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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8<br />
Et cetera<br />
Gente com Bossa<br />
A cozinha baianeira de Manuelle Ferraz<br />
Jão, o ícone da sofrência jovem<br />
A arte provocadora de Eduardo Srur<br />
Entrevista sobre etarismo com Vera Iaconelli<br />
Dora Morelenbaum e a nova turma da MPB<br />
A autoconsciência do ativista Preto Zezé<br />
E o bom humor inabalável de Dani Calabresa<br />
“Passo vários perrengues e desafios<br />
e penso ‘Isso ainda vai virar piada’”<br />
Distribuição gratuita
Impressora offset antiga | foto: Getty Images<br />
Expediente<br />
Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />
Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />
Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Dani Calabresa<br />
Foto: Jairo Goldflus<br />
06 Roteiro<br />
Uma seleção com as melhores dicas culturais<br />
da temporada, de filmes e livros para<br />
curtir sozinho no sofá de casa a passeios<br />
para levar a família toda<br />
10<br />
O X da Bossa<br />
Cultura organizacional e aprendizagem no<br />
ambiente corporativo andam lado a lado. Em<br />
seu artigo, Daniel Motta explica a importância<br />
do tripé leveza-empatia-organicidade no mundo<br />
contemporâneo<br />
20<br />
Crônicas e Tal<br />
A diretora de inovação e comunicação<br />
da Bossa.etc, Alessandra Lotufo, passeia<br />
pelos mil e um universos no metaverso em<br />
sua nova crônica para a Et cetera<br />
22<br />
Gente com Bossa<br />
A arte tem o poder de transformar não só quem<br />
aprecia, mas também o próprio artista. Nesta<br />
edição, a Et cetera conta histórias que ressaltam o<br />
impacto da arte no indivíduo e na sociedade<br />
24<br />
Q&A Etc.<br />
A psicanalista e escritora Vera Iaconelli<br />
fala sobre etarismo: os impactos da<br />
discriminação etária na sociedade, a<br />
melhor maneira de combatê-lo e como ela,<br />
aos 57 anos, encara o preconceito<br />
26<br />
Com a Palavra…<br />
O ativista Preto Zezé conta sua trajetória<br />
de lavador de carros a empresário, artista<br />
e líder da Central Única das Favelas (Cufa),<br />
influenciado pelo despertar de consciência<br />
promovido pelo hip hop<br />
28<br />
Guarde Este Nome<br />
Filha de músicos, Dora Morelenbaum<br />
acompanhava os pais em turnês pelo mundo<br />
antes mesmo de aprender a ler e escrever.<br />
Aos 26 anos, ela é um dos mais promissores<br />
nomes da nova geração da MPB<br />
Foto: Jairo Goldflus<br />
Foto: Hugo Rennan<br />
Foto: PC Pereira<br />
Foto: Leo Martins<br />
30<br />
Dani Calabresa<br />
Com longa bagagem, a comediante Dani<br />
Calabresa, que estreou no teatro aos 5 anos,<br />
recusou convites da maior emissora do país antes<br />
de se sentir preparada para aceitar o desafio<br />
38 Jão<br />
Por trás do sucesso estrondoso da sofrência de Jão<br />
existe uma boa combinação de visão empreendedora,<br />
criatividade, sensibilidade artística e talento musical<br />
para transitar entre o pop e o sertanejo<br />
46<br />
Manuelle Ferraz<br />
A chef Manuelle Ferraz busca em suas origens<br />
no Vale do Jequitinhonha os impecáveis sabores<br />
dos pratos que saem da cozinha do premiado<br />
restaurante A Baianeira, em São Paulo<br />
54<br />
Eduardo Srur<br />
A exemplo da recente exposição Vida Livre, as<br />
obras em larga escala do artista plástico Eduardo<br />
Srur chamam a atenção para problemas da<br />
sociedade e do meio ambiente<br />
62<br />
Um Cartum<br />
Seu João ou São João? A importância de uma<br />
comunicação interna eficaz (ou melhor: as<br />
saias justas do mal-entendido na firma) é o<br />
tema do cartunista Roberto Kroll<br />
63<br />
Uma Tendência<br />
O movimento plastic-free vem impulsionando uma<br />
onda de inovação nos bens de consumo, como venda<br />
a granel de produtos industrializados e embalagens<br />
sem rótulo<br />
64<br />
Uma Palavra<br />
No recém-lançado romance Segunda Casa, a<br />
escritora britânica Rachel Cusk traz à tona<br />
temas como arte, relacionamentos amorosos,<br />
maternidade e a vida profissional da mulher<br />
A revista Et cetera tem uma versão<br />
pocket: o Etc Pop-up! Para receber<br />
semanalmente um boletim com<br />
notícias interessantes, fatos curiosos<br />
e dicas culturais no seu WhatsApp,<br />
cadastre-se pelo QR Code<br />
65<br />
Um Sabor<br />
A tradicional moqueca ganha uma roupagem<br />
mais contemporânea pelas mãos do chef<br />
Matheus Buosi, do restaurante paulistano DoRo<br />
<strong>–</strong> e a receita inclui dicas para o preparo de<br />
outros pratos também<br />
66<br />
Uma Imagem<br />
Com suas cores fortes, cenas agrárias e motivos<br />
florais, os quadros e painéis da pintora ucraniana<br />
Maria Prymachenko (1909-1997) representam o<br />
ápice da arte naïf no Leste Europeu
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
Elvis<br />
Onde ver: nos cinemas, a partir de 14 de julho<br />
Duração: 2h39min<br />
Elvis não morreu<br />
Um dos personagens mais icônicos da<br />
música e do showbiz, Elvis Presley ganha<br />
uma nova cinebiografia. Os jovens<br />
atores Austin Butler e Olivia DeJonge<br />
encarnam respectivamente o cantor e<br />
Priscilla Presley, sua esposa durante<br />
dez anos. A direção e o roteiro são do<br />
competente cineasta australiano Baz<br />
Luhrmann, autor de Romeu + Julieta, O<br />
Grande Gatsby e outros. Um dos destaques<br />
do longa é um quase irreconhecível<br />
Tom Hanks no papel do coronel<br />
Tom Parker, empresário de Elvis.<br />
Hanks modulou sua voz para recriar<br />
o sotaque do personagem nascido na<br />
Holanda e atuou com maquiagem prostética,<br />
ampliando as feições de seu rosto<br />
e corpo. O filme tem aquela estética<br />
exagerada e meio kitsch dos filmes de<br />
Luhrmann, com abusos de luzes e capricho<br />
nas cores e figurinos. E a história<br />
foca na ascensão meteórica de Elvis,<br />
que desafia os rígidos costumes da<br />
época (final dos anos 1950) enquanto<br />
enfrenta a exploração de seu empresário<br />
linha-dura.<br />
Jerry & Marge Go Large<br />
Onde ver: Paramount+<br />
Duração: 1h30min<br />
Bilhete premiado<br />
Os protagonistas do longa Jerry & Marge<br />
Go Large não brincam em serviço:<br />
Bryan Cranston é dono de seis Emmys<br />
pelo inesquecível Walter White na<br />
série Breaking Bad e Annette Bening<br />
soma dois Globos de Ouro e quatro indicações<br />
ao Oscar. Cranston dá vida a<br />
Jerry Selbee, que, ao lado de sua esposa,<br />
Marge, descobre uma brecha matemática<br />
para ganhar a loteria estadual.<br />
Com o dinheiro que entra, a dupla tenta<br />
reerguer a pequena cidade em que vive<br />
e seus cidadãos, que sofrem com o declínio<br />
econômico. O roteiro é inspirado<br />
na história real de um matemático aposentado,<br />
dono de uma loja de conveniência.<br />
O estabelecimento possuía uma<br />
máquina automática de loteria, mas<br />
Selbee nunca tinha jogado. Sua sorte<br />
“muda” quando ele começa a estudar o<br />
jogo e os números sorteados. Em pouco<br />
tempo, ele ganha mais de 20 milhões<br />
de dólares em prêmios. A comédia é<br />
dirigida por David Frankel, de Marley &<br />
Eu e O Diabo Veste Prada.<br />
Casão <strong>–</strong> Num Jogo sem Regras<br />
Onde ver: Globoplay<br />
Duração: quatro episódios de 40 minutos cada um, em média<br />
Casão sincerão<br />
Walter Casagrande Júnior, ex-jogador<br />
da seleção brasileira, do Corinthians e<br />
com passagens por clubes europeus,<br />
também é famoso por sua sinceridade.<br />
Comentarista da Rede Globo desde<br />
1997, Casão nunca escondeu seus posicionamentos<br />
políticos nem os problemas<br />
com drogas, incluindo internações,<br />
recaídas e um grave acidente automobilístico.<br />
Mais do que uma história de<br />
superação, a produção mostra uma<br />
pessoa aberta, libertária, com fome<br />
de viver intensamente sua carreira e<br />
sua vida. Em quatro episódios, a série<br />
dirigida por Susanna Lira apresenta o<br />
jogador que chegou ao auge da carreira<br />
e o cidadão questionador, passando<br />
pelo drama da dependência química e<br />
por sua relação com o rock. O documentário<br />
tem ainda uma farta oferta<br />
de imagens de época, com muitos gols<br />
e sua participação ativa no movimento<br />
Diretas Já e na Democracia Corinthiana,<br />
além de depoimentos de ex-jogadores<br />
e amigos, como Cléber Machado e<br />
Galvão Bueno.<br />
Para ouvir<br />
Dose dupla<br />
Jack White decidiu lançar não um,<br />
mas dois álbuns de inéditas neste ano,<br />
totalizando cinco discos de estúdio de<br />
sua carreira solo já consolidada. Com<br />
fortes raízes no blues e folk americano,<br />
o cantor, guitarrista e compositor<br />
sempre buscou referências no passado<br />
para fazer seus rocks cativantes.<br />
Fiel à sonoridade de seus ídolos, ele só<br />
gravava com fitas magnéticas e microfones<br />
antigos. White não abandonou<br />
seus equipamentos analógicos, mas<br />
se rendeu à tecnologia. Usou também<br />
softwares de captação e edição, incorporou<br />
samples de outros artistas e<br />
fez distorções digitais. Taking Me Back<br />
tem os riffs de guitarras eletrizantes,<br />
que são sua assinatura desde os White<br />
Stripes. Já a faixa Fear of the Dawn é<br />
um rock direto e noturno, como o nome<br />
“medo do amanhecer” sugere. O músico<br />
retrô, que criou neste ano perfis em<br />
redes sociais de sua gravadora, Third<br />
Man Records, comprou recentemente<br />
seu primeiro celular.<br />
Fear of the Dawns e Entering Heaven Alive<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
Pequena Mamãe<br />
Onde ver: Amazon Prime Video<br />
Duração: 1h13min<br />
Luto infantil<br />
Depois do sucesso de público e crítica<br />
de Retrato de uma Jovem em Chamas<br />
(2019), os cinéfilos de plantão estavam<br />
ansiosos para o próximo trabalho da<br />
diretora francesa Céline Sciamma. E<br />
ela correspondeu à expectativa com o<br />
belo Pequena Mamãe. A pequena Nelly<br />
(interpretada pela excelente Joséphine<br />
Sanz, 8 anos) acaba de perder a avó<br />
materna. Enquanto os pais limpam e<br />
organizam a casa de infância de Ma-<br />
rion, mãe de Nelly, a menina conhece<br />
uma garotinha de sua idade (a igualmente<br />
talentosa Gabrielle Sanz, irmã<br />
gêmea de Joséphine) e passa a ajudar<br />
a nova amiga a construir uma cabana<br />
no bosque próximo à casa. Curto<br />
para os padrões atuais (pouco mais de<br />
uma hora), o filme é um poderoso tratado<br />
sobre a perda. Sem filosofar ou<br />
até mesmo explicar muitas coisas, a<br />
diretora sabiamente opta por mostrar<br />
como a morte da avó impacta a criança<br />
e sua mãe.<br />
Carreira respeitada<br />
Aos 35 anos, o rapper americano<br />
Kendrick Lamar tem uma carreira irretocável.<br />
O premiado álbum Good Kid,<br />
MAAD City (2012) foi sucesso de crítica<br />
e público, To Pimp a Butterfly (2015)<br />
acabou virando trilha sonora do movimento<br />
#BlackLivesMatter e DAMN<br />
(2017) foi considerado uma “obra-prima<br />
do rap” pela respeitada Pitchfork.<br />
Depois de produzir a trilha sonora do<br />
filme Pantera Negra (2018), Lamar lança<br />
agora seu quinto álbum de estúdio,<br />
Mr. Morale & The Big Steppers. Discreto,<br />
é avesso à exposição de sua vida pessoal,<br />
não ostenta carrões, mansões ou<br />
joias em redes sociais. Seu perfil no<br />
Instagram, com mais de 11 milhões de<br />
seguidores, não soma nem meia dúzia<br />
de fotos. O novo disco já ganhou comparações<br />
na imprensa especializada<br />
com “peça de teatro”, “ópera” e “sessão<br />
de terapia”. Na primeira parte, mais intimista,<br />
o rapper se esquiva do papel de<br />
“salvador” da sua geração. Na segunda,<br />
retoma as denúncias de injustiças<br />
vividas pelos negros.<br />
Mr. Morale & The Big Steppers<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 7<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 6
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
Os Amnésicos<br />
396 páginas<br />
Editora Âyiné<br />
99,90 reais<br />
O papel do povo<br />
Jornalista e historiadora pela Sorbonne<br />
e London School of Economics, Géraldine<br />
Schwarz é filha de pai alemão<br />
com mãe francesa. Ao contar a história<br />
dos próprios antepassados, ela toca<br />
numa ferida que ainda está longe de<br />
cicatrizar: qual foi o papel dos cidadãos<br />
comuns durante o regime nazista na<br />
Alemanha e na França colaboracionista<br />
de Vichy, que se aliou aos alemães<br />
Amanhã Vai Ser Pior<br />
496 páginas<br />
Editora Patuá | 55 reais<br />
As dores do mundo<br />
Depois de ter brigado com família e<br />
amigos e ser demitido do trabalho por<br />
questões políticas, Pedro decide passar<br />
um tempo em Barcelona. Ele queria<br />
deixar a eleição presidencial de 2018<br />
e o Brasil para trás. Vendo o dinheiro<br />
acabar, o personagem principal do<br />
livro Amanhã Vai Ser Pior arruma um<br />
emprego de analista de conteúdo numa<br />
grande rede social. Pedro agora é obrigado<br />
a lidar com o que há de pior na<br />
Quando Deixamos de Entender o Mundo<br />
176 páginas<br />
na Segunda Guerra? Ao descobrir que<br />
o avô paterno comprou uma empresa<br />
de um judeu expulso da Alemanha <strong>–</strong> e,<br />
portanto, obrigado a liquidar seus bens<br />
<strong>–</strong>, a autora traça um panorama da responsabilidade<br />
dos milhões de pessoas<br />
que não pegaram em armas nem em<br />
canetas (burocratas do regime), mas<br />
se deixaram levar pelo nazismo. “O<br />
desconhecimento do objetivo preciso<br />
das deportações de judeus não exime<br />
a maioria do povo alemão de sua responsabilidade<br />
por ter permitido o saque<br />
e a expropriação de seus vizinhos,<br />
colegas, comerciantes do bairro, de ter<br />
às vezes participado deles e de ter assistido<br />
às deportações sem protestar”,<br />
escreve a autora.<br />
internet, assistindo e removendo da<br />
plataforma vídeos e fotos de assassinatos,<br />
estupros, pedofilia e canibalismo.<br />
Em seu segundo romance, o autor<br />
Marcelo Conde faz um retrato bastante<br />
atual do nosso tempo, posicionando<br />
o protagonista num ponto bastante<br />
incômodo, mas revelador. Pedro precisa<br />
do dinheiro para seguir morando<br />
na Espanha com sua nova namorada,<br />
mas sofre por seu trabalho e por sua<br />
vida, e afunda-se numa ruína pessoal<br />
e existencial. A descrição de sua rotina<br />
insalubre e a narrativa entremeada por<br />
conversas de WhatsApp com amigos e<br />
familiares criam um ritmo envolvente.<br />
Para visitar<br />
Brasil de exportação<br />
O americano Thomas Jean Lax, curador<br />
do MoMA, em Nova York, se referiu<br />
ao brasileiro Dalton Paula como “parte<br />
de uma nova geração de artistas de origem<br />
afro que está mudando a maneira<br />
como a arte brasileira é vista na Europa<br />
e nos Estados Unidos”. Depois de participar<br />
de bienais e mostras coletivas, o<br />
artista goiano abrirá sua primeira exposição<br />
individual em São Paulo, em 29<br />
de julho. Mesmo com obras no acervo<br />
do próprio MoMA e de outros museus<br />
do mundo, Dalton Paula ainda é pouco<br />
conhecido do público brasileiro fora<br />
do mundo da arte. Suas esculturas e<br />
quadros têm uma forte conexão com a<br />
cultura popular e com a ancestralida-<br />
Poeta da fotografia<br />
Nascido e criado no subúrbio do Rio de<br />
Janeiro, filho único de pai negro e mãe<br />
branca, ambos paraenses, o fotógrafo<br />
Walter Firmo começou sua carreira em<br />
1957, no já extinto jornal Última Hora.<br />
O currículo traz ainda passagens por<br />
veículos de peso como Jornal do Brasil,<br />
Realidade, Manchete, Veja e outras. Seu<br />
trabalho com fotografias em cores é<br />
considerado pioneiro na imprensa brasileira<br />
e impressiona pelo apuro técnico<br />
e composição cromática, dialogando<br />
com a pintura. Sete vezes premiado no<br />
Concurso Internacional Nikon, considerado<br />
o Oscar da fotografia, ganhador<br />
de negra. O Masp vai exibir dezenas de<br />
retratos de figuras como Ganga Zumba,<br />
Chico Rei, Liberata e Luiza Mahin,<br />
ex-escravos que combateram a escravidão.<br />
Atento aos contrastes, o artista<br />
sobrepõe seus personagens sobre fundos<br />
que realçam sua pele, como azul-<br />
-piscina ou verde-turquesa. Ele usa<br />
também lâminas de ouro nos cabelos,<br />
criando brilho e conferindo nobreza<br />
aos retratados. Ingressos a 25 reais<br />
(meia) e 50 reais. Às terças, a entrada<br />
é gratuita.<br />
Dalton Paula: Retratos Brasileiros<br />
Masp<br />
Ingressos: masp.org.br<br />
do Prêmio Esso e autor de livros, Firmo<br />
sempre manteve seu olhar voltado<br />
para a população pobre, suburbana ou<br />
moradora dos rincões rurais do país.<br />
Suas imagens transmitem uma aura<br />
de religiosidade e mantêm respeito por<br />
seus retratados. Grande apreciador de<br />
samba e de música popular brasileira,<br />
ele também retratou grandes artistas,<br />
como Cartola, Pixinguinha e Dona<br />
Ivone Lara. Até setembro.<br />
Walter Firmo<br />
No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito<br />
IMS Paulista | Entrada gratuita<br />
Obra: Zeferina, 2018 | foto: Masp (Museu de<br />
Arte de São Paulo)<br />
Obra: Gaudêncio da Conceição durante Festa de São<br />
Benedito, 1989 | Foto: Walter Firmo/Acervo IMS<br />
Editora Todavia<br />
59,90 reais ou 38,90 reais (e-book)<br />
Ver e interagir<br />
Redescobertas científicas<br />
O chileno Benjamín Labatut está sendo<br />
“acusado” de ter inventado um novo<br />
gênero literário. Seu livro é tão criativo<br />
e instigante que não pode ser etiquetado<br />
como “ficção científica” nem<br />
como “romance histórico”. Com quatro<br />
histórias e um epílogo, Labatut narra<br />
importantes descobertas científicas<br />
que mudaram o rumo da história para<br />
o bem ou para o mal. Estão lá o azul da<br />
Prússia (pigmento sintético dos quadros<br />
de Van Gogh, Picasso e outros),<br />
o cianeto (veneno usado no Zyklon B,<br />
das câmaras de gás nazistas), a quebra<br />
do átomo (que possibilitou a bom-<br />
ba atômica), teoremas matemáticos e<br />
outros. Há ainda personagens reais,<br />
como Einstein e Schrödinger, além de<br />
cientistas menos conhecidos e igualmente<br />
fascinantes. O grande barato do<br />
livro está na ausência de limites entre o<br />
real e o fictício nas histórias. Com uma<br />
prosa ágil e convincente, um narrador<br />
envolvente costura as quatro narrativas<br />
e demonstra que “os átomos que<br />
despedaçaram Hiroshima e Nagasaki<br />
não foram separados pelos dedos gordurosos<br />
de um general”, mas por um<br />
grupo de físicos bem-intencionados e<br />
um punhado de equações.<br />
Ao criar a exposição que ocupa o 20º<br />
andar de um dos mais icônicos prédios<br />
de São Paulo, o artista paranaense Rafael<br />
Silveira não economizou em criatividade<br />
e interatividade. Altamente<br />
instagramável e divertida, a mostra<br />
de arte pop agrada adultos e crianças.<br />
Grandes sorvetes derretem no chão,<br />
cores e formas escorrem do teto, o piso<br />
brilha e as paredes ganham projeções<br />
de animações que se movimentam. O<br />
trajeto da mostra guia o público por<br />
uma espécie de labirinto, com um ambiente<br />
mais surpreendente do que o<br />
outro em uma exposição que mistura<br />
várias técnicas. Silveira conta que seu<br />
intuito foi provocar os sentidos dos visitantes,<br />
oferecendo uma experiência<br />
sensorial quase completa <strong>–</strong> é possível<br />
ver, tocar, ouvir, cheirar e interagir<br />
com as obras; só não é recomendável<br />
comê-las. Adultos pagam 30 reais<br />
e os pequenos, 15 reais. Em cartaz<br />
até 7 de agosto.<br />
Espuma Delirante<br />
Farol Santander<br />
Ingressos: www.farolsantander.com.br<br />
Foto: Rafael Silveira<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 9<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
O saber leve,<br />
empático<br />
e orgânico<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />
Em um mundo em transformação acelerada, a<br />
regra do jogo já é clara: pessoas e organizações<br />
precisam se envolver em espirais contínuas de<br />
aprendizagem para se adaptarem e se destacarem<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 11<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 10
P<br />
ode-se dizer que a velocidade, a amplitude e a intensidade<br />
dos ciclos de transformação contemporâneos<br />
diferem dos movimentos vivenciados no passado.<br />
Mas tal perspectiva pode não passar de mera ilusão de óptica,<br />
considerando que é difícil dimensionar o impacto causado<br />
pelas ondas industriais revolucionárias nos últimos três<br />
séculos no estilo de vida dos camponeses e dos operários<br />
vis-à-vis o efeito das ondas tecnológicas mais recentes, turbinadas<br />
por computador, internet e inteligência artificial. De<br />
qualquer forma, o processo evolutivo inevitavelmente apresenta<br />
um ritmo, uma abrangência e uma potência. Nada surge<br />
no vazio.<br />
O processo de aprendizagem contínua se desenvolve naturalmente<br />
na trajetória de indivíduos e, portanto, de todos os<br />
tipos de organização, que podem abranger desde o núcleo<br />
familiar até a própria nação. Aprendizado é algo intrínseco<br />
não apenas à humanidade. Aprendemos para crescer, nos<br />
adaptar, compartilhar, evoluir e, também, sobreviver. Apren-<br />
demos sozinhos e em grupo. Aprendemos formal e informalmente.<br />
Aprendemos de modo sequencial e aleatório. Aprendemos<br />
por meio da lógica e do instinto. Aprendemos o que<br />
desejamos e o que detestamos.<br />
As organizações aprendem naturalmente ao longo de seu<br />
processo de expansão e adaptação. Começam seus primeiros<br />
tempos com muitas ideias e poucos recursos. Muitas padecem.<br />
Poucas seguem em frente com mais recursos e capacidades,<br />
construindo estruturas, controles e ativos. Ao longo<br />
de muitos e muitos anos, organizações longevas consolidam<br />
e institucionalizam suas principais capacidades competitivas<br />
de modo a aumentar sua escala e sustentar suas realizações.<br />
Dezenas, centenas ou milhares de pessoas agrupam-se em<br />
diferentes estruturas de gestão e governança de modo a conseguir<br />
gerenciar organizações cada vez maiores e mais complexas.<br />
Mas isso não ocorre de um dia para o outro. É algo<br />
evolutivo e adaptativo, mesmo que por vezes tenha também<br />
certo verniz disruptivo.<br />
Foto: Getty Images<br />
Aprendizado é<br />
algo intrínseco<br />
não apenas à<br />
humanidade.<br />
Aprendemos<br />
para crescer,<br />
nos adaptar,<br />
compartilhar,<br />
evoluir e, também,<br />
sobreviver<br />
Os caminhos do saber<br />
O processo de aprendizagem, seja ele<br />
individual ou coletivo, engloba não<br />
apenas ampliação de horizontes e<br />
fronteiras, mas também ruptura de<br />
limites e padrões já conhecidos. Pode<br />
ser doloroso aprender. Afinal, abandonar<br />
paradigmas já confortáveis implica<br />
redefinir conceitos e até mesmo crenças<br />
já estabelecidas, significa desafiar<br />
o nexo já compreendido e integrado<br />
ao sistema de outros conhecimentos,<br />
exige reconstrução de mapas mentais<br />
usualmente utilizados nos aspectos<br />
cognitivos, afetivos e sociais inerentes<br />
ao processo decisório. É razoável,<br />
inclusive, afirmar que todo processo<br />
de aprendizado requer, mesmo que de<br />
maneira implícita, algo aspiracional em<br />
vista, suficientemente atraente para<br />
estimular a jornada do(s) aprendiz(es)<br />
fora da zona de conforto do mundo<br />
conhecido, além da inércia comportamental<br />
que nos satisfaz. Aprender exige<br />
confiança, resiliência e sustentação.<br />
Mas todo conhecimento é sistêmico,<br />
considerando que não há utilidade possível<br />
em fragmentos de informações<br />
isoladas no vácuo social. A jornada de<br />
conhecimento requer, portanto, sucessivas<br />
conexões de ideias e articulações<br />
entre pessoas em infinitas espirais<br />
cruzadas. A compreensão definitiva de<br />
todo sistema integrado é uma missão<br />
inócua, uma vez que não há fronteiras<br />
a serem alcançadas <strong>–</strong> afinal, elas<br />
simplesmente não existem. Mesmo<br />
postulados científicos seculares também<br />
devem ser desafiados, refutados<br />
e substituídos à medida que o conhecimento<br />
acumulado permita a exploração<br />
de novas possibilidades antes inacessíveis.<br />
Ser dogmático implica, necessariamente,<br />
buscar respostas simplistas<br />
para questões abstratas <strong>–</strong> o que pode<br />
até ser desejável no plano das religiões,<br />
mas é restritivo no cotidiano da vida.<br />
Compreender o nexo causal entre inúmeras<br />
variáveis é um dos exercícios<br />
intelectuais mais desafiadores. E, muitas<br />
vezes, ele é tão complexo que apenas<br />
o uso de inteligência artificial pode<br />
nos apoiar e oferecer caminhos.<br />
Assim, os termos learning organization e<br />
lifelong learning são óbvios nas esferas<br />
organizacionais e individuais, respectivamente.<br />
Sempre foram, sempre serão.<br />
Mesmo para os incautos e alienados, o<br />
processo de aprendizagem é intrínseco<br />
ao simples existir. Todos os dias, de<br />
modo ininterrupto, todos estão sujeitos<br />
a novas informações, novas interações,<br />
novos pensamentos, novas sensações.<br />
É importante destacar que a percepção<br />
consciente não é requisito para o<br />
aprendizado. E mais: é muito provável<br />
que grande parte do conhecimento<br />
acumulado por um indivíduo tenha<br />
sido parte de processos inconscientes<br />
presentes no seu cotidiano, e não de<br />
experiências educacionais formais.<br />
Estamos todos continuamente ampliando<br />
nossos saberes.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 13<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 12
Olhar pessoal<br />
A cultura organizacional,<br />
enquanto fenômeno social,<br />
pode ser descrita como uma<br />
espiral de aprendizagem<br />
social compartilhada<br />
pelos membros do grupo<br />
ao longo do tempo,<br />
combinando mapas mentais<br />
coletivos, valores comuns e<br />
vínculos afetivos<br />
A expansão do conhecimento é contínua, mas vale ressaltar<br />
que tal ampliação não ocorre sem conotações. Atribuímos<br />
significados aos nossos saberes em função de inúmeras<br />
condições de contorno e preferências pessoais. De um lado,<br />
o contexto social apresenta e qualifica a ambientação para a<br />
jornada de conhecimento de indivíduos e grupos, modelando<br />
percepções coletivas e influenciando posicionamentos individuais.<br />
E, do outro, as preferências pessoais forjam-se ao<br />
longo da evolução individual, integrando crenças, ideias e aspirações,<br />
modelando assim não apenas pensamentos e sentimentos<br />
mas notadamente comportamentos. Assim, a própria<br />
aprendizagem não ocorre à revelia da significação individual<br />
e coletiva acerca dos conhecimentos acumulados e compartilhados,<br />
sendo eles próprios absorvidos em suas conotações<br />
ao conjunto de signos que caracteriza determinado agrupamento<br />
de indivíduos em certo tempo.<br />
No caso específico de uma organização, o aprendizado é influenciado<br />
tanto por aspectos processuais como por questões<br />
tácitas da própria organização. No lado processual, destacam-se<br />
a estrutura, o modelo de gestão e governança, os sistemas<br />
de informações e os mecanismos de reconhecimento e<br />
recompensa. Já no lado tácito, destacam-se as normas grupais,<br />
os valores compartilhados, os mapas mentais vigentes<br />
e as redes de influência entre os indivíduos. A aprendizagem<br />
organizacional, portanto, está inserida em um conjunto amplo<br />
e complexo de aspectos que modelam e, ao mesmo tempo, são<br />
modelados pelas interações pessoais.<br />
A estrutura enciclopédica do<br />
conhecimento<br />
Foto: Getty Images<br />
Tudo comunica de certa forma. Tudo modela. Aspectos processuais<br />
e tácitos apresentam a ambiência para o processo<br />
de aprendizagem organizacional e, por consequência, individual.<br />
É inescapável a associação entre os dois movimentos,<br />
tanto o coletivo quanto o individual. E os próprios aspectos<br />
processuais e tácitos também são indissociáveis, sendo ambos<br />
modelados pela cultura organizacional.<br />
Aliás, a própria cultura organizacional, enquanto fenômeno<br />
social, pode ser descrita como uma espiral de aprendizagem<br />
social compartilhada pelos membros do grupo ao longo do<br />
tempo, combinando mapas mentais coletivos, valores comuns<br />
e vínculos afetivos. Acertos são incorporados como modus<br />
operandi esperado e ensinado aos novatos, erros são transformados<br />
em tabus e restrições. Líderes e liderados modelam<br />
linguagens, tradições, normas, valores, significados, símbolos,<br />
rituais, mitos, processos, mecanismos de controle e sistemas<br />
de reconhecimento. Líderes fazem tudo isso por meio<br />
de uma narrativa que se apresente como natural, neutra, crível,<br />
justa e legítima para se tornarem capazes de organizar os<br />
processos sociais e psicológicos nesse agrupamento humano.<br />
Forma-se, então, a expressão distintiva de uma empresa<br />
em relação a todas as demais. Toda cultura organizacional é,<br />
inexoravelmente, a expressão original de sua trajetória, em<br />
contínua dinâmica definida pelas interações sociais internas<br />
e externas. Isso também é aprendizado.<br />
No passado, as organizações se desenvolviam como monólitos:<br />
sólidos, impermeáveis, codificáveis, estáveis e previsíveis.<br />
O aprendizado era inicialmente acessado pelo estoque<br />
de conhecimento acumulado por jovens talentos em suas<br />
formações acadêmicas para, então, ser socializado em interações<br />
com veteranos já inseridos nos vastos manuais operacionais,<br />
devidamente registrados e atualizados. Com fluxos<br />
de comunicação muito bem desenhados, as informações<br />
eram transferidas como direcionamentos do topo para a base<br />
da organização. Todos os detalhes operacionais eram minuciosamente<br />
monitorados, catalogados e analisados por ferramentas<br />
estatísticas. Assim como o maquinário, também o<br />
conhecimento formal sofria depreciação anual <strong>–</strong> e precisava<br />
ser reconstruído por meio de ações de educação continuada.<br />
O aprendizado corporativo <strong>–</strong> e, também, a própria formação<br />
acadêmica das crianças e dos jovens <strong>–</strong> foi modelado por lógicas<br />
industriais denominadas trilhas, com suas avaliações e<br />
certificações, reunidas em programas aderentes ao conjunto<br />
de requisitos listados para as diferentes funções e senioridades<br />
existentes nas empresas. O conhecimento era documentado<br />
em apostilas, manuais e códigos acessíveis aos gestores<br />
e aos colaboradores. Também era organizado em matrizes e<br />
tipologias com categorias agregadoras, de modo que os indivíduos<br />
poderiam rapidamente se encaixar em padrões disponíveis.<br />
A especialização funcional era almejada por meio<br />
da prática recorrente em torno de conhecimentos muito estruturados,<br />
enquanto a formação generalista era construída<br />
transversalmente em trilhas gerenciais desenhadas para os<br />
diferentes níveis hierárquicos. Todo esse conjunto de informações,<br />
práticas e ferramentas estava reunido em centros<br />
de treinamento corporativo, algumas vezes rebatizados como<br />
universidades corporativas. Gestores mais experientes tornavam-se<br />
mestres de sala de aula à disposição dos programas<br />
desenhados para os mais profissionais em seus processos<br />
de formação e aperfeiçoamento. O próprio processo de<br />
aprendizagem também se transformava em plataforma de<br />
aculturamento de todos os gestores e colaboradores em torno<br />
dos mesmos princípios, normas e valores defendidos pelas<br />
lideranças dominantes da organização, consolidando mapas<br />
mentais, crenças e, portanto, comportamentos uniformes.<br />
Tal lógica industrial do aprendizado mimetizava a própria<br />
estrutura enciclopédica do conhecimento: todas as informações<br />
passíveis de ser agrupadas e catalogadas a partir de<br />
certa ordenação lexicográfica; o aprendizado de crianças e<br />
adultos muito bem estruturado, monitorado, documentado,<br />
estável e previsível; a trajetória acadêmica das crianças inserida<br />
no mesmo fio condutor da educação continuada adulta<br />
e do processo de aperfeiçoamento profissional; a diplomação<br />
formal constituída como selo distintivo para aqueles diferenciados<br />
em sua trajetória de aprendizagem.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 15<br />
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Foto: Getty Images<br />
Monólitos em<br />
descompasso<br />
Se o processo de aprendizagem contínua<br />
é intrínseco à própria evolução e os<br />
termos learning organization e lifelong learning<br />
são obviedades inerentes ao ser<br />
humano, o que, afinal, está em transformação<br />
no contexto contemporâneo?<br />
À medida que as próprias organizações<br />
se modificam em torno de profundos<br />
rearranjos sociais, também as pessoas<br />
se adaptam a paradigmas, perspectivas<br />
e rituais inéditos. Novos tempos<br />
induzem novos conhecimentos, sentimentos<br />
e capacidades. Portanto, o atual<br />
contexto de transformação inspira<br />
novas modelagens para o processo de<br />
aprendizagem, também deslocando alguns<br />
dos seus aspectos essenciais.<br />
Como exercício de reflexão, vamos<br />
resumir toda a complexidade contemporânea<br />
a um único denominador: a<br />
alta velocidade aleatória e escalável<br />
das coisas. Esse é o fenômeno letal que<br />
ameaça a sobrevivência das organizações<br />
monolíticas, já sedimentadas em<br />
seus códigos, processos, usos e costumes,<br />
práticas e mapas mentais. Eis a<br />
inflexão da lógica global em curso.<br />
Monólitos são sólidos justamente porque<br />
valorizam rigidez, impermeabilidade,<br />
perfeição, coesão e previsibilidade<br />
como atributos competitivos<br />
vencedores diante de ambientes externos<br />
que evoluem gradualmente e<br />
são passíveis de ser influenciados pela<br />
ação contundente e consistente dos<br />
monólitos. É importante salientar que<br />
monólitos não são estáticos. Aprendem<br />
sempre, de modo cumulativo e intencional.<br />
Mas sistematizam seus processos<br />
de mudanças em uma lógica de<br />
melhoria contínua que acompanha pari<br />
passu a trajetória evolutiva do próprio<br />
ambiente. Em tempos de evolução passo<br />
a passo, os grandes monólitos consolidados<br />
ao longo de décadas sempre<br />
tiveram suas próprias envergaduras<br />
como principal plataforma distintiva<br />
na concorrência contra competidores<br />
menores, sendo derrotados de tempos<br />
em tempos por seus próprios vícios<br />
e barbaridades: arrogância, miopia e<br />
fragmentação, em especial.<br />
Diante da alta velocidade aleatória e<br />
escalável das coisas, os monólitos são<br />
muito lentos. Pior ainda, são com frequência<br />
equivocados em suas decisões<br />
por utilizarem paradigmas obsoletos<br />
em contextos inéditos. Não conseguem<br />
estruturar o processo de aprendizagem<br />
porque seus manuais e repositórios<br />
envelhecem rapidamente diante<br />
de novas dinâmicas inteligíveis ao<br />
sistema organizacional sedimentado.<br />
Por outro lado, organizações vencedoras<br />
(novas e velhas gigantes) estão<br />
encontrando novas formas de interação<br />
com o mundo externo, ao mesmo<br />
tempo que estão refinando seu próprio<br />
modus operandi e reavaliando suas<br />
capacidades competitivas.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 17<br />
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A cultura organizacional e a aprendizagem<br />
O processo de aprendizagem deve ser refletido dentro da nova lógica contemporânea. Dessa forma,<br />
como organizações e pessoas aprendem sem arestas e condutores?<br />
A reflexão sobre essa indagação acaba por relacionar aprendizagem e cultura. Em tempos de alta<br />
velocidade aleatória e escalável das coisas, o modelo vencedor aponta para aquele mais adaptável,<br />
flexível e ágil <strong>–</strong> e esses são, justamente, três atributos ausentes na lógica monolítica. Configurar<br />
esse novo modelo significa desenhar poucos traços a lápis, com uma borracha sempre à mão e várias<br />
folhas em branco inseridas na composição.<br />
A cultura organizacional, por diferentes vetores, reflete seu contexto social. A própria sociedade<br />
está em pleno processo de transformação, em que o arcabouço institucional tradicional tem sido<br />
continuamente desafiado e desconstruído em seus pilares mais fundamentais. Do mesmo modo,<br />
as organizações estão sujeitas às mesmas forças que questionam e implodem estruturas, crenças<br />
e paradigmas inadequados aos novos imperativos. Assim, embora exista o conceito de uma única<br />
modelagem vencedora para cultura organizacional, uma vez que ela é insumo-produto do próprio<br />
agrupamento de pessoas que a compõem, é possível listar três características cada vez mais essenciais:<br />
leveza, empatia e organicidade.<br />
Trilogia contemporânea<br />
Culturas leves, empáticas e orgânicas conseguem<br />
responder melhor aos imperativos em torno de<br />
adaptabilidade, flexibilidade e agilidade, características<br />
cada vez mais exigidas no contexto organizacional e,<br />
naturalmente, também no comportamento individual.<br />
• Leveza: a ideia de controle e acúmulo de capital como alavanca de valor<br />
no longo prazo não se enquadra no cenário atual. O foco, agora, está<br />
na geração de valor por meio de acesso a serviços, não na aquisição<br />
de produtos. A leveza aparece em todos os aspectos da companhia: na<br />
arquitetura de software, na estrutura organizacional e nos acordos e<br />
parcerias ocasionais e dinâmicas.<br />
• Empatia: entender o ponto de vista do outro é o principal objetivo. Essa<br />
valorização do olhar do outro passa por todas as etapas da jornada do<br />
cliente, do usuário e do colaborador para gerar conteúdo atrativo e conexões.<br />
No contexto de experiência empática, estão em alta os conceitos<br />
relacionados a Costumer Experience, User Experience e Employee<br />
Experience (CX, UX e EX).<br />
• Organicidade: o fluxo linear e unidirecional do paradigma industrial<br />
não acomoda o modelo orgânico versátil exigido pelo universo ágil e<br />
complexo do mundo digital. Aqui, os recursos abundantes, inclusive capital,<br />
se tornam commodities. O valor está no arranjo para uma entrega<br />
colaborativa ecossistêmica desses recursos.<br />
Quando tudo se conecta<br />
Dado esse contexto transformador nas organizações e na<br />
própria sociedade, como se modela o processo de aprendizagem<br />
com maior efetividade?<br />
A aprendizagem é algo intrínseco à existência humana e organizacional,<br />
inescapável à própria trajetória inconsciente dos<br />
seres. Diante dos novos imperativos em torno de adaptabilidade,<br />
flexibilidade e agilidade, os mesmos traços constituídos<br />
e fortalecidos no tripé leveza-empatia-organicidade também<br />
se aplicam ao processo de aprendizagem individual e coletiva.<br />
A leveza se apresenta simplesmente na atomização dos objetos<br />
de aprendizagem e do próprio tempo encapsulado em<br />
cada uma das experiências, bem como na quebra dos protocolos<br />
em torno do binômio professor-aluno. Aprender com<br />
leveza significa também substituir os rituais de avaliação<br />
formal por mensurações inteligentes capazes de avaliar o<br />
desempenho individual e coletivo em múltiplas dimensões<br />
e interações com conteúdos, experiências, desafios e atores.<br />
Também a linguagem leve desloca os termos formais em prol<br />
das expressões coloquiais que compõem a linguagem natural<br />
que hoje caracterizam cada vez mais as interações digitais.<br />
Por fim, a leveza está também expressa nas mídias e nos ambientes<br />
de aprendizagem, substituindo a sala de aula arquitetada<br />
em torno da lousa e do mestre para espaços democráticos<br />
e diversos.<br />
A empatia se desenvolve à medida que a trajetória de aprendizagem<br />
considera o indivíduo como sujeito ativo do seu<br />
percurso dentre tantas possibilidades que se habilitam. As<br />
trilhas de aprendizagem são imersas em jornadas personalizadas<br />
e artificialmente inteligentes nas recomendações das<br />
experiências e dos conteúdos relevantes. A empatia também<br />
se manifesta em formato multimídia ao proporcionar inú-<br />
meras plataformas e realidades integradas, capazes de fomentar<br />
a realização de missões de aprendizagem individual<br />
conectadas em torno de agendas coletivas, priorizadas pelas<br />
organizações. Também se observa o olhar empático ao inserir<br />
no universo empresarial temáticas mais sensíveis no âmbito<br />
pessoal que reconhecem a unicidade individual dentro e fora<br />
do ambiente de trabalho. Não por acaso, o universo de soft<br />
skills hoje é o maior e mais relevante espaço de aprendizagem<br />
para indivíduos e empresas.<br />
A organicidade extrapola as barreiras e os limites organizacionais<br />
para alcançar patamares inimagináveis para a<br />
aprendizagem integrada em torno das temáticas relevantes<br />
sob a ótica multistakeholder. O conhecimento não reconhece<br />
fronteiras, estando continuamente em expansão. A aprendizagem<br />
orgânica reforça esse traço tão essencial do saber ao<br />
se espalhar por diferentes locais, proporcionar encontros improváveis,<br />
facilitar conexões de valor entre ideias e personagens,<br />
evoluir dentro da lógica de biomas cognitivos. O aprendizado<br />
orgânico não impõe escolas, trilhas e módulos, mas se<br />
apresenta plasticamente inserido no consumo de conteúdos,<br />
materializado em experiências integradas ao cotidiano profissional-pessoal,<br />
disponível em microcosmos com curadoria<br />
impecável e algoritmos inteligentes.<br />
E nada disso é novidade para uma criança fora dos bancos<br />
escolares. Para ela, o aprendizado é lúdico, memorável e integrado<br />
em suas vivências. Ao desconstruirmos os edifícios<br />
do conhecimento lexicográfico, talvez seja mais possível nos<br />
aproximarmos da sabedoria essencial acerca das coisas ao<br />
nosso redor, onde tudo faz sentido, tudo se conecta, tudo aumenta<br />
a potência. A natureza também é sistemática, mesmo<br />
quando indecifrável à cognição humana.<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 19<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 18
[CRÔNICAS E TAL]<br />
Versos em metaversos<br />
Foto: Getty Images<br />
Susana está atrasada, de novo! Chega<br />
em casa apressada. As amigas já estão<br />
passando milhões de mensagens. “Ai,<br />
Ana, chata, sempre me criticando. Fica<br />
escrevendo que sabia que eu ia atrasar”,<br />
pensa enquanto digita uma resposta<br />
atravessada. Não envia. Por que<br />
se aborrecer no início da noite? Melhor<br />
deixar a amiga estressada falando sozinha<br />
e se arrumar.<br />
O banho é rápido, hora de escolher o<br />
vestido. Preto ou azul? Preto não tem<br />
erro, né? Vamos de pretinho básico.<br />
Sempre quis um desse modelo, nunca<br />
imaginou que seria possível. Caríssimo!<br />
Termina de se arrumar, mas tem alguma<br />
coisa faltando... O cabelo, talvez?<br />
Experimenta um mais comprido. Mais<br />
mechas? Não, achou exagerado. Mais<br />
volume! Pronto. “Ai, esqueci os olhos!<br />
Não posso aparecer assim, de olhos<br />
castanhos! Cadê aquela cor meio violeta<br />
que eu amei no outro dia? Achei!”<br />
Aplica a nova cor e aproveita para aumentar<br />
discretamente o tamanho dos<br />
cílios, deixando que fiquem bem naturais.<br />
Nada de maquiagem. “Tem que<br />
parecer que nasci com estes cílios!”<br />
Sempre aplica esse truque, deixa o<br />
olhar mais vivo. Aprendeu com a Ana,<br />
aquela chata estressada, mas que dá as<br />
melhores dicas!<br />
“Nossa, quanta gente! Onde estão as<br />
meninas?” Ouve um “Até que enfim”<br />
e se vira. Ana está superdiferente, o<br />
que ela fez hoje? Gente, ela está mais<br />
alta! Bem mais alta! “Amei, amiga.<br />
Você deveria usar essa altura sempre,<br />
é a sua cara!”<br />
A noite transcorre animada. Gente de<br />
todos os lugares do mundo. Conheceu<br />
duas escocesas recém-casadas e<br />
já marcou de esquiar com elas no sábado.<br />
Vai se meter na lua de mel das<br />
duas, que cara de pau! Mas Susana<br />
nunca esquiou e achou que a experiência<br />
seria interessante. Estão decidindo<br />
sobre a melhor paisagem. As<br />
meninas sugeriram a Suíça mesmo. Já<br />
que é para esquiar, que seja em grande<br />
estilo. Marcado.<br />
Do outro lado da sala, um rapaz oriental<br />
de 30 e poucos anos chama a atenção de<br />
Susana. Ele sorri e se aproxima. Quando<br />
foi a última vez que conversou em<br />
japonês? Não se lembra. Mas o idioma<br />
ainda está armazenado na memória.<br />
O papo flui e a noite acontece, divertida<br />
e cheia de experiências. Takashi<br />
é um artista plástico que já expôs seu<br />
trabalho no mundo inteiro. Mostra sua<br />
última obra, um mural de 10 metros de<br />
altura, com um haicai escrito em letras<br />
desconcertantes. Admirando a pintura<br />
estampada em uma das esquinas<br />
de Tóquio, Susana se perde refletindo<br />
sobre os versos curtos. Fernanda se<br />
aproxima. Depois Antônio. De repente,<br />
um grupo se reúne em volta do mural<br />
do Takashi, que não perde tempo: traz<br />
a experiência para o centro da sala e<br />
transforma a figura chapada em uma<br />
escultura 3D simplesmente ma-ra-vi-<br />
-lho-sa! As imagens invadem o recinto<br />
e se movimentam, misturando-se aos<br />
versos do haicai de forma harmoniosa<br />
e inebriante. Passam horas se divertindo,<br />
interagindo, entrando e saindo dos<br />
volumes criados com cores e sombras.<br />
Seriam tentáculos? Talvez um líquido<br />
psicodélico. Takashi é genial. Susana<br />
poderia ficar a noite toda, mas precisa<br />
trabalhar dali a algumas horas. Marca<br />
um tour pelas obras que Takashi escolheu<br />
e um encontro na semana seguinte.<br />
Um passeio pela Rússia, Romênia<br />
com final na África do Sul. “Nossa,<br />
como ele foi parar na África do Sul?”,<br />
pensa, se divertindo.<br />
A cena toda se apaga. A sala, antes<br />
enorme, é reduzida ao quartinho alugado<br />
de Susana. Cama, mesa de cabeceira<br />
e uma garrafa de água. Deita-se<br />
pensando nos esquis e nas montanhas<br />
que vai descer no sábado. Pensa na arte<br />
e nos versos do Takashi. Como vai ser<br />
bacana conhecer a Romênia na companhia<br />
de um artista como ele. Dorme.<br />
Não ouviu o despertador. “Me atrasei<br />
de novo, Carlos vai me matar.” Não dá<br />
tempo de mais nada, a reunião vai começar.<br />
Senta-se na cama e aperta o<br />
preset trabalho. O escritório aparece,<br />
cheio de gente, de cores, de vida. Vinte<br />
e dois de abril de dois mil e trinta e seis.<br />
Nove horas e seis minutos da manhã.<br />
Ela veste calça jeans e uma camisa descolada.<br />
Os olhos castanhos e vivos não<br />
demonstram o sono.<br />
“Vamos começar, gente? Atrasei um<br />
pouquinho, mas já cheguei.” Ana traz<br />
um café, não fala nada, apenas sorri.<br />
Bom dia, São Paulo!<br />
Alessandra Lotufo é diretora de<br />
comunicação e inovação da Bossa.etc<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 21<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 20
[GENTE COM BOSSA]<br />
A mentira que<br />
transforma<br />
A arte diverte, emociona, inspira, educa, provoca. Aquela<br />
cena impactante na peça de teatro, o refrão da música que<br />
desperta saudade, o filme ou o livro certo no momento certo,<br />
tudo isso pode desencadear um movimento interno capaz de<br />
se expandir a ponto de mudar vidas, tanto do artista quanto<br />
de quem aprecia. “A arte é uma mentira que nos faz perceber<br />
a verdade”, disse o genial Pablo Picasso. A arte, enfim, é<br />
transformadora.<br />
Os personagens que estrelam a oitava edição da revista<br />
Et cetera aprenderam (e ensinam) a potência da arte. Na juventude,<br />
Preto Zezé passava muito tempo na rua, “mais do que<br />
devia”, em suas palavras. Mas a arte não brinca em serviço.<br />
Em depoimento à seção Com a Palavra…, o artista, empresário,<br />
ativista e uma das maiores lideranças globais pelas favelas<br />
conta que se descobriu negro por volta dos 15 anos, quando<br />
ouviu a música Negro Limitado, do Racionais MC’s. “Era uma<br />
voz falando comigo, contando minha história e o que eu sentia.”<br />
O hip hop consolidou sua identidade e foi além: “Entendi<br />
que precisava ler mais, estudar mais, me politizar”. Já Dora<br />
Morelenbaum nasceu e cresceu envolvida pela musicalidade<br />
que moldou sua identidade. Filha dos músicos Jaques e Paula<br />
Morelenbaum, Dora acompanhava os pais em shows e turnês<br />
pelo mundo ainda pequena. Com tanta vivência artística, a<br />
cantora e compositora tornou-se um dos mais promissores<br />
nomes da nova geração da MPB.<br />
Foi a timidez que levou a menina Daniella Maria Giusti Barra<br />
para as aulas de teatro, mas o talento para o humor pavimentou<br />
a estrada até o sucesso, e a tímida Daniella se tornou a hilária<br />
Dani Calabresa. Aos 40 anos, a atriz e comediante aprendeu<br />
a lidar com os percalços na vida pessoal e profissional e a<br />
rir de si mesma. “Quase tudo que acontece no meu cotidiano<br />
vira material de trabalho”, diz. A timidez também não foi páreo<br />
para a veia artística de Jão. Ele busca inspiração na arte<br />
de ídolos do passado, como Cazuza e Renato Russo, para levar<br />
seu talento às novas gerações. Basta perguntar aos fãs desse<br />
artista de 27 anos para entender a força de uma canção.<br />
Impossível também ficar indiferente diante das obras de<br />
larga escala de Eduardo Srur. O artista plástico recorre a intervenções<br />
urbanas criativas e ousadas para provocar reflexões<br />
sobre a relação da sociedade com o meio ambiente. Nas<br />
águas, nas ruas ou no alto da fachada de um prédio, a arte<br />
de Eduardo Srur bota o dedo na ferida e visa impulsionar o<br />
despertar para questões urgentes e incômodas.<br />
E alguém duvida que cozinhar é uma forma de arte? O talento<br />
para compor aromas, brincar com ingredientes e servir<br />
com amor vem de berço para a chef Manuelle Ferraz, que comanda<br />
o premiado restaurante A Baianeira, em São Paulo. Ela<br />
tentou enveredar por outros caminhos, chegou a se formar<br />
em direito, mas uma importante mudança na rotina a puxou<br />
de volta para a arte dos sabores.<br />
A jornada pela trajetória dos convidados desta edição da revista<br />
começa pela seção Q&A Etc., com a entrevista da psicanalista<br />
Vera Iaconelli sobre etarismo, um tema tão em voga<br />
que afeta milhões de brasileiros. A especialista explica como<br />
a discriminação baseada na idade reflete uma visão equivocada<br />
da sociedade a respeito do envelhecimento, de que maneira<br />
ela prejudica homens e mulheres e o que as empresas<br />
e nós, indivíduos, podemos fazer para prevenir e combater<br />
essa forma de preconceito. Aprender sobre o comportamento<br />
humano e o que pensa a sociedade podem não ser manifestações<br />
artísticas, mas estimulam o autoconhecimento, que,<br />
assim como a arte, tem um enorme poder transformador.<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 23<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 22
[Q&A ETC.]<br />
Foto: Renato Parada<br />
Como podemos definir o<br />
etarismo?<br />
O etarismo é o preconceito ligado à idade.<br />
Quem pratica essa discriminação<br />
supõe que uma pessoa com certa idade<br />
perde habilidades e ganha deficiências.<br />
O etarismo mostra a tentativa de imputar<br />
valores negativos na diferença entre<br />
sujeitos, em vez de perceber o valor<br />
das pessoas. Não tem problema falar<br />
que alguém é velho, desde que o discurso<br />
não traga uma intenção pejorativa.<br />
Mas a questão tem evoluído. Hoje<br />
temos mais ferramentas para debater<br />
e compreender o problema do que tínhamos<br />
há algumas décadas.<br />
O etarismo é reflexo de uma<br />
sociedade que valoriza a<br />
juventude e o corpo “perfeito”?<br />
Ele é um sintoma de uma sociedade<br />
que tem medo do velho. O que está<br />
em questão é a morte, a finitude. Os<br />
velhos lembram os jovens que vamos<br />
todos morrer um dia. E isso incomoda<br />
muito. Quando somos jovens, não<br />
pensamos na morte. Mas, em algum<br />
momento, essa compreensão chega.<br />
Uma pessoa mais jovem que destrata<br />
um velho revela nela uma imaturidade<br />
em lidar com o fato de que ela mesma,<br />
um dia, vai ser velha e que seu corpo<br />
vai mudar.<br />
O etarismo impacta igualmente<br />
homens e mulheres?<br />
que for necessário, com cosméticos e<br />
cirurgias, para disfarçar a idade. O segundo<br />
ponto tem a ver com o papel socialmente<br />
construído de a mulher ser<br />
provedora de filhos, e ela precisa ser<br />
jovem para ser fértil e gerar uma prole.<br />
Quando sai do período fértil, perde sua<br />
utilidade. Já o homem, quando sai da<br />
juventude, ganha mais valor porque é<br />
visto como alguém que teve mais tempo<br />
de acumular riquezas.<br />
A dificuldade em lidar com o<br />
envelhecimento afeta as relações<br />
afetivas?<br />
Um homem velho ainda é paquerado;<br />
já as mulheres velhas são ignoradas.<br />
A mulher não pode ser velha, solteira<br />
e ainda estar buscando amor ou sexo.<br />
Mas o afeto no mundo contemporâneo<br />
já está muito empobrecido em vários<br />
sentidos, e o etarismo vem como<br />
um fator extra na equação. Ninguém<br />
mais quer se arriscar. Querem uma<br />
companhia, mas não querem pagar o<br />
preço, que é se abrir, mostrar fragilidades,<br />
estar disponível à mudança e<br />
à crítica. Daí inventam qualquer desculpa<br />
para não se relacionar ou para<br />
terminar uma relação. E a idade vem<br />
como uma dessas desculpas. Os velhos<br />
têm uma vantagem nesse sentido.<br />
São de uma geração mais propensa a<br />
se encontrar, a se arriscar. Os jovens<br />
estão mais seletivos, assustados e,<br />
portanto, mais solitários.<br />
futuro, mas não encontra suporte. E as<br />
que optam por focar apenas na carreira<br />
depois também são julgadas quando<br />
saem de seu período fértil e são vistas<br />
como descartáveis.<br />
Como as organizações podem<br />
combater o etarismo?<br />
As empresas precisam criar uma cultura<br />
interna real que valorize o velho.<br />
Os mais velhos precisam ter chance de<br />
mostrar que pode haver uma troca de<br />
conhecimento. O jovem pode ter mais<br />
sabedoria para lidar com uma nova<br />
tecnologia, mas ele é de uma geração<br />
menos preparada para encarar críticas<br />
e frustrações, pois acredita que<br />
todos os resultados devem ser imediatos.<br />
Os mais velhos podem ensinar<br />
a ter paciência, a lidar com ansiedades<br />
e angústias.<br />
Você já sofreu preconceito<br />
etário?<br />
Já passei por algumas situações. Se<br />
vou falar com pessoas jovens, por<br />
exemplo, elas me subestimam, acham<br />
que vão falar com alguém chato, que<br />
não tem nada de interessante a dizer.<br />
Também acontece de uma atendente<br />
de loja me oferecer roupas que ela acha<br />
que é “de velha”, sem antes perguntar<br />
qual meu estilo. E também tem aquilo<br />
de a pessoa não saber como me tratar.<br />
Ela não quer ofender, daí não sabe se<br />
usa “senhora” ou “você”.<br />
“A sociedade tem<br />
medo do velho”<br />
Quando veio a público a informação de que a escritora Lygia Fagundes Telles era<br />
cinco anos mais velha do que revelava <strong>–</strong> ela tinha 103 anos quando morreu, em abril<br />
deste ano, não 98 <strong>–</strong>, a psicanalista Vera Iaconelli abordou a questão do preconceito<br />
de idade, principalmente contra mulheres, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo.<br />
O etarismo é um assunto atual e relevante, e o texto da psicanalista teve grande<br />
repercussão. Vera é doutora em psicologia pela USP, diretora do Instituto Gerar de<br />
Psicanálise e autora de Mal-Estar na Maternidade e Criar Filhos no Século 21. Em entrevista<br />
à Et cetera, ela explica como o etarismo afeta a sociedade, a melhor maneira<br />
de combatê-lo e como ela, aos 57 anos, encara a discriminação etária.<br />
A mesma lógica que trata objetos como<br />
descartáveis e cria a obsolescência<br />
programada é aplicada aos seres humanos.<br />
Todas as pessoas velhas <strong>–</strong> homens<br />
e mulheres <strong>–</strong> vão ficando espremidas<br />
por preconceitos. Mas para as<br />
mulheres isso é muito pior.<br />
Por quê?<br />
Em parte, porque questões como juventude<br />
e aparência sempre foram cobranças<br />
mais pesadas sobre elas. Um<br />
homem de cabelos grisalhos é elegante,<br />
enquanto uma mulher de cabelos<br />
brancos é considerada feia, xingada de<br />
bruxa. A mulher que envelhece tem a<br />
cobrança social de gastar o dinheiro<br />
As mulheres também são mais<br />
prejudicadas pelo etarismo no<br />
mercado de trabalho?<br />
Sim. Os homens sofrem mais com o<br />
etarismo na carreira perto da terceira<br />
idade, aos 50 ou 60 anos. Se perdem<br />
o emprego, têm dificuldade para se<br />
recolocar. Já as mulheres sofrem com<br />
o etarismo muito antes. Ainda jovens,<br />
elas pagam o preço da escolha de ter filhos.<br />
Um chefe que reclama que ela vai<br />
tirar licença-maternidade, outro que<br />
não quer contratar uma profissional se<br />
ela tiver planos de ser mãe. A sociedade<br />
não quer pagar a conta da próxima<br />
geração e coloca tudo sobre a mulher.<br />
Ela é obrigada a gerar os filhos desse<br />
Como você reage?<br />
Eu não levo a mal, acho engraçado.<br />
O que fazer para não reproduzir<br />
esse comportamento<br />
preconceituoso no dia a dia?<br />
Podemos tomar cuidado para não infantilizar<br />
os velhos. Temos mania de<br />
tratá-los como crianças, como se eles<br />
não tivessem habilidades, conhecimentos<br />
e histórias para oferecer. Também<br />
tem aquela coisa de a pessoa tentar<br />
elogiar falando “Nossa, você nem<br />
parece ter essa idade”. Afinal, qual a<br />
cara de alguém de 60 anos?<br />
Entrevista concedida a Guilherme Dearo<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 25<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 24
[COM A PALAVRA…]<br />
“O racismo te adoece se você<br />
não souber transformar a<br />
revolta em ação”<br />
O hip hop deu<br />
a Preto Zezé a<br />
autoconsciência<br />
para mudar seu<br />
destino. Neste<br />
depoimento à<br />
Et cetera, o artista,<br />
empresário, ativista<br />
e uma das maiores<br />
lideranças globais<br />
pelas favelas conta<br />
sua história<br />
Nasci em Fortaleza, em 1976. Eu era o<br />
mais velho de cinco irmãos. Minha mãe<br />
era doméstica e meu pai, pintor. Cresci<br />
na favela de Quadras e, naquela época,<br />
o povo de classe média já tinha muito<br />
preconceito, dizia que a comunidade<br />
fedia, que ali só tinha violência. No<br />
Nordeste, existe essa realidade de ter<br />
que escolher entre trabalhar e estudar.<br />
As notas da escola não resolvem algumas<br />
coisas da vida que as notas de dinheiro<br />
resolvem. Mas eu ainda tive um<br />
pouco de sorte porque consegui ficar<br />
um tempo maior estudando. Trabalhava<br />
de madrugada, lavando carros, e estudava<br />
à tarde. Mas eu passava muito<br />
tempo na rua, mais do que devia. Ali<br />
tive muitos aprendizados e vivências,<br />
mas também vi a violência de perto.<br />
Tudo mudou quando conheci os bailes<br />
funk, o pixo e, depois, o rap e o hip<br />
hop, lá no começo dos anos 1990. Eu<br />
me descobri negro por volta de 15 anos,<br />
ouvindo a música Negro Limitado, do<br />
Racionais MC’s. Era uma voz falando<br />
comigo, contando minha história e o<br />
que eu sentia. Homens da Lei, do Thaíde,<br />
também me marcou muito. Falava da<br />
violência da polícia, e eu via isso na minha<br />
vida. Comecei a reconfigurar algumas<br />
coisas na mente, principalmente<br />
minha identidade negra. Entendi que<br />
precisava ler mais, estudar mais, me<br />
politizar. Comecei a olhar o mundo de<br />
outra forma e a organizar a confusão<br />
da minha cabeça.<br />
Parece loucura falar em se descobrir<br />
negro, mas é assim mesmo. A dinâmica<br />
do racismo é muito eficiente. Todo<br />
brasileiro diz que existe racismo no<br />
Brasil, mas ninguém fala que é racista.<br />
Então onde ele está? O processo de se<br />
descobrir negro é muito doloroso. Volta<br />
um filme na sua cabeça. Lembranças<br />
de coisas que te aconteceram e só<br />
agora você entende que foi racismo. As<br />
brincadeiras que faziam na escola, mas<br />
você não dava risada. A preferência da<br />
polícia em sempre te enquadrar. Nessa<br />
hora você precisa tomar cuidado. É<br />
fácil ficar tomado pelo ódio. O racismo<br />
te adoece se você não souber transformar<br />
a revolta em ação.<br />
No Brasil, o negro que quebra as expectativas<br />
dos brancos é alvo de um<br />
racismo muito agressivo. Acham que a<br />
gente sempre deve ter um papel subserviente.<br />
Quando comecei a me colocar<br />
em posições de visibilidade, passei<br />
a sentir isso todos os dias. O desejo<br />
de transformar a realidade me levou<br />
a criar o Movimento Cultura de Rua,<br />
pensando na produção cultural dentro<br />
das favelas cearenses. E então conheci<br />
a Central Única das Favelas, fundada<br />
pelo Celso Athayde. A Cufa estava<br />
transformando a realidade de muitas<br />
favelas com empreendedorismo, educação,<br />
cultura. Isso me marcou, eu queria<br />
fazer parte.<br />
E foi nessa época que mudei também:<br />
de Francisco José Pereira de Lima para<br />
Preto Zezé. Decidi fazer isso porque é<br />
uma maneira de tirar o estigma da palavra<br />
preto e virar o jogo contra quem<br />
usa isso como racismo. É a construção<br />
e afirmação de identidade. As pessoas<br />
confundiam e pediam para falar com o<br />
“Pedro”. E eu corrigia: “É Preto”.<br />
Comecei a me envolver com a Cufa e,<br />
em 2004, me tornei coordenador estadual<br />
da Cufa Ceará. Depois, fui presidente<br />
nacional da organização. Entre<br />
2015 e 2019, mais um desafio enorme<br />
da minha vida: cuidar da Cufa Global,<br />
em Nova York. Ficava indo e voltando<br />
dos EUA a cada três meses, trabalhando<br />
no nosso escritório no Bronx.<br />
Nessa época, perdi um filho adolescente<br />
pra violência. O Jonas, em agosto de<br />
2015. Ele tinha 17 anos. Você está no<br />
meio da guerra, mas nunca acha que<br />
ela vai te atingir. Foi muito difícil. Fiquei<br />
desacreditado da luta. Cheguei a<br />
pensar que o que eu estava fazendo<br />
não tinha sentido, sem fé nem motivação.<br />
A energia para seguir em frente<br />
só voltou quando o Athayde me deu o<br />
desafio de cuidar da Cufa Global. Percebi<br />
que não poderia parar. Hoje, tenho<br />
uma companheira e um filho pequeno,<br />
o José, de 6 anos, que me motivam todos<br />
os dias.<br />
Em 2020, saí do global da Cufa e voltei<br />
para o Brasil, quis cuidar da direção nacional<br />
por causa da pandemia. A fome<br />
e a miséria aumentaram muito, e a gente<br />
precisava agir. Pela primeira vez, a<br />
Cufa precisou trabalhar com arrecadação<br />
de comida. Os últimos anos foram<br />
desafiadores, mas mostraram que a<br />
gente é muito forte. Conseguimos mobilizar<br />
mais de 113 milhões de reais.<br />
Não sei qual seria meu futuro se não<br />
tivesse encontrado o hip hop e a Cufa.<br />
Dos meus 30 amigos da época, sobraram<br />
uns cinco ou seis. Os outros estão<br />
presos ou morreram, e esses poderiam<br />
ter sido meus destinos. Mas tive apoio<br />
e orientação. Do rap. Da minha mãe,<br />
dona Fátima. E do Athayde, minha<br />
grande bússola. Meu destino acabou<br />
sendo a Cufa, sete discos, dois livros,<br />
uma família. Também tenho dois livros<br />
a caminho, quase prontos. Um vai falar<br />
sobre a atuação da Cufa durante a<br />
pandemia. O outro, eu estou escrevendo<br />
com a Djamila Ribeiro, vai falar de<br />
constrangimento pedagógico contra o<br />
racismo.<br />
Para o futuro, sonho em ajudar mais o<br />
Brasil. Deixá-lo mais preto, sem esse<br />
amontoado de injustiça e mágoa por<br />
todos os lados. Fico muito preocupado<br />
com a exposição dos jovens à violência.<br />
Tem mais armas circulando e também<br />
mais ansiedade e ambição. Pra essa<br />
juventude que quer transformar, quer<br />
agir, eu digo três coisas: precisa ter<br />
conhecimento, não pode perder a referência<br />
de onde veio e tem que pensar<br />
sempre na coletividade.<br />
Depoimento dado a Guilherme Dearo<br />
Foto: Daniel de Araújo Ferreira<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 26
[GUARDE ESTE NOME]<br />
Dora<br />
Morelenbaum:<br />
O frescor da nova voz da MPB<br />
Por Sérgio Martins<br />
Foto: Lucas Nogueira<br />
Quando sai o primeiro disco? Essa é a<br />
pergunta que todos os fãs de MPB deveriam<br />
fazer a Dora Morelenbaum. Os<br />
primeiros passos como cantora antecipam<br />
um sucesso justificável. Depois<br />
do celebrado EP Vento de Beirada, lançado<br />
no ano passado, e um dueto com<br />
Di Melo, talento do soul brasileiro, a<br />
revelação do canto se uniu a Zé Ibarra,<br />
Lucas Nunes e Julia Mestre, jovens<br />
talentos da MPB atual, e formou o grupo<br />
Bala Desejo, cuja estreia chegou às<br />
plataformas de streaming no início de<br />
<strong>2022</strong>. Dora, a incansável, ainda realiza<br />
esporádicas performances solo.<br />
A cantora de 26 anos é filha de Jaques<br />
e Paula Morelenbaum, casal de alta patente<br />
da música brasileira. Ele é maestro<br />
e compositor, criador do grupo de<br />
rock progressivo A Barca do Sol e com<br />
décadas de serviços prestados a Caetano<br />
Veloso. Já Paula fez parte do grupo<br />
vocal Céu da Boca, e sua carreira solo<br />
é pontuada por discos nos quais uniu<br />
a bossa nova aos ritmos eletrônicos.<br />
Ah, e o mais importante: os dois integraram<br />
a Banda Nova, de Tom Jobim.<br />
“O sobrenome dos meus pais me abre<br />
muitas portas e trouxe referências<br />
musicais, mas não sinto nenhum tipo<br />
de pressão em relação a isso”, diz ela.<br />
As tais referências, claro, estão entre<br />
as melhores. Dora tinha 5 anos de idade<br />
quando acompanhou Jaques e Paula<br />
em uma turnê pelo Japão. Aos 12, se<br />
encantou ao presenciar um dueto dos<br />
pais em Por Toda Minha Vida, de Tom Jobim.<br />
“Foi a realização do amor. O amor<br />
pela música e o amor que um sentia<br />
pelo outro.”<br />
Apesar da veia musical, Dora inicialmente<br />
estudou arquitetura. “Queria<br />
trabalhar com música, mas tinha essa<br />
ingenuidade de fazer aquilo virar um<br />
ofício.” Embora gostasse de aulas de<br />
história da arte, ela se transferiu para<br />
o curso de Música Popular Brasileira<br />
<strong>–</strong> Arranjo Musical, na Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro. Mas o gosto<br />
pela construção, alimentado no curso<br />
de arquitetura, não foi de todo abandonado.<br />
Hoje, Dora constrói melodias<br />
com a habilidade e disciplina de quem<br />
projeta um edifício. “Assim como a música,<br />
a arquitetura tem de ser, muitas<br />
vezes, pensada antes de ser vivida”,<br />
comenta a cantora.<br />
As amizades musicais nasceram ainda<br />
no ensino médio, quando convivia com<br />
Lucas Nunes (de quem foi namorada),<br />
Zé Ibarra e Tom Veloso <strong>–</strong> os três<br />
formariam, posteriormente, a banda<br />
Dônica. Veloso, aliás, é parceiro de seu<br />
primeiro single, a singela Dó a Dó, lançada<br />
no fim de 2020 e parte de Vento<br />
de Beirada. A balada traz arranjos<br />
de cordas do pai, Jaques, e traz Dora<br />
acompanhada por uma orquestra de<br />
20 músicos. “Caí em prantos. Tenho<br />
uma relação muito forte com a música<br />
erudita, de orquestra”, comenta ela, admiradora<br />
de Ravel, Debussy e Chopin,<br />
compositores eruditos que estão entre<br />
os prediletos dos bossa-novistas.<br />
Bala Desejo, que Dora formou ao lado<br />
de Nunes, Ibarra e Julia, nasceu do isolamento<br />
provocado pela pandemia. Os<br />
quatro foram morar na casa dos pais<br />
de Julia, em Copacabana, onde passaram<br />
a criar músicas e participar das<br />
lives organizadas pela cantora Teresa<br />
Cristina. “Ela ligava e dizia qual autor<br />
seria homenageado naquela noite. A<br />
gente então ensaiava e aprontava tudo<br />
para a noite.” O sucesso das participações<br />
rendeu ao grupo um convite para<br />
tocar na edição 2021 do festival Coala,<br />
que equilibra artistas alternativos e<br />
grandes nomes da MPB, e, por fim, a<br />
sugestão de um disco do grupo <strong>–</strong> que<br />
foi sendo burilado ao longo do ano<br />
passado em estadias do quarteto em<br />
um sítio em Barbacena, Minas Gerais,<br />
numa casa em Santa Teresa, no Rio<br />
de Janeiro, e na própria residência de<br />
seus integrantes. O processo de confecção<br />
do álbum forçou uma pequena<br />
mudança no método de criação da<br />
cantora. Geralmente, ela cria a melodia<br />
e a harmonia para depois encontrar a<br />
letra adequada. No Bala Desejo, Julia<br />
assumiu a função de letrista principal<br />
e o trio restante colaborava nos versos<br />
conforme as canções eram criadas.<br />
“Às vezes, Zé [Ibarra] soltava palavras<br />
aleatórias e eu tinha de organizar o que<br />
estava sendo dito”, explica.<br />
Dora integra uma geração de compositores<br />
que percorrem um estilo mais,<br />
digamos, tradicionalistas da MPB. Nomes<br />
como ela, seus parceiros de Bala<br />
Desejo e Gab Lara optam por uma estética<br />
mais elaborada do que a facilidade<br />
de combinar música brasileira e indie<br />
rock. “Não existe uma intenção de ser<br />
mais burilado. Isso se deve às referências<br />
das coisas que a gente escuta”,<br />
justifica. A opção pela melodia mais intrincada<br />
não é, nem de longe, uma atitude<br />
esnobe ou pouco comercial, visto<br />
que as músicas possuem qualidades<br />
suficientes para tocar em rádio <strong>–</strong> veículo<br />
que, aliás, Tom Jobim frequentou<br />
durante toda a sua trajetória artística.<br />
“Ele era pop em algum lugar, assim<br />
como Caetano Veloso e Gilberto Gil”,<br />
aponta Dora.<br />
A cantora tem feito performances<br />
aqui e ali. Elas trazem canções de sua<br />
autoria, material do Bala Desejo e músicas<br />
que podem fazer parte de seu<br />
disco de estreia. “Tenho pelo menos<br />
oito canções garantidas”, diz. Mas, afinal,<br />
quando sai o disco? “Todo mundo<br />
quer saber, mas vocês foram os únicos<br />
que perguntaram”, brinca Dora. A<br />
ousadia da Et cetera valeu a pena: o<br />
processo de gravação se inicia na segunda<br />
metade de <strong>2022</strong> e o álbum sai<br />
no início de 2023.<br />
OUÇA DORA MORELENBAUM<br />
OUÇA BALA DESEJO<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 29<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 28
Nome: Daniella Maria Giusti Barra (Dani Calabresa)<br />
Idade: 40 anos<br />
Profissão: atriz e comediante<br />
Cidade onde nasceu: São Bernardo do Campo/SP<br />
A princesa<br />
Calabresa<br />
Por Simone Costa<br />
Ela desistiu de ser desenhista da Disney e se<br />
tornou uma das mais talentosas humoristas<br />
brasileiras. A paixão de Dani Calabresa pelas<br />
princesas não virou profissão, mas rendeu<br />
pedido de casamento no castelo da Cinderela<br />
Foto: Jairo Goldflus<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 31<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 30
Uma família muito unida<br />
“Quase tudo que acontece no meu<br />
cotidiano vira material de trabalho.<br />
Passo vários perrengues e desafios e<br />
penso ‘Isso ainda vai virar piada, vou<br />
conseguir transformar essa situação<br />
e as pessoas vão rir disso”<br />
O<br />
ator que interpretaria o desajeitado Dunga em uma encenação infantil de<br />
Branca de Neve e os Sete Anões não apareceu, e a menina de 5 anos que acompanhava<br />
a irmã mais velha, atriz principal da peça, foi convocada para entrar<br />
na pele do anão mudo. Ela relutou, chorou de nervoso, mas, diante da insistência da<br />
irmã, acabou cedendo. Como o figurino era grande demais para a atriz acidental, ela<br />
passou toda a apresentação ajeitando o gorro que teimava em escorregar da cabeça.<br />
A plateia, claro, caía na risada com a cena. Era a estreia de Daniella Maria Giusti<br />
Barra, a Dani Calabresa, na vida artística.<br />
“Eu me senti bem, gostei de fazer as pessoas rirem. Quando terminou, foi um misto<br />
de tensão e de vontade de fazer tudo de novo. Já estava mordida pelo bichinho do<br />
teatro”, conta Dani. A responsável pela estreia atabalhoada de uma das principais<br />
humoristas brasileiras da atualidade é Fabiana, sete anos mais velha que a irmã. Ela<br />
resolveu levar Dani para as aulas de teatro por causa da timidez da caçula, que se<br />
escondia atrás da mãe na presença de estranhos. “Sempre fui tímida. Amo fazer teatro,<br />
me concentro, mas até hoje não perdi a timidez”, revela. Talvez não tenha perdido,<br />
mas aprendeu a driblá-la já na escola: era a aluna que sabia imitar os professores.<br />
“Fazia só para as amigas mais próximas. Quando a notícia de que eu imitava<br />
alguém se espalhava pela classe inteira, eu ficava desesperada. Mas minha irmã me<br />
incentivava a fazer.” Luciana Gimenez, Hebe Camargo e Narcisa Tamborindeguy<br />
são algumas das imitações hilárias que Dani faz atualmente, agora sem tanto pudor.<br />
Mas, mais do que melhorar a desenvoltura social de Dani, o empurrão de Fabiana<br />
plantou a semente de uma carreira de sucesso. E versátil. Hoje, aos 40 anos, Dani<br />
Calabresa é atriz, comediante, roteirista, apresentadora, dubladora… Ufa! E estreou<br />
recentemente como diretora de teatro com a comédia E Aí, Deu Certo?, monólogo do<br />
amigo Rodrigo Sant’Anna. “Sempre agradeço à minha irmã porque eu precisava de<br />
alguém que me incentivasse”, diz.<br />
Além do incentivo da irmã, Dani contou com a veia cômica herdada da mãe, Marlene.<br />
Ela divertia as filhas imitando o síndico do prédio ou alguma vizinha da família<br />
sempre que voltava de uma reunião de condomínio. “Minha mãe fazia um verdadeiro<br />
show pra nós, e eu morria de rir. Quando percebi, estava fazendo o mesmo para<br />
as minhas amigas”, diz.<br />
Tanto Marlene quanto Cláudio, pai de Dani, têm grande papel no sucesso da humorista.<br />
O apoio teve, inclusive, aspectos logísticos: como Dani sempre teve <strong>–</strong> e ainda<br />
tem <strong>–</strong> medo de dirigir sozinha, o casal levava a filha para cima e para baixo em dias<br />
de testes, apresentações ou entrevistas. Mas o principal suporte era emocional. Eles<br />
sempre estiveram presentes, da ocasião em que foram os únicos espectadores de<br />
um show à primeira entrevista da humorista no badalado programa do apresentador<br />
Jô Soares, em 2009. “Tenho uma relação de muito amor e proximidade com<br />
minha família. Preciso dividir tudo com eles. Se vou a um lugar maravilhoso, mando<br />
foto no grupo da família. Se como um prato muito gostoso, já quero levar minha mãe<br />
para experimentar”, conta Dani.<br />
Ela é tão apegada à família que morou na casa dos pais até se casar com o comediante<br />
Marcelo Adnet, em 2010, aos 28 anos. Marlene e Cláudio nasceram em São Paulo,<br />
mas o casal se mudou para a vizinha Santo André antes da chegada das filhas, e a<br />
família vive lá até hoje. Portanto, foi nessa cidade do ABC paulista que Dani viveu<br />
boa parte da vida. “Eu amo Santo André, fui muito feliz lá. Estudei teatro e fiz várias<br />
peças na cidade.”<br />
O batismo como Calabresa<br />
Embora tenha sido picada pelo bichinho do teatro ainda na<br />
infância, Dani trilhou outros caminhos antes de seguir a carreira<br />
como atriz. “Eu sonhava em viver do teatro, mas era<br />
muito difícil conseguir patrocínio. A gente colocava dinheiro<br />
na peça, levava peruca de casa e no dia da apresentação tinha<br />
três parentes de cada ator lá sentados”, recorda, sem perder o<br />
bom humor. Foi vendedora de seguros, mas não vestia a camisa,<br />
digamos, da empresa: se empenhava em bater a meta de<br />
vendas; no entanto, depois de concluir a transação, ensinava<br />
os clientes idosos a cancelar a compra. Com talento nato para<br />
o desenho e fã declarada do universo Disney, nutria o sonho<br />
de se tornar desenhista da empresa, ilustrando as princesas<br />
que ela tanto amava. Decidiu cursar publicidade na faculdade<br />
Belas Artes de São Paulo, por acreditar ser um bom embarque<br />
na jornada até os estúdios da Walt Disney. Até conseguiu<br />
alguns estágios na área, mas nenhum no setor de criação de<br />
uma agência publicitária. “Adorei a faculdade, mas peguei<br />
uma fase de transição em que não adiantava só desenhar<br />
bem. Precisava saber mexer no Photoshop e num monte de<br />
novos aplicativos, mas eu não tinha nem computador”, conta.<br />
Em 2002, uma viagem de férias com Fabiana para a Ilha de<br />
Itaparica, na Bahia, abriria uma nova porta no percurso profissional<br />
de Dani, a um ano de ela se formar na faculdade.<br />
Hospedadas no resort Club Med, as irmãs se tornaram amigas<br />
dos monitores <strong>–</strong> os chamados GO, gentil organisateur <strong>–</strong>,<br />
responsáveis pela organização dos jogos e atividades, e acabaram<br />
convidadas para participar dos shows. Gostou tanto<br />
que, em 2004, decidiu repetir a experiência. Desta vez, passou<br />
um ano inteiro conciliando o trabalho de GO, entretendo<br />
a criançada durante o dia, com as apresentações que fazia<br />
à noite no próprio resort. “Foi maravilhoso, me realizei. Ima-<br />
Com a irmã, Fabiana | foto: arquivo pessoal<br />
gina: eu estava acostumada a fazer teatro sem cenário, sem<br />
figurino. No resort, tinha a produção toda”, conta. E saiu dali<br />
o apelido que se tornaria seu nome artístico. O sotaque carregado<br />
de influência dos avós italianos soava divertido para as<br />
crianças hospedadas no resort, vindas de diferentes partes<br />
do país, e elas começaram a chamá-la de tia Calabresa.<br />
De volta a São Paulo, Dani ingressou no curso de teatro musical<br />
da atriz e preparadora vocal Andrezza Massei. Nesse período,<br />
começaram a surgir os testes, eventos e peças infantis,<br />
mas a quantidade de trabalho era desproporcional ao dinheiro<br />
que entrava. “Eu fazia peças que pagavam 50 reais de cachê.<br />
Tinha dias em que fazia sessões às 10 horas da manhã, às 2 e<br />
às 4 da tarde para juntar 150 reais. Era muito perrengue, mas<br />
assim eu pagava o curso”, lembra. Com a ajuda de Andrezza,<br />
considerada pela comediante sua madrinha na profissão,<br />
Dani se preparou e conseguiu uma vaga de atriz substituta<br />
em um musical. Pouco depois, assumiu um papel fixo na produção.<br />
E ouviu mais de uma vez alguém da plateia perguntar:<br />
“Você é a Calabresa? Eu te conheci no resort”. E assim a “tia<br />
Calabresa” foi ganhando seu nome artístico.<br />
Em uma das conversas com a plateia após o espetáculo musical,<br />
uma moça sugeriu que Dani fizesse um teste para participar<br />
de um show de humor em cartaz na cidade. “Ela disse:<br />
‘Parece o Terça Insana [projeto teatral de humor com diversos comediantes<br />
que fazia enorme sucesso em SP à época], mas é mais<br />
pobrinho’”, relembra. A tal versão menos abastada do Terça<br />
Insana era o Deboshow, que estava promovendo uma competição<br />
para escolher seu novo integrante. Com personagens<br />
autorais e imitações, Dani venceu o concurso e passou a integrar<br />
o elenco fixo do espetáculo.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 33<br />
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Um anjo amigo<br />
Fase de escolhas<br />
“Você é um stand-up ambulante.” Foi<br />
com essa frase que o humorista Márcio<br />
Ribeiro (1964-2013), ex-apresentador<br />
do programa de TV infantil X-Tudo<br />
e um dos precursores do stand-up comedy<br />
no país, se referiu a Dani quando<br />
ela ainda lutava para sobreviver como<br />
atriz. Eles se conheciam havia alguns<br />
anos, e Márcio foi assistir à peça infantil<br />
em que ela atuava. O comentário<br />
do experiente comediante mexeu<br />
algumas engrenagens na cabeça<br />
da jovem atriz.<br />
A partir daquele momento, Dani começou<br />
a escrever textos de humor e<br />
mostrar a Márcio, considerado seu<br />
padrinho profissional. “Eu falava que<br />
não sabia fazer, mas ele respondia ‘Tá<br />
pronto, para de ser louca’”, diz Dani,<br />
antes de se emocionar por causa da<br />
ausência do amigo. “Ele não está mais<br />
aqui, dá tanta saudade…” Em 2006, ao<br />
lado de Márcio Ribeiro, Danilo Gentili,<br />
Fábio Rabin e Luiz França, Dani Ca-<br />
labresa estreou no grupo Comédia ao<br />
Vivo. “Minha vida mudou. Viajávamos<br />
o Brasil todo de ônibus fazendo<br />
shows, testando piadas, trocando textos.<br />
Eu me divertia muito, nem parecia<br />
trabalho”, diz.<br />
A maior exposição começou a abrir<br />
portas. Dani foi chamada para um teste<br />
no SBT e, em março de 2007, estreou<br />
no programa humorístico Sem Controle.<br />
Logo depois, uma aparição especial<br />
no Programa no Ratinho resultou no<br />
convite do apresentador Carlos Massa<br />
para uma participação fixa no Jornal da<br />
Massa, telejornal que mesclava notícias<br />
com quadros de humor. A passagem<br />
pelo canal de Silvio Santos, no entanto,<br />
foi mais curta do que ela esperava: oito<br />
meses depois, o dono da emissora paulista<br />
cancelou diversos programas de<br />
uma vez só. “Acabou o Jornal da Massa<br />
e o Sem Controle. Estava de peruca para<br />
gravar, tirei e fui embora tristinha porque<br />
eu amava trabalhar lá”, recorda.<br />
Enquanto lamentava a demissão, Dani<br />
via a porta seguinte abrir. Ou melhor,<br />
três portas. A primeira veio de uma<br />
ligação de Emílio Surita, radialista e<br />
apresentador do programa Pânico, a<br />
convidando para ser repórter do programa<br />
na Band. No mesmo período,<br />
o comediante Fábio Porchat a levou<br />
para participar de uma reunião com<br />
Maurício Sherman (1931-2019), então<br />
diretor do Zorra Total, humorístico da<br />
Rede Globo. “Ele queria que eu criasse<br />
uma personagem paulista com um<br />
sotaque bem carregado, como o meu,<br />
pra me colocar no programa”, conta.<br />
Em paralelo, Dani fez um teste para um<br />
programa piloto na MTV, uma paixão<br />
antiga que não estava em seu radar por<br />
ela não ter o perfil musical para trabalhar<br />
na emissora. “Quando o [Marcos]<br />
Mion entrou para fazer o Piores Clipes<br />
do Mundo, pensei: ‘Caramba, entrou um<br />
comediante, posso trabalhar na MTV’.<br />
Me deu esperança”, conta ela.<br />
Diante das três possibilidades, Dani<br />
deixou o coração falar mais alto. “Depois<br />
de vários testes na MTV, fui contratada<br />
para ganhar 300 reais”, diz. Ao<br />
lado dos apresentadores Marcos Mion<br />
e Cazé Peçanha, estreou em 2008 no<br />
programa de auditório Quinta Categoria,<br />
novidade no canal que deixava de<br />
exibir apenas conteúdo relacionado ao<br />
universo musical.<br />
No período em que permaneceu na<br />
emissora, de 2008 a 2012, participou<br />
de vários programas da casa, entre<br />
eles o Furo MTV, ao lado do humorista<br />
Bento Ribeiro, filho do escritor João<br />
Ubaldo Ribeiro. Sentia-se tão realizada<br />
que chegou a recusar uma nova opor-<br />
tunidade na gigante TV Globo. “A MTV<br />
tinha uma linguagem parecida com a<br />
que eu usava no stand-up. Lá, éramos<br />
como uma turma criativa de faculdade,<br />
com liberdade para testar. Foi muito legal,<br />
de verdade”, diz. “Eu tinha o sonho<br />
de ir para a Globo, mas queria me sentir<br />
preparada para essa grande mudança.”<br />
A trajetória de preparação incluiu uma<br />
passagem pelo CQC, da Band. Antes<br />
de dividir a bancada do programa com<br />
Marcelo Tas e Marco Luque, produzia<br />
reportagens nada convencionais pelas<br />
ruas do país. “Fazer entrevista na rua<br />
é difícil. As pessoas estão lá vivendo a<br />
vida delas e você pedindo para falarem,<br />
dançarem, passarem debaixo da cordinha.<br />
Foi um superdesafio”, diz.<br />
Em 2015, quase dez anos depois da estreia<br />
na televisão, Dani sentiu que era<br />
o momento de ter seu crachá da Globo.<br />
Encarnou vários papéis no Zorra Total,<br />
reviveu a icônica Catifunda, personagem<br />
de Zilda Cardoso, no remake da<br />
Escolinha do Professor Raimundo, e comandou<br />
o quadro CAT BBB na mais recente<br />
edição do Big Brother Brasil. Atualmente,<br />
ela comanda o podcast Posso<br />
Mandar Áudio?, em que apresenta dates<br />
ruins de famosos, como Xuxa, Mônica<br />
Martelli e Gil do Vigor. Os episódios, de<br />
apenas 15 minutos, estão disponíveis<br />
no site do Gshow, na Globoplay e nas<br />
principais plataformas de áudio. O impacto<br />
de trabalhar na maior emissora<br />
do país não passou despercebido. “É<br />
incomparável. Dá a sensação de que<br />
agora o Brasil está me vendo”, brinca,<br />
parafraseando o bordão dos participantes<br />
do BBB.<br />
Com Márcio Ribeiro, Fábio Rabin e Danilo Gentili | foto: arquivo pessoal<br />
“Acredito que todo processo de aprendizado tem<br />
momentos difíceis, e o mais importante é olhar para<br />
todos os cacos e ir colando. De preferência, com uma<br />
cola cheia de glitter para mostrar que a dor faz parte do<br />
crescimento e pode, sim, ser muuuuito bonita”<br />
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Recolhimento no auge<br />
Quando estreou o programa que leva seu nome no título, o Dani-se, ao lado de Pedroca<br />
Monteiro, no GNT, em março de 2021, a humorista acabava de sair de um<br />
período de reclusão. O caso de assédio moral e sexual envolvendo o ex-diretor do<br />
núcleo humorístico da TV Globo Marcius Melhem ganhou enorme repercussão nacional,<br />
levando Dani a se afastar dos holofotes. “Eu busquei ajuda na empresa em<br />
que trabalhava. Nunca procurei a imprensa. Nunca quis falar publicamente, sempre<br />
quis que aquele pesadelo acabasse sem nenhum alarde”, desabafa. Após a denúncia<br />
de Dani ao compliance da Rede Globo, outras mulheres acusaram Melhem de comportamento<br />
inadequado. O Ministério Público do Trabalho ajuizou uma ação civil<br />
pública por suposta omissão contra a Globo, e há também um inquérito policial em<br />
curso na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Em paralelo,<br />
corre na Justiça um processo do ex-diretor contra Dani Calabresa por danos morais<br />
e materiais. Todos os casos correm em segredo de justiça.<br />
O divórcio do humorista Marcelo Adnet, em 2017, também envolveu uma dolorosa<br />
exposição da vida privada <strong>–</strong> o casamento de sete anos terminou por causa da traição<br />
do marido. Nos dois episódios, segundo Dani, o trabalho a salvou. “Acredito que<br />
todo processo de aprendizado tem momentos difíceis, e o mais importante é olhar<br />
para todos os cacos e ir colando”, afirma. “De preferência, com uma cola cheia de<br />
glitter para mostrar que a dor faz parte do crescimento e pode, sim, ser muuuuito<br />
bonita”, responde, animada, em demonstração involuntária da força de seu bom<br />
humor. O trabalho, garante Dani, é seu antídoto para se livrar de sentimentos ruins.<br />
Mas como fazer comédia nos dias em que a vida não está bem? Ela se concentra, entra<br />
na personagem e deixa os problemas temporariamente de lado. “Tenho o retorno<br />
diário de que meu trabalho leva humor e leveza para a vida das pessoas. Então, é um<br />
remédio para mim e para os outros”, diz.<br />
Com o noivo, Richard Neuman, na Disney | foto: arquivo pessoal<br />
“Tenho o retorno diário de que meu trabalho leva humor e<br />
leveza para a vida das pessoas. Então, é um remédio para<br />
mim e para os outros”<br />
Fé no amor<br />
Depois de ter sido publicamente traída,<br />
ver sua vida amorosa exposta e sofrido<br />
a dor de uma separação, Dani chegou a<br />
afirmar, em entrevistas, que havia perdido<br />
a fé no amor. Mas essa descrença<br />
foi apagada quando, durante uma festa<br />
acompanhada dos colegas na Dança dos<br />
Famosos, quadro do Domingão do Faustão<br />
do qual a comediante participou em<br />
2018, ela conheceu o publicitário Richard<br />
Neuman. Em janeiro de 2020, o<br />
casal assumiu a relação e, pouco mais<br />
de um ano depois, Dani foi pedida em<br />
casamento. E o local escolhido pelo noivo<br />
não poderia ter sido mais romântico,<br />
pelo menos para a noiva: em frente ao<br />
castelo da Cinderela, na Disney. “Foi<br />
maravilhoso! Receber um pedido de<br />
casamento no meio da Disney, o lugar<br />
que amo, foi incrível! Um presente,<br />
uma alegria que não consigo nem<br />
verbalizar direito. Só posso dizer que<br />
sou muito feliz”, afirma.<br />
Entre os planos para o futuro, além de<br />
organizar um casamento (ainda sem<br />
data definida), está a estreia do filme<br />
O Palestrante, que ela fez com o amigo<br />
Fábio Porchat. A comédia, que tem no<br />
elenco nomes como Otávio Müller, Maria<br />
Clara Gueiros e Antonio Tabet, chega<br />
aos cinemas em agosto. Dani Calabresa<br />
realizou o sonho de viver da arte<br />
e, ao longo da trajetória, aprendeu a rir<br />
de si mesma e das situações difíceis<br />
que enfrenta: “Quase tudo que acontece<br />
no meu cotidiano vira material de<br />
trabalho. Passo vários perrengues e<br />
desafios e penso ‘Isso ainda vai virar<br />
piada, vou conseguir transformar essa<br />
situação e as pessoas vão rir disso”,<br />
conta. Certamente, o Brasil ainda vai<br />
rir muito com Dani Calabresa.<br />
Com Pedroca Monteiro, no programa Dani-se | foto: arquivo pessoal<br />
Que dica daria à jovem Daniella:<br />
“Fique tranquila porque, apesar das pedras, o<br />
caminho é lindo e tudo sempre vai acabar bem”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 37<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 36
Nome: João Vitor Romania Balbino (Jão)<br />
Idade: 27 anos<br />
Profissão: cantor e compositor<br />
Cidade onde nasceu: Américo Brasiliense/SP<br />
A sofrência<br />
pop de Jão<br />
Ídolo da geração que nasceu na virada<br />
do século, o cantor e compositor<br />
conquistou seu espaço unindo elementos<br />
do sertanejo e do universo pop com seu<br />
talento para o empreendedorismo<br />
Por Sérgio Martins<br />
Foto: Hugo Rennan<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 39<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 38
Foto: Breno Galtier<br />
Amado pelos jovens<br />
Com esse livre trânsito entre mundos<br />
diferentes, Jão arrasta multidões<br />
para seus shows. Nos últimos meses,<br />
o cantor empolgou o público que lotou<br />
o Allianz Parque, em São Paulo, na<br />
apresentação de abertura para a banda<br />
americana Maroon 5, e brilhou em dois<br />
festivais de música pop: o Lollapalooza<br />
e o Mita (Music Is the Answer). Em<br />
setembro ele será uma das atrações do<br />
Sunset, segundo palco do Rock in Rio.<br />
“Nós vamos criar um show do zero.<br />
Quero que seja um show de transição<br />
entre Pirata, minha última turnê, e o<br />
que quero criar e explorar musicalmente<br />
no futuro. Está tudo no papel,<br />
preciso decidir e já está me dando ansiedade”,<br />
diz, em entrevista exclusiva<br />
para a Et cetera.<br />
Jão é o primeiro grande ídolo da geração<br />
nascida no início dos anos 2000.<br />
Segundo dados do YouTube, plataforma<br />
por onde se lançou, em meados da<br />
década passada, 47% dos espectadores<br />
de seus vídeos estão na faixa dos<br />
18 aos 24 anos e 25% entre os 25 e os<br />
34 anos. A principal fonte de inspiração<br />
do artista é o cantor e compositor<br />
Cazuza. “Gosto da maneira de ele falar<br />
com o povo”, diz Jão. Ele interpreta O<br />
Tempo Não Para em seus shows e recentemente<br />
conversou com Lucinha<br />
Araújo, mãe de Cazuza, que lhe acenou<br />
com letras inéditas do filho. “Nosso interesse<br />
de levar essas obras adiante é<br />
mútuo. Mas quero estruturar isso da<br />
maneira mais respeitosa que existe.<br />
Tenho tudo pensado, só falta gravar”,<br />
despista. Em termos conceituais, no<br />
entanto, Jão se aproxima muito mais de<br />
Renato Russo do que do autor de Bete<br />
Balanço, famoso por seu sarcasmo e cinismo.<br />
Por mais que não tenha a erudição<br />
literária e musical do ex-vocalista<br />
da Legião Urbana, o pop star paulista<br />
possui letras que falam de relações<br />
amorosas complicadas e da incapacidade<br />
de amar, tal e qual Renato Russo<br />
fez na década de 1980. “Meu coração<br />
é grande/E cabem todos os meninos e<br />
meninas que eu já amei”, diz em Meninos<br />
e Meninas (título similar a um sucesso<br />
do grupo brasiliense), que celebra a<br />
geração com liberdade para amar. “A<br />
música dele vai ao encontro de uma<br />
lacuna deixada principalmente por<br />
Cazuza e Renato Russo. Reúne melodia<br />
de qualidade, letras expressivas e atitude<br />
de sobra”, comemora Paulo Lima,<br />
presidente da Universal Music, que tem<br />
o cantor sob contrato.<br />
S<br />
ofrência, ensina o dicionário popular, é um neologismo<br />
formado a partir da união das palavras “sofrimento” e<br />
“carência”. Criado para rotular as canções de dor de<br />
cotovelo de Pablo, um intérprete baiano conhecido como o<br />
“rei do arrocha” (uma espécie de seresta apimentada por teclados<br />
eletrônicos), o termo caiu como uma luva para classificar<br />
uma nova turma de compositores e cantores do universo<br />
sertanejo. Sofrência são as criações de Marília Mendonça,<br />
morta em novembro de 2021, que conquistou o país com suas<br />
letras sobre mulheres repudiadas por maridos ou amantes<br />
sem perspectiva de futuro; sofrência é o canto de Maiara &<br />
Maraisa, dupla de gêmeas que trazem a aflição embutida na<br />
vogal de cada composição que apresentam no palco e nos estúdios<br />
de gravação; sofrência é o repertório de duplas como<br />
Henrique & Juliano e Matheus & Kauan, entre muitas outras<br />
que preferem trilhar o caminho da dor a falar de noitadas.<br />
O martírio também se estendeu pelo pop. A pernambucana<br />
Duda Beat, por exemplo, se tornou um dos principais nomes<br />
do showbiz atual ao forjar letras a respeito de suas decepções<br />
amorosas. Os dois tipos de agrura raramente se conversam:<br />
existe um muro imaginário que separa os sertanejos, gênero<br />
musical mais escutado nas rádios brasileiras (50% da preferência<br />
dos ouvintes, ante 34% de MPB e 23% de rock nacional,<br />
segundo dados da TGI da Kantar Ibope Media), do resto<br />
do showbiz. Mas de tempos em tempos surge um artista que<br />
rompe as barreiras entre esses dois mundos. O paulista João<br />
Vitor Romania Balbino, de 27 anos, é um deles. Jão, como é<br />
conhecido pelo público, agrada tanto as plateias da turma da<br />
bota e do chapelão quanto do universo pop. Os primeiros se<br />
identificam com suas melodias de essência sertaneja, que poderiam<br />
figurar no repertório de um Luan Santana ou de um<br />
Jorge & Matheus. Já os adeptos do pop curtem o revestimento<br />
eletrônico que Jão dá a cada composição, muito próximo do<br />
rock nacional dos anos 80.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 41<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 40<br />
Foto: Gabriela Schmidt
Artista e<br />
empreendedor<br />
No Lollapalooza Brasil, em março deste ano | foto: Breno Galtier<br />
Descoberta<br />
acidental<br />
Jão nasceu em Américo Brasiliense,<br />
município pertencente à região de<br />
Araraquara, estado de São Paulo. Fã de<br />
Cazuza e de Marisa Monte, aprendeu a<br />
tocar violão, teclado e flauta, compunha<br />
canções sozinho, em casa, e fazia<br />
pequenas participações nas festas da<br />
escola. Aos 17 anos, mudou-se para<br />
a capital, onde dividia com mais três<br />
pessoas um diminuto apartamento, ao<br />
qual deu o carinhoso apelido de “muquifo”.<br />
Na faculdade de publicidade<br />
na USP (Universidade de São Paulo),<br />
ele encontrou dois companheiros que<br />
até hoje integram seu séquito: Renan<br />
Augusto e Pedro Tófani, que atuam<br />
respectivamente como empresário e<br />
diretor criativo. Foi Pedro, aliás, quem<br />
descobriu, sem querer, que o amigo<br />
sabia cantar. “Numa festa, peguei o celular<br />
dele para trocar de música e descobri<br />
uma composição dele. Ele surtou,<br />
ficou brabo”, lembra. O imbróglio aconteceu<br />
em 2013.<br />
Ao jornal O Globo, o cantor disse que,<br />
naquela época, estava decidido a seguir<br />
carreira como publicitário porque<br />
não se achava um bom músico. Na<br />
mesma entrevista, ele se diz pessimista<br />
e afirma ter se surpreendido com o<br />
sucesso no Lollapalooza, pois estava<br />
preparado para cantar para poucas<br />
pessoas na plateia <strong>–</strong> na realidade, Jão<br />
encontrou um público superior à população<br />
de sua cidade natal esperando<br />
por ele no Autódromo de Interlagos,<br />
onde ocorreu o festival. A confiança<br />
para fazer da música o plano A veio<br />
três anos depois de ter seu talento acidentalmente<br />
descoberto pelo amigo na<br />
festa. Primeiro, passou a se apresentar<br />
em barzinhos e karaokês para custear<br />
sua vida na cidade. Depois, com a ajuda<br />
de Renan e Pedro, começou a gravar<br />
releituras de sucessos do universo pop<br />
e colocar no YouTube.<br />
O bom desempenho na plataforma de<br />
streaming chamou a atenção da Head<br />
Media, conglomerado de produtores<br />
e empresários que o chamaram para<br />
uma conversa. O interesse era mútuo.<br />
“Marcamos um papo com ele, que, para<br />
a nossa surpresa, estava tentando falar<br />
com a gente, porque curtia nossas produções.<br />
A partir daí, nossa parceria começou.<br />
Jão se tornou o primeiro artista<br />
assinado na label Head Media em parceria<br />
com a Universal Music”, diz Pedro<br />
Dash, sócio do selo ao lado dos também<br />
produtores Marcelinho Ferraz e Dan<br />
Valbusa. Os dois primeiros álbuns de<br />
Jão, Lobos (2018) e Anti-Herói (2019),<br />
possuem assinatura dos produtores da<br />
Head Media. O YouTube também ficou<br />
atento ao sucesso do novo intérprete e<br />
o colocou em projetos da plataforma.<br />
Um deles foi o Jota Quest Collab by Roland,<br />
de 2018, onde recriou Amor Maior<br />
tendo o grupo mineiro como banda de<br />
apoio. “Jão demonstra potencial autoral<br />
desde o início, conseguiu marcar<br />
seu estilo fortemente até em canção<br />
cover”, diz Walter Venício, gerente de<br />
parcerias do YouTube Music para a<br />
América Latina.<br />
“Não me achava<br />
bonito ou bom<br />
o suficiente<br />
para ser notado<br />
milagrosamente.<br />
Mas eu me achava<br />
inteligente para<br />
deixar as coisas<br />
interessantes e<br />
traçar um plano<br />
para comer pelas<br />
beiradas”<br />
O êxito de Jão tem muito a ver com o<br />
talento do trio (o cantor, Renan Augusto<br />
e Pedro Tófani) para o empreendedorismo<br />
<strong>–</strong> a rede de apoio se transformou<br />
na produtora U.F.O, empresa com<br />
faturamento anual de pelo menos 36<br />
milhões de reais, de acordo com o site<br />
Forbes. Desde cedo, o trio sabia que não<br />
poderia contar com o apoio financeiro<br />
de gravadoras. “Inicialmente foi pela<br />
falta de apoio mesmo, que era quase<br />
um desespero, já que eu havia acabado<br />
de me demitir e não tinha um plano<br />
B”, diz Jão, que chegou a trabalhar em<br />
agência antes de desistir da publicidade.<br />
“Também não me achava bonito<br />
ou bom o suficiente para ser notado<br />
milagrosamente. Mas eu me achava inteligente<br />
para deixar as coisas interessantes<br />
e traçar um plano para comer<br />
pelas beiradas. Então, reuni as pessoas<br />
e planejamos o que faríamos.” O talento<br />
empreendedor despertou muita criatividade<br />
(e certa dose de ousadia) para<br />
compensar a limitação dos recursos<br />
financeiros. Um exemplo? A ideia inicial<br />
era contratar uma empresa especializada<br />
para produzir o videoclipe de<br />
divulgação de Imaturo, mas eles descobriram<br />
que teriam de desembolsar<br />
pelo menos 200 mil reais para assinar<br />
um contrato desse tipo. Em vez disso,<br />
resolveram assumir a produção. Gravaram<br />
tudo na USP, com o pretexto de<br />
se tratar de um trabalho de conclusão<br />
de curso. O resultado final não custou<br />
mais de 26 mil reais.<br />
É a U.F.O que produz os shows de Jão.<br />
Os três arcam com as despesas e faturam<br />
com o rendimento da bilheteria.<br />
Admirador do trabalho de Es Devlin,<br />
diretora de palco que desenhou as<br />
turnês de Beyoncé e Kanye West, Pedro<br />
Tófani surge com ideias ousadas<br />
para os espetáculos de Jão. Anti-Herói,<br />
excursão do disco de mesmo nome,<br />
lançado em 2019, trazia uma cabeça<br />
gigante, inspirada no teatro grego (ele<br />
queria ainda algumas colunas, mas Renan<br />
barrou, alegando que o custo sairia<br />
alto demais). O mais recente, Pirata, é<br />
um dos espetáculos mais vistosos em<br />
cartaz pelo país. Com orçamento inicial<br />
de 500 mil reais, leva um navio, uma<br />
ceia com os músicos e chuva ao palco.<br />
“Minha principal meta com o show era<br />
que ele fosse uma experiência. Minha<br />
memória é muito ruim, mas as minhas<br />
lembranças mais vivas são de coisas<br />
que vivi em shows e festas com as pessoas<br />
de quem gosto. Então, eu queria<br />
que tudo fosse em prol de provocar um<br />
sentimento de comunhão e impacto em<br />
quem fosse me assistir. E sinto que até<br />
as pessoas que vão sozinhas ao meu<br />
show saem de lá com a sensação de<br />
terem feito parte de uma comunidade<br />
por algumas horas”, explica o cantor. E<br />
vai além: “Tenho um compromisso profissional<br />
de lutar para tornar o mercado<br />
de shows no Brasil um espaço cada<br />
vez mais competitivo e compatível com<br />
o nível dos talentos que temos aqui”.<br />
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Chuva artificial em show da turnê Pirata | foto: Breno Galtier
Sofrência no DNA musical<br />
Talento nato<br />
Fã de música sertaneja, Jão lembra que, pelo fato de ser do<br />
interior de São Paulo, a sofrência sempre marcou presença<br />
nas rádios e nas festas que frequentava. O segredo está no<br />
revestimento pop que é dado pelos produtores. “Jão curte vários<br />
artistas do sertanejo, e isso sempre esteve presente em<br />
suas músicas. Ele é mais influenciado pelo sentimento que<br />
a música passa do que pelo estilo musical em si”, explica o<br />
produtor Pedro Dash. “Quando começamos a trabalhar, entramos<br />
em estúdio e fizemos uma espécie de laboratório de<br />
criação por meses, testando de tudo, errando e acertando, até<br />
gostarmos do que estávamos ouvindo”, completa. No álbum<br />
Pirata, lançado em outubro de 2021, o tom sertanejo deu lugar<br />
a uma sonoridade eletrônica que lembra grupos dos anos<br />
1980, como o New Order. “Jão tem uma ideia bem definida<br />
do tipo de impacto emocional que quer captar e passar nas<br />
músicas. Com Pirata, tivemos o tempo para experimentar e<br />
tentar chegar a essas emoções”, diz o compositor Paul Ralphes,<br />
que teve tempo de maturar as composições por causa<br />
da pandemia. “Acredito que minha voz, forma de cantar e de<br />
escrever já são bastante características. Quando percebi isso,<br />
me permiti ser mais despretensioso em relação aos timbres<br />
e às produções”, explica Jão. “Quando sinto vontade de fazer<br />
algo mais eletrônico, ou algo mais voz e piano, ou algo mais<br />
funkeado, isso não me incomoda mais, só vou lá e faço.” Pirata<br />
é puxado por Idiota, que, com seu clipe somando mais de 19<br />
milhões de visualizações no YouTube, estourou nas plataformas<br />
de streaming.<br />
A plateia de Jão é um espetáculo à parte. Ela canta antes, durante<br />
e depois das apresentações. Em Pirata, no Espaço das<br />
Américas, em São Paulo, um grupo acampou em frente à<br />
casa de espetáculos para ficar pertinho do ídolo no palco <strong>–</strong> e<br />
foi agraciado com uma pizza, entregue pelo próprio cantor. O<br />
rapaz tímido do início de carreira deu lugar a um intérprete<br />
seguro, consciente de seu poder com o público. “Gosto muito<br />
de estar no palco. Mesmo quando algo dá errado, ou estou<br />
inseguro, é em uma proporção infinitamente menor do que<br />
no resto da minha vida. Não me sinto confortável ou satisfeito<br />
em quase nenhum outro ambiente. Então, aproveito cada<br />
segundo ali para mostrar tudo que sei.” A fama e o assédio<br />
lhe deram saudade dos tempos do interior, quando podia caminhar<br />
tranquilamente até a padaria e comprar um pão. O<br />
excesso de shows também lhe cobrou um preço muito alto.<br />
Em 2016, sua avó, com quem o cantor tinha mais afinidade,<br />
iniciou uma rotina de entra e sai dos hospitais. Ela veio a falecer<br />
em 2018, e Jão mal teve tempo de se despedir porque tinha<br />
uma apresentação marcada em outra cidade. “Senti muita<br />
culpa por não ter passado mais tempo com ela”, desabafa.<br />
Tempos atrás, Jão admitiu sua bissexualidade,<br />
declaração aceita com tranquilidade<br />
pelos fãs. “A bissexualidade<br />
sempre esteve presente nas letras do<br />
Jão. Ele trata do assunto com naturalidade”,<br />
diz Pedro Tófani. Embora as<br />
canções deixem clara a sexualidade do<br />
artista, sua matéria-prima sempre foi<br />
a música, nunca a militância. Assim,<br />
o fato de admitir ou não ser bissexual<br />
é apenas um detalhe em meio a um<br />
talento nato. Como bem define Pedro<br />
Dash: “Jão tem a capacidade de saber<br />
expressar, detalhadamente, como ele<br />
se sente sobre determinado assunto ou<br />
situação. E tem coragem de falar sobre<br />
assuntos pessoais e desconfortáveis,<br />
que as pessoas geralmente evitam.<br />
E esse é o ponto que faz com que milhares<br />
de pessoas se identifiquem com<br />
aquilo que ele canta”.<br />
“Jão nasceu na contramão dos grandes<br />
esquemas. Juntou-se a dois fiéis<br />
escudeiros e alcançou a consagração<br />
somente por meio de seu carisma e<br />
musicalidade. E agora, no auge do sucesso,<br />
mantém-se assim: assistindo de<br />
longe a toda a bajulação inevitável em<br />
torno de sua carreira”, elogia o produtor<br />
Zé Pedro. Em meio a diversos<br />
talentos cunhados mais para o marketing<br />
do que para a música, João Vitor<br />
Romania Balbino se mantém fiel aos<br />
seus preceitos e carrega dicas que faz<br />
questão de compartilhar. “Se rodeie de<br />
pessoas honestas e que tenham o mesmo<br />
sonho que você, mas que saibam<br />
te criticar; sua carreira não é a única<br />
coisa que existe na sua vida, cultive<br />
outras coisas porque uma hora ela vai<br />
te engolir; aprenda tudo que você precisa<br />
sobre seus direitos, como artista e<br />
como compositor; se coloque num lugar<br />
muito alto e acredite nele e na sua<br />
individualidade.” Um artista notável<br />
dentro e fora dos palcos.<br />
No Lollapalooza <strong>2022</strong> | foto: Breno Galtier<br />
Que dica daria ao<br />
jovem Jão?<br />
“Logo você vai<br />
encontrar pessoas<br />
que te amam e que<br />
veem o mundo<br />
da maneira que<br />
você vê. Tudo vai<br />
fazer sentido”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 45<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 44
Nome: Manuelle Ferraz de Bessa<br />
Idade: 39 anos<br />
Profissão: cozinheira<br />
Cidade onde nasceu: Almenara/MG<br />
Devota da<br />
cozinha<br />
popular<br />
brasileira<br />
Por Simone Costa<br />
Foto: PC Pereira<br />
As origens da chef Manuelle Ferraz estão<br />
na cidade de Almenara, divisa de Minas<br />
Gerais com a Bahia. Foi de lá que ela trouxe<br />
os sabores que recheiam o cardápio de seu<br />
restaurante A Baianeira<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 47<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 46
Foto: arquivo pessoal<br />
“Inventei para mim mesma que<br />
queria conhecer o mundo, mas no<br />
fundo foi uma mera desculpa”<br />
O<br />
aroma que emana do café, passado<br />
ali na hora num singelo e<br />
diminuto coador de pano, aguça<br />
o paladar e abre caminho para a iguaria<br />
que o acompanha: um pão de queijo<br />
impecável, que faz qualquer mineiro<br />
exilado em São Paulo chorar de saudade<br />
de casa. É assim que a cozinheira<br />
Manuelle Ferraz recebe a revista<br />
Et cetera para um dedo de prosa. Manuelle<br />
comanda o restaurante A Baianeira<br />
em dois endereços em São Paulo:<br />
abriu o primeiro na Barra Funda, bairro<br />
da zona oeste da cidade, e instalou<br />
o segundo no Museu de Arte de São<br />
Paulo Assis Chateaubriand (Masp), na<br />
Avenida Paulista. E é nesse ponto, um<br />
prestigiado espaço cultural <strong>–</strong> onde ela<br />
também assina o cardápio da cafeteria<br />
<strong>–</strong>, que a chef gentilmente abre espaço<br />
na concorrida agenda para contar<br />
sua trajetória. “Sou pisciana e gosto<br />
de uma boa história”, diz. Com sorte,<br />
a cozinheira de 39 anos deixa escapar<br />
os segredos culinários de quem nasceu<br />
entre as influências gastronômicas de<br />
Minas Gerais e Bahia, dois estados com<br />
sabores tão marcantes.<br />
Foi com pão de queijo que Manuelle começou<br />
seu primeiro espaço na capital<br />
paulista, em julho de 2014. O café <strong>–</strong> ou<br />
melhor, um balcão montado em uma<br />
garagem de uma rua pouco movimentada<br />
da Barra Funda <strong>–</strong> chamava-se<br />
Quem Quer Pão 75. “Eu morava no<br />
bairro e aluguei o sobrado, onde ainda<br />
hoje funciona o restaurante. É uma<br />
rua pequena, com um cotidiano quase<br />
interiorano. Um lugar que era como<br />
uma proteção, onde eu não precisava<br />
ir rápido demais e teria tempo para<br />
construir minha história com cuidado”,<br />
lembra. “Isso tudo me fez querer<br />
preparar o pão de queijo e me levou a<br />
me reconectar com as minhas raízes,<br />
com a minha cidade, Almenara”, conta<br />
a simpática almenarense.<br />
No início, o menu era minimalista: ela<br />
servia apenas café e pão de queijo no<br />
local. Aos poucos, foi incorporando<br />
outros itens, como bolos variados e<br />
um prato do dia (arroz e feijão acompanhados<br />
de uma proteína e legumes,<br />
que a chef buscava na feira do Parque<br />
da Água Branca). Logo o prato do dia<br />
também ganhou novas versões, como<br />
bife a cavalo, estrogonofe e parmegiana,<br />
até finalmente receber a companhia<br />
dos pratos típicos que hoje dão identidade<br />
ao restaurante, como galinhada e<br />
baião de dois. Com o cardápio engordando,<br />
expandia também o espaço. Primeiro<br />
o restaurante ocupou o salão no<br />
andar térreo, e, em seguida, o piso superior<br />
do sobrado. De forma orgânica,<br />
o café se transformou em restaurante<br />
em pouco mais de um ano.<br />
E o nome? Bem, ele surgiu de uma explicação<br />
que Manuelle frequentemente<br />
dava aos clientes que, diante do coador<br />
de pano, perguntavam se aquele era<br />
um estabelecimento mineiro. “Eu sempre<br />
respondia que não era só mineiro.<br />
Geograficamente, Almenara fica em<br />
Minas, mas a influência baiana naquela<br />
região é muito forte. O Vale do Jequitinhonha<br />
não consegue definir se suas<br />
características são baianas ou mineiras.<br />
Assim nasceu o nome A Baianeira”,<br />
explica a chef.<br />
Paixão pela cozinha<br />
A exemplo de muitos jovens do interior,<br />
que deixam a casa da família para<br />
estudar na capital, Manuelle se mudou<br />
para Belo Horizonte, a mais de 700<br />
quilômetros de Almenara, quando tinha<br />
17 anos. Embora pertença a uma<br />
linhagem de cozinheiras, ela ainda não<br />
pensava em seguir por esse caminho,<br />
e ingressou no curso de direito na Fumec.<br />
“Passei a infância numa cozinha,<br />
mas me afastei desse espaço da casa<br />
na adolescência e estava prestes a me<br />
tornar uma profissional de direito. Era<br />
como se não fosse o meu destino ser<br />
cozinheira”, diz.<br />
A primeira inquietação veio aos 22<br />
anos, quando a então funcionária do<br />
Tribunal de Contas do Estado de Minas<br />
Gerais decidiu trancar a faculdade e<br />
embarcar para Edimburgo, na Escócia.<br />
“Resolvi estudar inglês fora do Brasil.<br />
Inventei para mim mesma que queria<br />
conhecer o mundo, mas no fundo foi<br />
uma mera desculpa. Era uma angústia,<br />
e ainda não tinha percebido que não<br />
era no direito que eu queria seguir.”<br />
A incompatibilidade, digamos, com a<br />
gastronomia local (e com os altos preços<br />
nos restaurantes na capital escocesa) a<br />
levou para o fogão, e o hábito de cozinhar<br />
em casa despertou uma paixão<br />
adormecida. De volta a Belo Horizonte,<br />
Manuelle começou a preparar almoços<br />
e jantares para os amigos. “Vi que<br />
isso foi tomando conta de mim mais do<br />
que eu tinha imaginado. Passei a não<br />
controlar esse desejo e resolvi investir<br />
naquilo que me entusiasmava”, afirma.<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
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A potência das<br />
mulheres<br />
Saem as leis, entram as receitas<br />
Foto: divulgação<br />
Veio da avó materna, Maria Auxiliadora,<br />
a receita do pão de queijo que seria<br />
vendido no Quem Quer Pão 75. Um segredo<br />
de família, portanto. Diferentemente<br />
da mesma iguaria produzida em<br />
quase todos os cantos do país, o pão de<br />
queijo tradicional mineiro, em especial<br />
o de Manuelle, é mais rústico. “Eu trato<br />
o meu pão de queijo como um pão, com<br />
estrutura de pão. O uso de diferentes<br />
tipos de polvilho faz com que o pão de<br />
queijo se assemelhe a um biscoito ou a<br />
um salgado”, explica a chef. “Quando a<br />
gente sai de Minas, encontra uma massa<br />
mais mole. O meu pão de queijo dá<br />
sustança, alimenta”, completa.<br />
Manuelle exalta a influência que sofreu<br />
das mulheres de sua família, especialmente<br />
da avó Maria Auxiliadora, de 79<br />
anos. Mas revela que só enxergou a força<br />
da história dessas mulheres quando<br />
saiu de casa. “Foi um processo de autoconhecimento,<br />
de busca interna que<br />
me fez compreender quão potente era<br />
tudo aquilo, que é também a realidade<br />
de muitas brasileiras”, diz. Manuelle foi<br />
a sexta mulher a nascer na família, a<br />
primeira neta. A avó ficou viúva cedo, e<br />
tirou o sustento financeiro da casa produzindo<br />
e vendendo salgados, e, posteriormente,<br />
abrindo um bufê, o único da<br />
cidade na época. “Por mais que minha<br />
mainha [a avó materna] tenha criado a<br />
todas nós sendo banqueteira, com uma<br />
vida inteira dedicada ao fogão, ela nunca<br />
viu a cozinha como um lugar de sucesso<br />
ou de carreira. Quando eu levei<br />
esse ofício para um restaurante profissional,<br />
começando por Nova York, foi<br />
como se, lá de fora, eu fizesse com que<br />
elas olhassem pra si mesmas. Isso gerou<br />
muitos questionamentos, reflexões<br />
e conflitos”, afirma.<br />
Com o tempo, a família não só entendeu<br />
sua escolha e vocação profissionais<br />
como passou a ajudá-la no restaurante.<br />
Atualmente, Cassandra, a mãe<br />
da chef e também cozinheira, trabalha<br />
com Manuelle em São Paulo. A avó<br />
banqueteira é uma das grandes influências<br />
do cardápio. “Ela fez massa de<br />
coxinha a vida inteira. Por isso, tenho a<br />
coxinha de mainha no cardápio”, revela<br />
Manuelle. A chef relembra a primeira<br />
visita da avó ao restaurante na Barra<br />
Funda: “Ela disse: ‘É isso que você está<br />
fazendo aqui, o mesmo que a gente faz<br />
lá?’. Acho que ela esperava, por ser São<br />
Paulo, alguma coisa mais grandiosa”,<br />
diz a chef, com bom humor. Maria Auxiliadora<br />
se encheu de orgulho de ver<br />
a neta comandando o restaurante no<br />
Masp, uma das principais atrações turísticas<br />
da capital paulista, mas tanto a<br />
matriarca da família como a mãe e as<br />
tias de Manuelle só se convenceram de<br />
seu sucesso quando ela participou do<br />
quadro Super Chef, exibido no matutino<br />
Mais Você, programa da Rede Globo<br />
apresentado por Ana Maria Braga. Naquele<br />
27 de junho de 2019, Almenara<br />
se emocionou ao ver a cria da cidade na<br />
TV, ensinando o Brasil inteiro a preparar<br />
uma receita de arroz de pato e cuscuz<br />
com quinoa, carne-seca e ovo frito.<br />
“Foi uma comoção, com a cidade inteira<br />
parando pra ver”, brinca Manuelle.<br />
Assim que concluiu o curso de direito, Manuelle se lançou à<br />
graduação em gastronomia no Senac. Aos 23 anos, achava<br />
que não tinha mais tempo a perder. Mas, se a mudança para<br />
BH foi um processo natural, a troca de profissão causou furor<br />
na família. “Houve uma indignação porque esperavam que eu<br />
seguisse carreira na área jurídica. Era como se eu estivesse<br />
anulando tudo o que havia sido feito até aquele momento,<br />
como se cozinheira não fosse uma profissão.” Na faculdade,<br />
Manuelle encarou o período de formação no restaurante-escola<br />
da instituição como experiência, com afinco e dedicação.<br />
“Estava sempre bastante concentrada porque precisava trilhar<br />
os passos seguintes de maneira muito séria”, relembra.<br />
Dois dias depois de formada, ela foi de mala e cuia para Nova<br />
York, onde trabalhou numa steakhouse chamada STK, um<br />
grande empreendimento na cidade. “Eu trabalhava com os<br />
melhores ingredientes do mundo. Ali, cheguei a subchefe<br />
da cozinha. Foi uma experiência intensa, que me preparou<br />
para o mundo.” Depois de dois anos nesse mergulho nova-<br />
-iorquino, Manuelle tomou novo rumo e partiu para São Pau-<br />
lo com uma meta: trabalhar na cozinha de Alex Atala, chef<br />
do D.O.M., estabelecimento agraciado com duas estrelas do<br />
Guia Michelin. “Quem trabalha com excelência no Brasil? Alex<br />
Atala. Ele é pioneiro na cozinha contemporânea, e eu queria<br />
saber o que aquele cara estava fazendo. E eu não tinha tempo<br />
a perder. Bati na porta do restaurante e falei: ‘Quero trabalhar<br />
aqui, como faço?’”, conta. Deu certo. Ela descreve seu período<br />
na cozinha do D.O.M. como uma imersão profunda. “Fez com<br />
que eu tivesse um olhar muito atento no dia a dia da cozinha.<br />
Saí desses caminhos percorridos com a capacidade de construir<br />
um repertório”, afirma.<br />
A decisão de deixar a cozinha do badalado restaurante veio<br />
com o sentimento de que ela já havia cumprido um ciclo e,<br />
mais do que começar o próprio negócio, Manuelle precisava<br />
de uma pausa para digerir tudo o que havia aprendido e<br />
acumulado de experiência. A moradora da Barra Funda sentia<br />
falta de um lugar para tomar um café e comer um pão<br />
em sua região. As padarias eram escassas no bairro, e ela<br />
viu uma oportunidade.<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
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Retorno às raízes<br />
Além das receitas da avó, a chef foi buscar no Vale do Jequitinhonha os ingredientes<br />
para suas criações. Para Manuelle, esse processo de pesquisa foi uma aproximação<br />
de si mesma e a reconexão com sua cidade natal. “O pão de queijo veio me<br />
mostrar que eu era de uma região muito rica, mas que ainda tem uma voz muito<br />
embrionária no país. E fui me apropriando desse meu lugar, tomando posse daquilo<br />
que sou, sempre com muito zelo”, diz.<br />
A chef explica que, mais do que ingredientes específicos, a região tem modos distintos<br />
de preparar pratos que são consumidos em outras partes do país. E exemplifica:<br />
enquanto em locais do Nordeste se come carne de sol com queijo coalho,<br />
mandioca ou ainda no baião de dois, no Vale do Jequitinhonha a iguaria é preparada<br />
com sopa de mandioca, arroz e feijão. O frango com quiabo, tão tradicional em muitas<br />
regiões de Minas, dá lugar à abóbora com quiabo. “Nas feiras de cidades do Vale<br />
você encontra os saquinhos já separados com metade de cada um dos dois”, conta.<br />
Com o A Baianeira a todo vapor, Manuelle passou a pesquisar outras receitas e hábitos<br />
alimentares do Vale do Jequitinhonha. Ao retornar a Almenara, já no segundo<br />
ano à frente de seu restaurante, ela visitou os produtores locais que fornecem itens<br />
essenciais na cozinha da chef. Vem daquela região, por exemplo, o requeijão de<br />
corte, um tipo diferente daquele feito no Nordeste e do requeijão de raspas, famoso<br />
em outras partes de Minas. “É uma produção que estava se perdendo por ser cara.<br />
São 25 litros de leite para 1 quilo de requeijão. E os jovens não consomem mais<br />
como nossos ancestrais”, opina a chef. “Hoje, compro praticamente todo o estoque<br />
de alguns pequenos produtores. Não faço isso como forma de ativismo, mas tento<br />
cuidar da região da maneira que posso, ajudando a preservar uma cultura”, explica.<br />
E adivinhe quem é responsável pela logística que une os produtores de Almenara e<br />
os restaurantes em São Paulo: Maria Auxiliadora. “É ela quem cuida dos fornecedores<br />
e escolhe ingredientes com toda a destreza que tem. O legado dela está mais que<br />
posto, está vivo”, emociona-se Manuelle.<br />
Almenara <strong>–</strong> MG | foto: reprodução mídias sociais<br />
Na telinha<br />
Clientes do A Baianeira encontram no<br />
cardápio pratos como picadinho de<br />
carne de panela, galinha caipira ensopada,<br />
moqueca de banana-da-terra,<br />
bife à parmegiana (azar do leitor que<br />
ainda não almoçou). Manuelle chama<br />
esse conjunto de opções de cozinha<br />
popular brasileira, e faz questão de explicar:<br />
“Alguém pode argumentar que<br />
a parmegiana não tem origem no Brasil.<br />
Mas já se tornou um hábito, e dessa<br />
forma interfere na nossa construção<br />
como sociedade”. E completa: “Quanto<br />
mais brinco com isso e vou abrangendo,<br />
fico mais segura e confortável para<br />
dizer: o Vale do Jequitinhonha confere<br />
identidade à minha cozinha, mas a partir<br />
dele eu alcanço o Brasil inteiro. Por<br />
isso é uma cozinha popular brasileira”.<br />
A “artesania” de Manuelle, como ela<br />
gosta de dizer, já rendeu importantes<br />
prêmios. Foi Chef Revelação 2018-<br />
2019 no Melhores do Ano Prazeres da<br />
Mesa. A Baianeira ganhou, em 2019, o<br />
Bib Gourmand, do Guia Michelin, uma<br />
categoria que destaca restaurantes<br />
que aliam boa qualidade com bom preço<br />
e que são relevantes por terem personalidade<br />
própria. Também foi eleito<br />
o Melhor Restaurante para Se Sentir<br />
em Casa, pela premiação gastronômica<br />
O Melhor de São Paulo, do jornal<br />
Folha de S.Paulo.<br />
Foi também em 2019 que Manuelle recebeu<br />
o convite para se encontrar com<br />
um dos diretores do Masp. O museu,<br />
que abrigava no segundo subsolo um<br />
buffet sem identidade própria, passava<br />
por um processo de reformulação.<br />
“Cheguei para o encontro sem saber do<br />
que se tratava.” Da primeira conversa<br />
até a abertura da filial do A Baianeira<br />
no local passaram-se nove meses. Admiradora<br />
de Lina Bo Bardi, a arquiteta<br />
italiana que projetou o Masp, Manuelle<br />
vê significado nesse “casamento”.<br />
“Ela falava do artesanato como arte e<br />
ressaltava o popular. Quando cheguei<br />
aqui, entendi que Lina estava esperando<br />
por A Baianeira porque é emblemático<br />
ter um restaurante de cozinha<br />
popular brasileira dentro do Masp.” Em<br />
pouco tempo <strong>–</strong> e mesmo após vários<br />
meses fechado por causa da pandemia<br />
<strong>–</strong>, o espaço no museu foi escolhido o<br />
Melhor Brasileiro pelo guia Comer & Beber,<br />
da Veja São Paulo, no ano passado.<br />
Para a alegria de Almenara, a chef<br />
celebridade da cidade voltou recentemente<br />
às telinhas, como jurada do<br />
reality show culinário Cook Island <strong>–</strong> A<br />
Ilha do Sabor. Comandado pelos atores<br />
globais Joaquim Lopes e Jéssica Ellen, o<br />
programa da GNT foi gravado no início<br />
do ano na Praia de Subaúma, na Bahia,<br />
e estreou dia 31 de março. “Foram 30<br />
dias de gravação direto. Fiquei isolada,<br />
longe da minha cozinha, mas estou<br />
bem feliz de ter participado. Mais do<br />
que julgar um prato, pude defender,<br />
com bastante liberdade, a cozinha popular<br />
brasileira”, afirma.<br />
Depois de tantas histórias, a conversa<br />
com a Et cetera terminou com um bolo<br />
de fubá com goiabada e outro cafezinho,<br />
fechando o encontro com chave<br />
de ouro <strong>–</strong> e, claro, muito sabor.<br />
A Baianeira no Masp | foto: divulgação<br />
Que dica daria à<br />
jovem Manuelle?<br />
“Eu não daria uma dica,<br />
eu a agradeceria: ainda<br />
bem que você sonhou,<br />
ainda bem que você quis<br />
o mundo. Quando a gente<br />
quer o mundo, não coloca<br />
limites e fica muito livre<br />
para ser”<br />
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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 52
Nome: Eduardo Sanchez Loria Guimarães Srur<br />
Idade: 48 anos<br />
Profissão: artista plástico<br />
Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />
O interventor<br />
Por Diego Braga Norte<br />
As intervenções urbanas de larga escala do artista<br />
Eduardo Srur provocam reflexão, admiração e<br />
reações inusitadas <strong>–</strong> suas peças já foram baleadas,<br />
decapitadas e recolhidas como material reciclável<br />
Foto: @fisheye<br />
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<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 54
.<br />
Ingresso nas artes<br />
I<br />
Zoo <strong>–</strong> mostra Vida Livre | foto: divulgação<br />
nstalada em frente ao Parque Trianon, a poucos metros do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), uma<br />
estrutura de ferro de 3 metros de comprimento por 3 de altura destoa da paisagem habitual. Quem se aproxima desvenda<br />
parte do mistério: trata-se de uma jaula encravada entre os dois cartões-postais, quebrando a harmonia entre eles. Nem<br />
a pressa nem a distração impedem que os pedestres que transitam pela Avenida Paulista desviem o olhar para a estrutura <strong>–</strong> e,<br />
conforme a distância diminui, notem os quatro macacos bugios de pelúcia pendurados pelo lado de fora da jaula. Muitos param<br />
para observar, tirar foto. E basta uma dose extra de curiosidade para descobrir que é possível abrir a porta e entrar na gaiola.<br />
Os que se arriscam lá dentro espiam a vida transcorrendo na cidade ao redor, mas logo saem da estrutura. Perguntado sobre o<br />
motivo de ter ficado tão pouco tempo ali dentro, um deles responde: “Me deu uma sensação ruim, sei lá, ninguém gosta de ficar<br />
preso”. E, voilà, a obra Zoo, do artista plástico Eduardo Srur, cumpriu sua função.<br />
Eduardo Sanchez Loria Guimarães<br />
Srur nasceu na capital paulista em 1974.<br />
Sua infância e adolescência foram felizes,<br />
com dias no Clube Pinheiros e<br />
viagens para a praia. Seus pais eram<br />
amigos de artistas plásticos, como Dudi<br />
Maia Rosa e Wesley Duke Lee. Eduardo<br />
acredita que ter frequentado os<br />
ateliês e convivido com esses artistas<br />
pode, sim, ter despertado seu interesse<br />
pelas artes plásticas. Começou a frequentar<br />
galerias bem cedo, e, quando<br />
chegou à idade de prestar o vestibular,<br />
não hesitou: foi cursar artes visuais na<br />
Fundação Armando Alvares Penteado<br />
(FAAP). Na faculdade, começou suas<br />
primeiras incursões autorais nas artes,<br />
especificamente na pintura. Em 1996,<br />
ainda estudante, recebeu seu primeiro<br />
reconhecimento público, o Prêmio Michelangelo<br />
de Pintura Contemporânea<br />
no Centro Cultural São Paulo, com uma<br />
série de quadros conceituais baseados<br />
em fotografias. No ano seguinte, ganhou<br />
uma bolsa de estudos da própria<br />
FAAP para aperfeiçoar suas técnicas<br />
e pesquisas. O prêmio acadêmico lhe<br />
conferiu a possibilidade de realizar sua<br />
primeira e “quase urbana” instalação.<br />
“Foi em uma praia do litoral norte, aqui<br />
em São Paulo. Praia não é bem um espaço<br />
urbano, mas eu já tinha essa inquietação,<br />
esse desejo de levar a arte<br />
para o cotidiano das pessoas”, explica.<br />
Nessa obra inaugural, Eduardo enfileirou<br />
400 carrinhos de cerâmica pintados<br />
com tinta acrílica na areia.<br />
A primeira intervenção artística urbana<br />
(de fato) viria em 2004. A obra<br />
Acampamento dos Anjos era composta<br />
de 40 barracas de camping coloridas<br />
instaladas verticalmente na fachada<br />
de um edifício abandonado na Avenida<br />
Dr. Arnaldo, em São Paulo. À noite, as<br />
barracas se iluminavam e promoviam<br />
um colorido e silencioso acampamento<br />
nas alturas. “Instalei a primeira barraca<br />
na fachada do meu prédio. Essa obra<br />
tem uma questão espiritual bastante<br />
forte e uma conexão com a cidade. Ela<br />
impulsiona esse movimento da pintura<br />
para o espaço público, e eu começo<br />
a enxergar a arquitetura e o espaço<br />
urbano como plataformas de trabalho,<br />
como uma tela em branco”, diz Eduardo.<br />
A instalação em São Paulo despertou<br />
não apenas o interesse do público<br />
mas também do pessoal que acompanha<br />
a cena artística. No ano seguinte,<br />
em 2005, ele foi convidado para expor<br />
sua obra em Paris e em Metz, na França.<br />
Deu-se aí a virada em sua carreira.<br />
“Quando voltei para São Paulo, me dei<br />
conta de que o meu caminho realmente<br />
deveria ser as intervenções urbanas.”<br />
Acampamento dos Anjos | foto: divulgação<br />
“Eu gostaria que as pessoas compreendessem que não faz mais sentido manter animais em jaulas, passarinhos em gaiolas e<br />
peixes em aquários. Eu quero que elas tenham uma lembrança do pior momento da vida delas durante a pandemia, quando não<br />
podiam sair de casa. A vida dos animais presos é ainda pior”, explica o artista. Outras duas obras compuseram a mostra Vida<br />
Livre, exposta em São Paulo entre 2 de maio e 2 de junho. A grandiosa escultura Voo dos Pássaros, montada com mais de mil<br />
gaiolas apreendidas pela Polícia Federal em operações contra o tráfico de animais silvestres, foi instalada no Parque do Povo, na<br />
zona oeste da capital. E no Parque Ibirapuera, pertinho do lago, estava o desconcertante Aquário: um tanque com 30 mil litros de<br />
água, muito lixo plástico e dois bonecos ultrarrealistas de crianças imersas lá dentro. Do lado de fora, completando a instalação,<br />
um curioso urso-polar observava o aquário humano.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 57<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 56
A ligação com<br />
as águas<br />
Sem controle<br />
Em 2006, o artista montou sua primeira<br />
obra juntando espaço urbano e defesa<br />
do meio ambiente. Eduardo Srur<br />
escolheu o quintal de sua casa, o Rio<br />
Pinheiros, que ele vê de suas janelas.<br />
Caiaques era uma obra em constante<br />
movimento e integrada à natureza <strong>–</strong> ou<br />
ao que ainda restava dela. O artista espalhou<br />
sobre o leito do rio 150 caiaques<br />
tripulados por manequins. Um olhar<br />
rápido e desatento vindo dos milhares<br />
(talvez milhões) de automóveis que trafegam<br />
pelas marginais do Rio Pinheiros<br />
e em suas pontes levava a crer que<br />
fossem pessoas de verdade dentro dos<br />
barquinhos. Daí vinha o choque, pois<br />
quem se arriscaria a remar nas águas<br />
fétidas e repulsivas do Pinheiros?<br />
Poética, dramática e viva, a obra obteve<br />
grande repercussão na imprensa,<br />
inclusive internacional. Na última semana<br />
de exposição, alguns caiaques<br />
encalharam em uma imensa ilha de<br />
lixo formada por restos de plásticos,<br />
sacolas e garrafas. Do contraste entre<br />
as cores vibrantes das embarcações<br />
e os tons acinzentados deprimentes<br />
do lixo aos urubus procurando restos<br />
de alimentos na ilha, tudo ressaltava o<br />
caráter ativista da obra. “Vieram me<br />
perguntar se eu também tinha feito a<br />
ilha de lixo. Claro que não! O lixo e a<br />
podridão eram justamente objetos da<br />
minha denúncia ambiental e artística”,<br />
lembra Eduardo.<br />
Depois da bem-sucedida incursão no<br />
Rio Pinheiros, ele ainda daria mergulhos<br />
por outras águas. Em 2008, Eduardo<br />
instalou imensas garrafas PET<br />
no Rio Tietê, visando chamar a atenção<br />
para essas intrusas na natureza.<br />
A obra passou também na Represa<br />
Guarapiranga (2010), num lago de Bragança<br />
Paulista (2012), numa praia de<br />
Santos (2014) e na Argentina (2017).<br />
Como parte da Bienal Internacional<br />
de Arte Contemporânea da América<br />
do Sul, suas garrafas navegaram pelo<br />
Rio Paraná e Rio da Prata até atracar<br />
na foz poluída do Rio Riachuelo-Matanza,<br />
no bairro icônico de La Boca, em<br />
Buenos Aires. “Sempre gostei muito<br />
de água, adoro nadar, ir à praia, pegar<br />
ondas. Então, essa conexão entre meu<br />
trabalho e água foi bem natural.” Outras<br />
instalações e intervenções, como<br />
Nau (2010), uma escultura flutuante<br />
em formato de um barquinho de papel<br />
com mais de 4 metros de comprimento;<br />
O Aquário Morto (2014); Trampolim<br />
(2014); Hora da Onça Beber Água (2017);<br />
e Pintado (2019), por exemplo, também<br />
pretendiam chamar a atenção para as<br />
complexas e delicadas relações entre o<br />
homem e as águas <strong>–</strong> esse bem natural<br />
tão imprescindível quanto maltratado.<br />
Dentre essa longa e criativa série aquática,<br />
talvez a de maior repercussão tenha<br />
sido Welcome Guanabara. Durante<br />
os Jogos Olímpicos de 2016, quando o<br />
mundo voltou seus olhos para o Rio de<br />
Janeiro, o artista resolveu dar suas boas-vindas<br />
aos visitantes: montou uma<br />
barraca numa praia carioca e recepcionou<br />
os turistas com camisetas e souvenirs.<br />
As roupas estampavam a mensagem<br />
“Welcome Guanabara” junto com<br />
a imagem de um sorridente... cocô. O<br />
brinde mais requisitado trazia cocôs<br />
artificiais ornados com um singelo coqueiro<br />
e, claro, a placa com o nome da<br />
ação. Em um ato kafkiano, a polícia foi<br />
chamada para intervir na intervenção<br />
de Eduardo. A cena dos agentes cobrando<br />
do artista uma autorização da<br />
prefeitura é o ápice da burocratização<br />
da arte, a tentativa vã do Estado de limitar<br />
as expressões livres e criativas.<br />
O filmete da ação pode ser visto no site<br />
do artista (eduardosrur.com.br). Posteriormente,<br />
Eduardo ainda enviou kits<br />
de seus brindes, pelo correio, aos políticos<br />
que prometeram limpar as águas<br />
da Baía de Guanabara para os Jogos.<br />
Welcome Guanabara | foto: arquivo pessoal<br />
“Um profissional<br />
sempre está<br />
preocupado em<br />
manter o controle<br />
da situação. Eu,<br />
muitas vezes,<br />
discordo. Perder<br />
o controle da<br />
situação traz<br />
resultados<br />
surpreendentes”<br />
O ato de trabalhar “no e com” o espaço público é uma das<br />
principais assinaturas do artista, que cria suas obras para<br />
serem vistas sem barreiras, cobrança de ingressos ou mediação<br />
de um guia. Essa característica expõe sua arte à livre<br />
apreciação, à reflexão e a uma ou outra interferência. A obra<br />
Mercado, por exemplo, contava com dez enormes carrinhos<br />
de supermercado espalhados por São Paulo. Com mais de 3<br />
metros de altura, as peças foram objeto de muitas selfies, e<br />
algumas acabaram por se transformar em trepa-trepas, o popular<br />
brinquedo de parque infantil. Um dos carrinhos foi levado<br />
por um carroceiro que recolhe materiais recicláveis para<br />
vender. Isso mesmo, o sujeito colocou a obra em sua carroça e<br />
saiu com ela pelas ruas do centro de São Paulo, tudo registrado<br />
pelas câmeras de monitoramento de trânsito.<br />
Outras intervenções também provocaram reações inusitadas<br />
do público, como uma escultura da obra Trampolim, que teve<br />
sua cabeça decepada. As esculturas de diferentes figuras<br />
humanas realistas foram montadas sobre pranchas, prestes<br />
a mergulhar nas águas do Rio Pinheiros. “Me contaram<br />
o que havia acontecido em tom de lamentação, mas eu achei<br />
Trampolim (2014, Marginal Pinheiros, SP) | foto: Kana Filmes<br />
interessantíssimo, lembrei-me na hora da gravura do Goya”,<br />
conta o artista, remetendo à imagem do espanhol Francisco<br />
de Goya (1746-1828) Saturno Devorando um Filho, que mostra<br />
o deus grego Chronos (Saturno, em latim) deglutindo um de<br />
seus filhos, já sem braços e sem a cabeça.<br />
Para Eduardo, a perda total de controle sobre a obra é algo<br />
que o instiga. “Essas reações do público e da cidade são muito<br />
importantes para os artistas. A obra está livre num campo<br />
aberto para ser transformada”, elucida. Ele acredita que<br />
os imprevistos potencializam seu trabalho e revelam outros<br />
significados, que não tinham sequer sido cogitados. “Um<br />
profissional sempre está preocupado em manter o controle<br />
da situação. Eu, muitas vezes, discordo. Perder o controle da<br />
situação traz resultados surpreendentes.” A mesma intervenção<br />
Trampolim também provocou mais de 300 chamadas para<br />
os serviços oficiais de emergência, com pessoas que se desesperaram<br />
ao ver banhistas preparando-se para nadar nas<br />
águas negras do Pinheiros. E, além do boneco decapitado,<br />
outra escultura levou um tiro, mas passa bem. Arte na rua é<br />
isso, tiro, porrada e bomba.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 59<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 58
Intervenção bovina<br />
Em 2010, foi o próprio Eduardo quem<br />
interferiu na arte urbana, mais especificamente<br />
na famosa CowParade. Não,<br />
o artista não recolheu para reciclagem<br />
nenhuma vaca colorida espalhada por<br />
São Paulo naquele ano, mas criou suas<br />
próprias esculturas bovinas para misturá-las<br />
às peças da exposição que<br />
se autoproclamava “o maior evento<br />
de arte pública do mundo”. Tanto na<br />
Avenida Paulista como na Faria Lima,<br />
importantes centros financeiros e<br />
duas das principais vitrines da capital<br />
paulista, Eduardo instalou um touro<br />
montando uma vaca da tal exposição,<br />
remetendo ao ato da copulação. O objetivo<br />
da obra Touro Bandido era não<br />
apenas questionar a domesticação e<br />
esterilização das vacas, mas da própria<br />
arte. “O touro bandido resgata do imaginário<br />
brasileiro um animal que nunca<br />
foi domado em rodeios. E, para mim, a<br />
vaca ficou estéril como objeto de reflexão,<br />
e o touro fazia uma inseminação<br />
artística nela.”<br />
Por tratar-se de uma intervenção não<br />
autorizada, ele foi processado pelos<br />
organizadores do evento e teve de responder<br />
a um inquérito policial por ato<br />
obsceno, difamação e danos materiais.<br />
Eduardo também critica o uso da vaca<br />
pelo evento, um animal que não está<br />
presente em nossa cultura. Já o boi<br />
é um elemento marcante em nossas<br />
tradições artísticas populares, como o<br />
bumba meu boi e o boi-bumbá. “Fui um<br />
dos únicos artistas que criticaram publicamente<br />
a CowParade no Brasil com<br />
a figura do touro bandido que simboliza<br />
a arte como um campo que não pode<br />
ser domesticado”, diz. “Falam que a<br />
CowParede é arte, mas é algo publicitário”,<br />
completa. Eduardo diz não acreditar<br />
em artes passivas, direcionadas ou<br />
dirigidas. “Como é que um organizador<br />
ou um agente oficial vão definir como<br />
vai ser o trabalho do artista?”<br />
Mas, mais uma vez, a participação do<br />
aparato burocrático enriqueceu a intervenção.<br />
No processo movido contra<br />
Eduardo havia, de um lado, os organizadores<br />
de uma mostra artística; do<br />
outro, um artista independente; e, no<br />
meio, a criminalização de uma obra de<br />
arte. O toque ainda mais surreal veio<br />
da tecnicidade fria das leis. O processo<br />
não deu em nada além das intimações<br />
e amolações de praxe, e um dos motivos<br />
para a acusação de ato obsceno ter<br />
sido descartada pela Justiça foi <strong>–</strong> não é<br />
piada <strong>–</strong> o fato de os dois touros de fibra<br />
sintética serem totalmente castrados e<br />
não possuírem falo. Desta vez, a burocratização<br />
serviu não só à completude<br />
da obra mas também ao artista, que se<br />
livrou de uma multa.<br />
Touro Bandido (Av. Paulista, SP) | foto: Eduardo Srur<br />
Retorno às tintas<br />
Depois de muito tempo afastado da<br />
pintura, Eduardo voltou às telas durante<br />
a quarentena da pandemia. Ele vinha<br />
de um período de desaceleração e dedicação<br />
ao silêncio. “Essa desaceleração<br />
do meu trabalho acabou sendo muito<br />
positiva, estava num ritmo bem maluco.<br />
Pude descansar, refletir e me dedicar<br />
à construção de um acervo”, diz. O<br />
artista conta que quase todas as suas<br />
pinturas foram vendidas para colecionadores<br />
particulares ou estão em museus<br />
e, depois de 20 anos trabalhando<br />
com intervenção urbana, sentiu a necessidade<br />
de voltar a ter uma coleção<br />
própria. “As obras urbanas têm uma<br />
natureza efêmera. A obra é realizada e<br />
depois desaparece. De algumas dá para<br />
guardar um fragmento, quando muito.”<br />
Com a volta da produção de telas, Eduardo<br />
diz que agora pode receber novamente<br />
potenciais compradores em seu<br />
ateliê. “Sou um artista independente,<br />
não tenho ninguém que me represente,<br />
nenhuma galeria por trás.” A pandemia<br />
e o confinamento também propiciaram<br />
mais tempo com a família e mais contato<br />
com a natureza, pois eles se refugiaram<br />
em um local “perto da praia e<br />
do mato” do litoral norte de São Paulo.<br />
Um dos frutos dessa retomada da<br />
pintura é a série Natureza Plástica, em<br />
que o artista recria obras famosas de<br />
grandes autores (Leonardo da Vinci,<br />
Edvard Munch, Van Gogh, Tarsila do<br />
Amaral, Katsushika Hokusai e outros)<br />
utilizando sacolas plásticas coloridas.<br />
Fiel em sua defesa do meio ambiente,<br />
ele usou material recolhido das margens<br />
dos rios, ruas e cooperativas de<br />
reciclagem. As obras impressionam<br />
pela fidedignidade em relação às originais,<br />
embora sejam compostas apenas<br />
de fragmentos plásticos, sem o uso de<br />
tintas ou cola.<br />
Citando os artistas Jeff Koons e Damien<br />
Hirst, Eduardo Srur confessa<br />
que nutre admiração por pessoas que<br />
venceram o mercado, que redefiniram<br />
regras e ultrapassaram barreiras, não<br />
impondo suas obras ao gosto do público,<br />
mas fazendo com que elas fossem<br />
aceitas, admiradas, compreendidas ou<br />
debatidas. “Mas, se você me perguntar<br />
minha fonte de inspiração, a resposta<br />
não está em outros artistas, e sim no<br />
cotidiano. São os erros urbanísticos<br />
e a sociedade que me atraem interesse.<br />
Os lugares me escolhem. Se estou<br />
em São Paulo e vejo os absurdos que<br />
acontecem, acabo respondendo a isso.<br />
O artista é um agente ativo. Um pouco<br />
diferente das pessoas que aceitam<br />
passivamente a realidade distorcida da<br />
cidade em que vivem”, finaliza o artista<br />
e interventor.<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Que dica daria ao jovem Eduardo?<br />
“Você será um grande artista. Portanto, não perca<br />
tempo, moleque!”<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 61<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 60
Um cartum<br />
Foto: Getty Images<br />
A onda plastic-free<br />
Uma tendência<br />
Os plásticos estão por toda parte: nas<br />
redes de esgoto, nos oceanos, no estômago<br />
dos animais marinhos, em nosso<br />
sangue! Sim, uma pesquisa recente<br />
detectou, pela primeira vez, a presença<br />
de partículas de microplásticos na corrente<br />
sanguínea de humanos. A invenção<br />
do plástico revolucionou diversos<br />
setores da sociedade, mas nossa relação<br />
com esse material ganha novos<br />
contornos. O movimento que começou<br />
a dar um basta ao plástico de uso único,<br />
como canudos e recipientes de isopor,<br />
chega agora às embalagens recicláveis.<br />
A tendência plastic-free (sem plástico) é<br />
uma via de mão dupla: tanto os consumidores<br />
como a indústria têm seu papel<br />
a cumprir. A Amazon registrou um<br />
aumento significativo das buscas com<br />
a expressão “plastic-free” associada a<br />
diferentes produtos, como desodorante<br />
e sabão para lavar roupas. De fato,<br />
a maior dificuldade para quem decide<br />
reduzir a presença de plástico no dia a<br />
dia está relacionada à cadeia produtiva<br />
de bens de consumo <strong>–</strong> basta uma ida<br />
ao supermercado para notar a grande<br />
quantidade desse material colocada no<br />
carrinho de compras.<br />
A boa notícia é que o movimento plastic-free<br />
tem estimulado empresas a<br />
investirem em alternativas ao material.<br />
Há opções já populares, como o<br />
xampu em barra e a escova de dentes<br />
de bambu, mas vem muita coisa nova<br />
por aí. Essa tendência foi apontada no<br />
relatório Trend Report <strong>2022</strong>, da plataforma<br />
Trend Hunter. De acordo com o<br />
estudo, os consumidores esperam cada<br />
vez mais que as marcas promovam<br />
mudanças para diminuir seu impacto<br />
no meio ambiente. E o bater das asas<br />
dessas borboletas tem poder para começar<br />
um tornado...<br />
Um exemplo? Venda a granel como<br />
alternativa à embalagem fechada. Na<br />
Europa, muitas lojas e supermercados<br />
já contam com estações de venda<br />
a granel de produtos até então comercializados<br />
embalados. Gigantes como<br />
Nestlé e Unilever começam a testar a<br />
venda de refil, sem frasco, de diversos<br />
artigos, de cosméticos a alimentos,<br />
como café em pó e ração para os pets.<br />
Esses pontos de venda estimulam os<br />
consumidores a reutilizarem recipientes<br />
que já têm em casa. Outro exemplo:<br />
no mercado europeu, os iogurtes da<br />
marca Danacol, do grupo Danone, perderam<br />
o rótulo. As informações nutricionais<br />
vêm gravadas em relevo diretamente<br />
no frasco, feito de material 100%<br />
reciclável, reutilizável ou compostável.<br />
Adotada recentemente, a medida elimina<br />
de cada garrafa de iogurte 0,72<br />
grama de plástico PET, material com<br />
que é feito o rótulo. Parece pouco? Pois<br />
em um ano a empresa deixa de produzir<br />
130 toneladas de plástico. A revolução<br />
começa assim, aos poucos, mas é<br />
um caminho sem volta.<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 63<br />
<strong>INVERNO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 8 • PÁG. 62
Um sabor<br />
Uma palavra<br />
Eu tinha passado a noite na companhia de um escritor<br />
famoso, que na verdade não era ninguém<br />
muito importante, apenas um homem de bastante<br />
sorte. Eu o conheci num vernissage de uma galeria<br />
de arte, e o esforço dele para me tirar dali afagou<br />
minha vaidade. Eu não chamava a atenção dos<br />
homens com muita frequência naquela época, ainda<br />
que fosse jovem e acho que atraente o bastante<br />
para isso. O problema era a minha fidelidade idiota<br />
de cachorro. Esse escritor era obviamente um egocêntrico<br />
insuportável, assim como mentiroso, e não<br />
dos muito convincentes; e eu, sozinha em Paris por<br />
uma noite, tendo à minha espera, em casa, uma filha<br />
e um marido me recriminando, estava tão sedenta<br />
por amor que parecia disposta a beber de qualquer<br />
fonte. Sério, Jeffers, eu era um cachorro <strong>–</strong> havia um<br />
peso tão grande dentro de mim que eu só conseguia<br />
me contorcer de um jeito estúpido, como um animal<br />
sentindo dor. Isso me mantinha presa nas profundezas,<br />
onde eu me debatia e me esforçava para me<br />
libertar e nadar para a superfície brilhante da vida<br />
<strong>–</strong> ao menos é o que parecia, olhando de lá de baixo.<br />
Na companhia do egocêntrico, me arrastando de bar<br />
em bar na noite de Paris, pela primeira vez flertei<br />
com a possibilidade de destruição, a destruição do<br />
que eu tinha construído; não por causa dele, posso<br />
te garantir, mas pela possibilidade que ele encarnava<br />
<strong>–</strong> que jamais tinha me ocorrido até aquela noite<br />
<strong>–</strong> de uma mudança violenta. O egocêntrico, permanentemente<br />
inebriado pela sua própria importância,<br />
deslizando balas de hortelã por entre os lábios secos<br />
quando pensava que eu não perceberia e falando<br />
sobre si mesmo sem parar: na verdade ele não me<br />
enganou, eu queria que tivesse me enganado, confesso.<br />
Ele me deu motivos suficientes para cair fora,<br />
mas é claro que não caí <strong>–</strong> entrei no jogo, acreditando<br />
nele em parte, o que claramente foi o máximo de<br />
sorte que ele já tinha conseguido em toda a sua vida.<br />
Nos despedimos às duas da madrugada na entrada<br />
do hotel, onde ele visivelmente <strong>–</strong> a ponto de se notar<br />
a falta de cavalheirismo <strong>–</strong> decidiu que eu não valia<br />
nenhum risco ao seu status quo, o que uma noite<br />
passada juntos poderia representar. E fui me deitar,<br />
me abracei com a memória de sua atenção, até que<br />
o teto pareceu sair voando do hotel, as paredes, desabar,<br />
e a imensa escuridão estrelada, me envolver<br />
com as consequências do que eu estava sentindo.<br />
A tradicional moqueca ganhou uma criativa releitura do chef Matheus Buosi, que<br />
comanda a cozinha do DoRo, aconchegante restaurante de sotaque italiano em uma<br />
charmosa casinha de Perdizes, em São Paulo. O toque do chef aparece no processo<br />
de coar o caldo, que ressalta os sabores e aromas. O resultado é o prato nacional<br />
clássico, mas com uma roupagem mais contemporânea. “As pessoas podem esperar<br />
uma versão raiz, exatamente como deve ser, mas com uma apresentação diferente,<br />
que surpreende”, diz o chef. Sirva com arroz, farinha de mandioca e raspas de<br />
limão-siciliano.<br />
PEIXE AO MOLHO DE MOQUECA<br />
Chef Matheus Buosi<br />
INGREDIENTES<br />
• 360 g de filé de peixe branco<br />
(robalo, cação, tilápia ou pescada)<br />
cortado em cubos<br />
• 1 cebola média<br />
• 4 dentes de alho<br />
• 1 pimentão<br />
• 1 pimenta dedo-de-moça<br />
• 1 lata de extrato de tomate (340 g)<br />
• 80 g de azeite de dendê (1/3 de<br />
xícara de chá)<br />
• 750 ml de água<br />
• 1 litro de leite de coco<br />
• 1 colher (chá) de orégano<br />
• Pimenta-branca a gosto<br />
• Ervas frescas (orégano, tomilho,<br />
alecrim, manjericão) a gosto<br />
• Sal a gosto<br />
MODO DE PREPARO<br />
Molho<br />
1. Descasque a cebola e o alho, retire o caule da pimenta dedo-de-moça, remova o cabo, as sementes<br />
e a fibra branca interna do pimentão e corte tudo sem se preocupar com proporções.<br />
2. Em fogo médio/baixo, refogue por 5 minutos, em um fio de azeite, a cebola, o pimentão e a<br />
pimenta dedo-de-moça.<br />
3. Adicione o alho e refogue por mais 2 minutos.<br />
4. Acrescente o extrato de tomate, o azeite de dendê, o orégano, o sal, mexa e marque mais 2<br />
minutos.<br />
5. Coloque a água e o leite de coco, e deixe ferver por 20 minutos.<br />
6. Com o auxílio de um mixer, bata todos os ingredientes, passe por uma peneira e reserve o<br />
molho coado.<br />
Dicas do chef<br />
A cada etapa, acrescente um pouco de sal; ele<br />
ajuda os alimentos a desidratarem, destacando<br />
melhor todos os sabores.<br />
Com os sólidos coados, faça um antepasto delicioso<br />
com ricota. Uma parte dos sólidos para<br />
cada parte igual de ricota e creme de leite até<br />
chegar à consistência desejada.<br />
Rendimento: 2 porções<br />
Foto: divulgação<br />
Rachel Cusk<br />
Trecho de Segunda Casa<br />
Tradução de Mariana Delfini<br />
Editora Todavia<br />
Peixe<br />
1. Corte o filé em cubos de aproximadamente 2 dedos de espessura e tempere com sal e pimenta-branca.<br />
2. Em uma panela, despeje o molho de moqueca sobre o peixe temperado e leve ao fogo baixo por<br />
5 minutos. O ideal é que ferva bem pouco para não evaporar o molho.<br />
3. Com o auxílio de uma espátula, disponha o peixe em um prato fundo e regue com o molho.<br />
4. Finalize com ervas frescas e um fio de azeite.<br />
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Uma imagem<br />
No Poço (1969) - Maria Primachenko<br />
“Um milagre artístico.” Foi assim que Pablo Picasso descreveu<br />
a obra da vencedora da medalha de ouro em pintura na<br />
Feira Mundial de Paris em 1937. A autora do tal milagre era<br />
a ucraniana Maria Prymachenko (1909-1997). Autodidata, a<br />
artista transpôs técnicas artesanais do bordado para as telas,<br />
criando motivos florais, campestres e outros. Depois de<br />
passar a infância colorindo tradicionais ovos de Páscoa, ela<br />
começou a pintar telas por paixão, sem se ater a nenhuma escola<br />
clássica. Sua influência era o cotidiano agrário na Ucrânia<br />
de sua época e os mitos, lendas e festas populares. Com<br />
cores vibrantes, animais (muitos deles mitológicos) e flores,<br />
seus quadros e painéis são hoje considerados o ápice da arte<br />
naïf não só da Ucrânia mas de todo o Leste Europeu.<br />
Um recente bombardeio russo ao Museu da História Local de<br />
Ivankiv, perto da capital ucraniana, Kiev, destruiu, entre outras<br />
obras de arte, vários quadros de Prymachenko. O ataque<br />
inexplicável a uma instituição cultural motivou a comunidade<br />
internacional a pedir a exclusão da Rússia da Unesco (braço<br />
da ONU que cuida do patrimônio cultural global) <strong>–</strong> ao longo<br />
do ano de 2009, no centenário da pintora ucraniana, a entidade<br />
organizou atividades dedicadas à sua obra. A solidariedade<br />
ao museu de Ivankiv se espalhou pelo mundo, com<br />
artistas e organizações divulgando a arte de Prymachenko<br />
para homenageá-la e eternizá-la.<br />
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