideia de pintar somente

empenas de prédios que pudessem ser vistos por

quem estava na rua Sapucaí. “A ideia era fomentar

a rua como destino turístico”, afirma Juliana Flores.

O objetivo a seu ver, foi plenamente atingido, tendo

em vista o grande número de bares e restaurantes

abertos a partir de 2018 na rua Sapucaí.

Até agora, já foram pintadas 20 empenas

de prédios e dez muros. Ano passado, o projeto

se diversificou e passou a incluir outras manifestações

de arte de rua que não apenas a pintura de

edifícios e muros. Um deles foi a instalação “Entidades”,

uma escultura inflável formada por duas

cobras de 17 metros de comprimento e 1,5 metro

de diâmetro cada que ficou em exibição durante 30

dias nos arcos do Viaduto Santa Tereza.

69


A arte das ruas

Culturas nº 3 março 2022

A obra foi criada

por Jaider Esbell, artista

e curador indígena

da etnia Makuxi. Ele

artistas obedece a algumas

regras. A primeira

é que, em cada

nasceu em Normandia,

temporada, metade

estado de Rorai-

ma, e viveu até os 18

anos onde é hoje a

terra indígena Raposa,

na Serra do Sol.

A outra obra que não

é uma pintura de empena

de prédio, pode

ser vista no asfalto de

uma das duas pistas

de contorno da praça

seja de mulheres, que,

por sua vez, ficam

sempre com as maiores

empenas. O objetivo,

segundo Juliana

Flores, é mostrar que,

por mais que a pintura

seja um trabalho que

envolva um grande esforço

físico, trata-se de

algo que as mulheres

Raul Soares. Trata-se

também conseguem

de uma cobra estilizada

produzida por Shipibo

Sadith Silvano e

realizar. A outra regra

é que o artista anfitrião

seja sempre de Belo

Ronin Koshik, artistas

Horizonte. Os demais

do povo peruano Shipibo.

A opção pela arte

indígena faz parte, segundo

Juliana Flores,

da ideia de que o projeto

deve dialogar com

os temas contemporâneos.

“Na pandemia,

era urgente ouvir a

voz dos povos indígenas”,

afirmou. Patrice Daniello, na França; e Juliana Flores, em Belo

são escolhidos

pelo conselho curador,

a partir da inscrição

dos interessados

nos editais.

A escolha das

empenas envolve uma

negociação com os

moradores dos edifícios

a partir de alguns

critérios. Um deles é o

No circuito da

Horizonte: em defesa da arte das ruas

do sigilo quanto à obra

praça Raul Soares

a ser pintada. A outra é

também foram pintadas três empenas. A do edifício

Levy foi pintada por Kassia Rare Karaja e pelo coletivo

indígena Mahku. A do edifício Paula Ferreira

foi feita pelo artista mineiro Ed-Mun. A terceira empena

foi ocupada por Mag Magrela, selecionada

na convocatória pública entre 327 inscritos de 21

estados brasileiros.

a do não pagamento pela cessão do espaço. O objetivo,

segundo Juliana Flores, é evitar o surgimento

de um “mercado de empenas”, uma distorção

que Patrice Daniello revelou já estar ocorrendo na

França. “Não alugamos empenas”, afirma Juliana

Flores. Quando isso ocorrer, a arte urbana caminhará,

segundo ela, para perder sua relevância.

70

Le Mur de Rennes/Divulgação

Thiago Santos

A escolha dos


O que o patrocínio

pode oferecer?

Culturas nº 3 março 2022

Prefeitura de Marselha/Divulgação/Facebook

Marselha, no Sul da França, tem 2.600 anos e é a mais antiga cidade francesa. Desde 2003, é a sede

da Mécènes du Sud, uma coalizão de empresas cujo objetivo é o financiamento de projetos culturais

Artigo: Bénédicte Chevallier

Desde 2010, o número de empresas patrocinadoras

não para de aumentar na França. Em

média, 10 mil novas empresas se tornam patrocinadoras

a cada ano. (1)

Mas o que é patrocínio? Um pedido de ajuda

para realizar um projeto ou um apelo à generosidade

para financiar um novo empreendimento?

Tirar proveito do dinheiro dos ricos para fazer o

que quiser, como quiser, ou aproveitar a oportunidade

de apresentar o próprio meio de convívio aos

outros enquanto descobre um ambiente novo?

Atender à imposição das comunidades para diversificar

seus financiamentos, ou aprender com

novos encontros?

O fato de uma lei incentivar empresas a

participar do interesse geral não é suficiente para

explicar por que elas estão abandonando a lógica

de ganho e lucratividade em favor de uma lógica

de gasto por meio de doações, sejam elas de dinheiro,

de bens e materiais ou de competências.

Porque o que a lei exige, além disso, é um desinteresse

que se traduz sobretudo na disparidade das

partes envolvidas.

O que torna esse sistema tão interessante

é a grande capacidade que as doações têm de gerar

vínculos ativando duas polaridades: a de saber

doar e a de saber receber. O coletivo Mécènes du

Sud é um exemplo disso.

Uma aventura coletiva

Em 1874, a Academia de Ciências enviou

71


O que o patrocínio pode oferecer?

Culturas nº 3 março 2022

o engenheiro hidrográfico Anatole Bouquet de magia de sua região por meio do apoio a projetos

La Gyre à Nova Zelândia para observar a passagem

de Vênus. A expedição partiu de Marselha. formulá-lo coletivamente, tinham a esperança de

artísticos, despertaram a própria generosidade. Ao

Campbell, a ilha onde a tripulação desembarcou colher um capital de sentido. Algo que, precioso

e se instalou, é o nome da companhia de navegação

australiana que ancorou no local pela ção, a cooperação e a inteligência coletiva.

para eles, incentivasse a observação, a introspec-

primeira vez em 1810. No imaginário coletivo,

Essa aventura coletiva tem um rumo, porém

esse nome evoca mais as serigrafias de Warhol seu destino é incerto. Ela gera valor, um valor intangível:

o da criação e do conhecimento. Produ-

que santificam a lata de sopa mais famosa dos

Estados Unidos.

A evocação de uma

tripulação que aguarda a

aparição de Vênus remete

à imagem de uma deusa

nua de beleza insolente

emergindo das ondas. Mas

a Vênus que era o centro

das atenções de todas as

grandes nações da época

cruzaria o céu entre a Terra

e o Sol, um fenômeno que

à época foi aguardado por

105 anos e que permitiria Da esquerda para a direita, os diretores da Mécènes du Sud: Pierre Allary,

Tatiana de Williencourt, Didier Amphoux, Isabelle Carta e Laure Sarda

medir a distância entre os

dois. Infelizmente, a aparição

foi comprometida por uma nebulosidade zi-lo implica ir em busca de sentido, concordar em

que prejudicou a observação.

buscar, e não exigir encontrar. É uma experiência

No entanto, esse desafio científico (no qual o íntima que o coletivo permite acompanhar.

surgimento da fotografia desempenhou mais tarde

um papel importante) hoje parece insignificante. A A criação da Mécènes du Sud

competição internacional resultante dele, que colocou

em jogo o orgulho dos Estados, ilustra como a

O coletivo Mécènes du Sud nasceu em

confiança na incerteza do resultado permite a 2003 em Aix-Marselha, a partir do desejo de empresas

unidas por uma perspectiva em comum

ousadia e a tomada de riscos. É essa incerteza

que proporciona à arte, senão sua para sua região. Ao apoiar projetos de arte contemporânea,

elas colaboram para sua atrativida-

fortuna, pelo menos sua vitalidade.

Em 2003, em Marselha, imaginou-se

uma forma de aventura ligada

Na mesma década, foi criada uma linha de

de e influência.

à busca pela arte. O questionamento feito TGV (trem de alta velocidade) entre Paris e Marselha.

Como resultado, o setor imobiliário passou a

por Duchamp – “É possível fazer obras que não

sejam arte?” – havia, muito antes, substituído o da crescer, e muitos artistas se mudaram para Berlim,

beleza. As empresas, cujo horizonte era retomar a por motivos financeiros. Essa fuga de talentos agra-

72

François Moura


O que o patrocínio pode oferecer?

Culturas nº 3 março 2022

vou a imagem de uma cidade com má reputação,

manchada por acertos de contas, má gestão e

batalhas políticas infrutíferas. A Câmara de Comércio

e Indústria (CCI) vem mobilizando empresas

para valorizar Marselha, mal classificada

em termos de atratividade, em relação a cidades

europeias com as mesmas dimensões. O mundo

econômico está se conscientizando da alavancagem

cultural e esportiva.

As oito empresas fundadoras têm pouco

em comum, além da região de atuação e da forte

Corinne, Gilles, Ber et Georges é uma série documental em quatro episódios

que se passa em Marselha e conta a história de um grupo de amigos, de 60 a 80

anos de idade, para quem a aposentadoria não é uma opção

ligação que têm com ela. São diferentes graus de

popularidade, tamanhos e setores de atividade. No

entanto, todos os seus líderes têm uma visão extraeconômica

de seu papel.

▪ Ricard: é uma distribuidora de bebidas alcoólicas

mundialmente famosa. Seu fundador, Paul

Ricard, engajou a empresa em ações filantrópicas

que marcarão sua história para sempre. A empresa

Pernod-Ricard é muito influente no cenário da arte

contemporânea.

▪ Pébéo: é uma fabricante de tintas para belas-artes

e passatempos criativos, muito conhecida

entre artistas plásticos de todo o mundo.

▪ Courtage de France Assurance: é administrada

por uma mulher apaixonada por arte.

▪ Société Marseillaise de Crédit: é um banco

“da região”

▪ Féraud-CFM: é, entre outras coisas, um

grupo de empresas de reabastecimento de navios

que está se apaixonando pela arte.

▪ Vacances Bleues: é uma empresa de turismo

que reuniu uma

coleção de obras de jovens

artistas para expor

em seus escritórios, hotéis

e resorts.

▪ HighCo: é uma

empresa de marketing cada

vez mais bem-sucedida.

▪ Olympique de

Marselha: é um dos maiores

símbolos da região.

Trata-se, portanto,

de uma iniciativa privada

de líderes empresariais

que se reúnem

em uma associação sem

estabelecer um modelo.

O projeto assumiu imediatamente

uma forma

coletiva e afirmou a sua

independência, sobretudo

por sua autonomia financeira. Na época, quase

não se falava em fundações corporativas, e os

fundos de doações ainda não existiam. A escolha

da forma associativa (Lei de 1.901) é a mais simples

e mais livre para seus membros, e permite

uma boa governança.

A maturidade do projeto permitiu que, em

2017, o modelo fosse transmitido aos agentes econômicos

da região de Montpellier. Assim, há quatro

anos, dois coletivos de agentes econômicos par-

nne, Gilles, Ber et Georges/Captura de tela

73


O que o patrocínio pode oferecer?

tilham um desejo de enaltecer sua região por

meio do apoio à arte contemporânea. (2)

Princípio do patrocínio

Atualmente, a Mécènes du Sud coproduz,

ano a ano, obras, projetos e eventos, e se define

como uma interface de diálogo entre a cena

artística e o mundo econômico em suas regiões

de influência.

Regras do jogo coletivo

Desde o início, a associação estabelece o

princípio da igualdade dos membros: qualquer que

seja o nível de contribuição, definido pelo Conselho

de Administração e relacionado à sua força de trabalho

regional, a “experiência” de todos é idêntica.

Não se trata, de forma alguma, de “compensação”,

como é habitual no patrocínio tradicional. A ênfase

é colocada no desinteresse do doador, sendo o “benefício”

(3) transferido para a região de atuação de

sua empresa.

Desde o início, os integrantes demonstram

grande humildade diante da expertise necessária

para a escolha dos projetos artísticos. Essa decisão

fica a cargo de um comitê de profissionais qualifica-

Culturas nº 3 março 2022

dos que atuarão de forma independente.

Atualmente, o comitê artístico da Mécènes

du Sud de Aix-Marselha, cujos membros

possuem mandato de três anos, reúne:

▪ Uma artista: Anne Laure Sacriste.

▪ Um colecionador baseado nas Ilhas Maurício,

no Oceano Índico: Salim Currimjee.

▪ Uma diretora de instituição cultural: Keren

Detton, diretora do Fundo Regional de Arte Contemporânea

Grand-Large (Dunquerque).

▪ Uma diretora de fundação privada com

sede na Armênia: Ida Soulard.

▪ Uma curadora de museu: Anne Dressen,

do Museu de Arte Moderna de Paris.

O comitê se reúne em sessão anual e não é

remunerado.

Tipologia de ações

A Mécènes du Sud desenvolve ações voltadas

para três dimensões: dos artistas, dos membros

e da região de atuação.

Apoio à criação artística

As ações voltadas aos artistas abrangem o

apoio à produção de novas obras, à edição, resi-

Stéphane Barbier Bouvet e Pauline Ghersi

Palama, uma cabana vazia em ruínas em um dos pontos mais altos de Marselha, foi restaurada segundo suas

características originais, integrando conhecimentos e materiais contemporâneos sob uma perspectiva artística

74


O que o patrocínio pode oferecer?

Culturas nº 3 março 2022

dências artísticas e divulgação. Uma chamada

para projetos permite selecionar cinco iniciativas

vencedoras, que recebem apoio financeiro

para a realização de sua obra. O valor desse

patrocínio varia de acordo com as necessidades

de cada um. Os candidatos devem comprovar

um vínculo com a região de Aix/Marselha/Mediterrâneo,

em sua definição mais ampla: ser da

região, morar na região, desenvolver um projeto

na região, beneficiar-se de uma residência passada

ou futura, ter tido seu projeto exposto, ter

atuado ou estudado na região. Enfim, devem

possuir vínculos profissionais.

O patrocínio concedido envolve os artistas

numa relação que permite que os membros do

Mécènes du Sud apreciem os projetos e compreendam

seu desenvolvimento. Essa proximidade

é também a garantia de um acompanhamento

benéfico aos projetos, o que implica que os

vencedores vão apresentar seus projetos a um

público leigo, principalmente durante um evento

denominado “Golpe do Amor” (“Coup de Cœur”,

na língua original francesa), que reúne patrocinadores

e profissionais. Esse patrocínio representa

mais de 40 mil euros por ano. Alguns exemplos

de projetos vencedores:

Gethan&myles (Marselha) 2018

Lazare/The Space Between How Things Are

and How We Want Them to Be (O espaço entre como

as coisas são e como queremos que elas sejam)

Este projeto de edição é uma extensão do

trabalho apresentado na exposição Or, no museu

Mucem em Marselha (2018). Nas vitrines,

foram exibidas joias, com sua imagem fantasmagórica

em forma de cianótipos, bem como

as histórias íntimas de seus donos. As joias foram

adquiridas por gethan&myles no leilão do

Crédit Municipal de Marselha, na esperança de

devolver cada uma delas ao seu dono no final

da exposição. A devolução foi condicionada por

uma forma de troca: a de uma história que evoca

como eles se tornaram donos das joias (presente,

herança, tradição) e quais imprevistos,

precauções, contratempos, distanciamentos os

levaram a penhorá-las.

Os critérios estéticos clássicos não prevaleceram

na compra feita pelos artistas: os

objetos foram vendidos sem qualquer indicação

além do seu peso. Assim, as histórias dos

donos abordavam o cotidiano e suas adversidades.

Lazare (…), obra efêmera que evoca

instabilidade, migrações e desaparecimentos,

estava, por natureza, fadada a literalmente

decompor-se por dispersão. A devolução das

joias, em andamento, é uma extensão invisível

para o público, mas cujo significado simbólico

justifica seu acompanhamento. É o que será

documentado nessa análise expandida, ao explorar

seus ecos através das questões e emoções

que ela suscita.

Stéphane Barbier Bouvet (Bruxelas) 2019

Design as we speak (Projeto em tempo real)

Palama é uma cabana vazia em ruínas,

isolada em um dos pontos mais altos de Marselha.

Construída no século XIX, a estrutura foi

projetada de acordo com princípios bioclimáticos

simples: o uso de recursos naturais da região

em equilíbrio com as condições climáticas

locais. A metodologia de trabalho de Stéphane

Barbier Bouvet é clara: ele restaura o imóvel a

fim de encontrar suas características originais e,

ao mesmo tempo, integra conhecimentos e materiais

contemporâneos. Ao realizar essa tarefa

simples e colocá-la sob uma perspectiva artística,

o artista revela uma prática de entre-lugar,

em que, se os objetos produzidos permanecem

funcionais e respondem uns aos outros em um

ambiente, eles reproduzem uma ambiguidade,

ou melhor, um equilíbrio entre sua funcionalidade

anunciada e o caráter escultural que o cenário

pode atribuir a eles, levantando a questão de

sua exibição e de sua ecologia.

75


O que o patrocínio pode oferecer?

Pauline Ghersi 2021

Corinne, Gilles, Ber et Georges

Este projeto é uma série documental em

quatro episódios que se passa em Marselha. Pauline

Ghersi acompanha um grupo de amigos, de 60

a 80 anos de idade, para quem a aposentadoria

não é uma opção. Essas pessoas passam o tempo

nos terraços dos cafés, conversando em bancos

de parques ou tomando sol na praia. Eles se encontram

sem hora marcada, mas obedecem a uma

lógica interna implícita: misturam-se com a cidade,

sempre presentes, sempre vigilantes. O grupo se

expressa à margem da economia convencional de

uma cidade onde os fluxos informais e tráfegos de

todos os tipos são parte constituinte da energia local.

Esses encontros são povoados por contos orais

que refletem a história e o retrato de uma cidade em

transformação, às portas da gentrificação. A série,

feita a partir de encontros e acasos, proporciona ao

documentário uma relação íntima e subjetiva.

Patrocinadores instruídos

Os ateliês “Quel Amour!”

Durante a

As ações voltadas

aos membros

temporada do evento

“Quel Amour!”,

priorizam a iniciação

o festival cultural

à arte, o encontro

com os artistas patrocinados

e a compreensão

de suas

MP2018 e a Mécènes

du Sud quiseram

dar continuidade

à dinâmica de

linhas de pesquisa.

residências artísticas

Todos os anos, são

em empresas,

propostas viagens

que foi iniciada em

em caráter de estudo,

2007 pelo nosso

para enriquecer

coletivo e amplia-

Exposição “Memórias de fogo” transformou resíduos de incêndio

em matéria-prima para a constituição de uma paleta de cores

e inspirar o projeto

da para a Marseille

da Mécènes du Sud.

-Provence Capital

Escolhemos um destino no exterior, palco de um

evento com uma estrutura capaz de agitar uma

cena artística. Podem ser feiras (Art Basel, Frieze

London, ARCO Lisboa, Art Bruxelles, 1-54 Marrakech,

etc.), bienais (Veneza, Helsinque, Berlim, Mani-

Europeia da Cultura (MP2013) (4) sob o nome

“Ateliers de l‘Euroméditerranée”.

Cada “Atelier Quel Amour!” reúne um artista

nacional ou internacional, uma empresa e um

agente cultural, que acompanha a divulgação da

Culturas nº 3 março 2022

festa), ou exposições, como a Documenta.

Também são oferecidas excursões para destinos

nacionais com o mesmo conceito. Uma delas

tem como destino a própria Marselha, graças a seu

“retorno à arte contemporânea”. Combinamos visitas

a museus, espaços dirigidos por artistas, coleções

particulares, fundações privadas, ateliês de

artistas, etc., todas estruturadas com acompanhamento

profissional. Todo ano, a programação inclui

uma série de conferências de arte.

Patrocinadores instrutores

As ações voltadas para a região assumem a

forma de coproduções de grandes exposições com

um parceiro cultural, de apoio a projetos estruturantes

para o setor de artes visuais, ou de parcerias

em projetos relacionados a grandes eventos. Esse

patrocínio representa de 40 mil a 100 mil euros/ano,

dependendo do ano.

76

Mécènes du Sud


O que o patrocínio pode oferecer?

obra original, criada após imersão num contexto

econômico específico.

Como cofundador da associação MPCulture,

(5) e familiarizado com residências corporativas, a

Mécènes du Sud seguiu sua inclinação natural para

vínculos de arte e negócios, tornando-se parceiro

de projetos dos “Ateliers Quel Amour!”. Arrecadamos

100 mil euros, graças à contribuição adicional

de oito dos nossos membros. Como coprodutor

desse conjunto de residências, a Mécènes du Sud

inspirou parcerias entre artistas e empresas, e impulsionou

sete dos nove projetos para empresas

de seu coletivo, as quais os acolheram e cofinanciaram.

Não teria sido possível reunir essa sinfonia

de projetos apenas com um único apoio financeiro.

Acompanhamos as residências, participamos do

comitê gestor e editamos a história que mantém

viva a memória.

Residência “Quel Amour!”

“Mémoires de feu” [Memórias de fogo] de

Christophe Bergaguer e Marie Péjus na A2C Services

Culturas nº 3 março 2022

A questão do cuidado tem permitido a convergência

da pesquisa artística com a atividade da

empresa. Ela apareceu muito rapidamente como

uma forma de terapia aplicada aos objetos e aos

edifícios danificados e deteriorados. Enquanto aos

nossos olhos o seu conhecimento só assume a forma

de intervenções materiais por meio de restaurações

específicas, trata-se também de resiliência e,

portanto, de sentimentos. Prova disso, em relação

aos danos materiais, é que a escolha dos objetos a

serem restaurados não depende (ou não depende

apenas) do seu valor financeiro. Foi assim que Berdaguer

e Péjus, que constantemente abordam a

questão do trauma por meio de suas obras, encontraram

um campo de pesquisa. Os locais queimados

foram o ponto de partida do projeto “Memórias

de fogo”.

Os artistas organizaram uma coleção de

materiais – esponjas encharcadas de fuligem, e

um registro sistemático de informações relacionadas

aos incêndios. Essa etapa ultrapassou o

escopo das atividades da A2C, que convocou a

sua rede de colaboradores para expandir a co-

Jérôme Cabanel

A intervenção de Flore Saunois e Tzu-Chun Ku aconteceu em um túnel de uma avenida que liga bairros ao

sul de Marselha e facilita o acesso ao litoral. É um trabalho imbuído de delicadeza que produz formas por

vezes tênues e contrárias ao imaginário veiculado pelas obras públicas

77


O que o patrocínio pode oferecer?

leta para a região Norte e Aquitânia.

Esses resíduos voláteis, de alguns gramas

de fuligem por incêndio, foram extraídos

de objetos na A2C Services. Em seguida, foram

utilizados como matéria-prima para constituir

uma paleta de cores, graças à colaboração técnica

da empresa Pébéo. As “Memórias de fogo”,

elaboradas com fuligem transformada em tinta,

evocam formalmente esses incêndios. Uma

fumaça parece ter sido capturada pelo papel.

A mudança de tons, mais acentuada na parte

inferior, parece uma tentativa de conjuração.

Os artistas estenderam a pesquisa por meio de

entrevistas com os funcionários presentes nos

incêndios. Um livro de artista nascerá dessa exploração

dos sentimentos

que não são os das próprias

vítimas, mas daqueles

que restauram o que

está arruinado.

Local: 29 de junho a

21 de outubro de 2018, espaço

Friche la Belle de Mai,

por Art Plus

Esta residência recebeu

apoio do Ministério

da Cultura.

A A2C Services é uma empresa de limpeza

específica que oferece soluções de tratamento,

combinando conhecimentos técnicos e logísticos

em universos tão diferentes como o ambiente urbano,

locais de desastres, arquivos, residências,

iates de luxo.

A grande exposição

Ao estreitar a sua atuação na arte contemporânea

e decidir dedicar uma parte significativa

do seu orçamento de patrocínio a uma exposição,

o coletivo Mécènes du Sud tinha como

objetivo, em 2014, viabilizar projetos expositivos

ambiciosos, ligados à cena artística de Aix-Marselha.

De fato, no ano seguinte ao da “Capital

Culturas nº 3 março 2022

Europeia da Cultura”, o medo do desencanto

era legítimo, tanto do ponto de vista financeiro

como do ponto de vista da dinâmica global. Desde

então, a Mécènes du Sud tem atuado como

principal coprodutor de exposições que, sem

abandonar sua relevância artística, sempre simbolizam

os compromissos artísticos presentes e

passados do coletivo e suas convicções para a

região.

Exemplo de exposição:

Écho système, exposição de Gilles Barbier, 2015

O retorno da arte contemporânea

A Mécènes du Sud de Aix-Marselha retoma

suas atividades no último fim de semana de agosto,

à luz da rede metropolitana de arte contemporânea

federada por uma rede de estruturas (PAC

– Provence Art Contemporain). Três feiras internacionais

inauguradas simultaneamente: a feira

internacional Art-o-rama (patrocinada pelo coletivo

nos primeiros 10 anos), a feira de desenho

contemporâneo com Paréidolie (patrocinada nos

primeiros 5 anos) e a feira Polyptyque, dedicada

à fotografia.

Desde 2013, produzimos uma exposição em

nosso estande na Art-o-rama, convidando o(a) vencedor(a)

de uma das edições anteriores.

Exemplo de estande:

Antoine Espinasseau (vencedor de 2014), exposição

em 2019

78


O que o patrocínio pode oferecer?

Culturas nº 3 março 2022

Jean-Christophe Lett

O apoio à arte contemporânea é uma das prioridades da Mécènes du Sud, que sempre realiza exposições

com artistas que atuam neste campo da arte. Na foto, a exposição de Antoine Espinasseau

Residências em empresas

As residências artísticas em empresas

combinam essas três dimensões e, portanto, representam

uma forma de projeto valorizada pelo

nosso coletivo.

Como acolher, no cotidiano de uma empresa,

um projeto de pesquisa artística quando

os próprios trabalhadores enxergam a arte

como uma anomalia? As residências corporativas

abrem janelas e, através delas, todos terão

a chance de ver de forma diferente algo que lhes

é tão familiar que não chama mais sua atenção.

Esse encontro com a arte coloca a sensibilidade

no centro das trocas. A alteridade surge como

uma riqueza. Mas para um líder, como acolher

um projeto autônomo sem administrá-lo? Como

passar do desejo de um projeto à sua realização,

e como compartilhá-lo? A Mécènes du Sud

de Aix-Marselha vem experimentando a relação

entre arte e negócios há mais de quinze anos.

Residência de jovens artistas

Em 2018 e 2019, a Mécènes du Sud participou

do programa “Travail! Travail!” (“Trabalho!

Trabalho!”), acompanhamento profissional oferecido

a estudantes e jovens formados pela Escola

de Belas Artes de Marselha (ESADMM). Viabilizamos

residências em empresas, colocando em

contato uma empresa e dois artistas selecionados

por um júri.

Flore Saunois e Tzuchun Ku, na GTM

SUD (Vinci), em Marselha

A GTM SUD, subsidiária da Vinci Construction,

participa da construção de uma avenida

urbana multimodal destinada a abrir as fronteiras

dos bairros do sul de Marselha e facilitar o

acesso ao litoral. O canteiro de obras, a cargo

de diferentes empresas, inclui um túnel de um

quilômetro, uma ponte que atravessa um rio, e

dois trechos de avenida urbana de 1,5 km cada.

A GTM SUD está construindo uma avenida co-

79


O que o patrocínio pode oferecer?

berta em um trecho de 2 x 2 vias, colocando em

prática seus diversos ofícios: fundações especiais,

engenharia civil (estruturas de concreto),

terraplenagem, redes, estrada, fachadas arquitetônicas.

Flore Saunois e Tzu-Chun Ku desenvolvem

um trabalho imbuído de delicadeza que

produz formas por vezes tênues, contrárias ao

imaginário veiculado pelas obras públicas.

Saunois fez da linguagem seu material. É

uma autora de textos que extrapolam sentido e

forma. Ela materializa significante e significado em

combinações poéticas que enaltecem o comum.

Inversamente, Tzu-Chun Ku intervém pouco, mas

capta, extrai, sublinha. Em busca da poesia indescritível

do comum, ela purifica situações para focar

nossa atenção nos fenômenos discretos que ela

amplifica. Cada uma à sua maneira, as artistas nos

convidam a despertar nossa sensibilidade no fluxo

trivial de nossas vidas.

Modalidades de apoio

Nós utilizamos recursos financeiros para garantir

o pagamento de taxas e/ou direitos autorais

aos artistas; e o pagamento de um orçamento de

produção, que pode incluir custos de transporte e

estadia, custos de exposição e de edição. Esse

apoio financeiro pode ser complementado por uma

contribuição em forma de bens e competências.

Para os projetos, A Mécènes du Sud oferece

o apoio de dois funcionários responsáveis

pelos coletivos, realizado em forma de acompanhamento

aos artistas durante a produção dos

projetos e, mais amplamente, aos agentes culturais

que desejam estabelecer vínculos com empresas

e patrocinadores.

Culturas nº 3 março 2022

Tais ações são ampliadas pelo engajamento

pessoal dos patrocinadores, que, uma vez iniciados

no processo, e incentivados por um programa de

conferências e viagens, vão além, e apoiam os projetos

das seguintes formas:

▪ Compras de obras de artistas vencedores ou

durante as visitas,

▪ Patrocínio de eventos relacionados à região ou

aos artistas vencedores,

▪ Inauguração de locais temporários e permanentes,

▪ Financiamento de residências em empresas.

Conclusão

A busca pela arte é uma história íntima,

mas sua experiência pode ser compartilhada.

Sem questionamento coletivo, não existe arte,

visto que seu reconhecimento depende de uma

forma de consenso. E se as civilizações morrem,

as obras permanecem, como uma fabulosa prova

do conhecimento e da consciência que os artistas

tinham delas. As obras produzidas hoje trazem as

marcas daquelas que as precederam, e encontramos

nelas a nossa humanidade. Dessa forma,

entre os artistas cuja natureza de produção exclui

qualquer valor de uso e as empresas que desafiam

sua lógica de mercado, paira o espírito de

“quem perde ganha”.

Site

http://www.mecenesdusud.fr

Edições

http://www.mecenesdusud.fr/le-reseau-mecenesdu-sud/nos-editions.htm

Bénédicte Chevallier é a diretora-geral da

Mécènes du Sud

1 – A Admical (Associação para o Desenvolvimento de Patrocínio Industrial e Comercial) estima que o número total de empresas patrocinadoras na França ainda

seja de 9% para um total de doações entre 3 e 3,6 bilhões de euros.

2 – As ações e os dados apresentados neste artigo dizem respeito apenas à Mécènes du Sud de Aix-Marselha

3 – A palavra lucro deve ser lida em seu sentido literal. Ao tratar sobre patrocínio, o uso de certas palavras como “parceria” ou “benefício” pode gerar confusão.

4 – Um projeto regional, estruturante, unificador, popular e midiático.

5 – Organizadora de dois eventos culturais emblemáticos (“MP2013 Capital Europeia da Cultura” e “MP2018 Quel Amour!”), a MPCulture é uma associação regida pela

lei de 1901 que tem como objetivo impulsionar um novo movimento artístico e cultural entre os habitantes da região e visitantes nacionais e internacionais. A Mécènes

du Sud é cofundadora, em conjunto com o Club Top 20 (que reúne os maiores líderes de grandes empresas da macrorregião de Aix-Marselha Provence. Cada uma

delas administra mais de 100 milhões de euros em volume de negócios e tem total autonomia local), a CCI de Marselha-Provence e a Universidade Aix-Marseille.

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Experiências compartilhadas

Culturas nº 3 março 2022

Experiências

compartilhadas

Por sua pujança na área cultural, a França

é, para muitos brasileiros, um modelo a ser

seguido no apoio ao setor. No entanto, para

o adido de Cooperação e de Ação Cultural da

Embaixada da França em Minas Gerais, Vincent

Nédélec, entre os dois países o que pode haver

é o compartilhamento mútuo, como uma via de

mão dupla. O Brasil poderia buscar algumas

ideias com a França, mas os franceses também

podem se inspirar nas experiências brasileiras,

tanto nos projetos exitosos quanto naqueles que

ainda podem ser aprimorados. Em entrevista

à CulturaS, ele citou, como experiência que

pode servir como alternativa aos brasileiros, a

Mécènes du Sud, uma associação de empresas

com o objetivo de financiar

projetos de cultura.

Vincent reconhece que no Brasil

há inúmeros setores da cultura que não

conseguem ter acesso aos recursos para

o financiamento de seus projetos. A esses

segmentos, uma das recomendações feitas é:

organizem-se. “Individualmente, as pessoas

não vão ter força para ganhar visibilidade.

Mas, se elas se estruturam, em associação,

por exemplo, podem conquistar um nicho de

aficionados e assim pretender o financiamento

público”, recomenda o adido cultural da

Embaixada da França em Belo Horizonte.

Vincent Nédélec considera

que franceses e brasileiros

têm muito a aprender, uns com

os outros no financiamento a

projetos culturais

Embaixada da França no Brasil/Divulgação

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Experiências compartilhadas

Na França, a cultura é uma atividade muito

forte. Como é o sistema francês de financiamento

da cultura? Ele é mais público, mais

privado, ou é misto? Que sistema predomina?

Na França, a cultura é, realmente, muito forte.

Ela está presente em todos os níveis do governo

e da sociedade. Há a cultura que se exporta,

que é a música, o cinema e a dança, que têm um

custo alto. Para isso, muitas vezes, o mecenato

tem sua importância, como para manter os museus

e adquirir novas obras. A Fundação Pinault,

por exemplo, é uma das maiores proprietárias de

arte contemporânea da França e, recentemente,

comprou o prédio da antiga Bolsa de Valores

de Paris e o Palazzo Grassi, em Veneza, para

poder apresentar as suas coleções. Trata-se de

uma empresa francesa de artigos de luxo e, ao

mesmo tempo, um dos principais financiadores

da arte contemporânea no mundo. Muitas vezes,

uma obra não pode ser comprada pelo próprio

museu, algo que ocorre inclusive com o Musée

du Louvre. É comprada, então, por um mecenas,

que a cede ao museu. Nesse caso, o comprador

pode beneficiar-se com a isenção de impostos.

Ou, alternativamente, pode exibir sua

própria coleção no museu. Para grandes obras,

grandes festivais de música, há muitos patrocinadores

privados. O mecenato serve para as

obras mais caras, que fazem também a fama

da França. Agora, na França, a cultura é uma

coisa cotidiana. Na escola, a criança tem aula

de desenho, de música. Tem também atividades

culturais no bairro. Essas atividades, na

maioria das vezes, são financiadas pelo Estado,

pela região [que é o Estado no Brasil], ou o

município. Cada prefeitura tem uma biblioteca,

uma midiateca, um lugar para estudo e prática

de atividades musicais, além dos instrumentos.

Tudo isso é financiado pelas instituições francesas

ou europeias. No cotidiano, a cultura é

um investimento realizado, basicamente, pelo

setor público.

Culturas nº 3 março 2022

São financiamentos a fundo perdido?

Não visam lucro financeiro, mas sim outro tipo

de lucro, que é bem maior, no final, do que o financeiro.

É um lucro para o equilíbrio social, para

integração da população estrangeira nos bairros,

para combater a violência, as drogas. Muitas vezes,

é a cultura que permite solucionar de forma

pacífica esses problemas do cotidiano. Então, o

benefício é muito maior do que o lucro financeiro.

Como ficou o setor de cultura na França durante

a pandemia?

No período de pandemia, o Ministério da Cultura

veio em auxílio aos profissionais do setor, substituindo

os financiamentos privados e as receitas

de bilheteria que eles não obtiveram. Mesmo assim,

é um setor que sofreu muito financeiramente,

mas não apenas. Sofreu também psicologicamente,

por conta do fechamento das salas, da

impossibilidade de realizar produções, da falta

de encontros mais próximos com o público, em

virtude da modalidade remota que foi designada

– em alguns casos e quando possível – para os

espetáculos artísticos.

Na quinta edição do Fórum de Políticas Culturais

franco-brasileiro, foi apresentada a

experiência do Mécènes du Sud, em que um

consórcio de empresas passou a financiar a

cultura. Esse é um modelo comum na França?

Não é comum. Justamente por isso sugeri que o

caso fosse apresentado, porque exemplifica uma

forma original de financiamento da cultura. O que

ocorre muitas vezes é que as empresas são solicitadas

a financiar um evento, mas raramente

têm a opção de escolher que tipo de arte querem

fomentar e ver nas galerias. O Mécènes é uma

associação criada em Marselha, no sul da França,

visando permitir que apreciadores de arte pudessem

se unir para fomentar mostras ou obras

que eles, os próprios financiadores, pudessem

escolher. É uma proposta um pouco diferente do

82


Experiências compartilhadas

mecenato clássico, porque é a própria empresa

criando seu mecenato e participando do processo

curatorial. É uma proposta bem diferente, bem

original. Ver reportagem às páginas 60 a 70.

É diferente, também do modelo brasileiro de mecenato,

porque aqui a empresa, individualmente,

financia a cultura. Não há grupos de empresas

atuando nesse financiamento. E isso impede que

as empresas de pequeno e médio porte também

possam, de fato, contribuir para a cultura. Porque

elas não têm como reunir recursos para financiar

um evento de grande porte sozinhas, como

um festival internacional. Ou seja, elas não têm

condições de fomentar uma atividade cultural de

grande dimensão. Então, não ganharão visibilidade;

ao contrário, juntas, a marca delas aparece

diretamente associada ao evento apoiado pela

associação da qual fazem parte. Deixam de ser

apenas mais um nome na lista de patrocinadores

com aporte minoritário para fazer parte de algo

mais representativo. Dessa forma, as empresas

Culturas nº 3 março 2022

conseguem fazer o que gostam, ganhar visibilidade

na escala regional e nacional e trazer uma

dinâmica para a região, atingindo também, diretamente,

os próprios funcionários. E, dentro da

empresa, todos estarão a par do projeto financiado.

É um trabalho formativo também. Cria-se um

público que talvez não tivesse buscado a oferta

cultural por conta própria e, ao mesmo tempo, trabalha-se

a questão da identidade, pois, ao apoiar

artistas da região, contribuímos para fortalecer o

sentimento de pertencer a um território. Isso me

parece algo inovador e interessante.

Quais seriam os aspectos positivos e negativos

do sistema brasileiro de financiamento

da cultura?

O Brasil é um país grande territorialmente, o que

ocasiona uma série de desafios para democratizar

o acesso às fontes de fomento e expandir a

capilaridade das redes culturais. Como disse há

pouco, o financiamento da cultura pelo mecenato

Museu do Louvre/Divulgação

Na França, grandes empresas estão à frente do financiamento

de iniciativas que dão visibilidade internacional à cultura daquele

país, como o Museu do Louvre

83


Experiências compartilhadas

é positivo, mas pode ofuscar outras possibilidades.

Como as grandes empresas dedicam parte

da rubrica deduzível com o incentivo a projetos

culturais para uma fundação própria, priorizamse

os eventos já respaldados pela crítica e pelo

público, mas não necessariamente esses projetos

oportunizam a realização de residências ou a troca

de experiências entre dois países. Quando você

tem um financiamento de uma empresa de menor

porte, o contato entre a empresa e o artista é diferente.

A forma de fomentar no Brasil vem muito

de cima, do governo, da Funarte, do Ministério da

Cultura, da Lei Rouanet. Porém, para dinamizar a

cultura na escala local, não há muitas alternativas.

Muitas vezes pequenos comércios ou empresas

consideram que incentivar a cultura não é o seu

papel. Isso é algo que deveria ser mais trabalhado

no Brasil e as experiências estrangeiras mostram

que é possível explorar outros caminhos.

Como em Marselha?

Sim, como em Marselha, por exemplo. E aí você

descobre vários empreendedores que têm interesse

na cultura. E se você explica para esses

parceiros as formas de financiamento, ou cria

para eles um fundo especial, você informa que

eles são fundamentais para um outro tipo de cultura,

mais territorial. Acho que isso funcionaria

também no Brasil.

No Brasil há setores invisíveis ao fomento

cultural. Como o senhor imagina a possibilidade

de retirar certos segmentos da invisibilidade?

Seria essa uma atribuição específica

do poder público?

Sim, seria basicamente do setor público, mas

com a colaboração do setor privado. Um exemplo:

algumas expressões artísticas contemporâneas

não contam hoje com a mesma visibilidade

que a arte moderna ou a arte renascentista.

Os projetos de arte contemporânea demandam

apoio institucional, que pode ser uma prefeitura,

Culturas nº 3 março 2022

um Estado, mas também há alguns financiadores

privados que incentivam esses movimentos artísticos.

A título de exemplo, o street art, ou a arte

de rua, ainda encontra obstáculos no acesso aos

editais de fomento para organização de mostras

e de formação de público. Muitas pessoas ainda

confundem a pichação com a street art, que,

muitas vezes, é malvista, da mesma forma que o

hip-hop e as pinturas urbanas. Mas quando você

tem uma associação, como a Le Mur, que oferece

um espaço central, numa zona metropolitana

com altíssima visibilidade para mostrar que arte

de rua também é arte, você sensibiliza o público.

Assim, a municipalidade desperta para essa

demanda de fomento. Então, artistas “invisíveis”

teriam de, a priori, se estruturar em rede, porque

individualmente as pessoas tendem a não reunir

os recursos necessários para ampliar e manter

visibilidade. Mas se elas se estruturam, em associação,

por exemplo, podem conquistar o público

e assim postular às fontes de financiamento. Trata-se

de um trabalho gradual, requer investimento;

é preciso evidenciar que a arte não acontece

apenas em museus. Pode acontecer na rua e em

outros lugares inesperados. Ver reportagem às

páginas 67 a 70.

Mencionaria que a invisibilidade não está relacionada

apenas à obra de arte em si, mas ao público

-alvo. A relação arte-invisibilidade pode ser dupla.

Decerto, a arte pode ser o meio para retirar da

invisibilidade segmentos da sociedade. Temos,

na França, associações que realizam projetos artísticos

com pessoas com deficiência mental. Durante

três a quatro meses, em colaboração com

uma equipe de fotógrafos, constroem os cenários

e os figurinos utilizados em suas próprias sessões

de fotografia. Esta mesma associação realiza

trabalho similar com pessoas acometidas por

câncer em fase terminal, com o intuito de mostrar

que ainda existe sorriso, esperança, brilho nos

olhos. As páginas de seu portfólio são igualmente

ilustradas com fotografias dos trabalhadores

84


Experiências compartilhadas

Culturas nº 3 março 2022

Qual foi importância do V Fórum Políticas

Culturais em Debate?

É uma troca de experiências muito interessante

porque você não foca só em palestras expositivas,

mas no que talvez seja mais importante:

traz experiências. E, com as experiências, você

consegue comparar e criar possibilidade de colaboração

entre as pessoas. Então, muitas vezes,

os brasileiros aproveitam mais o Fórum do que

os franceses, em virtude do horário de realização

(algo que a edição da revista CulturaS contribui

para atenuar, dado o alcance extemporâneo da

publicação). Observei, no entanto, o interesse

dos participantes franceses em compreender

da limpeza urbana. São um relato visual do dia as formas de se lidar com a cultura no Brasil.

a dia deles, quando seguem para o trabalho, em Talvez não se trate de realizar apelos à implementação

brusca de modelos. Aliás, o Brasil

dias de sol, de chuva, de frio. Esses exemplos

ilustram o campo vário de possibilidades que a nos inspira, assim como reconhecemos expressões

artísticas brasileiras que guardam relação

arte possui, sob ângulos que nos acostumamos

a ignorar ou nos recusamos a enxergar.

com redes colaborativas francófonas. O Fórum

Acredito na importância de chamar a atenção do possibilita um diálogo em que o público francês

público para o encontro com a cultura em outros tem a oportunidade de aprender sobre quais

cenários, não necessariamente “uma bela obra experiências daqui que se adaptariam à Fran-

de arte” das tradicionais curadorias

Reprodução Facebook

museológicas. A sensibilização às

artes contribui para o despertar

de novas expressões culturais. E

as associações de moradores, de

profissionais, podem ter esse papel

de dar visibilidade, confiança a

alguns artistas que até há pouco

permaneciam às sombras, invisíveis.

Se você é um artista, você

tem direito à visibilidade. Não

está propondo arte com visibilidade

apenas para os museus. Está

propondo uma obra que tem que

invadir as ruas. E o primeiro passo

No Brasil, financiamento da cultura deveria atender tanto aos grandes

para isso é esses setores invisíveis

se organizarem. Ver reporta-

Mascarenhas, de Pitangui

quanto aos pequenos projetos, como o da Banda José Viriato Bahia

gem às páginas 28 a 39.

ça. Porém, quanto ao financiamento, cada país

deve avaliar como montar o seu próprio modelo

para a cultura. E definir se este deve primar

por uma estratégia voltada ao contato próximo

com o público ou à grande visibilidade. Como

dizia anteriormente, a reciprocidade deve existir.

Estamos dispostos a colaborar com o Brasil.

Aos franceses cabe se inspirar nas experiências

brasileiras, tanto no que rendeu êxitos, quanto

no que ainda pode ser aprimorado. Às vezes,

ocorre de um projeto não ter sustentabilidade

porque oriundo de uma ideia carente de lapidação.

Isto afeta o desenvolvimento e o alcance da

proposta, elementos cruciais para a garantia da

viabilidade econômica de projetos duradouros.

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