Serviço social e acolhimento institucional de crianças e adolescentes
Diferentes segmentos da sociedade continuam difundindo a falsa ideia de que com esforço e determinação individuais é possível superar as dificuldades. Esta concepção, pautada na falsa premissa de que todos os sujeitos sociais nascem em condições de igualdade, camufla a estrutura de desigualdades de classe, gênero e raça/etnia, que organiza nossa sociedade, bem como seus mecanismos de perpetuação. Este livro se soma à reflexão e ao debate sobre a imperiosa necessidade de enfrentarmos a estrutura de desigualdades de nossa sociedade, visando a proteção efetiva de todas as crianças e adolescentes brasileiros, especialmente as que vivenciam inúmeras situações de vulnerabilidade e violação de direitos. ROSANA MORGADO
Diferentes segmentos da sociedade continuam difundindo a falsa ideia de que com esforço e
determinação individuais é possível superar as dificuldades. Esta concepção, pautada na falsa
premissa de que todos os sujeitos sociais nascem em condições de igualdade, camufla a estrutura de desigualdades de classe, gênero e raça/etnia, que organiza nossa sociedade, bem como seus
mecanismos de perpetuação. Este livro se soma à reflexão e ao debate sobre a imperiosa necessidade de enfrentarmos a estrutura de desigualdades de nossa sociedade, visando a proteção efetiva de todas as crianças e adolescentes brasileiros, especialmente as que vivenciam inúmeras situações de vulnerabilidade e violação de direitos.
ROSANA MORGADO
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SERVIÇO SOCIAL
E ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL
DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Vanessa Cristina dos Santos Saraiva
Este livro é fruto do acúmulo profissional e teórico
da jovem autora Vanessa Saraiva, doutora em
Serviço Social, pesquisadora, docente e assistente
social, que traz em sua trajetória acadêmica e profissional,
na defesa e proteção aos direitos de crianças
e adolescentes, o engajamento e o compromisso
com a luta anticlassista, antissexista e antirracista.
Inspirada na tradição marxista, a autora constrói
uma análise critica dos processos políticos e ideológicos
que permearam a história do atendimento às
crianças e adolescentes no Brasil, cujo Estado em
diversos contextos históricos, sob a lógica capitalista
dependente e periférica, e em nome da
“proteção”, foi um dos maiores violadores de
direitos através de práticas violentas, conservadoras,
segregadoras e disciplinadoras no controle
social de crianças e adolescentes pobres e na culpabilização
de suas famílias.
Os avanços legais a partir da década de 1980 com a
doutrina da proteção integral e as alterações posteriores
ao ECA são abordados nesta obra, oferecendo
uma importante contribuição para análise
dos diferentes projetos em disputa na área da
infância e juventude, que vão afetar a condução e o
direcionamento da política pública para este
segmento na efetivação de seus direitos frente às
estruturas sociais de dominação e exploração capitalista,
geradoras de desigualdades e de violações.
A autora completa sua argumentação ao examinar
cuidadosamente o panorama da situação de
crianças e adolescentes em acolhimento institucional
no município de Duque de Caxias, no Rio de
Janeiro, trazendo os desafios profissionais no
fortalecimento ao direito da convivência familiar e
na ruptura com a cultura de institucionalização
adotada largamente com famílias negras, empobrecidas,
periféricas e chefiadas por mulheres.
EBE CAMPINHA DOS SANTOS
• serviço social e acolhimento institucional de crianças e adolescentes •
Vanessa Cristina dos Santos Saraiva
SERVIÇO SOCIAL
E ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL
DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Copyright © Vanessa Cristina dos Santos Saraiva.
Todos os direitos desta edição reservados
à MV Serviços e Editora Ltda.
conselho editorial
Ana Lole, Eduardo Granja Coutinho, José Paulo Netto,
Lia Rocha, Mauro Iasi, Márcia Leite e Virginia Fontes
revisão
Darlene Moreira Suriano
foto (capa)
Andre Borges, Agência Brasília
design
Patrícia Oliveira
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Elaborado por Meri Gleice Rodrigues de Souza – crb 7/6439
S247s
Saraiva, Vanessa Cristina dos Santos
Serviço social e acolhimento institucional de crianças
e adolescentes / Vanessa Cristina dos Santos Saraiva. – 1. ed. –
Rio de Janeiro: Mórula, 2022.
140 p. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
isbn 978-65-86464-94-8
1. Serviço social de menores – Brasil. 2. Assistência a
menores – Brasil. 3. Menores abandonados – Assistência em
instituições – Brasil. I. Título.
22-77340 cdd: 362.730981
cdd: 364.783.2-053.2-053.6
Rua Teotônio Regadas 26 sala 904
20021_360 _ Lapa _ Rio de Janeiro _ RJ
www.morula.com.br _ contato@morula.com.br
/morulaeditorial /morula_editorial
Para meu filho Gabryel, coração fora
do meu peito; minha amada mãe Guaraci,
in memória de meu querido pai Vanderlei
e para Bruno, meu amor.
Sumário
9 prefácio
17 introdução
23 capítulo i
23 Menorismo e Ditadura Militar
31 Capitalismo, Ditadura e o acirramento da condição
desigual da infância no Brasil
38 O Código de “menores” de 1979: acesso aos direitos
ou reafirmação da violência?
46 A influência das representações sociais da criança:
desafios e possibilidades na garantia de direitos
62 Movimentos sociais, Redemocratização e
o Estatuto da Criança e do Adolescente
71 capítulo 2
71 As alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente
80 Acolhimento institucional no Rio de Janeiro
87 O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária
94 O Acolhimento Institucional e o Serviço Social:
elementos introdutórios para o trabalho nas UAI’s
101 Acolhimento institucional na Baixada Fluminense:
desafios aos direitos
111 considerações finais
117 posfácio
125 referências
137 lista de siglas
Prefácio
rodrigo silva lima
Ser prefaciador deste livro é uma honra. Esse convite me deixou lisonjeado
e profundamente feliz. Porém, obviamente, esse não é um processo
tranquilo. Envolve, de um lado, a cumplicidade acadêmica com uma
orientanda que, além de tudo, é amiga e companheira de vários projetos
profissionais e, de outro lado, a tensão pelo compromisso intelectual com
a crítica e o rigor acadêmico. Sendo assim, nessas breves linhas, escrevo
um resumo de seus capítulos, teço comentários do seu conteúdo e impressões
acerca da intelectual responsável pela obra.
Em primeiro lugar é importante que essa produção inspire outras
pessoas e ecoe como se fosse melodia de belas canções. Quero abandonar
momentaneamente as formalidades acadêmicas e abrir esse prefácio com
a lembrança de uma música que exige respeito às conquistas de um povo.
O samba é uma manifestação da cultura popular e uma das marcas da resistência
negra no país. E os versos cantados por Jorge Aragão, em Moleque
Atrevido, com as devidas adaptações, poderiam anunciar “quem foi que
falou que não é uma moleca atrevida?”. Ser uma intelectual negra no Brasil
é algo muito difícil, não apenas pelos ataques à educação pública de nível
superior, mas pelos traços racistas, machistas e eugênicos presentes em
nossa formação, pelas exigências formais da academia e pelos inúmeros
sacrifícios cotidianos que, muitas vezes, são invisíveis para as pessoas que
irão ler esse exemplar. Tudo isso pode parecer uma ousadia, mas nada é
ousado a quem tudo se atreve!
Há, sem dúvidas, uma identificação pessoal e política que atravessa
as nossas trajetórias de vida no subúrbio do Rio de Janeiro, passa pela
9
formação na mesma Unidade de Formação Acadêmica (ESS/UFRJ) e
pelo exercício profissional em Serviço Social em abrigos (ou unidades
de acolhimento institucional). Demarca também o seu ingresso como
pesquisadora associada no Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos
Humanos, Infância, Juventude e Serviço Social (NUDISS/UFF). Os caminhos
trilhados por Vanessa Saraiva, ao longo desses anos, demonstram o
amadurecimento pessoal e intelectual, rejeitam o discurso individualista
da meritocracia, abominam a superficialidade das análises e a ausência de
compromisso político. Nessa publicação, não existem as soluções fáceis
propagadas pelo imediatismo que conforma a ideologia pós-moderna na
sociabilidade do capital. É uma jornada que conjuga a tenacidade da família
e as estratégias de classe de uma jovem universitária diante de uma realidade
desigual. Há resistência, comprometimento, seriedade e sabedoria.
Como sugere o título, “Acolhimento Institucional e Serviço Social:
elementos reflexivos”, o livro resulta do Trabalho de Conclusão do Curso
de Especialização em Políticas Sociais e Intersetorialidade do Instituto
Fernandes Figueira (IFF) — Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em
parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Cabe ressaltar que o texto atual foi adensado com outras preocupações
teóricas que não constam no trabalho original. Trata-se, portanto, de uma
análise histórica que busca examinar um contexto político de aproximadamente
oito décadas. Baseadas na literatura crítica e inspiradas também na
tradição marxista, as reflexões acerca do atendimento à infância e à adolescência
no Brasil, sob as determinações do modo de produção capitalista,
se dão a partir da inserção profissional como assistente social no abrigo e
dos desafios da rede de acolhimento institucional na Baixada Fluminense.
O texto está dividido em dois capítulos. No item inaugural do primeiro
capítulo, a autora nos mostra como o “menorismo”, concepção ideológica
alicerçada no modelo escravocrata e presente no período pós-abolição,
retrata as crianças e adolescentes negras e pauperizadas, acentuando
práticas seletivas, hierarquizadas e estigmatizantes. No processo de
institucionalização e na legislação social, esses segmentos infantis são
vistos pela ótica autoritária da criminalização, muito mais como objeto de
medidas judiciais do que como pessoas merecedoras de respeito e dignidade.
Nas contradições assinaladas existe a denúncia da mercadorização
10
e da desumanização impostas aos descendentes de africanos e de indígenas,
no violento processo de colonização e, por outro lado, a compreensão
teórica de que esse fenômeno é reproduzido a partir da inserção
periférica e dependente do Brasil nas relações internacionais.
É ressaltado em “Capitalismo, ditadura e o acirramento da condição
desigual da infância no Brasil” o papel do SAM e da famosa FUNABEM.
A fama alcançada, ao contrário de revelar processos emancipatórios,
demonstra a produção de infâncias diferentes e desiguais. A violação
dos direitos humanos, a manutenção de um ciclo de dependência institucional
e, principalmente, as poucas oportunidades para construção de
uma autonomia compõem os versos da canção de Guará e Fernandinho
que dizem: “Muitos me chamam pivete / Mas poucos me deram um apoio
moral / Se eu pudesse, eu não seria um problema social”. As desigualdades
sociais engendradas no modo de produção capitalista e, nesse contexto
político, a partir das recomendações da Doutrina de Segurança Nacional
produziram formatos de instituição total, com o controle dos segmentos
pauperizados, estabelecimento de ambientes superlotados e onde a longa
permanência contribuiu decisivamente para ruptura dos laços entre
crianças, adolescentes e suas famílias. O “marketing estatal” propagava
que na FUNABEM era possível “estudar e aprender uma profissão”, mas
encobria o lema antidemocrático de “prender para proteger”.
Nos itens que encerram o primeiro capítulo, a autora realiza uma breve
análise de uma conjuntura marcada pelo “Milagre Econômico” e pelo esgotamento,
no final de 1970, do modelo tecnocrático militar, com críticas ao
processo de acumulação que reverberou na crise de crescimento econômico,
no aumento das taxas de inflação e da dívida externa. A violência
institucional aparece como produto e, ao mesmo tempo, matéria-prima
de uma cultura conservadora, eugênica, moralizadora, patriarcal e autoritária.
Os esforços para garantia e acesso aos direitos se dava muito mais
pela cultura da institucionalização do que por uma concepção de cidadania.
A situação irregular da criança e do adolescente era vista como
um problema privado e exclusivo da família que, mesmo desprotegida
e privada de condições essenciais à sua subsistência, era culpabilizada.
A análise do item que abarca o “Segundo Código de Menores” (1979)
vem acompanhada da crítica à centralidade do Juiz de Menores e do
11
subjetivismo nos processos de destituição do pátrio poder (atualmente
poder familiar). As lutas democráticas e a mobilização dos segmentos
progressistas da sociedade civil são alguns dos aspectos que descortinam
o enrijecimento presente na legislação, a sua problematização e
o movimento da sociedade civil na superação do paradigma menorista.
O debate sobre a “influência das representações sociais da criança”, ao
contrário dos outros itens, vai compor um caminho metodológico diferente
da construção teórica até então realizada. O escopo teórico adotado, amplo
e plural, expressa o acúmulo em debates profícuos e que ainda apresentam
pouca capilaridade no Serviço Social. Numa construção até então inédita
no percurso da autora, são enumeradas algumas análises das infâncias na
produção cinematográfica nacional e internacional. Isso favorece novos
procedimentos de trabalho, ou seja, a realização de atividades em grupo,
rodas de conversa e debates nas escolas, unidades de acolhimento institucional
e familiar, nos equipamentos que realizam atendimento socioeducativo,
nas universidades e campos de estágio. A pergunta que autora faz
nos convida à leitura, afinal, o cinema contribui para processo de tomada
de consciência? É uma ferramenta de manipulação política? Cumpre um
papel propositivo? Denuncia as violações dos direitos humanos?
Na transição entre capítulos é realizada a articulação entre as mobilizações
da sociedade civil, no período que antecedeu a Constituição
Federal de 1988, e as alterações no ordenamento jurídico ao longo das três
últimas décadas. No que diz respeito ao papel dos movimentos sociais,
no processo de redemocratização do Estado brasileiro, a autora aborda
de forma percuciente a necessidade de ruptura com procedimentos da
legislação menorista e as estratégias coletivas para superação da lógica
subjacente à tecnocracia do aparato repressivo do Estado. Algo que,
pelo menos na letra da lei, foi superado com advento e do Estatuto da
Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, e a instituição
da Doutrina de Proteção Integral e do Sistema de Garantia de Direitos da
criança e do adolescente (SGDCA).
O segundo capítulo registra a produção do conhecimento de uma
profissional de Serviço Social engajada no atendimento ao público infantil
e adolescente e as metamorfoses de uma jovem doutora que vem trilhando
o caminho da docência no ensino superior. Cada página nos permite, além
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de problematizações para o exercício profissional, um leque de discussões
que podem contribuir para aflorar debates, evidenciar diferenças
teóricas e que, diante de provocativas afirmações e convicções políticas,
confirmam os compromissos com as pautas antirracistas, a mobilização
pelos direitos de crianças e adolescentes e o horizonte de luta por uma
sociedade sem exploração e dominação.
Das diversas alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, são
enfatizados os novos dispositivos da Lei 12.010/2009, denominada por
muitos como “Lei da Adoção”. O caráter inovador e progressista é identificado
ao se considerar os condicionantes socioeconômicos das famílias
candidatas à adoção e ao sensibilizar toda a sociedade de que crianças e
adolescentes, como sujeitos de direitos, também têm o direito à convivência
familiar e comunitária. O quadro emoldurado pela autora rechaça
qualquer tipo de preconceito no processo de adoção, seja por raça/cor,
idade, orientação sexual, religiosa e condição civil. Dessa forma, será que
o avanço assinalado na lei poderá redimensionar as práticas sociojurídicas
e as políticas sociais?
No que concerne o debate sobre acolhimento institucional no Rio de
Janeiro a autora segue um caminho de crítica ao processo de institucionalização.
As mudanças recentes do ECA incidem, sobretudo, na tônica da
judicialização, principalmente, com a retomada da aplicação da medida
protetiva de acolhimento institucional, antes de responsabilidade do
Conselho Tutelar, ao poder Judiciário. Isso é algo que revela, sob novas
determinações, a continuidade do caráter híbrido em que a rede de atendimento
assistencial e punitiva foi consolidada no país. Cabe a indagação
sobre o que seria mais nocivo e deletério no processo de desenvolvimento
de crianças e adolescentes? A manutenção de um padrão de sociabilidade
profundamente desigual? A idealização da função protetiva da família?
O genocídio programado da população mais pobre? Ou o processo de
acolhimento institucional? As respostas para essas perguntas, longe de
simplificações, precisam ser repensadas e equacionadas não apenas nas
proposições da autora, mas no debate acadêmico e juntamente com os
profissionais e instâncias do Sistema de Garantia de Direitos.
Os avanços apontados, no tocante às formulações do Plano Nacional
de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), consistem na ruptura
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com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e no fortalecimento
do paradigma da proteção integral e preservação dos vínculos
familiares e comunitários. Entretanto, mesmo que se reiterem os princípios
do ECA, tais avanços precisam ser acompanhados de uma advertência. O
objetivo do Sistema de Garantia de Direitos pode não ser o mesmo daquele
preconizado pelo Banco Mundial, contudo há um alinhamento conceitual
do PNCFC às recomendações desse organismo internacional, e isso exige
atenção dos profissionais. Se a família é percebida como instância da proteção,
por outro lado, a racionalidade do Estado, ao enfatizar a sua centralidade,
reforça a sobrecarga das mulheres na rede de cuidados familiares e intensifica
a parceria público privada no conjunto de serviços socioassistenciais.
Os dois últimos itens do segundo capítulo conjugam uma rápida
incursão no debate sobre Serviço Social e Acolhimento Institucional e
expressam empiricamente “os desafios profissionais e da rede de atendimento
na garantia de direitos de crianças e adolescentes na Baixada
Fluminense”. Os pressupostos para compreender os inúmeros desafios
profissionais não se encerram nas determinações estruturais para
o atendimento, nas restrições de financiamento do governo, tampouco
na incompreensão do significado da criança e do adolescente como
prioridade absoluta, mas em outros temas fundamentais para garantir a
proteção integral. Duque de Caxias, de acordo com a descrição, possui oito
unidades de acolhimento institucional, quatro públicas e outras quatro
privadas/filantrópicas, e algumas diferentes abordagens são analisadas
no que tange a natureza da instituição, sejam elas estatais ou religiosas.
Além de compreender a excepcionalidade e a provisoriedade que
consiste a aplicação de medida protetiva, a autora aborda a processualidade
do atendimento assistencial, a necessidade de construção do Plano
Individual de Atendimento (PIA), a preocupação com os sentimentos,
os medos e as perspectivas sobre o futuro, as diferentes propostas sócio
pedagógicas de acordo com faixa etária, o respeito à trajetória, à cultura
e à liberdade da criança e do adolescente, bem como o reforço dos princípios
do ECA, tais como: o atendimento personalizado e em pequenos
grupos; a participação na vida comunitária; o desenvolvimento de atividades
em regime de coeducação; o não desmembramento de grupos de
irmãos, a preparação gradativa para o desligamento e etc.
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A reflexão é bastante complexa e denuncia anos de abandono do poder
público, relações políticas conflituosas na região e as disputas de interesses
econômicos num território atravessado por múltiplas violências.
Os resultados desse livro revelam processos histórico-sociais concretos
e adensam o conhecimento na área da infância, da adolescência e do
Serviço Social. Longe de propugnar uma verdade absoluta ou reiterar
dogmatismos, sua relevância consiste em provocar debates, questionamentos
e o diálogo permanente, não apenas entre pesquisadores(as),
mas entre trabalhadores(as), gestores(as), parlamentares, famílias e a
população usuária dos serviços prestados nas Unidades de Acolhimento
Institucional (UAIs).
Por fim, o comprometimento ético-político da autora, ao dinamizar
uma fecunda elaboração teórica, ilumina uma preocupação numa área de
estudo que carece de produções de assistentes sociais. Isso nos mostra,
sobretudo, como é importante saber onde estão fincadas as raízes e onde
se quer chegar com o trabalho profissional. E esse prefácio só poderia
ser finalizado com o samba: “e a gente chegou muito bem, sem desmerecer
a ninguém / Enfrentando no peito um certo preconceito e muito
desdém / (...) Por isso vê lá onde pisa, respeite a camisa que a gente suou.
/ Respeite quem pode chegar onde a gente chegou”. Respeite quem pode
chegar onde ela chegou. Então, nesse sentido, convido todas as pessoas
à leitura desse livro!
Niterói, RJ
Fevereiro de 2022
rodrigo silva lima é educador social, assistente social, Professor Associado da Escola
de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF) e membro do corpo
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento
Regional (PPGSSDR). Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos
Humanos, Infância, Juventude e Serviço Social (NUDISS) e membro associado do Centro
de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do Rio de Janeiro (CEDECA-RIO).
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Introdução
A problematização aqui posta é resultado dos estudos realizados no decorrer
do Curso de Especialização em Políticas Sociais e Intersetorialidade,
realizados no Instituto Fernandes Figueira (IFF) — Fundação Oswaldo
Cruz (FIOCRUZ) — em parceria com a Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO), entre os anos de 2017 e 2018. Trata-se de
um estudo cujo objeto diz respeito à situação de crianças e adolescentes
que permanecem em acolhimento institucional na Baixada Fluminense.
Buscamos refletir em que medida o acesso aos direitos desse segmento
está sendo garantido, sobretudo, o de convivência familiar e comunitária.
Essa investigação é produto das minhas inquietações enquanto Assistente
Social, inserida em espaços que compõem o Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), inicialmente em unidade
de acolhimento institucional/abrigo em 2015 e em Conselho Tutelar (CT)
entre 2016 e 2017, na Baixada Fluminense. Essa inserção profissional fez
com que eu me deparasse com uma realidade complexa, multifacetada e
perpassada por várias determinações sociais, nas quais crianças, adolescentes
e suas famílias empobrecidas, negras e que têm como marca comum
a monoparentalidade feminina negra se defrontam com inúmeras limitações
e dificuldades, tendo o Estado e suas instituições como os maiores
violadores de seus direitos.
Esse campo de atuação perpassado por inúmeras complexidades nos
conduz a realizar uma série de questionamentos dessa realidade social, do
espaço socioprofissional e das demandas apresentadas pelos usuários cotidianamente.
Questionamentos esses que exigem a compreensão acerca
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da sociedade em que estamos inseridos e de quais são os pressupostos
econômicos políticos que percorrem essa realidade, as particularidades
do processo de formação sócio-histórica brasileira (destacando raça,
gênero e classe) e os impactos dessa dinâmica no decorrer do processo de
trabalho do assistente social nessa área de atuação. Isso porque, no exercício
da profissão, nos deparamos com indivíduos concretos, reais, que
enfrentam condições materiais de vida cheias de limitações e privações
para se inserirem produtivamente de acordo com as exigências da sociedade
atual e que dependem, para sua sobrevivência, dos bens e serviços
que são ofertados pelo Estado e por outras instituições públicas e privadas.
No processo empírico podemos constatar essas condições de vida e os
padecimentos que provocam em milhares de indivíduos. Historicamente,
essas pessoas ocupam um lugar não digno na estrutura socioeconômica
no modo de produção capitalista; modo de produção que, em “A Ideologia
Alemã”, é identificado como:
uma forma determinada de expressar a sua vida, uma forma
de vida determinada do mesmo (...). O que eles são coincide
com sua produção, tanto com o que eles produzem, quanto
com o como eles produzem. O que os indivíduos são, portanto,
depende das condições materiais de sua produção (Marx e
Engels; 2007, p. 42).
O modo de produção capitalista (MPC) é um modo de produção que tem
como pressuposto a acumulação para obtenção de lucros e que contém, na
sua estrutura, limitações que impedem que esse processo de acumulação
aconteça de forma plena e permanente, sempre mantendo crescentes as
taxas de lucratividade. Essas limitações se expressam através de crises
cíclicas do sistema que se apresentam em diferentes períodos históricos.
O Estado cumpre uma função de apoio ao capital no processo de enfrentamento
dessas crises cíclicas do MPC. Ele assume o papel de mediar interesses
particulares em função dos interesses do conjunto da sociedade
ou do interesse geral, porém, o próprio Estado é atravessado por interesses
particulares, interesses de classe que se alçam a interesses universais.
A classe que detém a propriedade dos meios de produção, que são a
base da estrutura social no MPC, se apresenta para o resto da sociedade
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como imprescindível para o funcionamento social, colocando-se acima
dos demais indivíduos e ocupando os aparelhos do Estado para alcançar
seus propósitos e aspirações, revestidos de interesses universais.
Nesse sentido conseguimos compreender as ações adotadas por este
Estado, o qual é atravessado por interesses econômicos e de classe. As
medidas adotadas pelos governos transitam entre tentativas de solucionar
questões pertinentes ao processo produtivo, podendo chegar à instituição
de um modelo diferente de regulação social, reestruturação de serviços
públicos, restrição de políticas sociais e seu desfinanciamento. Isso tudo
é criado para manter as taxas de lucro em crescimento e, assim, atender às
necessidades da acumulação. Todavia, esse modelo de produção é crucial
para controlar, monitorar, explorar e pacificar a população com vistas a
evitar a organização coletiva de posturas “subversivas” que possam derrubá-lo
(Harvey, 2013; Netto, Braz, 2008; Bottomore, 1988).
Mesmo assim, no decorrer da história e mesmo diante desses limites,
os sujeitos conseguiram, mediante intenso processo de lutas de classes,
conquistar direitos que estavam inteiramente vinculados à situação de
vida insalubre em que estavam situados, tanto na vida doméstica quanto
no campo do trabalho. E a maior expressão desse intenso processo de
lutas sociais se consubstanciou no estabelecimento das políticas sociais,
as quais passaram a sofrer influências decorrentes das oscilações do modo
de produção capitalista. Behring afirma que “a política social é também
integrante de um conjunto de medidas adotadas pelo capital para enfrentar
as crises cíclicas inerentes ao modelo capitalista de produção” (2003).
Diante disso, conseguimos constatar que as políticas sociais são
implementadas, se ampliam ou se limitam de acordo com o modelo de
regulação social que se encontra em vigência. E este, por sua vez, sempre
atendeu às necessidades da acumulação capitalista, uma lógica baseada
na centralidade dos aspectos econômicos em detrimento do social. Em
outras palavras, a necessidade de se manter as taxas de lucratividade em
ascensão deve ser priorizada, mesmo que isso signifique exploração da
classe trabalhadora, destruição de direitos sociais conquistados e limitação
para que outros direitos se materializem.
No caso do Brasil é importante fazer uma mediação levando em
consideração as particularidades no seu processo de formação social e
19
econômica (dependente, racializada, generificada), sobretudo quando
dialogamos a respeito da constituição de direitos sociais, incluídos os de
crianças e adolescentes. Em primeiro lugar, não houve no Brasil a construção
de um padrão de proteção social tal como ocorreu nos países europeus
e centrais do capitalismo e onde a população assistiu à destruição
dessa experiência para que as necessidades da acumulação pudessem ser
alcançadas. Em segundo lugar, no decorrer da formação social brasileira,
algumas relações de caráter excludente, baseadas no não rompimento
com o Estatuto Colonial, tendo por origem desse processo o racismo,
impedem o acesso a direitos de uma parte significativa da população brasileira.
Outros aspectos como a força do agronegócio, a revolução passiva
(como mecanismo de manutenção do Estatuto Colonial) e a modernização
conservadora devem ser levados em consideração nessa dinâmica
(Moura, 1994; Santos, 2010; Coutinho, 2008).
Diante disso, verificamos que a política direcionada à infância no Brasil
foi construída acompanhando uma lógica de manutenção do MPC e de
suas taxas de lucratividade em ascensão, controle social de segmentos
potencialmente subversivos, preparo desse segmento para atender as
necessidades da acumulação capitalista (futura mão de obra), assim como
as próprias limitações na constituição das políticas sociais e os interesses
econômicos diferentes que estavam em disputa no decorrer dos anos.
Para evidenciar essa dinâmica que perpassou o processo de constituição
da política direcionada à infância no Brasil, elaboramos este estudo,
o qual está estruturado em dois capítulos. Essas unidades reflexivas
têm por objetivo auxiliar o leitor a verificar se a medida de acolhimento
tem contribuído efetivamente para o acesso aos direitos de convivência
familiar das crianças e adolescentes ou se tem reforçado uma lógica de
violência por parte do Estado.
No primeiro capítulo realizamos um esforço para desvendar em que
momento as crianças e adolescentes passaram a sofrer as intervenções
do Estado e como essa relação permaneceu com o advento da Ditadura
Militar. Os instrumentos jurídicos, as normativas construídas nesse
período e as primeiras instituições “protetivas” onde essas normas seriam
aplicadas, bem como a realidade das crianças e adolescentes que viviam
nesses espaços e o lugar das famílias, serão abordados neste item. Os
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impactos das transformações ocorridas no mundo e as repercussões no
país, sobretudo, na política direcionada às crianças, além da instauração
de movimentos sociais que passaram a questionar essa ordem social e a
situação dessas crianças são abordados nesse estudo.
No segundo capítulo, à luz das normativas referentes ao campo socioassistencial
e da infância, isto é, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e suas alterações, a Constituição Federal de 1988 (CF 88), a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Plano Nacional de Convivência
Familiar e Comunitária (PNCFC), é demonstrada a mudança de paradigma
instaurado no Brasil, a tentativa de abandono de práticas violadoras
e quais as repercussões no campo dos direitos de crianças e dos adolescentes.
O estabelecimento do PNCFC como contraponto à persistência
do ranço de violações de direitos no campo da infância e adolescência,
além da construção de um panorama da situação dos abrigos no município,
serão abordados nesse momento tendo como referência também os
dados produzidos por órgãos oficiais como o Sistema Nacional de Adoção
e Acolhimento (SNNA) e do Módulo Criança e Adolescente (MCA).
Temos consciência de que o tema é vasto e que não se finda com essa
obra. Sabemos que muito há para construir em matéria de acolhimento
institucional. Porém, fica o convite a leitura de um estudo com base
empírica, de uma Assistente Social que esteve e ainda está atuando no
campo da infância e juventude e que deseja contribuir para uma atuação
crítica, propositiva, anticlassista, antissexista e antirracista no trato com
crianças, adolescentes e suas famílias. Boa leitura!
21
1ª edição maio 2022
impressão meta
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papel capa cartão supremo 300g/m 2
tipografia freight e bebas neue
VANESSA CRISTINA DOS SANTOS SARAIVA é
Assistente Social (UFRJ), mestre em Serviço
Social (UFRJ), especialista em Política
Públicas e Intersetorialidade (IFF-FIOCRUZ)
e doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social (UERJ). Possui experiência
em acolhimento institucional de crianças e
adolescentes e conselho tutelar. É pesquisadora
do Núcleo de Pesquisa em Direitos
Humanos, Infância, Juventude e Serviço
Social (NUDISS-UFF). Atualmente é professora
substituta da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
Diferentes segmentos da sociedade continuam
difundindo a falsa ideia de que com esforço e
determinação individuais é possível superar as
dificuldades. Esta concepção, pautada na falsa
premissa de que todos os sujeitos sociais nascem
em condições de igualdade, camufla a estrutura de
desigualdades de classe, gênero e raça/etnia, que
organiza nossa sociedade, bem como seus
mecanismos de perpetuação. Este livro se soma
à reflexão e ao debate sobre a imperiosa necessidade
de enfrentarmos a estrutura de desigualdades de
nossa sociedade, visando a proteção efetiva de todas
as crianças e adolescentes brasileiros, especialmente
as que vivenciam inúmeras situações de
vulnerabilidade e violação de direitos.
ROSANA MORGADO
ISBN 978658646494-8