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INVERNO 2022 – EDIÇÃO 8

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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8<br />

Et cetera<br />

Gente com Bossa<br />

A cozinha baianeira de Manuelle Ferraz<br />

Jão, o ícone da sofrência jovem<br />

A arte provocadora de Eduardo Srur<br />

Entrevista sobre etarismo com Vera Iaconelli<br />

Dora Morelenbaum e a nova turma da MPB<br />

A autoconsciência do ativista Preto Zezé<br />

E o bom humor inabalável de Dani Calabresa<br />

“Passo vários perrengues e desafios<br />

e penso ‘Isso ainda vai virar piada’”<br />

Distribuição gratuita


Impressora offset antiga | foto: Getty Images<br />

Expediente<br />

Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />

Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />

Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


Sumário<br />

Capa: Dani Calabresa<br />

Foto: Jairo Goldflus<br />

06 Roteiro<br />

Uma seleção com as melhores dicas culturais<br />

da temporada, de filmes e livros para<br />

curtir sozinho no sofá de casa a passeios<br />

para levar a família toda<br />

10<br />

O X da Bossa<br />

Cultura organizacional e aprendizagem no<br />

ambiente corporativo andam lado a lado. Em<br />

seu artigo, Daniel Motta explica a importância<br />

do tripé leveza-empatia-organicidade no mundo<br />

contemporâneo<br />

20<br />

Crônicas e Tal<br />

A diretora de inovação e comunicação<br />

da Bossa.etc, Alessandra Lotufo, passeia<br />

pelos mil e um universos no metaverso em<br />

sua nova crônica para a Et cetera<br />

22<br />

Gente com Bossa<br />

A arte tem o poder de transformar não só quem<br />

aprecia, mas também o próprio artista. Nesta<br />

edição, a Et cetera conta histórias que ressaltam o<br />

impacto da arte no indivíduo e na sociedade<br />

24<br />

Q&A Etc.<br />

A psicanalista e escritora Vera Iaconelli<br />

fala sobre etarismo: os impactos da<br />

discriminação etária na sociedade, a<br />

melhor maneira de combatê-lo e como ela,<br />

aos 57 anos, encara o preconceito<br />

26<br />

Com a Palavra…<br />

O ativista Preto Zezé conta sua trajetória<br />

de lavador de carros a empresário, artista<br />

e líder da Central Única das Favelas (Cufa),<br />

influenciado pelo despertar de consciência<br />

promovido pelo hip hop<br />

28<br />

Guarde Este Nome<br />

Filha de músicos, Dora Morelenbaum<br />

acompanhava os pais em turnês pelo mundo<br />

antes mesmo de aprender a ler e escrever.<br />

Aos 26 anos, ela é um dos mais promissores<br />

nomes da nova geração da MPB<br />

Foto: Jairo Goldflus<br />

Foto: Hugo Rennan<br />

Foto: PC Pereira<br />

Foto: Leo Martins<br />

30<br />

Dani Calabresa<br />

Com longa bagagem, a comediante Dani<br />

Calabresa, que estreou no teatro aos 5 anos,<br />

recusou convites da maior emissora do país antes<br />

de se sentir preparada para aceitar o desafio<br />

38 Jão<br />

Por trás do sucesso estrondoso da sofrência de Jão<br />

existe uma boa combinação de visão empreendedora,<br />

criatividade, sensibilidade artística e talento musical<br />

para transitar entre o pop e o sertanejo<br />

46<br />

Manuelle Ferraz<br />

A chef Manuelle Ferraz busca em suas origens<br />

no Vale do Jequitinhonha os impecáveis sabores<br />

dos pratos que saem da cozinha do premiado<br />

restaurante A Baianeira, em São Paulo<br />

54<br />

Eduardo Srur<br />

A exemplo da recente exposição Vida Livre, as<br />

obras em larga escala do artista plástico Eduardo<br />

Srur chamam a atenção para problemas da<br />

sociedade e do meio ambiente<br />

62<br />

Um Cartum<br />

Seu João ou São João? A importância de uma<br />

comunicação interna eficaz (ou melhor: as<br />

saias justas do mal-entendido na firma) é o<br />

tema do cartunista Roberto Kroll<br />

63<br />

Uma Tendência<br />

O movimento plastic-free vem impulsionando uma<br />

onda de inovação nos bens de consumo, como venda<br />

a granel de produtos industrializados e embalagens<br />

sem rótulo<br />

64<br />

Uma Palavra<br />

No recém-lançado romance Segunda Casa, a<br />

escritora britânica Rachel Cusk traz à tona<br />

temas como arte, relacionamentos amorosos,<br />

maternidade e a vida profissional da mulher<br />

A revista Et cetera tem uma versão<br />

pocket: o Etc Pop-up! Para receber<br />

semanalmente um boletim com<br />

notícias interessantes, fatos curiosos<br />

e dicas culturais no seu WhatsApp,<br />

cadastre-se pelo QR Code<br />

65<br />

Um Sabor<br />

A tradicional moqueca ganha uma roupagem<br />

mais contemporânea pelas mãos do chef<br />

Matheus Buosi, do restaurante paulistano DoRo<br />

<strong>–</strong> e a receita inclui dicas para o preparo de<br />

outros pratos também<br />

66<br />

Uma Imagem<br />

Com suas cores fortes, cenas agrárias e motivos<br />

florais, os quadros e painéis da pintora ucraniana<br />

Maria Prymachenko (1909-1997) representam o<br />

ápice da arte naïf no Leste Europeu


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Séries, filmes etc.<br />

Elvis<br />

Onde ver: nos cinemas, a partir de 14 de julho<br />

Duração: 2h39min<br />

Elvis não morreu<br />

Um dos personagens mais icônicos da<br />

música e do showbiz, Elvis Presley ganha<br />

uma nova cinebiografia. Os jovens<br />

atores Austin Butler e Olivia DeJonge<br />

encarnam respectivamente o cantor e<br />

Priscilla Presley, sua esposa durante<br />

dez anos. A direção e o roteiro são do<br />

competente cineasta australiano Baz<br />

Luhrmann, autor de Romeu + Julieta, O<br />

Grande Gatsby e outros. Um dos destaques<br />

do longa é um quase irreconhecível<br />

Tom Hanks no papel do coronel<br />

Tom Parker, empresário de Elvis.<br />

Hanks modulou sua voz para recriar<br />

o sotaque do personagem nascido na<br />

Holanda e atuou com maquiagem prostética,<br />

ampliando as feições de seu rosto<br />

e corpo. O filme tem aquela estética<br />

exagerada e meio kitsch dos filmes de<br />

Luhrmann, com abusos de luzes e capricho<br />

nas cores e figurinos. E a história<br />

foca na ascensão meteórica de Elvis,<br />

que desafia os rígidos costumes da<br />

época (final dos anos 1950) enquanto<br />

enfrenta a exploração de seu empresário<br />

linha-dura.<br />

Jerry & Marge Go Large<br />

Onde ver: Paramount+<br />

Duração: 1h30min<br />

Bilhete premiado<br />

Os protagonistas do longa Jerry & Marge<br />

Go Large não brincam em serviço:<br />

Bryan Cranston é dono de seis Emmys<br />

pelo inesquecível Walter White na<br />

série Breaking Bad e Annette Bening<br />

soma dois Globos de Ouro e quatro indicações<br />

ao Oscar. Cranston dá vida a<br />

Jerry Selbee, que, ao lado de sua esposa,<br />

Marge, descobre uma brecha matemática<br />

para ganhar a loteria estadual.<br />

Com o dinheiro que entra, a dupla tenta<br />

reerguer a pequena cidade em que vive<br />

e seus cidadãos, que sofrem com o declínio<br />

econômico. O roteiro é inspirado<br />

na história real de um matemático aposentado,<br />

dono de uma loja de conveniência.<br />

O estabelecimento possuía uma<br />

máquina automática de loteria, mas<br />

Selbee nunca tinha jogado. Sua sorte<br />

“muda” quando ele começa a estudar o<br />

jogo e os números sorteados. Em pouco<br />

tempo, ele ganha mais de 20 milhões<br />

de dólares em prêmios. A comédia é<br />

dirigida por David Frankel, de Marley &<br />

Eu e O Diabo Veste Prada.<br />

Casão <strong>–</strong> Num Jogo sem Regras<br />

Onde ver: Globoplay<br />

Duração: quatro episódios de 40 minutos cada um, em média<br />

Casão sincerão<br />

Walter Casagrande Júnior, ex-jogador<br />

da seleção brasileira, do Corinthians e<br />

com passagens por clubes europeus,<br />

também é famoso por sua sinceridade.<br />

Comentarista da Rede Globo desde<br />

1997, Casão nunca escondeu seus posicionamentos<br />

políticos nem os problemas<br />

com drogas, incluindo internações,<br />

recaídas e um grave acidente automobilístico.<br />

Mais do que uma história de<br />

superação, a produção mostra uma<br />

pessoa aberta, libertária, com fome<br />

de viver intensamente sua carreira e<br />

sua vida. Em quatro episódios, a série<br />

dirigida por Susanna Lira apresenta o<br />

jogador que chegou ao auge da carreira<br />

e o cidadão questionador, passando<br />

pelo drama da dependência química e<br />

por sua relação com o rock. O documentário<br />

tem ainda uma farta oferta<br />

de imagens de época, com muitos gols<br />

e sua participação ativa no movimento<br />

Diretas Já e na Democracia Corinthiana,<br />

além de depoimentos de ex-jogadores<br />

e amigos, como Cléber Machado e<br />

Galvão Bueno.<br />

Para ouvir<br />

Dose dupla<br />

Jack White decidiu lançar não um,<br />

mas dois álbuns de inéditas neste ano,<br />

totalizando cinco discos de estúdio de<br />

sua carreira solo já consolidada. Com<br />

fortes raízes no blues e folk americano,<br />

o cantor, guitarrista e compositor<br />

sempre buscou referências no passado<br />

para fazer seus rocks cativantes.<br />

Fiel à sonoridade de seus ídolos, ele só<br />

gravava com fitas magnéticas e microfones<br />

antigos. White não abandonou<br />

seus equipamentos analógicos, mas<br />

se rendeu à tecnologia. Usou também<br />

softwares de captação e edição, incorporou<br />

samples de outros artistas e<br />

fez distorções digitais. Taking Me Back<br />

tem os riffs de guitarras eletrizantes,<br />

que são sua assinatura desde os White<br />

Stripes. Já a faixa Fear of the Dawn é<br />

um rock direto e noturno, como o nome<br />

“medo do amanhecer” sugere. O músico<br />

retrô, que criou neste ano perfis em<br />

redes sociais de sua gravadora, Third<br />

Man Records, comprou recentemente<br />

seu primeiro celular.<br />

Fear of the Dawns e Entering Heaven Alive<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

Pequena Mamãe<br />

Onde ver: Amazon Prime Video<br />

Duração: 1h13min<br />

Luto infantil<br />

Depois do sucesso de público e crítica<br />

de Retrato de uma Jovem em Chamas<br />

(2019), os cinéfilos de plantão estavam<br />

ansiosos para o próximo trabalho da<br />

diretora francesa Céline Sciamma. E<br />

ela correspondeu à expectativa com o<br />

belo Pequena Mamãe. A pequena Nelly<br />

(interpretada pela excelente Joséphine<br />

Sanz, 8 anos) acaba de perder a avó<br />

materna. Enquanto os pais limpam e<br />

organizam a casa de infância de Ma-<br />

rion, mãe de Nelly, a menina conhece<br />

uma garotinha de sua idade (a igualmente<br />

talentosa Gabrielle Sanz, irmã<br />

gêmea de Joséphine) e passa a ajudar<br />

a nova amiga a construir uma cabana<br />

no bosque próximo à casa. Curto<br />

para os padrões atuais (pouco mais de<br />

uma hora), o filme é um poderoso tratado<br />

sobre a perda. Sem filosofar ou<br />

até mesmo explicar muitas coisas, a<br />

diretora sabiamente opta por mostrar<br />

como a morte da avó impacta a criança<br />

e sua mãe.<br />

Carreira respeitada<br />

Aos 35 anos, o rapper americano<br />

Kendrick Lamar tem uma carreira irretocável.<br />

O premiado álbum Good Kid,<br />

MAAD City (2012) foi sucesso de crítica<br />

e público, To Pimp a Butterfly (2015)<br />

acabou virando trilha sonora do movimento<br />

#BlackLivesMatter e DAMN<br />

(2017) foi considerado uma “obra-prima<br />

do rap” pela respeitada Pitchfork.<br />

Depois de produzir a trilha sonora do<br />

filme Pantera Negra (2018), Lamar lança<br />

agora seu quinto álbum de estúdio,<br />

Mr. Morale & The Big Steppers. Discreto,<br />

é avesso à exposição de sua vida pessoal,<br />

não ostenta carrões, mansões ou<br />

joias em redes sociais. Seu perfil no<br />

Instagram, com mais de 11 milhões de<br />

seguidores, não soma nem meia dúzia<br />

de fotos. O novo disco já ganhou comparações<br />

na imprensa especializada<br />

com “peça de teatro”, “ópera” e “sessão<br />

de terapia”. Na primeira parte, mais intimista,<br />

o rapper se esquiva do papel de<br />

“salvador” da sua geração. Na segunda,<br />

retoma as denúncias de injustiças<br />

vividas pelos negros.<br />

Mr. Morale & The Big Steppers<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 7<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 6


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

Os Amnésicos<br />

396 páginas<br />

Editora Âyiné<br />

99,90 reais<br />

O papel do povo<br />

Jornalista e historiadora pela Sorbonne<br />

e London School of Economics, Géraldine<br />

Schwarz é filha de pai alemão<br />

com mãe francesa. Ao contar a história<br />

dos próprios antepassados, ela toca<br />

numa ferida que ainda está longe de<br />

cicatrizar: qual foi o papel dos cidadãos<br />

comuns durante o regime nazista na<br />

Alemanha e na França colaboracionista<br />

de Vichy, que se aliou aos alemães<br />

Amanhã Vai Ser Pior<br />

496 páginas<br />

Editora Patuá | 55 reais<br />

As dores do mundo<br />

Depois de ter brigado com família e<br />

amigos e ser demitido do trabalho por<br />

questões políticas, Pedro decide passar<br />

um tempo em Barcelona. Ele queria<br />

deixar a eleição presidencial de 2018<br />

e o Brasil para trás. Vendo o dinheiro<br />

acabar, o personagem principal do<br />

livro Amanhã Vai Ser Pior arruma um<br />

emprego de analista de conteúdo numa<br />

grande rede social. Pedro agora é obrigado<br />

a lidar com o que há de pior na<br />

Quando Deixamos de Entender o Mundo<br />

176 páginas<br />

na Segunda Guerra? Ao descobrir que<br />

o avô paterno comprou uma empresa<br />

de um judeu expulso da Alemanha <strong>–</strong> e,<br />

portanto, obrigado a liquidar seus bens<br />

<strong>–</strong>, a autora traça um panorama da responsabilidade<br />

dos milhões de pessoas<br />

que não pegaram em armas nem em<br />

canetas (burocratas do regime), mas<br />

se deixaram levar pelo nazismo. “O<br />

desconhecimento do objetivo preciso<br />

das deportações de judeus não exime<br />

a maioria do povo alemão de sua responsabilidade<br />

por ter permitido o saque<br />

e a expropriação de seus vizinhos,<br />

colegas, comerciantes do bairro, de ter<br />

às vezes participado deles e de ter assistido<br />

às deportações sem protestar”,<br />

escreve a autora.<br />

internet, assistindo e removendo da<br />

plataforma vídeos e fotos de assassinatos,<br />

estupros, pedofilia e canibalismo.<br />

Em seu segundo romance, o autor<br />

Marcelo Conde faz um retrato bastante<br />

atual do nosso tempo, posicionando<br />

o protagonista num ponto bastante<br />

incômodo, mas revelador. Pedro precisa<br />

do dinheiro para seguir morando<br />

na Espanha com sua nova namorada,<br />

mas sofre por seu trabalho e por sua<br />

vida, e afunda-se numa ruína pessoal<br />

e existencial. A descrição de sua rotina<br />

insalubre e a narrativa entremeada por<br />

conversas de WhatsApp com amigos e<br />

familiares criam um ritmo envolvente.<br />

Para visitar<br />

Brasil de exportação<br />

O americano Thomas Jean Lax, curador<br />

do MoMA, em Nova York, se referiu<br />

ao brasileiro Dalton Paula como “parte<br />

de uma nova geração de artistas de origem<br />

afro que está mudando a maneira<br />

como a arte brasileira é vista na Europa<br />

e nos Estados Unidos”. Depois de participar<br />

de bienais e mostras coletivas, o<br />

artista goiano abrirá sua primeira exposição<br />

individual em São Paulo, em 29<br />

de julho. Mesmo com obras no acervo<br />

do próprio MoMA e de outros museus<br />

do mundo, Dalton Paula ainda é pouco<br />

conhecido do público brasileiro fora<br />

do mundo da arte. Suas esculturas e<br />

quadros têm uma forte conexão com a<br />

cultura popular e com a ancestralida-<br />

Poeta da fotografia<br />

Nascido e criado no subúrbio do Rio de<br />

Janeiro, filho único de pai negro e mãe<br />

branca, ambos paraenses, o fotógrafo<br />

Walter Firmo começou sua carreira em<br />

1957, no já extinto jornal Última Hora.<br />

O currículo traz ainda passagens por<br />

veículos de peso como Jornal do Brasil,<br />

Realidade, Manchete, Veja e outras. Seu<br />

trabalho com fotografias em cores é<br />

considerado pioneiro na imprensa brasileira<br />

e impressiona pelo apuro técnico<br />

e composição cromática, dialogando<br />

com a pintura. Sete vezes premiado no<br />

Concurso Internacional Nikon, considerado<br />

o Oscar da fotografia, ganhador<br />

de negra. O Masp vai exibir dezenas de<br />

retratos de figuras como Ganga Zumba,<br />

Chico Rei, Liberata e Luiza Mahin,<br />

ex-escravos que combateram a escravidão.<br />

Atento aos contrastes, o artista<br />

sobrepõe seus personagens sobre fundos<br />

que realçam sua pele, como azul-<br />

-piscina ou verde-turquesa. Ele usa<br />

também lâminas de ouro nos cabelos,<br />

criando brilho e conferindo nobreza<br />

aos retratados. Ingressos a 25 reais<br />

(meia) e 50 reais. Às terças, a entrada<br />

é gratuita.<br />

Dalton Paula: Retratos Brasileiros<br />

Masp<br />

Ingressos: masp.org.br<br />

do Prêmio Esso e autor de livros, Firmo<br />

sempre manteve seu olhar voltado<br />

para a população pobre, suburbana ou<br />

moradora dos rincões rurais do país.<br />

Suas imagens transmitem uma aura<br />

de religiosidade e mantêm respeito por<br />

seus retratados. Grande apreciador de<br />

samba e de música popular brasileira,<br />

ele também retratou grandes artistas,<br />

como Cartola, Pixinguinha e Dona<br />

Ivone Lara. Até setembro.<br />

Walter Firmo<br />

No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito<br />

IMS Paulista | Entrada gratuita<br />

Obra: Zeferina, 2018 | foto: Masp (Museu de<br />

Arte de São Paulo)<br />

Obra: Gaudêncio da Conceição durante Festa de São<br />

Benedito, 1989 | Foto: Walter Firmo/Acervo IMS<br />

Editora Todavia<br />

59,90 reais ou 38,90 reais (e-book)<br />

Ver e interagir<br />

Redescobertas científicas<br />

O chileno Benjamín Labatut está sendo<br />

“acusado” de ter inventado um novo<br />

gênero literário. Seu livro é tão criativo<br />

e instigante que não pode ser etiquetado<br />

como “ficção científica” nem<br />

como “romance histórico”. Com quatro<br />

histórias e um epílogo, Labatut narra<br />

importantes descobertas científicas<br />

que mudaram o rumo da história para<br />

o bem ou para o mal. Estão lá o azul da<br />

Prússia (pigmento sintético dos quadros<br />

de Van Gogh, Picasso e outros),<br />

o cianeto (veneno usado no Zyklon B,<br />

das câmaras de gás nazistas), a quebra<br />

do átomo (que possibilitou a bom-<br />

ba atômica), teoremas matemáticos e<br />

outros. Há ainda personagens reais,<br />

como Einstein e Schrödinger, além de<br />

cientistas menos conhecidos e igualmente<br />

fascinantes. O grande barato do<br />

livro está na ausência de limites entre o<br />

real e o fictício nas histórias. Com uma<br />

prosa ágil e convincente, um narrador<br />

envolvente costura as quatro narrativas<br />

e demonstra que “os átomos que<br />

despedaçaram Hiroshima e Nagasaki<br />

não foram separados pelos dedos gordurosos<br />

de um general”, mas por um<br />

grupo de físicos bem-intencionados e<br />

um punhado de equações.<br />

Ao criar a exposição que ocupa o 20º<br />

andar de um dos mais icônicos prédios<br />

de São Paulo, o artista paranaense Rafael<br />

Silveira não economizou em criatividade<br />

e interatividade. Altamente<br />

instagramável e divertida, a mostra<br />

de arte pop agrada adultos e crianças.<br />

Grandes sorvetes derretem no chão,<br />

cores e formas escorrem do teto, o piso<br />

brilha e as paredes ganham projeções<br />

de animações que se movimentam. O<br />

trajeto da mostra guia o público por<br />

uma espécie de labirinto, com um ambiente<br />

mais surpreendente do que o<br />

outro em uma exposição que mistura<br />

várias técnicas. Silveira conta que seu<br />

intuito foi provocar os sentidos dos visitantes,<br />

oferecendo uma experiência<br />

sensorial quase completa <strong>–</strong> é possível<br />

ver, tocar, ouvir, cheirar e interagir<br />

com as obras; só não é recomendável<br />

comê-las. Adultos pagam 30 reais<br />

e os pequenos, 15 reais. Em cartaz<br />

até 7 de agosto.<br />

Espuma Delirante<br />

Farol Santander<br />

Ingressos: www.farolsantander.com.br<br />

Foto: Rafael Silveira<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 9<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

O saber leve,<br />

empático<br />

e orgânico<br />

Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />

Em um mundo em transformação acelerada, a<br />

regra do jogo já é clara: pessoas e organizações<br />

precisam se envolver em espirais contínuas de<br />

aprendizagem para se adaptarem e se destacarem<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 11<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 10


P<br />

ode-se dizer que a velocidade, a amplitude e a intensidade<br />

dos ciclos de transformação contemporâneos<br />

diferem dos movimentos vivenciados no passado.<br />

Mas tal perspectiva pode não passar de mera ilusão de óptica,<br />

considerando que é difícil dimensionar o impacto causado<br />

pelas ondas industriais revolucionárias nos últimos três<br />

séculos no estilo de vida dos camponeses e dos operários<br />

vis-à-vis o efeito das ondas tecnológicas mais recentes, turbinadas<br />

por computador, internet e inteligência artificial. De<br />

qualquer forma, o processo evolutivo inevitavelmente apresenta<br />

um ritmo, uma abrangência e uma potência. Nada surge<br />

no vazio.<br />

O processo de aprendizagem contínua se desenvolve naturalmente<br />

na trajetória de indivíduos e, portanto, de todos os<br />

tipos de organização, que podem abranger desde o núcleo<br />

familiar até a própria nação. Aprendizado é algo intrínseco<br />

não apenas à humanidade. Aprendemos para crescer, nos<br />

adaptar, compartilhar, evoluir e, também, sobreviver. Apren-<br />

demos sozinhos e em grupo. Aprendemos formal e informalmente.<br />

Aprendemos de modo sequencial e aleatório. Aprendemos<br />

por meio da lógica e do instinto. Aprendemos o que<br />

desejamos e o que detestamos.<br />

As organizações aprendem naturalmente ao longo de seu<br />

processo de expansão e adaptação. Começam seus primeiros<br />

tempos com muitas ideias e poucos recursos. Muitas padecem.<br />

Poucas seguem em frente com mais recursos e capacidades,<br />

construindo estruturas, controles e ativos. Ao longo<br />

de muitos e muitos anos, organizações longevas consolidam<br />

e institucionalizam suas principais capacidades competitivas<br />

de modo a aumentar sua escala e sustentar suas realizações.<br />

Dezenas, centenas ou milhares de pessoas agrupam-se em<br />

diferentes estruturas de gestão e governança de modo a conseguir<br />

gerenciar organizações cada vez maiores e mais complexas.<br />

Mas isso não ocorre de um dia para o outro. É algo<br />

evolutivo e adaptativo, mesmo que por vezes tenha também<br />

certo verniz disruptivo.<br />

Foto: Getty Images<br />

Aprendizado é<br />

algo intrínseco<br />

não apenas à<br />

humanidade.<br />

Aprendemos<br />

para crescer,<br />

nos adaptar,<br />

compartilhar,<br />

evoluir e, também,<br />

sobreviver<br />

Os caminhos do saber<br />

O processo de aprendizagem, seja ele<br />

individual ou coletivo, engloba não<br />

apenas ampliação de horizontes e<br />

fronteiras, mas também ruptura de<br />

limites e padrões já conhecidos. Pode<br />

ser doloroso aprender. Afinal, abandonar<br />

paradigmas já confortáveis implica<br />

redefinir conceitos e até mesmo crenças<br />

já estabelecidas, significa desafiar<br />

o nexo já compreendido e integrado<br />

ao sistema de outros conhecimentos,<br />

exige reconstrução de mapas mentais<br />

usualmente utilizados nos aspectos<br />

cognitivos, afetivos e sociais inerentes<br />

ao processo decisório. É razoável,<br />

inclusive, afirmar que todo processo<br />

de aprendizado requer, mesmo que de<br />

maneira implícita, algo aspiracional em<br />

vista, suficientemente atraente para<br />

estimular a jornada do(s) aprendiz(es)<br />

fora da zona de conforto do mundo<br />

conhecido, além da inércia comportamental<br />

que nos satisfaz. Aprender exige<br />

confiança, resiliência e sustentação.<br />

Mas todo conhecimento é sistêmico,<br />

considerando que não há utilidade possível<br />

em fragmentos de informações<br />

isoladas no vácuo social. A jornada de<br />

conhecimento requer, portanto, sucessivas<br />

conexões de ideias e articulações<br />

entre pessoas em infinitas espirais<br />

cruzadas. A compreensão definitiva de<br />

todo sistema integrado é uma missão<br />

inócua, uma vez que não há fronteiras<br />

a serem alcançadas <strong>–</strong> afinal, elas<br />

simplesmente não existem. Mesmo<br />

postulados científicos seculares também<br />

devem ser desafiados, refutados<br />

e substituídos à medida que o conhecimento<br />

acumulado permita a exploração<br />

de novas possibilidades antes inacessíveis.<br />

Ser dogmático implica, necessariamente,<br />

buscar respostas simplistas<br />

para questões abstratas <strong>–</strong> o que pode<br />

até ser desejável no plano das religiões,<br />

mas é restritivo no cotidiano da vida.<br />

Compreender o nexo causal entre inúmeras<br />

variáveis é um dos exercícios<br />

intelectuais mais desafiadores. E, muitas<br />

vezes, ele é tão complexo que apenas<br />

o uso de inteligência artificial pode<br />

nos apoiar e oferecer caminhos.<br />

Assim, os termos learning organization e<br />

lifelong learning são óbvios nas esferas<br />

organizacionais e individuais, respectivamente.<br />

Sempre foram, sempre serão.<br />

Mesmo para os incautos e alienados, o<br />

processo de aprendizagem é intrínseco<br />

ao simples existir. Todos os dias, de<br />

modo ininterrupto, todos estão sujeitos<br />

a novas informações, novas interações,<br />

novos pensamentos, novas sensações.<br />

É importante destacar que a percepção<br />

consciente não é requisito para o<br />

aprendizado. E mais: é muito provável<br />

que grande parte do conhecimento<br />

acumulado por um indivíduo tenha<br />

sido parte de processos inconscientes<br />

presentes no seu cotidiano, e não de<br />

experiências educacionais formais.<br />

Estamos todos continuamente ampliando<br />

nossos saberes.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 13<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 12


Olhar pessoal<br />

A cultura organizacional,<br />

enquanto fenômeno social,<br />

pode ser descrita como uma<br />

espiral de aprendizagem<br />

social compartilhada<br />

pelos membros do grupo<br />

ao longo do tempo,<br />

combinando mapas mentais<br />

coletivos, valores comuns e<br />

vínculos afetivos<br />

A expansão do conhecimento é contínua, mas vale ressaltar<br />

que tal ampliação não ocorre sem conotações. Atribuímos<br />

significados aos nossos saberes em função de inúmeras<br />

condições de contorno e preferências pessoais. De um lado,<br />

o contexto social apresenta e qualifica a ambientação para a<br />

jornada de conhecimento de indivíduos e grupos, modelando<br />

percepções coletivas e influenciando posicionamentos individuais.<br />

E, do outro, as preferências pessoais forjam-se ao<br />

longo da evolução individual, integrando crenças, ideias e aspirações,<br />

modelando assim não apenas pensamentos e sentimentos<br />

mas notadamente comportamentos. Assim, a própria<br />

aprendizagem não ocorre à revelia da significação individual<br />

e coletiva acerca dos conhecimentos acumulados e compartilhados,<br />

sendo eles próprios absorvidos em suas conotações<br />

ao conjunto de signos que caracteriza determinado agrupamento<br />

de indivíduos em certo tempo.<br />

No caso específico de uma organização, o aprendizado é influenciado<br />

tanto por aspectos processuais como por questões<br />

tácitas da própria organização. No lado processual, destacam-se<br />

a estrutura, o modelo de gestão e governança, os sistemas<br />

de informações e os mecanismos de reconhecimento e<br />

recompensa. Já no lado tácito, destacam-se as normas grupais,<br />

os valores compartilhados, os mapas mentais vigentes<br />

e as redes de influência entre os indivíduos. A aprendizagem<br />

organizacional, portanto, está inserida em um conjunto amplo<br />

e complexo de aspectos que modelam e, ao mesmo tempo, são<br />

modelados pelas interações pessoais.<br />

A estrutura enciclopédica do<br />

conhecimento<br />

Foto: Getty Images<br />

Tudo comunica de certa forma. Tudo modela. Aspectos processuais<br />

e tácitos apresentam a ambiência para o processo<br />

de aprendizagem organizacional e, por consequência, individual.<br />

É inescapável a associação entre os dois movimentos,<br />

tanto o coletivo quanto o individual. E os próprios aspectos<br />

processuais e tácitos também são indissociáveis, sendo ambos<br />

modelados pela cultura organizacional.<br />

Aliás, a própria cultura organizacional, enquanto fenômeno<br />

social, pode ser descrita como uma espiral de aprendizagem<br />

social compartilhada pelos membros do grupo ao longo do<br />

tempo, combinando mapas mentais coletivos, valores comuns<br />

e vínculos afetivos. Acertos são incorporados como modus<br />

operandi esperado e ensinado aos novatos, erros são transformados<br />

em tabus e restrições. Líderes e liderados modelam<br />

linguagens, tradições, normas, valores, significados, símbolos,<br />

rituais, mitos, processos, mecanismos de controle e sistemas<br />

de reconhecimento. Líderes fazem tudo isso por meio<br />

de uma narrativa que se apresente como natural, neutra, crível,<br />

justa e legítima para se tornarem capazes de organizar os<br />

processos sociais e psicológicos nesse agrupamento humano.<br />

Forma-se, então, a expressão distintiva de uma empresa<br />

em relação a todas as demais. Toda cultura organizacional é,<br />

inexoravelmente, a expressão original de sua trajetória, em<br />

contínua dinâmica definida pelas interações sociais internas<br />

e externas. Isso também é aprendizado.<br />

No passado, as organizações se desenvolviam como monólitos:<br />

sólidos, impermeáveis, codificáveis, estáveis e previsíveis.<br />

O aprendizado era inicialmente acessado pelo estoque<br />

de conhecimento acumulado por jovens talentos em suas<br />

formações acadêmicas para, então, ser socializado em interações<br />

com veteranos já inseridos nos vastos manuais operacionais,<br />

devidamente registrados e atualizados. Com fluxos<br />

de comunicação muito bem desenhados, as informações<br />

eram transferidas como direcionamentos do topo para a base<br />

da organização. Todos os detalhes operacionais eram minuciosamente<br />

monitorados, catalogados e analisados por ferramentas<br />

estatísticas. Assim como o maquinário, também o<br />

conhecimento formal sofria depreciação anual <strong>–</strong> e precisava<br />

ser reconstruído por meio de ações de educação continuada.<br />

O aprendizado corporativo <strong>–</strong> e, também, a própria formação<br />

acadêmica das crianças e dos jovens <strong>–</strong> foi modelado por lógicas<br />

industriais denominadas trilhas, com suas avaliações e<br />

certificações, reunidas em programas aderentes ao conjunto<br />

de requisitos listados para as diferentes funções e senioridades<br />

existentes nas empresas. O conhecimento era documentado<br />

em apostilas, manuais e códigos acessíveis aos gestores<br />

e aos colaboradores. Também era organizado em matrizes e<br />

tipologias com categorias agregadoras, de modo que os indivíduos<br />

poderiam rapidamente se encaixar em padrões disponíveis.<br />

A especialização funcional era almejada por meio<br />

da prática recorrente em torno de conhecimentos muito estruturados,<br />

enquanto a formação generalista era construída<br />

transversalmente em trilhas gerenciais desenhadas para os<br />

diferentes níveis hierárquicos. Todo esse conjunto de informações,<br />

práticas e ferramentas estava reunido em centros<br />

de treinamento corporativo, algumas vezes rebatizados como<br />

universidades corporativas. Gestores mais experientes tornavam-se<br />

mestres de sala de aula à disposição dos programas<br />

desenhados para os mais profissionais em seus processos<br />

de formação e aperfeiçoamento. O próprio processo de<br />

aprendizagem também se transformava em plataforma de<br />

aculturamento de todos os gestores e colaboradores em torno<br />

dos mesmos princípios, normas e valores defendidos pelas<br />

lideranças dominantes da organização, consolidando mapas<br />

mentais, crenças e, portanto, comportamentos uniformes.<br />

Tal lógica industrial do aprendizado mimetizava a própria<br />

estrutura enciclopédica do conhecimento: todas as informações<br />

passíveis de ser agrupadas e catalogadas a partir de<br />

certa ordenação lexicográfica; o aprendizado de crianças e<br />

adultos muito bem estruturado, monitorado, documentado,<br />

estável e previsível; a trajetória acadêmica das crianças inserida<br />

no mesmo fio condutor da educação continuada adulta<br />

e do processo de aperfeiçoamento profissional; a diplomação<br />

formal constituída como selo distintivo para aqueles diferenciados<br />

em sua trajetória de aprendizagem.<br />

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Foto: Getty Images<br />

Monólitos em<br />

descompasso<br />

Se o processo de aprendizagem contínua<br />

é intrínseco à própria evolução e os<br />

termos learning organization e lifelong learning<br />

são obviedades inerentes ao ser<br />

humano, o que, afinal, está em transformação<br />

no contexto contemporâneo?<br />

À medida que as próprias organizações<br />

se modificam em torno de profundos<br />

rearranjos sociais, também as pessoas<br />

se adaptam a paradigmas, perspectivas<br />

e rituais inéditos. Novos tempos<br />

induzem novos conhecimentos, sentimentos<br />

e capacidades. Portanto, o atual<br />

contexto de transformação inspira<br />

novas modelagens para o processo de<br />

aprendizagem, também deslocando alguns<br />

dos seus aspectos essenciais.<br />

Como exercício de reflexão, vamos<br />

resumir toda a complexidade contemporânea<br />

a um único denominador: a<br />

alta velocidade aleatória e escalável<br />

das coisas. Esse é o fenômeno letal que<br />

ameaça a sobrevivência das organizações<br />

monolíticas, já sedimentadas em<br />

seus códigos, processos, usos e costumes,<br />

práticas e mapas mentais. Eis a<br />

inflexão da lógica global em curso.<br />

Monólitos são sólidos justamente porque<br />

valorizam rigidez, impermeabilidade,<br />

perfeição, coesão e previsibilidade<br />

como atributos competitivos<br />

vencedores diante de ambientes externos<br />

que evoluem gradualmente e<br />

são passíveis de ser influenciados pela<br />

ação contundente e consistente dos<br />

monólitos. É importante salientar que<br />

monólitos não são estáticos. Aprendem<br />

sempre, de modo cumulativo e intencional.<br />

Mas sistematizam seus processos<br />

de mudanças em uma lógica de<br />

melhoria contínua que acompanha pari<br />

passu a trajetória evolutiva do próprio<br />

ambiente. Em tempos de evolução passo<br />

a passo, os grandes monólitos consolidados<br />

ao longo de décadas sempre<br />

tiveram suas próprias envergaduras<br />

como principal plataforma distintiva<br />

na concorrência contra competidores<br />

menores, sendo derrotados de tempos<br />

em tempos por seus próprios vícios<br />

e barbaridades: arrogância, miopia e<br />

fragmentação, em especial.<br />

Diante da alta velocidade aleatória e<br />

escalável das coisas, os monólitos são<br />

muito lentos. Pior ainda, são com frequência<br />

equivocados em suas decisões<br />

por utilizarem paradigmas obsoletos<br />

em contextos inéditos. Não conseguem<br />

estruturar o processo de aprendizagem<br />

porque seus manuais e repositórios<br />

envelhecem rapidamente diante<br />

de novas dinâmicas inteligíveis ao<br />

sistema organizacional sedimentado.<br />

Por outro lado, organizações vencedoras<br />

(novas e velhas gigantes) estão<br />

encontrando novas formas de interação<br />

com o mundo externo, ao mesmo<br />

tempo que estão refinando seu próprio<br />

modus operandi e reavaliando suas<br />

capacidades competitivas.<br />

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A cultura organizacional e a aprendizagem<br />

O processo de aprendizagem deve ser refletido dentro da nova lógica contemporânea. Dessa forma,<br />

como organizações e pessoas aprendem sem arestas e condutores?<br />

A reflexão sobre essa indagação acaba por relacionar aprendizagem e cultura. Em tempos de alta<br />

velocidade aleatória e escalável das coisas, o modelo vencedor aponta para aquele mais adaptável,<br />

flexível e ágil <strong>–</strong> e esses são, justamente, três atributos ausentes na lógica monolítica. Configurar<br />

esse novo modelo significa desenhar poucos traços a lápis, com uma borracha sempre à mão e várias<br />

folhas em branco inseridas na composição.<br />

A cultura organizacional, por diferentes vetores, reflete seu contexto social. A própria sociedade<br />

está em pleno processo de transformação, em que o arcabouço institucional tradicional tem sido<br />

continuamente desafiado e desconstruído em seus pilares mais fundamentais. Do mesmo modo,<br />

as organizações estão sujeitas às mesmas forças que questionam e implodem estruturas, crenças<br />

e paradigmas inadequados aos novos imperativos. Assim, embora exista o conceito de uma única<br />

modelagem vencedora para cultura organizacional, uma vez que ela é insumo-produto do próprio<br />

agrupamento de pessoas que a compõem, é possível listar três características cada vez mais essenciais:<br />

leveza, empatia e organicidade.<br />

Trilogia contemporânea<br />

Culturas leves, empáticas e orgânicas conseguem<br />

responder melhor aos imperativos em torno de<br />

adaptabilidade, flexibilidade e agilidade, características<br />

cada vez mais exigidas no contexto organizacional e,<br />

naturalmente, também no comportamento individual.<br />

• Leveza: a ideia de controle e acúmulo de capital como alavanca de valor<br />

no longo prazo não se enquadra no cenário atual. O foco, agora, está<br />

na geração de valor por meio de acesso a serviços, não na aquisição<br />

de produtos. A leveza aparece em todos os aspectos da companhia: na<br />

arquitetura de software, na estrutura organizacional e nos acordos e<br />

parcerias ocasionais e dinâmicas.<br />

• Empatia: entender o ponto de vista do outro é o principal objetivo. Essa<br />

valorização do olhar do outro passa por todas as etapas da jornada do<br />

cliente, do usuário e do colaborador para gerar conteúdo atrativo e conexões.<br />

No contexto de experiência empática, estão em alta os conceitos<br />

relacionados a Costumer Experience, User Experience e Employee<br />

Experience (CX, UX e EX).<br />

• Organicidade: o fluxo linear e unidirecional do paradigma industrial<br />

não acomoda o modelo orgânico versátil exigido pelo universo ágil e<br />

complexo do mundo digital. Aqui, os recursos abundantes, inclusive capital,<br />

se tornam commodities. O valor está no arranjo para uma entrega<br />

colaborativa ecossistêmica desses recursos.<br />

Quando tudo se conecta<br />

Dado esse contexto transformador nas organizações e na<br />

própria sociedade, como se modela o processo de aprendizagem<br />

com maior efetividade?<br />

A aprendizagem é algo intrínseco à existência humana e organizacional,<br />

inescapável à própria trajetória inconsciente dos<br />

seres. Diante dos novos imperativos em torno de adaptabilidade,<br />

flexibilidade e agilidade, os mesmos traços constituídos<br />

e fortalecidos no tripé leveza-empatia-organicidade também<br />

se aplicam ao processo de aprendizagem individual e coletiva.<br />

A leveza se apresenta simplesmente na atomização dos objetos<br />

de aprendizagem e do próprio tempo encapsulado em<br />

cada uma das experiências, bem como na quebra dos protocolos<br />

em torno do binômio professor-aluno. Aprender com<br />

leveza significa também substituir os rituais de avaliação<br />

formal por mensurações inteligentes capazes de avaliar o<br />

desempenho individual e coletivo em múltiplas dimensões<br />

e interações com conteúdos, experiências, desafios e atores.<br />

Também a linguagem leve desloca os termos formais em prol<br />

das expressões coloquiais que compõem a linguagem natural<br />

que hoje caracterizam cada vez mais as interações digitais.<br />

Por fim, a leveza está também expressa nas mídias e nos ambientes<br />

de aprendizagem, substituindo a sala de aula arquitetada<br />

em torno da lousa e do mestre para espaços democráticos<br />

e diversos.<br />

A empatia se desenvolve à medida que a trajetória de aprendizagem<br />

considera o indivíduo como sujeito ativo do seu<br />

percurso dentre tantas possibilidades que se habilitam. As<br />

trilhas de aprendizagem são imersas em jornadas personalizadas<br />

e artificialmente inteligentes nas recomendações das<br />

experiências e dos conteúdos relevantes. A empatia também<br />

se manifesta em formato multimídia ao proporcionar inú-<br />

meras plataformas e realidades integradas, capazes de fomentar<br />

a realização de missões de aprendizagem individual<br />

conectadas em torno de agendas coletivas, priorizadas pelas<br />

organizações. Também se observa o olhar empático ao inserir<br />

no universo empresarial temáticas mais sensíveis no âmbito<br />

pessoal que reconhecem a unicidade individual dentro e fora<br />

do ambiente de trabalho. Não por acaso, o universo de soft<br />

skills hoje é o maior e mais relevante espaço de aprendizagem<br />

para indivíduos e empresas.<br />

A organicidade extrapola as barreiras e os limites organizacionais<br />

para alcançar patamares inimagináveis para a<br />

aprendizagem integrada em torno das temáticas relevantes<br />

sob a ótica multistakeholder. O conhecimento não reconhece<br />

fronteiras, estando continuamente em expansão. A aprendizagem<br />

orgânica reforça esse traço tão essencial do saber ao<br />

se espalhar por diferentes locais, proporcionar encontros improváveis,<br />

facilitar conexões de valor entre ideias e personagens,<br />

evoluir dentro da lógica de biomas cognitivos. O aprendizado<br />

orgânico não impõe escolas, trilhas e módulos, mas se<br />

apresenta plasticamente inserido no consumo de conteúdos,<br />

materializado em experiências integradas ao cotidiano profissional-pessoal,<br />

disponível em microcosmos com curadoria<br />

impecável e algoritmos inteligentes.<br />

E nada disso é novidade para uma criança fora dos bancos<br />

escolares. Para ela, o aprendizado é lúdico, memorável e integrado<br />

em suas vivências. Ao desconstruirmos os edifícios<br />

do conhecimento lexicográfico, talvez seja mais possível nos<br />

aproximarmos da sabedoria essencial acerca das coisas ao<br />

nosso redor, onde tudo faz sentido, tudo se conecta, tudo aumenta<br />

a potência. A natureza também é sistemática, mesmo<br />

quando indecifrável à cognição humana.<br />

Foto: Getty Images<br />

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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 18


[CRÔNICAS E TAL]<br />

Versos em metaversos<br />

Foto: Getty Images<br />

Susana está atrasada, de novo! Chega<br />

em casa apressada. As amigas já estão<br />

passando milhões de mensagens. “Ai,<br />

Ana, chata, sempre me criticando. Fica<br />

escrevendo que sabia que eu ia atrasar”,<br />

pensa enquanto digita uma resposta<br />

atravessada. Não envia. Por que<br />

se aborrecer no início da noite? Melhor<br />

deixar a amiga estressada falando sozinha<br />

e se arrumar.<br />

O banho é rápido, hora de escolher o<br />

vestido. Preto ou azul? Preto não tem<br />

erro, né? Vamos de pretinho básico.<br />

Sempre quis um desse modelo, nunca<br />

imaginou que seria possível. Caríssimo!<br />

Termina de se arrumar, mas tem alguma<br />

coisa faltando... O cabelo, talvez?<br />

Experimenta um mais comprido. Mais<br />

mechas? Não, achou exagerado. Mais<br />

volume! Pronto. “Ai, esqueci os olhos!<br />

Não posso aparecer assim, de olhos<br />

castanhos! Cadê aquela cor meio violeta<br />

que eu amei no outro dia? Achei!”<br />

Aplica a nova cor e aproveita para aumentar<br />

discretamente o tamanho dos<br />

cílios, deixando que fiquem bem naturais.<br />

Nada de maquiagem. “Tem que<br />

parecer que nasci com estes cílios!”<br />

Sempre aplica esse truque, deixa o<br />

olhar mais vivo. Aprendeu com a Ana,<br />

aquela chata estressada, mas que dá as<br />

melhores dicas!<br />

“Nossa, quanta gente! Onde estão as<br />

meninas?” Ouve um “Até que enfim”<br />

e se vira. Ana está superdiferente, o<br />

que ela fez hoje? Gente, ela está mais<br />

alta! Bem mais alta! “Amei, amiga.<br />

Você deveria usar essa altura sempre,<br />

é a sua cara!”<br />

A noite transcorre animada. Gente de<br />

todos os lugares do mundo. Conheceu<br />

duas escocesas recém-casadas e<br />

já marcou de esquiar com elas no sábado.<br />

Vai se meter na lua de mel das<br />

duas, que cara de pau! Mas Susana<br />

nunca esquiou e achou que a experiência<br />

seria interessante. Estão decidindo<br />

sobre a melhor paisagem. As<br />

meninas sugeriram a Suíça mesmo. Já<br />

que é para esquiar, que seja em grande<br />

estilo. Marcado.<br />

Do outro lado da sala, um rapaz oriental<br />

de 30 e poucos anos chama a atenção de<br />

Susana. Ele sorri e se aproxima. Quando<br />

foi a última vez que conversou em<br />

japonês? Não se lembra. Mas o idioma<br />

ainda está armazenado na memória.<br />

O papo flui e a noite acontece, divertida<br />

e cheia de experiências. Takashi<br />

é um artista plástico que já expôs seu<br />

trabalho no mundo inteiro. Mostra sua<br />

última obra, um mural de 10 metros de<br />

altura, com um haicai escrito em letras<br />

desconcertantes. Admirando a pintura<br />

estampada em uma das esquinas<br />

de Tóquio, Susana se perde refletindo<br />

sobre os versos curtos. Fernanda se<br />

aproxima. Depois Antônio. De repente,<br />

um grupo se reúne em volta do mural<br />

do Takashi, que não perde tempo: traz<br />

a experiência para o centro da sala e<br />

transforma a figura chapada em uma<br />

escultura 3D simplesmente ma-ra-vi-<br />

-lho-sa! As imagens invadem o recinto<br />

e se movimentam, misturando-se aos<br />

versos do haicai de forma harmoniosa<br />

e inebriante. Passam horas se divertindo,<br />

interagindo, entrando e saindo dos<br />

volumes criados com cores e sombras.<br />

Seriam tentáculos? Talvez um líquido<br />

psicodélico. Takashi é genial. Susana<br />

poderia ficar a noite toda, mas precisa<br />

trabalhar dali a algumas horas. Marca<br />

um tour pelas obras que Takashi escolheu<br />

e um encontro na semana seguinte.<br />

Um passeio pela Rússia, Romênia<br />

com final na África do Sul. “Nossa,<br />

como ele foi parar na África do Sul?”,<br />

pensa, se divertindo.<br />

A cena toda se apaga. A sala, antes<br />

enorme, é reduzida ao quartinho alugado<br />

de Susana. Cama, mesa de cabeceira<br />

e uma garrafa de água. Deita-se<br />

pensando nos esquis e nas montanhas<br />

que vai descer no sábado. Pensa na arte<br />

e nos versos do Takashi. Como vai ser<br />

bacana conhecer a Romênia na companhia<br />

de um artista como ele. Dorme.<br />

Não ouviu o despertador. “Me atrasei<br />

de novo, Carlos vai me matar.” Não dá<br />

tempo de mais nada, a reunião vai começar.<br />

Senta-se na cama e aperta o<br />

preset trabalho. O escritório aparece,<br />

cheio de gente, de cores, de vida. Vinte<br />

e dois de abril de dois mil e trinta e seis.<br />

Nove horas e seis minutos da manhã.<br />

Ela veste calça jeans e uma camisa descolada.<br />

Os olhos castanhos e vivos não<br />

demonstram o sono.<br />

“Vamos começar, gente? Atrasei um<br />

pouquinho, mas já cheguei.” Ana traz<br />

um café, não fala nada, apenas sorri.<br />

Bom dia, São Paulo!<br />

Alessandra Lotufo é diretora de<br />

comunicação e inovação da Bossa.etc<br />

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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 20


[GENTE COM BOSSA]<br />

A mentira que<br />

transforma<br />

A arte diverte, emociona, inspira, educa, provoca. Aquela<br />

cena impactante na peça de teatro, o refrão da música que<br />

desperta saudade, o filme ou o livro certo no momento certo,<br />

tudo isso pode desencadear um movimento interno capaz de<br />

se expandir a ponto de mudar vidas, tanto do artista quanto<br />

de quem aprecia. “A arte é uma mentira que nos faz perceber<br />

a verdade”, disse o genial Pablo Picasso. A arte, enfim, é<br />

transformadora.<br />

Os personagens que estrelam a oitava edição da revista<br />

Et cetera aprenderam (e ensinam) a potência da arte. Na juventude,<br />

Preto Zezé passava muito tempo na rua, “mais do que<br />

devia”, em suas palavras. Mas a arte não brinca em serviço.<br />

Em depoimento à seção Com a Palavra…, o artista, empresário,<br />

ativista e uma das maiores lideranças globais pelas favelas<br />

conta que se descobriu negro por volta dos 15 anos, quando<br />

ouviu a música Negro Limitado, do Racionais MC’s. “Era uma<br />

voz falando comigo, contando minha história e o que eu sentia.”<br />

O hip hop consolidou sua identidade e foi além: “Entendi<br />

que precisava ler mais, estudar mais, me politizar”. Já Dora<br />

Morelenbaum nasceu e cresceu envolvida pela musicalidade<br />

que moldou sua identidade. Filha dos músicos Jaques e Paula<br />

Morelenbaum, Dora acompanhava os pais em shows e turnês<br />

pelo mundo ainda pequena. Com tanta vivência artística, a<br />

cantora e compositora tornou-se um dos mais promissores<br />

nomes da nova geração da MPB.<br />

Foi a timidez que levou a menina Daniella Maria Giusti Barra<br />

para as aulas de teatro, mas o talento para o humor pavimentou<br />

a estrada até o sucesso, e a tímida Daniella se tornou a hilária<br />

Dani Calabresa. Aos 40 anos, a atriz e comediante aprendeu<br />

a lidar com os percalços na vida pessoal e profissional e a<br />

rir de si mesma. “Quase tudo que acontece no meu cotidiano<br />

vira material de trabalho”, diz. A timidez também não foi páreo<br />

para a veia artística de Jão. Ele busca inspiração na arte<br />

de ídolos do passado, como Cazuza e Renato Russo, para levar<br />

seu talento às novas gerações. Basta perguntar aos fãs desse<br />

artista de 27 anos para entender a força de uma canção.<br />

Impossível também ficar indiferente diante das obras de<br />

larga escala de Eduardo Srur. O artista plástico recorre a intervenções<br />

urbanas criativas e ousadas para provocar reflexões<br />

sobre a relação da sociedade com o meio ambiente. Nas<br />

águas, nas ruas ou no alto da fachada de um prédio, a arte<br />

de Eduardo Srur bota o dedo na ferida e visa impulsionar o<br />

despertar para questões urgentes e incômodas.<br />

E alguém duvida que cozinhar é uma forma de arte? O talento<br />

para compor aromas, brincar com ingredientes e servir<br />

com amor vem de berço para a chef Manuelle Ferraz, que comanda<br />

o premiado restaurante A Baianeira, em São Paulo. Ela<br />

tentou enveredar por outros caminhos, chegou a se formar<br />

em direito, mas uma importante mudança na rotina a puxou<br />

de volta para a arte dos sabores.<br />

A jornada pela trajetória dos convidados desta edição da revista<br />

começa pela seção Q&A Etc., com a entrevista da psicanalista<br />

Vera Iaconelli sobre etarismo, um tema tão em voga<br />

que afeta milhões de brasileiros. A especialista explica como<br />

a discriminação baseada na idade reflete uma visão equivocada<br />

da sociedade a respeito do envelhecimento, de que maneira<br />

ela prejudica homens e mulheres e o que as empresas<br />

e nós, indivíduos, podemos fazer para prevenir e combater<br />

essa forma de preconceito. Aprender sobre o comportamento<br />

humano e o que pensa a sociedade podem não ser manifestações<br />

artísticas, mas estimulam o autoconhecimento, que,<br />

assim como a arte, tem um enorme poder transformador.<br />

Foto: Getty Images<br />

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[Q&A ETC.]<br />

Foto: Renato Parada<br />

Como podemos definir o<br />

etarismo?<br />

O etarismo é o preconceito ligado à idade.<br />

Quem pratica essa discriminação<br />

supõe que uma pessoa com certa idade<br />

perde habilidades e ganha deficiências.<br />

O etarismo mostra a tentativa de imputar<br />

valores negativos na diferença entre<br />

sujeitos, em vez de perceber o valor<br />

das pessoas. Não tem problema falar<br />

que alguém é velho, desde que o discurso<br />

não traga uma intenção pejorativa.<br />

Mas a questão tem evoluído. Hoje<br />

temos mais ferramentas para debater<br />

e compreender o problema do que tínhamos<br />

há algumas décadas.<br />

O etarismo é reflexo de uma<br />

sociedade que valoriza a<br />

juventude e o corpo “perfeito”?<br />

Ele é um sintoma de uma sociedade<br />

que tem medo do velho. O que está<br />

em questão é a morte, a finitude. Os<br />

velhos lembram os jovens que vamos<br />

todos morrer um dia. E isso incomoda<br />

muito. Quando somos jovens, não<br />

pensamos na morte. Mas, em algum<br />

momento, essa compreensão chega.<br />

Uma pessoa mais jovem que destrata<br />

um velho revela nela uma imaturidade<br />

em lidar com o fato de que ela mesma,<br />

um dia, vai ser velha e que seu corpo<br />

vai mudar.<br />

O etarismo impacta igualmente<br />

homens e mulheres?<br />

que for necessário, com cosméticos e<br />

cirurgias, para disfarçar a idade. O segundo<br />

ponto tem a ver com o papel socialmente<br />

construído de a mulher ser<br />

provedora de filhos, e ela precisa ser<br />

jovem para ser fértil e gerar uma prole.<br />

Quando sai do período fértil, perde sua<br />

utilidade. Já o homem, quando sai da<br />

juventude, ganha mais valor porque é<br />

visto como alguém que teve mais tempo<br />

de acumular riquezas.<br />

A dificuldade em lidar com o<br />

envelhecimento afeta as relações<br />

afetivas?<br />

Um homem velho ainda é paquerado;<br />

já as mulheres velhas são ignoradas.<br />

A mulher não pode ser velha, solteira<br />

e ainda estar buscando amor ou sexo.<br />

Mas o afeto no mundo contemporâneo<br />

já está muito empobrecido em vários<br />

sentidos, e o etarismo vem como<br />

um fator extra na equação. Ninguém<br />

mais quer se arriscar. Querem uma<br />

companhia, mas não querem pagar o<br />

preço, que é se abrir, mostrar fragilidades,<br />

estar disponível à mudança e<br />

à crítica. Daí inventam qualquer desculpa<br />

para não se relacionar ou para<br />

terminar uma relação. E a idade vem<br />

como uma dessas desculpas. Os velhos<br />

têm uma vantagem nesse sentido.<br />

São de uma geração mais propensa a<br />

se encontrar, a se arriscar. Os jovens<br />

estão mais seletivos, assustados e,<br />

portanto, mais solitários.<br />

futuro, mas não encontra suporte. E as<br />

que optam por focar apenas na carreira<br />

depois também são julgadas quando<br />

saem de seu período fértil e são vistas<br />

como descartáveis.<br />

Como as organizações podem<br />

combater o etarismo?<br />

As empresas precisam criar uma cultura<br />

interna real que valorize o velho.<br />

Os mais velhos precisam ter chance de<br />

mostrar que pode haver uma troca de<br />

conhecimento. O jovem pode ter mais<br />

sabedoria para lidar com uma nova<br />

tecnologia, mas ele é de uma geração<br />

menos preparada para encarar críticas<br />

e frustrações, pois acredita que<br />

todos os resultados devem ser imediatos.<br />

Os mais velhos podem ensinar<br />

a ter paciência, a lidar com ansiedades<br />

e angústias.<br />

Você já sofreu preconceito<br />

etário?<br />

Já passei por algumas situações. Se<br />

vou falar com pessoas jovens, por<br />

exemplo, elas me subestimam, acham<br />

que vão falar com alguém chato, que<br />

não tem nada de interessante a dizer.<br />

Também acontece de uma atendente<br />

de loja me oferecer roupas que ela acha<br />

que é “de velha”, sem antes perguntar<br />

qual meu estilo. E também tem aquilo<br />

de a pessoa não saber como me tratar.<br />

Ela não quer ofender, daí não sabe se<br />

usa “senhora” ou “você”.<br />

“A sociedade tem<br />

medo do velho”<br />

Quando veio a público a informação de que a escritora Lygia Fagundes Telles era<br />

cinco anos mais velha do que revelava <strong>–</strong> ela tinha 103 anos quando morreu, em abril<br />

deste ano, não 98 <strong>–</strong>, a psicanalista Vera Iaconelli abordou a questão do preconceito<br />

de idade, principalmente contra mulheres, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo.<br />

O etarismo é um assunto atual e relevante, e o texto da psicanalista teve grande<br />

repercussão. Vera é doutora em psicologia pela USP, diretora do Instituto Gerar de<br />

Psicanálise e autora de Mal-Estar na Maternidade e Criar Filhos no Século 21. Em entrevista<br />

à Et cetera, ela explica como o etarismo afeta a sociedade, a melhor maneira<br />

de combatê-lo e como ela, aos 57 anos, encara a discriminação etária.<br />

A mesma lógica que trata objetos como<br />

descartáveis e cria a obsolescência<br />

programada é aplicada aos seres humanos.<br />

Todas as pessoas velhas <strong>–</strong> homens<br />

e mulheres <strong>–</strong> vão ficando espremidas<br />

por preconceitos. Mas para as<br />

mulheres isso é muito pior.<br />

Por quê?<br />

Em parte, porque questões como juventude<br />

e aparência sempre foram cobranças<br />

mais pesadas sobre elas. Um<br />

homem de cabelos grisalhos é elegante,<br />

enquanto uma mulher de cabelos<br />

brancos é considerada feia, xingada de<br />

bruxa. A mulher que envelhece tem a<br />

cobrança social de gastar o dinheiro<br />

As mulheres também são mais<br />

prejudicadas pelo etarismo no<br />

mercado de trabalho?<br />

Sim. Os homens sofrem mais com o<br />

etarismo na carreira perto da terceira<br />

idade, aos 50 ou 60 anos. Se perdem<br />

o emprego, têm dificuldade para se<br />

recolocar. Já as mulheres sofrem com<br />

o etarismo muito antes. Ainda jovens,<br />

elas pagam o preço da escolha de ter filhos.<br />

Um chefe que reclama que ela vai<br />

tirar licença-maternidade, outro que<br />

não quer contratar uma profissional se<br />

ela tiver planos de ser mãe. A sociedade<br />

não quer pagar a conta da próxima<br />

geração e coloca tudo sobre a mulher.<br />

Ela é obrigada a gerar os filhos desse<br />

Como você reage?<br />

Eu não levo a mal, acho engraçado.<br />

O que fazer para não reproduzir<br />

esse comportamento<br />

preconceituoso no dia a dia?<br />

Podemos tomar cuidado para não infantilizar<br />

os velhos. Temos mania de<br />

tratá-los como crianças, como se eles<br />

não tivessem habilidades, conhecimentos<br />

e histórias para oferecer. Também<br />

tem aquela coisa de a pessoa tentar<br />

elogiar falando “Nossa, você nem<br />

parece ter essa idade”. Afinal, qual a<br />

cara de alguém de 60 anos?<br />

Entrevista concedida a Guilherme Dearo<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 25<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 24


[COM A PALAVRA…]<br />

“O racismo te adoece se você<br />

não souber transformar a<br />

revolta em ação”<br />

O hip hop deu<br />

a Preto Zezé a<br />

autoconsciência<br />

para mudar seu<br />

destino. Neste<br />

depoimento à<br />

Et cetera, o artista,<br />

empresário, ativista<br />

e uma das maiores<br />

lideranças globais<br />

pelas favelas conta<br />

sua história<br />

Nasci em Fortaleza, em 1976. Eu era o<br />

mais velho de cinco irmãos. Minha mãe<br />

era doméstica e meu pai, pintor. Cresci<br />

na favela de Quadras e, naquela época,<br />

o povo de classe média já tinha muito<br />

preconceito, dizia que a comunidade<br />

fedia, que ali só tinha violência. No<br />

Nordeste, existe essa realidade de ter<br />

que escolher entre trabalhar e estudar.<br />

As notas da escola não resolvem algumas<br />

coisas da vida que as notas de dinheiro<br />

resolvem. Mas eu ainda tive um<br />

pouco de sorte porque consegui ficar<br />

um tempo maior estudando. Trabalhava<br />

de madrugada, lavando carros, e estudava<br />

à tarde. Mas eu passava muito<br />

tempo na rua, mais do que devia. Ali<br />

tive muitos aprendizados e vivências,<br />

mas também vi a violência de perto.<br />

Tudo mudou quando conheci os bailes<br />

funk, o pixo e, depois, o rap e o hip<br />

hop, lá no começo dos anos 1990. Eu<br />

me descobri negro por volta de 15 anos,<br />

ouvindo a música Negro Limitado, do<br />

Racionais MC’s. Era uma voz falando<br />

comigo, contando minha história e o<br />

que eu sentia. Homens da Lei, do Thaíde,<br />

também me marcou muito. Falava da<br />

violência da polícia, e eu via isso na minha<br />

vida. Comecei a reconfigurar algumas<br />

coisas na mente, principalmente<br />

minha identidade negra. Entendi que<br />

precisava ler mais, estudar mais, me<br />

politizar. Comecei a olhar o mundo de<br />

outra forma e a organizar a confusão<br />

da minha cabeça.<br />

Parece loucura falar em se descobrir<br />

negro, mas é assim mesmo. A dinâmica<br />

do racismo é muito eficiente. Todo<br />

brasileiro diz que existe racismo no<br />

Brasil, mas ninguém fala que é racista.<br />

Então onde ele está? O processo de se<br />

descobrir negro é muito doloroso. Volta<br />

um filme na sua cabeça. Lembranças<br />

de coisas que te aconteceram e só<br />

agora você entende que foi racismo. As<br />

brincadeiras que faziam na escola, mas<br />

você não dava risada. A preferência da<br />

polícia em sempre te enquadrar. Nessa<br />

hora você precisa tomar cuidado. É<br />

fácil ficar tomado pelo ódio. O racismo<br />

te adoece se você não souber transformar<br />

a revolta em ação.<br />

No Brasil, o negro que quebra as expectativas<br />

dos brancos é alvo de um<br />

racismo muito agressivo. Acham que a<br />

gente sempre deve ter um papel subserviente.<br />

Quando comecei a me colocar<br />

em posições de visibilidade, passei<br />

a sentir isso todos os dias. O desejo<br />

de transformar a realidade me levou<br />

a criar o Movimento Cultura de Rua,<br />

pensando na produção cultural dentro<br />

das favelas cearenses. E então conheci<br />

a Central Única das Favelas, fundada<br />

pelo Celso Athayde. A Cufa estava<br />

transformando a realidade de muitas<br />

favelas com empreendedorismo, educação,<br />

cultura. Isso me marcou, eu queria<br />

fazer parte.<br />

E foi nessa época que mudei também:<br />

de Francisco José Pereira de Lima para<br />

Preto Zezé. Decidi fazer isso porque é<br />

uma maneira de tirar o estigma da palavra<br />

preto e virar o jogo contra quem<br />

usa isso como racismo. É a construção<br />

e afirmação de identidade. As pessoas<br />

confundiam e pediam para falar com o<br />

“Pedro”. E eu corrigia: “É Preto”.<br />

Comecei a me envolver com a Cufa e,<br />

em 2004, me tornei coordenador estadual<br />

da Cufa Ceará. Depois, fui presidente<br />

nacional da organização. Entre<br />

2015 e 2019, mais um desafio enorme<br />

da minha vida: cuidar da Cufa Global,<br />

em Nova York. Ficava indo e voltando<br />

dos EUA a cada três meses, trabalhando<br />

no nosso escritório no Bronx.<br />

Nessa época, perdi um filho adolescente<br />

pra violência. O Jonas, em agosto de<br />

2015. Ele tinha 17 anos. Você está no<br />

meio da guerra, mas nunca acha que<br />

ela vai te atingir. Foi muito difícil. Fiquei<br />

desacreditado da luta. Cheguei a<br />

pensar que o que eu estava fazendo<br />

não tinha sentido, sem fé nem motivação.<br />

A energia para seguir em frente<br />

só voltou quando o Athayde me deu o<br />

desafio de cuidar da Cufa Global. Percebi<br />

que não poderia parar. Hoje, tenho<br />

uma companheira e um filho pequeno,<br />

o José, de 6 anos, que me motivam todos<br />

os dias.<br />

Em 2020, saí do global da Cufa e voltei<br />

para o Brasil, quis cuidar da direção nacional<br />

por causa da pandemia. A fome<br />

e a miséria aumentaram muito, e a gente<br />

precisava agir. Pela primeira vez, a<br />

Cufa precisou trabalhar com arrecadação<br />

de comida. Os últimos anos foram<br />

desafiadores, mas mostraram que a<br />

gente é muito forte. Conseguimos mobilizar<br />

mais de 113 milhões de reais.<br />

Não sei qual seria meu futuro se não<br />

tivesse encontrado o hip hop e a Cufa.<br />

Dos meus 30 amigos da época, sobraram<br />

uns cinco ou seis. Os outros estão<br />

presos ou morreram, e esses poderiam<br />

ter sido meus destinos. Mas tive apoio<br />

e orientação. Do rap. Da minha mãe,<br />

dona Fátima. E do Athayde, minha<br />

grande bússola. Meu destino acabou<br />

sendo a Cufa, sete discos, dois livros,<br />

uma família. Também tenho dois livros<br />

a caminho, quase prontos. Um vai falar<br />

sobre a atuação da Cufa durante a<br />

pandemia. O outro, eu estou escrevendo<br />

com a Djamila Ribeiro, vai falar de<br />

constrangimento pedagógico contra o<br />

racismo.<br />

Para o futuro, sonho em ajudar mais o<br />

Brasil. Deixá-lo mais preto, sem esse<br />

amontoado de injustiça e mágoa por<br />

todos os lados. Fico muito preocupado<br />

com a exposição dos jovens à violência.<br />

Tem mais armas circulando e também<br />

mais ansiedade e ambição. Pra essa<br />

juventude que quer transformar, quer<br />

agir, eu digo três coisas: precisa ter<br />

conhecimento, não pode perder a referência<br />

de onde veio e tem que pensar<br />

sempre na coletividade.<br />

Depoimento dado a Guilherme Dearo<br />

Foto: Daniel de Araújo Ferreira<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 26


[GUARDE ESTE NOME]<br />

Dora<br />

Morelenbaum:<br />

O frescor da nova voz da MPB<br />

Por Sérgio Martins<br />

Foto: Lucas Nogueira<br />

Quando sai o primeiro disco? Essa é a<br />

pergunta que todos os fãs de MPB deveriam<br />

fazer a Dora Morelenbaum. Os<br />

primeiros passos como cantora antecipam<br />

um sucesso justificável. Depois<br />

do celebrado EP Vento de Beirada, lançado<br />

no ano passado, e um dueto com<br />

Di Melo, talento do soul brasileiro, a<br />

revelação do canto se uniu a Zé Ibarra,<br />

Lucas Nunes e Julia Mestre, jovens<br />

talentos da MPB atual, e formou o grupo<br />

Bala Desejo, cuja estreia chegou às<br />

plataformas de streaming no início de<br />

<strong>2022</strong>. Dora, a incansável, ainda realiza<br />

esporádicas performances solo.<br />

A cantora de 26 anos é filha de Jaques<br />

e Paula Morelenbaum, casal de alta patente<br />

da música brasileira. Ele é maestro<br />

e compositor, criador do grupo de<br />

rock progressivo A Barca do Sol e com<br />

décadas de serviços prestados a Caetano<br />

Veloso. Já Paula fez parte do grupo<br />

vocal Céu da Boca, e sua carreira solo<br />

é pontuada por discos nos quais uniu<br />

a bossa nova aos ritmos eletrônicos.<br />

Ah, e o mais importante: os dois integraram<br />

a Banda Nova, de Tom Jobim.<br />

“O sobrenome dos meus pais me abre<br />

muitas portas e trouxe referências<br />

musicais, mas não sinto nenhum tipo<br />

de pressão em relação a isso”, diz ela.<br />

As tais referências, claro, estão entre<br />

as melhores. Dora tinha 5 anos de idade<br />

quando acompanhou Jaques e Paula<br />

em uma turnê pelo Japão. Aos 12, se<br />

encantou ao presenciar um dueto dos<br />

pais em Por Toda Minha Vida, de Tom Jobim.<br />

“Foi a realização do amor. O amor<br />

pela música e o amor que um sentia<br />

pelo outro.”<br />

Apesar da veia musical, Dora inicialmente<br />

estudou arquitetura. “Queria<br />

trabalhar com música, mas tinha essa<br />

ingenuidade de fazer aquilo virar um<br />

ofício.” Embora gostasse de aulas de<br />

história da arte, ela se transferiu para<br />

o curso de Música Popular Brasileira<br />

<strong>–</strong> Arranjo Musical, na Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro. Mas o gosto<br />

pela construção, alimentado no curso<br />

de arquitetura, não foi de todo abandonado.<br />

Hoje, Dora constrói melodias<br />

com a habilidade e disciplina de quem<br />

projeta um edifício. “Assim como a música,<br />

a arquitetura tem de ser, muitas<br />

vezes, pensada antes de ser vivida”,<br />

comenta a cantora.<br />

As amizades musicais nasceram ainda<br />

no ensino médio, quando convivia com<br />

Lucas Nunes (de quem foi namorada),<br />

Zé Ibarra e Tom Veloso <strong>–</strong> os três<br />

formariam, posteriormente, a banda<br />

Dônica. Veloso, aliás, é parceiro de seu<br />

primeiro single, a singela Dó a Dó, lançada<br />

no fim de 2020 e parte de Vento<br />

de Beirada. A balada traz arranjos<br />

de cordas do pai, Jaques, e traz Dora<br />

acompanhada por uma orquestra de<br />

20 músicos. “Caí em prantos. Tenho<br />

uma relação muito forte com a música<br />

erudita, de orquestra”, comenta ela, admiradora<br />

de Ravel, Debussy e Chopin,<br />

compositores eruditos que estão entre<br />

os prediletos dos bossa-novistas.<br />

Bala Desejo, que Dora formou ao lado<br />

de Nunes, Ibarra e Julia, nasceu do isolamento<br />

provocado pela pandemia. Os<br />

quatro foram morar na casa dos pais<br />

de Julia, em Copacabana, onde passaram<br />

a criar músicas e participar das<br />

lives organizadas pela cantora Teresa<br />

Cristina. “Ela ligava e dizia qual autor<br />

seria homenageado naquela noite. A<br />

gente então ensaiava e aprontava tudo<br />

para a noite.” O sucesso das participações<br />

rendeu ao grupo um convite para<br />

tocar na edição 2021 do festival Coala,<br />

que equilibra artistas alternativos e<br />

grandes nomes da MPB, e, por fim, a<br />

sugestão de um disco do grupo <strong>–</strong> que<br />

foi sendo burilado ao longo do ano<br />

passado em estadias do quarteto em<br />

um sítio em Barbacena, Minas Gerais,<br />

numa casa em Santa Teresa, no Rio<br />

de Janeiro, e na própria residência de<br />

seus integrantes. O processo de confecção<br />

do álbum forçou uma pequena<br />

mudança no método de criação da<br />

cantora. Geralmente, ela cria a melodia<br />

e a harmonia para depois encontrar a<br />

letra adequada. No Bala Desejo, Julia<br />

assumiu a função de letrista principal<br />

e o trio restante colaborava nos versos<br />

conforme as canções eram criadas.<br />

“Às vezes, Zé [Ibarra] soltava palavras<br />

aleatórias e eu tinha de organizar o que<br />

estava sendo dito”, explica.<br />

Dora integra uma geração de compositores<br />

que percorrem um estilo mais,<br />

digamos, tradicionalistas da MPB. Nomes<br />

como ela, seus parceiros de Bala<br />

Desejo e Gab Lara optam por uma estética<br />

mais elaborada do que a facilidade<br />

de combinar música brasileira e indie<br />

rock. “Não existe uma intenção de ser<br />

mais burilado. Isso se deve às referências<br />

das coisas que a gente escuta”,<br />

justifica. A opção pela melodia mais intrincada<br />

não é, nem de longe, uma atitude<br />

esnobe ou pouco comercial, visto<br />

que as músicas possuem qualidades<br />

suficientes para tocar em rádio <strong>–</strong> veículo<br />

que, aliás, Tom Jobim frequentou<br />

durante toda a sua trajetória artística.<br />

“Ele era pop em algum lugar, assim<br />

como Caetano Veloso e Gilberto Gil”,<br />

aponta Dora.<br />

A cantora tem feito performances<br />

aqui e ali. Elas trazem canções de sua<br />

autoria, material do Bala Desejo e músicas<br />

que podem fazer parte de seu<br />

disco de estreia. “Tenho pelo menos<br />

oito canções garantidas”, diz. Mas, afinal,<br />

quando sai o disco? “Todo mundo<br />

quer saber, mas vocês foram os únicos<br />

que perguntaram”, brinca Dora. A<br />

ousadia da Et cetera valeu a pena: o<br />

processo de gravação se inicia na segunda<br />

metade de <strong>2022</strong> e o álbum sai<br />

no início de 2023.<br />

OUÇA DORA MORELENBAUM<br />

OUÇA BALA DESEJO<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 29<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 28


Nome: Daniella Maria Giusti Barra (Dani Calabresa)<br />

Idade: 40 anos<br />

Profissão: atriz e comediante<br />

Cidade onde nasceu: São Bernardo do Campo/SP<br />

A princesa<br />

Calabresa<br />

Por Simone Costa<br />

Ela desistiu de ser desenhista da Disney e se<br />

tornou uma das mais talentosas humoristas<br />

brasileiras. A paixão de Dani Calabresa pelas<br />

princesas não virou profissão, mas rendeu<br />

pedido de casamento no castelo da Cinderela<br />

Foto: Jairo Goldflus<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 31<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 30


Uma família muito unida<br />

“Quase tudo que acontece no meu<br />

cotidiano vira material de trabalho.<br />

Passo vários perrengues e desafios e<br />

penso ‘Isso ainda vai virar piada, vou<br />

conseguir transformar essa situação<br />

e as pessoas vão rir disso”<br />

O<br />

ator que interpretaria o desajeitado Dunga em uma encenação infantil de<br />

Branca de Neve e os Sete Anões não apareceu, e a menina de 5 anos que acompanhava<br />

a irmã mais velha, atriz principal da peça, foi convocada para entrar<br />

na pele do anão mudo. Ela relutou, chorou de nervoso, mas, diante da insistência da<br />

irmã, acabou cedendo. Como o figurino era grande demais para a atriz acidental, ela<br />

passou toda a apresentação ajeitando o gorro que teimava em escorregar da cabeça.<br />

A plateia, claro, caía na risada com a cena. Era a estreia de Daniella Maria Giusti<br />

Barra, a Dani Calabresa, na vida artística.<br />

“Eu me senti bem, gostei de fazer as pessoas rirem. Quando terminou, foi um misto<br />

de tensão e de vontade de fazer tudo de novo. Já estava mordida pelo bichinho do<br />

teatro”, conta Dani. A responsável pela estreia atabalhoada de uma das principais<br />

humoristas brasileiras da atualidade é Fabiana, sete anos mais velha que a irmã. Ela<br />

resolveu levar Dani para as aulas de teatro por causa da timidez da caçula, que se<br />

escondia atrás da mãe na presença de estranhos. “Sempre fui tímida. Amo fazer teatro,<br />

me concentro, mas até hoje não perdi a timidez”, revela. Talvez não tenha perdido,<br />

mas aprendeu a driblá-la já na escola: era a aluna que sabia imitar os professores.<br />

“Fazia só para as amigas mais próximas. Quando a notícia de que eu imitava<br />

alguém se espalhava pela classe inteira, eu ficava desesperada. Mas minha irmã me<br />

incentivava a fazer.” Luciana Gimenez, Hebe Camargo e Narcisa Tamborindeguy<br />

são algumas das imitações hilárias que Dani faz atualmente, agora sem tanto pudor.<br />

Mas, mais do que melhorar a desenvoltura social de Dani, o empurrão de Fabiana<br />

plantou a semente de uma carreira de sucesso. E versátil. Hoje, aos 40 anos, Dani<br />

Calabresa é atriz, comediante, roteirista, apresentadora, dubladora… Ufa! E estreou<br />

recentemente como diretora de teatro com a comédia E Aí, Deu Certo?, monólogo do<br />

amigo Rodrigo Sant’Anna. “Sempre agradeço à minha irmã porque eu precisava de<br />

alguém que me incentivasse”, diz.<br />

Além do incentivo da irmã, Dani contou com a veia cômica herdada da mãe, Marlene.<br />

Ela divertia as filhas imitando o síndico do prédio ou alguma vizinha da família<br />

sempre que voltava de uma reunião de condomínio. “Minha mãe fazia um verdadeiro<br />

show pra nós, e eu morria de rir. Quando percebi, estava fazendo o mesmo para<br />

as minhas amigas”, diz.<br />

Tanto Marlene quanto Cláudio, pai de Dani, têm grande papel no sucesso da humorista.<br />

O apoio teve, inclusive, aspectos logísticos: como Dani sempre teve <strong>–</strong> e ainda<br />

tem <strong>–</strong> medo de dirigir sozinha, o casal levava a filha para cima e para baixo em dias<br />

de testes, apresentações ou entrevistas. Mas o principal suporte era emocional. Eles<br />

sempre estiveram presentes, da ocasião em que foram os únicos espectadores de<br />

um show à primeira entrevista da humorista no badalado programa do apresentador<br />

Jô Soares, em 2009. “Tenho uma relação de muito amor e proximidade com<br />

minha família. Preciso dividir tudo com eles. Se vou a um lugar maravilhoso, mando<br />

foto no grupo da família. Se como um prato muito gostoso, já quero levar minha mãe<br />

para experimentar”, conta Dani.<br />

Ela é tão apegada à família que morou na casa dos pais até se casar com o comediante<br />

Marcelo Adnet, em 2010, aos 28 anos. Marlene e Cláudio nasceram em São Paulo,<br />

mas o casal se mudou para a vizinha Santo André antes da chegada das filhas, e a<br />

família vive lá até hoje. Portanto, foi nessa cidade do ABC paulista que Dani viveu<br />

boa parte da vida. “Eu amo Santo André, fui muito feliz lá. Estudei teatro e fiz várias<br />

peças na cidade.”<br />

O batismo como Calabresa<br />

Embora tenha sido picada pelo bichinho do teatro ainda na<br />

infância, Dani trilhou outros caminhos antes de seguir a carreira<br />

como atriz. “Eu sonhava em viver do teatro, mas era<br />

muito difícil conseguir patrocínio. A gente colocava dinheiro<br />

na peça, levava peruca de casa e no dia da apresentação tinha<br />

três parentes de cada ator lá sentados”, recorda, sem perder o<br />

bom humor. Foi vendedora de seguros, mas não vestia a camisa,<br />

digamos, da empresa: se empenhava em bater a meta de<br />

vendas; no entanto, depois de concluir a transação, ensinava<br />

os clientes idosos a cancelar a compra. Com talento nato para<br />

o desenho e fã declarada do universo Disney, nutria o sonho<br />

de se tornar desenhista da empresa, ilustrando as princesas<br />

que ela tanto amava. Decidiu cursar publicidade na faculdade<br />

Belas Artes de São Paulo, por acreditar ser um bom embarque<br />

na jornada até os estúdios da Walt Disney. Até conseguiu<br />

alguns estágios na área, mas nenhum no setor de criação de<br />

uma agência publicitária. “Adorei a faculdade, mas peguei<br />

uma fase de transição em que não adiantava só desenhar<br />

bem. Precisava saber mexer no Photoshop e num monte de<br />

novos aplicativos, mas eu não tinha nem computador”, conta.<br />

Em 2002, uma viagem de férias com Fabiana para a Ilha de<br />

Itaparica, na Bahia, abriria uma nova porta no percurso profissional<br />

de Dani, a um ano de ela se formar na faculdade.<br />

Hospedadas no resort Club Med, as irmãs se tornaram amigas<br />

dos monitores <strong>–</strong> os chamados GO, gentil organisateur <strong>–</strong>,<br />

responsáveis pela organização dos jogos e atividades, e acabaram<br />

convidadas para participar dos shows. Gostou tanto<br />

que, em 2004, decidiu repetir a experiência. Desta vez, passou<br />

um ano inteiro conciliando o trabalho de GO, entretendo<br />

a criançada durante o dia, com as apresentações que fazia<br />

à noite no próprio resort. “Foi maravilhoso, me realizei. Ima-<br />

Com a irmã, Fabiana | foto: arquivo pessoal<br />

gina: eu estava acostumada a fazer teatro sem cenário, sem<br />

figurino. No resort, tinha a produção toda”, conta. E saiu dali<br />

o apelido que se tornaria seu nome artístico. O sotaque carregado<br />

de influência dos avós italianos soava divertido para as<br />

crianças hospedadas no resort, vindas de diferentes partes<br />

do país, e elas começaram a chamá-la de tia Calabresa.<br />

De volta a São Paulo, Dani ingressou no curso de teatro musical<br />

da atriz e preparadora vocal Andrezza Massei. Nesse período,<br />

começaram a surgir os testes, eventos e peças infantis,<br />

mas a quantidade de trabalho era desproporcional ao dinheiro<br />

que entrava. “Eu fazia peças que pagavam 50 reais de cachê.<br />

Tinha dias em que fazia sessões às 10 horas da manhã, às 2 e<br />

às 4 da tarde para juntar 150 reais. Era muito perrengue, mas<br />

assim eu pagava o curso”, lembra. Com a ajuda de Andrezza,<br />

considerada pela comediante sua madrinha na profissão,<br />

Dani se preparou e conseguiu uma vaga de atriz substituta<br />

em um musical. Pouco depois, assumiu um papel fixo na produção.<br />

E ouviu mais de uma vez alguém da plateia perguntar:<br />

“Você é a Calabresa? Eu te conheci no resort”. E assim a “tia<br />

Calabresa” foi ganhando seu nome artístico.<br />

Em uma das conversas com a plateia após o espetáculo musical,<br />

uma moça sugeriu que Dani fizesse um teste para participar<br />

de um show de humor em cartaz na cidade. “Ela disse:<br />

‘Parece o Terça Insana [projeto teatral de humor com diversos comediantes<br />

que fazia enorme sucesso em SP à época], mas é mais<br />

pobrinho’”, relembra. A tal versão menos abastada do Terça<br />

Insana era o Deboshow, que estava promovendo uma competição<br />

para escolher seu novo integrante. Com personagens<br />

autorais e imitações, Dani venceu o concurso e passou a integrar<br />

o elenco fixo do espetáculo.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 33<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 32


Um anjo amigo<br />

Fase de escolhas<br />

“Você é um stand-up ambulante.” Foi<br />

com essa frase que o humorista Márcio<br />

Ribeiro (1964-2013), ex-apresentador<br />

do programa de TV infantil X-Tudo<br />

e um dos precursores do stand-up comedy<br />

no país, se referiu a Dani quando<br />

ela ainda lutava para sobreviver como<br />

atriz. Eles se conheciam havia alguns<br />

anos, e Márcio foi assistir à peça infantil<br />

em que ela atuava. O comentário<br />

do experiente comediante mexeu<br />

algumas engrenagens na cabeça<br />

da jovem atriz.<br />

A partir daquele momento, Dani começou<br />

a escrever textos de humor e<br />

mostrar a Márcio, considerado seu<br />

padrinho profissional. “Eu falava que<br />

não sabia fazer, mas ele respondia ‘Tá<br />

pronto, para de ser louca’”, diz Dani,<br />

antes de se emocionar por causa da<br />

ausência do amigo. “Ele não está mais<br />

aqui, dá tanta saudade…” Em 2006, ao<br />

lado de Márcio Ribeiro, Danilo Gentili,<br />

Fábio Rabin e Luiz França, Dani Ca-<br />

labresa estreou no grupo Comédia ao<br />

Vivo. “Minha vida mudou. Viajávamos<br />

o Brasil todo de ônibus fazendo<br />

shows, testando piadas, trocando textos.<br />

Eu me divertia muito, nem parecia<br />

trabalho”, diz.<br />

A maior exposição começou a abrir<br />

portas. Dani foi chamada para um teste<br />

no SBT e, em março de 2007, estreou<br />

no programa humorístico Sem Controle.<br />

Logo depois, uma aparição especial<br />

no Programa no Ratinho resultou no<br />

convite do apresentador Carlos Massa<br />

para uma participação fixa no Jornal da<br />

Massa, telejornal que mesclava notícias<br />

com quadros de humor. A passagem<br />

pelo canal de Silvio Santos, no entanto,<br />

foi mais curta do que ela esperava: oito<br />

meses depois, o dono da emissora paulista<br />

cancelou diversos programas de<br />

uma vez só. “Acabou o Jornal da Massa<br />

e o Sem Controle. Estava de peruca para<br />

gravar, tirei e fui embora tristinha porque<br />

eu amava trabalhar lá”, recorda.<br />

Enquanto lamentava a demissão, Dani<br />

via a porta seguinte abrir. Ou melhor,<br />

três portas. A primeira veio de uma<br />

ligação de Emílio Surita, radialista e<br />

apresentador do programa Pânico, a<br />

convidando para ser repórter do programa<br />

na Band. No mesmo período,<br />

o comediante Fábio Porchat a levou<br />

para participar de uma reunião com<br />

Maurício Sherman (1931-2019), então<br />

diretor do Zorra Total, humorístico da<br />

Rede Globo. “Ele queria que eu criasse<br />

uma personagem paulista com um<br />

sotaque bem carregado, como o meu,<br />

pra me colocar no programa”, conta.<br />

Em paralelo, Dani fez um teste para um<br />

programa piloto na MTV, uma paixão<br />

antiga que não estava em seu radar por<br />

ela não ter o perfil musical para trabalhar<br />

na emissora. “Quando o [Marcos]<br />

Mion entrou para fazer o Piores Clipes<br />

do Mundo, pensei: ‘Caramba, entrou um<br />

comediante, posso trabalhar na MTV’.<br />

Me deu esperança”, conta ela.<br />

Diante das três possibilidades, Dani<br />

deixou o coração falar mais alto. “Depois<br />

de vários testes na MTV, fui contratada<br />

para ganhar 300 reais”, diz. Ao<br />

lado dos apresentadores Marcos Mion<br />

e Cazé Peçanha, estreou em 2008 no<br />

programa de auditório Quinta Categoria,<br />

novidade no canal que deixava de<br />

exibir apenas conteúdo relacionado ao<br />

universo musical.<br />

No período em que permaneceu na<br />

emissora, de 2008 a 2012, participou<br />

de vários programas da casa, entre<br />

eles o Furo MTV, ao lado do humorista<br />

Bento Ribeiro, filho do escritor João<br />

Ubaldo Ribeiro. Sentia-se tão realizada<br />

que chegou a recusar uma nova opor-<br />

tunidade na gigante TV Globo. “A MTV<br />

tinha uma linguagem parecida com a<br />

que eu usava no stand-up. Lá, éramos<br />

como uma turma criativa de faculdade,<br />

com liberdade para testar. Foi muito legal,<br />

de verdade”, diz. “Eu tinha o sonho<br />

de ir para a Globo, mas queria me sentir<br />

preparada para essa grande mudança.”<br />

A trajetória de preparação incluiu uma<br />

passagem pelo CQC, da Band. Antes<br />

de dividir a bancada do programa com<br />

Marcelo Tas e Marco Luque, produzia<br />

reportagens nada convencionais pelas<br />

ruas do país. “Fazer entrevista na rua<br />

é difícil. As pessoas estão lá vivendo a<br />

vida delas e você pedindo para falarem,<br />

dançarem, passarem debaixo da cordinha.<br />

Foi um superdesafio”, diz.<br />

Em 2015, quase dez anos depois da estreia<br />

na televisão, Dani sentiu que era<br />

o momento de ter seu crachá da Globo.<br />

Encarnou vários papéis no Zorra Total,<br />

reviveu a icônica Catifunda, personagem<br />

de Zilda Cardoso, no remake da<br />

Escolinha do Professor Raimundo, e comandou<br />

o quadro CAT BBB na mais recente<br />

edição do Big Brother Brasil. Atualmente,<br />

ela comanda o podcast Posso<br />

Mandar Áudio?, em que apresenta dates<br />

ruins de famosos, como Xuxa, Mônica<br />

Martelli e Gil do Vigor. Os episódios, de<br />

apenas 15 minutos, estão disponíveis<br />

no site do Gshow, na Globoplay e nas<br />

principais plataformas de áudio. O impacto<br />

de trabalhar na maior emissora<br />

do país não passou despercebido. “É<br />

incomparável. Dá a sensação de que<br />

agora o Brasil está me vendo”, brinca,<br />

parafraseando o bordão dos participantes<br />

do BBB.<br />

Com Márcio Ribeiro, Fábio Rabin e Danilo Gentili | foto: arquivo pessoal<br />

“Acredito que todo processo de aprendizado tem<br />

momentos difíceis, e o mais importante é olhar para<br />

todos os cacos e ir colando. De preferência, com uma<br />

cola cheia de glitter para mostrar que a dor faz parte do<br />

crescimento e pode, sim, ser muuuuito bonita”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 35<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 34


Recolhimento no auge<br />

Quando estreou o programa que leva seu nome no título, o Dani-se, ao lado de Pedroca<br />

Monteiro, no GNT, em março de 2021, a humorista acabava de sair de um<br />

período de reclusão. O caso de assédio moral e sexual envolvendo o ex-diretor do<br />

núcleo humorístico da TV Globo Marcius Melhem ganhou enorme repercussão nacional,<br />

levando Dani a se afastar dos holofotes. “Eu busquei ajuda na empresa em<br />

que trabalhava. Nunca procurei a imprensa. Nunca quis falar publicamente, sempre<br />

quis que aquele pesadelo acabasse sem nenhum alarde”, desabafa. Após a denúncia<br />

de Dani ao compliance da Rede Globo, outras mulheres acusaram Melhem de comportamento<br />

inadequado. O Ministério Público do Trabalho ajuizou uma ação civil<br />

pública por suposta omissão contra a Globo, e há também um inquérito policial em<br />

curso na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Em paralelo,<br />

corre na Justiça um processo do ex-diretor contra Dani Calabresa por danos morais<br />

e materiais. Todos os casos correm em segredo de justiça.<br />

O divórcio do humorista Marcelo Adnet, em 2017, também envolveu uma dolorosa<br />

exposição da vida privada <strong>–</strong> o casamento de sete anos terminou por causa da traição<br />

do marido. Nos dois episódios, segundo Dani, o trabalho a salvou. “Acredito que<br />

todo processo de aprendizado tem momentos difíceis, e o mais importante é olhar<br />

para todos os cacos e ir colando”, afirma. “De preferência, com uma cola cheia de<br />

glitter para mostrar que a dor faz parte do crescimento e pode, sim, ser muuuuito<br />

bonita”, responde, animada, em demonstração involuntária da força de seu bom<br />

humor. O trabalho, garante Dani, é seu antídoto para se livrar de sentimentos ruins.<br />

Mas como fazer comédia nos dias em que a vida não está bem? Ela se concentra, entra<br />

na personagem e deixa os problemas temporariamente de lado. “Tenho o retorno<br />

diário de que meu trabalho leva humor e leveza para a vida das pessoas. Então, é um<br />

remédio para mim e para os outros”, diz.<br />

Com o noivo, Richard Neuman, na Disney | foto: arquivo pessoal<br />

“Tenho o retorno diário de que meu trabalho leva humor e<br />

leveza para a vida das pessoas. Então, é um remédio para<br />

mim e para os outros”<br />

Fé no amor<br />

Depois de ter sido publicamente traída,<br />

ver sua vida amorosa exposta e sofrido<br />

a dor de uma separação, Dani chegou a<br />

afirmar, em entrevistas, que havia perdido<br />

a fé no amor. Mas essa descrença<br />

foi apagada quando, durante uma festa<br />

acompanhada dos colegas na Dança dos<br />

Famosos, quadro do Domingão do Faustão<br />

do qual a comediante participou em<br />

2018, ela conheceu o publicitário Richard<br />

Neuman. Em janeiro de 2020, o<br />

casal assumiu a relação e, pouco mais<br />

de um ano depois, Dani foi pedida em<br />

casamento. E o local escolhido pelo noivo<br />

não poderia ter sido mais romântico,<br />

pelo menos para a noiva: em frente ao<br />

castelo da Cinderela, na Disney. “Foi<br />

maravilhoso! Receber um pedido de<br />

casamento no meio da Disney, o lugar<br />

que amo, foi incrível! Um presente,<br />

uma alegria que não consigo nem<br />

verbalizar direito. Só posso dizer que<br />

sou muito feliz”, afirma.<br />

Entre os planos para o futuro, além de<br />

organizar um casamento (ainda sem<br />

data definida), está a estreia do filme<br />

O Palestrante, que ela fez com o amigo<br />

Fábio Porchat. A comédia, que tem no<br />

elenco nomes como Otávio Müller, Maria<br />

Clara Gueiros e Antonio Tabet, chega<br />

aos cinemas em agosto. Dani Calabresa<br />

realizou o sonho de viver da arte<br />

e, ao longo da trajetória, aprendeu a rir<br />

de si mesma e das situações difíceis<br />

que enfrenta: “Quase tudo que acontece<br />

no meu cotidiano vira material de<br />

trabalho. Passo vários perrengues e<br />

desafios e penso ‘Isso ainda vai virar<br />

piada, vou conseguir transformar essa<br />

situação e as pessoas vão rir disso”,<br />

conta. Certamente, o Brasil ainda vai<br />

rir muito com Dani Calabresa.<br />

Com Pedroca Monteiro, no programa Dani-se | foto: arquivo pessoal<br />

Que dica daria à jovem Daniella:<br />

“Fique tranquila porque, apesar das pedras, o<br />

caminho é lindo e tudo sempre vai acabar bem”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 37<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 36


Nome: João Vitor Romania Balbino (Jão)<br />

Idade: 27 anos<br />

Profissão: cantor e compositor<br />

Cidade onde nasceu: Américo Brasiliense/SP<br />

A sofrência<br />

pop de Jão<br />

Ídolo da geração que nasceu na virada<br />

do século, o cantor e compositor<br />

conquistou seu espaço unindo elementos<br />

do sertanejo e do universo pop com seu<br />

talento para o empreendedorismo<br />

Por Sérgio Martins<br />

Foto: Hugo Rennan<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 39<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 38


Foto: Breno Galtier<br />

Amado pelos jovens<br />

Com esse livre trânsito entre mundos<br />

diferentes, Jão arrasta multidões<br />

para seus shows. Nos últimos meses,<br />

o cantor empolgou o público que lotou<br />

o Allianz Parque, em São Paulo, na<br />

apresentação de abertura para a banda<br />

americana Maroon 5, e brilhou em dois<br />

festivais de música pop: o Lollapalooza<br />

e o Mita (Music Is the Answer). Em<br />

setembro ele será uma das atrações do<br />

Sunset, segundo palco do Rock in Rio.<br />

“Nós vamos criar um show do zero.<br />

Quero que seja um show de transição<br />

entre Pirata, minha última turnê, e o<br />

que quero criar e explorar musicalmente<br />

no futuro. Está tudo no papel,<br />

preciso decidir e já está me dando ansiedade”,<br />

diz, em entrevista exclusiva<br />

para a Et cetera.<br />

Jão é o primeiro grande ídolo da geração<br />

nascida no início dos anos 2000.<br />

Segundo dados do YouTube, plataforma<br />

por onde se lançou, em meados da<br />

década passada, 47% dos espectadores<br />

de seus vídeos estão na faixa dos<br />

18 aos 24 anos e 25% entre os 25 e os<br />

34 anos. A principal fonte de inspiração<br />

do artista é o cantor e compositor<br />

Cazuza. “Gosto da maneira de ele falar<br />

com o povo”, diz Jão. Ele interpreta O<br />

Tempo Não Para em seus shows e recentemente<br />

conversou com Lucinha<br />

Araújo, mãe de Cazuza, que lhe acenou<br />

com letras inéditas do filho. “Nosso interesse<br />

de levar essas obras adiante é<br />

mútuo. Mas quero estruturar isso da<br />

maneira mais respeitosa que existe.<br />

Tenho tudo pensado, só falta gravar”,<br />

despista. Em termos conceituais, no<br />

entanto, Jão se aproxima muito mais de<br />

Renato Russo do que do autor de Bete<br />

Balanço, famoso por seu sarcasmo e cinismo.<br />

Por mais que não tenha a erudição<br />

literária e musical do ex-vocalista<br />

da Legião Urbana, o pop star paulista<br />

possui letras que falam de relações<br />

amorosas complicadas e da incapacidade<br />

de amar, tal e qual Renato Russo<br />

fez na década de 1980. “Meu coração<br />

é grande/E cabem todos os meninos e<br />

meninas que eu já amei”, diz em Meninos<br />

e Meninas (título similar a um sucesso<br />

do grupo brasiliense), que celebra a<br />

geração com liberdade para amar. “A<br />

música dele vai ao encontro de uma<br />

lacuna deixada principalmente por<br />

Cazuza e Renato Russo. Reúne melodia<br />

de qualidade, letras expressivas e atitude<br />

de sobra”, comemora Paulo Lima,<br />

presidente da Universal Music, que tem<br />

o cantor sob contrato.<br />

S<br />

ofrência, ensina o dicionário popular, é um neologismo<br />

formado a partir da união das palavras “sofrimento” e<br />

“carência”. Criado para rotular as canções de dor de<br />

cotovelo de Pablo, um intérprete baiano conhecido como o<br />

“rei do arrocha” (uma espécie de seresta apimentada por teclados<br />

eletrônicos), o termo caiu como uma luva para classificar<br />

uma nova turma de compositores e cantores do universo<br />

sertanejo. Sofrência são as criações de Marília Mendonça,<br />

morta em novembro de 2021, que conquistou o país com suas<br />

letras sobre mulheres repudiadas por maridos ou amantes<br />

sem perspectiva de futuro; sofrência é o canto de Maiara &<br />

Maraisa, dupla de gêmeas que trazem a aflição embutida na<br />

vogal de cada composição que apresentam no palco e nos estúdios<br />

de gravação; sofrência é o repertório de duplas como<br />

Henrique & Juliano e Matheus & Kauan, entre muitas outras<br />

que preferem trilhar o caminho da dor a falar de noitadas.<br />

O martírio também se estendeu pelo pop. A pernambucana<br />

Duda Beat, por exemplo, se tornou um dos principais nomes<br />

do showbiz atual ao forjar letras a respeito de suas decepções<br />

amorosas. Os dois tipos de agrura raramente se conversam:<br />

existe um muro imaginário que separa os sertanejos, gênero<br />

musical mais escutado nas rádios brasileiras (50% da preferência<br />

dos ouvintes, ante 34% de MPB e 23% de rock nacional,<br />

segundo dados da TGI da Kantar Ibope Media), do resto<br />

do showbiz. Mas de tempos em tempos surge um artista que<br />

rompe as barreiras entre esses dois mundos. O paulista João<br />

Vitor Romania Balbino, de 27 anos, é um deles. Jão, como é<br />

conhecido pelo público, agrada tanto as plateias da turma da<br />

bota e do chapelão quanto do universo pop. Os primeiros se<br />

identificam com suas melodias de essência sertaneja, que poderiam<br />

figurar no repertório de um Luan Santana ou de um<br />

Jorge & Matheus. Já os adeptos do pop curtem o revestimento<br />

eletrônico que Jão dá a cada composição, muito próximo do<br />

rock nacional dos anos 80.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 41<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 40<br />

Foto: Gabriela Schmidt


Artista e<br />

empreendedor<br />

No Lollapalooza Brasil, em março deste ano | foto: Breno Galtier<br />

Descoberta<br />

acidental<br />

Jão nasceu em Américo Brasiliense,<br />

município pertencente à região de<br />

Araraquara, estado de São Paulo. Fã de<br />

Cazuza e de Marisa Monte, aprendeu a<br />

tocar violão, teclado e flauta, compunha<br />

canções sozinho, em casa, e fazia<br />

pequenas participações nas festas da<br />

escola. Aos 17 anos, mudou-se para<br />

a capital, onde dividia com mais três<br />

pessoas um diminuto apartamento, ao<br />

qual deu o carinhoso apelido de “muquifo”.<br />

Na faculdade de publicidade<br />

na USP (Universidade de São Paulo),<br />

ele encontrou dois companheiros que<br />

até hoje integram seu séquito: Renan<br />

Augusto e Pedro Tófani, que atuam<br />

respectivamente como empresário e<br />

diretor criativo. Foi Pedro, aliás, quem<br />

descobriu, sem querer, que o amigo<br />

sabia cantar. “Numa festa, peguei o celular<br />

dele para trocar de música e descobri<br />

uma composição dele. Ele surtou,<br />

ficou brabo”, lembra. O imbróglio aconteceu<br />

em 2013.<br />

Ao jornal O Globo, o cantor disse que,<br />

naquela época, estava decidido a seguir<br />

carreira como publicitário porque<br />

não se achava um bom músico. Na<br />

mesma entrevista, ele se diz pessimista<br />

e afirma ter se surpreendido com o<br />

sucesso no Lollapalooza, pois estava<br />

preparado para cantar para poucas<br />

pessoas na plateia <strong>–</strong> na realidade, Jão<br />

encontrou um público superior à população<br />

de sua cidade natal esperando<br />

por ele no Autódromo de Interlagos,<br />

onde ocorreu o festival. A confiança<br />

para fazer da música o plano A veio<br />

três anos depois de ter seu talento acidentalmente<br />

descoberto pelo amigo na<br />

festa. Primeiro, passou a se apresentar<br />

em barzinhos e karaokês para custear<br />

sua vida na cidade. Depois, com a ajuda<br />

de Renan e Pedro, começou a gravar<br />

releituras de sucessos do universo pop<br />

e colocar no YouTube.<br />

O bom desempenho na plataforma de<br />

streaming chamou a atenção da Head<br />

Media, conglomerado de produtores<br />

e empresários que o chamaram para<br />

uma conversa. O interesse era mútuo.<br />

“Marcamos um papo com ele, que, para<br />

a nossa surpresa, estava tentando falar<br />

com a gente, porque curtia nossas produções.<br />

A partir daí, nossa parceria começou.<br />

Jão se tornou o primeiro artista<br />

assinado na label Head Media em parceria<br />

com a Universal Music”, diz Pedro<br />

Dash, sócio do selo ao lado dos também<br />

produtores Marcelinho Ferraz e Dan<br />

Valbusa. Os dois primeiros álbuns de<br />

Jão, Lobos (2018) e Anti-Herói (2019),<br />

possuem assinatura dos produtores da<br />

Head Media. O YouTube também ficou<br />

atento ao sucesso do novo intérprete e<br />

o colocou em projetos da plataforma.<br />

Um deles foi o Jota Quest Collab by Roland,<br />

de 2018, onde recriou Amor Maior<br />

tendo o grupo mineiro como banda de<br />

apoio. “Jão demonstra potencial autoral<br />

desde o início, conseguiu marcar<br />

seu estilo fortemente até em canção<br />

cover”, diz Walter Venício, gerente de<br />

parcerias do YouTube Music para a<br />

América Latina.<br />

“Não me achava<br />

bonito ou bom<br />

o suficiente<br />

para ser notado<br />

milagrosamente.<br />

Mas eu me achava<br />

inteligente para<br />

deixar as coisas<br />

interessantes e<br />

traçar um plano<br />

para comer pelas<br />

beiradas”<br />

O êxito de Jão tem muito a ver com o<br />

talento do trio (o cantor, Renan Augusto<br />

e Pedro Tófani) para o empreendedorismo<br />

<strong>–</strong> a rede de apoio se transformou<br />

na produtora U.F.O, empresa com<br />

faturamento anual de pelo menos 36<br />

milhões de reais, de acordo com o site<br />

Forbes. Desde cedo, o trio sabia que não<br />

poderia contar com o apoio financeiro<br />

de gravadoras. “Inicialmente foi pela<br />

falta de apoio mesmo, que era quase<br />

um desespero, já que eu havia acabado<br />

de me demitir e não tinha um plano<br />

B”, diz Jão, que chegou a trabalhar em<br />

agência antes de desistir da publicidade.<br />

“Também não me achava bonito<br />

ou bom o suficiente para ser notado<br />

milagrosamente. Mas eu me achava inteligente<br />

para deixar as coisas interessantes<br />

e traçar um plano para comer<br />

pelas beiradas. Então, reuni as pessoas<br />

e planejamos o que faríamos.” O talento<br />

empreendedor despertou muita criatividade<br />

(e certa dose de ousadia) para<br />

compensar a limitação dos recursos<br />

financeiros. Um exemplo? A ideia inicial<br />

era contratar uma empresa especializada<br />

para produzir o videoclipe de<br />

divulgação de Imaturo, mas eles descobriram<br />

que teriam de desembolsar<br />

pelo menos 200 mil reais para assinar<br />

um contrato desse tipo. Em vez disso,<br />

resolveram assumir a produção. Gravaram<br />

tudo na USP, com o pretexto de<br />

se tratar de um trabalho de conclusão<br />

de curso. O resultado final não custou<br />

mais de 26 mil reais.<br />

É a U.F.O que produz os shows de Jão.<br />

Os três arcam com as despesas e faturam<br />

com o rendimento da bilheteria.<br />

Admirador do trabalho de Es Devlin,<br />

diretora de palco que desenhou as<br />

turnês de Beyoncé e Kanye West, Pedro<br />

Tófani surge com ideias ousadas<br />

para os espetáculos de Jão. Anti-Herói,<br />

excursão do disco de mesmo nome,<br />

lançado em 2019, trazia uma cabeça<br />

gigante, inspirada no teatro grego (ele<br />

queria ainda algumas colunas, mas Renan<br />

barrou, alegando que o custo sairia<br />

alto demais). O mais recente, Pirata, é<br />

um dos espetáculos mais vistosos em<br />

cartaz pelo país. Com orçamento inicial<br />

de 500 mil reais, leva um navio, uma<br />

ceia com os músicos e chuva ao palco.<br />

“Minha principal meta com o show era<br />

que ele fosse uma experiência. Minha<br />

memória é muito ruim, mas as minhas<br />

lembranças mais vivas são de coisas<br />

que vivi em shows e festas com as pessoas<br />

de quem gosto. Então, eu queria<br />

que tudo fosse em prol de provocar um<br />

sentimento de comunhão e impacto em<br />

quem fosse me assistir. E sinto que até<br />

as pessoas que vão sozinhas ao meu<br />

show saem de lá com a sensação de<br />

terem feito parte de uma comunidade<br />

por algumas horas”, explica o cantor. E<br />

vai além: “Tenho um compromisso profissional<br />

de lutar para tornar o mercado<br />

de shows no Brasil um espaço cada<br />

vez mais competitivo e compatível com<br />

o nível dos talentos que temos aqui”.<br />

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Chuva artificial em show da turnê Pirata | foto: Breno Galtier


Sofrência no DNA musical<br />

Talento nato<br />

Fã de música sertaneja, Jão lembra que, pelo fato de ser do<br />

interior de São Paulo, a sofrência sempre marcou presença<br />

nas rádios e nas festas que frequentava. O segredo está no<br />

revestimento pop que é dado pelos produtores. “Jão curte vários<br />

artistas do sertanejo, e isso sempre esteve presente em<br />

suas músicas. Ele é mais influenciado pelo sentimento que<br />

a música passa do que pelo estilo musical em si”, explica o<br />

produtor Pedro Dash. “Quando começamos a trabalhar, entramos<br />

em estúdio e fizemos uma espécie de laboratório de<br />

criação por meses, testando de tudo, errando e acertando, até<br />

gostarmos do que estávamos ouvindo”, completa. No álbum<br />

Pirata, lançado em outubro de 2021, o tom sertanejo deu lugar<br />

a uma sonoridade eletrônica que lembra grupos dos anos<br />

1980, como o New Order. “Jão tem uma ideia bem definida<br />

do tipo de impacto emocional que quer captar e passar nas<br />

músicas. Com Pirata, tivemos o tempo para experimentar e<br />

tentar chegar a essas emoções”, diz o compositor Paul Ralphes,<br />

que teve tempo de maturar as composições por causa<br />

da pandemia. “Acredito que minha voz, forma de cantar e de<br />

escrever já são bastante características. Quando percebi isso,<br />

me permiti ser mais despretensioso em relação aos timbres<br />

e às produções”, explica Jão. “Quando sinto vontade de fazer<br />

algo mais eletrônico, ou algo mais voz e piano, ou algo mais<br />

funkeado, isso não me incomoda mais, só vou lá e faço.” Pirata<br />

é puxado por Idiota, que, com seu clipe somando mais de 19<br />

milhões de visualizações no YouTube, estourou nas plataformas<br />

de streaming.<br />

A plateia de Jão é um espetáculo à parte. Ela canta antes, durante<br />

e depois das apresentações. Em Pirata, no Espaço das<br />

Américas, em São Paulo, um grupo acampou em frente à<br />

casa de espetáculos para ficar pertinho do ídolo no palco <strong>–</strong> e<br />

foi agraciado com uma pizza, entregue pelo próprio cantor. O<br />

rapaz tímido do início de carreira deu lugar a um intérprete<br />

seguro, consciente de seu poder com o público. “Gosto muito<br />

de estar no palco. Mesmo quando algo dá errado, ou estou<br />

inseguro, é em uma proporção infinitamente menor do que<br />

no resto da minha vida. Não me sinto confortável ou satisfeito<br />

em quase nenhum outro ambiente. Então, aproveito cada<br />

segundo ali para mostrar tudo que sei.” A fama e o assédio<br />

lhe deram saudade dos tempos do interior, quando podia caminhar<br />

tranquilamente até a padaria e comprar um pão. O<br />

excesso de shows também lhe cobrou um preço muito alto.<br />

Em 2016, sua avó, com quem o cantor tinha mais afinidade,<br />

iniciou uma rotina de entra e sai dos hospitais. Ela veio a falecer<br />

em 2018, e Jão mal teve tempo de se despedir porque tinha<br />

uma apresentação marcada em outra cidade. “Senti muita<br />

culpa por não ter passado mais tempo com ela”, desabafa.<br />

Tempos atrás, Jão admitiu sua bissexualidade,<br />

declaração aceita com tranquilidade<br />

pelos fãs. “A bissexualidade<br />

sempre esteve presente nas letras do<br />

Jão. Ele trata do assunto com naturalidade”,<br />

diz Pedro Tófani. Embora as<br />

canções deixem clara a sexualidade do<br />

artista, sua matéria-prima sempre foi<br />

a música, nunca a militância. Assim,<br />

o fato de admitir ou não ser bissexual<br />

é apenas um detalhe em meio a um<br />

talento nato. Como bem define Pedro<br />

Dash: “Jão tem a capacidade de saber<br />

expressar, detalhadamente, como ele<br />

se sente sobre determinado assunto ou<br />

situação. E tem coragem de falar sobre<br />

assuntos pessoais e desconfortáveis,<br />

que as pessoas geralmente evitam.<br />

E esse é o ponto que faz com que milhares<br />

de pessoas se identifiquem com<br />

aquilo que ele canta”.<br />

“Jão nasceu na contramão dos grandes<br />

esquemas. Juntou-se a dois fiéis<br />

escudeiros e alcançou a consagração<br />

somente por meio de seu carisma e<br />

musicalidade. E agora, no auge do sucesso,<br />

mantém-se assim: assistindo de<br />

longe a toda a bajulação inevitável em<br />

torno de sua carreira”, elogia o produtor<br />

Zé Pedro. Em meio a diversos<br />

talentos cunhados mais para o marketing<br />

do que para a música, João Vitor<br />

Romania Balbino se mantém fiel aos<br />

seus preceitos e carrega dicas que faz<br />

questão de compartilhar. “Se rodeie de<br />

pessoas honestas e que tenham o mesmo<br />

sonho que você, mas que saibam<br />

te criticar; sua carreira não é a única<br />

coisa que existe na sua vida, cultive<br />

outras coisas porque uma hora ela vai<br />

te engolir; aprenda tudo que você precisa<br />

sobre seus direitos, como artista e<br />

como compositor; se coloque num lugar<br />

muito alto e acredite nele e na sua<br />

individualidade.” Um artista notável<br />

dentro e fora dos palcos.<br />

No Lollapalooza <strong>2022</strong> | foto: Breno Galtier<br />

Que dica daria ao<br />

jovem Jão?<br />

“Logo você vai<br />

encontrar pessoas<br />

que te amam e que<br />

veem o mundo<br />

da maneira que<br />

você vê. Tudo vai<br />

fazer sentido”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 45<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 44


Nome: Manuelle Ferraz de Bessa<br />

Idade: 39 anos<br />

Profissão: cozinheira<br />

Cidade onde nasceu: Almenara/MG<br />

Devota da<br />

cozinha<br />

popular<br />

brasileira<br />

Por Simone Costa<br />

Foto: PC Pereira<br />

As origens da chef Manuelle Ferraz estão<br />

na cidade de Almenara, divisa de Minas<br />

Gerais com a Bahia. Foi de lá que ela trouxe<br />

os sabores que recheiam o cardápio de seu<br />

restaurante A Baianeira<br />

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Foto: arquivo pessoal<br />

“Inventei para mim mesma que<br />

queria conhecer o mundo, mas no<br />

fundo foi uma mera desculpa”<br />

O<br />

aroma que emana do café, passado<br />

ali na hora num singelo e<br />

diminuto coador de pano, aguça<br />

o paladar e abre caminho para a iguaria<br />

que o acompanha: um pão de queijo<br />

impecável, que faz qualquer mineiro<br />

exilado em São Paulo chorar de saudade<br />

de casa. É assim que a cozinheira<br />

Manuelle Ferraz recebe a revista<br />

Et cetera para um dedo de prosa. Manuelle<br />

comanda o restaurante A Baianeira<br />

em dois endereços em São Paulo:<br />

abriu o primeiro na Barra Funda, bairro<br />

da zona oeste da cidade, e instalou<br />

o segundo no Museu de Arte de São<br />

Paulo Assis Chateaubriand (Masp), na<br />

Avenida Paulista. E é nesse ponto, um<br />

prestigiado espaço cultural <strong>–</strong> onde ela<br />

também assina o cardápio da cafeteria<br />

<strong>–</strong>, que a chef gentilmente abre espaço<br />

na concorrida agenda para contar<br />

sua trajetória. “Sou pisciana e gosto<br />

de uma boa história”, diz. Com sorte,<br />

a cozinheira de 39 anos deixa escapar<br />

os segredos culinários de quem nasceu<br />

entre as influências gastronômicas de<br />

Minas Gerais e Bahia, dois estados com<br />

sabores tão marcantes.<br />

Foi com pão de queijo que Manuelle começou<br />

seu primeiro espaço na capital<br />

paulista, em julho de 2014. O café <strong>–</strong> ou<br />

melhor, um balcão montado em uma<br />

garagem de uma rua pouco movimentada<br />

da Barra Funda <strong>–</strong> chamava-se<br />

Quem Quer Pão 75. “Eu morava no<br />

bairro e aluguei o sobrado, onde ainda<br />

hoje funciona o restaurante. É uma<br />

rua pequena, com um cotidiano quase<br />

interiorano. Um lugar que era como<br />

uma proteção, onde eu não precisava<br />

ir rápido demais e teria tempo para<br />

construir minha história com cuidado”,<br />

lembra. “Isso tudo me fez querer<br />

preparar o pão de queijo e me levou a<br />

me reconectar com as minhas raízes,<br />

com a minha cidade, Almenara”, conta<br />

a simpática almenarense.<br />

No início, o menu era minimalista: ela<br />

servia apenas café e pão de queijo no<br />

local. Aos poucos, foi incorporando<br />

outros itens, como bolos variados e<br />

um prato do dia (arroz e feijão acompanhados<br />

de uma proteína e legumes,<br />

que a chef buscava na feira do Parque<br />

da Água Branca). Logo o prato do dia<br />

também ganhou novas versões, como<br />

bife a cavalo, estrogonofe e parmegiana,<br />

até finalmente receber a companhia<br />

dos pratos típicos que hoje dão identidade<br />

ao restaurante, como galinhada e<br />

baião de dois. Com o cardápio engordando,<br />

expandia também o espaço. Primeiro<br />

o restaurante ocupou o salão no<br />

andar térreo, e, em seguida, o piso superior<br />

do sobrado. De forma orgânica,<br />

o café se transformou em restaurante<br />

em pouco mais de um ano.<br />

E o nome? Bem, ele surgiu de uma explicação<br />

que Manuelle frequentemente<br />

dava aos clientes que, diante do coador<br />

de pano, perguntavam se aquele era<br />

um estabelecimento mineiro. “Eu sempre<br />

respondia que não era só mineiro.<br />

Geograficamente, Almenara fica em<br />

Minas, mas a influência baiana naquela<br />

região é muito forte. O Vale do Jequitinhonha<br />

não consegue definir se suas<br />

características são baianas ou mineiras.<br />

Assim nasceu o nome A Baianeira”,<br />

explica a chef.<br />

Paixão pela cozinha<br />

A exemplo de muitos jovens do interior,<br />

que deixam a casa da família para<br />

estudar na capital, Manuelle se mudou<br />

para Belo Horizonte, a mais de 700<br />

quilômetros de Almenara, quando tinha<br />

17 anos. Embora pertença a uma<br />

linhagem de cozinheiras, ela ainda não<br />

pensava em seguir por esse caminho,<br />

e ingressou no curso de direito na Fumec.<br />

“Passei a infância numa cozinha,<br />

mas me afastei desse espaço da casa<br />

na adolescência e estava prestes a me<br />

tornar uma profissional de direito. Era<br />

como se não fosse o meu destino ser<br />

cozinheira”, diz.<br />

A primeira inquietação veio aos 22<br />

anos, quando a então funcionária do<br />

Tribunal de Contas do Estado de Minas<br />

Gerais decidiu trancar a faculdade e<br />

embarcar para Edimburgo, na Escócia.<br />

“Resolvi estudar inglês fora do Brasil.<br />

Inventei para mim mesma que queria<br />

conhecer o mundo, mas no fundo foi<br />

uma mera desculpa. Era uma angústia,<br />

e ainda não tinha percebido que não<br />

era no direito que eu queria seguir.”<br />

A incompatibilidade, digamos, com a<br />

gastronomia local (e com os altos preços<br />

nos restaurantes na capital escocesa) a<br />

levou para o fogão, e o hábito de cozinhar<br />

em casa despertou uma paixão<br />

adormecida. De volta a Belo Horizonte,<br />

Manuelle começou a preparar almoços<br />

e jantares para os amigos. “Vi que<br />

isso foi tomando conta de mim mais do<br />

que eu tinha imaginado. Passei a não<br />

controlar esse desejo e resolvi investir<br />

naquilo que me entusiasmava”, afirma.<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 48


A potência das<br />

mulheres<br />

Saem as leis, entram as receitas<br />

Foto: divulgação<br />

Veio da avó materna, Maria Auxiliadora,<br />

a receita do pão de queijo que seria<br />

vendido no Quem Quer Pão 75. Um segredo<br />

de família, portanto. Diferentemente<br />

da mesma iguaria produzida em<br />

quase todos os cantos do país, o pão de<br />

queijo tradicional mineiro, em especial<br />

o de Manuelle, é mais rústico. “Eu trato<br />

o meu pão de queijo como um pão, com<br />

estrutura de pão. O uso de diferentes<br />

tipos de polvilho faz com que o pão de<br />

queijo se assemelhe a um biscoito ou a<br />

um salgado”, explica a chef. “Quando a<br />

gente sai de Minas, encontra uma massa<br />

mais mole. O meu pão de queijo dá<br />

sustança, alimenta”, completa.<br />

Manuelle exalta a influência que sofreu<br />

das mulheres de sua família, especialmente<br />

da avó Maria Auxiliadora, de 79<br />

anos. Mas revela que só enxergou a força<br />

da história dessas mulheres quando<br />

saiu de casa. “Foi um processo de autoconhecimento,<br />

de busca interna que<br />

me fez compreender quão potente era<br />

tudo aquilo, que é também a realidade<br />

de muitas brasileiras”, diz. Manuelle foi<br />

a sexta mulher a nascer na família, a<br />

primeira neta. A avó ficou viúva cedo, e<br />

tirou o sustento financeiro da casa produzindo<br />

e vendendo salgados, e, posteriormente,<br />

abrindo um bufê, o único da<br />

cidade na época. “Por mais que minha<br />

mainha [a avó materna] tenha criado a<br />

todas nós sendo banqueteira, com uma<br />

vida inteira dedicada ao fogão, ela nunca<br />

viu a cozinha como um lugar de sucesso<br />

ou de carreira. Quando eu levei<br />

esse ofício para um restaurante profissional,<br />

começando por Nova York, foi<br />

como se, lá de fora, eu fizesse com que<br />

elas olhassem pra si mesmas. Isso gerou<br />

muitos questionamentos, reflexões<br />

e conflitos”, afirma.<br />

Com o tempo, a família não só entendeu<br />

sua escolha e vocação profissionais<br />

como passou a ajudá-la no restaurante.<br />

Atualmente, Cassandra, a mãe<br />

da chef e também cozinheira, trabalha<br />

com Manuelle em São Paulo. A avó<br />

banqueteira é uma das grandes influências<br />

do cardápio. “Ela fez massa de<br />

coxinha a vida inteira. Por isso, tenho a<br />

coxinha de mainha no cardápio”, revela<br />

Manuelle. A chef relembra a primeira<br />

visita da avó ao restaurante na Barra<br />

Funda: “Ela disse: ‘É isso que você está<br />

fazendo aqui, o mesmo que a gente faz<br />

lá?’. Acho que ela esperava, por ser São<br />

Paulo, alguma coisa mais grandiosa”,<br />

diz a chef, com bom humor. Maria Auxiliadora<br />

se encheu de orgulho de ver<br />

a neta comandando o restaurante no<br />

Masp, uma das principais atrações turísticas<br />

da capital paulista, mas tanto a<br />

matriarca da família como a mãe e as<br />

tias de Manuelle só se convenceram de<br />

seu sucesso quando ela participou do<br />

quadro Super Chef, exibido no matutino<br />

Mais Você, programa da Rede Globo<br />

apresentado por Ana Maria Braga. Naquele<br />

27 de junho de 2019, Almenara<br />

se emocionou ao ver a cria da cidade na<br />

TV, ensinando o Brasil inteiro a preparar<br />

uma receita de arroz de pato e cuscuz<br />

com quinoa, carne-seca e ovo frito.<br />

“Foi uma comoção, com a cidade inteira<br />

parando pra ver”, brinca Manuelle.<br />

Assim que concluiu o curso de direito, Manuelle se lançou à<br />

graduação em gastronomia no Senac. Aos 23 anos, achava<br />

que não tinha mais tempo a perder. Mas, se a mudança para<br />

BH foi um processo natural, a troca de profissão causou furor<br />

na família. “Houve uma indignação porque esperavam que eu<br />

seguisse carreira na área jurídica. Era como se eu estivesse<br />

anulando tudo o que havia sido feito até aquele momento,<br />

como se cozinheira não fosse uma profissão.” Na faculdade,<br />

Manuelle encarou o período de formação no restaurante-escola<br />

da instituição como experiência, com afinco e dedicação.<br />

“Estava sempre bastante concentrada porque precisava trilhar<br />

os passos seguintes de maneira muito séria”, relembra.<br />

Dois dias depois de formada, ela foi de mala e cuia para Nova<br />

York, onde trabalhou numa steakhouse chamada STK, um<br />

grande empreendimento na cidade. “Eu trabalhava com os<br />

melhores ingredientes do mundo. Ali, cheguei a subchefe<br />

da cozinha. Foi uma experiência intensa, que me preparou<br />

para o mundo.” Depois de dois anos nesse mergulho nova-<br />

-iorquino, Manuelle tomou novo rumo e partiu para São Pau-<br />

lo com uma meta: trabalhar na cozinha de Alex Atala, chef<br />

do D.O.M., estabelecimento agraciado com duas estrelas do<br />

Guia Michelin. “Quem trabalha com excelência no Brasil? Alex<br />

Atala. Ele é pioneiro na cozinha contemporânea, e eu queria<br />

saber o que aquele cara estava fazendo. E eu não tinha tempo<br />

a perder. Bati na porta do restaurante e falei: ‘Quero trabalhar<br />

aqui, como faço?’”, conta. Deu certo. Ela descreve seu período<br />

na cozinha do D.O.M. como uma imersão profunda. “Fez com<br />

que eu tivesse um olhar muito atento no dia a dia da cozinha.<br />

Saí desses caminhos percorridos com a capacidade de construir<br />

um repertório”, afirma.<br />

A decisão de deixar a cozinha do badalado restaurante veio<br />

com o sentimento de que ela já havia cumprido um ciclo e,<br />

mais do que começar o próprio negócio, Manuelle precisava<br />

de uma pausa para digerir tudo o que havia aprendido e<br />

acumulado de experiência. A moradora da Barra Funda sentia<br />

falta de um lugar para tomar um café e comer um pão<br />

em sua região. As padarias eram escassas no bairro, e ela<br />

viu uma oportunidade.<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

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Retorno às raízes<br />

Além das receitas da avó, a chef foi buscar no Vale do Jequitinhonha os ingredientes<br />

para suas criações. Para Manuelle, esse processo de pesquisa foi uma aproximação<br />

de si mesma e a reconexão com sua cidade natal. “O pão de queijo veio me<br />

mostrar que eu era de uma região muito rica, mas que ainda tem uma voz muito<br />

embrionária no país. E fui me apropriando desse meu lugar, tomando posse daquilo<br />

que sou, sempre com muito zelo”, diz.<br />

A chef explica que, mais do que ingredientes específicos, a região tem modos distintos<br />

de preparar pratos que são consumidos em outras partes do país. E exemplifica:<br />

enquanto em locais do Nordeste se come carne de sol com queijo coalho,<br />

mandioca ou ainda no baião de dois, no Vale do Jequitinhonha a iguaria é preparada<br />

com sopa de mandioca, arroz e feijão. O frango com quiabo, tão tradicional em muitas<br />

regiões de Minas, dá lugar à abóbora com quiabo. “Nas feiras de cidades do Vale<br />

você encontra os saquinhos já separados com metade de cada um dos dois”, conta.<br />

Com o A Baianeira a todo vapor, Manuelle passou a pesquisar outras receitas e hábitos<br />

alimentares do Vale do Jequitinhonha. Ao retornar a Almenara, já no segundo<br />

ano à frente de seu restaurante, ela visitou os produtores locais que fornecem itens<br />

essenciais na cozinha da chef. Vem daquela região, por exemplo, o requeijão de<br />

corte, um tipo diferente daquele feito no Nordeste e do requeijão de raspas, famoso<br />

em outras partes de Minas. “É uma produção que estava se perdendo por ser cara.<br />

São 25 litros de leite para 1 quilo de requeijão. E os jovens não consomem mais<br />

como nossos ancestrais”, opina a chef. “Hoje, compro praticamente todo o estoque<br />

de alguns pequenos produtores. Não faço isso como forma de ativismo, mas tento<br />

cuidar da região da maneira que posso, ajudando a preservar uma cultura”, explica.<br />

E adivinhe quem é responsável pela logística que une os produtores de Almenara e<br />

os restaurantes em São Paulo: Maria Auxiliadora. “É ela quem cuida dos fornecedores<br />

e escolhe ingredientes com toda a destreza que tem. O legado dela está mais que<br />

posto, está vivo”, emociona-se Manuelle.<br />

Almenara <strong>–</strong> MG | foto: reprodução mídias sociais<br />

Na telinha<br />

Clientes do A Baianeira encontram no<br />

cardápio pratos como picadinho de<br />

carne de panela, galinha caipira ensopada,<br />

moqueca de banana-da-terra,<br />

bife à parmegiana (azar do leitor que<br />

ainda não almoçou). Manuelle chama<br />

esse conjunto de opções de cozinha<br />

popular brasileira, e faz questão de explicar:<br />

“Alguém pode argumentar que<br />

a parmegiana não tem origem no Brasil.<br />

Mas já se tornou um hábito, e dessa<br />

forma interfere na nossa construção<br />

como sociedade”. E completa: “Quanto<br />

mais brinco com isso e vou abrangendo,<br />

fico mais segura e confortável para<br />

dizer: o Vale do Jequitinhonha confere<br />

identidade à minha cozinha, mas a partir<br />

dele eu alcanço o Brasil inteiro. Por<br />

isso é uma cozinha popular brasileira”.<br />

A “artesania” de Manuelle, como ela<br />

gosta de dizer, já rendeu importantes<br />

prêmios. Foi Chef Revelação 2018-<br />

2019 no Melhores do Ano Prazeres da<br />

Mesa. A Baianeira ganhou, em 2019, o<br />

Bib Gourmand, do Guia Michelin, uma<br />

categoria que destaca restaurantes<br />

que aliam boa qualidade com bom preço<br />

e que são relevantes por terem personalidade<br />

própria. Também foi eleito<br />

o Melhor Restaurante para Se Sentir<br />

em Casa, pela premiação gastronômica<br />

O Melhor de São Paulo, do jornal<br />

Folha de S.Paulo.<br />

Foi também em 2019 que Manuelle recebeu<br />

o convite para se encontrar com<br />

um dos diretores do Masp. O museu,<br />

que abrigava no segundo subsolo um<br />

buffet sem identidade própria, passava<br />

por um processo de reformulação.<br />

“Cheguei para o encontro sem saber do<br />

que se tratava.” Da primeira conversa<br />

até a abertura da filial do A Baianeira<br />

no local passaram-se nove meses. Admiradora<br />

de Lina Bo Bardi, a arquiteta<br />

italiana que projetou o Masp, Manuelle<br />

vê significado nesse “casamento”.<br />

“Ela falava do artesanato como arte e<br />

ressaltava o popular. Quando cheguei<br />

aqui, entendi que Lina estava esperando<br />

por A Baianeira porque é emblemático<br />

ter um restaurante de cozinha<br />

popular brasileira dentro do Masp.” Em<br />

pouco tempo <strong>–</strong> e mesmo após vários<br />

meses fechado por causa da pandemia<br />

<strong>–</strong>, o espaço no museu foi escolhido o<br />

Melhor Brasileiro pelo guia Comer & Beber,<br />

da Veja São Paulo, no ano passado.<br />

Para a alegria de Almenara, a chef<br />

celebridade da cidade voltou recentemente<br />

às telinhas, como jurada do<br />

reality show culinário Cook Island <strong>–</strong> A<br />

Ilha do Sabor. Comandado pelos atores<br />

globais Joaquim Lopes e Jéssica Ellen, o<br />

programa da GNT foi gravado no início<br />

do ano na Praia de Subaúma, na Bahia,<br />

e estreou dia 31 de março. “Foram 30<br />

dias de gravação direto. Fiquei isolada,<br />

longe da minha cozinha, mas estou<br />

bem feliz de ter participado. Mais do<br />

que julgar um prato, pude defender,<br />

com bastante liberdade, a cozinha popular<br />

brasileira”, afirma.<br />

Depois de tantas histórias, a conversa<br />

com a Et cetera terminou com um bolo<br />

de fubá com goiabada e outro cafezinho,<br />

fechando o encontro com chave<br />

de ouro <strong>–</strong> e, claro, muito sabor.<br />

A Baianeira no Masp | foto: divulgação<br />

Que dica daria à<br />

jovem Manuelle?<br />

“Eu não daria uma dica,<br />

eu a agradeceria: ainda<br />

bem que você sonhou,<br />

ainda bem que você quis<br />

o mundo. Quando a gente<br />

quer o mundo, não coloca<br />

limites e fica muito livre<br />

para ser”<br />

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Nome: Eduardo Sanchez Loria Guimarães Srur<br />

Idade: 48 anos<br />

Profissão: artista plástico<br />

Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />

O interventor<br />

Por Diego Braga Norte<br />

As intervenções urbanas de larga escala do artista<br />

Eduardo Srur provocam reflexão, admiração e<br />

reações inusitadas <strong>–</strong> suas peças já foram baleadas,<br />

decapitadas e recolhidas como material reciclável<br />

Foto: @fisheye<br />

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.<br />

Ingresso nas artes<br />

I<br />

Zoo <strong>–</strong> mostra Vida Livre | foto: divulgação<br />

nstalada em frente ao Parque Trianon, a poucos metros do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), uma<br />

estrutura de ferro de 3 metros de comprimento por 3 de altura destoa da paisagem habitual. Quem se aproxima desvenda<br />

parte do mistério: trata-se de uma jaula encravada entre os dois cartões-postais, quebrando a harmonia entre eles. Nem<br />

a pressa nem a distração impedem que os pedestres que transitam pela Avenida Paulista desviem o olhar para a estrutura <strong>–</strong> e,<br />

conforme a distância diminui, notem os quatro macacos bugios de pelúcia pendurados pelo lado de fora da jaula. Muitos param<br />

para observar, tirar foto. E basta uma dose extra de curiosidade para descobrir que é possível abrir a porta e entrar na gaiola.<br />

Os que se arriscam lá dentro espiam a vida transcorrendo na cidade ao redor, mas logo saem da estrutura. Perguntado sobre o<br />

motivo de ter ficado tão pouco tempo ali dentro, um deles responde: “Me deu uma sensação ruim, sei lá, ninguém gosta de ficar<br />

preso”. E, voilà, a obra Zoo, do artista plástico Eduardo Srur, cumpriu sua função.<br />

Eduardo Sanchez Loria Guimarães<br />

Srur nasceu na capital paulista em 1974.<br />

Sua infância e adolescência foram felizes,<br />

com dias no Clube Pinheiros e<br />

viagens para a praia. Seus pais eram<br />

amigos de artistas plásticos, como Dudi<br />

Maia Rosa e Wesley Duke Lee. Eduardo<br />

acredita que ter frequentado os<br />

ateliês e convivido com esses artistas<br />

pode, sim, ter despertado seu interesse<br />

pelas artes plásticas. Começou a frequentar<br />

galerias bem cedo, e, quando<br />

chegou à idade de prestar o vestibular,<br />

não hesitou: foi cursar artes visuais na<br />

Fundação Armando Alvares Penteado<br />

(FAAP). Na faculdade, começou suas<br />

primeiras incursões autorais nas artes,<br />

especificamente na pintura. Em 1996,<br />

ainda estudante, recebeu seu primeiro<br />

reconhecimento público, o Prêmio Michelangelo<br />

de Pintura Contemporânea<br />

no Centro Cultural São Paulo, com uma<br />

série de quadros conceituais baseados<br />

em fotografias. No ano seguinte, ganhou<br />

uma bolsa de estudos da própria<br />

FAAP para aperfeiçoar suas técnicas<br />

e pesquisas. O prêmio acadêmico lhe<br />

conferiu a possibilidade de realizar sua<br />

primeira e “quase urbana” instalação.<br />

“Foi em uma praia do litoral norte, aqui<br />

em São Paulo. Praia não é bem um espaço<br />

urbano, mas eu já tinha essa inquietação,<br />

esse desejo de levar a arte<br />

para o cotidiano das pessoas”, explica.<br />

Nessa obra inaugural, Eduardo enfileirou<br />

400 carrinhos de cerâmica pintados<br />

com tinta acrílica na areia.<br />

A primeira intervenção artística urbana<br />

(de fato) viria em 2004. A obra<br />

Acampamento dos Anjos era composta<br />

de 40 barracas de camping coloridas<br />

instaladas verticalmente na fachada<br />

de um edifício abandonado na Avenida<br />

Dr. Arnaldo, em São Paulo. À noite, as<br />

barracas se iluminavam e promoviam<br />

um colorido e silencioso acampamento<br />

nas alturas. “Instalei a primeira barraca<br />

na fachada do meu prédio. Essa obra<br />

tem uma questão espiritual bastante<br />

forte e uma conexão com a cidade. Ela<br />

impulsiona esse movimento da pintura<br />

para o espaço público, e eu começo<br />

a enxergar a arquitetura e o espaço<br />

urbano como plataformas de trabalho,<br />

como uma tela em branco”, diz Eduardo.<br />

A instalação em São Paulo despertou<br />

não apenas o interesse do público<br />

mas também do pessoal que acompanha<br />

a cena artística. No ano seguinte,<br />

em 2005, ele foi convidado para expor<br />

sua obra em Paris e em Metz, na França.<br />

Deu-se aí a virada em sua carreira.<br />

“Quando voltei para São Paulo, me dei<br />

conta de que o meu caminho realmente<br />

deveria ser as intervenções urbanas.”<br />

Acampamento dos Anjos | foto: divulgação<br />

“Eu gostaria que as pessoas compreendessem que não faz mais sentido manter animais em jaulas, passarinhos em gaiolas e<br />

peixes em aquários. Eu quero que elas tenham uma lembrança do pior momento da vida delas durante a pandemia, quando não<br />

podiam sair de casa. A vida dos animais presos é ainda pior”, explica o artista. Outras duas obras compuseram a mostra Vida<br />

Livre, exposta em São Paulo entre 2 de maio e 2 de junho. A grandiosa escultura Voo dos Pássaros, montada com mais de mil<br />

gaiolas apreendidas pela Polícia Federal em operações contra o tráfico de animais silvestres, foi instalada no Parque do Povo, na<br />

zona oeste da capital. E no Parque Ibirapuera, pertinho do lago, estava o desconcertante Aquário: um tanque com 30 mil litros de<br />

água, muito lixo plástico e dois bonecos ultrarrealistas de crianças imersas lá dentro. Do lado de fora, completando a instalação,<br />

um curioso urso-polar observava o aquário humano.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 57<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 56


A ligação com<br />

as águas<br />

Sem controle<br />

Em 2006, o artista montou sua primeira<br />

obra juntando espaço urbano e defesa<br />

do meio ambiente. Eduardo Srur<br />

escolheu o quintal de sua casa, o Rio<br />

Pinheiros, que ele vê de suas janelas.<br />

Caiaques era uma obra em constante<br />

movimento e integrada à natureza <strong>–</strong> ou<br />

ao que ainda restava dela. O artista espalhou<br />

sobre o leito do rio 150 caiaques<br />

tripulados por manequins. Um olhar<br />

rápido e desatento vindo dos milhares<br />

(talvez milhões) de automóveis que trafegam<br />

pelas marginais do Rio Pinheiros<br />

e em suas pontes levava a crer que<br />

fossem pessoas de verdade dentro dos<br />

barquinhos. Daí vinha o choque, pois<br />

quem se arriscaria a remar nas águas<br />

fétidas e repulsivas do Pinheiros?<br />

Poética, dramática e viva, a obra obteve<br />

grande repercussão na imprensa,<br />

inclusive internacional. Na última semana<br />

de exposição, alguns caiaques<br />

encalharam em uma imensa ilha de<br />

lixo formada por restos de plásticos,<br />

sacolas e garrafas. Do contraste entre<br />

as cores vibrantes das embarcações<br />

e os tons acinzentados deprimentes<br />

do lixo aos urubus procurando restos<br />

de alimentos na ilha, tudo ressaltava o<br />

caráter ativista da obra. “Vieram me<br />

perguntar se eu também tinha feito a<br />

ilha de lixo. Claro que não! O lixo e a<br />

podridão eram justamente objetos da<br />

minha denúncia ambiental e artística”,<br />

lembra Eduardo.<br />

Depois da bem-sucedida incursão no<br />

Rio Pinheiros, ele ainda daria mergulhos<br />

por outras águas. Em 2008, Eduardo<br />

instalou imensas garrafas PET<br />

no Rio Tietê, visando chamar a atenção<br />

para essas intrusas na natureza.<br />

A obra passou também na Represa<br />

Guarapiranga (2010), num lago de Bragança<br />

Paulista (2012), numa praia de<br />

Santos (2014) e na Argentina (2017).<br />

Como parte da Bienal Internacional<br />

de Arte Contemporânea da América<br />

do Sul, suas garrafas navegaram pelo<br />

Rio Paraná e Rio da Prata até atracar<br />

na foz poluída do Rio Riachuelo-Matanza,<br />

no bairro icônico de La Boca, em<br />

Buenos Aires. “Sempre gostei muito<br />

de água, adoro nadar, ir à praia, pegar<br />

ondas. Então, essa conexão entre meu<br />

trabalho e água foi bem natural.” Outras<br />

instalações e intervenções, como<br />

Nau (2010), uma escultura flutuante<br />

em formato de um barquinho de papel<br />

com mais de 4 metros de comprimento;<br />

O Aquário Morto (2014); Trampolim<br />

(2014); Hora da Onça Beber Água (2017);<br />

e Pintado (2019), por exemplo, também<br />

pretendiam chamar a atenção para as<br />

complexas e delicadas relações entre o<br />

homem e as águas <strong>–</strong> esse bem natural<br />

tão imprescindível quanto maltratado.<br />

Dentre essa longa e criativa série aquática,<br />

talvez a de maior repercussão tenha<br />

sido Welcome Guanabara. Durante<br />

os Jogos Olímpicos de 2016, quando o<br />

mundo voltou seus olhos para o Rio de<br />

Janeiro, o artista resolveu dar suas boas-vindas<br />

aos visitantes: montou uma<br />

barraca numa praia carioca e recepcionou<br />

os turistas com camisetas e souvenirs.<br />

As roupas estampavam a mensagem<br />

“Welcome Guanabara” junto com<br />

a imagem de um sorridente... cocô. O<br />

brinde mais requisitado trazia cocôs<br />

artificiais ornados com um singelo coqueiro<br />

e, claro, a placa com o nome da<br />

ação. Em um ato kafkiano, a polícia foi<br />

chamada para intervir na intervenção<br />

de Eduardo. A cena dos agentes cobrando<br />

do artista uma autorização da<br />

prefeitura é o ápice da burocratização<br />

da arte, a tentativa vã do Estado de limitar<br />

as expressões livres e criativas.<br />

O filmete da ação pode ser visto no site<br />

do artista (eduardosrur.com.br). Posteriormente,<br />

Eduardo ainda enviou kits<br />

de seus brindes, pelo correio, aos políticos<br />

que prometeram limpar as águas<br />

da Baía de Guanabara para os Jogos.<br />

Welcome Guanabara | foto: arquivo pessoal<br />

“Um profissional<br />

sempre está<br />

preocupado em<br />

manter o controle<br />

da situação. Eu,<br />

muitas vezes,<br />

discordo. Perder<br />

o controle da<br />

situação traz<br />

resultados<br />

surpreendentes”<br />

O ato de trabalhar “no e com” o espaço público é uma das<br />

principais assinaturas do artista, que cria suas obras para<br />

serem vistas sem barreiras, cobrança de ingressos ou mediação<br />

de um guia. Essa característica expõe sua arte à livre<br />

apreciação, à reflexão e a uma ou outra interferência. A obra<br />

Mercado, por exemplo, contava com dez enormes carrinhos<br />

de supermercado espalhados por São Paulo. Com mais de 3<br />

metros de altura, as peças foram objeto de muitas selfies, e<br />

algumas acabaram por se transformar em trepa-trepas, o popular<br />

brinquedo de parque infantil. Um dos carrinhos foi levado<br />

por um carroceiro que recolhe materiais recicláveis para<br />

vender. Isso mesmo, o sujeito colocou a obra em sua carroça e<br />

saiu com ela pelas ruas do centro de São Paulo, tudo registrado<br />

pelas câmeras de monitoramento de trânsito.<br />

Outras intervenções também provocaram reações inusitadas<br />

do público, como uma escultura da obra Trampolim, que teve<br />

sua cabeça decepada. As esculturas de diferentes figuras<br />

humanas realistas foram montadas sobre pranchas, prestes<br />

a mergulhar nas águas do Rio Pinheiros. “Me contaram<br />

o que havia acontecido em tom de lamentação, mas eu achei<br />

Trampolim (2014, Marginal Pinheiros, SP) | foto: Kana Filmes<br />

interessantíssimo, lembrei-me na hora da gravura do Goya”,<br />

conta o artista, remetendo à imagem do espanhol Francisco<br />

de Goya (1746-1828) Saturno Devorando um Filho, que mostra<br />

o deus grego Chronos (Saturno, em latim) deglutindo um de<br />

seus filhos, já sem braços e sem a cabeça.<br />

Para Eduardo, a perda total de controle sobre a obra é algo<br />

que o instiga. “Essas reações do público e da cidade são muito<br />

importantes para os artistas. A obra está livre num campo<br />

aberto para ser transformada”, elucida. Ele acredita que<br />

os imprevistos potencializam seu trabalho e revelam outros<br />

significados, que não tinham sequer sido cogitados. “Um<br />

profissional sempre está preocupado em manter o controle<br />

da situação. Eu, muitas vezes, discordo. Perder o controle da<br />

situação traz resultados surpreendentes.” A mesma intervenção<br />

Trampolim também provocou mais de 300 chamadas para<br />

os serviços oficiais de emergência, com pessoas que se desesperaram<br />

ao ver banhistas preparando-se para nadar nas<br />

águas negras do Pinheiros. E, além do boneco decapitado,<br />

outra escultura levou um tiro, mas passa bem. Arte na rua é<br />

isso, tiro, porrada e bomba.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 59<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 58


Intervenção bovina<br />

Em 2010, foi o próprio Eduardo quem<br />

interferiu na arte urbana, mais especificamente<br />

na famosa CowParade. Não,<br />

o artista não recolheu para reciclagem<br />

nenhuma vaca colorida espalhada por<br />

São Paulo naquele ano, mas criou suas<br />

próprias esculturas bovinas para misturá-las<br />

às peças da exposição que<br />

se autoproclamava “o maior evento<br />

de arte pública do mundo”. Tanto na<br />

Avenida Paulista como na Faria Lima,<br />

importantes centros financeiros e<br />

duas das principais vitrines da capital<br />

paulista, Eduardo instalou um touro<br />

montando uma vaca da tal exposição,<br />

remetendo ao ato da copulação. O objetivo<br />

da obra Touro Bandido era não<br />

apenas questionar a domesticação e<br />

esterilização das vacas, mas da própria<br />

arte. “O touro bandido resgata do imaginário<br />

brasileiro um animal que nunca<br />

foi domado em rodeios. E, para mim, a<br />

vaca ficou estéril como objeto de reflexão,<br />

e o touro fazia uma inseminação<br />

artística nela.”<br />

Por tratar-se de uma intervenção não<br />

autorizada, ele foi processado pelos<br />

organizadores do evento e teve de responder<br />

a um inquérito policial por ato<br />

obsceno, difamação e danos materiais.<br />

Eduardo também critica o uso da vaca<br />

pelo evento, um animal que não está<br />

presente em nossa cultura. Já o boi<br />

é um elemento marcante em nossas<br />

tradições artísticas populares, como o<br />

bumba meu boi e o boi-bumbá. “Fui um<br />

dos únicos artistas que criticaram publicamente<br />

a CowParade no Brasil com<br />

a figura do touro bandido que simboliza<br />

a arte como um campo que não pode<br />

ser domesticado”, diz. “Falam que a<br />

CowParede é arte, mas é algo publicitário”,<br />

completa. Eduardo diz não acreditar<br />

em artes passivas, direcionadas ou<br />

dirigidas. “Como é que um organizador<br />

ou um agente oficial vão definir como<br />

vai ser o trabalho do artista?”<br />

Mas, mais uma vez, a participação do<br />

aparato burocrático enriqueceu a intervenção.<br />

No processo movido contra<br />

Eduardo havia, de um lado, os organizadores<br />

de uma mostra artística; do<br />

outro, um artista independente; e, no<br />

meio, a criminalização de uma obra de<br />

arte. O toque ainda mais surreal veio<br />

da tecnicidade fria das leis. O processo<br />

não deu em nada além das intimações<br />

e amolações de praxe, e um dos motivos<br />

para a acusação de ato obsceno ter<br />

sido descartada pela Justiça foi <strong>–</strong> não é<br />

piada <strong>–</strong> o fato de os dois touros de fibra<br />

sintética serem totalmente castrados e<br />

não possuírem falo. Desta vez, a burocratização<br />

serviu não só à completude<br />

da obra mas também ao artista, que se<br />

livrou de uma multa.<br />

Touro Bandido (Av. Paulista, SP) | foto: Eduardo Srur<br />

Retorno às tintas<br />

Depois de muito tempo afastado da<br />

pintura, Eduardo voltou às telas durante<br />

a quarentena da pandemia. Ele vinha<br />

de um período de desaceleração e dedicação<br />

ao silêncio. “Essa desaceleração<br />

do meu trabalho acabou sendo muito<br />

positiva, estava num ritmo bem maluco.<br />

Pude descansar, refletir e me dedicar<br />

à construção de um acervo”, diz. O<br />

artista conta que quase todas as suas<br />

pinturas foram vendidas para colecionadores<br />

particulares ou estão em museus<br />

e, depois de 20 anos trabalhando<br />

com intervenção urbana, sentiu a necessidade<br />

de voltar a ter uma coleção<br />

própria. “As obras urbanas têm uma<br />

natureza efêmera. A obra é realizada e<br />

depois desaparece. De algumas dá para<br />

guardar um fragmento, quando muito.”<br />

Com a volta da produção de telas, Eduardo<br />

diz que agora pode receber novamente<br />

potenciais compradores em seu<br />

ateliê. “Sou um artista independente,<br />

não tenho ninguém que me represente,<br />

nenhuma galeria por trás.” A pandemia<br />

e o confinamento também propiciaram<br />

mais tempo com a família e mais contato<br />

com a natureza, pois eles se refugiaram<br />

em um local “perto da praia e<br />

do mato” do litoral norte de São Paulo.<br />

Um dos frutos dessa retomada da<br />

pintura é a série Natureza Plástica, em<br />

que o artista recria obras famosas de<br />

grandes autores (Leonardo da Vinci,<br />

Edvard Munch, Van Gogh, Tarsila do<br />

Amaral, Katsushika Hokusai e outros)<br />

utilizando sacolas plásticas coloridas.<br />

Fiel em sua defesa do meio ambiente,<br />

ele usou material recolhido das margens<br />

dos rios, ruas e cooperativas de<br />

reciclagem. As obras impressionam<br />

pela fidedignidade em relação às originais,<br />

embora sejam compostas apenas<br />

de fragmentos plásticos, sem o uso de<br />

tintas ou cola.<br />

Citando os artistas Jeff Koons e Damien<br />

Hirst, Eduardo Srur confessa<br />

que nutre admiração por pessoas que<br />

venceram o mercado, que redefiniram<br />

regras e ultrapassaram barreiras, não<br />

impondo suas obras ao gosto do público,<br />

mas fazendo com que elas fossem<br />

aceitas, admiradas, compreendidas ou<br />

debatidas. “Mas, se você me perguntar<br />

minha fonte de inspiração, a resposta<br />

não está em outros artistas, e sim no<br />

cotidiano. São os erros urbanísticos<br />

e a sociedade que me atraem interesse.<br />

Os lugares me escolhem. Se estou<br />

em São Paulo e vejo os absurdos que<br />

acontecem, acabo respondendo a isso.<br />

O artista é um agente ativo. Um pouco<br />

diferente das pessoas que aceitam<br />

passivamente a realidade distorcida da<br />

cidade em que vivem”, finaliza o artista<br />

e interventor.<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Que dica daria ao jovem Eduardo?<br />

“Você será um grande artista. Portanto, não perca<br />

tempo, moleque!”<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 61<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 60


Um cartum<br />

Foto: Getty Images<br />

A onda plastic-free<br />

Uma tendência<br />

Os plásticos estão por toda parte: nas<br />

redes de esgoto, nos oceanos, no estômago<br />

dos animais marinhos, em nosso<br />

sangue! Sim, uma pesquisa recente<br />

detectou, pela primeira vez, a presença<br />

de partículas de microplásticos na corrente<br />

sanguínea de humanos. A invenção<br />

do plástico revolucionou diversos<br />

setores da sociedade, mas nossa relação<br />

com esse material ganha novos<br />

contornos. O movimento que começou<br />

a dar um basta ao plástico de uso único,<br />

como canudos e recipientes de isopor,<br />

chega agora às embalagens recicláveis.<br />

A tendência plastic-free (sem plástico) é<br />

uma via de mão dupla: tanto os consumidores<br />

como a indústria têm seu papel<br />

a cumprir. A Amazon registrou um<br />

aumento significativo das buscas com<br />

a expressão “plastic-free” associada a<br />

diferentes produtos, como desodorante<br />

e sabão para lavar roupas. De fato,<br />

a maior dificuldade para quem decide<br />

reduzir a presença de plástico no dia a<br />

dia está relacionada à cadeia produtiva<br />

de bens de consumo <strong>–</strong> basta uma ida<br />

ao supermercado para notar a grande<br />

quantidade desse material colocada no<br />

carrinho de compras.<br />

A boa notícia é que o movimento plastic-free<br />

tem estimulado empresas a<br />

investirem em alternativas ao material.<br />

Há opções já populares, como o<br />

xampu em barra e a escova de dentes<br />

de bambu, mas vem muita coisa nova<br />

por aí. Essa tendência foi apontada no<br />

relatório Trend Report <strong>2022</strong>, da plataforma<br />

Trend Hunter. De acordo com o<br />

estudo, os consumidores esperam cada<br />

vez mais que as marcas promovam<br />

mudanças para diminuir seu impacto<br />

no meio ambiente. E o bater das asas<br />

dessas borboletas tem poder para começar<br />

um tornado...<br />

Um exemplo? Venda a granel como<br />

alternativa à embalagem fechada. Na<br />

Europa, muitas lojas e supermercados<br />

já contam com estações de venda<br />

a granel de produtos até então comercializados<br />

embalados. Gigantes como<br />

Nestlé e Unilever começam a testar a<br />

venda de refil, sem frasco, de diversos<br />

artigos, de cosméticos a alimentos,<br />

como café em pó e ração para os pets.<br />

Esses pontos de venda estimulam os<br />

consumidores a reutilizarem recipientes<br />

que já têm em casa. Outro exemplo:<br />

no mercado europeu, os iogurtes da<br />

marca Danacol, do grupo Danone, perderam<br />

o rótulo. As informações nutricionais<br />

vêm gravadas em relevo diretamente<br />

no frasco, feito de material 100%<br />

reciclável, reutilizável ou compostável.<br />

Adotada recentemente, a medida elimina<br />

de cada garrafa de iogurte 0,72<br />

grama de plástico PET, material com<br />

que é feito o rótulo. Parece pouco? Pois<br />

em um ano a empresa deixa de produzir<br />

130 toneladas de plástico. A revolução<br />

começa assim, aos poucos, mas é<br />

um caminho sem volta.<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 63<br />

<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 62


Um sabor<br />

Uma palavra<br />

Eu tinha passado a noite na companhia de um escritor<br />

famoso, que na verdade não era ninguém<br />

muito importante, apenas um homem de bastante<br />

sorte. Eu o conheci num vernissage de uma galeria<br />

de arte, e o esforço dele para me tirar dali afagou<br />

minha vaidade. Eu não chamava a atenção dos<br />

homens com muita frequência naquela época, ainda<br />

que fosse jovem e acho que atraente o bastante<br />

para isso. O problema era a minha fidelidade idiota<br />

de cachorro. Esse escritor era obviamente um egocêntrico<br />

insuportável, assim como mentiroso, e não<br />

dos muito convincentes; e eu, sozinha em Paris por<br />

uma noite, tendo à minha espera, em casa, uma filha<br />

e um marido me recriminando, estava tão sedenta<br />

por amor que parecia disposta a beber de qualquer<br />

fonte. Sério, Jeffers, eu era um cachorro <strong>–</strong> havia um<br />

peso tão grande dentro de mim que eu só conseguia<br />

me contorcer de um jeito estúpido, como um animal<br />

sentindo dor. Isso me mantinha presa nas profundezas,<br />

onde eu me debatia e me esforçava para me<br />

libertar e nadar para a superfície brilhante da vida<br />

<strong>–</strong> ao menos é o que parecia, olhando de lá de baixo.<br />

Na companhia do egocêntrico, me arrastando de bar<br />

em bar na noite de Paris, pela primeira vez flertei<br />

com a possibilidade de destruição, a destruição do<br />

que eu tinha construído; não por causa dele, posso<br />

te garantir, mas pela possibilidade que ele encarnava<br />

<strong>–</strong> que jamais tinha me ocorrido até aquela noite<br />

<strong>–</strong> de uma mudança violenta. O egocêntrico, permanentemente<br />

inebriado pela sua própria importância,<br />

deslizando balas de hortelã por entre os lábios secos<br />

quando pensava que eu não perceberia e falando<br />

sobre si mesmo sem parar: na verdade ele não me<br />

enganou, eu queria que tivesse me enganado, confesso.<br />

Ele me deu motivos suficientes para cair fora,<br />

mas é claro que não caí <strong>–</strong> entrei no jogo, acreditando<br />

nele em parte, o que claramente foi o máximo de<br />

sorte que ele já tinha conseguido em toda a sua vida.<br />

Nos despedimos às duas da madrugada na entrada<br />

do hotel, onde ele visivelmente <strong>–</strong> a ponto de se notar<br />

a falta de cavalheirismo <strong>–</strong> decidiu que eu não valia<br />

nenhum risco ao seu status quo, o que uma noite<br />

passada juntos poderia representar. E fui me deitar,<br />

me abracei com a memória de sua atenção, até que<br />

o teto pareceu sair voando do hotel, as paredes, desabar,<br />

e a imensa escuridão estrelada, me envolver<br />

com as consequências do que eu estava sentindo.<br />

A tradicional moqueca ganhou uma criativa releitura do chef Matheus Buosi, que<br />

comanda a cozinha do DoRo, aconchegante restaurante de sotaque italiano em uma<br />

charmosa casinha de Perdizes, em São Paulo. O toque do chef aparece no processo<br />

de coar o caldo, que ressalta os sabores e aromas. O resultado é o prato nacional<br />

clássico, mas com uma roupagem mais contemporânea. “As pessoas podem esperar<br />

uma versão raiz, exatamente como deve ser, mas com uma apresentação diferente,<br />

que surpreende”, diz o chef. Sirva com arroz, farinha de mandioca e raspas de<br />

limão-siciliano.<br />

PEIXE AO MOLHO DE MOQUECA<br />

Chef Matheus Buosi<br />

INGREDIENTES<br />

• 360 g de filé de peixe branco<br />

(robalo, cação, tilápia ou pescada)<br />

cortado em cubos<br />

• 1 cebola média<br />

• 4 dentes de alho<br />

• 1 pimentão<br />

• 1 pimenta dedo-de-moça<br />

• 1 lata de extrato de tomate (340 g)<br />

• 80 g de azeite de dendê (1/3 de<br />

xícara de chá)<br />

• 750 ml de água<br />

• 1 litro de leite de coco<br />

• 1 colher (chá) de orégano<br />

• Pimenta-branca a gosto<br />

• Ervas frescas (orégano, tomilho,<br />

alecrim, manjericão) a gosto<br />

• Sal a gosto<br />

MODO DE PREPARO<br />

Molho<br />

1. Descasque a cebola e o alho, retire o caule da pimenta dedo-de-moça, remova o cabo, as sementes<br />

e a fibra branca interna do pimentão e corte tudo sem se preocupar com proporções.<br />

2. Em fogo médio/baixo, refogue por 5 minutos, em um fio de azeite, a cebola, o pimentão e a<br />

pimenta dedo-de-moça.<br />

3. Adicione o alho e refogue por mais 2 minutos.<br />

4. Acrescente o extrato de tomate, o azeite de dendê, o orégano, o sal, mexa e marque mais 2<br />

minutos.<br />

5. Coloque a água e o leite de coco, e deixe ferver por 20 minutos.<br />

6. Com o auxílio de um mixer, bata todos os ingredientes, passe por uma peneira e reserve o<br />

molho coado.<br />

Dicas do chef<br />

A cada etapa, acrescente um pouco de sal; ele<br />

ajuda os alimentos a desidratarem, destacando<br />

melhor todos os sabores.<br />

Com os sólidos coados, faça um antepasto delicioso<br />

com ricota. Uma parte dos sólidos para<br />

cada parte igual de ricota e creme de leite até<br />

chegar à consistência desejada.<br />

Rendimento: 2 porções<br />

Foto: divulgação<br />

Rachel Cusk<br />

Trecho de Segunda Casa<br />

Tradução de Mariana Delfini<br />

Editora Todavia<br />

Peixe<br />

1. Corte o filé em cubos de aproximadamente 2 dedos de espessura e tempere com sal e pimenta-branca.<br />

2. Em uma panela, despeje o molho de moqueca sobre o peixe temperado e leve ao fogo baixo por<br />

5 minutos. O ideal é que ferva bem pouco para não evaporar o molho.<br />

3. Com o auxílio de uma espátula, disponha o peixe em um prato fundo e regue com o molho.<br />

4. Finalize com ervas frescas e um fio de azeite.<br />

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Uma imagem<br />

No Poço (1969) - Maria Primachenko<br />

“Um milagre artístico.” Foi assim que Pablo Picasso descreveu<br />

a obra da vencedora da medalha de ouro em pintura na<br />

Feira Mundial de Paris em 1937. A autora do tal milagre era<br />

a ucraniana Maria Prymachenko (1909-1997). Autodidata, a<br />

artista transpôs técnicas artesanais do bordado para as telas,<br />

criando motivos florais, campestres e outros. Depois de<br />

passar a infância colorindo tradicionais ovos de Páscoa, ela<br />

começou a pintar telas por paixão, sem se ater a nenhuma escola<br />

clássica. Sua influência era o cotidiano agrário na Ucrânia<br />

de sua época e os mitos, lendas e festas populares. Com<br />

cores vibrantes, animais (muitos deles mitológicos) e flores,<br />

seus quadros e painéis são hoje considerados o ápice da arte<br />

naïf não só da Ucrânia mas de todo o Leste Europeu.<br />

Um recente bombardeio russo ao Museu da História Local de<br />

Ivankiv, perto da capital ucraniana, Kiev, destruiu, entre outras<br />

obras de arte, vários quadros de Prymachenko. O ataque<br />

inexplicável a uma instituição cultural motivou a comunidade<br />

internacional a pedir a exclusão da Rússia da Unesco (braço<br />

da ONU que cuida do patrimônio cultural global) <strong>–</strong> ao longo<br />

do ano de 2009, no centenário da pintora ucraniana, a entidade<br />

organizou atividades dedicadas à sua obra. A solidariedade<br />

ao museu de Ivankiv se espalhou pelo mundo, com<br />

artistas e organizações divulgando a arte de Prymachenko<br />

para homenageá-la e eternizá-la.<br />

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