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Revista ZERO UM | Nº 01 | 2022

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Uma produção:

01

Revista da Associação de Estudantes da

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Maio 2022

Nº 01

Com o apoio de:

Conselho Editorial:

Ana Francisca Silva

Catarina Carrapa

David Freiria

Gustavo Couto

Joana Silva

João Castro-Ferreira

João Gonçalves

Maria Leonor Borges

Sofia Oliveira

Propriedade e Edição:

Associação de Estudantes da Faculdade de

Medicina da Universidade do Porto

Alameda Professor Hernâni Monteiro

Piso 01, 4200-319 Porto, Portugal

Periodicidade:

Semestral

Contribuinte Número:

501 410 058

Redação e Design Gráfico:

AEFMUP

Impressão:

A Medisa

Diponível em:

www.aefmup.pt

ISSN 2795-5265

Margarida Duarte Albuquerque

Presidente da AEFMUP

Vimos a pé, de metro, de carro, de autocarro. Descemos a ferradura, entramos no Átrio dos Estudantes. Lançamos

um olhar rápido à exposição que já nos acostumamos a ver. Passamos a segunda porta, estamos no corredor do 01. É

neste corredor que, no fundo, tudo se passa. Observamos a agitação, o alvoroço. A fila do Health Bar, já extensa logo

pela manhã, os médicos e demais pessoal hospitalar a caminhar nas várias direções, a sentar, a levantar. Ouvimos

de relance as conversas dos colegas que seguem em grupo, cumprimentamos as caras conhecidas que encontramos.

Paramos ocasionalmente para conversar, se se proporcionar. Se, como é costume, já formos atrasados para a

aula, murmuramos qualquer coisa àquele conjunto de pessoas que ocupa a totalidade da largura do corredor e não

nos deixa ultrapassar de forma acelerada. Vamos à Marta ou à Lina, saber ou contar a última novidade, acabando por

ficar lá largos minutos. Dirigimo-nos ao Salão de Alunos, à sala de estudo, aos Pensadores ou seguimos até ao CIM.

O que marca, afinal, um novo início? O começo de algo novo tem tanto de extraordinário potencial, quanto de

imprevisível impacto. A consciência das alterações a decorrer e a lucidez para as encarar. O conhecimento do passado,

o abraçar da mudança no presente para desenhar o futuro – reclamando-o como nosso.

A “zero um” será um espaço teu e para ti. Tu, que todos os dias andas pelo nosso corredor, queremos que divagues

por este zero um também. Nestas páginas encontrarás um espaço multidimensional. Trazemos Informação, Ciência,

Política Educativa, Políticas de Saúde. Desporto, Música, Cultura. Inovação, Empreendedorismo, Tecnologia. Entrevistas

a nomes e renomes. Encontrarás colegas e, acima de tudo, queremos que aqui te encontres também. Nos temas,

nos argumentos, nas pessoas, nas opiniões e discussões. Este será um espaço de liberdade para o teu contributo,

sempre que o desejares imprimir.

Vamos virar a página?

ZERO UM

1



05.

lifestyle

Propriedades Nutricionais dos Alimentos mais

Instagramáveis - pág. 89

Drª. Iara Rodrigues

01.

40 anos aefmup

pág. 4

02.

^

Saude, ´ ciencia e

politica ´

Entrevista a Prof. Dr. Luís Portela - pág. 19

Rotinas de Pele para Estudantes - pág. 92

Entrevista a Drª. Sofia Magina

04.

saude ´ mental

Viver em Plenitude: Minfulness 101 - pág. 84

Profª. Drª. Isaura Tavares

A Relevância das Atividades Extracurriculares

no Percurso de se Tornar Médico - pág. 86

Profª. Drª. Elizabete Loureiro

IN

´

D

O que nos Ensina uma Pandemia - pág. 23

Entrevista a Prof. Drª. Raquel Duarte

O Desafio de Envolver o Cidadão no Complexo

Mundo da Literacia em Saúde - pág. 27

Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira

A Pediatria por Diferentes Gerações de Especialistas

- pág. 31

Drª. Carla Rêgo

Drª. Sandra Teixeira

Drª Sofia Lima

Marcos Internacionais da Evolução dos Instrumentos

Cirúrgicos - pág. 42

Prof. Drª. Amélia Ricon Ferraz

Tecnologia na Medicina: Onde Estamos e

para Onde Vamos - pág. 46

Prof. Dr. Tiago Taveira Gomes

I

CE

03.

sociedade, cultura

e desporto

A Arte Encontra a Medicina no Nosso Zero Um - pág. 66

Drª. Sofia Batista

Entrevista a Rita Ferreira - pág. 68

A Arte, a Cultura, a Psiquiatria e o Estigma - pág. 71

Entrevista a Drª. Inês Homem de Melo

A Guerra da Ucrânia - Uma Perspetiva Europeia - pág. 77

Colaboração com Quórum - Fórum Político

Voluntariado em Contexto de Guerra - pág. 81

Dr. Gustavo Carona

Entrevista a Dr. Luís Valente, Diretor Executivo

da iLoF - pág. 50

Entrevista a Dr. Amir Bozorgzadeh, CEO da

Virtuleap - pág. 54

A Forma Como se Nasce Importa: Histórias

de Violência Obstétrica - pág. 60

A Ética do Envelhecimento - pág. 62

Entrevista a Prof. Dr. Miguel Ricou

2 ZERO UM

ZERO UM

3



PRESIDENTES AEFMUP

1982/84 - Nuno Delerue

1985/86 - Carlos Rebelo

1987 - Manuel Sousa

1988 - Rui de Sousa

1989 - Manuel Sampaio

1990/92 - Pedro Menéres

1993 - Nuno Silva

1994 - John Preto

1995/97 - Nuno de Sousa

1998 - Francisco Sampaio

1999/00 - Rui Capucho

2001/02 - Gil Faria

2003 - Ana Moreira

2004 - Lara Queirós

2005 - Miguel Azevedo

2006/07 - Roberto Pinto

2008 - Ricardo Rocha

2009 - Rui Reis

2010 - Pedro Couto

2011 - Hélio Alves

2012 - Francisco Mourão

2013/14 - Francisco Silva

2015 - Diana Rodrigues

2016/17 - Francisco Vieira

2018 - Inês Silva

2019/20 - Nuno Ferreira

2021 - Henrique Moreira

2022 - Margarida Albuquerque

40 Anos AEFMUP

Nuno

Delerue

O

que foi absolutamente inovador da lista

para a Direção que ali nasceu de geração

espontânea e que, seguramente, esteve na

base do sucesso dessa e de todas as direções que se

lhe seguiram, foi o facto de ninguém ter perguntado a

ninguém como ali tinha vindo parar. E, por consequência,

a garantia de aquele punhado de gente, muito diversa,

não estava ali por indicação de um qualquer

diretório partidário, antes por um gosto genuíno de

servir, contribuindo para que a escola que sentíamos

como nossa o fosse melhor. Claro que ninguém duvidava

que todos tínhamos as nossas próprias convicções,

e muitos de nós – eu incluído – seguimos até

carreiras públicas que são conhecidas. Mas não foi isso

que nos uniu ali e naquele momento. A primeira direção

da AEFMUP legalizada teve uma génese “anarca”,

o que – reconheça-se – é um registo deveras singular.

O trabalho da direção foi, num primeiro momento,

de reconstrução [no sentido estrito do termo]. E depois

de legitimação para dentro e para fora. Reconstrução

porque, pura e simplesmente, nada existia. As condições

logísticas de base eram nulas e foi um esforço

titânico criá-las. Voltando atrás, rebobinando, valeu a

pena! Valeu imenso a pena.

Pelo que se fez e pela semente que se lançou.

Pelo que perdura como convicção que o movimento

estudantil na sua forma apaixonada e voluntarista

é uma escola de vida. Quem passa por lá nunca mais

esquece. E sai diferente.

Saímos todos diferentes porque o trabalho, por natureza

e definição, é coletivo. Saímos, também, todos

com a certeza de ter ajudado a que haja hoje melhores

médicas e médicos, seja pessoal seja profissionalmente

falando. E isto, como resultante final, é o que mais

conta!

4 ZERO UM

ZERO UM

5



Elisabete

Barbosa

Nuno

Alegrete

A

IFMSA (International

Federation of Medical

Students’ Association)

foi criada logo após a

2ª Guerra Mundial. Entre outras

atividades, dinamizou os Programas

de Intercâmbio entre

as Faculdades de Medicina de

todo o mundo. Portugal integrou

esta Federação enquanto

PorMSIC, em 1983. Em 1985

coordenei localmente (LEO) o

programa de intercâmbio, em

1987 assumi a coordenação nacional

(NEO) e durante 2 anos a

sua Presidência. Durante estes

anos foi possível proporcionar

a muitos estudantes a oportunidade

de realizarem estágios

em vários países e foi também

muito gratificante recebê-los na

nossa instituicão. Diria que foi a

experiência mais gratificante e

feliz da minha vida académica

pela partilha, pelo convívio e

pelas amizades que ainda mantenho

em todo o mundo.

Miguel

Guimarães

Não se ama quando não se ouve a

mesma canção, Rui Veloso

Em 40 anos de existência,

a AEFMUP foi

sempre uma escola

prática e notável para a formação

de muitos médicos. No seu

seio aprendemos a ser melhores

pessoas, a valorizar as dimensões

humana, solidária e ética

da vida, a entender a importância

da ciência e da investigação,

a defender valores essenciais

tais como a liberdade e os direitos

humanos. Construímos uma

família, que nos liga e faz pontes,

que nos liberta e nos agrega,

que nos apoia e nos ajuda.

Que nos ensina a liderar e

ser mais sociáveis, a ser médicos

e cidadãos mais completos.

Em que o sentido de gratidão,

humildade e empatia falam

mais alto.

Na verdade, juntos somos

mais fortes. E temos fortes elos

de ligação. Um deles é visível e

tem nome, chama-se Lina. O outro

sente-se e tem vida naquela

voz que nos transforma numa

canção que todos amamos.

Vida eterna às mulheres

e homens que construíram e

mantêm a nossa canção na forma

de uma associação que será

sempre a nossa bússola e a nossa

âncora.

Estávamos no ano de

1992/93. A Associação

de Estudantes estava

a recuperar de vários anos de

saldo negativo e, após três anos

de mandato do Pedro Menéres

como presidente, as contas estavam

praticamente invertidas.

Este foi finalmente o ano em que

o mandato terminou com saldo

positivo... Esse trabalho tinha já

começado com o Ricardo Sampaio

(nessa altura ainda eu não

pertencia à Direcção) e muita

dessa recuperação se deveu ao

rigor na gestão dos departamentos

produtivos da AEFMUP: a litomédica

(uma tipografia onde

Apoiada numa estrutura

forte e numa continuidade

assumida, a

associação de estudantes de medicina

dessa altura destacava-se

no panorama do movimento estudantil

nacional pela estabilidade

da sua direcção e pela preparação

dos seus dirigentes. A passagem

de testemunho, transmissão de

conhecimentos entre gerações e

formação de dirigentes fazia-se

de forma continuada e sem sobressaltos.

eram produzidas as sebentas,

mas que vivia sobretudo dos

trabalhos para o exterior) e a

editorial (o departamento responsável

pela comercialização

das sebentas, estetoscópios e

outras ferramentas...).

A seriedade e o empenho de

pessoas como o Fernando Araújo,

Manuel Pizarro, Paula Barbosa,

Francisco Cunha, John Preto

(que viria a suceder-me como

Presidente da DAE) e tantos outros,

foi fundamental para essa

recuperação.

Como também foi fundamental a

gestão do Sr. Fernando Andrade, braço

direito de todos quantos foram responsáveis

por estes departamentos (eu

também por lá passei enquanto vice-

-presidente) e a quem se deve todo o

conhecimento sobre a sua gestão. Mas

sobre esta história, existem arquivos...

Os Boletins Informativos, os Relatórios

de Actividades e Contas (tantas noites

em claro!)...

Nuno

Bettencourt

Numa época muito conturbada

em termos políticos, em que muitas

direcções de associações de estudantes

caíram nas mãos de juventudes

partidárias, em resultado do

movimento estudantil de oposição

à lei de financiamento da Universidade

(”Lei das Propinas”), a AEFMUP

manteve-se sempre, e apenas, uma

estrutura de – e para - estudantes

de medicina, sem qualquer filiação

partidária. A nível interno, a Faculdade

debatia-se com uma reforma

curricular que visava uma adaptação

à redução prevista para a duração

do então designado “Internato

Geral” e a introdução de “blocos

curriculares”. A principal missão da

AEFMUP nesse período foi tentar

assegurar uma transição gradual

do antigo para o novo currículo que

não prejudicasse os alunos dos anos

afectados. O tempo passou e... seis

anos mais tarde, tinha 6 anos de dirigente

associativo, três dos quais

como presidente da AEFMUP. Hoje,

quando passo na piso 01 do HSJ não

posso deixar de sentir algum orgulho

naquilo que conseguimos fazer:

as concessões, os contratos, a sala

de estudo, a videoteca, a sala da

tuna, o salão de alunos, os cacifos,

a sede da FAP e a criação da ANEM

são as marcas visíveis desses tempos

mas há mais, muito mais, que

fica e que se transmite às gerações

seguintes: a vontade de fazer mais

e melhor em nome dos estudantes

de medicina.

6 ZERO UM

ZERO UM

7



Francisco

Sampaio

Rui

Capucho

Recordar os principais

momentos da

minha passagem

pela direcção da AEFMUP não

é tarefa simples. Foram muitos,

bons e há mais anos do que

quero pensar! Também não

me é possível distinguir, com

clareza, o mandato em que assumi

a presidência da direcção

dos restantes: cumpri quatro

mandatos como membro da

direcção e guardo, de todos,

grata recordação. Passei, com

a AEFMUP, por momentos de

mudança importante nas Universidades

e nas Faculdades

de Medicina portuguesas – da

questão do financiamento do

Ensino Superior com o aumento

significativo das propinas,

à reforma curricular da licenciatura

em Medicina da FMUP

com a introdução do sistema

de blocos, até à decisão política

de aumentar, contra o parecer

do Conselho Directivo da

Faculdade, o numerus clausus

dos cursos de Medicina, cujas

consequências (por nós previstas

nessa altura) se fazem

agora sentir. Trabalhei com

colegas leais e empenhados;

tendo obviamente diferentes

sensibilidades no seu interior,

a AEFMUP conseguiu sempre

escapar à partidarização e funcionar

como um bloco focado

no seu verdadeiro papel: a defesa

dos interesses da Faculdade

e dos seus alunos. Lidei

com docentes competentes

e interessados; fui, e ainda o

sou hoje, profundamente influenciado

pelo exemplo de

honradez e verticalidade do

Prof. Doutor Pinto Machado,

na altura Director da FMUP.

Sem ele, o papel da AEFMUP,

considerada um par na gestão

da instituição cuja opinião era

sempre tida em conta, teria

sido provavelmente irrelevante

na discussão de muitos destes

assuntos; e, como escrevi

na altura na comemoração de

mais um “Dia da FMUP” a Faculdade

teria “a tranquilidade

que é, como se sabe, a boa

paz dos cemitérios”. E também

me confrontei com os outros,

os que não interessam e dos

quais já me esqueci.

Até aí, a AEFMUP me ajudou;

a sageza do tempo permitiu-me

atribuir o papel próprio

às questões menores. Durante

as direcções a que pertenci, a

AEFMUP participou na organização

de congressos (como o

Congresso de Educação Médica

ou o “International Conference

on Drugs of Abuse”), conferências

(como o ciclo intitulado ”A

FMUP em busca de respostas”

em que se discutiram, com

convidados internacionais, temas

como a reforma dos cursos

de Medicina, a sua acreditação,

ou a reforma do Internato Geral)

e debates (como o debate

entre os cinco candidatos a

Bastonário da Ordem dos Médicos

nessa altura).

Projectou-se e construiu-se

a sala de estudo junto ao salão

de alunos.

Mas também se organizaram

eventos “menos científicos”

como as “Semanas Culturais”,

os “Medicina Radical” ou

os “Encontros Nacionais de Estudantes

de Medicina”. E temo

que a minha memória tenha

injustamente esquecido outras

pessoas e temas importantes.

Não ganhei nada por ter pertencido à direcção

da AEFMUP. Não é um cargo remunerado,

não usufruí dos benefícios do estatuto

de dirigente associativo, não procurei nem

distribuí favores, não assumi cargos políticos

nem de gestão. Mas, se lá não tivesse

estado, teria perdido a experiência inesquecível,

os amigos para a vida e a minha

família.

Obrigado AEFMUP!

Memórias da vida de um médico...

Pediram-me para escrever um texto sobre

os anos em que fui presidente da AEFMUP

para o BI comemorativo… Em sentido estrito

será difícil distinguir os anos específicos (1998 e 1999)

em que exerci o cargo de presidente, porque a vida na

AEFMUP foi um contínuo para além desses anos específicos,

tanto antes como depois. Comecei a minha actividade

na AE, em 1994, no departamento informático,

na altura da construção da primeira rede informática

(já existia um protótipo em MacTalk para os Machintosh,

através da rede telefónica) e, depois de exercer

o cargo, fui ainda presidente da mesa (local onde arrumam

os velhos rezingões). Mesmo depois disso, ainda

acompanhei o evoluir da AE por muitos e bons anos,

pelo que me é difícil ir buscar memórias antigas com

um espaço temporal preciso. Que me posso lembrar

de relevante desse tempo? A malta ainda não usava

telemóveis! Queríamos falar com alguém, telefonávamos

para casa e pedíamos para falar com fulaninho de

tal. A AE já era uma referência na Academia, foi das

primeiras a ter contabilidade organizada (a partir de

2000 com contabilidade efectuada por TOC), sempre

com um ambiente sereno e responsável. No fim dos

anos 90, havia uma tentativa de partidarização das AEs,

com lutas entre JS, JSD, JP e JC a tentar dominar (ou

influenciar) as direcções e a FAP. AEFMUP sempre se

conseguiu distanciar desse mundo.

A vivência de faculdade estava a adaptar-se a um

novo paradigma, o sistema de ensino por blocos nos

anos clínicos tinha acabado de ser implementado. De

um grupo de estudantes que tradicionalmente tinham

pouco que fazer durante o ano, apenas com duas épocas

de exames (Janeiro e Julho), passámos a ter, nos 3

últimos anos, menos tempo no dia-a-dia para as actividades

associativas.

Foi nesse período que ficou concluída a obra de

construção da sala de estudo Prof. Doutor Pinto Machado,

que tive o privilégio de inaugurar. Com a sala de estudo

no 01 e com cada vez mais alunos a estudarem no

dia-a-dia (e no noite-a-noite), contratámos 2 seguranças

para termos as instalações abertas 24 horas por dia.

Muitas noites foram passadas entre estudo na salinha

(parco), convívio no salão, competições de Half-Life às

2 da manhã na sala de informática… De relevo desses

anos, tenho apenas que acrescentar (e frisei isso no

debate da AE através dos anos) a maneira como nos

relacionávamos com o Director da altura, o Prof. Pinto

Machado, que nos considerava um verdadeiro parceiro

e nos chamava para debater todos os temas relativos à

faculdade, na perspectiva de conhecer a nossa opinião,

e não apenas aqueles directamente relacionados com

os estudantes. Muitas das decisões do Conselho Directivo

da altura eram consensuais connosco, não por

ter havido negociação prévia, mas pelas partes terem

discutido exaustivamente sem a ideia do ‘nós vs eles’,

por sermos todos ‘nós’. Guardo com carinho os anos aí

passados, tendo contribuído de forma decisiva para

quem sou, pessoal e profissionalmente, hoje em dia.

Continuem a pugnar por um associativismo competente,

solidário e apartidário, num mundo em convulsão,

em crise, altura em que o associativismo mais faz a

diferença.

8 ZERO UM

ZERO UM

9



Gil Faria

Caros FMUPianos, foi com muito

prazer que recebi este convite para

tergiversar sobre algumas das memorias

que me ficaram dos meus tempos “à

frente” da AEFMUP… Longe que vão esses

tempos e os “arquivos” afogados pela imparável

evolução da actualização digital, não me

resta senão relembrar algumas das memórias

retidas pelo sistema límbico (aquelas que são

mais importantes, não pelo seu valor intrínseco,

mas pelo significado que lhes fomos

atribuindo ao longo do tempo…). Lembro-me

que assumi o cargo de Presidente da AEFMUP

em 2001 (o ano em que foi lançado o Senhor

dos Anéis...), no rescaldo de uma GA da IFM-

SA (a maior reunião de alunos de Medicina

de todo o mundo realizada em Portugal - na

nossa Invicta, no Verão de 2000), que deixou

à beira de um ataque de nervos (e da ruína

financeira) quer a ANEM quer a AEFMUP. Foi,

portanto, dez anos antes da crise económica,

que aprendemos o significado da expressão

“medidas de contenção” ! Além das dificuldades

económicas, sentia-se por parte dos nossos

sócios (os vossos antecessores…) alguma

desconfiança para com a AEFMUP. Soavam

rumores de que a Direcção da AE era um grupo

de amigos, que basicamente organizava a

vida associativa em proveito próprio…

E, embora não sendo verdade, tal como à

mulher de César, não nos chegava ser sérios,

tínhamos também de o parecer… Era, pois,

tempo de a AEFMUP (que tanto crédito gozava

junto do “mundo associativo” e da política

educativa), transferir o seu foco primordial,

novamente para os alunos da FMUP.

Dito isto, recordo alguns dos projectos e

tarefas mais importantes durante esse tempo… Tal como esperado,

o primeiro passo foi o emagrecimento da AE (a agora tão

moderna redução da despesa), ao mesmo tempo que tentávamos

angariar novas formas de financiamento. Para isso, foi fundamental

a “profissionalização” da gestão e da contabilidade associativa

e o início do processo que nos havia de levar à consagração de

“instituição de utilidade pública”… Era necessário dar às instalações

de todos os alunos um ar mais limpo e mais digno, pelo

que se procederam a extensas obras de renovação no Salão de

Alunos e nos corredores da AEFMUP!!! A par disto, passamos a

disponibilizar a todos os alunos a possibilidade de uma sala de

estudo (a sala Prof. Doutor Pinto Machado) aberta 24h por dia!

Também importante, foi a “refundação” de algumas actividades

históricas da AEFMUP e o início de algumas experiências inovadoras,

dedicadas, especificamente, aos alunos da FMUP, como:

• Reedição do “Medicina Radical”

• Realização das “JERM” (Jornadas de Encontro à Realidade

Médica)

• Início das “Campanhas de Rastreio de HTA e DM2”

Importa destacar o imediato sucesso destas actividades, traduzido

pelo facto de se “esgotarem” as vagas em poucas horas,

aliado ao facto de serem economicamente sustentáveis. E, assim,

chegamos tranquilamente ao segundo mandato... Numa altura

em que não havia alternativa nem alternância democrática, resolvemos

fazer uma campanha eleitoral mediática e que, definitivamente,

aproximasse os eleitos dos eleitores... Contra todas

as expectativas... fomos eleitos! Era, então, altura de pensarmos

na expansão e de pormos a AEFMUP a olhar para o futuro... Era

o ano do XX aniversário e não podíamos deixar passar a ocasião.

• Fizemos uma semana inteira de festa

• Criamos o actual logótipo e imagem da AEFMUP, renovando o

que vinha já “gasto” dos anos 80

• Reformamos o corpo editorial e a estrutura dirigente da AR-

QUIMED

• Renovamos as “Sebentas da AEFMUP” e regulamentamos a

utilização dos espaços e materiais da AE

• Organizamos o ENEM em Santiago de Compostela

• Consolidamos as contas, remodelamos os espaços comerciais

e multiplicamos as actividades oferecidas aos alunos...

• Nem tudo foram rosas: fomos “expulsos” do Parque de Estacionamento,

não sem antes mostrarmos bem alto a nossa indignação

(quem se lembra do “Jaime do Parque”?)

E, finalmente, voltamos a virar-nos para a Academia, com

participação activa na FAP, na Queima das Fitas, com apoio aos

Grupos Académicos...Penso que conseguimos um bom equilíbrio

entre a aproximação aos nossos “sócios” e a proximidade à Faculdade,

Ordem dos Médicos, Ministério da Educação, Hospital,

ANEM, FAP, IFMSA... Não posso deixar de relembrar todos os que

participaram nesse projecto, todos eles foram importantes para

manter este projecto que continua a ser a AEFMUP.

Ana

Calafate

Tive a honra e o privilégio

de encabeçar

a mítica Lista E no

ano lectivo 2002/2003, composta

por algumas das pessoas

mais inspiradoras com quem já

trabalhei. E foi assim que fui

eleita Presidente da AEFMUP,

a primeira mulher a representar

esse cargo. E este pormenor,

que parece pequeno fait-divers,

foi mais uma prova da pluralidade

da AEFMUP, sempre

inclusiva, igualitária, onde se

dava voz a opiniões muito diversas,

geradoras de discussões

exaltadas nas longas reuniões

da Direção... Foi, talvez, de um

modo inconsciente que aceitei

esse desafio - tinha sido vice-

-presidente e os presidentes

anteriores representavam o

cargo com tal mestria que parecia

fácil. Vínhamos de um longo

braço de ferro com a administração

do hospital, interessada

em retirar “privilégios” aos

estudantes - acesso ao parque

de estacionamento, acesso ao

corredor do 01.

Eram tempos de mudança

na Faculdade - após a revisão

dos estatutos da UP, estávamos

em plena discussão da revisão

dos estatutos da Faculdade.

Falava-se na criação da figura

do Diretor da Faculdade,

tão defendida pelos alunos, do

aumento dos poderes do Conselho

Pedagógico, da reforma

da Assembleia de Representantes

para tornar a Faculdade

mais ágil, mais competitiva,

mais coesa.

Era deste processo transformativo

que os alunos queriam

ser parte integrante, voz

ativa e construtiva. Uma participação

que se queria através

da direção da AEFMUP, mas,

sobretudo, através da participação

de todo o corpo estudantil,

incitando-os a que, no seu

dia-a-dia, exigissem condições

dignas para a sua aprendizagem,

com melhoria do rácio

docente-discente, melhoria

dos materiais e equipamentos

pedagógicos, numa postura de

co-responsabilização na sua

gestão. Se tínhamos conseguido

uma sala de estudo nos

anos anteriores, reivindicamos,

nessa altura, instalações físicas

que permitissem albergar

o crescente número de alunos.

Um edifício novo - e que acabou

por ser construído!

Do dia-a-dia na AEFMUP recordo

tudo com a saudade que

o tempo permite - a sala da direção,

o salão, viver horas a fio

no corredor do 01. As reuniões,

as atas, as votações. A nossa

Lina, que viu nascer a AEFMUP e

a acompanha com uma dedicação

estoica, vendendo bilhetes,

guardando pastas, sinalizando

alunos que estão mais sós. A

Marta, a Luísa. A Teresa e a reprografia,

o Faustino e a Medisa.

O Sr. Jacinto e o engraxador de

sapatos na entrada do bar do

01. A Tuna, a Tuna Feminina, o

Grupo de Fados. As comissões

de curso. O Baconal e a recepção

ao caloiro. A Comissão de

Praxe. A FAP e a Organização da

Queima das Fitas. Os Erasmus

que começavam!

A ANEM, os CEMEFs, os estágios

internacionais. O ENEM

(e nós que tínhamos organizado

novamente Santiago!). Os

Óscares, o Sarau cultural, o Jantar Internacional.

Tudo se interligava, nesta óptica

inclusiva de onde a AEFMUP se ergueu - a

associação era de todos e feita por todos.

E esse é o verdadeiro legado da AEFMUP -

uma associação de estudantes para todos

e com uma grandiosidade digna de uma

faculdade como a FMUP.

Viva a AEFMUP!

10 ZERO UM

ZERO UM

11



Lara

Queirós

Ricardo

Rocha

Pela primeira vez em 179 anos, a Faculdade

de Medicina tem, estatutariamente,

um Diretor, figura unificadora da casa.

Merecedor de toda a nossa confiança, poderá e deverá

contar com o nosso contributo na defesa desta

casa e de todos os seus membros. Desta forma, continuaremos

a vencer quaisquer desafios. E os desafios

que se nos deparam são preocupantes. Diz-se

que há falta de médicos. Com razão: a percentagem

de mulheres em Medicina é cada vez maior. A falta

de médicos em Portugal é apenas aparente: o problema

está na má distribuição.

No ano em que a FMUP completou

190 anos de história,

foi tempo de celebrar o seu

passado e projetar o seu futuro: a instituição,

as pessoas e os seus ciclos. Quanto

às pessoas, cumpriu-me deixar também

uma palavra de reconhecimento e gratidão

para com o pessoal não docente

desta Faculdade, pela primeira vez representado

de viva voz na Cerimónia. Sendo

o início de um novo ciclo reitoral e na direção

da FMUP, houve espaço para deixar

mensagens a ambas as instituições.

No que respeita à Universidade, ma-

Não concordamos com a formação de médicos para

o desemprego. É um processo longo e muito caro. Além

disso, com as atuais condições físicas e de recursos humanos,

as faculdades não conseguem aceitar mais alunos.

Não esqueçamos: é suficiente haver uma faculdade de

Medicina por cada dois milhões de habitantes. Já temos

sete. A abertura das duas últimas escolas médicas há 3

anos implicou a transferência de recursos humanos das

existentes. O nosso principal objetivo é melhorar as condições

de aprendizagem. Tendo uma visão única, transversal,

da Licenciatura, lamentamos que o lugar dos alunos nos

órgãos de gestão seja questionado. O associativismo da

FMUP sempre se pautou pela maturidade e dedicação. Não

aceitamos ser transformados em meros clientes do ensino

superior. Pagando cada vez mais. Com todas as dificuldades,

é admirável mantermos o excelso nível de qualidade

desde 1825. Continuemos todos a oferecer a esta casa o

melhor de nós.

Parabéns a todos! Viva a Faculdade!

Diana

Rodrigues

nifestei-me contra o aumento

do valor das propinas, atendendo

à realidade dos estudantes,

manifestando também disponibilidade

para a discussão de

soluções. Contudo, foi também

momento para louvar o amplo

trabalho desenvolvido nos meses

anteriores, no âmbito dos

Serviços de Ação Social, resultado

de uma mudança da Direção.

Voltando à FMUP, não

passou ao lado o perpetuar da

desadequação do número de

estudantes, que se afigurava

como um entrave à excelência

da formação. A implementação

da Reforma Curricular foi também

uma questão abordada.

Concordando com os princípios

e com o espírito de mudança

inerente, foram sinalizados alguns

problemas que se foram

perpetuando, muitas vezes, com

soluções demasiado simples,

resultado de posturas de bloqueio

ou passividade.

Sendo dia de festa, foi com

enorme alegria que assinalei

também o ressurgir altamente

simbólico do Jantar de Comemoração

do Dia da FMUP e

agradeci ao convidado cuja presença

tanto nos honrou: o Prof

Doutor Paulo Cunha e Silva.

Faz parte da minha formação

enquanto pessoa

o interesse por questões

cívicas e essencialmente, questões

políticas. Fez, por isso, sentido que

no final de 2003, sem fazer a mais

pequena ideia do que se tratava,

tivesse sido eleito presidente da

Comissão de Curso do 1º ano. Sublinho,

não fazia a mais pálida ideia

do que era preciso fazer enquanto

tal.

Fui descobrindo ao longo do

ano… Não fiz nada do qual me orgulhe

particularmente, mas pude

contribuir de alguma forma para

representar os “caloiros”, organizar

calendários, discutir e resolver

problemas pedagógicos e promover

algumas das festas que ainda

hoje recordo com saudade. Assim

começou uma parte fundamental

da minha vida académica, a paixão

e sobretudo o “vício” da representação

associativa. No ano seguinte,

o Presidente Miguel Azevedo, convida-me

a fazer parte da direcção,

no departamento de Educação

Médica, permitindo-me perceber,

de facto, o que era a essência da

associação de estudantes da FMUP.

Mas o momento marcante surge

no final deste ano de 2005. A democracia

chegou à AEFMUP após

anos de lista única. E os herdeiros

da lista única (a lista E), na qual eu

me incluía orgulhosamente, aprendem

uma dura lição. Perdemos as

eleições.

Como é que foi possível que

os estudantes não nos tivessem

escolhido, nós que eramos aqueles

que tinham experiência, os que conheciam

os cantos à casa, os que

sabiam como se faziam as coisas?

Fácil. Eles eram melhores, e os

estudantes são sábios. Souberam

escolher. Isto mudou a face da AE,

mudou a forma como se relaciona

com as pessoas, incutiu nos seus

dirigentes um respeito pela democracia

e pela vontade dos estudantes,

valores históricos fundamentais

da nossa associação, mas que

estavam algo esquecidos. Espero

sinceramente que estes valores se

mantenham hoje em dia nesses

corredores.

Voltei a integrar a AE em 2007,

a convite do então Presidente Roberto

Pinto, contra quem tinha

anteriormente perdido as eleições.

Mais uma lição, a humildade de

quem ganha e de quem perde. Aí

todos os que quiserem trabalhar

em prol dos estudantes são bem-

-vindos, independentemente das

suas “ascendências políticas”. Em

2008 fui então presidente da direcção

da AE.

Um ano que recordo com saudade,

marcado por obras na sala de

estudo, no salão e no espaço exterior

que hoje em dia é o espaço

dos fumadores (e cuja ideia surge

precisamente da proibição de fumar

em espaços fechados), marcado

por questões pedagógicas,

questões estatutárias e pelo novo

Regime Jurídico das Instituições de

Ensino Superior.

Corria ainda nesse ano o processo

de adequação a Bolonha.

Não escondo o orgulho do papel

que tive nessa adequação, em

conjunto com muitos outros.

A colegas como o Roberto

Pinto, Bernardo Gomes, Alexandre

Sousa, Rui Reis, se devem as vantagens

inegáveis que a FMUP conservava

face a outras faculdades

e que espero que ainda conserve.

Foi um ano fraco em termos académicos

para mim, confesso. Estudei

pouco e mal. Mas ganhei competências

que ainda hoje me são

úteis todos os dias.

A AEFMUP foi para mim sempre

uma segunda casa, ainda hoje

o é. Não de facto, até porque infelizmente

já não consigo ir aí tanto

quanto desejaria. Mas é a segunda

casa porque nela está também a

minha segunda família. Muitas noites

lá passei a discutir os pormenores

mais ínfimos dos estatutos da

faculdade, todas as leis, decretos-

-lei e portarias, os regulamentos,

as visões e estratégias políticas,

a organização da AE, enfim, tudo.

Mais uma lição, na AEFMUP tudo

se discute, tudo se conversa e em

tudo se procuram consensos.

No final do meu percurso académico

passei ainda pela Federação

Académica do Porto, enquanto

vice-presidente e enquanto presidente.

Mas garanto-vos que não há

cargo nenhum que tenha tido do

qual me orgulhe tanto como de ter

tido a honra de poder representar

os estudantes da FMUP.

12 ZERO UM

ZERO UM

13



Hélio Alves

Na viragem da década, a AEFMUP

vivia uma realidade muito distinta

da actual. Atravessámos nesses

anos uma tremenda crise económico-financeira,

que necessariamente se repercutiu

nos estudantes e nas suas famílias, pelo que

um dos principais focos desses mandatos foi

a acção social (directa e indirecta), com vista

a salvaguardar o aproveitamento académico

de todos. A nível nacional, as principais

preocupações (discutidas acaloradamente

em RGAs com o Salão de Alunos tão cheio

como nos famosos Churrascões) prendiam-se

com a necessidade de implementação de um

novo modelo de Prova Nacional de Seriação,

a inclusão da média de curso e a sua forma

de normalização no acesso à especialidade,

a criação de novos cursos de Medicina (que,

por pressão estudantil junto do Conselho

Geral da U. Porto, acabou por culminar no

encerramento do curso de Aveiro) ou a discussão

do novo Regulamento do Internato

Médico.

Também a nível desportivo se atingiu a

excelência característica da mui nobre, com

a equipa de voleibol feminino da FMUP a

conquistar os Campeonatos Nacionais Universitários

e a alcançar um honroso 3º lugar

nos Europeus. Mas mais do que tudo o que

se possa escrever ou contar, pertencer à AE-

FMUP é uma experiência inesquecível. Esta

casa, agora com 40 anos, é uma verdadeira

Educadora: generosa, definidora de carácter,

transmissora de princípios e valores que mar-

cam todos os que por ela passam, e que, na

tentativa de “eternizar a ilusão de um instante”,

a levam consigo para a vida.

A própria FMUP encontrava-se num período

de reorganização, quer estrutural, quer

pedagógica. Decorrente da introdução do

regime fundacional da U. Porto, houve uma

revisão estatutária da Faculdade e a necessidade

de implementação de uma nova organização

em Departamentos académicos e

não académicos; por outro lado, eram já evidentes

os sinais de esgotamento do plano de

estudos do MIMED, e davam-se os primeiros

passos no sentido da implementação da Reforma

Curricular de 2013 e do novo Regulamento

Pedagógico. Foi também nesses anos

que se concluiu o projecto do novo edifício da

Faculdade (CIM), que constituiu um desafio

para a AEFMUP na tentativa da manutenção

do sentimento de pertença e da unidade do

corpo estudantil, evitando a sua segregação

em edifícios distintos para os ciclos básico e

clínico. Nesse sentido, a AEFMUP tentou dinamizar

a forma como comunicava com os estudantes,

numa altura em que se assistia ao

dealbar das redes sociais. Para isso, e como

sempre, também muito contribuíram todas as

actividades que a AEFMUP desenvolve com o

intuito de complementar a vivência académica

dos seus estudantes, quer do ponto de vista

mais formal e científico, com a organização

do Congresso Nacional de Educação Médica,

do 1º Curso de Cuidados Paliativos ou a dinamização

da revista científica dos Arquivos de

Medicina, quer do ponto de vista mais lúdico,

com a criação das primeiras edições do FMUP

Music Fest, Noites de Tasco, Jantar Regional

ou Medicina vai a Banhos.

Além da tradicional e inestimável articulação

com todos os Grupos Académicos da

casa, foi igualmente nestes mandatos que se

assistiu a uma maior participação espontânea

dos estudantes em novos grupos informais,

com o apoio da AEFMUP à criação do

Quórum (Fórum Político), do CineFMUP ou

do Grupo de Teatro Bastante Amador (actual

GATU).

Parabéns AEFMUP!

Francisco

Sousa Vieira

Cumprem-se 40

anos de AEFMUP.

Agradeço a honra

de a ter liderado num tempo

de grande agitação e de

muita transformação. Nesses

mandatos de 2016 e 2017,

assumimos uma missão que

nos absorveu de responsabilidade,

tal foram o desafio e o

privilégio: repensar a AEFMUP

no espaço e no tempo.

No espaço, afirmando a

associação como uma casa

de ideias mas sobretudo de

ações, assumindo a força da

nossa matriz perante as instituições

da cidade, da região

e do país. Mas também na defesa

da nossa casa-comum de

partilha e convivência - o 01

-, promovendo o sentido de

pertença a este espaço que

Duas dimensões que marcaram

a passagem pela

AEFMUP e me ajudaram

a crescer. A primeira prende-se com

a profissionalização da gestão e a

procura da sustentabilidade económico-financeira.

Nesse âmbito, a AEFMUP sofria

na altura de uma crise económico-financeira

grave, colocando em causa a

sua estrutura. A capacidade da equipa

na altura ter tido uma visão de médio-

-longo prazo, ter procurado as escolhas

tecnicamente mais fundamentadas,

elaborado um plano de negócios

(ainda que rudimentar) e de uma forma

se quer vivo, digno e organizado.

No tempo, destacando

três atitudes e momentos. A

reconciliação com o passado

- simbolizada pelo Pátio dos

Pensadores em homenagem

ao Professor Daniel Serrão, figura

eminente do pensamento

livre a quem o tempo fez

justiça. A consciência do presente

- marcada pela criação

da Sala de Estudo Professor

Daniel Moura, que nos desperta

para a inexorabilidade

do tempo e para aquilo que

com este fazemos.

Fernando

Araújo

muito profissional (pelo menos

empenhada) o ter implementado,

permitiu a sua recuperação,

a credibilização da instituição e

a sua preparação para o futuro. A

capacidade que tivemos de fazer

acontecer, penso que foi o embrião

da vontade de poder voltar

pessoalmente a exercer funções

de gestão. A segunda dimensão

foi a luta pela representatividade

dos interesses dos alunos

de medicina na Universidade do

Porto. Com a promulgação da lei

da autonomia universitária, foi

aprovada a primeira Lei Orgânica

da Universidade do Porto e os

primeiros Estatutos da Universidade

do Porto, neste âmbito. A

E a assunção do futuro com uma conquista

intangível - a do espírito de urgência, o substrato

intelectual incorporado pelos estudantes desta

faculdade, em dar novos mundos ao mundo, na

ciência e na vida. Mas se o passado é também

de orgulho e o presente de celebração, o futuro

deve ser de coragem e ambição.

De todos aqueles que fazem parte desta história,

é certo, mas sobretudo dos atuais estudantes

de Medicina, pois são esses que vão à frente,

hoje e sempre.

Parabéns a todos!

possibilidade de poder participar

nesta discussão e ter sido eleito

para o primeiro Senado Universitário

do Porto (por Medicina),

foi algo marcante, por reconhecer

a importância da inclusão

nestes órgãos, na construção de

projetos com impacto, que mudaram

a forma como a academia

se construiu e é hoje uma realidade.

14 ZERO UM

ZERO UM

15



Manuel

Pizarro

Na segunda metade dos

anos 80 a Associação

de Estudantes da Faculdade

de Medicina da Universidade

do Porto funcionou para

mim coma uma segunda casa.

Um espaço de fortalecimento

de relações humanas profundas

e duradouras, muitas das quais

permanecem fortes até aos dias

de hoje. Uma oportunidade para

estudar os problemas da profissão,

do sistema de saúde e

do país que nos qualificou para

sermos melhores profissionais e

Do 40° Aniversário da AEFMUP

Como atual Diretor da Faculdade

de Medicina da Universidade do

Porto, não poderia deixar de aqui

saudar o 40° aniversário da constituição da

sua Associação de Estudantes, a AEFMUP!

Mas, a razão porque o faço, não é, de todo

ou apenas, uma mera razão de circunstância,

mas antes o justo e inequívoco reconhecimento

do elevado mérito académico e

social da sua ação ao longo destas quatro

décadas. De facto, quero aqui testemunhar

o enorme empenho que sucessivas gerações

de estudantes da nossa Faculdade têm

vindo a demonstrar, através da AEFMUP e

dos diversos grupos científicos, recreativos,

culturais e solidários a ela associados.

cidadãos mais atentos. Um desafio

à combinação harmoniosa

entre o estudo, a vida pessoal e

a participação cívica. A AEFMUP

constitui uma parte indelével da

minha vida e, não tenho dúvidas,

moldou de forma positiva parte

importante do que eu sou.

Fico feliz por manter, até aos

nossos dias, o mesmo espírito

combativo e construtivo.

Altamiro

Pereira

Empenho esse que se tem

vindo a traduzir na melhoria das

condições pedagógicas, na promoção

da investigação, da ciência

e do profissionalismo e até

no domínio da inter-ajuda ou da

solidariedade social da FMUP,

envolvendo doentes e pessoas

carenciadas.

Na verdade, a AEFMUP tem

sido capaz de motivar, programar,

gerir e, sobretudo, executar

inúmeras atividades estudantis

que, sendo tantas e tão significativas,

não caberá aqui uma

menção mais específica. Todavia,

tendo tido o privilégio de

já ter conhecido e privado com

três dos seus mais recentes presidentes,

o Nuno, o Henrique

e a Margarida, não posso deixar

aqui de os mencionar, bem

como de homenagear o dedicadíssimo

e competente trabalho

das equipas da AEFMUP que

representaram ou representam,

em prol da Faculdade e de todos

os seus Colegas. Assim, a

todos os membros e dirigentes

da AEFMUP, já passados ou

presentes, creiam-me, pessoal e

institucionalmente, muito reconhecido,

pois sem vós a FMUP

não seria o que hoje é: uma

Faculdade que ambiciona ser

sempre um Exemplo, dentro da

Universidade do Porto e no País,

de promoção e de prática de

valores de natureza humanista,

de defesa da verdade e do rigor

científicos, de prossecução de

princípios éticos e da compaixão

pelos doentes, de ensino,

de investigação, de assistência

e de inovação em Saúde. A bem

da Medicina!

Tive a honra de integrar a Lista A

no 2º ano do MMED. À data do

telefonema que recebi do Nuno,

o entusiasmo foi imediato. Não fazia a mais

pequena ideia da jornada que se seguiria e

do rumo que a minha vivência na FMUP viria

a tomar.

Em 2019 fui, então, Departamento Cultural

e Recreativo, ao qual se seguiu um

mandato no Departamento Académico, Pedagógico

e de Educação Médica, em 2020,

depois do qual fui Vice-Presidente Externa,

em 2021, culminando na equipa que tenho

este ano o prazer de liderar.

Se hoje a AEFMUP se vangloria de ser

grande é por, ao longo destes 40 oficiais

anos, e tantos outros oficiosos para trás, ter

sido encabeçada e composta por gigantes.

É com irreverência que nos destacamos

enquanto estrutura na Academia, na Medicina,

no Ensino Superior e no País. Foi com

profissionalismo e brio que nos tornamos

uma mais-valia para quem trabalha connosco,

uma força simbiótica para os nossos

parceiros.

Foi graças à nossa competência e trabalho

sério e rigoroso que nos atribuíram

credibilidade.Tudo isto, assente num pilar

fundamental: a nossa independência. Dela

depende toda a nossa ação.

Temos, neste momento, a felicidade de

poder dizer que as relações institucionais

e sociais com os principais envolvidos no

ecossistema basilar em que nos embebemos

são por demais excelentes. A abertura

para o diálogo, construtivo e reivindicativo,

a competência e responsabilidade que nos

reconhecem, o olhar e atuar em conjunto no

aprimoramento pedagógico e científico, no

sentido da melhoria do ensino e aprendiza-

Margarida

Albuquerque

gem, a preocupação partilhada

pelas condições infraestruturais

são o quid pro quo vigente com

a direção de curso, a direção da

FMUP e a administração do Hospital

de São João.

Conscientes da atuação que

podemos ter a diversos níveis

em prol dos estudantes, começamos

a ação deste mandato pelos

espaços que sabemos tão importantes

para quem diariamente

habita o 01 – renovamos o salão

de alunos, do chão ao teto,

do palco ao balcão, e ainda lhe

demos um toque comemorativo,

sob a forma de logótipo edição

aniversário, na parede, em vinil.

Estes 40 anos foram feitos

de valores e ideais. De profissionalização

da gestão, brio político

e representatividade dos interesses

e das pessoas. De batalhas e

de conquistas, como recordam

com mais fidelidade os testemunhos

dos meus antecessores

nesta exposição. Muito mudou

desde ’82, mas a inquestionável

prioridade e grande força motriz,

essa, permanece a mesma: os

estudantes. A eles, aos passados,

aos atuais e aos que ainda virão

pertence esta história!

Muitos dos problemas antigos

continuam, com algumas

nuances, a ser batalhas inacabadas

contemporâneas – o planeamento

dos recursos humanos em

medicina, a necessidade de reformar

o sistema de ensino médico,

a premência pela qualidade

formativa pré e pós graduada, o

numerus clausus, a abertura de

novas escolas de medicina.

Revivamos a nossa história

para perspetivar audaciosamente

os próximos passos. Se o passado

está cumprido e alicerçou a

qualidade que hoje temos nesta

estrutura associativa de referência

interpares, o presente envolve-se

de celebração, orgulho e

vontade de fazer sempre mais,

sempre melhor - lançar as bases

para fazer cumprir o futuro, com

a ambição e proficiência que tão

bem nos tem caracterizado.

É para esta direção uma

imensa honra celebrar o 40º aniversário

da AEFMUP. Pertencer

a esta casa é uma experiência

indelével e indescritível. Diariamente

molda quem somos, os valores

que reforçamos, o carácter

que adquirimos, o que aprendemos

e quem nos tornamos. Se as

horas na sala da direção ou em

representação são infindáveis, se

o investimento é contínuo, a dedicação

e responsabilidade são

profundas, a recompensa, essa,

acredito ser imensurável.

E uma certeza tenho: levarei

daqui para a vida muito mais do

que alguma vez conseguirei dar.

Viva a AEFMUP, Viva Medicina!

16 ZERO UM

ZERO UM

17



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Dr.

LUÍS

PORTELA

Luís Portela é licenciado

em Medicina pela

Faculdade de Medicina

da Universidade do Porto,

tendo exercido atividade clínica

no Centro Hospitalar Universitário

de São João e lecionado

Psicofisiologia durante 6 anos.

Após esse período inicial da sua

vida profissional, passou a dedicar-se

à gestão da empresa familiar,

a BIAL, da qual assumiu a

presidência executiva de 1979

a 2011, momento em que passou

a presidente não executivo

da mesma até se retirar da vida

profissional em 2021. Paralelamente,

foi presidente do Health

Cluster Portugal e do Conselho

Geral da Universidade do Porto,

vice-presidente da Fundação

Serralves e membro da Direção

da COTEC Portugal.

Publicou um total de 10 livros

até à data e, de entre uma

vasta lista de condecorações,

podemos destacar as de Comendador

da Ordem do Mérito,

Grã-Cruz da Ordem do Mérito,

Grã-Cruz da Ordem da Instrução

Pública, concedidas pela Presidência

da República, quatro

doutoramentos Honoris Causa

pelas Universidades de Cádis,

Porto, Coimbra e Lisboa e várias

outras medalhas e prémios concedidos

por diferentes municípios

e instituições científicas.

Neste momento dedica-se à

Fundação Bial, criada em 1994

com a missão de incentivar o

estudo científico do ser humano,

tanto do ponto de vista físico

como espiritual, e a projetos

pessoais.

Doutor Luís Portela

Dada a história da sua família, porque escolheu o

curso de Medicina e não o de Farmácia?

Constituição da Fundação BIAL, 1994.

Eu escolhi a medicina por

duas grandes razões. A primeira

foi gostar de ser útil ao outro,

aos seres humanos, às pessoas

em geral, e achava que a prática

da medicina me ajudava a

ser útil, a ajudar as pessoas que

tivessem problemas de saúde,

problemas físicos ou psíquicos.

Era uma maneira de eu poder

ser útil. Não queria ir para farmácia

ou para economia, que

eram as áreas para as quais o

meu pai gostaria que eu fosse,

porque não me sentia vocacionado

para isso. O mundo empresarial

não me dizia nada. Não

gostava de lidar com números

e mesmo a parte da farmácia

também não me atraía. A outra

razão para a escolha do curso é

que desde jovem colocava algumas

questões existenciais...

desde jovem que eu achava que,

quer na área das neurociências,

quer na área da parapsicologia,

havia muitas coisas por explicar

- se ainda hoje há, naquela altura,

há mais de 50 anos, mais

havia – e, portanto, eram áreas

que eu gostava de, se pudesse,

um dia vir a investigar e ajudar

a esclarecer.

ZERO UM

19



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Que memórias dos tempos de estudante e docente universitário guarda com mais

carinho? O que lhe ficou de melhor desse período da sua vida?

Eu acho que na faculdade há, por vezes, momentos

mais difíceis. Lembro-me de estar a estudar algumas

coisas e a pensar: “Mas isto para que serve? Não vai

servir para nada...” Quando estava a estudar anatomia

e tinha de estudar os ossinhos da mão, os ossinhos do

pé, as facetas que tinham e com o que estavam interligados,

às vezes ficava desesperado porque eu nunca

quereria ir fazer ortopedia, não quereria fazer nada ligado

a esse estudo. Mas depois, de facto, fui percebendo

que aquilo que de melhor aprendi na faculdade foi a

maneira de aprender. Aprendi a aprender. E acho que da

Faculdade de Medicina do Porto eu saí preparado para

procurar aprender fosse o que fosse na vida, nomeadamente

na área da saúde, mas até mesmo extrapolando

para fora da área da saúde. Como disse há pouco aos

seus colegas, o meu curso de medicina foi absolutamente

essencial para a carreira que eu fiz como presidente

da Bial, porque me deu uma sensibilidade para as

Sei que, desde cedo, desenvolveu interesse pela área

da parapsicologia e psicofisiologia. Esse interesse

foi incentivado durante o seu percurso académico?

No meu tempo, eu sentia

que não havia grande interesse

no estudo das questões da parapsicologia.

As pessoas tinham

alguma curiosidade como seres

humanos, mas, como profissionais

de saúde, não havia

grande interesse para se dedicarem

a esse estudo. No entanto,

curiosamente, há muitas

vezes a ideia de que nos meios

universitários se renega um bocadinho

a parapsicologia, se renega

fenómenos que ainda não

estão explicados... e, de facto,

na minha experiência, isso não

aconteceu. Enquanto estudante,

as pessoas sabiam que eu tinha

esse interesse e respeitavam

isso; ninguém me aborrecia por

causa disso. Quando eu ganhei

uma bolsa para ir para Cambridge,

ia trabalhar na área da

psicofisiologia, mas o professor

que me ia apadrinhar o doutoramento

dava-me a esperança

de, se as coisas corressem bem,

no final do doutoramento eu

poder desenvolver uma linha

de investigação na área da parapsicologia.

Isso era bem aceite,

os professores aqui não me

punham qualquer obstáculo em

relação a isso. Depois, a experiência

que eu tenho ao longo

destes anos em que a Fundação

Bial apoia bolsas de investigação

é que, de facto, essa

investigação que hoje é feita

em universidades europeias e

norte-americanas – aquilo que

nós apoiamos são projetos de

investigação desenvolvidos em

universidades, quer europeias,

quer norte-americanas – é

respeitada. Os neurocientistas

respeitam isso e têm curiosidade.

Há muitas universidades

europeias e norte-americanas

que têm seminários e cadeiras

de parapsicologia, departamentos

de parapsicologia... e em

Portugal, que eu saiba, isso não

existe. Apenas na Universidade

de Lisboa há um laboratório,

questões da saúde, uma sensibilidade para as questões

da investigação que, de outra maneira, não teria. Desse

período de faculdade, enquanto aluno, foi isso que me

ficou de melhor.

Enquanto docente, o que eu guardo é uma relação

muito boa com as pessoas. Eu tinha prazer em comunicar

com os alunos, mas também percebia que as minhas

aulas eram das mais frequentadas e eu gostava muito

disso. Depois, na Faculdade de Psicologia, cheguei a dar

aulas teóricas e a ter 200 alunos e conhecia-os todos

pelo nome. Isto quer dizer que havia uma relação minha

com eles e deles comigo. Isso foi, para mim, um processo

fantástico: o modo como eu me sentia útil a colaborar

com aqueles jovens para eles poderem desenvolver

as suas carreiras, poderem aprender conhecimento, foi o

que mais gozo me deu enquanto professor universitário.

A PARAPSICOLOGIA CENTRA-

-SE NA INVESTIGAÇÃO DE FENÓ-

MENOS QUE NÃO PODEM SER

EXPLICADOS PELOS PRINCÍPIOS

OU CONHECIMENTO CIENTÍFICO

JÁ DEFINIDOS. PODE EXPLORAR

TEMAS COMO A CONSCIÊNCIA, VI-

DAS PASSADAS E REENCARNAÇÃO,

SENSIBILIDADE, SEXTO SENTIDO,

INTUIÇÃO OU TRANSMISSÃO DE

PENSAMENTO.

chamado LIMMIT, que estuda a área da parapsicologia

e acho que foi muito interessante a sua constituição.

Nas outras universidades, que eu saiba, não há nada

constituído. No entanto, se me pergunta qual é a linha

de tendência, eu acho que é de uma abertura progressiva.

Aquilo que eu percebo ao longo dos 30 anos de

apoios com bolsas de investigação é que, na Europa,

nos Estados Unidos, no mundo, há uma abertura progressiva

às questões da parapsicologia e há como que

um assumir da obrigação dos meios universitários de

procurarem esclarecer de uma forma definitiva o que

é que, de toda essa panóplia de coisas que andam à

volta da parapsicologia, é verdade e o que é mentira,

para que, sob o rigor do método científico, se possam

tirar conclusões e esclarecer a humanidade.

Acha que o estudo da parapsicologia nas

escolas médicas poderá aliviar o peso

que a convivência com a morte constitui

para os profissionais de saúde? E, na

sua opinião, terão os médicos o dever de

estudar mais esta área como meio de diminuir

o sofrimento de quem se encontra

no fim da sua vida?

A parapsicologia tem aparecido nas mais diversas

universidades europeias e norte-americanas muito

associadas a departamentos de psiquiatria ou a departamentos

de psicologia clínica/ psicologia médica,

e eu penso que faz sentido. A investigação faz-se, normalmente,

para esclarecer fenómenos... Por exemplo,

a telepatia, há 30 ou 40 anos atrás, era olhada pelo

canto do olho... as pessoas não aceitavam a telepatia.

Entretanto, foi feita investigação em muitas universidades,

sob o rigor do método científico, e, hoje, a

telepatia é relativamente bem aceite. Há muitas experiências

feitas e, portanto, é uma realidade. Assim,

quando eu falo de investigação, é na tentativa de esclarecimento.

Parece-me que à medida que esse esclarecimento

for sendo feito, algumas ilações devem

ser tiradas. Esclarecimento que será desenvolvido por

experimentação, com base em teorias que terão de

alimentar essa experimentação e, depois, haverá, naturalmente,

algum benefício para os profissionais de

saúde e para as pessoas em geral. Naturalmente, se

um profissional de saúde entender que a morte é apenas

uma mudança de capítulo na vida de uma pessoa,

ele encara isso de forma diferente da que se achasse

que a morte é o fim, o momento em que tudo acaba.

Isso já é um trabalho que poderá ser desenvolvido a

partir dos resultados da investigação em parapsicologia

e que deverá ser trabalhado por psicólogos e

profissionais de educação médica.

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Desde os seus tempos de estudante de

medicina, o que sente que mais mudou no

curso de medicina para melhor e para pior?

Aquilo que tem mudado para melhor, ao longo dos

anos – eu não acho que foi um fogacho, foi algo consistente

ao longo do tempo –, é que os atuais jovens licenciados

saem francamente bem preparados. Saem com

uma preparação teórica e prática que me parece muito

boa. Digo-lhe isto pela experiência enquanto empregador,

enquanto presidente de uma companhia farmacêutica

que tem ao seu serviço algumas dezenas de médicos e

que beneficia dos bons conhecimentos que esses jovens

profissionais apresentam. De resto, deixe-me dizer-lhe

que essa será a razão fundamental pela qual os jovens

médicos portugueses, hoje, saem para o estrangeiro

quando querem e como querem. Pela Europa fora há alguns

milhares de médicos portugueses a trabalhar e isso

só é possível dada a boa formação que têm. Eu acho que

a formação, no meu tempo, era uma formação teórica boa,

mas não era, sob o ponto de vista prático, tão boa como

depois foi sendo desenvolvida ao longo do tempo. Hoje, é

uma formação mais completa.

Que conselho daria aos estudantes que estão

agora a formar-se em medicina?

Curiosamente, contrariando um bocadinho um dos

preletores desta tarde, eu diria que o acaso não existe.

Eu acredito profundamente que as pessoas, quando têm

sentido de responsabilidade, podem planear a sua vida,

ponderar o que querem fazer na vida e depois focarem-

-se naquilo que desenham como os seus objetivos e, com

muita paciência e muita persistência, com muita tenacidade,

com muita dedicação, podem construir e fazer trajetos

muito bonitos. Eu acho que o acaso não existe, que as

coisas não caem do céu... Por vezes parece obra do acaso,

mas, como também foi dito aqui, quando as oportunidades

surgem, nós temos de estar verdadeiramente atentos

e verdadeiramente disponíveis para as agarrarmos.

Em algum momento, durante os seus anos

na Bial, pensou em abandonar o seu cargo

na empresa e regressar à prática clínica ou à

investigação e docência?

Não. Eu devo-lhe dizer, e já tenho dito algumas vezes

na vida, que o meu ambiente ou, como se costuma dizer,

as minhas águas, eram estas. Era a ver os doentes, a dar as

minhas aulas e a fazer investigação que eu me sentia bem

e bem enquadrado. Isso era o meu ambiente. Quer isto

dizer que, ainda hoje, eu tenho alguma nostalgia por não

ter seguido esse percurso. Também devo dizer que optei

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

por fazer um percurso diferente em defesa da empresa

da família, pelo grande respeito e admiração que tinha

pela obra do meu avô e do meu pai. Fiz isso com muito

carinho, com grande dedicação... e acho que fiz bem.

Procurei dar o meu melhor, esforçar-me o mais possível

para o fazer. Hoje, olho para trás e acho que fiz bem...

e fui relativamente feliz, as coisas foram acontecendo

com satisfação minha e, portanto, ao longo de toda a

vida, mantive a nostalgia – “daquele lado teria sido ainda

melhor”, pensava eu – mas fui assumindo responsabilidades

progressivas na Bial que me fizeram achar que

nunca mais haveria espaço para voltar atrás.

O QUE NOS ENSINA UMA

PANDEMIA

Professora Doutora

Raquel Duarte

in gov.pt

O Doutor Luís é adepto da prática de meditação.

Ao longo dos anos, quais os aspetos

nos quais essa prática mais o ajudou?

Essa é uma pergunta fácil. Eu acho que a meditação

me ajuda a conhecer-me melhor. Ajudou, ajuda e

vai continuar a ajudar a conhecer-me melhor. E ajudou,

ajuda e vai continuar a ajudar a procurar melhorar a

minha prestação enquanto ser humano, enquanto profissional,

enquanto ser espiritual. Ou seja, eu acho que

a meditação é, para mim, uma excelente base para um

processo de autoaperfeiçoamento que eu faço com

muito prazer.

Numa entrevista prévia disse que “é pena

as pessoas, na vida, focarem-se na exacerbação

dos sentidos”. O que queria dizer

com esta frase?

O que eu queria dizer com essa frase é que eu acho

que, durante o século XX e mesmo no início deste século

XXI, as pessoas tornaram-se muito focadas na materialidade

das coisas. Muito focadas no ter, muito focadas

no parecer. Na minha opinião, isso alimenta uma enorme

ilusão que perturba o percurso da humanidade, que

cria enormes desequilíbrios. Eu acho que é uma pena

hoje nós vermos desequilíbrios enormes sob o ponto de

vista económico e financeiro, sob o ponto de vista social,

sob o ponto de vista ambiental. Nós percebemos que

a humanidade vive num jogo de desequilíbrios, quando

me parece possível e desejável que façamos um percurso

mais focados no ser, mais focados nos grandes valores,

mais focados numa postura harmoniosa que nos

permita viver, deixar viver, apoiar a vida à nossa volta.

E, quando olhamos em volta, vemos tantos exemplos de

postura que não é essa. Portanto, a mim, parece-me que

seria útil que as pessoas, em vez de se focarem no prazer

efémero dos sentidos, se focassem no profundo prazer

em apoiarmos os outros, sermos úteis aos outros, apoiarmo-nos

a nós próprios, aperfeiçoarmo-nos, sermos úteis

a nós próprios, procurarmos a melhor versão de nós próprios

e irmos encontrando a mesma com uma profunda

e enorme satisfação... Irmos vencendo as dificuldades da

vida. Eu acho que quando vencemos, quando ajudamos,

quando apoiamos, quando damos, quando nos damos

aos outros, podemos ter uma sensação de felicidade

muito superior à mera exacerbação dos sentidos.

Raquel Duarte é médica pneumologista, Mestre

em Saúde Pública, Mestre em Gestão e

Economia de Serviços de Saúde e Doutora

em Saúde Pública. Foi Diretora do Programa Nacional

para a Tuberculose da DGS e Professora Auxiliar na Faculdade

de Medicina e no Instituto de Saúde Pública da

Universidade do Porto. Foi Vice-Presidente da “Europe

Region Officers of the International Union Against Tuberculosis

and Lung Disease”, bem como Presidente do

Grupo de Tuberculose da European Respiratory Society.

Tem sido uma das especialistas que aconselha o

Governo nas medidas a tomar para o controlo da pandemia

e, após a sua Health Beats Talk, concordou falar um

pouco connosco acerca do seu percurso e da sua opinião

sobre a gestão da crise dos últimos dois anos.

Como foi aceitar o cargo de Secretária de

Estado? Como viveu essa função e quais foram

os principais objetivos e desafios?

Eu sou médica, sou pneumologista e, ainda como

estudante, comecei a dar aulas de epidemiologia e saúde

pública e, portanto, fiz mestrado e a minha carreira

académica na área da epidemiologia e saúde pública.

Entretanto, ainda no decorrer do meu desenvolvimento

profissional e pessoal, achei que não tinha respondido

a tudo aquilo que queria e, portanto, fui tirar um mestrado

em economia e gestão de serviços de saúde. Ao

longo da minha carreira fui tendo várias experiências

como clínica, na gestão de programas nacionais e de

investigação a nível nacional e europeu, como professora

na faculdade... e, portanto, de certa maneira, quando

surgiu esse convite, surgiu numa altura em que, de

facto, tinha uma série de competências – quer na área

clínica, quer na área de epidemiologia e saúde pública,

de políticas de saúde e de economia e gestão de

serviços de saúde - que me permitiam poder aceitar o

convite. Quando se aceita um convite destes, temos que

estar preparados para identificar as necessidades a nível

nacional e tentar encontrar respostas de acordo com

as capacidades que o país tem. Haverá sempre desafios,

sendo sempre uma posição de grande responsabilidade

e, portanto, eu aceitei o convite como uma tarefa que

estava na altura certa para fazer.

Há um programa: a definição das necessidades e

de prioridades, de um plano que é implementado de

acordo com a capacidade de resposta no momento. Essa

é a tarefa: a definição do diagnóstico e de um plano

e a aplicação do mesmo com os recursos disponíveis.

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ZERO UM

23



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Enquanto estive na Secretaria de Estado houve várias

medidas que foram implementadas como, por exemplo,

em termos de políticas de saúde na área da alimentação,

a redução da publicidade a alimentos com alto teor

Foi uma das especialistas que aconselhou o

governo nas medidas a tomar para travar a

pandemia. O que é que, na sua opinião, correu

melhor e pior e o que é que poderemos

aprender para próximas situações semelhantes?

As pandemias são sempre imprevisíveis, mas, se as

planearmos de forma adequada, conseguimos geri-las

melhor. Por muito tempo, os coronavírus foram identificados

como patogénicos com alto risco pandémico

e, no entanto, nós não estávamos preparados de forma

eficaz para a pandemia a que assistimos. Demoramos

a aceitar que seríamos afetados por estes vírus e, hoje,

temos claramente algumas lições que devemos guardar

deste período de pandemia, que ainda não acabou.

Apesar de o mundo não estar preparado, conseguimos,

na realidade, desenvolver tecnologia que permitiu

manter uma rede de vigilância mais eficaz, muito

apoiada no digital, e evoluímos muito em termos de

organização e utilização destas tecnologias de videoconferência,

partilha de dados... e isso permitiu manter

uma vigilância do que estava a acontecer muito mais

adequada. Houve, claramente, esta lição. Havia muito

trabalho já feito, mas a pandemia obrigou-nos a utilizar

e otimizar o que já existia.

Em termos hospitalares, tivemos uma fase inicial de

grande ameaça em que a pandemia causou uma avalanche

de infeções e, portanto, pessoas a procurar cuidados

de saúde. Claramente, houve necessidade de avaliar

respostas. Era necessário fazer alguma coisa para reduzir

a pressão ao nível da urgência, dos internamentos e,

sobretudo, a nível dos cuidados intensivos. Houve necessidade

de encontrar respostas internas, mas também

procurar parcerias com outras entidades, quer a nível

privado, quer a nível social, de maneira a tentar retirar

doentes dos hospitais e aumentar a capacidade de resposta.

Os cuidados de saúde primários também foram

uma peça fulcral na resposta à Covid19 e conseguiram

reinventar-se com grande celeridade – também foi uma

lição aprendida – em termos organizacionais, com a

criação de agrupamentos de centros de saúde com ligação

aos centros hospitalares e com proximidade ao

serviço de saúde pública e equipas de enfermagem,

desenvolveram horários flexíveis, criaram uma resposta

para a urgência dedicada à Covid e depois as áreas

dedicadas a doentes respiratórios, conseguiram ter uma

linha própria para utentes ainda antes do SNS24 estar

preparado para esta emergência e apoiar até mesmo os

centros de acolhimento que entretanto se desenvolveram.

Agora, era preciso era que esta experiência fosse

sustentável no futuro... mas que esta experiência sirva

para aprender como é que se podem reorganizar e melhorar

a sua estratégia, a sua forma de atuar.

Uma fragilidade que também se mostrou e foi mais

difícil de se resolver foi a resposta da saúde pública. A

resposta da saúde pública no terreno permitiu identificar

as cadeias de transmissão e implementar as medidas

que permitem cortar a transmissão da infeção e

isso é determinante para conter a doença na comunidade.

A verdade é que, face ao enorme número de casos

de infeção, a saúde pública rapidamente ultrapassou

a capacidade de resposta e não foi fácil encontrar

soluções flexíveis, até mesmo com envolvimento dos

intervenientes, para que esse trabalho não quebrasse.

Nós vimos, várias vezes na pandemia, que houve incapacidade

de identificar as pessoas para rastrear e ainda

para implementar as medidas necessárias para cortar a

cadeia de transmissão. Uma das missões, eu diria que

é urgente, é reavaliar a capacidade da saúde pública

e, sobretudo, a necessidade de reorganização e fortalecimento

da mesma, de forma a estar preparada para

outras situações.

Outro ponto que eu diria que foi importante durante

esta pandemia foi o investimento que houve na promoção

da literacia em saúde, porque ganhou um relevo

enorme em todo o lado, junto das pessoas, das comunidades

e organizações, e foi uma importantíssima resposta

e ferramenta da saúde pública. Isto contou com

a colaboração de vários intervenientes, nomeadamente

da parte da ciência, que muito rapidamente se mostraram

disponíveis para tirar todas as dúvidas junto da comunicação

social, mas, sobretudo, da parte dos próprios

meios de comunicação social que logo se encarregaram

de serem os primeiros a passar uma mensagem correta

à população. Vamos precisar muito que esta comunicação

e esta literacia sejam mantidas, porque é preciso

que a população incorpore na rotina uma série de comportamentos

associados à proteção quanto às infeções

respiratórias, não só a SARS-Cov2, e a literacia e comunicação

social não podem faltar. A comunicação que foi

muito eficaz no período da pandemia deve ser mantida.

Uma das coisas importantes em termos da literacia

em saúde é que os profissionais de saúde nunca estiveram

tanto na linha da frente da comunicação como

agora. Não estávamos preparados para isso, portanto,

de certa maneira, de repente, a comunicação saiu do

âmbito dos comentadores tradicionais e jornalistas e

abriu-se a porta à classe científica, aos profissionais de

saúde, que iam explicar de uma forma muito isenta o

que é que estava a acontecer: que vírus era este, como

é que se transmitia, como é que se tratava... O facto

de se ter tirado a política desta comunicação científica

fez com que a população percebesse o que se estava a

passar, mas também criou um desafio adicional à classe

que é: nós precisamos de saber comunicar de uma

forma eficaz. Não basta sabermos tratar os doentes.

Precisamos de saber comunicar, não só com o doente,

mas para a comunidade. Há uma série de situações em

que, de facto, se vê o peso da comunicação. Tu vês a

adesão da população geral à vacinação e vês a adesão

da população infantil à vacinação e houve uma comunicação

mal gerida e vês o efeito que pode ter. Outra

das coisas muito boas que aconteceu na pandemia foi a

utilização regular de ciência de dados, com modelação,

que permitiu o apoio à decisão. Isto foi extremamente

importante, quer a nível nacional quer mesmo a nível

internacional.

Também me faltaria aqui dizer que foi bom a população

perceber que a ciência sozinha não vai controlar

uma pandemia. Temos, de facto, de incluir todos os interlocutores.

Um ponto que eu diria que estivemos mal um pouco

por todo o lado, foi termos estado sempre muito

atentos às variantes que estavam em circulação, cada

país foi tomando as suas decisões em termos do que é

que fazia em termos de controlo das fronteiras, muito

preocupados com as vacinas e como é que era o plano

vacinal de cada uma das populações... e, na realidade,

estamos numa fase em que nós estamos muito ocupados

a discutir a quarta ou quinta dose, quando há muitos

países que ainda tentam aceder à primeira ou à segunda.

Portanto, estamos muito preocupados em controlar

as nossas fronteiras e menos preocupados em garantir

que todo mundo tenha acesso às vacinas que são tão

importantes para voltarmos à nossa vida normal.

Em que problemas acha que devemos voltar,

agora, a focar a nossa atenção?

Nós temos que estar preparados para qualquer

coisa que venha a acontecer. A próxima crise mundial

pode ser de causa infeciosa, mas pode também ser uma

crise associada às alterações climáticas, pode ser uma

crise associada à guerra... e, portanto, aquilo que nós

temos de estar é preparados. Preparados não significa

estarmos preparados para uma coisa exatamente igual

à pandemia pela qual passámos. Estarmos agora a focar-nos

em ter stocks de material necessário para uma

pandemia, mas que não seria necessário, por exemplo,

para uma crise global associada à guerra, seria uma

perda de recursos. Isto significa que devemos perceber

como é que podemos aumentar a resiliência da nossa

capacidade de resposta. Quer isto dizer que temos que

estar preparados para, sobretudo, reduzir os efeitos a

longo prazo da ameaça que nos vier bater à porta. Temos

que perceber o que correu bem e o que correu mal

e quais são as melhores estratégias em termos de organização

para aumentar a nossa capacidade de resiliência

a qualquer ameaça. Uma das coisas que será importante

para a nossa resiliência é sermos capazes de ser

flexíveis. Isto é, nós, profissionais de saúde, temos que

ser flexíveis – uma das coisas que correu bem na resposta

à pandemia foi a capacidade de sermos flexíveis,

nomeadamente no ajuste de recursos de enfermarias e

cuidados intensivos, humanos e técnicos, enquanto não

se aumentou o número de camas nos cuidados intensivos,

humanos e técnicos, enquanto não se aumentou

o número de camas nos cuidados intensivos – e o ser

flexível permite aumentar os recursos que são necessários

de momento e depois voltar a reduzir quando

eles deixam de ser necessários, adaptando os recursos

às necessidades do momento. Isto foi verdade numa

fase inicial, quando nós não tínhamos capacidade de

resposta, quando se alargou a capacidade de internamento

às instituições sociais e privadas, deixando nos

hospitais os casos mais graves e permitindo aumentar

a resposta a doentes não Covid, que ficou muito negligenciada.

Essa capacidade de ser flexível aumenta a

nossa resiliência – reduz o efeito da crise que estamos a

atravessar –, portanto, temos que aprender como é que

podemos ser mais flexíveis e trabalhar em conjunto,

porque, para sermos flexíveis, temos que ser capazes de

trabalhar em conjunto com os diferentes interlocutores,

não só dentro da saúde, mas também fora da saúde.

O que é que na sua opinião deve mudar

prioritariamente no SNS e nas escolas médicas?

Nas escolas médicas, eu diria que é aquilo de que

falava: a capacidade de ser flexível. Temos que perceber,

junto dos profissionais e junto das estruturas, quais

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ZERO UM

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

são as melhores estratégias técnicas para aumentar a

nossa resiliência, a nossa capacidade de sermos flexíveis

e nos ajustarmos às necessidades que estamos a

enfrentar no momento para reduzir o efeito da ameaça,

quer a curto, quer a longo prazo. Aprender também a

comunicar, aprender a trabalhar em conjunto, não só

dentro do nosso ambiente.

Como é que vê o futuro da prática clínica,

particularmente da Pneumologia? Como

acha que se vão alterar as funções do médico

nos próximos 40 anos? Poderão estas

ser substituídas por sistemas de inteligência

artificial?

algum erro, temos que assumir algum risco de experimentação

para responder às necessidades reais, quer da

população, quer dos profissionais de saúde, sem esquecer

as populações mais vulneráveis e sem esquecer que

tudo isto tem de ser sempre associado a muita cautela

em termos de cibersegurança. Estamos a falar de dados

muito sensíveis, de saúde da população, portanto temos

de ter muito cuidado com a segurança e qualidade dos

dados que são partilhados. Nós temos uma série de ferramentas

digitais que não comunicam entre si e é preciso

também melhorar isso para assegurar a qualidade

dos dados.

Nós estamos ainda a anos-luz daquilo que será o

ideal, mas o médico faz parte desta equação. O médico

e a população, os doentes, fazem parte desta equação.

PERSUASÃO E COMUNICAÇÃO

O desafio de envolver o cidadão no complexo mundo

da Literacia em Saúde

Por Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira

A transformação digital é excelente e foi de uma

utilidade extraordinária nestes tempos de pandemia.

Permite, seguramente, de uma forma muito clara, a ajuda

à atividade clínica. Torna os nossos comportamentos

muito mais rentáveis e eficazes e até muito mais sustentáveis

no tempo. Temos tido uma série de transformações

que são extremamente úteis em termos de monitorização

dos doentes à distância, a telemedicina que

foi tão útil, e de realidade virtual e realidade aumentada

que nos ajudam a treinar sem risco para o doente ou

até mesmo um cirurgião a planear a cirurgia com muito

mais detalhes, reduzindo alguns riscos. Temos aqui uma

evolução que tem sido muito grande, no entanto traz

algumas ameaças.

Nós não podemos esquecer que a relação médico-

-doente é fundamental. Não podemos esquecer que não

basta as pessoas porem num computador as suas queixas

e sintomas para sair um diagnóstico e tratamento. É

necessária a parte humana. Esta transformação digital

é extremamente importante e pode-nos ajudar imenso,

a nós e à população, mas não nos podemos esquecer

também das pessoas potencialmente vulneráveis e que

podem não ter acesso a esses recursos. Por exemplo,

nesta altura da pandemia isso foi posto em causa. Houve

populações vulneráveis que podiam não ter acesso a estas

ferramentas digitais e, portanto, à consulta. É preciso

que essa transformação digital seja fácil e adaptada às

necessidades.

É preciso envolver os profissionais de saúde nessa

transformação, porque somos também as pessoas que

identificam as necessidades dos pacientes. É preciso envolver,

também, as pessoas que utilizam estas ferramentas

digitais no seu desenvolvimento, porque ninguém

melhor do que elas consegue perceber quais são as necessidades

e quais as melhores maneiras de responder

a essas necessidades. É preciso que essa transformação

seja adaptada facilmente de uma forma maleável, muito

flexível, para que qualquer pessoa seja capaz de ajustar

as ferramentas àquilo que é necessário, àquilo de que

precisa, e essa adaptação tem de ser sempre básica e

rápida. Temos, também, que assumir que pode haver

Há alguma mensagem final que gostasse

de transmitir aos estudantes da FMUP?

Eu costumo dizer aos meus alunos e aos meus internos:

façam tudo com paixão, gostem do que fazem.

Procurem fazer sempre aquilo que gostam e façam-no

com paixão. Dediquem-se, porque o futuro da medicina

é vosso.

Tem sido constante a importância atribuída à participação dos cidadãos

na área da saúde desde há muitos anos. De facto, o tópico da

Cidadania em Saúde ganha forma com o aparecimento dos Cuidados

de Saúde Primários, nos finais da década de 70, registando-se como

“o direito e dever das populações em participar individual e coletivamente

no planeamento e prestação dos cuidados de saúde”. [1] É a

partir do movimento da Promoção da Saúde, em 1986, que as práticas

de Saúde Pública foram adquirindo um corpo teórico mais robusto e

assertivo para trabalhar a “centralidade do cidadão”. [2] Ainda assim,

a operacionalização deste conceito tem sido colocada em causa, exacerbando-se

as dificuldades de envolver a pessoa numa verdadeira

decisão partilhada com os profissionais de saúde.

Mas o que é de facto a Literacia em Saúde e

porque é que ela é importante?

O

galopante

interesse

pela área da

Literacia em Saúde

foi evidente nos últimos vinte

anos. A Organização Mundial

de Saúde apresenta uma

definição para este conceito

só em 1998, referindo-se a

este termo como o “conjunto

de competências cognitivas

e sociais e a capacidade dos

indivíduos para acederem à

compreensão e ao uso da informação

de forma a promover

e manter uma boa saúde”.

[3]

Exemplos concretos como

saber interpretar a bula de um

medicamento, compreender a

informação de um diagnóstico

dado por um profissional

de saúde, saber utilizar os diferentes

serviços do Sistema

Nacional de Saúde, ou conseguir

seguir as recomendações

médicas estão incluídas

nas capacidades relacionadas

com a Literacia em Saúde de

um indivíduo. [4]

Um baixo nível de Literacia

em Saúde está fortemente

associado a uma elevada probabilidade

de hospitalização

e readmissão hospitalar, a

uma elevada prevalência de

doenças crónicas, a um difícil

entendimento sobre a organização

dos serviços de saúde

e a uma qualidade de vida

inferior em comparação com

pessoas com níveis considerados.

Diabetes, doenças cardio-

Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira

In Público

26 ZERO UM

ZERO UM

27



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

vasculares ou obesidade são

exemplos de doenças mais

comuns em pessoas com baixos

níveis de Literacia em

Saúde. [5]

De acordo com os resultados

de um estudo da Escola

Nacional de Saúde Pública,

61% da população Portuguesa

apresenta um nível de Literacia

em Saúde geral problemático

ou inadequado. [6]

Num outro estudo de investigadores

nacionais do Instituto

Universitário de Lisboa,

o valor é inferior, mas são

ainda 49% dos participantes

a caracterizarem-se por terem

um nível de Literacia em

Saúde problemático ou inadequado.

[7] Um estudo mais

recente da Direção-Geral da

Saúde, publicado em 2021,

revela que 29,5% da população

tem um nível inadequado

ou problemático de Literacia

em Saúde. [8]

Para além dos impactos

individuais, este panorama

leva ainda à criação de um

maior desperdício de recursos,

com aumento de gastos

individuais e para os sistemas

de saúde. [5]

“The Hope Project” – o desenvolvimento de

um ecossistema promotor de Literacia em

Saúde para a criança com doença oncológica

Como resultado da evolução dos tratamentos em

oncologia pediátrica, assistiu-se a um aumento significativo

nas taxas de sobrevivência em crianças com cancro,

e, consequentemente, a um constante crescimento

na população de sobreviventes. [9] Apesar destes desenvolvimentos,

o cancro pediátrico continua associado

a um amplo espetro de efeitos colaterais relacionados

com a doença, podendo evoluir para consequências crónicas

e resultando num impacto negativo a longo prazo.

A este panorama junta-se, muito frequentemente, o impacto

nos níveis social, psicológico e fisiológico do indivíduo

sobrevivente. [10] Inatividade, comprometimento

da função cardiopulmonar e musculoesquelética, assim

como redução dos níveis de desempenho motor e das

habilidades cognitivas são frequentemente detetados.

[11] Durante os últimos anos, vários estudos demonstraram

os primeiros indícios cientificamente válidos dos

efeitos positivos de intervenções que incorporavam o

exercício físico na rotina do tratamento oncológico. Em

As repercussões da baixa Literacia

em Saúde numa especialidade: o

caso da Oncologia

Para os doentes com cancro, a baixa Literacia

em Saúde compromete a adesão à

terapêutica, e está associada a uma comunicação

ineficaz com os profissionais de saúde,

levando a intervenções desnecessárias. Para

além disso, doentes oncológicos com pouca

compreensão sobre a sua doença podem

sentir maior ansiedade e maior insatisfação

em relação aos cuidados que recebem.

Mas, façamos um pequeno exercício

exemplificativo do que podem ser algumas

das dificuldades de um doente oncológico

com baixa Literacia em Saúde. Se pensarmos

em toda a jornada do doente oncológico, encontramos

obstáculos evidentes agravados

por este contexto: no momento da comunicação

do diagnóstico, o menor entendimento

de alguns termos médicos e não médicos

pode aumentar a confusão do doente; seguir

as recomendações médicas durante o tratamento,

como a toma medicamentosa feita

em casa, poderá ser um desafio e levar a procedimentos

incorretos; a obtenção de apoios

sociais e fiscais durante a doença pode ser

dificultada; assim como a sua integração na

vida ativa em período de sobrevivência poderá

ser mais demorada.

Estes são apenas pequenos exemplos, de

entre muitos, que podem ser referidos

particular, o funcionamento físico é aumentado, a ansiedade

é reduzida e a integração social é encorajada. [10]

Esta foi a base para a criação do The HOPE Project,

um videojogo sério para crianças e adolescentes.

Este videojogo pretende aumentar a resposta física e

emocional aos tratamentos, através do aumento da atividade

física, potenciando: a) a redução do tempo de

hospitalização da criança; b) a diminuição de sequelas

do tratamento e da doença a longo prazo; c) e o esclarecimento

relativamente ao regresso à vida ativa. Procura-se

que esta solução possa combater os constrangimentos

sentidos com a falta de profissionais de saúde

nos hospitais, nomeadamente fisioterapeutas; possa

diminuir o custo/tempo de hospitalização dos doentes

oncológicos; e contribua para melhorar o processo de

recuperação, com impacto a longo prazo na vida das

crianças, familiares e cuidadores.

Jornada com desafios que vão desde os exames de diagnóstico ao início da quimioterapia.

A tecnologia ao serviço da Literacia em Saúde

O videojogo Hope foi idealizado para unir a perspetiva

realista de uma doença oncológica a um mundo

fantástico. A perspetiva realista é conseguida através

das ilustrações utilizadas no videojogo com base em

fotorreportagens de espaços hospitalares, para que as

crianças reconheçam toda a realidade por que passam,

e possam estar preparadas para enfrentar novos procedimentos

clínicos; já o mundo fantástico é introduzido

com a narrativa que conta a história de uma criança, a

personagem principal, que combate o cancro como um

super-herói luta contra o seu adversário. A introdução

desta analogia torna-se importante para promover a

motivação da criança doente e poder aumentar a adesão

emocional aos tratamentos.

Associando-se os medos das crianças internadas aos

superpoderes da personagem principal do videojogo, recorre-se

à persuasão para modificar a aceção da criança

em relação ao que lhe provoca desconforto. Desta forma,

foi já conseguido, através do entretenimento, moldar o

comportamento da criança para tornar as rotinas hospitalares

mais eficazes, com diminuição do tempo de

preparação dos exames. O videojogo utiliza processos

interativos para explicar, por exemplo, a importância de

a criança permanecer calma ao realizar uma colheita de

sangue, implementa desafios de movimentação, coordenação

e elasticidade para explicar o que é uma radiografia,

e desafia a criança a tornar-se aliada na destruição

das células malignas, incorporando exercícios

de fisioterapia nos desafios que permitem o herói ter

sucesso. Também a perda de cabelo é percebida como

causa deste tratamento, mas é associado a um novo

superpoder do super-herói, a par do seu pijama, o seu

fato imprescindível, para que novos desafios sejam superados.

O simbolismo de se associar uma criança sem

cabelo a um super-herói tenta, assim, imprimir na criança

um sentimento contrário ao que atualmente sente

quando se vê sem cabelo. O videojogo foi pensado para

ser instalado em dispositivos informáticos utilizados

no dia-a-dia pela criança internada - smartphones e

tablets.

Tirando o máximo partido das características destes

dispositivos móveis, utilizou-se a câmara frontal

como ferramenta de exergaming, isto é, uma ferramenta

combina o exercício físico com as mecânicas de

jogo. Apesar de se ter como cenário inicial o hospital,

pretende-se encorajar o utilizador a voltar à vida ativa

novamente, razão pela qual este projeto irá contemplar

um cenário da escola e outro da casa, com níveis que

trabalham ludicamente os principais desafios sentidos

nesses contextos. Assim, através de vários níveis interativos

e de um design simples e atrativo, pretende-se

cativar a atenção dos mais novos, e poder aumentar a

adesão emocional aos tratamentos. Associando-se os

medos das crianças internadas aos superpoderes da

personagem principal do videojogo, recorre-se à persuasão

para modificar a perspetiva, tornando o período

que passam no hospital, em casa e na escola mais saudável

e produtivo. Os níveis reproduzem uma sequência

lógica de motivação e aumento de qualidade de vida,

com dinâmicas familiares e sociais imprescindíveis à

28 ZERO UM

ZERO UM

29



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

recuperação total da criança.

Este é apenas um pequeno exemplo do que a Literacia

em Saúde tem ao seu dispor, enquanto área

emergente e que depende de uma inovação constante.

Nesta inovação, ocupam uma parte importante as áreas

do saber focadas na Comunicação e na Persuasão. São

elas grandes determinantes de um envolvimento maior

do cidadão nas suas escolhas em saúde.

O Laboratório de Criação para a Literacia em Saúde

da Universidade do Porto e a spin-off BRIGHT, promotores

do projeto HOPE, sabem disso, e, todos os dias,

trabalham para que a Literacia em Saúde seja mais e

melhor.

Cuidar desde sempre

Problemas que o projeto HOPE pretende combater.

Referências

[1] World Health Organization. (1986). The Ottawa charter for health promotion. Geneva.

[2] Portugal. Sistema Nacional de Saúde (2017). SNS + Proximidade 2017/2018. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/wp-content/

uploads/2017/11/20171120_LivroSNsProximidade-1.pdf

[3] World Health Organization (1998). Commission on the Social Determinants of Health. Achieving health equity: From root causes to fair

outcomes. Geneva.

[4] Kickbusch, I.; Wait, S.; Maag, D. (2006). Navigating health: the role of health literacy. London: Alliance for Health and the Future. International

Longevity Centre-UK.

[5] Kindig, D.A. (2004). Health Literacy: A Prescription to End Confusion. Washington, DC: National Academy of Sciences.

[6] Pedro, A.R.; Amaral, O.; Escoval, A. (2016). Literacia em saúde, dos dados à ação: tradução, validação e aplicação do European Health Literacy

Survey em Portugal Revista Portuguesa de Saúde Pública, 34(3), 259-275.

[7] Espanha, R.; Ávila, P. (2016). Health Literacy Survey Portugal: A Contribution for the Knowledge on Health and Communications. Procedia

Computer Science, 100, 1033-1041.

[8] Portugal. Direção-Geral da Saúde. (2021). Níveis de Literacia em Saúde – PORTUGAL. Lisboa: Direção-Geral da Saúde Disponível em: https://

www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/estudo-apresenta-nivel-de-literacia-em-saude-dos-portugueses-pdf.aspx

[9] Siegel, R.; Naishadham, D.; Jemal, A. (2013) Cancer statistics 2013. CA Cancer, 63, 11–30.

[10] Florin, T.A.; Fryer, G.E.; Miyoshi, T. et al. (2007). Physical inactivity in adult survivors of childhood acute lymphoblastic leukemia: a report from

the childhood cancer survivor study. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev. 16, 1356–63.

[11] De Souza, A.M.; Potts, J.E.; Potts, M.T. et al. (2007). A stress echocardiography study of cardiac function during progressive exercise in pediatric

oncology patients treated with anthracyclines. Pediatr Blood Cancer. 49, 56–64.

Mudar para sempre

30 ZERO UM

ZERO UM

31



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

A Pediatria por Diferentes

Gerações de Especialistas

FORMAÇÃO MÉDICA

1

Descreva a sua formação médica em 3 palavras

Não restam dúvidas de que a medicina é um domínio em permanente mutação e desenvolvimento.

Assim, foi com este mote que procuramos recolher e comparar vivências, conselhos e perspetivas de

três pediatras de diferentes gerações. Através dos seus testemunhos pudemos compreender de que

forma tem evoluído a formação médica e prática clínica, na área da pediatria, ao longo dos anos no nosso país.

CONHECE AS 3 GERAÇÕES

CARLA RÊGO

Desafiante

Gratificante

Exigente

SANDRA TEIXEIRA

Sólida

Exigente

Com algumas lacunas, na componente prática

Carla Rêgo

Nasceu a 13 de julho de 1960 e

ingressou, em 1978, na Licenciatura

em Medicina pela Faculdade de

Medicina da Universidade do Porto,

tendo concluído em 1984.

Posteriormente, realizou um Mestrado

em Medicina Desportiva e um

Doutoramento em Medicina (área

da Pediatria) pela FMUP. É especialista

em Pediatria com diferenciação

na área da nutrição pediátrica, em

particular da Obesidade e Developmental

origins of health and disease.

Neste contexto, criou a 1ª consulta

de Medicina Desportiva (1996) e a

1ª consulta de Obesidade Pediátrica

do país, no Centro Hospitalar S. João.

Atualmente, para além do exercício

da prática clínica, é presidente (e

fundadora) do Grupo Nacional de

Estudo e Investigação em Obesidade

Pediátrica (GNEIOP) e da Health-

4Moz (ONGD).

Sandra Teixeira

Nasceu a 5 de fevereiro 1973.

Ingressou, em 1990, na Licenciatura

em Medicina na Faculdade de

Medicina da Universidade do Porto,

tendo concluído em 1996.

Realizou o Internato Geral no

Centro Hospitalar S. João entre 1996

e 1998, tendo posteriormente concluído

o Internato de Pediatria Geral

no Centro Hospitalar do Tâmega e

Sousa em 2004. Atualmente, e desde

2015, é Assistente Hospitalar Graduada

no Centro Hospitalar do Tâmega

e Sousa.

Sofia Lima

Nasceu a 20 de julho de 1996,

tendo ingressado no Mestrado Integrado

em Medicina na Faculdade de

Medicina da Universidade de Coimbra

em 2014 e concluído em 2020.

Atualmente é interna de formação

específica (1º ano) de Pediatria

no Centro Hospitalar e Universitário

da Cova da Beira.

SOFIA LIMA

2

Se

CARLA RÊGO

Desafio

Trabalho

Compromisso

pudesse mudar algo no curso quando o frequentou,

o que seria?

Não consigo imaginar nada que quisesse mudar! A formação teórica era

sólida e exaustiva, o que nos permitia ter excelentes bases - anos mais tarde,

quando da aprendizagem clínica, verificamos a importância das aulas teóricas

de Anatomia e de Fisiologia, apenas para citar 2 exemplos dadas por verdadeiros

Mestres, para a elaboração do raciocínio clínico conducente às hipóteses

de diagnóstico. A formação prática era incentivada desde o 4º ano, com a possibilidade

de integrar as equipas de urgência, sempre sob tutela dos colegas

mais velhos. O relacionamento entre colegas de diferentes anos do curso e colegas

a cumprir o internato nas diferentes valências era excelente, pro-activo e

de verdadeira inter-ajuda e partilha de experiência e conhecimento.

32 ZERO UM

ZERO UM

33



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SANDRA TEIXEIRA

Se pudesse mudar algo no curso que frequentei, mudaria o ciclo básico de

formação, tornando-o mais generalista e sem tanto enfoque na “exceção” ou

“no pormenor”, em detrimento do que é mais habitual e tem mais relevância

para a clínica. Tornaria o ciclo clínico mais prático, com uma abordagem baseada

em algoritmos de diagnóstico e terapêutica. Desde o primeiro ano, e em

todos os anos do curso, trabalharia competências em comunicação e autoconhecimento,

que considero essenciais para qualquer médico.

4

Quais

eram as ferramentas de estudo que utilizava mais

regularmente?

SOFIA LIMA

3

O

A organização do curso de Medicina difere consoante a faculdade e a universidade

em questão, naturalmente. Daquilo que foi a minha experiência, mudaria

talvez o facto de existirem várias especialidades com as quais não temos

contacto, apesar de, na minha faculdade, nunca me ter sido negada a possibilidade

de conhecer um Serviço, caso tivesse interesse para tal. Além disso, há

ainda várias cadeiras teóricas que poderiam ser agrupadas numa só, de modo

a possibilitar um contacto mais precoce com a prática clínica.

que acha que mudou para pior no curso? Há alguma

lacuna que tenha surgido desde que se formou?

CARLA RÊGO

SANDRA TEIXEIRA

Sebentas e livros de texto.

Durante o curso, estudava pelos livros de texto e atlas sugeridos pelos professores

regentes das cadeiras. Tínhamos também as sebentas elaboradas pela

Associação de Estudantes e as aulas teóricas que gravávamos e distribuíamos

por cada elemento do curso, para as passarem a texto, que era posteriormente

disponibilizado para todos, no centro de fotocópias do 01.

CARLA RÊGO

A perda de referências humanas e da proximidade docente-aluno, bem

como a ausência de uma aprendizagem mais prática a partir do meio do curso

e, também relacionado, a falta de tempo e de treino para falar com os pacientes.

SOFIA LIMA

Para além dos livros e atlas aconselhados, há sempre as famosas sebentas

e resumos. Adicionalmente, plataformas que incluem ferramentas de estudo

teóricas e práticas, com várias perguntas acerca de casos clínicos. São elas a

AMBOSS e a UWorld, ferramentas de estudo muito importantes principalmente

para o exame final – a PNA.

SANDRA TEIXEIRA

SOFIA LIMA

Na minha opinião pessoal, que acredito possa ser controversa, no ciclo

básico de formação, a abordagem morfo-funcional por sistemas de órgãos, sem

que haja depois uma disciplina obrigatória de interligação dos mesmos, deturpa

o raciocínio clínico, dando a falsa ideia de que está tudo compartimentado.

Ainda, o aumento do número de alunos que entram por ano no curso de medicina,

tem como consequência turmas igualmente maiores nos anos clínicos,

o que condiciona por um lado uma maior dificuldade a que todos possam praticar

e, por outro lado, forçosamente altera/deturpa a relação médico-doente,

quando um doente está “exposto” perante vários médicos.

Como já referi anteriormente, penso que a aposta na formação em comunicação,

logo a partir dos primeiros anos, constitui uma lacuna que continua

nos nossos dias.

Como tirei o curso há relativamente pouco tempo, poderei não ter muito a

acrescentar neste tópico. No entanto, julgo que a disparidade na forma como

está organizado e como é avaliado o último ano do curso tem vindo a aumentar.

Acredito que tal possa constituir um fator de ansiedade para alguns alunos.

5

Quais

CARLA RÊGO

as competências adquiridas na faculdade que considera

mais úteis na prática clínica?

A capacidade de organização do tempo, a disciplina de trabalho e a superação

do esforço e da fadiga. São competências que se desenvolvem e adquirem

para a vida, em todas as suas vertentes.

34 ZERO UM

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35



SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SANDRA TEIXEIRA

As competências que adquiri na faculdade que considero mais úteis foram

a capacidade de sistematização: analisar a situação, elaborar a minha lista de

problemas, colocar hipóteses, estudá-las, para depois planear a solução.

SOFIA LIMA

Surgiu mais tarde, durante o 5º ano, quando passei pelo Hospital Pediátrico

de Coimbra. Para mim foi um mundo novo, mais leve. É uma especialidade

desafiante e muito gratificante.

SOFIA LIMA

Ter espírito prático, sem dúvida. Na prática clínica e na vida em geral. A faculdade

é uma fase da vida em que crescemos muito como pessoas. E aprendemos

a gerir as tarefas, o tempo e a informação. Aprender a trabalhar em equipa

em prol do doente é muito importante. Há alguns professores que servem de

modelos, o que, por vezes, se torna mais importante do que todas as competências

teóricas que adquiri.

PRÁTICA CLÍNICA

1Que instrumento utilizava no início da sua vida profissional

e, entretanto, abandonou?

6

Porquê

a escolha da Pediatria? Durante a formação sempre

sentiu uma inclinação para essa especialidade

ou esta vontade surgiu mais tarde?

CARLA RÊGO

Termómetro de mercúrio e esfigmomanómetro aneróide. Não me lembro

de mais nenhum!

CARLA RÊGO

A escolha da Pediatria surgiu por forte influência do Professor Norberto

Teixeira Santos e daquilo que era a sua visão da vida, da medicina, da pediatria

e do ser médico. Nomeadamente, a sua capacidade de perseguir objectivos

que considerava válidos e o seu arrojo em desafiar e incentivar a avançar

aqueles que achava que podiam crescer. Era alguém com uma visão muito à

frente, quase futurologista, e certamente fez a mudança na Pediatria, quer na

FMUP, quer a nível nacional.

SANDRA TEIXEIRA

Bloco de notas em papel, termómetro de mercúrio, esfigmomanómetro

aneróide.

SANDRA TEIXEIRA

A série televisiva da RTP1 “Retalhos da vida de um médico”, adaptação do

livro homónimo de Fernando Namora, marcou-me e levou à minha escolha do

curso de Medicina. Eu encaro a medicina como um serviço ao próximo. Sinto-me

realizada quando vejo que faço a diferença na vida das pessoas e ainda

mais, quando elas o reconhecem. Estudo, reciclo-me, atualizo-me, também

para reconhecimento dos meus pares, mas acima de tudo, para tratar o melhor

possível os meus doentes e fazer a diferença na vida deles. Daí que para mim

foi uma alegria imensa ter tido a possibilidade de escolher fazer o internato

de formação específica na terra onde moro e no hospital onde nasci e poder

trabalhar para melhorar as condições de saúde dos meus conterrâneos. A Pediatria

surge nesta linha, pois dá-me a possibilidade de participar na “construção”

de uma pessoa ao longo de 18 anos, em colaboração com uma família e

fazer parte dessa família. E é com grande orgulho que alguns destes meninos

e meninas, hoje, são meus colegas de profissão e outros, já me trazem os seus

filhos para eu acompanhar, reforçando a importância que tive nas suas vidas.

SOFIA LIMA

Ainda não tive tempo de abandonar nenhum. Nem imagino qual será!

2

A seu ver, qual a principal vantagem e desvantagem da

informatização da Medicina?

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

CARLA RÊGO

SANDRA TEIXEIRA

Como vantagem considero o acesso fácil e imediato, em tempo real, aos

dados do paciente. Deste modo, o clínico não está dependente do acesso ao

processo clínico, guardado no arquivo que, habitualmente, só estava aberto

nas horas de expediente, sendo que o mais frequente era este estar mal

arquivado, pelo que não aparecia para a consulta. Para além desta ser uma

enorme vantagem no contexto da prática clínica, é também extremamente

importante numa perspectiva de investigação. Por outro lado, vejo como desvantagem

o facto de, aquando do registo, durante a avaliação clínica, sobretudo

em contexto de ambulatório, parte do contacto visual e consequentemente

da interacção com o utente perde-se.

A principal vantagem da informatização da Medicina, sobretudo no que diz

respeito ao registo clínico/processo clínico do utente, é a partilha da informação,

possibilitando a sua consulta pelos diferentes prestadores de cuidados, o

que obsta à duplicação de meios complementares de diagnóstico, por exemplo.

Que bom que seria se se concretizasse a proposta da Ordem dos Médicos

e se pudesse alargar este projeto aos prestadores privados e criar um processo

clínico único por utente!

A desvantagem é que, atualmente, com material informático obsoleto

(“hardware”), servidores de internet lentos e sobrecarregados e software desajustado,

obriga o médico a uma perda de tempo de consulta excessivo com

registos e a resolver estes constrangimentos, em detrimento de tempo útil de

comunicação com o utente.

SOFIA LIMA

4

Se

fazem com que seja difícil ser médico em Portugal, em todas as especialidades.

No meu caso em particular, trabalho num hospital claramente subdimensionado

para a população que serve, com dificuldades logísticas graves, sobretudo

nos setores de urgência e ambulatório e uma grande insuficiência de recursos

humanos. No entanto, não baixamos os braços, pois estamos habituados a fazer

muito, com o pouco que temos!

Há falta de pediatras em algumas regiões do nosso país. Por isso, não poderá

ser muito fácil ser pediatra. É uma especialidade que requer muita empatia.

Além disso, por vezes não é fácil orientar o crescimento e neurodesenvolvimento

de uma criança em tão pouco tempo de consulta, ou chegar a todos

os problemas da vida de um adolescente. Tudo isto, para além do desafio que

poderá ser explicar as informações aos pais.

pudesse voltar atrás, faria alguma coisa de forma diferente?

SOFIA LIMA

3

É

CARLA RÊGO

O facto de a informação estar mais disponível para todos é, por si só, uma

vantagem e uma desvantagem. Vantagem, porque a informatização veio agilizar

a forma como se trabalha, de modo a que haja mais tempo para dedicar ao

doente. Além disso, ter uma consulta à distância de um clique pode ser uma

grande mais-valia para quem reside longe do hospital. Desvantagem, uma vez

que se perde muito tempo com registos durante uma consulta. O facto de haver

muita informação médica disponível para todos pode dificultar o trabalho

do médico, na medida em que muitas vezes os pais julgam já ter uma ideia

daquilo que poderá ser o melhor tratamento para o seu filho.

fácil ser médico, em especial Pediatria, em Portugal?

Quais os principais obstáculos que identifica?

Actualmente, não é fácil ser médico em Portugal, nem na perspectiva

profissional, nem humana. A perda do respeito pela profissão, decorrente da

noção de que o médico é “um serviçal” devendo estar disponível ilimitadamente;

O desrespeito e a banalização do conhecimento científico, uma vez

que qualquer informação pode ser encontrada na internet, nas redes sociais

ou na imprensa; A pressão das instituições pelos números, em detrimento da

qualidade e do atendimento personalizado; O desgaste dos horários de trabalho

e as próprias condições em que se trabalha; A ausência de expectativas

de progressão justa na carreira. Estas e muitas outras razões levam à desmotivação

e ao burnout, bem como ao abandono do Serviço Nacional de Saúde.

CARLA RÊGO

SANDRA TEIXEIRA

Faria tudo de igual forma: em cada fase da vida devemos tomar as decisões

que julgamos mais acertadas e tirar o máximo partido delas.

Se voltasse atrás, faria o meu percurso formativo, da mesma forma e nas

mesmas instituições. O facto de ter escolhido fazer o internato de Pediatria

num hospital distrital, permitiu-me realizar estágios em diferentes unidades

hospitalares, conhecer novas formas de organização de trabalho, habituar-me

a mudar e adaptar-me a várias equipas de trabalho e a crescer mais rapidamente

em termos profissionais. No final do internato estava pronta a trabalhar

em qualquer hospital, central ou distrital, com poucos ou muitos recursos, pois

conhecia bem as duas realidades!

Relativamente à minha vida profissional, hoje não aceitaria fazer turnos de

24h de urgência, nem 300 a 400 horas extraordinárias de urgência, por ano,

durante anos a fio. Este sacrifício que era e é efetuado para manter o Serviço

de Pediatria em funcionamento, em prol dos utentes, ao fim de alguns anos, é

assumido pela tutela como “normal” e não vemos diligências para solucionar o

problema. Foram horas subtraídas à família e que tiveram o efeito perverso de

afugentar mais recém-especialistas, que não querem enveredar pelo mesmo

destino, e com toda a razão!

SANDRA TEIXEIRA

Fruto de uma politização da Administração Pública, não há programas de

atuação a longo prazo. As medidas no Sistema Nacional de Saúde alteram-se

em cada legislatura, ao sabor da força política a governar. Os Conselhos de

Administração, Diretores Clínicos e Diretores de Serviço mudam de acordo com

a cor política do governo. Por outro lado, na maioria das instituições no setor

privado, a gestão dos serviços é fundamentalmente realizada por gestores de

carreira, sem conhecimentos de medicina e muitas vezes mal assessorados,

cujo objetivo fundamental é o lucro. Nesta panorâmica, o subfinanciamento

crónico e a exaustão física e psicológica agravada pela pandemia COVID-19

SOFIA LIMA

A nível formativo, não!

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

5

Que

CARLA RÊGO

SANDRA TEIXEIRA

conselhos daria aos atuais estudantes?

Falem com os doentes, escutem os doentes e olhem-nos. Muitas vezes,

como sabem, quem procura o médico não tem necessariamente uma doença

física e, mesmo que a tenha, esta pode ter uma forte componente emocional.

Ora, a confiança no profissional e a capacidade de sentir, da parte deste, empatia

e interesse pode não representar “metade da cura”, mas tem um forte impacto

na recuperação! E os actuais estudantes não têm tempo, nem interesse

em falar. Na verdade, muitas vezes não sabem falar com doentes, porque, em

regra, leem pouco e, por outro lado, não treinam a comunicação e a gestão de

sentimentos.

Aos atuais estudantes aconselho a trabalharem no seu autoconhecimento

e capacidade de comunicação, a manterem-se sempre focados e com os

sentidos bem despertos, para que possam absorver ao máximo a vivência dos

Serviços por onde passam.

Quanto ao futuro profissional, que façam as suas escolhas sem esquecerem

a vida pessoal, que não abdiquem de tempo para descanso e para si próprios.

Só quem está de bem consigo próprio poderá ser um bom médico!

SANDRA TEIXEIRA

SOFIA LIMA

A perceção que tenho dos médicos recém-formados é que têm uma boa

formação teórica, mas algumas lacunas na parte prática. Já incorporaram que

há limites de trabalho e de condições de trabalho que não devem ser ultrapassados,

facto com o qual concordo plenamente.

Fruto da dependência das novas tecnologias, redes sociais e da própria

pandemia COVID 19, sinto algum distanciamento e dificuldades de comunicação,

em alguns colegas, mas que é transversal a todos os grupos etários.

Relativamente aos colegas mais velhos, este é um momento de desânimo

e extremo cansaço no Sistema Nacional de Saúde. No entanto, e como sempre

fizemos, cá estaremos para lutar por ele!

Da minha experiência, até agora, tenho a sorte de poder dizer que tanto os

médicos mais novos como os mais velhos têm em comum o facto de se dedicarem

a 100% àquilo a que se propõem. Tem sido muito útil, pelo menos para

mim, aprender com o espírito prático e com a experiência de ambos.

SOFIA LIMA

São 6 anos que passam a correr! É importante que os aproveitem bem e

que não adiem a vossa vida pessoal em prol da vida profissional, pois há tempo

para tudo. Na verdade, o crescimento pessoal é fundamental e será o que vai

definir o vosso carácter como futuros médicos. É importante que se foquem no

objectivo, mas que aproveitem a jornada até lá.

6

Qual

a sua perceção acerca dos médicos recém-formados?

Qual a sua perceção acerca dos médicos mais velhos?

CARLA RÊGO

Os recém-formados são muito mais “calculistas”, no sentido de ponderados,

na escolha da sua vida futura, concretamente na escolha da especialidade

e, por outro lado, têm pouco treino no raciocínio clínico. Muitas vezes, estão

cheios de informação, mas não sabem aplicá-la à prática clínica, desenvolvendo

um raciocínio estruturado até às hipóteses de diagnóstico. No entanto, são

muito ágeis na pesquisa!

Os mais velhos trabalharam (e trabalham) com mais amor à camisola e

com uma maior componente “emocional”.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Marcos Internacionais da Evolução dos

INSTRUMENTOS CIRÚRGICOS

OS INTRUMENTOS CIRÚRGICOS SÃO O TESTEMUNHO DA

CIÊNCIA, E DA TECNOLOGIA DO SEU TEMPO DE FABRICO.

Os Estudantes do Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade de Medicina da

Universidade do Porto podem aprender o ABC deste género de instrumento na Unidade

Curricular optativa, a História do Instrumento Médico. Paralelamente existe a Unidade de

Formação Contínua, a História do Instrumento Cirúrgico, acessível a Licenciados ou Mestres

na área das Ciências da Saúde e domínios afins e a Estudantes universitários destas

e de outras áreas do saber com interesse nesta temática. Ambas as unidades de formação

são da nossa responsabilidade e integram a oferta formativa do Departamento de

Medicina da Comunidade, Informação e Decisão em Saúde desta Faculdade. Pretende-se

a partir do saber sobre as origens e a evolução do instrumento cirúrgico complementar o

que é conhecido pelas fontes documentais e criar um corpo estruturado, capaz de veicular

investigações interdisciplinares. É matéria de estímulo à reflexão sobre a Medicina e

forma de captar e sentir os valores da Cultura pela autoformação. O património museológico

e documental da Faculdade, pela sua diversidade e valores histórico e social, tem

uma aplicação pedagógica ímpar entre os seus pares a nível nacional e internacional.

Por Catarina Pedro Carrinho

Estojo de Amputação do séc. XVIII

Instrumentos com extremidades proximais em

material orgânico, madeira, e as extremidades distais

em aço composto por camadas justapostas.

Neste ano comemorativo do bicentenário do nascimento de

Louis Pasteur (1822- 1895), importa lembrar este insigne cientista

francês, conhecido por ter desmoronado a teoria da geração

espontânea e defendido a origem da vida a partir de outra

preexistente, indicar a etiopatogenia infeciosa de várias doenças,

propor o processo de pasteurização na conservação de alimentos

e bebidas fermentadas, contribuir para o desenvolvimento

de vacinas (antirrábica, 1885) e defender a assepsia em

meio hospitalar e laboratorial, entre as principais descobertas.

As suas investigações desencadearam uma mudança de paradigma

em diferentes domínios, muito em particular na Cirurgia.

Louis Pasteur chegou a afirmar que se fosse cirurgião lavaria as

suas mãos e passaria os seus instrumentos sobre uma chama.

No período que antecedeu os estudos de Louis Pasteur,

os instrumentos cirúrgicos eram o espelho do estatuto

social do cirurgião, seu proprietário. O desconhecimento

da existência de micróbios como agentes causais de

doenças permitia a manufatura de exemplares com cabos ricos

numa diversidade de materiais orgânicos, tais como o marfim, a

carapaça de tartaruga, a barba de baleia e o ébano, densamente

adornados e muitos com propriedades ergonómicas evidentes.

A necessidade do cirurgião se deslocar e transportar consigo

os seus instrumentos ditou a sua inclusão em estojos com os mais

diversos tamanhos e materiais, preferindo-se os de menores dimensões

para facilitar a sua mobilização. Assim, era comum encontrar

um cabo único ao qual se adaptavam várias extremidades

distais com diferentes funcionalidades. Cada estojo podia reunir

instrumentos dirigidos exclusivamente a um género de cirurgia ou

dar respostas às múltiplas exigências clínicas com instrumentos

associados a diferentes cirurgias. Os metais ferrosos compunham

a maioria das extremidades distais dos instrumentos e serviam

de suporte aos materiais orgânicos das extremidades proximais.

No século XVI, a introdução de foles condutores de água,

chaminés altas, a fundição do coque e os fornos convetores com

processos de cementação a 1000ºC conduziram ao fabrico de um

aço de melhor têmpera composto por camadas sucessivas justapostas.

Era um aço quebradiço que obrigava ao fabrico de instrumentos

com extremidades distais de maior espessura e dimensão.

Ter-se-ia de aguardar os avanços tecnológicos ocorridos na segunda

metade do século XVIII para dar início à produção de um aço

com uma percentagem maior de carbono, mais resistente, que permitia

criar superfícies de corte mais homogéneas, delicadas e ajustadas

às necessidades clínicas. Na verdade, as lâminas descartáveis

dos nossos bisturis atuais são compostas por este tipo de aço.

Os metais não ferrosos utilizados na manufatura de instrumentos

cirúrgicos no período pré-Pasteur foram o bronze no

período greco-romano e, ao longo dos tempos, o cobre, o ouro,

a prata, o latão, o estanho, o chumbo e a prata alemã, com particular

preferência durante do século XIX entre os fabricantes

franceses. A utilização deste tipo de metais dependeu dos avanços

da Física, da Química, da Engenharia, da Eletrometalurgia e

da Química Analítica. A limpeza do instrumento, para facilitar

a sua funcionalidade e prevenir a sua deterioração, era o único

tratamento a que era submetido quando considerado necessário.

Na década de 70 do século XVIII, produziram-se cateteres maleáveis

ao impregnar uma estrutura de tecido com gomas de plantas.

Até aí, para os modelos tubulares predominavam os exemplares

metálicos, na maioria de prata, metal não ferroso muito resistente

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Escultura de Enrique Zofio

Dávila (1840/43-c.1915)

Aplicação de um forceps obstétrico

representado com extremidades

proximais de material orgânico.

Por Enrique Zofio

à corrosão e bem tolerado pelo organismo. Foi ainda na década de 90

do século XVIII que se produziu a mais antiga forma tubular em borracha

com fins cirúrgicos, por volatilização da borracha. A vulcanização

com enxofre (1841) por Charles Goodyear (1800-1860) conduziu à

produção de um material mais resistente às variações térmicas.

O primeiro catálogo de instrumentos cirúrgicos conhecido data de

1772 de J. J. Perret. Este cuteleiro afirmava ser intenção do cirurgião a

cura do paciente e a sua contribuir com o seu ofício para a segurança

do homem. Utilizava um símbolo como marca identificativa dos seus

instrumentos, enquanto outros preferiram adotar um nome. Até ao seu

tempo, o processo de manufatura dos instrumentos variou pouco, cingindo-se

basicamente a três tipos: os de corte, os não cortantes e as

pinças articuladas e de disseção. No século XIX, na primeira metade,

assiste-se à individualização de algumas especialidades médicas e, na

segunda, das especialidades cirúrgicas, fruto dos avanços no domínio

da dor (década de 40), do controlo das hemorragias com a introdução

das pinças hemostáticas e das infeções. Assim, foi exigido aos

fabricantes a idealização, quando não partia do próprio cirurgião, e

a produção de instrumentos novos para colmatar as novas exigências

clínicas. Uns foram mais criativos e procuraram adaptar-se aos

avanços científicos, tecnológicos e técnicos evidenciando uma clara

afirmação profissional com consequente poderio económico.

Ao nível dos instrumentos cirúrgicos, o primeiro sinal da recetividade

no meio cirúrgico das descobertas de Louis Pasteur foi o

flamejado na ponta das extremidades distais. Paralelamente, o cirurgião

britânico Joseph Lister (1827-1912) introduz de forma sistemática

o ácido carbólico como antisséptico na preparação pré-operatória

Por Catarina Pedro Carrinho

dos fios de sutura e dos instrumentos e, sob a forma de

spray, no decurso da cirurgia. A vulgarização da assepsia

e da antissepsia determinou uma profunda transformação

no meio hospitalar, agora centros de assistência médica,

proprietários dos instrumentos de diagnóstico médico,

laboratoriais e cirúrgicos. Ao nível destes instrumentos,

houve uma profunda revolução que se traduziu no fabrico

de formas mais estilizadas; na substituição por metais a

quase totalidade dos materiais orgânicos; no desmembramento

das suas partes constituintes com a introdução de

novas formas de articulação e marcação numérica igual

das partes; e, na eletrolaminação com níquel e crómio,

visando uma maior resistência aos processos antisséticos

e asséticos. Instrumentos com estas características foram

produzidos até à generalização do aço inoxidável.

Os primeiros instrumentos cirúrgicos em aço inoxidável

surgem em 1916 e destinaram-se à cirurgia da apófise

mastoide, produzidos por Mayer & Cª. Na década de vinte

do século XX, os catálogos de instrumentos cirúrgicos

comercializavam os modelos eletrolaminados e os de aço

inoxidável, sendo estes consideravelmente mais dispendiosos.

Paralelamente outros metais não ferrosos, como a

platina, o alumínio, o titânio, o tungsténio e o vitálio, foram

introduzidos na instrumentação cirúrgica. Alguns passaram

a ser largamente utilizados na microcirurgia oftálmica

e maxilo-facial e em implantes ósseos. Com exceção

do celuloide (1869) e da baquelite (1907), a maioria dos

plásticos, polímeros de resinas sintéticas, foram descobertos

entre 1930 e 1955, com múltiplas utilizações em

instrumentos médicos de diagnóstico e cirúrgicos, substituindo

muitos dos fabricados em aço e em borracha. O

nosso principal instrumento, a nossa mão, continua desde

1900, de forma sistemática, a vestir-se de borracha e mais

recentemente de plásticos. Na década de 80, assistimos ao

desenvolvimento da sutura automática com a aplicação de

máquinas descartáveis, essencialmente de plásticos, com

extensão à cirurgia endoscópica.

O caminho percorrido faz-nos antever as potencialidades

inesgotáveis futuras onde os instrumentos cirúrgicos,

na diversidade das suas dimensões, formas, materiais e

marcas, coabitam com novas formas de energia, como os

ultrassons e o laser, sempre com o objetivo major de restabelecer

a saúde humana.

A Evolução do Bisturi

Desde os materiais orgânicos aos plásticos, do aço rico em carbono

ao aço inoxidável.

AMÉLIA RICON FERRAZ

Licenciada em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de

Medicina da Universidade do Porto em 1985. Especialista

em Ginecologia e Obstetrícia pela Ordem dos Médicos

(1995). Professora Associada desta Faculdade desde 2006.

Membro do Conselho Científico da FMUP (2018-2022). Diretora

do Museu de História da Medicina “Maximiano Lemos”

da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

(desde 1990/91). Delegada Nacional de História da Medicina

para a Sociedade Internacional de História da Medicina

(desde 1996).

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Prof. Dr. Tiago Taveira Gomes

Tecnologia na Medicina:

Onde estamos e para onde vamos

Doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 2016, fez

o curso de Medicina na nossa Faculdade, em 2012, assim como um mestrado em

Engenharia Informática na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em

2018. É médico especialista em Medicina Geral e Familiar e Professor Auxiliar Convidado

da FMUP.

Tem vasta experiência em desenvolvimento de software na área da saúde, e conversamos

com ele para descobrir um pouco mais acerca do que será o futuro da

tecnologia em saúde na vertente técnica e humana, o seu percurso de carreira e o

que gostaria de ver desenvolvido nos próximos tempos.

Antes de mais, gostaríamos de saber um pouco

acerca do seu percurso profissional. De onde

vem a paixão pela informática, e como a conseguiu

conciliar com o percurso na Medicina?

A

informática apareceu no 3º ano da faculdade,

por Farmacologia e pelo YES Meeting.

Mas aqui não foi gosto, foi o contacto forçado

com a informática, quando tive que montar o site

do registo do YES Meeting. Depois de ter passado mal

duas semanas para fazer isso é que pensei que poderia

usar isto para me ajudar a aprender os fármacos. E aí

comecei a ganhar o gosto.

Antes, já tinha experimentado todas as coisas possíveis

e imaginárias que se pode fazer com um computador,

desde 3d, música, posters, vídeo, ... Sempre adorei

tudo o que era criar. Ia reinstalando certas aplicações e

tentava fazer coisas clicando aí e ali, frustrava-me várias

vezes, mas, com o tempo, ia aprendendo. O código eu já

tinha tentado antes, mas achava aquilo asqueroso, nunca

consegui chegar a alguma coisa que fizesse sentido.

No 4º ano, então, decidi mergulhar a fundo nisto.

Vivia entre a sala de estudo e a sala da AE, era uma

Sabemos que está atualmente envolvido no

grupo de investigação AI4Health. Neste seguimento,

gostaríamos de compreender um pouco

melhor o que está atualmente a ser desenvolvido

neste âmbito na nossa faculdade.

Estes são grupos do CINTESIS, que não são específicos

da FMUP. Vou falar do que estou a desenvolver aqui

com os meus colegas. São sobretudo duas linhas.

A primeira é conseguir ter algoritmos preditivos

que sejam clinicamente úteis e que estejam validados

para ser usados no contexto clínico. O exemplo prático

mais simples é qualquer Score de Risco, qualquer Taxa

de Filtração Glomerular, os FEVs… Todas essas medidas

previstas são algoritmos. Não lhes vamos chamar Inteligência

Artificial porque admitimos que isso corresponde

a um nível de complexidade superior. Tu não metes

nada disto na prática clínica sem estar demonstrado em

coortes observacionais e em ensaios que o modelo realmente

prediz o que nós conseguimos validar, com uma

técnica mais invasiva ou mais cara, como verdade. Por

exemplo, a creatinina sanguínea é usada para estimar a

taxa de filtração glomerular, mas a taxa de filtração glomerular

não é a creatinina que ta dá. Existem fórmulas,

que são algoritmos, podes chamar-lhe machine learning

primitivo, que estão instituídos de tal forma na medicina

que nem nos lembramos que existem.

Queremos enveredar no sentido de identificar doentes

que beneficiariam de um acompanhamento mais

apertado, e com isto desenvolver ferramentas que ajudem

o médico a identificar as patologias e doentes a

priorizar. Temos 20 minutos para dar a cada doente, mas

20 minutos para um pode não dar para nada, e 20 minutos

para outro pode ser excessivo. Não podemos admitir

que se parta assim tudo de uma forma tosca. Nós estamos

muito focados nos aspetos operacionais de ajudar

os colegas a perceber a doença e a otimizar o trabalho

de ponto de vista administrativo.

Outra área que também estamos a trabalhar é a capacidade

de explorar sintomas de patologias crónicas

em fases ainda muito precoces, para tentarmos encontrar

padrões que identifiquem pessoas que possam estar

em risco de desenvolver determinada patologia daqui a

algum tempo, ou que até já estão a desenvolver a patologia.

Também temos um trabalho na área da violência

em que nos questionamos se existem padrões nos registos

clínicos que nos ajudem a identificar pessoas em

risco de violência. Por certos padrões mais complicados

podemos achar que há uma probabilidade grande o suficiente

para explorar a opção.

A outra linha é na área do processamento seguro da

informação. Estamos a desenvolver modelos que permitam

processar dados de saúde de várias instituições

sem que os dados saiam da instituição. Ou seja, sem ter

que pôr tudo no mesmo saco, construir uma figura que

tradicionalmente implicaria pôr tudo no mesmo saco. E

para quê? Para garantir que os dados do paciente são

preservados, que ninguém olha para o que não deve, e

que não tens que confiar que a instituição a quem tu

passas os dados não os vai usar de forma errada ou ter

uma quebra de segurança.

Não focamos tanto na direção que se pensa assim

à primeira de fazer o diagnóstico em vez do médico, ou

sugerir ao médico o que fazer. Em tudo o que fazemos,

admitimos que o médico é soberano, e que a parte chata

o algoritmo pode fazer.

Temos que olhar para os instrumentos como algo

que nos ajude, e temos que gostar deles. As primeiras

pessoas a defender algoritmos de machine learning têm

que ser as pessoas que os vão usar.

Quando as coisas são feitas sem ter pessoas do terreno,

o normal é que venha empurrado. Nós queremos o

contrário, que venha puxado por quem está dentro.

Ainda dentro do tópico da Inteligência Artificial,

qual considera que será o papel destas tecnologias

no futuro? Em quais áreas serão verdadeiramente

benéficas, e quais são as tarefas mais

sujeitas à sua aplicação?

A questão de a Inteligência Artificial poder vir a tirar

trabalho não é só aos médicos que mete medo. Mas

podemos contribuir para a valorização da atividade profissional

ao remover a parte chata burocrática. Para dar

uma consulta há que ligar o computador, registar não

sei o quê, ir ver não sei onde, meter aqui, meter ali, validar

não sei quantas listas, ver caixas… Isso tudo ocupa

tempo e esforço que vai subtrair ao tempo a aplicar a

medicina ao doente. Se houver algoritmos que fazem

isto, ficamos só com a parte boa, que é a parte para a

qual voces estão a ser treinados, e a parte na qual quem

quer ser médico pensa. Ninguém quer ser médico para

fazer cliques no programa.

Como prevê que evoluirá a relação médico-

-doente face à crescente mecanização da prática

médica?

Acho que os médicos vão ter mais tempo para olhar

o doente e que vá haver naturalmente mais espaço para

investir na relação médico doente, na comunicação,

na relação terapêutica, em toda a parte mais humana

da Medicina. Mas há também uma situação paradoxal.

Quanto mais tecnologia temos na mão, mais incapazes

ficamos. Apesar de existir na internet toda a informação

para consulta, a grande maioria das pessoas não a sabe

validar. Ou então, porque o telefone realiza determinada

tarefa, não desenvolvemos essa competência. Se

eu consigo encomendar pelo UberEats, porque hei de

aprender a cozinhar?

Quanto mais tecnologia tenho, mais fácil é ficar confortável

com não aprender nem desenvolver tal competência.

Mas o caminho que eu vejo é a medicina ser

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Quais vê como sendo, hoje, os principais entraves

à automatização dos cuidados de saúde em

Portugal?

O problema maior que a saúde tem face a tecnologia

é a gestão do legado. O que é que isto significa?

Significa que os sistemas de informação e as tecnologias

evoluem muito depressa. Há linguagens que são

standard hoje em dia que não existiam há 5 anos atrás.

Essa velocidade faz com que, muito rapidamente, se vá

desatualizando aquilo que já foi produzido. E o problema

do software é que tem que ser atualizado há medida

que a visão do problema vai crescendo e modificando.

Além disto, o mercado por pessoas técnicas é extremamente

agressivo, e é difícil termos pessoas técnicas

muito competentes a querer vir para estas áreas. É muito

difícil competir com lojas de roupas online e outros

que pagam 500 mil de bónus e têm negócios simples de

perceber. A medicina não é simples de perceber.

Portanto, temos tecnologias rapidamente desatualizadas,

pouca massa crítica capaz de a atualizar, e ainda a

gestão hiperpormenorizada de recursos que difere entre

os hospitais x, y ou z. Isto faz com que a implementação

destes softwares seja muito frágil.

Então, se eu quiser mais uma coisinha passados dois

anos, a tecnologia já não é aquela e quem desenvolveu

o programa já foi embora. Faz isto ao longo de 20 anos

e tens um problema brutal. Nós construímos muitos sistemas

em torno de sistemas, e para o consumidor até se

apresenta muito bonito numa app, mas o pilar está na

tecnologia de 1960. Na medicina temos uma gestão de

legado impossível. Por isso é que, num país onde estão

a começar um sistema de saúde do zero, tudo é rápido

e fácil e funciona. Porque não há, em grande medida, o

problema do legado. E isso faz toda a diferença.

O percurso académico que traçou é, para dizer

o menos, peculiar. A capacidade de trabalho especializado

e integrado médico e informático

revelar-se-á cada vez mais uma necessidade.

Com a hiperespecialização que é atualmente

prática em qualquer profissão, como prevê que

esta área de sobreposição seja abordada no futuro?

O conhecimento é como um sol de onde nascem

vários raios. Cada raio é uma área de conhecimento, e

conseguimos evoluir muito nas áreas puras. Mas a ponta

de cada raio, há medida que cresce, está cada vez mais

longe dos restantes. A vida real não acontece nestes

raios, mas no espaço entre eles.

A ciência é maravilhosa, mas tem que ser aplicada

onde faz falta. Não é possível uma colaboração entre os

hiperespecialistas em tecnologia e os hiperespecialistas

em medicina. É como pôr um francês e um chinês a falar

– não dá –, mas talvez pior, porque podem achar que

se compreendem. Na verdade, só não falam a mesma

língua no significado. É como se dissesses a um empreiteiro

que queres uma sala grande sem especificar os m2.

O empreiteiro constrói da forma que acha, que não é a

forma que tu achas, e o resultado não serve o propósito.

Aqui é igual.

O que tenho sentido da minha carreira, que é no fundo

na ponta de dois raios, é que é um exercício muito

difícil, e desnecessário a partir do momento em que haja

um novo raio no meio. Não havendo, é preciso quem se

estique para unir as pontas. O grande asset que acrescento

é conseguir falar a língua dos dois lados e garantir

que se entendem. Além disto, há o trabalho específico de

começar numa área nova, e criar espaço e conhecimento

em torno dela. E neste caso há uma imensa necessidade.

Há áreas com perfis que devem ser mais híbridos,

por estarem menos perto da ciência e mais perto da implementação

do terreno. Como já vemos na engenharia

biomédica, outras áreas beneficiariam claramente de

perfis híbridos. São precisas pessoas especializadas que

tenham aprendido especificamente, por exemplo, sobre

ressonância. Conhecê-la do ponto de vista fisiológico,

patológico, eletromecânico… Ou então, se queremos

sistemas de informação realmente robustos, precisamos

de profissionais com experiência clínica e de desenvolvimento.

Estes perfis híbridos, por vezes, existem encapotados,

informais. É o perfil híbrido de quem concluiu um

curso do qual gostou mais ou menos, exerceu uns anos,

foi para a indústria e depois na indústria aprendeu gestão.

Só que isso aconteceu aos 30 e muitos anos, com

um prejuízo grande de carreira que se calhar foi dispensável.

Acho que vamos ter cada vez mais perfis híbridos,

e híbridos desde cedo.

SEMPRE ADOREI TUDO O QUE

ERA CRIAR.

O Sindicato Independente dos Médicos - SIM é uma organização sindical médica autónoma e

independente e baseia-se na participação ativa dos Associados.

Dedica-se a defender os direitos de todos os Médicos e sempre prestou grande “apoio aos

Estudantes de Medicina e Médicos Internos”.

Para os Estudantes e Médicos Internos são já frequentes os patrocínios de eventos

científicos, a realização de ações de formação sobre Carreiras Médicas, Percursos

Alternativos, Internato Médico, Legislação Médica e Direitos Laborais; realização de sessões

de esclarecimento sindical, existindo uma Comissão Nacional Especializada, a Comissão

Nacional de Médicos Internos (SIM-Internos) para apoio e orientação dos Médicos Internos.

Para os Médicos Internos o SIM disponibiliza ainda e especificamente:

- Um Livro de Apoio ao Médico Interno (gratuito e já na sua 4ª edição);

- Um Fundo de Formação (80.000€ anuais), destinado aos associados há pelo menos um ano,

para apoio na sua formação pós-graduada, nomeadamente a participação em Congressos,

Cursos, Workshops e Estágios em Portugal e no estrangeiro;

- Uma Spring School.

Todos os seus associados, Especialistas e Internos, beneficiam ainda de:

- Possibilidade de passar férias e fins-de-semana em Isla Canela (Espanha), a preços

reduzidos;

- Apoio jurídico gratuito e dedicado;

- Usufruto do Fundo Social do SIM, caso cumpra critérios sociais;

- Mais-valias laborais vertidas nos Acordos Coletivos de Trabalho;

- OUTRAS vantagens em https://www.simedicos.pt/pt/.

A quota do SIM é no valor de 1% sobre o vencimento x 14 meses, descontado diretamente no

vencimento e dedutível em IRS.

Só organizados e cientes dos nossos direitos é possível a defesa da

Carreira Médica e do Serviço Nacional de Saúde

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Como é que a iLoF encontrou casa no Centro de Investigação Médica?

Quando surgiu esta ideia, nós andamos a

ver vários espaços. Como tu sabes, levar trabalho

para casa é, para nós, normal e como a

minha esposa fez o MIMED na FMUP decidiu

fazer algumas chamadas. Ligou, na altura, à

Professora Maria Amélia que considerou que

o melhor sítio para nós era na Bioquímica.

Entretanto, falámos com Doutora Raquel

Soares, que era diretora do departamento

(agora é o Professor João Tiago), e começámos

com uma pequena salinha com metade

do tamanho desta copa. À medida que fomos

crescendo fomos ficando com espaços maiores

e atualmente temos um espaço mais amplo

e uma sala com uma arca onde guardamos

as nossas amostras biológicas. Na altura

eramos 3 pessoas e agora somos cerca de 20.

LUÍS VALENTE

ATUALMENTE,

tem um espaço no Departamento

de Bioquímica do CIM

Como é que nasceu a ideia de criar a iLoF?

O

projeto em si nasce dos seus fundadores.

Nós somos quatro fundadores: eu, que neste

momento desempenho a função de diretor

executivo, a Paula Sampaio, professora de carreira

e diretora de grupo no i3S, a Joana Paiva, doutorada e

minha colega no INESC TEC, e a Mehak Mumtaz que conhecemos

num programa de aceleração, mesmo quando

estávamos a tentar lançar a empresa, e que conseguimos

roubar para o nosso projeto.

A ideia inicial vem de um projeto de investigação

de quatro a cinco anos, que estava a ser desenvolvido,

e que tinha como objetivo usar métodos óticos

para entender melhor partículas biológicas em fluidos,

maioritariamente sangue- no início era meios de cultura,

células e afins- que estava a ser levado a cabo pela

Paula Sampaio e pela Joana Paiva, entre outros. Entretanto,

eu, juntei-me, por acasos da vida, ao mesmo grupo

no INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e

Computadores, Tecnologia e Ciência) e vi, acho que todos

vimos, um potencial enorme no projeto. Em inícios

de 2019 começámos a fazer um caminho de translação

para o mercado, fomos aceites num programa de aceleração

da Comissão Europeia, o Wild Card que é organizado

pelo EIT Health, e, em 9 meses, falamos com cem

stakeholders globais em cinco continentes, fechamos

um investimento de dois milhões de euros e começamos,

em novembro de 2019, a recrutar as primeiras pessoas.

Foi aí que encontramos aqui espaço na bioquímica,

onde temos continuado.

In Sigarra U.Porto

Qual o objetivo principal do vosso trabalho?

Focam-se apenas em biomarcadores relacionados com a Doença de Alzheimer?

O objetivo principal da plataforma é usar a captura

de grandes quantidades de dados óticos para fazer

identificação de perfis biológicos. Isso, obviamente, tem

abordagens e objetivos a curto e longo prazo. Primariamente,

o que nós já estamos a fazer com alguns parceiros,

como empresas de biotecnologia, especialmente no

Reino Unido, é usar isto como uma plataforma de identificação

de analitos, como proteínas, vesículas..., para

cortar o tempo e custo da investigação pré-clínica. Devido

a algumas circunstâncias e, obviamente, ao facto de

sermos financiados por capital de risco, escolhemos as

doenças neurodegenerativas, em especial o Alzheimer,

como um caminho a seguir e, neste momento, primariamente

estamos a trabalhar nesse ângulo com empresas

de biotecnologia e farmacêuticas. O objetivo a longo

prazo é criar uma plataforma que consiga capturar e

integrar quantidades massivas de dados óticos baratos

e processar isso com pipelines de inteligência artificial

bastante avançadas e conseguir dar aos investigadores

de farmacêuticas, biotechs e hospitais ferramentas para

acelerar o desenvolvimento de novos tratamentos no

futuro. Obviamente, o objetivo é também providenciar

aos clínicos ferramentas que permitam perceber melhor

o paciente e avançar no caminho do que é a verdadeira

medicina personalizada.

No que toca às empresas farmacêuticas e ao desenvolvimento

de novos fármacos, é interessante que não é

importante apenas quantificar o máximo de marcadores

e dados possível, mas também perceber que um medicamento

que para ti te dá um aumento de 5% em algum

marcador, a mim pode dar-me um aumento de 0%. Se

eles analisarem uma população geral, vai dar um aumento,

provavelmente, de 2,5% que, se calhar, no limite,

está dentro dos limites do placebo e o medicamento

não é aprovado. Se eles conseguirem testar apenas em

pessoas com o teu perfil, podem dizer que o fármaco

não serve para pessoas com o perfil do Luís, mas serve

para pessoas com o perfil do João. Torna-se um medicamento

personalizado, porque não funciona para toda a

gente, mas, para quem funciona, funciona muito bem.

Isso é o futuro da medicina. Tal como quando vamos ao

pronto a vestir cada um tem o seu tamanho. No caso da

medicação houve muito tempo em que se tentou que

todos os fármacos funcionassem para toda a gente, mas

há muitas doenças em que não funciona, e o caso da

Doença de Alzheimer é claro.

Nos últimos 20 anos tivemos mais de quatrocentos

estudos clínicos falhados sobre Alzheimer e tivemos,

muito recentemente, um medicamento aprovado,

que causou muita controvérsia, pela FDA, nos Estados

Unidos, porque se conseguiu provar que ele funcionava

bem num grupo da população, mas tinha sido testado

no grupo errado. Existe essa corrente de pensamento de

que há muitas doenças paras as quais já se descobriram

medicamentos que funcionam, mas não funcionam na

população toda e, como testámos na população toda,

aquilo dá um efeito assim um bocado estranho, acabando

por não ser aprovado. É a visão por trás da iLoF: massificar

ferramentas para que farmacêuticas, empresas de

biotecnologia e, eventualmente, clínicos as possam usar

para democratizar a medicina personalizada.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Neste momento, estão ainda em fase de criação de base de dados ou já têm ação perto

de empresas e instituições de saúde?

Nós vamos fazer 3 anos em meados deste ano, por

isso estamos numa fase que para uma startup parece já

antiga, mas para um deep tech não é. Temos exemplos

de outras empresas fantásticas como a FASTinov, uma

empresa fundada pela Professora Doutora Cidália, que

está à frente e com um crescimento brutal, mas que leva

já mais anos. O desafio das deep techs é que demoram

algum tempo a evoluir.

Neste momento, estamos a capturar quantidades

muito grandes de dados para criar esta base de dados.

Estamos também a fazer testes de correlação. Eu não

sei se já chegaste ao ponto no curso em que ouves falar

da proteómica, metabolómica e multiómica, mas genómica

já ouviste falar seguramente. A genómica tem

muito interesse em dizer qual é o perfil com que tu nasces,

qual é o teu baseline, mas não é tão capaz de dizer

como é que o teu perfil se vai alterando à medida que

tu envelheces, fazes diferentes escolhas de vida, comes

melhor e comes pior... isso tudo afeta o teu perfil e a

forma como o teu risco evolui. A abordagem multiómica

é o estudo do perfil biológico como um todo. Nós, neste

momento, temos uma abordagem de captura de dados

muito mais barata, usando a ótica, a luz. Assim, estamos

a capturar grandes quantidades de dados óticos e a fazer

estudos de correlação genómica com a proteómica e

afins. Estamos, em paralelo, já a trabalhar com algumas

farmacêuticas, e empresas de biotecnologia, maioritariamente

fora de Portugal, no Reino Unido, e esperamos,

dentro de 12 meses, estar no mercado com uma solução

para investigadores em farmacêuticas, biotechs e instituições

académicas que os ajude a cortar o tempo e custo

de levar medicamentos para o mercado. Esperamos,

depois, em 24 a 36 meses, estar no mercado com uma

solução mais abrangente para área clínica que ajude

na triagem do paciente num ambiente clínico. Algo tão

simples como um projeto que fizemos aqui com o Hospital

de São João e com a Faculdade de Medicina: um

modelo preditivo capaz de perceber, quando infetados

com COVID-19, quais são os pacientes que vão ficar em

condição grave e ter de ir para os cuidados intensivos e

quais os pacientes que apenas vão ter sintomas leves a

moderados.

Quais os tipos de amostras de produtos

biológicos que vocês recolhem?

Maioritariamente são amostras de sangue. Fluídos

sanguíneos, plasma ou soro é o que nós mais usamos.

A tecnologia de base tem a visão de usar fluidos corporais

como saliva e urina para detetar estes analitos

e criar estes perfis biológicos. Porquê sangue? Porque

há bio bancos por todo o mundo que captam grandes

quantidades de sangue, como aqui no São João, e é de

fácil acesso, para além de ser um meio já muito bem

estudado.

Essas amostras são colhidas a pessoas com uma determinada patologia para estudar os

biomarcadores da mesma ou a pessoas saudáveis?

Depende... Por exemplo, para o caso concreto do

projeto que tivemos aqui a decorrer com o Hospital de

São João na área do COVID, nós formos buscar pacientes

que já tinham uma bateria de testes feita e depois

relacionámos a nossa assinatura ótica com os biomarcadores

que já conhecíamos e fizemos um modelo preditivo,

com inteligência artificial, que conseguia detetar

a presença de alguns marcadores e classificar com base

em alguns outcomes. Varia muito dependendo do projeto.

Nesta fase ainda estamos a ir buscar cohorts muito

específicos, focados em problemas concretos. No Reino

Unido, estamos, com uma empresa, a criar um modelo

para detetar um péptido específico, obviamente, para

treinar esse modelo precisamos de grandes quantidades

de dados específicos àquele caso.

Qual o vosso objetivo em relação à Doença

de Alzheimer?

Nós temos duas possibilidades: conseguimos ir

buscar os biomarcadores específicos do Alzheimer ou,

e isto é o que nos distingue, conseguimos ir buscar um

perfil agnóstico, em que não necessitamos de saber

se é a proteína x, o pépetido a ou o exossoma c, mas,

pela assinatura conjunta, conseguimos dizer qual é o

perfil do paciente com Alzheimer, o perfil do paciente

com défice cognitivo ligeiro e o perfil de um paciente

baseline. Nós, neste momento, temos já centenas de

perfis capturados, uma grande parte deles em Alzheimer,

e conseguimos ver essas diferenças com muita

clareza.

Acha que, no futuro, esta tecnologia pode

substituir, por exemplo, as punções lombares,

no caso da Doença de Alzheimer?

O objetivo é exatamente

Neste momento eu posso dizer que 90% dos pacientes

desistem dos estudos clínicos de Alzheimer

quando lhes dizem que vão ter de fazer punções lombares

e mais do que uma vez, porque, nestes estudos,

tem de ser uma medição contínua no tempo. O objetivo

é uma ferramenta não invasiva, confortável e

humana que permita fazer a essas avaliações. Isto é

muito importante no caso do Alzheimer para o desenvolvimento

de medicamentos que alterem o curso da

doença. É importante haver ferramentas destas para

ajudar os medicamentos a chegarem ao mercado mais

rapidamente. A partir da estreia no mercado, é importantíssimo

usar ferramentas destas para rastrear a população

geral, até porque, muito provavelmente, serão

medicamentos mais eficazes numa fase assintomática

da doença.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

Virtuleap

AMIR BOZORGZADEH

What’s your background? Can you tell us a bit about your

journey?

I

grew up in Canada. My professional

background began

as a market researcher

with thousands of quantitative

and qualitative studies. While

I was in Dubai, for about eight

years, I got into mobile games

publishing. I had a studio and

I ran some interesting experiments

about the social impact

of games and online platforms. I

moved to Amsterdam back in 2015

and I started writing for Venture-

Beat and TechCrunch about virtual

reality, augmented reality and

emerging technologies and how

they intersect in areas that were

interesting to me. I wasn´t a professional

journalist, I just did it for my

own research. I wanted to enter the

space, but I wanted to understand

what that space was. So, I started

writing a lot for about four years,

and, I think, about two and a half

years into that, I got into figuring

out what I wanted to do. So: market

researcher, games publisher, tech

writer and then, finally, founder of

a virtual reality company that ultimately

has its headquarters here in

Lisbon, Portugal.

Did those ideas to create your company come from your

time as a tech writer or did they appear before that?

A VIRTULEAP É UMA STARTUP COM SEDE EM LISBOA QUE TEM COMO

OBJETIVO A CRIAÇÃO DE MEIOS EFICAZES DE AVALIAÇÃO E TREINO DE

CAPACIDADES COGNITIVAS ATRAVÉS DE TECNOLOGIAS EMERGENTES

COMO A REALIDADE VIRTUAL E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. O DESENHO

DOS JOGOS E TECNOLOGIAS QUE PRODUZ TEM POR BASE A MAIS RE-

CENTE INVESTIGAÇÃO NOS CAMPOS DA NEUROCIÊNCIA E CIÊNCIA DO

COMPORTAMENTO, DE MODO A POTENCIAR AO MÁXIMO O SEU IMPAC-

TO COGNITIVO.

AMIR BOZORGZADEH É O CEO E CO-FUNDADOR DA VIRTULEAP, COM

QUEM ESTIVEMOS À CONVERSA PARA CONHECER UM POUCO MELHOR

O PROCESSO DE CRIAÇÃO E OS OBJETIVOS DA EMPRESA E RECOLHER

ALGUM DO CONHECIMENTO QUE ESSA EXPERIÊNCIA LHE PROPORCIO-

NOU.

The initial seed of it came during the writing. We

ran online hackathons for VR and had a lot of participation

in the community. I started seeing what community

developers were creating and, when we started

Virtuleap, back in 2018, it initially began as something

different. We were creating algorithms that could analyze

all of the data in virtual reality scenarios in order

to know whether the person is focused, nervous…

a lot of emotions. We felt we could create analytics that

could actually understand whether you are emotional,

because of all the body language and all the physiological

sensors that virtual reality has in hardware. After a

year into running that company and developing these

algorithms, we were creating these games. The games,

which are ultimately neuroscience-based games, scientific

driven games, were about giving a sense to

individuals about their cognitive health. And then we

realized the games were more interesting for the market

than the actual algorithms Basically, in the startup

community, that’s called a pivot, and that was a very

monumental moment for the company. In May 2019

we pivoted into the current version of our company. So:

writing leads to some idea that I want to be in the vr intersection

of healthcare and education, specifically education.

Then, we get into the startup and it’s very much

about the analytics and the analytics from the point of

view of health and education, because it can be useful

for training purposes and have therapeutic applications.

And, finally, we pivoted because the market was telling

us that this was a more viable business model than the

algorithms. Running a company that sells algorithms or

figuring out how you do sell algorithms is far more challenging

than a product-driven company that is creating

games that are actually available to consumers directly.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

It’s a “games as

medicine” product that

would be one of the

main milestones within

five years.

A REALIDADE VIRTUAL AO

SERVIÇO DA MEDICINA

In the beginning, what was the purpose of the algorithms you were creating and data

you were collecting?

It was basically giving you core data, like the

heart rate or if the person is more nervous because

of this environment in the VR. It’s like being able to

give telemetric data to the creators of this content so

that they can be able to shape the experiences and

improve the comfort levels of their content. We call

it biometric algorithms because they are about the

physiological state of the individual. Someone might

want to use this in a healthcare setting, but initially

we weren’t thinking about healthcare. We were thinking

about what this whole new 3D world is in terms

of opportunities and what are the new tools that need

to be created. Google Analytics gives you, for your

website, KPIs (Key Performance Indicators) like traffic,

drop-off and retention. In virtual reality we are talking

about a 3D rendered environment that is embodied,

and in an embodied digital format, your body is giving

all sorts of KPIs about whether that experience is

giving the intended kind of user experience design.

For user content that is intended to be emotionally

engaging, you might like that you’re seeing a lot of

excitement, but in an educational, school-driven experience

or meditative one, you might want to bring

that reaction down. And you can actually infer these

things, the physiological reactions of individuals in

VR, in a way that can give you a lot of insight on how

to create highly accessible, highly comfortable or

highly engaging content. So: neurofeedback, physiological

sensors… biometrics was the term we used to

call it. When we created those algorithms, we created

games in order to test whether the algorithms were

working; we were using the games for our own testing

purposes. Then we understood the games were more

interesting than the actual algorithms and much more

The games you’re producing now are more focused on improving memory and attention,

right?

We try to avoid saying whether they improve it…

that’s ultimately what the clinical studies will show.

It’s a very controversial field. There’s a lot of controversy

in terms of: “Can we improve memory? Or is it

actually just that, if you play these games a lot, you get

better at the games and then you think your memory

is better?”. We call that: transferability. In the industry

we try to find out scientifically, in clinical studies, and

studies in general, that get peer-reviewed and published,

whether we see any evidence of transferability:

does playing this game, or these fifteen games, - some

focused on memory (short-term, long-term, working

memory), some focused on attention, some focused

on spatial orientation, spatial audio-awareness, information

processing - make you better at remembering

your grocery list or does it not; is there evidence that

it improves your working memory?… Whether it can

be therapeutic is one of the applications of our technology.

Whether it’s a great monitoring tool that gives

you a sense of how you’re performing in certain areas

is another. For example, we know, based on our

data, that people who sleep less than 6 hours per day

see their scores drop in certain memory and attention

scores, but not other ones. The same goes for sleep

monitoring.

We are becoming a very data-driven population

where the games can be a monitoring tool, potentially

therapeutic – for example, if I had ADHD, maybe I

could use this to counterbalance my tendency to a

lack of focus – and maybe the data can be used for

applications in something else. So, there’s a few different

areas, but what we are, essentially, an emerging

technology-based startup. That means that we

are, sadly, almost all the time, in pilot-mode, because

we’re working with a pharma company here, a hospital

there, a private high school there, and we’re trying

to figure out what are the business models. However,

we are not, right this moment, in a position where we

know exactly what’s the best market to address first.

It’s really hard when you’re a company based on

emerging technology that isn’t mainstream yet. We

have an application that you can download… we

have about forty thousand registered users in four

languages, including European Portuguese - we have

four more languages launching this year - but we

don’t charge for it, it’s free. Then we have a platform

with a data portal and companion applications that

allow clinicians to remote-navigate the experience of

the person in the VR, with their phone, and add survey

questions before and after the session, for clinical

settings. We’re navigating the field and trying to

understand and explore what is the business model

and the applications, because, unfortunately or fortunately,

we have a variety of different paths ahead of

us, which can be a weakness or a strength, depending

on how the company is managed.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

What’s your main consumer at the

moment?

We have been making revenue, since

last year, with organizations that are using

us for rehabilitation in hospitals – cognitive

reimplantation for stroke, for example – and

that’s our main client. The second biggest

client, for the data side, is HP. We’re really

trying hard to work with pharma companies,

because we think our solution can pare

nicely with drugs for Alzheimer’s and other

cognitive disorders. But, as I said, we’re still

in exploratory mode and figuring out things

as we go.

Can your products be a tool for

self-development and mental

health?

I think one of the insights in companies

like us is: you shouldn’t be focusing on your

strengths; you should be trying to figure out

what your weaknesses are and why you avoid

developing them. People mask their weaknesses

by overdeveloping their strengths

and whenever their weaknesses are being

touched on in some activity in life, they realize

it’s something they were unconscious

about. We avoid and sometimes are not even

aware of what we’re weak on and in all these

circumstances we gravitate towards activities

that are petting on ourselves in terms of

our strengths. That is ultimately, in my opinion,

detrimental.

People right now are so much in a rush

to succeed, they’re under so much pressure,

and it’s only getting worse and worse… since

covid, everything has gotten, in fact, worse…

There are so many more mental health startups

out there, but I think we are the most

mentally unhealthy we’ve ever been. I think

we are more mentally unhealthy as a society

than we were last year and the year before

that, and I think it’s on decline. Instagram,

tiktok… are destroying our capacity to be

versatile and resourceful. The only way to

stand out is being really good in one thing

and that kind of focus causes a one-sidedness

in our perception and, because of that,

we’re not able to cope and deal with life as

effectively, because we’re underdeveloped

in so many fundamental ways that have an

equal role in contributing for our mental fitness

and health.

Our data shows people are caricatures,

What’s your plan for the next five years

and what’s your ultimate goal?

We have two clinical studies underway right

now. One is in Spain, focusing on whether we’re

slowing down the rate of cognitive decline in people

with type II diabetes, which is a two-year study.

The other one is in the US, where we’re mapping

the game-play patterns of people with Alzheimer’s

disease to potentially create algorithms that

can detect the condition years before it becomes a

problem. We’re studying those patterns and whether

we can identify the people who are starting to

have a tendency towards those patterns. Those

are going to take at least two years to finish and

probably another year to publish the results, after

having them peer reviewed. In the next three to

five years, we would have a digital therapeutic,

reimbursable by insurance companies, in markets

like the US and Germany, so that it’s something the

healthcare system actually reimburses as medicine.

It’s a “games as medicine” product that would

be one of the main milestones within five years.

I also want it to be considered as the new gold

standard for cognitive assessment. When people

want to, in high school, do an assessment of

their IQ, they should also be using our games to

see their cognitive performances and see where

they’re weak and strong. We have so much data

that is worthwhile for students and companies to

use for HR and performance programs… It’s not

just a healthcare solution, it’s also a wellness and

productivity solution. So, hopefully, the clinical

studies will give us reputation as a technology that

is worthwhile for education and training as well.

weird shapes where some things are overdeveloped at the

expense of underdeveloped things. We need to break away

from this erroneous idea that we can only succeed by being

really great in one way. I think we are in a position, now,

to start focusing on everything we’re trying to avoid. These

data driven solutions, like ours, reveal things that you might

not like, but the more you acknowledge these things, the

better for your long-term health.

As a CEO, what’s the advice you have for us

STUDENTS?

It doesn’t matter what you do, it just

matters that you do something. It doesn’t

matter what it is, you just have to start it

and, when you start something, a process

begins, and that process will go somewhere.

It’s like dropping a marble on

some path and it just goes somewhere

based on gravity and what the world is

like in accordance to how it reacts to

you. People go: “Follow your dreams!”…

What the hell are you talking about?

What dreams? I don’t have any of these

things… Is there something wrong with

me? Am I not talented?... You have to

get rid of all those preconceptions and

ideas, focus only on yourself and how you

relate to the world and, whatever way

that happens, when you just take steps

of any kind to do something, when you

do things, they lead to things. One thing

progresses to the next. It’s a process. Begin

processes!

It doesn’t matter finding the best

idea. In our company, the pivot happened

because we tested it. If you do the wrong

degree, or the wrong specialty, or pick

the wrong job, don’t blame yourself, don’t

get stuck in hiccups about things. It’s all

inevitable and you have to chill the hell

out and just do things. Then, you’ll get

more data from the universe on what

direction you’re supposed to be going.

People I’ve talked to don’t do startups

or certain special ventures or projects

or hobbies because they’re in their own

way! There’s no reason they can’t start

something. I think a lot of us are stuck,

and there’s nothing worse than feeling

stuck, so get unstuck as soon as possible,

because anything you do will be better

than not doing something.

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

A forma como se nasce importa:

Histórias de violência obstétrica

O

conceito de Violência Obstétrica foi introduzido

no âmbito legal em 2007, na

Venezuela, tendo sido definido como

“a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos

da mulher por profissionais de saúde, representando

tratamento desrespeitoso, abuso de

intervenções farmacológicas e conversão de processos

fisiológicos em patológicos. Implica perda

de autonomia e da possibilidade de livre escolha

da mulher sobre o seu corpo e sexualidade, afetando

negativamente a qualidade de vida da mesma”

(1).

A institucionalização do parto teve, sem dúvida,

um grande impacto na redução da mortalidade

materno-infantil. Porém, promoveu também

a transformação de um estado/evento fisiológico

num processo patológico (2), na medida em que a

“necessidade” de monitorização e/ou intervenção

torna a mulher uma espectadora.

A apropriação do corpo feminino durante o

parto remonta ao século XVI. Ambroise Paré e Jacques

Guillemeau, ambos cirurgiões franceses da

época, defendiam a adoção da posição em decúbito

dorsal durante o trabalho de parto, mais tarde

impulsionada por Mariceau. No seu livro de 1668

“The Diseases of Women With Child and Child-

-Bed”, Mariceau defendia que a posição reclinada era mais confortável e conveniente para o médico. (3)

Quase 400 anos depois, ainda é comum a perda de autonomia das mulheres durante o parto, seja

pelo jejum forçado durante o trabalho de parto, seja pela perda de mobilidade ou mesmo pela execução

de intervenções farmacológicas e/ou invasivas sem consentimento informado ou com recurso à coação.

Este fenómeno não se restringe apenas aos países em desenvolvimento, estando presente em países

industrializados como Canadá ou os Estados Unidos da América. (4)

As vivências negativas durante a gravidez e o parto têm impacto na saúde mental durante o puerpério.

De facto, um estudo de 2020 sobre coação informal durante o parto verificou que as mulheres

sujeitas a este tipo violência tinham maior probabilidade de desenvolver depressão pós-parto. (5)

Apesar de a definição usada na lei venezuelana se referir aos profissionais de saúde como perpetradores

destes atos, o facto é que o modelo biomédico de assistência ao parto é o principal responsável

pela violência obstétrica. (6) O uso de protocolos estandardizados, por exemplo, não permite a prestação

de cuidados de saúde centrados na parturiente. Ainda, a falta de recursos humanos e logísticos impede

o acompanhamento mais personalizado das grávidas durante o trabalho de parto e condiciona o tempo

atribuído ao trabalho de parto, deixando as mulheres numa corrida contra o tempo.

O parto humanizado e o papel dos profissionais de saúde na resolução do problema da

violência obstétrica

A evidência mais recente demonstra que as experiências positivas durante o parto são determinantes

para a saúde materno-infantil, sendo essencial proporcionar um ambiente que promova o vínculo

mãe-bebé. Efetivamente, as recomendações da Organização Mundial de Saúde de 2018 são claras nesse

sentido. (7)

Um estudo publicado na revista The Lancet, em 2022, verificou que, por exemplo, o recurso à manobra

de Kristeller ainda é prevalente em diversos países europeus, incluindo Portugal (8), apesar de ser

considerada má prática médica.

Diversas sociedades médicas de obstetrícia e ginecologia, incluindo a sociedade portuguesa, não estão

de acordo com o uso do termo “Violência Obstétrica”, considerando-o ofensivo e, no caso português,

negam a sua existência. (9-10) Não obstante, os abusos existem, apesar de não se saber a sua prevalência

real. As mulheres deles vítimas relatam ter-lhes sido roubado um momento

extremamente especial da sua vida. (11)

O dilema ético entre a autonomia da mulher e a beneficência do bebé

será sempre uma área cinzenta. Neste contexto, a tendência fetocêntrica

conduz à aceitação generalizada de que uma intervenção “tem que ser feita”,

mesmo que seja contra a vontade da mulher ou a sua indicação seja dúbia.

Assim sendo, questionar determinadas práticas não implica diminuir a

entrega ou a dedicação dos profissionais de saúde materno-infantil. Os profissionais

precisam de ouvir as mulheres e caminhar em conjunto para melhorar,

ainda mais, a prestação de cuidados. Certamente, este diálogo irá traduzir-se

em ganhos de saúde quer para as mulheres quer para os seus bebés.

Referências

(1) Organic Law on the Right of Women to a Life free of Violence, 2007, Caracas, Venezuela. Retrieved:

Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia.

(2) Torres JA, Santos I, Vargens OMC. Constructing a care technology conception in obstetric nursering:

a sociopoetic study. Texto Contexto Enferm. 2008; 17(4) 656-64.

(3) Dundes L. “ The evolution of maternal birthing positions” Am J Public Health. 1987 May; 77(5):

636–641.

(4) Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC et al. The mistreatment of women during childbirth in health

facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLOS Medicine 2015

(5) Oelhafen S, Trachsel M, Montevede S et al. “ Informal coercion during childbirth: risk factors and

prevalence estimates from nationwide survey among women in Switzerland” https://doi.org/10.1101/202

0.10.16.20212480

(6) Garcia L. “ Theory analysis of social justice in nursing: Applications to obstetric violence research”

https://doi.org/10.1177/096973302999767

(7) WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Guideline 7 February

2018

(8) Lazzerini M, Covi B, Mariani I, et al. “Quality of facility-based maternal and newborn care around

the time of childbirth during COVID-19 pandemic: online survey investigating maternal perspectives in 12

countries of the WHO European Region”. The Lancet Regional Health- Europe 2022; 13:100268.

(9) Los colegios médicos niegan el concepto de «violencia obstétrica» (lavozdegalicia.es)

(10) Visão | Violência obstétrica: Ordem dos Médicos conclui que termo não se aplica em Portugal,

vítimas, ativistas e profissionais de saúde garantem que sim (sapo.pt)

(11) Niles PM, Stoll K, Wang JJ et al. “I fought my entire way”: Experiences of declining maternity care

services in British Columbia. PLos One. 2021 Jun 4; 16(6):20252645.

Dra. Sofia Teixeira da

Cunha

• Especialista em Cirurgia

Geral pela FMH (Federation

Medicorum Helveticorum)

• Membro-fundadora do

Observatório de Violência

Obstétrica em Portugal

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

A Ética do

Envelhecimento

Entrevista a Prof. Dr. Miguel Ricou

Quais considera serem os principais desafios éticos apresentados pelo envelhecimento?

Como os podemos contornar de forma a praticar a melhor medicina para os nossos doentes?

Essas são sempre as perguntas de 100 milhões. Responder a isso de forma objetiva é muito difícil. Não é só

uma questão de haver uma população envelhecida e falta de recursos, também existem muitos desafios

ligados à desumanização que isso nos vai provocando.

Vivemos num mundo paradoxal. Por um lado as pessoas são cada vez mais diferentes umas das outras e, portanto,

com necessidades específicas a serem atendidas por uma medicina cada vez mais personalizada. Por outro, temos

cada vez mais dificuldade em fazê-lo, no sentido em que a medicina é cada vez mais tecnológica e tenta encontrar

respostas que consigam atingir e ajudar o maior número de pessoas por ser, no longo prazo, menos dispendioso e

porque, evidentemente, há cada vez menos tempo e mais dificuldades.

Encontrar o equilíbrio entre estes dois pontos é a chave para não perder aquilo que é fundamental na nossa

capacidade enquanto profissionais de conseguir compreender os doentes e fazê-los sentirem-se compreendidos.

Isto, de alguma forma, é o que lhes dá mais segurança.

Por fim, encontrarmos soluções exequíveis tendo em conta a escassez de recursos que não só vai continuar, como

aumentar, ao longo do tempo. Em suma, não cairmos numa desumanização total e tornarmos a medicina uma mera

aplicação técnica.

Recentemente, Portugal assistiu a acesos debates face à legalização e consequente enquadramento

legal da eutanásia e suicídio assistido. Quais foram os principais entraves a

estas discussões, e como se posiciona Portugal no panorama internacional?

Na verdade, só agora de alguma forma a sociedade a chamou. E, ainda assim, se repararmos, foi uma elite intelectual

que trouxe esta discussão, mas não importa. O que importa é que ela veio a ser discutida e as pessoas têm

aparentemente uma sensibilidade positiva em relação a isto.

Tenho muitas dúvidas acerca da aplicação de um referendo para este tipo de situações. Tenho muitas dúvidas

SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

que as pessoas consigam pensar para além do que são as suas crenças, os seus medos e as suas

dificuldades, o que é legítimo. Mas temos que nos conseguir preocupar sobre isto e sobre as

consequências que possa acarretar com uma perspetiva mais global.

Se a discussão sequer existiu, eu também tenho algumas dúvidas. Pelo menos com a profundidade

e a clareza com que eu gostaria. Mas ainda vamos a tempo, porque, afinal de contas, ainda

temos algum caminho a percorrer.

Considera adequada a atual literacia dos idosos face aos direitos recém-

-conquistados relativamente à tomada de decisão no final de vida? Através

de que meios podemos trabalhá-la, e seria ético procurá-la?

Eu acho que é absolutamente ético procurá-la. A ética serve para dar respostas e nos ensinar

a encontrar as melhores soluções. Não há princípios ou valores que sejam absolutos. Se não há

valores absolutos, quando a sociedade pede, temos que conseguir pensar nas consequências

positivas e negativas e tentar tomar as melhores medidas para evitar as negativas e reforçar as

positivas. Não podemos partir de pré-decisões sobre o que queremos e não queremos e depois

tentar encontrar argumentos que o sustentem.

Esse, para mim, é o grande problema, pois é uma dimensão muito ligada às pessoas. Não há

ninguém que nunca tenha pensado na morte. De cada vez que nos confrontamos com a morte,

pensamos na nossa, na de pessoas próximas e no sofrimento que isso provoca. Por isso, facilmente

se fazem e constroem opiniões, e só depois se parte à discussão. Não vejo, na maior parte

das vezes e pela maior parte das pessoas, esta discussão centrada nos pontos onde deveria estar.

Muito rapidamente: onde é que acho que ela deveria estar? Primeiro, nas próprias definições. Fazem-se

confusões entre eutanásias passivas, ortanásias, eutanásias ativas, suicídios assistidos…

Assim, as condições sobre as quais é estruturada a lei não são compreendidas, tanto menos o

seu alcance. De momento não temos lei nenhuma, mas vamos ter uma muito semelhante à que

foi proposta. Portanto, inevitavelmente, não são conhecidas as aplicações da lei, as situações nas

quais se coloca e quais são as pré-condições.

Vê-se a eutanásia “single noun”: “Eu acho que sim porque as pessoas devem decidir”, ou

“Eu acho que não porque a vida é um valor inalienável”, e a discussão fica muito limitada.

Assim, onde é que não se faz a discussão? Onde não se faz investigação e desenvolve conhecimento? Na forma

como as pessoas gerem as decisões e vontades. Investimos, e muito bem, no estudo do suicídio, mas nunca investimos

no estudo da morte antecipada. Parece que, se as pessoas pedem para morrer no contexto de uma doença,

sabem seguramente aquilo que querem e aquilo que não querem sem qualquer dúvida. Teremos dificuldades, se

assim continuarmos, em ajudar as pessoas neste contexto. O fundamental é conseguir acertar o mais possível, e

acompanhar as pessoas ao longo deste processo. É isso que, de facto, ajuda a mitigar o sofrimento. Além de que não

A autonomia corporal e de decisão são fatores que se tendem a deteriorar ao longo dos

anos, e Portugal tem uma das maiores diferenças europeias entre esperança média de

vida e esperança média de vida com saúde. Quais padrões decidem a autonomia na tomada

de decisão, e o que deveria ser feito para prolongar este intervalo de tempo?

Nós continuamos a valorizar demasiado a autonomia, o princípio que resolve tudo. Fazemos o que as pessoas

querem e está resolvido. Acho que a grande dificuldade é conseguir ajudar as pessoas a definir o que querem, e

fazê-las sentirem-se compreendidas. Fala-se tanto em humanização, mas ninguém sabe o que é humanização. Para

mim, humanização é tratar as pessoas de acordo com as suas caraterísticas e por aquilo que elas são. Chegar a elas,

preocupar-se com elas e com o que pensam, sentem e vivem.

Além disto, há uma série de condições que não têm a ver com os cuidados de saúde, mas sim com a própria

sociedade. Há toda uma dimensão socioeconómica a ser trabalhada. Todos já ouvimos histórias de idosos a viver

isolados, sem acesso a cuidados de saúde. Claro que isto condiciona um aumento do seu sofrimento.

Teremos que compreender que a vida não é feita de utilidades. Sabemos que o sentimento de integração e

funcionalidade são fundamentais a aumentar ou diminuir a discrepância de que falava entre o tempo de vida e o

tempo de vida com qualidade.

Por último, a personalização da medicina contribuirá para a construção de relações de valor com os profissionais

e sentimentos de compreensão e aceitação. Este é o caminho para que os pacientes consigam exprimir os seus

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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA

receios, vontades e frustrações. É evidente que isto é a

utopia da ética, mas, sem dúvida, esse tem que ser o

caminho.

Com o crescente envelhecimento da população,

como prevê que se sustentará o Sistema

Nacional de Saúde? Será possível responder

à procura aumentada dos próximos

anos e com que qualidade?

A isto não sei responder. Tenho mesmo muitas dúvidas

e muito medo, confesso. A menos que arranjemos

fontes de financiamento milagrosas, vamos ter sérias

dificuldades. Mas quem toma decisões é que tem que

conseguir pensar nessas soluções.

A questão é muito desafiante, porque sabemos que

se as pessoas vão viver cada vez mais, vão passar mais

anos ao longo dos quais serão necessários cuidados

e ajuda. Pela forma como a sociedade está hoje organizada,

não vai haver tecido produtivo para sustentar

esta necessidade. Eu tenho muita esperança, com o meu

otimismo crónico, na Inteligência Artificial, que pode

rentabilizar muito a produção. Neste cenário, a produtividade

deixa de estar apenas associada ao que é a capacidade

de cada indivíduo produzir. Ainda assim, vamos

ter que trabalhar essas necessidades crescentes, porque

tudo tem que ter um limite. Evidentemente, não vamos

aguentar um sistema sempre a crescer.

Ando há procura de uma terceira via, mas ainda não

consegui construir nenhuma que me agradasse e que

não tivesse dificuldades. Provavelmente não há nenhuma

perfeita. Mas não tenho dúvida de uma coisa, somos

muito mais fortes se tomarmos decisões partilhadas,

nas quais nos consigamos sentir incluídos e revistos.

Isso, para mim, vai ser fundamental à construção de modelos

sustentáveis, ao invés da bipolarização que testemunhamos

hoje.

O acesso à habitação e condições dignas

de vida são essenciais ao envelhecimento

saudável, e questões pertinentes no domínio

das políticas públicas. O médico e a

sociedade têm um papel na sua garantia?

Acho que sim, a medicina, a educação e as condições

socioeconómicas básicas são os pilares básicos das sociedades

atuais. Sem saúde as pessoas não conseguem

ser elas próprias e, portanto, não têm capacidade de tomar

as suas decisões. Isto influencia o próprio funcionamento

das sociedades.

Quais são, a seu ver, as prioridades na promoção

do envelhecimento ético ao longo

dos próximos anos?

faixas etárias. Temos que abandonar a ideia de que o

velhinho tem que ter os filhos a cuidar dele, a responsabilidade

que tanto tempo existiu e que ainda pesa hoje.

Temos que evoluir no sentido de serviços personalizados,

com um grande investimento e de qualidade.

Não são depósitos, mas são sítios onde as pessoas

se sintam ativas, incluídas, positivas e autónomas. Para

que essa fase da vida seja cada vez menos uma fase do

fim da vida, mas antes uma fase como qualquer outra,

com as suas vantagens e desvantagens.

Prof. Dr. Miguel Ricou

Doutorado pela Faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação da Universidade de Coimbra na

área de Psicologia Clínica.

Mestre em Bioética pela Faculdade de Medicina

da Universidade do Porto.

Licenciado em Psicologia Clínica pelo Instituto

Superior de Ciências da Saúde-Norte.

Associação Portuguesa de Bioética - Vogal da Assembleia

Geral.

Primeiro Presidente do Conselho Jurisdicional da

Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Representante no Board of Ethics da EFPA.

A ÉTICA SERVE PARA DAR

RESPOSTAS E NOS ENSINAR

A ENCONTRAR AS MELHORES

SOLUÇÕES. NÃO HÁ PRINCÍPIOS

OU VALORES QUE SEJAM ABSO-

LUTOS.

É o envelhecimento ativo. Este é um lugar-comum,

mas acho que é fundamental. São necessárias pessoas

muito formadas para conseguir trabalhar com estas

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

Medicina Geral e Familiar e decorria uma palestra introdutória aos objectivos para aquele ano de formação específica.

Esta obra resulta da encomenda por Henry Tate a Luke Fildes, que pediu uma obra realista com pendor social.

Julga-se que Luke Fildes quis destacar a figura médica como homenagem ao médico que terá assistido o seu filho

doente. Detenhamo-nos um pouco no que vemos. Um médico que situamos na época vitoriana em visita domiciliária

para assistir uma menina doente. Ressalta de imediato a humildade da casa, evidenciada por elementos como sejam

a construção no geral, a decoração espartana, as cadeiras que não combinam e que servem simultaneamente de leito

à menina. A criança parece gravemente doente, a julgar pelas expressões circunspectas das figuras do quadro; no

casal – que se adivinha serem os pais da criança – o contraste entre o homem, que se divide entre o apoio à esposa

e, talvez, a procura de uma réstia de esperança em algum gesto do médico, e a mulher, que parece inconsolável na

sua dor, com a cabeça entre os braços. A luz incide na díade médico-doente. O médico cofia a barba e não parece

precisar de nenhum elemento da parafernália médica, tão só oferece a sua presença naquele momento, àquela família.

Os progressos terapêuticos e todos os avanços tecnológicos nos procedimentos diagnósticos revolucionaram

a Medicina nos últimos anos, para enorme benefício dos nossos doentes; não obstante, a presença, a escuta activa,

a relação com o doente são ainda o âmago do cuidar médico.

Um sonho caminhado

“The Doctor”, Sir Luke Fildes, 1891, Óleo sobre tela, 1664 x 2419 mm.

Fotografia: Tate Britain.

A arte encontra a Medicina

no nosso zero um

Drª Sofia Baptista

Mãe e Médica de Família (especialista

em Medicina Geral e Familiar).

Doutorada em Medicina, Professora

Auxiliar no MEDCIDS – Faculdade

de Medicina da Universidade do Porto.

Investigadora CINTESIS.

Correspondente Médica na CNN

Portugal.

Apaixonada por bossa nova e poesia.

De encontro ao “Médico” de Sir Luke Fildes

Quando andava pelo nosso “zero um” como estudante,

entre o agitado networking social e a

vontade de, nesse corredor de transição, caminhar

mais para os doentes e pousar por um pouco os livros,

nos momentos mais duros do caminho, “fugia” sempre para

a arte: ora escrevia poesia, ora ia à ópera. Julgava-a uma

forma de catarse, mas nunca na altura pensei que me poderia

tornar melhor observadora e ouvinte e, por conseguinte,

melhor médica. Hoje acredito inequivocamente nisto: para

além da evidência que se acumula para fundamentar esta

afirmação – pesem embora as óbvias dificuldades metodológicas

deste tipo de estudos – percebo como no dia-a-dia

clínico isto faz diferença, para médico e doente. Já aqui

voltaremos, pois tenho um convite a fazer-vos, mas só me

deram escassas páginas para vos escrever e, por natureza,

não gosto de faltar ao rigor, mas também não abdico do

que vos quero contar.

Cruzei-me tardiamente com a pintura “O Médico” por Sir

Luke Fildes, estava então no primeiro ano de internato em

Pois é, os sonhos caminham-se. Pelo menos, assim acredito. E este, parecendo que consigo dizer o dia e a hora em

que começou como ideia, sei que resulta de muitas vivências, de um gosto enorme por arte desde muito pequena, de

uma grande curiosidade por ouvir as estórias das pessoas, da experiência clínica da prática diária, de uma perspectiva

contemplativa em relação ao que me rodeia, mas também de algumas frustrações e metas que tiveram de ser

ajustadas às circunstâncias. Falo-vos da unidade curricular de inovação pedagógica, cuja primeira edição teve lugar

este ano “Observar: da arte à clínica”. Coordenada por mim e pelo Prof. Doutor Domingos Loureiro (FBAUP), nasce de

uma ideia colaborativa e iterativa entre FMUP e da FBAUP, com o objectivo primeiro de, através da arte, melhorar a

capacidade de observação e o diagnóstico clínico. Observar é uma ferramenta imprescindível a todos, no entanto, a

sua utilização no contexto clínico não é inata, por isso, nesta unidade, aprendemos a treinar o olho: primeiramente

com a observação de obras de arte, depois com uma breve introdução ao desenho da figura humana, fomentando a

discussão permanente para a translação para clínica e para o que vemos no doente, fomentando também a escuta

activa, a empatia e a consciencialização sobre o viés pessoal.

Rodrigo Abd/Associated Press (2012)

Nem toda a arte é pintura

(spoiler alert: contém exercício de observação)

Uma das competências a que nos iniciamos na aventura

da unidade curricular “Observar: da arte à clínica” são as estratégias

de pensamento visual (visual thinking strategies

- VTS). As VTS são um método de facilitação de discussões

sobre arte visual que visa melhorar a aprendizagem em

áreas diversificadas. De modo muito sumário, as VTS baseiam-se

na colocação e resposta a três questões:

• “O que se passa nesta imagem?”

• “O que vê aqui que o leva a dizer isso?”

• “Que mais consegue encontrar?”

Deixo-vos o desafio de pararem por um pouco, olharem esta foto e responderem às

três questões acima. Se quiserem descobrir o contexto da fotografia sigam este link:

https://learning.blogs.nytimes.com/2013/04/29/whats-going-on-in-this-picture-

-april-29-2013/

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

Entrevista a

RITA FERREIRA

Por outro lado, eu acho que todos os atletas têm momentos menos bons em

que pensam em desistir, mas temos de pensar se, a longo prazo, isso nos vai fazer

bem. Eu gosto muito daquilo que faço, ou não treinaria tantas horas, e momentos

maus todos passamos... É como quando estamos num curso e vemos que os exames

são difíceis e não queremos continuar, mas depois acabamos por ir buscar as

partes positivas e isso é o que nos dá garra e nos permite continuar.

Porquê a medicina?

Eu estava muito indecisa entre engenharias, principalmente gestão industrial,

e medicina e foi um bocadinho em cima da hora que optei pela medicina. Ao longo

da minha carreira tive algumas lesões e alguns médicos disseram-me que tinha de

abandonar a ginástica acrobática e dedicar-me a outra coisa, por vezes de modo

um pouco agressivo, e como eu sempre me interessei pela área da saúde, vi na

medicina o poder de juntar duas coisas – a saúde e o desporto – ligando-me ao

desporto através da saúde, no trabalho com atletas em recuperação... e, por isso, a

fisiatria e a ortopedia são do meu interesse.

Tens algum truque para conciliar a medicina e os treinos?

Eu agora estou um bocadinho mais focada na ginástica, porque, provavelmente,

este será o meu último ano competitivo e sei que o curso, depois, consigo fazê-lo.

É uma questão de definir prioridades e ter o tempo organizado. Na altura de

exames tento focar-me mais nos exames, faço menos horas de treino... isto se não

tiver competições importantes. Se coincidirem as duas coisas, tenho de optar pela

ginástica e recorrer a épocas especiais ou deixar para depois.

Qual a sensação de competir no Campeonato do Mundo e trazer o ouro? Que

locais mais gostaste de visitar nesse contexto?

A sensação é indescritível. Ir representar o meu país sempre foi, para mim, um

grande sonho. Sempre tive o sonho de fazer parte da seleção nacional e representar

bem o meu país. Tem corrido bem, o que para mim é um orgulho.... ouvir o

hino... faz com que todo o esforço valha a pena. Acima de tudo, eu gosto de fazer

os meus exercícios bem e treino muito para que isso aconteça. Se isso acontecer,

já fico feliz. As medalhas, os primeiros lugares dão-me o sentimento de que tudo

Desde que idade praticas ginástica acrobática e como surgiu esse interesse?

lembro-me de praticar ginástica acrobática desde os 5 anos, mas primeiro era uma ginástica mais

para crianças e aos 7 anos é que começou a ser mesmo ginástica acrobática. O interesse surgiu quando

os meus pais me levaram a uma aula, porque a minha professora de educação física do primeiro ano achava que eu

tinha jeito para a parte da ginástica e eles já me queriam inscrever num desporto extracurricular. Na altura, foram

comigo ao Ginásio Clube da Maia para experimentar, eu gostei e nunca mais saí.

Como era a carga semanal de treinos? Quando é que se tornou algo mais sério?

No início eram apenas 2 treinos por semana, porque era algo mesmo para crianças, chamado “fun gym”, que era

para nos atirarmos para colchões e brincarmos, não sendo nada competitivo.

Eu lembro-me que, aos 9 ou 10 anos, via competições do Acro Clube da Maia, que era já um clube de referência,

e queria começar a competir. Não me foi incutida nenhuma obrigação. Eu olhava para os mais velhos e queria ser

como eles, fazer o mesmo que eles. Foi por isso que, com essa idade, pedi à minha mãe para ir experimentar um

treino no Acro Clube da Maia, que é o meu clube desde então, e adorei. Foi aí que se tornou um bocadinho mais

sério para mim.

Ao longo dos anos houve algum momento em que tenha sido particularmente difícil conciliar o estudo e os

treinos? Em algum momento pensaste em desistir?

Agora que estou na faculdade é mais tranquilo... O 11º ano foi um ano mais complicado porque a carga horária

era grande, era o primeiro ano com exames nacionais e sempre tive algum rigor com a minha vertente académica.

Foi o ano em que mudei da escola pública para uma escola privada para ter um acompanhamento mais adequado

e uma gestão de horário um pouco mais facilitada, apesar de ter estatuto de atleta de alta competição. Esse ano foi

o mais complicado pela mudança de escola e também foi um ano difícil em termos competitivos, mas nunca foi um

bicho de sete cabeças.

Rita Ferreira e o seu par, Ana Teixeira, com o treinador, Lourenço França

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

compensou... receber as inúmeras mensagens, mesmo das meninas mais pequenas do clube, faz valer a pena. Para

além disso, para Portugal foi um abrir portas, porque, até ao ano passado, ainda não tínhamos tido nenhuma medalha

em nenhum Campeonato do Mundo, por isso ninguém acreditava que seria possível. Nós éramos as loucas

que estavam a tentar fazer o impossível... Acho que isso abriu portas para o país e ajudará as próximas gerações de

atletas a acreditar que é possível.

Os países que mais gostei de visitar foram os EUA, fui a Las Vegas e foi incrível, Israel e China. Este foi o meu top

3. Fui agora ao Azerbaijão e também gostei, mas não está no meu top 3.

Qual é, neste momento, o objetivo pelo qual estás a trabalhar?

Nós temos uma Taça do Mundo para a semana, aqui na Maia, mas agora estamos a trabalhar para os World Games,

que serão em julho. A ginástica acrobática não é um desporto olímpico, mas temos uma competição que é como

os Jogos Olímpicos, os World Games, também de 4 em 4 anos – por isso tivemos a sorte de ter a idade certa para ir

–, para os quais Portugal conseguiu alguns lugares e vai levar uma equipa grande. Estamos a trabalhar a sério para

isso que também é um sonho.

A Arte, a Cultura,

a Psiquiatria e o

Estigma

Vês a ginástica na tua vida daqui a 10 ou 20 anos?

Sim. Eu já estou a tirar todos os cursos possíveis. Já tirei o curso de juiz, agora estou a fazer o estágio do curso

de treinador..., portanto é algo que quero ter sempre presente, porque, na verdade, não me vejo sequer a deixar de

treinar, quanto mais deixar aquele complexo que é mesmo uma segunda casa. Eu passo lá uma grande parte da

minha vida. Hoje de manhã já fui treinar, agora tive aqui um tempo de pausa e vou treinar outra vez à tarde e isto é

a minha rotina. Eu não me vejo a deixar de vez isto, e, por isso, dar treinos é o meu plano para o futuro.

Rita Ferreira e Ana Teixeira no Campeonato Europeu de

Ginástica Acrobática

uma entrevista a

Drª. Inês Homem de Melo

Como é que a música surgiu na sua vida?

Eu canto desde os 8 anos. A minha mãe pôs-

-me num coro chamado “Círculo Portuense de

Ópera”, que tinha uma parte para adultos e

uma parte para crianças. Não é que alguém na minha

família fosse muito musical, simplesmente a minha mãe

achava que eu tinha jeito, que cantava bem, e viu um

concerto desse coro e inscreveu-me. Foi um momento

determinante na minha vida, porque aquilo era um coro

bastante sério – tinha 2 ensaios por semana – e os concertos

eram maioritariamente encenados. Nós fazíamos

a parte das crianças das óperas, isto num tempo em que

havia, ao contrário de hoje, imensas óperas a acontecer

no Coliseu. Portanto, eu comecei a cantar diretamente

em cima do palco e já com a música casada com a

encenação. Isso foi determinante para mim. Sempre

entendi a palavra como uma parte importantíssima da

música - o significado das coisas, que personagem estaria

a cantar aquilo... e é assim que eu desde criança

até agora entendo a música e, nos meus concertos, faço

sempre questão de contar a história das canções, quem

as escreveu e porquê!

Rita Ferreira e Ana Teixeira no Campeonato Mundial de

Ginástica Acrobática, em Baku

E a música esteve continuamente na sua

vida?

Continuamente. Eu experimentei muitas coisas na

minha vida. Agradeço aos meus pais por me terem dado

a oportunidade de saltitar imenso de atividade em atividade

quando era criança e adolescente. Mas a música

nunca troquei, desde os 8 até agora, nunca saiu da minha

vida!

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

Como é que surgiu a oportunidade de participar no festival da canção e como é que viveu

essa experiência?

Eu queria já há muito tempo participar no Festival da Canção, mas nunca se tinham alinhado os astros. Na

nossa vida, estão sempre coisas a acontecer e acabamos por dar prioridade às tarefas de curto e médio prazo.

O prazo mais desafiante que me ofereceram até hoje acho que foi a PNA, porque é de muito longo prazo

e, para pessoas com a minha estrutura do “agora, agora, agora”, é um desafio enorme. Participar no festival era sempre

a longo prazo, por isso nunca ganhava aos outros prazos que eu tinha... Até que conheci o Pedro Marques, que

é o compositor da minha música, porque a minha mãe encomendou uma canção para oferecer à minha irmã Sara

no dia em que ela tivesse o seu bebé. Eu não o conhecia lado nenhum, a minha mãe é que o conhecia das aulas de

ginástica ao ar livre que começou a fazer na pandemia. Na altura, ela escreveu um poema e, literalmente, encomendou

ao Pedro uma canção de embalar que haveria de ser cantada por mim. É que o Pedro é compositor de bandas

sonoras, por isso está habituado a escrever por encomenda! Ele fez, eu conheci-o no estúdio, adorei a maneira dele

trabalhar, o espírito dele e a forma como ele se adapta aos pedidos que fazem e pensei “É isto! É agora!”. O prazo

estava perto, o que também ajudou, porque passou a ser um curto prazo. Eu expliquei ao Pedro o que queria, porque

eu tinha uma ideia fixa do que queria levar ao festival da canção – eu queria uma música para cantar nas línguas

que eu sei falar, porque quando era adolescente era muito obcecada por aprender línguas –, e ele, por acaso, trabalhava

com um letrista que também é muito poliglota e fizemos a música. Íamos trocando impressões num grupo

do WhatsApp e fizemos a música numas 3 semanas, gravámos tudo, mandámos para lá e foi selecionada. Nós mandamos

para o processo da livre submissão – a RTP convida 16 compositores e depois deixa 4 vagas para pessoas

da população geral que se queiram candidatar – onde eramos 619 candidatos, dos quais ficámos 4, incluindo os

nossos outros colegas, a banda Os Quatro e Meia, onde está um MGF, um de cirurgia cardiotorácica e um pediatra.

A experiência foi tudo o que esperava?

Eu não esperava nada, porque eu nunca tinha feito

televisão... O que eu esperava ou deixava de esperar

não passavam de fantasias da minha cabeça. Eu tinha

uma fantasia do que é que era e, enfim, não tinha nada

a ver. À televisão falta aquilo que, para mim enquanto

cantora, é uma das componentes mais gratificantes da

música ao vivo, que é o público. Tu estás a cantar para

as câmaras e não está ninguém a assistir, é mesmo estranho.

Depois, tive que que pensar em pormenores nos

quais eu nunca tinha pensado: o guarda roupa, staging,

as personagens, bailarinos... Eu escolho a roupa que

vou vestir nos meus concertos, mas nunca com aquele

detalhe. Eu não tinha uma equipa por trás como outros

cantores que lá estavam... O Pedro escreve bandas sonoras,

o letrista é engenheiro e eu sou médica. A mim

ensinam-me a escolher entre 2 antipsicóticos, ninguém

me ensina a escolher entre 2 vestidos. Já agora,

o vestido que eu levei na semifinal era com desenhos

feitos por pessoas com doença mental grave ou com

perturbações de desenvolvimento intelectual. Tudo

gerou uma grande ansiedade, mas foi muito divertido

e inesquecível.

Sente que a música a ajuda a lidar com o

stress da profissão médica e do estudo?

É, para si, um escape?

Definitivamente. A música é tão intensa, recruta

tanto todos os domínios cerebrais e a atencionais,

que eu não consigo estar a pensar noutra coisa quando

estou a cantar. Depois, sendo uma atividade muito

emocional, consigo sublimar emoções pesadas que a

psiquiatria implica e, quando era aluna, que o estudo

acarretava. Tanto como interna de psiquiatria como

quando era aluna, a música ajudou-me imenso.

Quando era aluna, ajudou-me o facto de – isto

parece um paradoxo – ter pouco tempo disponível.

Como eu tinha que conjugar a minha agenda de aluna

do conservatório com a agenda de aluna da FMUP,

fui obrigada a reformular completamente o método de

estudo que trazia do secundário e a maximizar em absoluto

o rendimento, o que, para o perfil que eu tenho,

foi essencial.

Por que é que escolheu a medicina?

A resposta não é romântica… Eu não vou estar aqui

a dizer que era o sonho da minha vida, porque não é

verdade. Eu não sabia o que era ser adulto. Tenho pai e

mãe médicos e as minhas irmãs já estavam as duas na

FMUP – houve um ano que estávamos as 3 ao mesmo

tempo – por isso, para mim, ser adulto era ser médico.

Os casais amigos dos meus pais (como os médicos

acasalam uns com os outros, aparentemente), eram

quase todos médicos. Fazíamos viagens com várias

famílias que também eram assim, por isso, enquanto

adolescente, a vida adulta, para mim, era ser-se médico.

É óbvio que eu sabia que havia outras profissões, mas

não as conhecia de perto. Conhecia apenas os relatos

dos meus avós, que eram professores primários. Uma

alternativa, que não tinha nada a ver, era ser artista,

portanto eu pensei ainda ir para teatro ou música, mas

recebi aquelealerta – que, convenhamos, é bastante razoável

– da minha mãe, principalmente, sobre a incerteza

desse percurso e fiz a opção mais segura de ir para a

medicina. Não vou dizer que não achasse gira a ideia de

ter uma profissão centrada em ajudar o outro e também

me fascinava a ideia de poder ser útil em qualquer sítio

para onde fosse, mas não era um sonho. Tanto não era,

que fiz o curso de medicina completamente em sofrimento.

Esse sofrimento durou até ter psiquiatria.

De entre todas as áreas da medicina,

porquê a psiquiatria?

Porque era a única opção – ou pedopsiquiatria,

mas eu na altura não sabia nada sobre pedopsiquiatria,

porque no curso contato é escasso e esse é um

dos problemas que eu vejo no ensino da saúde mental

nas escolas médicas. Era isso ou MGF, porque eu gosto

de saber tudo sobre as pessoas, preciso de tempo

para as ouvir, quero saber a vida toda... a mim interessam-me

imenso os determinantes sociais da doença,

como, por exemplo, a religião, a raça, se são imigrantes,

a profissão, a estrutura familiar, o background cultural...

Isso fascina-me. As outras especialidades não têm

tempo para isso... O que está a acontecer na medicina

é uma fragmentação total e uma sub-sub-subespecialização.

Eu não queria isso para mim, eu queria aquela

máxima de entender o doente de uma forma holística,

ter tempo e espaço para a relação médico-doente. É a

beleza da nossa profissão.

Falou do primeiro contato com a psiquiatria.

Na altura, o que é que sentiu?

Foi um eureka moment. Há professores hipercarismáticos

na FMUP que sabem como fascinar os alunos

e eu lembro-me de sair das teóricas e sentir uma espécie

de euforia interior. Depois comecei a perceber que

qualquer coisa também estava muito diferente em mim,

que era o facto de eu não me atrasar para as aulas. era

um sinal gigante de interesse. A partir daí, o facto de

saber o que queria já me aliviou imenso, eu sabia que

ia ser feliz a ser médica, coisa que eu não sabia antes,

e fiz o curso com muita mais alegria. Também não

sou daquelas pessoas que foi para medicina para ser

psiquiatra –tenho alguns colegas assim – até porque a

minha família, sendo de médicos – e isto leva-nos para

o estigma que existe sobre a psiquiatria, mesmo dentro

da nossa classe –, ficou estupefacta quando comecei a

falar nesta especialidade.

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

Estou agora nos últimos cartuchos da especialidade

e gostei sempre imenso do internato.

Nós estamos em constante aprendizagem até ao

fim da vida e isso tem um lado mau e um lado bom. O

lado mau é que os nossos amigos que foram para outras

carreiras, quando nós estamos a começar uma especialidade,

já estão com aquela sensação de expertise e

nós, médicos, chegamos ao início do internato e é quase

como um início de licenciatura, com os mais velhos a

questionarem o teu conhecimento, constantemente a

pensar que tens de estudar... Mas também tem o lado

bom, que é: tu nunca te fartas, nunca sentes estagnação.

Dentro da psiquiatria, há alguma área em

que se foque mais ou que tenha captado

mais o seu interesse?

As minhas áreas de especialização, digamos assim,

são as perturbações aditivas, dependências de substâncias

e dependências comportamentais – e eu comecei

a trabalhar numa estrutura de atendimento a pessoas

com dependências no segundo ano de especialidade e

aprendi imenso, foi uma área que me surpreendeu muito

e amo trabalhar com esta população –, e as perturbações

do neurodesenvolvimento no adulto. Eu comecei o

internato em Lisboa e, quando cheguei ao Porto, percebi

que não havia resposta nenhuma para as crianças e

adolescentes que saíam da pedopsiquiatria com diagnósticos

destas perturbações, como o autismo e a Perturbação

de Hiperatividade/ Défice de Atenção (PHDA).

Como me interessei por esse tema, criei, em conjunto

com o Gustavo, que é especialista do Magalhães Lemos,

essa consulta no Magalhães Lemos e é um desafio enorme

que me dá imenso prazer. É onde a psiquiatria dos

adultos mantém uma costela de pedopsiquiatria.

Já falámos aqui de estigma em relação

à psiquiatria e às doenças psiquiátricas.

É esse estigma, na sua opinião, responsável

pelas lacunas que existem, como a que

acabou de referir, nos cuidados de saúde

psiquiátricos?

Estigma tem uma definição estrita que inclui tu

achares que as pessoas são inferiores, não têm solução

e que nunca vão ser válidas para a sociedade. Estas

doenças, nomeadamente a PHDA, eu diria que enfrentam

um bocado menos estigma. É mais fácil dizer publicamente

que se tem PHDA do que esquizofrenia ou

doença bipolar... O que tu estás a dizer tem mais a ver

com iliteracia da classe médica relativamente ao facto

destas doenças se manterem na idade adulta. Isto acontece

porque, realmente, no início da história da psiquiatria,

achava-se que eram doenças da criança e que depois

desapareciam, principalmente a PHDA. O autismo

foi descrito pela primeira vez nos anos 40. Antes disso,

eram consideradas crianças com psicose infantil. São

diagnósticos tão recentes que a literacia médica não

acompanhou as novas descobertas, mas não acho que

seja estigma.

Em relação às outras doenças, o estigma

ainda define o tratamento que os pacientes

psiquiátricos recebem em Portugal?

Totalmente. Isso é a maior barreira à nossa prática.

As pessoas, como não querem correr o risco de serem

estigmatizadas, não procuram ajuda. Procuram ajuda

noutras formas de terapia que não lhes ponham estes

rótulos assustadores, por isso vão procurar ajuda inadequada

e aparecem-nos já com quadros avançadíssimos,

o que é uma pena porque a doença mental dita grave,

tratada de uma forma precoce, tem bom prognóstico.

Mesmo em quadros clínicos que cursam com falta de insight,

em que a própria pessoa não sabe que está doente,

a família, fruto do estigma e da iliteracia, não sabe

que está perante um quadro de doença mental e, como

tal, não conduz o seu familiar às ajudas necessárias. No

início, quando eu comecei a trabalhar, ficava com uma

frustração absurda por causa disto. Há preconceito em

relação à doença, há preconceito em relação aos fármacos

que se usam na psiquiatria “os psicofármacos

são terríveis, transformam as pessoas em zombies “–...

o estigma metastiza para tudo aquilo que a doença

mental toca... metastiza também para os prestadores

de cuidados de saúde mental – “os psiquiatras são maléficos,

sádicos, só fazem internamentos compulsivos,

administram tratamentos como castigos, são homens

de barbas... são mais doentes que os próprios doentes.”

Tem algum conselho sobre como conservar

alguma saúde mental durante o curso de

medicina?

Eu vi esta metáfora algures e acho que é mesmo

brilhante: o curso de medicina é como tentar beber

água de um extintor. É muita coisa. Primeiro, há que

aceitar que é muita coisa e reformular o nosso mindset.

No secundário, todos os alunos de medicina queriam

saber tudo, bebiam o copo todo até ao fim e, na

faculdade, não dá. Portanto é reformular o mindset,

fazer as pazes com o good enough e não com o perfection,

fazer-se rodear de 2 grupos de pessoas: um de

pessoas do mundo da medicina, que são aquelas que

vão entender os desafios do curso, com quem iremos

dizer mal da nossa vida, partilhar as dificuldades, o

mau génio dos professores... e depois, para além desse

grupo, temos que ter outro que é o das pessoas de

fora, que nos mantêm ligados à Terra, que nos mostram

que há mais mundo para além daquilo – que nos

impedem de sermos sugados para um buraco negro.

Coisas como estas... fazer uma revista, participar num

grupo académico, em tertúlias de poesia, voluntariado,

escrita, atividades desportivas... atividades várias.

Quem não as tinha, que arranje, e quem já as trazia,

que nunca as abandone. Manter sempre, por menos

intensa que seja, uma vida à parte, para não perder,

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

É da opinião que esse estigma está a diminuir, por um lado, e, por

outro lado, que as doenças mentais estão progressivamente a ser

mais aceites em estudantes ou jovens?

Eu respondia-te que não, antes da pandemia, mas, agora, com a pandemia, tenho

ficado muito contente com o discurso mais aberto a que temos assistido em Portugal.

A este respeito, o que eu acho que tem feito melhor pela saúde mental e pelo estigma

é o coming out de celebridades, ou seja, pessoas que são bem-sucedidas e que assumem

publicamente ter doença mental. Estou a falar do António Raminhos, do Hugo

van der Ding, da Vanessa Fernandes, da Marisa Matias, nomes portugueses que eu

uso para falar com os doentes, para terem uma referência de alguém bem-sucedido

com a sua doença, que eles recebem como uma condenação.

As pessoas recebem os diagnósticos acompanhados das próprias fantasias que

têm acerca deles, e zangam-se, são capazes de bater com a porta e não aparecerem

mais durante uns meses. Mas também há doentes que têm a reação oposta: “Então

é isto que se passa comigo! Agora tenho um caminho, vamos fazer o que é preciso

fazer!”. Há pessoas que vêm com um bocadinho mais de informação, porque se interessaram

pelas histórias das figuras públicas ou porque têm pessoas na família que

já acompanharam.

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

como nós dizemos em psiquiatria, o teste da realidade,

porque uma pessoa que está sempre no mesmo ambiente

perde a realidade.

É preciso também reformular o método de estudo,

porque o método do secundário não dá. Para esse processo,

quem não conseguir por si, pode procurar pessoas

entendidas no assunto. Eu gostava muito, como

tenho uma memória mais visual, de vídeos e de estudar

e depois explicar a alguém, da técnica de Feynman – tu

só sabes uma coisa quando és capaz de explicar a quem

não percebe nada daquilo.

Quem passar mal, procurar ajuda o mais rapidamente

possível, não adiar.

Tem alguma mensagem final para os estudantes

de medicina?

Ouçam os doentes! Ouçam-nos com tempo. Sem

tempo, não é possível que se construa, sólida e segura,

a relação médico-doente. Ela que é a grande beleza

da nossa profissão! Enquanto alunos, pratiquem já a

empatia, o mais que puderem. E ao final do dia, chegados

da faculdade, pousem os livros, atirem com a bata,

e dediquem-se a trabalhar arduamente para a cadeira

que tem mais créditos de todas – serem felizes, pintar,

surfar, jogar (o que for), cantar, o que cada um gostar. A

saúde mental não se hipoteca por razão nenhuma deste

mundo! Mas se preciso for, cá estamos os psiquiatras,

para ajudar.

Já falámos aqui da PNA. Tem algum conselho mais específico para esse ano de estudo e

sobre como conservar a saúde mental?

Eu teria que atualizar o meu mindset, porque eu ainda sou do tempo do Harrison e eu acho este exame uma

maravilha; eu adorava ter feito esse exame. Adorava, porque acho que seria melhor psiquiatra se tivesse estudado

as coisas dessa maneira, que é uma forma mais centrada na resolução de problemas. Eu acho que se deve assumir

o desafio com alegria, porque é uma maneira ótima de acabar o curso, e distribuir as tarefas e os momentos de

lazer pelo tempo todo, não entrar em loucuras, porque isso, paradoxalmente, não tem interesse em termos de

custo-benefício. No fundo são os mesmos conselhos que eu dei para o curso, mas aplicados à PNA. Quem tiver

mais dificuldades com as corridas de fundo, pode ser interessante ter uma ajuda para organizar as tarefas, mais na

linha do coach. Eu não fiz isso, mas, se calhar, se voltasse atrás, faria. Eu tinha coachs informais que eram amigas

minhas que tinham um perfil completamente diferente do meu, muito mais organizadas, muito mais metódicas,

e que eram os meus pacemakers. Se não for uma ajuda formal, amigos e colegas que sejam bons nisso. Eu tenho

doentes meus com Perturbação de Hiperatividade/ Défice de Atenção que tiveram muito boas notas à custa de

namorados ou namoradas de chicote na mão... não é que isso apague o défice de atenção, mas a pressão e a vigilância

melhoram muita os sintomas.

A GUERRA NA UCRÂNIA

UMA PERSPETIVA EUROPEIA

UMA COLABORAÇÃO COM

QUÓRUM- FÓRUM POLÍTICO

GUILHERME JOSÉ RUIVO PEREIRA

Introdução

Para começar, gostaria de debruçar-me

sobre um assunto

menor, mas que seguramente é

bastante exemplificativo de algo do qual

não nos devemos esquecer. O título deste

artigo contém a palavra “Guerra”, proibida

de ser utilizada pelos media russos desde

o início do conflito por parte da entidade

reguladora. Para os mais atentos, esta

atitude fará lembrar o Ministério da Verdade,

da famosa utopia de George Orwell

“1984”, na qual se proibiam palavras. É

apenas uma pequena parte da imagem do

conflito que a máquina propagandística de

Putin tenta fazer passar ao povo russo (e

aos seus apoiantes além-fronteiras), mas

é bastante exemplificativo do que o líder

russo pretende com esta proibição. A limitação

da liberdade de expressão é sempre

“perdoada” em contexto de conflitos militares,

no contexto de “defesa”. A autocracia

russa apenas confirma a já conhecida

censura, usada em diferentes momentos

dos últimos 20 anos.

Contexto histórico

A guerra russo-ucraniana de 2022 é o

tema central, mas para isso, precisamos de

entender o contexto histórico do conflito. A

Ucrânia, como estado independente, praticamente

nunca existiu ao longo da história

até 1917, embora o povo ucraniano, ou

ruteno, como era chamado durante a Idade

Média e princípios da Idade Moderna, sempre

tenha vivido nesta zona do mundo. Enquanto

parte do Império Russo, a Ucrânia

ocupava a parte central do atual território.

Em 1917, durante a Revolução Russa,

e como parte do Tratado de Brest-Litovski

entre a Rússia de Lenine e a Alemanha

do Kaiser Guilherme II, a Ucrânia ganhava

a sua independência, com o seu território

aumentado. No entanto, nunca foi intenção

da Rússia que a Ucrânia fosse independente

– passado um par de anos, e após a

derrota da Alemanha na I Guerra Mundial,

a Rússia Soviética (futura URSS) invadiu a

Ucrânia novamente, conquistando-a. Neste

momento, inicia-se o processo de russificação

da Ucrânia – dentro da URSS, a

República Soviética da Ucrânia duplica o

seu território, acrescentando-lhe territórios

com muitos russos e incentivando a

emigração russa para a região, para assim

aumentar a população falante de russo e

diminuir a percentagem de ucranianos no

território.

Durante este tempo ocorre o Holodomor

(em ucraniano, “deixar morrer à

fome”), período no qual, durante a Grande

Fome Soviética de 1932-33, e como resultado

das políticas fracassadas do governo

comunista de Estaline, existe uma grande

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

fome por toda a URSS. Os agricultores etnicamente

ucranianos são obrigados a entregar todas as suas reservas

alimentares ao governo de Moscovo, causando

uma grande fome em toda a região, que matou entre 3,5

e 5 milhões de ucranianos, segundo a maioria das fontes

neutrais. Até hoje existe grande discussão se foi um

genocídio (como defende o governo da Ucrânia), com

o objetivo de retirar a capacidade da Ucrânia de revoltar-se,

ou uma fome consequente do fracasso comunista.

Ainda assim, foi um choque enorme para a Ucrânia,

onde viviam na altura cerca de 20 milhões de pessoas,

e que levou a uma perda a rondar os 25% da população.

A Ucrânia passou assim a ser um estado “fantoche”

dentro da URSS, ao qual foram entregues territórios por

Estaline em 1939 (da Polónia) e a Crimeia, de maioria

russa, por Khruschev em 1954 – porque esta república

não tinha qualquer poder, e era parte da URSS, logo

não passava de uma alteração do mapa provincial russo,

sem qualquer consequência real.

Avançando para 1991, a URSS vivia uma enorme crise

sob a liderança de Gorbachev, e na Ucrânia cresceu

um movimento que pedia a autodeterminação. O referendo

foi aceite pelo governo soviético, e marcado para

1 de dezembro de 1991. Ainda antes, uma declaração de

independência foi ratificada a 24 de agosto pelo parlamento.

O “sim” ganhou com uns espantosos 90% de votos

a favor, incluindo (embora em menor percentagem)

nas regiões de Donetsk, Luhansk e na Crimeia.

Desde 2000, os sucessivos governos ucranianos lutaram

para integrar a Ucrânia na União Europeia. Em

2010 chegou à presidência um homem de Donetsk,

falante nativo de russo, chamado Viktor Yanukovych.

Yanukovych bloqueou as conversas com a UE, recusando-se

a assinar o acordo de livre-comércio, apesar de

ter prometido o contrário durante a campanha eleitoral.

Isto gerou uma revolta enorme na região central

e ocidental da Ucrânia, que sonhavam com um futuro

europeu como os seus vizinhos polacos e romenos. Isto

levou ao início dos protestos conhecidos como Euromaidan.

Yanukovych aceita, em vez do acordo com a

União Europeia, um acordo com a Rússia, incluindo um

empréstimo que poderia chegar aos 15 mil milhões de

dólares, e em troca da primeira tranche, ordena cargas

policiais sobre os manifestantes Euromaidan, causando

a morte a mais de 100 pessoas. Yanukovych é removido

do poder graças a estes protestos e a uma votação

unânime no parlamento e exila-se na Rússia – num dia

conhecido na Ucrânia como “A Revolução da Dignidade”.

Nesse momento, os líderes das províncias da Crimeia,

Luhansk e Donetsk apoiaram o presidente deposto Yanukovych,

e o acordo com a Rússia. A Crimeia declarou

a independência, seguida um dia depois pela união com

a Rússia, e a 2 de março de 2014, a Crimeia passava a

ser uma região russa. Já as outras repúblicas separatistas,

que declararam a independência, foram combatidas

pelo exército de Kiev, dando lugar à Guerra Civil Ucraniana.

Entre março e novembro de 2014, a Guerra Civil

Ucraniana continuou, com avanços e recuos na área da

fronteira russo-ucraniana. A certo ponto, parecia evidente

que as tropas ucranianas iam esmagar a rebelião, mas

tal não aconteceu devido a um “comboio da paz” que na

realidade era um envio massivo de armas russas para

os rebeldes separatistas, que assim mantiveram a sua

região e as duas principais cidades, Donetsk e Luhansk.

Após imensa pressão russa, os líderes dos principais

países envolvidos encontraram-se em Minsk para

fazer um acordo de paz. A Ucrânia concedia autonomia

às duas regiões separatistas – Donetsk e Lugansk – em

troca da recuperação da fronteira leste, com a Rússia.

Este cenário acordado nunca saiu do papel. Na verdade,

conseguiram apenas uma redução da intensidade dos

combates, com mudanças e conflitos constantes. Isto

ocorreu desde logo porque a Rússia e a Ucrânia tinham

interpretações diferentes em relação ao protocolo. Para

Kiev, os territórios estavam apenas “temporariamente

ocupados”. Para Moscovo, eram repúblicas com vontade

de se virarem para leste. Ambos previam que a Ucrânia

concedesse às regiões separatistas uma autonomia e

um estatuto especial.

O problema é que estes compromissos esbarram naquilo

que Rússia e Ucrânia entendem por autonomia:

a Rússia considera que as repúblicas de Donetsk e Lugansk

devem ter, por exemplo, direito de veto em questões

importantes, como é o caso dos pedidos de adesão

à NATO ou à União Europeia, passos que a Rússia não

quer que a Ucrânia dê. Moscovo entende até que dessa

autonomia faz farte a celebração de acordos com estados

estrangeiros. Já a Ucrânia entende que isso é ir longe

demais e uma intromissão na autonomia de um país

livre e independente como é a Ucrânia. Por outro lado, o

governo de Kiev faz exigências como o desarmamento

das milícias pro-Rússia e o controlo das fronteiras pelo

estado central, o que, no terreno, não acontece.

A 21 de fevereiro de 2022, após semanas de incerteza,

a Rússia entrou nos oblasts de Lugansk e Donetsk,

seguido de uma invasão, três dias depois, do resto da

Ucrânia. Vladimir Putin justificou a invasão com a “desmilitarização

e des-nazificação da Ucrânia”, conceitos

difíceis de entender num país que entregou as suas

bombas nucleares há mais de 15 anos e cujo presidente

é judeu e com familiares que faleceram nos campos de

concentração nazis.

A posição da União Europeia e a necessidade de um

acordo

Dentro da União Europeia, no entanto, existem diferentes vozes

com diferentes perspetivas sobre o assunto. Enquanto o eixo

franco-alemão quer condenar e sancionar fortemente a Rússia e

a maioria dos países estão de acordo, existem líderes, como Viktor

Orbán, que não pretendem enviar qualquer arma ou soldado para

a Ucrânia. Outros países, como a Itália ou a Bélgica, querem isentar

o seu bem de luxo favorito das sanções – os milionários russos

que compram estas peças são uma parte importante do comércio

desses mesmos países. Existe neste momento a necessidade de

um grande acordo na UE – acordo esse que é impossível devido

à necessidade de unanimidade nas decisões – a UE só funciona

quando os 27 países-membros votam a favor – algo praticamente

impossível numa União fraturada politicamente. É por isso imperativo,

como defendeu Emmanuel Macron, a abolição da unanimidade

e a criação da maioria qualificada (de dois terços dos países)

para tomar decisões – algo que poderemos tentar ver no futuro

próximo. Neste momento, só nos resta tentar encontrar compromissos

inadiáveis em relação à Ucrânia – e mudar as regras para

o futuro.

Outro passo inadiável para a manutenção da soberania será,

na opinião de Ursula Von der Leyen e de muitos outros líderes

O INTERESSE EUROPEU

Existem vozes, dentro de

alguns partidos políticos e

na sociedade civil, que reagiram

a esta guerra com a pergunta

“E porque é que isso

nos interessa? A Ucrânia nem

é parte da União Europeia?”. A

razão é simples: porque não

há nenhum indício de que a

Rússia pretenda parar por

aqui. Várias notícias cobriram

páginas de jornais sobre

o assunto: a Rússia ameaça a

Finlândia e a Suécia com intervenção

militar caso adiram

à NATO, a Rússia fecha o seu

espaço aéreo a países da EU,

a Rússia invade o espaço aéreo

sueco com quatro caças,

Vladimir Putin decide que

países podem ou não podem

fazer parte de um bloco militar

exclusivamente defensivo

como é a NATO. Os sonhos de

grandiosidade e de recuperar

um império há muito perdido

do líder russo alcançam países

bem dentro da União.

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

europeus, a criação de um exército europeu – a necessidade

de um comando unificado que controle as tropas

para proteger as fronteiras europeias de tropas invasoras

parece uma necessidade. Tal exército evitaria que

a União Europeia se visse arrastada para conflitos de

interesse do maior membro da NATO, os Estados Unidos

da América. No entanto, mais uma vez isso apenas

pode ocorrer a longo-prazo – existe a necessidade de

um novo Tratado Europeu que consagre essa instituição

militar.

Vladimir Zelensky, o atual presidente ucraniano,

assinou recentemente um protocolo para a adesão da

Ucrânia à União Europeia – protocolo rapidamente aceite

por Bruxelas. No entanto, e para desagrado do presidente

ucraniano, tal não irá acontecer com essa velocidade

– pelo menos não existe nenhum tipo de protocolo

que o permita, e as entidades europeias já descartaram

(pelo menos para já) tal adesão rápida. Existem países

cujo processo de adesão dura já há mais de 15 anos – e

nada parece reduzir o prazo mínimo de dois anos para a

entrada da Ucrânia na União Europeia. Para além disso,

a tal unanimidade não existe quanto a um processo de

admissão acelerado – vários países já manifestaram a

sua oposição a tal protocolo e a uma possível entrada

na guerra provocada pela adesão da Ucrânia ao bloco

europeu.

MEDICINA DE GUERRA

GUSTAVO

CARONA

Então que pode então fazer a União Europeia?

Isto não significa que a União Europeia esteja de

mãos atadas – muito pelo contrário, é a União Europeia

que tem maiores possibilidades de ajudar a Ucrânia.

Para além das faladas sanções económicas, como o fim

do gasoduto Nordstream 2, a expulsão da Rússia do sistema

SWIFT ou o fim do comércio com a Rússia, a União

Europeia está em condições de enviar ajuda económica

à Ucrânia (pacote de ajuda entretanto aprovado pelo

Parlamento Europeu), ajuda militar (nomeadamente

com o envio de armas, já entregues por alguns países

como é o caso da Alemanha), e por fim com apoio diplomático

– a União Europeia é a instituição mais respeitada

do mundo a esse nível, e pode agora dar apoio nas

organizações internacionais e no “sufoco” económico à

Rússia caso esta não aceite as condições de paz propostas.

A Rússia pode resistir ao esforço de guerra uns

meses, mas não tem condições de sobreviver economicamente

sem o comércio com o “mundo livre” durante

anos. É por isso que o caminho a percorrer é longo e

turbulento, mas não deixa de ser necessária que a União

funcione, mais do que nunca, como isso mesmo – uma

União.

Para quem tiver mais interesse:

“Winter on Fire – Ukraine’s Fight for Freedom” – documentário

da Netflix sobre a Revolução da Dignidade.

[Texto de março de 2022]

Talvez tenha sido pela adrenalina que escolhi

o caminho médico que fui traçando.

Salvar uma vida? Salvar vidas? Haverá

alguma sensação mais inebriante do que olhar

para alguém que poderia estar morto, mas não está,

graças ao meu trabalho, às minhas mãos, e ao meu

conhecimento? ...bom, cada um vê a vida à sua maneira,

mas esta parecia-me a mais bonita... Até que,

o olhar o mundo me levou a fazer perguntas: “Será

que alguma vida humana tem menos valor do que as

que estão à minha volta? Não? Então faz as malas!”

A minha 1a missão ensinou-me quase tudo o que

sei sobre este assunto até hoje, as restantes foram

só para confirmar que só na persistência, insistência

e consistência se constrói algo que valha a pena, e

que fica para sempre. Fui para a linha da frente da

guerra da Rep. Democrática do Congo. Previam-se

feridos de guerra... por tiros, granadas e bombas, e

assim foi... E lá está, a minha busca por uma certa

adrenalina dizia-me que era neste tipo de vítimas

que eu poderia efectivamente fazer a diferença. E

foi. Ou também foi. Mas pouco foi.

Passo a explicar. Em 13 missões, perdi a conta

aos feridos de guerra que me passaram pelas mãos...

fiz parte de equipas que salvaram muitas destas vidas.

Machetes, balas, estilhaços, granadas, bombas,

queimados... e até armas químicas. Mas será isto a

Medicina de Guerra? Sim, é, mas pouco. Cada conflito

tem a sua história, e a tipologia de feridos também é

muito variada consoante o tipo de violência que se

encontra em cada local. Mas com ou sem adrenalina,

o que a minha experiência em cenário de guerra

me foi mostrando é que aquilo, que nós na medicina

chamamos de trauma violento, é apenas uma pequena

expressão da medicina de guerra.

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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO

As consequências indirectas dos tiros e das bombas

são muitos mais impactantes do que as directas.

Primeiro porque há uma drenagem de recursos humanos

qualificados, visto que são estes que mais facilmente

conseguem fugir e se refugiar noutros países.

Depois as falhas na logística do funcionamento de

um hospital; falha o abastecimento de água, de electricidade,

de oxigénio, de medicamentos, de material,

alimentos... e isto mata muito mais do que os tiros e

as bombas, mas claro, é o conflito a causa de todos

os males. Logo, num local de guerra, os desafios vão

muito para além de parar as hemorragias e amputar

membros. Há crianças que morrem pela falta de um

antibiótico ou anti-malárico, há mulheres que morrem

no parto pela falta de capacidade de fazer uma cesariana

(um estudo dos Médicos Sem Fronteiras, há uns

anos mostrava que as cesarianas são mais de 50% das

cirurgias que se realizam em locais de guerra), diabéticos

por falta de insulina, reaparecimento de doenças

erradicadas por falta de vacinação (exemplo da Poliomielite

na Síria), uma apendicite não operada que leva

à morte... no fundo as pessoas, de todas as idades morrem

por tudo e por nada, quando as estruturas de saúde

entram em disfuncionamento, como consequência

do conflito armado.

prémio Nobel da paz em 2019, que salvou da fome

cerca de 100 milhões de pessoas em cerca de 88 países,

faz uma ressalva especial à situação catastrófica

do Iémen, do Afeganistão, e do Sudão do Sul, três países

que eu conheço por dentro e que sofrem terríveis

consequências de conflitos armados invisíveis para o

mundo e, como tal, intermináveis. Há 30 milhões de

crianças a viver em situação de refugiadas, mas há

mais de 430 milhões de crianças a viver em locais com

conflitos armados horrendos. Palavras na entrega do

Nobel da Paz ao PAM: “for its efforts to combat hunger,

for its contribution to bettering conditions for peace in

conflict-affected areas and for acting as a driving force

in efforts to prevent the use of hunger as a weapon of

war and conflict.”

Comecei por falar da adrenalina de salvar uma

vida no limite, e acabo em algo tão simples de se fazer

que é prevenir que uma criança morra à fome. Mas

para quem tem o coração virado para o mundo, é isto

a Medicina de Guerra.

E se nós não somos parte da solução, então somos

parte do problema.

E depois temos a fome. Parece que estou a fugir

do tema, mas não. A maior causa de fome no planeta

são os conflitos armados. Quando nos escandalizamos

(e bem!) pelo ataque a hospitais durante uma guerra,

esquecemo-nos que matar à fome sempre foi uma estratégia

de guerra, e uma consequência inevitável de

todos os conflitos. No Iémen, por exemplo, a cidade

de Hodeidah tem sido o palco das lutas mais ferozes

e potencialmente decisivas, porque é o último porto

de mar, onde se abastecem todos os que vivem nas

áreas controladas pelas forças do norte, da guerra civil.

Não é por acaso que o Programa Alimentar Mundial,

82 ZERO UM



SAÚDE MENTAL

SAÚDE MENTAL

Viver em plenitude:

Mindfulness 101

Por Profª. Drª. Isaura Tavares

Neurocientista e Docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Investigação principal na área de modulação encefálica da dor.

Desempenhou cargos de Direção em várias Sociedades Científicas, nomeadamente

na Sociedade Portuguesa de Neurociências (Presidente) e na Associação

Portuguesa para o Estudo da Dor (Vice-Presidente).

Integrou vários órgãos de gestão académica na FMUP, nomeadamente no Conselho

Executivo, Conselho Científico

e Conselho Pedagógico.

Coordenador do Curso de Formação

Contínua “Mindfulness

em Contextos de Saúde” da

FMUP (4 edições consecutivas).

Na FMUP, regente de diversas

Unidades Curriculares de matérias

de Histologia e Embriologia,

desde 2004/05, e da Unidade

Curricular de “Neurociências

Contemplativas”, com 3 edições

consecutivas, desde 2020/21.

ISAURA TAVARES

As últimas décadas foram marcadas pelo

crescimento do interesse nas práticas baseadas

em Mindfulness. A palavra poderá

traduzir-se por “Atenção plena” ou “Consciência Plena”

e pretende designar o conjunto de atitudes e práticas

que nos permitem, de modo intencional, viver mais focados

no momento atual, reconhecendo as atividades

naturais de deambulação da mente.

A estruturação de cursos de 8 semanas de práticas

baseadas em Mindfulness começou nos anos 80 do século

passado, na Faculdade de Medicina da Universidade

de Massachusetts, através de Jon Kabat-Zinn. Este

investigador, com décadas de prática de meditação Zen,

codificou um programa de 8 semanas que ficou conhecido

por Mindfuness Based Stress Reduction (MBSR).

A investigação acerca dos benefícios da prática de

Mindfulness encontra-se numa fase crucial, dado ter

sido necessário rever os estudos realizados, de modo

a aumentar a sua robustez científica. As Neurociências

Contemplativas, ramo do estudo neurocientífico que

explora os mecanismos neurobiológicos das práticas

contemplativas, têm trazido resultados interessantes. O

aumento da regulação emocional e da capacidade de

foco detetados em indivíduos saudáveis que participaram

em programas MBSR foram associados ao decréscimo

na atividade da amígdala e ao aumento da atividade

do córtex pré-frontal, havendo correlação inversa do

funcionamento das duas áreas. O aumento do bem-estar

após participação nestes programas estava negativamente

correlacionado com alterações estruturais e

funcionais de áreas produtoras de neurotransmissores

envolvidos na manutenção do bem-estar, como a serotonina.

Estudos realizados em monges treinados nas

práticas de meditação baseadas na compaixão, mostraram

grande ativação em áreas envolvidas nos mecanismos

de recompensa.

Em resumo, os estudos indicam que a participação

em cursos de MBSR e a prática de meditação ativam

mecanismos de neuroplasticidade que têm efeitos na

auto-regulação emocional e no bem-estar de quem os

pratica. É, contudo, fundamental analisar os estudos

através do crivo das meta-análises para avaliar a robustez

dos efeitos descritos. É também necessário entender

a quem será mais benéfico estas práticas e garantir o

acompanhamento dos indivíduos que as executam por

profissionais com experiência pessoal nestas técnicas.

No contexto do ensino médico, frequentemente desafiante

e gerador de stress excessivo, tem havido muito

interesse na aplicação de técnicas contemplativas e no

envolvimento dos estudantes em programas MBSR ou

semelhantes. Os resultados têm mostrado melhorias na

gestão do stress e na promoção de atividades de auto-

-cuidado. Além disso, por serem realizados em grupos

de cerca de 12 participantes, o efeito de grupo cria uma

sensação de partilha e a consciência de que os desafios

da vida universitária no contexto dum curso de Medicina

são mais comuns do que o indivíduo, isoladamente,

pode intuir. Este conceito de “Humanidade Comum”

pode ajudar o estudante a ter a perceção de que faz

parte de uma comunidade. A prática regular de atividades

de conexão com o corpo e de monitorização da

mente permitem detetar momentos de maior desgaste

a que se pode responder com práticas de auto-cuidado

personalizadas, a serem descobertas por cada um.

O poder dos pensamentos é relativizado não porque, e

como erradamente se acredita, a meditação faça parar

os nossos pensamentos, mas porque temos consciência

da sua impermanência e transitoriedade.

Os estudantes de Medicina que são envolvidos, enquanto

comunidade, a participar em programas MBSR

demonstram redução do stress, quantificado através

de auto-registo e de medição do cortisol, menor reatividade

a eventos stressores, como os exames, e melhor

regulação emocional. A utilidade destas práticas

nas Faculdades de Medicina deve ser investigada como

métodos de auto-cuidado e auto-monitorização que poderão

ajudar a promover a saúde mental e aumentar a

resiliência para a prática de uma profissão de elevado

desgaste.

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SAÚDE MENTAL

A relevância das atividades extracurriculares no

percurso de se tornar médico

Por Profª. Drª. Elizabete Loureiro

O

sistema educativo tem sofrido inúmeras

transformações e debates, potenciado

pelos desafios constantes que

enfrenta, estando a evoluir para um modelo em

que a “sala de aula” já não é o centro da atividade

educativa. Concomitantemente, as políticas

educativas orbitam em torno das competências

a adquirir, com um foco no “casamento” entre as

competências técnicas e as competências não-

-técnicas. No entanto, estas últimas são raramente

abordadas (quer no ensino secundário, quer no

ensino superior), devido à sua complexidade e por

falta de estratégias transversais que ultrapassem

os desafios inerentes ao seu ensino e avaliação.

Também a Educação Médica tem assumido

o desafio de refletir sobre o médico do Século

XXI, destacando, para além das competências

técnicas/clínicas, a necessidade da aquisição de

competências transversais, humanísticas, de desenvolvimento

pessoal e de prática reflexiva. As

“15 Core Competencies” da Associação Americana

das Escolas Médicas (AAMC), para os candidatos

ao curso de medicina, destacam 4 grandes áreas:

competências inter- e intrapessoais, competências

de raciocínio e competências científicas. Estas

áreas implicam sobretudo competências de comunicação,

gestão de tempo, trabalho em equipas

(intra- e inter-profissionais), gestão de conflitos,

liderança, empatia e pensamento crítico. Nas últimas

duas décadas, o Processo de Bolonha e outros

movimentos educativos compeliram as escolas

médicas a reorganizarem os seus curricula e a introduzirem

as competências transversais. A FMUP

não é exceção, tendo vindo a fazer um claro investimento

nesse sentido.

Mas a formação médica é muito mais do que

estudar para a obtenção de um diploma. O caminho

para ser médico é bem mais abrangente,

desafiando valores, a auto-perceção e perspetiva

da vida em si. Para se tornar médico, um jovem

terá de partir para uma viagem longa com uma

“mochila” vazia às costas e regressa com uma “bagagem”

cheia de competências de todas as cores

e formas. Este longo caminho para ser médico implica

desafios académicos, sociais e emocionais,

que incluem lidar com exigências clínicas, com a

doença e com a morte. Também implica sacrifícios

pessoais, familiares e sociais, com implicações

claras (e bem documentadas) para o seu bem-estar

geral - nomeadamente para a saúde mental

(stress, ansiedade, burnout) - que permanecem

para além do final do curso. Neste enquadramento,

será útil acrescentar à bagagem de competências,

uma maior capacidade de coping, adaptação

e resiliência. Isto implica que as escolas médicas

investam no desenvolvimento pessoal (desligado

de um processo de avaliação com notas e médias)

de forma a garantir pessoas enriquecidas, motivadas

e com saúde mental, para que possam exercer

a sua futura profissão médica com mais qualidade

e satisfação.

São vários os estudos que apontam para os

benefícios das atividades extracurriculares durante

a passagem pelo ensino superior, e na educação

médica em particular, nomeadamente ao nível

da motivação, persistência e níveis aprendizagem

mais ambiciosos. Permitir-se envolver neste tipo

de atividades ajuda a garantir um nível de desenvolvimento

pessoal e emocional mais sólido, além

de possibilitar o desenvolvimento de uma rede

alargada de conexões interpessoais que promovem

níveis mais elevados de confiança e de sentido

de propósito. Mais ainda, este tipo de atividades

confere experiência (“jogo de cintura”) em

diversas áreas e situações, potenciando o desenvolvimento

de competências per si. Concomitantemente

a estes ganhos, aprende-se a importância

de um equilíbrio entre o trabalho e as restantes

esferas de vida (work-life balance), promovendo

maior capacidade de gestão de stress e autocuidados

(self-care).

Assim, as atividades extracurriculares ou co-

-curriculares, ao serem consideradas partes integrais

e complementares do processo educativo

são um dos meios mais completos para responder

aos desafios e exigências da vida académica,

embora ocorram fora da “sala de aula”. Estas “salas

de aula” são transitórias e podem ser tão diversas

quanto a academia onde se pratica dança, ou as

ruas onde se distribui sopas durante um voluntariado.

A pesada carga de atividades letivas a que um

estudante de medicina é exposto, pode levar a

pensar: “isto é tudo muito bonito, mas não tenho tempo…pois

preciso de estudar”. Ao olharmos para estas

atividades como soft/dispensáveis/desperdiçadoras de

tempo vamos continuar a atribuir significados marginais

e haverá uma maior relutância e ansiedade associadas

à sua prática. Mas é necessária uma mudança de

paradigma de pensamento. É necessário pensar nestas

atividades como uma mais valia global, que permitirão

a aquisição de competências transversais fundamentais

para a futura prática clínica e a maiores níveis de bem-

-estar físico e emocional. Adicionalmente, estes benefícios

irão repercutir na aquisição de conhecimentos e

competências técnicas, levando a uma completude de

As atividades extra- ou co-curriculares

mais recomendadas para os

estudantes de medicina são:

1. Voluntariado (que implique cuidar, escutar,

compromisso e trabalho)

2. Projetos de investigação (porque promovem,

por exemplo, trabalho em equipa,

pensamento crítico e resolução de problemas)

3. Programas comunitários (porque promovem,

por exemplo, o sentido de compromisso,

sacrifício e priorização de objetivos)

4. Explicações ou outra atividade ligada

a ensinar/orientar (ex. escutismo) (porque

promovem, por exemplo, competências de

comunicação, liderança, paciência, compaixão/rapport,

empatia)

5. Trabalho (em part-time ou não)

6. Associativismo

7. Atividades multiculturais

8. Hobbies vários (sempre de acordo com

o seu interesse pessoal), desde o desporto

(que promove, por exemplo, o sentido de

equipa e/ou trabalho sobre pressão) à escrita,

leitura, arte, teatro e música – (para

realçar competências cognitivas, interpretação,

compreensão observação e retenção)

Elizabete Loureiro

Psicóloga Clínica

aptidões/competências.

A decisão e escolha de atividades deve ser bem

gerida e priorizada (qualidade vs quantidade), sendo

essencial refletir sobre as experiências (prática

reflexiva continuada), com as seguintes questões:

• O que aprendi com esta experiência?

• Porque foi significativa para mim?

• Como é que isto me ajuda/enriquece/como

posso transpor isto para o meu futuro pessoal e

profissional?

Termino com um excerto de um discurso numa

cerimónia de graduação de Anna Quindlen (2017):

SMART IS GOOD. SMART

AND HARDWORKING IS REALLY

GOOD. SMART, HARDWORKING

AND FEARLESS, THAT’S THE HAT

TRICK. YOU POSSESS AN INVAL-

UABLE CREDENTIAL THAT WILL

SOON BE RATIFIED HERE, BUT

ARE YOU STRONG AND SMART

ENOUGH TO BECOME WHO

YOU MIGHT BE WERE YOU NOT

AFRAID? THAT’S THE PROBLEM,

ISN’T IT? – I´M AFRAID OF LIVING

A LIFE THAT SEEMS MORE LIKE A

RESUME THAN AN ADVENTURE

STORY.

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ZERO UM

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LIFESTYLE

Os Alimentos mais Instagrammavel do momento

Dicas para manteres um feed saudável

Por Dr.ª Iara Rodrigues

iararodriguesnutricao

www.iararodrigues.com

Iara Rodrigues é licenciada em Ciências da Nutrição

pela Faculdade de Ciências da Nutrição e

Alimentação da Universidade do Porto e Mestre

em Nutrição pela Faculdade de Medicina da Universidade

de Lisboa.

Especializou-se em 2009, pela Fundação Universitária

Ibero-Americana, em Medicina Ortomolecular

e Biorresonância.

O seu percurso profissional conta com múltiplas

publicações em revistas diversas, bem como

participações regulares em programas de televisão

que contribuíram largamente para a maior

visibilidade do seu trabalho e um maior reconhecimento

pelo público.

Para além de consultora de nutrição para várias

marcas nacionais, é autora de livros, como 'A

Dieta Simples', 'Dieta 1, 2, 3' e 'Emagreça sem fome'.

No ano de 2016, fundou a sua própria clínica,

em Paço de Arcos, integrando uma equipa multidisciplinar

dedicada a uma abordagem integrativa

da Nutrição e outras áreas médicas.

​ Foi mais tarde, em 2018, que deu início ao

projeto Iara Kitchen, um espaço destinado à realização

de workshops e formações, entre outros

eventos no âmbito da cozinha saudável, segundo

uma perspetiva holística da saúde, nas suas múltiplas

vertentes.

Atualmente, é uma das nutricionistas com

maior influência a nível nacional, que exerce particularmente

através da sua página de Instagram,

que inclui publicações recorrentes que atingem

milhares de seguidores.

ZERO UM

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LIFESTYLE

LIFESTYLE

ABACATE

A pera abacate é um fruto que está na moda e que

ficou especialmente conhecido pelo Guacamole, um

famoso molho mexicano que se pode comer com palitos

de aipo, cenoura ou pepino. É um fruto que pode

ser incluído em variadas receitas e tanto combina

bem com doces como com salgados.

Do ponto de vista nutricional, o abacate é sobretudo

uma fonte de ácidos gordos monoinsaturados, ou

seja, uma fonte de gordura “boa”, tal como o azeite ou

os frutos oleaginosos.

É rico em fibras, em vitaminas lipossolúveis (solúveis

em gordura) como a E e a K, e tem cerca de 73%

de água na sua composição. A gordura do abacate, tal

como outras fontes, fornece energia ao organismo e

entra na constituição da membrana das células.

É importante ressalvar que, por ser uma fonte de

gordura, contém um elevado valor calórico e, por essa

razão, o seu consumo deve ser moderado. Uma porção

diária equivale a meio abacate médio (cerca de 100g),

quantidade que pode variar consoante a pessoa.

Devido à sua versatilidade, é possível incluí-lo em

diversas receitas de saladas, omeletes, wraps, bowls e,

até, para dias de festa, em sobremesas como a mousse

de abacate e cacau, tornando-se mais uma alternativa

saudável, com o dom de proporcionar experiências

gastronómicas únicas.

MATCHA

O matcha é um chá verde em pó, originário do

Japão, que se tornou mediático por se considerar benéfico

à saúde devido ao seu elevado teor em antioxidantes.

A quantidade de antioxidantes varia consoante a

idade da folha utilizada, a temperatura da água e o

tempo de infusão. Ao contrário do chá verde tradicional,

as folhas para produção do matcha são mantidas

à sombra, semanas antes de serem transformadas em

pó, o que poderá ser uma das razões para alguns estudos

evidenciarem um conteúdo superior em antioxidantes

e teanina (um aminoácido com efeitos benéficos

no organismo).

A cafeína, presente no chá comum, em quantidades

definidas é um antioxidante com efeito benéfico

na proteção das células. Alguns estudos revelam um

teor de cafeína consideravelmente superior no matcha

(18 a 45 mg/g), quando comparado com os teores

no chá verde (11 a 25 mg/g).

Certos grupos de pessoas, como grávidas, lactantes,

crianças ou até mesmo quem sofra de insónias ou

ansiedade, devem ter em especial atenção a ingestão

da cafeína, podendo não ser aconselhável o consumo

de infusão de matcha. Devido aos seus componentes,

o matcha tem um sabor que combina com bebidas

quentes, sumo de fruta e sobremesas.

MANTEIGA DE

AMENDOIM

A manteiga de amendoim é um dos topping mais

vistos nas receitas de papas de aveia e panquecas

do Instagram. A adição de uma gordura saudável ao

pequeno-almoço torna-o mais completo e é um bom

substituto das gorduras animais. O amendoim é uma

leguminosa oleaginosa, que por 100 g de alimento

fornece perto de 50g de gordura, predominantemente

polinsaturada e monoinsaturada (gordura “boa”)

da família ómega 6, sendo que cerca de 30 % do seu

conteúdo nutricional é proteína, o que lhe confere um

grau de saciedade interessante.

É também uma fonte de vitaminas do complexo B,

minerais como o magnésio e o fósforo, folatos e vitamina

E. Recentemente, descobriu-se que o amendoim

tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias

que protegem as células dos danos provocados por

radicais livres.

Para além de a quantidade a ingerir dever ser controlada,

devido ao seu alto teor em calorias, devemos

escolher as embalagens de manteiga de amendoim

que indiquem 100% de amendoim na sua composição,

evitando os produtos embalados que contêm excesso

de sal, açúcares e gorduras adicionadas. O ideal é fazer

a própria manteiga de amendoim em casa, numa

liquidificadora, utilizando amendoins naturais, sem

sal, até obter uma pasta cremosa.

IOGURTES

PROTEICOS

Nos últimos anos, os iogurtes proteicos ganharam

destaque nas prateleiras do supermercado. O interesse

geral das pessoas por um estilo de vida mais ativo

e a preocupação em saberem mais sobre o que comer

após os treinos, fizeram com que, em conjugação com

os avanços científicos, se desenvolvessem produtos

novos com um objetivo nutricional orientado para essas

necessidades.

Os iogurtes proteicos, tal como os iogurtes naturais,

são ricos em cálcio, fósforo e outros minerais.

Quanto à gordura, esta varia entre iogurtes magros,

meio-gordos e gordos. A diferença entre iogurtes proteicos

e iogurtes naturais está no teor de proteínas,

sendo que, nos primeiros, os valores variam entre 12g

e 22g por porção, de acordo com a marca. Por essa

razão, devem ser consumidos preferencialmente por

indicação de um nutricionista e integrados numa alimentação

variada e equilibrada.

A proteína láctea é considerada de alto valor biológico,

tendo na sua composição aminoácidos essenciais

ao organismo, principalmente a leucina - que é

um dos aminoácidos com maior impacto na síntese

muscular. Estas propriedades tornam os iogurtes proteicos

uma boa opção para quem quer aumentar a

massa muscular.

No supermercado, é importante ler o rótulo e ver

a lista dos ingredientes que fazem parte da constituição

de cada iogurte. Devem preferir-se versões mais

saudáveis, como os iogurtes magros sem adição de

açúcar.

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LIFESTYLE

Rotinas de Pele

em Estudantes Universitários

Guia Básico para sobreviveres à

Febre do Skincare

Prof. Drª. Sofia Magina

Atendendo ao seu percurso enquanto dermatologista

e também enquanto docente nesta

faculdade [FMUP], uma vez que consegue

estabelecer, aqui, um contacto mais próximo

com os estudantes universitários, quais são

os principais motivos que levam os estudantes

universitários a procurar acompanhamento por

um especialista em dermatologia?

Eu acho que o motivo número um é a acne. Até

porque é uma das patologias dermatológicas

mais prevalentes na idade jovem. Existe outra

entidade, que nós nem chamamos uma doença, mas

que é também muito comum neste grupo etário, que é

a dermatite seborreica. Assim, a dermatite seborreica e

questões relacionadas com o couro cabeludo e com o

cabelo acabam por ser o segundo motivo; isto dentro do

grupo dos jovens saudáveis. Sem dúvida que são as causas

mais frequentes de procura de um dermatologista.

E atendendo às particularidades da

vida de um estudante universitário,

sente que há obstáculos específicos

que dificultam a aquisição dos resultados

pretendidos?

Quer na acne quer na dermatite seborreica

e em algumas questões relacionadas com

o cabelo, nós sabemos há alguma relação

com o stress emocional. Portanto, o stress

pode agravar a acne; a dermatite seborreica

também é uma entidade muito relacionada

com o stress; e obviamente que a vida universitária,

com as épocas de exames, com estes picos de stress,

acaba por poder condicionar aqui algum agravamento.

Relativamente à acne, o que eu vejo nos estudantes

universitários é que o componente mecânico é um

importante fator de agravamento. Ou seja, na altura de

exames, nas alturas de maior stress, as pessoas “mexem”

muito na pele e isto chama-se acne escoriado do adulto

jovem. Nós vemos muito esse padrão nos estudantes

universitários, em particular nos estudantes de Medicina,

porque passam muito tempo sentados a estudar, às

vezes também têm alguns traços de personalidade mais

obsessivos e esses traços de personalidade e as lesões

escoriadas de acne estão muito relacionadas.

E, depois, claro, a vida universitária também proporciona

alguns excessos que também acabam por não ser

muito saudáveis para a pele, porque nós sabemos que

uma pele saudável também está relacionada com um

estilo de vida saudável, com bons hábitos alimentares,

de sono,… Enfim… E nós sabemos que isso é tudo o que

um estudante universitário tem mais dificuldade em fazer.

Portanto, sim, identifico algumas dificuldades, mas

que, claramente, não são um obstáculo de maior.

Com base na sua experiência, diria que a maior

parte dos jovens, principalmente estudantes

universitários, tem uma preocupação em manter

cuidados de pele e consegue fazer diariamente

uma rotina de pele ou sente, por outro

lado, que há uma certa negligência relativamente

a este tipo de cuidados?

São duas perguntas. A primeira é se têm uma preocupação

com os cuidados de pele; sim, sem dúvida nenhuma.

Essa é uma questão que está identificada na

dermatologia em todo o mundo, que há uma crescente

preocupação dos jovens relativamente aos cuidados de

pele, com o objetivo duma pele saudável, que não havia

há, diria, 10 anos atrás. Isso é transversal ao mundo moderno.

Essa preocupação está bem identificada e nunca

o skincare esteve tão na moda. Indiscutível. Muito também

por causa das redes sociais, por causa da questão

das pessoas valorizarem, cada vez, mais, uma pele sau-

dável,… mas isto é transversal a todos os grupos etários,

em particular aos grupos jovens.

A segunda questão é se, de facto, são capazes, depois,

de cumprir os cuidados a que se propõem. Diria

que não. Por isto tudo que eu disse há pouco. Porque,

muitas vezes acabam por se deitar tarde, não têm tempo

de limpar a pele, frequentam, às vezes, ambiente com

mais fumo e tudo isso cria aqui alguma falta de cuidado.

Portanto, não acho que haja negligência; há, sim,

preocupação, mas há dificuldade, depois, em manter o

patamar a que se propõem.

“...porque nós sabemos que uma pele saudável

também está relacionada com um estilo de vida saudável,

com bons hábitos alimentares, de sono,…”

Essa dificuldade em manter uma boa rotina de

pele e em concretizar a tal rotina que seria adequada

leva-nos a uma outra pergunta. De uma

forma geral, acha que, mesmo os estudantes

que não são acompanhados por um dermatologista,

conseguem, de uma forma autónoma,

selecionar os produtos adequados para uma

boa rotina de pele, constituir a sua própria rotina

de pele? Ou acha que isso é difícil?

Nós temos aqui que distinguir dois grupos. Temos

que distinguir jovens que, por exemplo, tenham uma

pele com acne, com algum tipo de patologia, como alergias,

dermatite atópica, eczema, que, indiscutivelmente,

na minha opinião, precisam de um acompanhamento de

Dermatologia. Até porque, caso contrário, acabam por

ser invadidos por vários cosméticos, fazem experiências

e, o que eu vejo é que, muitas vezes, corre mal, porque

acabam por associar cosméticos que não deviam ser associados,

a pele fica irritada, afeta a barreira cutânea,

e a acne, em vez de melhorar, agrava. Portanto, tudo

corre mal! Até existe uma entidade que se chama acne

cosmético, que resulta do facto do uso errado de cosméticos

poder, ele próprio, desencadear acne - ou seja,

muitos cosméticos, muita limpeza e esfoliação da pele

podem agravar a acne.

Numa pele saudável, “sem nada”, eventualmente,

poderá não ser preciso um dermatologista se as pessoas

não se propuserem a fazer muita coisa, ou seja, se disserem:

‘Muito bem, eu vou limpar a pele, aplicar um creme

hidratante e ter cuidado com o sol e usar protetor solar’.

Para isto, talvez não seja preciso, mas quando as pessoas

gostam muito de skincare e quando pretendem mais do

que isto, acho que, aí, precisam de um aconselhamento,

porque, se não, vão procurar esse aconselhamento nas

redes sociais. Isso está estudado - a informação sobre

skincare nas redes socais dada por dermatologistas é

abaixo de 10%. Portanto, já se percebeu que quem domina

esta área nas redes sociais, que é muito daquilo

que nos chega, não são os dermatologistas. Há até um

alerta. Por exemplo, este ano, na reunião da Academia

Americana, havia um apelo aos dermatologistas para

que se instalassem nas redes sociais para, de facto, aumentar

esta cota de informação para que a informação

fosse mais credível.

Portanto, se as pessoas querem usar vários produtos,

acho que precisam de um dermatologista, porque,

se não, tem tudo para correr mal. Se querem um hidra-

tante e limpar a pele, acho que, eventualmente, numa

pele saudável, isso não será tão necessário.

Mas é verdade também que eu, há 5 ou 6 anos atrás,

não tinha adolescentes nem jovens saudáveis, com pele

saudável, a chegarem à minha consulta a perguntar

‘Como é que eu devo tratar a mina pele?’. Era uma consulta

que eu não tinha, isto não existia. E, agora, tenho.

Adolescentes que chegam, não têm “nada”, e a única

coisa que querem saber é cuidados de skincare para se

orientarem. É um fenómeno que é interessante. Eu agora

digo muitas vezes - eu tenho consultas de pessoas

bonitas e saudáveis que a única coisa que querem saber

é como manter a sua pele saudável. E eu acho bem! Se

as pessoas tiverem tempo e disponibilidade para isso,

acho muito bem!

Atendendo ao panorama atual e até a alguns

dos pontos de que já fomos falando, sente que

existe ainda uma lacuna grande no que diz respeito

à literacia em saúde dermatológica?

Sim, acho que existe. De facto, há uma grande quantidade

de informação disponível nas várias plataformas

sobre skincare. Skincare é, sem dúvida, um dos temas

mais procurados. E o número crescente que tem havido

de influencers nesta área é brutal e claro que esta é uma

informação muito enviesada e, portanto, que está associada

a muitos riscos - as pessoas depois acabam por ter

ideias erradas. Há muita coisa relativamente até a determinados

cosméticos que são quase que endeusados

e, depois, todas as pessoas usam aquilo e, na realidade,

não é bom para todos. Acontece até com determinados

tipos de alimentos, em que é feito completamente o

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LIFESTYLE

LIFESTYLE

contrário - diz-se ‘este alimento é perigosíssimo para a

pele’ e, de repente, há uma quebra no consumo. Há muita,

muita desinformação.

Portanto, respondendo à pergunta: sim, há muita

desinformação. E nós já estamos habituados a isso em

todas as áreas e, claro, numa área que está a crescer,

como é o skincare, obviamente que isso acontece. E, depois,

há marcas que promovem isso. Enfim, há muitos interesses

ocultos, como acontece sempre. E eu vejo esse

fenómeno a acontecer: vi um produto de higiene, que

até era um produto de uma gama baixa, económico, e

não é que fosse mau nem bom, mas houve uma altura

em que houve uma divulgação de tal forma importante

numa rede social, neste caso até foi no TikTok, e foi uma

coisa esmagadora - todas as minhas pacientes passaram

a usar aquele produto de higiene. Um fenómeno que eu

não imaginava há uns tempos atrás e que, até a mim, me

faz alguma confusão.

Portanto, sim, há muita desinformação, há muitos

erros, há muita combinação de cosméticos errada - as

pessoas combinam ácido salicílico com retinoides, ácido

glicólico com esfoliantes. Depois, isto tem tudo para

Sente que a oferta crescente de produtos e o

acesso cada vez mais fácil a informação que raramente

é selecionada podem dizer-se aquilo a

que se costuma chamar ‘um pau de dois bicos’?

Sim, é verdade. É um bocadinho dentro daquilo que

estou a dizer. Eu acho que nós, como médicos, temos

aqui um papel importante. Não só nesta área da Dermatologia

como em todas - é que sejamos nós a liderar

a informação em saúde. E acho que é importante, até,

falarmos sobre isto porque é transversal na Medicina.

Nós devemos liderar a informação em saúde; seja ela no

que diz respeito à atividade física e risco cardiovascular,

seja skincare e cuidados de pele,… Tudo, tudo. Portanto,

nós, na realidade, temos, nos últimos anos, perdido aqui

algum poder. E para pessoas que têm muito mais tempo

do que nós, têm outros interesses que nós não temos e

que acabam por ser fontes de informação privilegiada. E,

portanto, lá está aquilo que eu dizia da Academia Americana

e que eu concordo inteiramente - que, de facto,

nós, como médicos, e eu, na minha área, como Dermatologista,

não posso dizer ‘Aquilo está tudo errado’ - tenho

que também estar lá a passar uma informação credível.

E isso tem sido uma preocupação das sociedades

científicas. Ou seja, não podemos dizer só que aquilo

não presta, temos que pôr informação. Só que a nossa

informação é sempre muito menos apelativa. Eu noto

isso, agora que tento ter alguma presença nas redes sociais,

também fruto deste caminho. Eu penso que vou

passar uma informação credível nas redes sociais, mas,

o que eu sinto, é que eu digo coisas que as pessoas não

querem ouvir e que não gostam! Nesta sociedade que

nós temos agora, é privilegiada uma informação que

é a informação simpática, em que é tudo bonito, tudo

agradável. Nós, médicos, dizemos coisas como ‘Não faça

solário, que lhe vai dar cancro de pele’. Ninguém quer

ouvir isso!

Abordando agora, especificamente, as rotinas

de pele. Quais são os elementos-chave para

uma boa rotina de pele? Pode dizer-se que há

produtos ou etapas que deviam ser comuns a

qualquer rotina de pele?

Sim, há três aspetos na rotina que são, digamos, o

que eu considero “serviços mínimos”: limpar, hidratar e

proteger do sol. E eu acho que este deve ser um cuidado

para todos.

Depois, obviamente que cada um destes produtos

pode ser um bocadinho adequado àquele tipo de pele

e àquele grupo etário. Obviamente que uma pessoa que

tem uma pele atópica, com algum defeito na barreira

cutânea, mesmo sendo um jovem com acne, não pode

limpar a pele com um produto demasiado detergente,

porque isso vai afetar-lhe a barreira cutânea e, a partir

daí, a pele vai piorar.

Relativamente ao hidratante - o que é para nós o hidratante?

É uma emulsão de óleo em água que mantém

o teor de água na pele. Obviamente que o hidratante

depende um bocadinho do tipo de pele, mas isso é um

serviço que deve ser feito. Ou seja, aplicação diária de

um hidratante, seja no homem, seja na mulher, é fundamental.

E, depois, a proteção solar. Nós sabemos que o sol

é o que mais danifica a nossa pele e que esse dano começa

em idade jovem e, portanto, devemo-nos proteger

desde cedo. Isto é o mínimo.

Depois, a partir daqui, nós podemos subir o patamar.

Imaginemos que é um jovem que até se preocupa com o

envelhecimento e que o quer prevenir - faz sentido usar,

antes do protetor solar, um antioxidante, usar um cosmético

com vitamina C, por exemplo. Ou, se é uma pessoa

que tem tendência para ficar com a pele manchada,

faz, se calhar, sentido usar um cosmético que tenha ou

vitamina C ou ácido azelaico. Ou, se é um jovem que, por

exemplo, tem uma pele que tem um bocadinho de tendência

para a oleosidade, para alguns comedões, pode

encaixar, nesta rotina, um cosmético como um retinoide.

Isto já são cuidados mais específicos. E voltamos à outra

pergunta - para isto, eu acho que é preciso orientação de

um Dermatologista, porque, se não, a combinação destes

produtos pode, depois, não correr bem.

Sente que, hoje em dia, é possível ter

uma rotina de pele completa a um preço

acessível?

Sim, sim. Acho que, também, um dos aspetos

positivos desta exigência no mundo

da skincare é que existem produtos económicos

com qualidade. Ou seja, conseguimos

ter um produto de higiene adequado, um

bom hidratante e um protetor solar sem

grande investimento. Portanto, o preço não

é um fator condicionante. Acho que qualquer

um pode ter bons cuidados de skincare.

Relativamente àqueles estudantes que têm

condições como dermatite seborreica, de que já

falamos, ou mesmo psoríase, as rotinas de pele

exigem cuidados acrescidos ou, pelo menos,

uma maior atenção na escolha dos produtos?

Estamos a falar de duas coisas diferentes.

Não se considera, na Dermatologia, a dermatite seborreica

como uma doença. A dermatite seborreica é

um bocadinho um tipo de pele, que tem que ver com o

microbioma do couro cabeludo, alguma predisposição

genética,… Não é uma doença. Portanto, sim, quem tem

dermatite seborreica, seja na face, seja no couro cabeludo,

tem que usar cosméticos diferentes, que tenham

alguma ação antifúngica - porque nós sabemos que, na

dermatite seborreica, há uma alteração do microbioma

a favor da Malassezia furfur -, outros que tenham alguma

ação queratolítica. E devem fazê-lo de uma forma

regular para, digamos, manter ali algum equilíbrio. Obviamente

podemos usar anti-inflamatórios em fases de

crise, mas, de rotina, que é aquilo de que estamos a falar,

sim, têm de ter cuidados especiais.

A psoríase é uma doença imuno-mediada. É uma patologia.

E os cosméticos também têm um lugar na psoríase,

porque há alguma hiperqueratose e, portanto, o

uso de cosméticos que tenham ureia, que tenham ácido

salicílico, que tenham algum efeito queratolítico, têm

benefício. Mas são coisas diferentes. Nós estimamos que

dermatite seborreica quase que todos temos. Eventualmente,

com mais ou menos impacto, em diferentes fases

da vida, mas não há ninguém que, alguma vez, possa

dizer ‘eu nunca tive um bocadinho de descamação no

couro cabeludo’ - e isso é uma dermatite seborreica.

Hoje em dia, atendendo, então, a este panorama

global em que há cada vez mais oferta, cada

vez mais informação acessível, mas também

uma deficiente qualidade em grande parte da

informação disponível, qual é o papel do der-

matologista e de que forma tem vindo a evoluir

esse papel ao longo do tempo?

Eu acho que o papel do dermatologista, que é o papel

do médico, é orientar. E, depois, aquilo a que nós

assistimos muito, é um excesso de produtos. Eu, às vezes,

fico completamente assustada com jovens que já

ouviram informação de todo o lado e que já fizeram

um ‘cocktail’ de skincare com rotinas complicadíssimas

e que, às vezes, precisam de um dermatologista para

dizer ‘Esse produto não interessa nada. Basta isto para

a sua pele.’. Portanto, o dermatologista tem um papel

fundamental em identificar erros de skincare, evitar até

consumos excessivos que não trazem nenhum tipo de

benefício - as pessoas gastam imenso dinheiro sem sentido

- e adequar os cosméticos para cada tipo de pele,

porque, como digo, uma combinação errada de cosméticos

(por exemplo, uma limpeza exagerada da pele, uma

exfoliação exagerada da pele combinada com cosméticos

com o mesmo efeito), ao contrário do que as pessoas

imaginam - eu acho que as pessoas têm um bocado a

ideia de que os cosméticos podem não fazer bem, mas

também mal não farão, e isso é uma ideia completamente

errada - pode ser prejudicial para uma pele que

até estava bem. E eu vejo isso muitíssimo, vejo isso cada

vez mais. As pessoas fazem máscaras, fazem exfoliações,

combinam tudo o que veem aqui e acolá e, portanto, o

dermatologista tem o papel de orientar. Nós, sim, queremos

manter uma pele saudável e não pode haver aqui

exageros nem para um lado nem para o outro.

Para terminar, que conselho deixaria aos jovens

para manterem uma boa saúde dermatológica?

O que eu vou dizer é um lugar-comum, mas a verdade

é que uma pele saudável espelha uma vida saudável.

Não há dúvida quanto a isso. Nós sabemos que fumar, a

poluição, os excessos, as noites mal dormidas, uma alimentação

desequilibrada, excesso de açúcares podem

interferir com uma pele saudável e, portanto, a primeira

coisa para ter uma pele saudável não é gastar uma fortuna

em cuidados de skincare. A primeira coisa é ter uma

vida saudável! (...)

Nós sabemos que tudo o que diz respeito à pele interfere

muito com a nossa imagem, interfere muito com

a nossa autoestima. E, se nós formos procurar estudos

sobre isso, não faltam. A pele saudável e a autoestima

estão muito ligadas e, portanto, é bom saber que o dermatologista

tem soluções e que pode tratar. Se, depois,

aparecem cicatrizes, tudo isso complica. Portanto, devemos,

precocemente, ter uma intervenção.

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