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Virar a página...
Uma produção:
01
Revista da Associação de Estudantes da
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Maio 2022
Nº 01
Com o apoio de:
Conselho Editorial:
Ana Francisca Silva
Catarina Carrapa
David Freiria
Gustavo Couto
Joana Silva
João Castro-Ferreira
João Gonçalves
Maria Leonor Borges
Sofia Oliveira
Propriedade e Edição:
Associação de Estudantes da Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto
Alameda Professor Hernâni Monteiro
Piso 01, 4200-319 Porto, Portugal
Periodicidade:
Semestral
Contribuinte Número:
501 410 058
Redação e Design Gráfico:
AEFMUP
Impressão:
A Medisa
Diponível em:
www.aefmup.pt
ISSN 2795-5265
Margarida Duarte Albuquerque
Presidente da AEFMUP
Vimos a pé, de metro, de carro, de autocarro. Descemos a ferradura, entramos no Átrio dos Estudantes. Lançamos
um olhar rápido à exposição que já nos acostumamos a ver. Passamos a segunda porta, estamos no corredor do 01. É
neste corredor que, no fundo, tudo se passa. Observamos a agitação, o alvoroço. A fila do Health Bar, já extensa logo
pela manhã, os médicos e demais pessoal hospitalar a caminhar nas várias direções, a sentar, a levantar. Ouvimos
de relance as conversas dos colegas que seguem em grupo, cumprimentamos as caras conhecidas que encontramos.
Paramos ocasionalmente para conversar, se se proporcionar. Se, como é costume, já formos atrasados para a
aula, murmuramos qualquer coisa àquele conjunto de pessoas que ocupa a totalidade da largura do corredor e não
nos deixa ultrapassar de forma acelerada. Vamos à Marta ou à Lina, saber ou contar a última novidade, acabando por
ficar lá largos minutos. Dirigimo-nos ao Salão de Alunos, à sala de estudo, aos Pensadores ou seguimos até ao CIM.
O que marca, afinal, um novo início? O começo de algo novo tem tanto de extraordinário potencial, quanto de
imprevisível impacto. A consciência das alterações a decorrer e a lucidez para as encarar. O conhecimento do passado,
o abraçar da mudança no presente para desenhar o futuro – reclamando-o como nosso.
A “zero um” será um espaço teu e para ti. Tu, que todos os dias andas pelo nosso corredor, queremos que divagues
por este zero um também. Nestas páginas encontrarás um espaço multidimensional. Trazemos Informação, Ciência,
Política Educativa, Políticas de Saúde. Desporto, Música, Cultura. Inovação, Empreendedorismo, Tecnologia. Entrevistas
a nomes e renomes. Encontrarás colegas e, acima de tudo, queremos que aqui te encontres também. Nos temas,
nos argumentos, nas pessoas, nas opiniões e discussões. Este será um espaço de liberdade para o teu contributo,
sempre que o desejares imprimir.
Vamos virar a página?
ZERO UM
1
05.
lifestyle
Propriedades Nutricionais dos Alimentos mais
Instagramáveis - pág. 89
Drª. Iara Rodrigues
01.
40 anos aefmup
pág. 4
02.
^
Saude, ´ ciencia e
politica ´
Entrevista a Prof. Dr. Luís Portela - pág. 19
Rotinas de Pele para Estudantes - pág. 92
Entrevista a Drª. Sofia Magina
04.
saude ´ mental
Viver em Plenitude: Minfulness 101 - pág. 84
Profª. Drª. Isaura Tavares
A Relevância das Atividades Extracurriculares
no Percurso de se Tornar Médico - pág. 86
Profª. Drª. Elizabete Loureiro
IN
´
D
O que nos Ensina uma Pandemia - pág. 23
Entrevista a Prof. Drª. Raquel Duarte
O Desafio de Envolver o Cidadão no Complexo
Mundo da Literacia em Saúde - pág. 27
Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira
A Pediatria por Diferentes Gerações de Especialistas
- pág. 31
Drª. Carla Rêgo
Drª. Sandra Teixeira
Drª Sofia Lima
Marcos Internacionais da Evolução dos Instrumentos
Cirúrgicos - pág. 42
Prof. Drª. Amélia Ricon Ferraz
Tecnologia na Medicina: Onde Estamos e
para Onde Vamos - pág. 46
Prof. Dr. Tiago Taveira Gomes
I
CE
03.
sociedade, cultura
e desporto
A Arte Encontra a Medicina no Nosso Zero Um - pág. 66
Drª. Sofia Batista
Entrevista a Rita Ferreira - pág. 68
A Arte, a Cultura, a Psiquiatria e o Estigma - pág. 71
Entrevista a Drª. Inês Homem de Melo
A Guerra da Ucrânia - Uma Perspetiva Europeia - pág. 77
Colaboração com Quórum - Fórum Político
Voluntariado em Contexto de Guerra - pág. 81
Dr. Gustavo Carona
Entrevista a Dr. Luís Valente, Diretor Executivo
da iLoF - pág. 50
Entrevista a Dr. Amir Bozorgzadeh, CEO da
Virtuleap - pág. 54
A Forma Como se Nasce Importa: Histórias
de Violência Obstétrica - pág. 60
A Ética do Envelhecimento - pág. 62
Entrevista a Prof. Dr. Miguel Ricou
2 ZERO UM
ZERO UM
3
PRESIDENTES AEFMUP
1982/84 - Nuno Delerue
1985/86 - Carlos Rebelo
1987 - Manuel Sousa
1988 - Rui de Sousa
1989 - Manuel Sampaio
1990/92 - Pedro Menéres
1993 - Nuno Silva
1994 - John Preto
1995/97 - Nuno de Sousa
1998 - Francisco Sampaio
1999/00 - Rui Capucho
2001/02 - Gil Faria
2003 - Ana Moreira
2004 - Lara Queirós
2005 - Miguel Azevedo
2006/07 - Roberto Pinto
2008 - Ricardo Rocha
2009 - Rui Reis
2010 - Pedro Couto
2011 - Hélio Alves
2012 - Francisco Mourão
2013/14 - Francisco Silva
2015 - Diana Rodrigues
2016/17 - Francisco Vieira
2018 - Inês Silva
2019/20 - Nuno Ferreira
2021 - Henrique Moreira
2022 - Margarida Albuquerque
40 Anos AEFMUP
Nuno
Delerue
O
que foi absolutamente inovador da lista
para a Direção que ali nasceu de geração
espontânea e que, seguramente, esteve na
base do sucesso dessa e de todas as direções que se
lhe seguiram, foi o facto de ninguém ter perguntado a
ninguém como ali tinha vindo parar. E, por consequência,
a garantia de aquele punhado de gente, muito diversa,
não estava ali por indicação de um qualquer
diretório partidário, antes por um gosto genuíno de
servir, contribuindo para que a escola que sentíamos
como nossa o fosse melhor. Claro que ninguém duvidava
que todos tínhamos as nossas próprias convicções,
e muitos de nós – eu incluído – seguimos até
carreiras públicas que são conhecidas. Mas não foi isso
que nos uniu ali e naquele momento. A primeira direção
da AEFMUP legalizada teve uma génese “anarca”,
o que – reconheça-se – é um registo deveras singular.
O trabalho da direção foi, num primeiro momento,
de reconstrução [no sentido estrito do termo]. E depois
de legitimação para dentro e para fora. Reconstrução
porque, pura e simplesmente, nada existia. As condições
logísticas de base eram nulas e foi um esforço
titânico criá-las. Voltando atrás, rebobinando, valeu a
pena! Valeu imenso a pena.
Pelo que se fez e pela semente que se lançou.
Pelo que perdura como convicção que o movimento
estudantil na sua forma apaixonada e voluntarista
é uma escola de vida. Quem passa por lá nunca mais
esquece. E sai diferente.
Saímos todos diferentes porque o trabalho, por natureza
e definição, é coletivo. Saímos, também, todos
com a certeza de ter ajudado a que haja hoje melhores
médicas e médicos, seja pessoal seja profissionalmente
falando. E isto, como resultante final, é o que mais
conta!
4 ZERO UM
ZERO UM
5
Elisabete
Barbosa
Nuno
Alegrete
A
IFMSA (International
Federation of Medical
Students’ Association)
foi criada logo após a
2ª Guerra Mundial. Entre outras
atividades, dinamizou os Programas
de Intercâmbio entre
as Faculdades de Medicina de
todo o mundo. Portugal integrou
esta Federação enquanto
PorMSIC, em 1983. Em 1985
coordenei localmente (LEO) o
programa de intercâmbio, em
1987 assumi a coordenação nacional
(NEO) e durante 2 anos a
sua Presidência. Durante estes
anos foi possível proporcionar
a muitos estudantes a oportunidade
de realizarem estágios
em vários países e foi também
muito gratificante recebê-los na
nossa instituicão. Diria que foi a
experiência mais gratificante e
feliz da minha vida académica
pela partilha, pelo convívio e
pelas amizades que ainda mantenho
em todo o mundo.
Miguel
Guimarães
Não se ama quando não se ouve a
mesma canção, Rui Veloso
Em 40 anos de existência,
a AEFMUP foi
sempre uma escola
prática e notável para a formação
de muitos médicos. No seu
seio aprendemos a ser melhores
pessoas, a valorizar as dimensões
humana, solidária e ética
da vida, a entender a importância
da ciência e da investigação,
a defender valores essenciais
tais como a liberdade e os direitos
humanos. Construímos uma
família, que nos liga e faz pontes,
que nos liberta e nos agrega,
que nos apoia e nos ajuda.
Que nos ensina a liderar e
ser mais sociáveis, a ser médicos
e cidadãos mais completos.
Em que o sentido de gratidão,
humildade e empatia falam
mais alto.
Na verdade, juntos somos
mais fortes. E temos fortes elos
de ligação. Um deles é visível e
tem nome, chama-se Lina. O outro
sente-se e tem vida naquela
voz que nos transforma numa
canção que todos amamos.
Vida eterna às mulheres
e homens que construíram e
mantêm a nossa canção na forma
de uma associação que será
sempre a nossa bússola e a nossa
âncora.
Estávamos no ano de
1992/93. A Associação
de Estudantes estava
a recuperar de vários anos de
saldo negativo e, após três anos
de mandato do Pedro Menéres
como presidente, as contas estavam
praticamente invertidas.
Este foi finalmente o ano em que
o mandato terminou com saldo
positivo... Esse trabalho tinha já
começado com o Ricardo Sampaio
(nessa altura ainda eu não
pertencia à Direcção) e muita
dessa recuperação se deveu ao
rigor na gestão dos departamentos
produtivos da AEFMUP: a litomédica
(uma tipografia onde
Apoiada numa estrutura
forte e numa continuidade
assumida, a
associação de estudantes de medicina
dessa altura destacava-se
no panorama do movimento estudantil
nacional pela estabilidade
da sua direcção e pela preparação
dos seus dirigentes. A passagem
de testemunho, transmissão de
conhecimentos entre gerações e
formação de dirigentes fazia-se
de forma continuada e sem sobressaltos.
eram produzidas as sebentas,
mas que vivia sobretudo dos
trabalhos para o exterior) e a
editorial (o departamento responsável
pela comercialização
das sebentas, estetoscópios e
outras ferramentas...).
A seriedade e o empenho de
pessoas como o Fernando Araújo,
Manuel Pizarro, Paula Barbosa,
Francisco Cunha, John Preto
(que viria a suceder-me como
Presidente da DAE) e tantos outros,
foi fundamental para essa
recuperação.
Como também foi fundamental a
gestão do Sr. Fernando Andrade, braço
direito de todos quantos foram responsáveis
por estes departamentos (eu
também por lá passei enquanto vice-
-presidente) e a quem se deve todo o
conhecimento sobre a sua gestão. Mas
sobre esta história, existem arquivos...
Os Boletins Informativos, os Relatórios
de Actividades e Contas (tantas noites
em claro!)...
Nuno
Bettencourt
Numa época muito conturbada
em termos políticos, em que muitas
direcções de associações de estudantes
caíram nas mãos de juventudes
partidárias, em resultado do
movimento estudantil de oposição
à lei de financiamento da Universidade
(”Lei das Propinas”), a AEFMUP
manteve-se sempre, e apenas, uma
estrutura de – e para - estudantes
de medicina, sem qualquer filiação
partidária. A nível interno, a Faculdade
debatia-se com uma reforma
curricular que visava uma adaptação
à redução prevista para a duração
do então designado “Internato
Geral” e a introdução de “blocos
curriculares”. A principal missão da
AEFMUP nesse período foi tentar
assegurar uma transição gradual
do antigo para o novo currículo que
não prejudicasse os alunos dos anos
afectados. O tempo passou e... seis
anos mais tarde, tinha 6 anos de dirigente
associativo, três dos quais
como presidente da AEFMUP. Hoje,
quando passo na piso 01 do HSJ não
posso deixar de sentir algum orgulho
naquilo que conseguimos fazer:
as concessões, os contratos, a sala
de estudo, a videoteca, a sala da
tuna, o salão de alunos, os cacifos,
a sede da FAP e a criação da ANEM
são as marcas visíveis desses tempos
mas há mais, muito mais, que
fica e que se transmite às gerações
seguintes: a vontade de fazer mais
e melhor em nome dos estudantes
de medicina.
6 ZERO UM
ZERO UM
7
Francisco
Sampaio
Rui
Capucho
Recordar os principais
momentos da
minha passagem
pela direcção da AEFMUP não
é tarefa simples. Foram muitos,
bons e há mais anos do que
quero pensar! Também não
me é possível distinguir, com
clareza, o mandato em que assumi
a presidência da direcção
dos restantes: cumpri quatro
mandatos como membro da
direcção e guardo, de todos,
grata recordação. Passei, com
a AEFMUP, por momentos de
mudança importante nas Universidades
e nas Faculdades
de Medicina portuguesas – da
questão do financiamento do
Ensino Superior com o aumento
significativo das propinas,
à reforma curricular da licenciatura
em Medicina da FMUP
com a introdução do sistema
de blocos, até à decisão política
de aumentar, contra o parecer
do Conselho Directivo da
Faculdade, o numerus clausus
dos cursos de Medicina, cujas
consequências (por nós previstas
nessa altura) se fazem
agora sentir. Trabalhei com
colegas leais e empenhados;
tendo obviamente diferentes
sensibilidades no seu interior,
a AEFMUP conseguiu sempre
escapar à partidarização e funcionar
como um bloco focado
no seu verdadeiro papel: a defesa
dos interesses da Faculdade
e dos seus alunos. Lidei
com docentes competentes
e interessados; fui, e ainda o
sou hoje, profundamente influenciado
pelo exemplo de
honradez e verticalidade do
Prof. Doutor Pinto Machado,
na altura Director da FMUP.
Sem ele, o papel da AEFMUP,
considerada um par na gestão
da instituição cuja opinião era
sempre tida em conta, teria
sido provavelmente irrelevante
na discussão de muitos destes
assuntos; e, como escrevi
na altura na comemoração de
mais um “Dia da FMUP” a Faculdade
teria “a tranquilidade
que é, como se sabe, a boa
paz dos cemitérios”. E também
me confrontei com os outros,
os que não interessam e dos
quais já me esqueci.
Até aí, a AEFMUP me ajudou;
a sageza do tempo permitiu-me
atribuir o papel próprio
às questões menores. Durante
as direcções a que pertenci, a
AEFMUP participou na organização
de congressos (como o
Congresso de Educação Médica
ou o “International Conference
on Drugs of Abuse”), conferências
(como o ciclo intitulado ”A
FMUP em busca de respostas”
em que se discutiram, com
convidados internacionais, temas
como a reforma dos cursos
de Medicina, a sua acreditação,
ou a reforma do Internato Geral)
e debates (como o debate
entre os cinco candidatos a
Bastonário da Ordem dos Médicos
nessa altura).
Projectou-se e construiu-se
a sala de estudo junto ao salão
de alunos.
Mas também se organizaram
eventos “menos científicos”
como as “Semanas Culturais”,
os “Medicina Radical” ou
os “Encontros Nacionais de Estudantes
de Medicina”. E temo
que a minha memória tenha
injustamente esquecido outras
pessoas e temas importantes.
Não ganhei nada por ter pertencido à direcção
da AEFMUP. Não é um cargo remunerado,
não usufruí dos benefícios do estatuto
de dirigente associativo, não procurei nem
distribuí favores, não assumi cargos políticos
nem de gestão. Mas, se lá não tivesse
estado, teria perdido a experiência inesquecível,
os amigos para a vida e a minha
família.
Obrigado AEFMUP!
Memórias da vida de um médico...
Pediram-me para escrever um texto sobre
os anos em que fui presidente da AEFMUP
para o BI comemorativo… Em sentido estrito
será difícil distinguir os anos específicos (1998 e 1999)
em que exerci o cargo de presidente, porque a vida na
AEFMUP foi um contínuo para além desses anos específicos,
tanto antes como depois. Comecei a minha actividade
na AE, em 1994, no departamento informático,
na altura da construção da primeira rede informática
(já existia um protótipo em MacTalk para os Machintosh,
através da rede telefónica) e, depois de exercer
o cargo, fui ainda presidente da mesa (local onde arrumam
os velhos rezingões). Mesmo depois disso, ainda
acompanhei o evoluir da AE por muitos e bons anos,
pelo que me é difícil ir buscar memórias antigas com
um espaço temporal preciso. Que me posso lembrar
de relevante desse tempo? A malta ainda não usava
telemóveis! Queríamos falar com alguém, telefonávamos
para casa e pedíamos para falar com fulaninho de
tal. A AE já era uma referência na Academia, foi das
primeiras a ter contabilidade organizada (a partir de
2000 com contabilidade efectuada por TOC), sempre
com um ambiente sereno e responsável. No fim dos
anos 90, havia uma tentativa de partidarização das AEs,
com lutas entre JS, JSD, JP e JC a tentar dominar (ou
influenciar) as direcções e a FAP. AEFMUP sempre se
conseguiu distanciar desse mundo.
A vivência de faculdade estava a adaptar-se a um
novo paradigma, o sistema de ensino por blocos nos
anos clínicos tinha acabado de ser implementado. De
um grupo de estudantes que tradicionalmente tinham
pouco que fazer durante o ano, apenas com duas épocas
de exames (Janeiro e Julho), passámos a ter, nos 3
últimos anos, menos tempo no dia-a-dia para as actividades
associativas.
Foi nesse período que ficou concluída a obra de
construção da sala de estudo Prof. Doutor Pinto Machado,
que tive o privilégio de inaugurar. Com a sala de estudo
no 01 e com cada vez mais alunos a estudarem no
dia-a-dia (e no noite-a-noite), contratámos 2 seguranças
para termos as instalações abertas 24 horas por dia.
Muitas noites foram passadas entre estudo na salinha
(parco), convívio no salão, competições de Half-Life às
2 da manhã na sala de informática… De relevo desses
anos, tenho apenas que acrescentar (e frisei isso no
debate da AE através dos anos) a maneira como nos
relacionávamos com o Director da altura, o Prof. Pinto
Machado, que nos considerava um verdadeiro parceiro
e nos chamava para debater todos os temas relativos à
faculdade, na perspectiva de conhecer a nossa opinião,
e não apenas aqueles directamente relacionados com
os estudantes. Muitas das decisões do Conselho Directivo
da altura eram consensuais connosco, não por
ter havido negociação prévia, mas pelas partes terem
discutido exaustivamente sem a ideia do ‘nós vs eles’,
por sermos todos ‘nós’. Guardo com carinho os anos aí
passados, tendo contribuído de forma decisiva para
quem sou, pessoal e profissionalmente, hoje em dia.
Continuem a pugnar por um associativismo competente,
solidário e apartidário, num mundo em convulsão,
em crise, altura em que o associativismo mais faz a
diferença.
8 ZERO UM
ZERO UM
9
Gil Faria
Caros FMUPianos, foi com muito
prazer que recebi este convite para
tergiversar sobre algumas das memorias
que me ficaram dos meus tempos “à
frente” da AEFMUP… Longe que vão esses
tempos e os “arquivos” afogados pela imparável
evolução da actualização digital, não me
resta senão relembrar algumas das memórias
retidas pelo sistema límbico (aquelas que são
mais importantes, não pelo seu valor intrínseco,
mas pelo significado que lhes fomos
atribuindo ao longo do tempo…). Lembro-me
que assumi o cargo de Presidente da AEFMUP
em 2001 (o ano em que foi lançado o Senhor
dos Anéis...), no rescaldo de uma GA da IFM-
SA (a maior reunião de alunos de Medicina
de todo o mundo realizada em Portugal - na
nossa Invicta, no Verão de 2000), que deixou
à beira de um ataque de nervos (e da ruína
financeira) quer a ANEM quer a AEFMUP. Foi,
portanto, dez anos antes da crise económica,
que aprendemos o significado da expressão
“medidas de contenção” ! Além das dificuldades
económicas, sentia-se por parte dos nossos
sócios (os vossos antecessores…) alguma
desconfiança para com a AEFMUP. Soavam
rumores de que a Direcção da AE era um grupo
de amigos, que basicamente organizava a
vida associativa em proveito próprio…
E, embora não sendo verdade, tal como à
mulher de César, não nos chegava ser sérios,
tínhamos também de o parecer… Era, pois,
tempo de a AEFMUP (que tanto crédito gozava
junto do “mundo associativo” e da política
educativa), transferir o seu foco primordial,
novamente para os alunos da FMUP.
Dito isto, recordo alguns dos projectos e
tarefas mais importantes durante esse tempo… Tal como esperado,
o primeiro passo foi o emagrecimento da AE (a agora tão
moderna redução da despesa), ao mesmo tempo que tentávamos
angariar novas formas de financiamento. Para isso, foi fundamental
a “profissionalização” da gestão e da contabilidade associativa
e o início do processo que nos havia de levar à consagração de
“instituição de utilidade pública”… Era necessário dar às instalações
de todos os alunos um ar mais limpo e mais digno, pelo
que se procederam a extensas obras de renovação no Salão de
Alunos e nos corredores da AEFMUP!!! A par disto, passamos a
disponibilizar a todos os alunos a possibilidade de uma sala de
estudo (a sala Prof. Doutor Pinto Machado) aberta 24h por dia!
Também importante, foi a “refundação” de algumas actividades
históricas da AEFMUP e o início de algumas experiências inovadoras,
dedicadas, especificamente, aos alunos da FMUP, como:
• Reedição do “Medicina Radical”
• Realização das “JERM” (Jornadas de Encontro à Realidade
Médica)
• Início das “Campanhas de Rastreio de HTA e DM2”
Importa destacar o imediato sucesso destas actividades, traduzido
pelo facto de se “esgotarem” as vagas em poucas horas,
aliado ao facto de serem economicamente sustentáveis. E, assim,
chegamos tranquilamente ao segundo mandato... Numa altura
em que não havia alternativa nem alternância democrática, resolvemos
fazer uma campanha eleitoral mediática e que, definitivamente,
aproximasse os eleitos dos eleitores... Contra todas
as expectativas... fomos eleitos! Era, então, altura de pensarmos
na expansão e de pormos a AEFMUP a olhar para o futuro... Era
o ano do XX aniversário e não podíamos deixar passar a ocasião.
• Fizemos uma semana inteira de festa
• Criamos o actual logótipo e imagem da AEFMUP, renovando o
que vinha já “gasto” dos anos 80
• Reformamos o corpo editorial e a estrutura dirigente da AR-
QUIMED
• Renovamos as “Sebentas da AEFMUP” e regulamentamos a
utilização dos espaços e materiais da AE
• Organizamos o ENEM em Santiago de Compostela
• Consolidamos as contas, remodelamos os espaços comerciais
e multiplicamos as actividades oferecidas aos alunos...
• Nem tudo foram rosas: fomos “expulsos” do Parque de Estacionamento,
não sem antes mostrarmos bem alto a nossa indignação
(quem se lembra do “Jaime do Parque”?)
E, finalmente, voltamos a virar-nos para a Academia, com
participação activa na FAP, na Queima das Fitas, com apoio aos
Grupos Académicos...Penso que conseguimos um bom equilíbrio
entre a aproximação aos nossos “sócios” e a proximidade à Faculdade,
Ordem dos Médicos, Ministério da Educação, Hospital,
ANEM, FAP, IFMSA... Não posso deixar de relembrar todos os que
participaram nesse projecto, todos eles foram importantes para
manter este projecto que continua a ser a AEFMUP.
Ana
Calafate
Tive a honra e o privilégio
de encabeçar
a mítica Lista E no
ano lectivo 2002/2003, composta
por algumas das pessoas
mais inspiradoras com quem já
trabalhei. E foi assim que fui
eleita Presidente da AEFMUP,
a primeira mulher a representar
esse cargo. E este pormenor,
que parece pequeno fait-divers,
foi mais uma prova da pluralidade
da AEFMUP, sempre
inclusiva, igualitária, onde se
dava voz a opiniões muito diversas,
geradoras de discussões
exaltadas nas longas reuniões
da Direção... Foi, talvez, de um
modo inconsciente que aceitei
esse desafio - tinha sido vice-
-presidente e os presidentes
anteriores representavam o
cargo com tal mestria que parecia
fácil. Vínhamos de um longo
braço de ferro com a administração
do hospital, interessada
em retirar “privilégios” aos
estudantes - acesso ao parque
de estacionamento, acesso ao
corredor do 01.
Eram tempos de mudança
na Faculdade - após a revisão
dos estatutos da UP, estávamos
em plena discussão da revisão
dos estatutos da Faculdade.
Falava-se na criação da figura
do Diretor da Faculdade,
tão defendida pelos alunos, do
aumento dos poderes do Conselho
Pedagógico, da reforma
da Assembleia de Representantes
para tornar a Faculdade
mais ágil, mais competitiva,
mais coesa.
Era deste processo transformativo
que os alunos queriam
ser parte integrante, voz
ativa e construtiva. Uma participação
que se queria através
da direção da AEFMUP, mas,
sobretudo, através da participação
de todo o corpo estudantil,
incitando-os a que, no seu
dia-a-dia, exigissem condições
dignas para a sua aprendizagem,
com melhoria do rácio
docente-discente, melhoria
dos materiais e equipamentos
pedagógicos, numa postura de
co-responsabilização na sua
gestão. Se tínhamos conseguido
uma sala de estudo nos
anos anteriores, reivindicamos,
nessa altura, instalações físicas
que permitissem albergar
o crescente número de alunos.
Um edifício novo - e que acabou
por ser construído!
Do dia-a-dia na AEFMUP recordo
tudo com a saudade que
o tempo permite - a sala da direção,
o salão, viver horas a fio
no corredor do 01. As reuniões,
as atas, as votações. A nossa
Lina, que viu nascer a AEFMUP e
a acompanha com uma dedicação
estoica, vendendo bilhetes,
guardando pastas, sinalizando
alunos que estão mais sós. A
Marta, a Luísa. A Teresa e a reprografia,
o Faustino e a Medisa.
O Sr. Jacinto e o engraxador de
sapatos na entrada do bar do
01. A Tuna, a Tuna Feminina, o
Grupo de Fados. As comissões
de curso. O Baconal e a recepção
ao caloiro. A Comissão de
Praxe. A FAP e a Organização da
Queima das Fitas. Os Erasmus
que começavam!
A ANEM, os CEMEFs, os estágios
internacionais. O ENEM
(e nós que tínhamos organizado
novamente Santiago!). Os
Óscares, o Sarau cultural, o Jantar Internacional.
Tudo se interligava, nesta óptica
inclusiva de onde a AEFMUP se ergueu - a
associação era de todos e feita por todos.
E esse é o verdadeiro legado da AEFMUP -
uma associação de estudantes para todos
e com uma grandiosidade digna de uma
faculdade como a FMUP.
Viva a AEFMUP!
10 ZERO UM
ZERO UM
11
Lara
Queirós
Ricardo
Rocha
Pela primeira vez em 179 anos, a Faculdade
de Medicina tem, estatutariamente,
um Diretor, figura unificadora da casa.
Merecedor de toda a nossa confiança, poderá e deverá
contar com o nosso contributo na defesa desta
casa e de todos os seus membros. Desta forma, continuaremos
a vencer quaisquer desafios. E os desafios
que se nos deparam são preocupantes. Diz-se
que há falta de médicos. Com razão: a percentagem
de mulheres em Medicina é cada vez maior. A falta
de médicos em Portugal é apenas aparente: o problema
está na má distribuição.
No ano em que a FMUP completou
190 anos de história,
foi tempo de celebrar o seu
passado e projetar o seu futuro: a instituição,
as pessoas e os seus ciclos. Quanto
às pessoas, cumpriu-me deixar também
uma palavra de reconhecimento e gratidão
para com o pessoal não docente
desta Faculdade, pela primeira vez representado
de viva voz na Cerimónia. Sendo
o início de um novo ciclo reitoral e na direção
da FMUP, houve espaço para deixar
mensagens a ambas as instituições.
No que respeita à Universidade, ma-
Não concordamos com a formação de médicos para
o desemprego. É um processo longo e muito caro. Além
disso, com as atuais condições físicas e de recursos humanos,
as faculdades não conseguem aceitar mais alunos.
Não esqueçamos: é suficiente haver uma faculdade de
Medicina por cada dois milhões de habitantes. Já temos
sete. A abertura das duas últimas escolas médicas há 3
anos implicou a transferência de recursos humanos das
existentes. O nosso principal objetivo é melhorar as condições
de aprendizagem. Tendo uma visão única, transversal,
da Licenciatura, lamentamos que o lugar dos alunos nos
órgãos de gestão seja questionado. O associativismo da
FMUP sempre se pautou pela maturidade e dedicação. Não
aceitamos ser transformados em meros clientes do ensino
superior. Pagando cada vez mais. Com todas as dificuldades,
é admirável mantermos o excelso nível de qualidade
desde 1825. Continuemos todos a oferecer a esta casa o
melhor de nós.
Parabéns a todos! Viva a Faculdade!
Diana
Rodrigues
nifestei-me contra o aumento
do valor das propinas, atendendo
à realidade dos estudantes,
manifestando também disponibilidade
para a discussão de
soluções. Contudo, foi também
momento para louvar o amplo
trabalho desenvolvido nos meses
anteriores, no âmbito dos
Serviços de Ação Social, resultado
de uma mudança da Direção.
Voltando à FMUP, não
passou ao lado o perpetuar da
desadequação do número de
estudantes, que se afigurava
como um entrave à excelência
da formação. A implementação
da Reforma Curricular foi também
uma questão abordada.
Concordando com os princípios
e com o espírito de mudança
inerente, foram sinalizados alguns
problemas que se foram
perpetuando, muitas vezes, com
soluções demasiado simples,
resultado de posturas de bloqueio
ou passividade.
Sendo dia de festa, foi com
enorme alegria que assinalei
também o ressurgir altamente
simbólico do Jantar de Comemoração
do Dia da FMUP e
agradeci ao convidado cuja presença
tanto nos honrou: o Prof
Doutor Paulo Cunha e Silva.
Faz parte da minha formação
enquanto pessoa
o interesse por questões
cívicas e essencialmente, questões
políticas. Fez, por isso, sentido que
no final de 2003, sem fazer a mais
pequena ideia do que se tratava,
tivesse sido eleito presidente da
Comissão de Curso do 1º ano. Sublinho,
não fazia a mais pálida ideia
do que era preciso fazer enquanto
tal.
Fui descobrindo ao longo do
ano… Não fiz nada do qual me orgulhe
particularmente, mas pude
contribuir de alguma forma para
representar os “caloiros”, organizar
calendários, discutir e resolver
problemas pedagógicos e promover
algumas das festas que ainda
hoje recordo com saudade. Assim
começou uma parte fundamental
da minha vida académica, a paixão
e sobretudo o “vício” da representação
associativa. No ano seguinte,
o Presidente Miguel Azevedo, convida-me
a fazer parte da direcção,
no departamento de Educação
Médica, permitindo-me perceber,
de facto, o que era a essência da
associação de estudantes da FMUP.
Mas o momento marcante surge
no final deste ano de 2005. A democracia
chegou à AEFMUP após
anos de lista única. E os herdeiros
da lista única (a lista E), na qual eu
me incluía orgulhosamente, aprendem
uma dura lição. Perdemos as
eleições.
Como é que foi possível que
os estudantes não nos tivessem
escolhido, nós que eramos aqueles
que tinham experiência, os que conheciam
os cantos à casa, os que
sabiam como se faziam as coisas?
Fácil. Eles eram melhores, e os
estudantes são sábios. Souberam
escolher. Isto mudou a face da AE,
mudou a forma como se relaciona
com as pessoas, incutiu nos seus
dirigentes um respeito pela democracia
e pela vontade dos estudantes,
valores históricos fundamentais
da nossa associação, mas que
estavam algo esquecidos. Espero
sinceramente que estes valores se
mantenham hoje em dia nesses
corredores.
Voltei a integrar a AE em 2007,
a convite do então Presidente Roberto
Pinto, contra quem tinha
anteriormente perdido as eleições.
Mais uma lição, a humildade de
quem ganha e de quem perde. Aí
todos os que quiserem trabalhar
em prol dos estudantes são bem-
-vindos, independentemente das
suas “ascendências políticas”. Em
2008 fui então presidente da direcção
da AE.
Um ano que recordo com saudade,
marcado por obras na sala de
estudo, no salão e no espaço exterior
que hoje em dia é o espaço
dos fumadores (e cuja ideia surge
precisamente da proibição de fumar
em espaços fechados), marcado
por questões pedagógicas,
questões estatutárias e pelo novo
Regime Jurídico das Instituições de
Ensino Superior.
Corria ainda nesse ano o processo
de adequação a Bolonha.
Não escondo o orgulho do papel
que tive nessa adequação, em
conjunto com muitos outros.
A colegas como o Roberto
Pinto, Bernardo Gomes, Alexandre
Sousa, Rui Reis, se devem as vantagens
inegáveis que a FMUP conservava
face a outras faculdades
e que espero que ainda conserve.
Foi um ano fraco em termos académicos
para mim, confesso. Estudei
pouco e mal. Mas ganhei competências
que ainda hoje me são
úteis todos os dias.
A AEFMUP foi para mim sempre
uma segunda casa, ainda hoje
o é. Não de facto, até porque infelizmente
já não consigo ir aí tanto
quanto desejaria. Mas é a segunda
casa porque nela está também a
minha segunda família. Muitas noites
lá passei a discutir os pormenores
mais ínfimos dos estatutos da
faculdade, todas as leis, decretos-
-lei e portarias, os regulamentos,
as visões e estratégias políticas,
a organização da AE, enfim, tudo.
Mais uma lição, na AEFMUP tudo
se discute, tudo se conversa e em
tudo se procuram consensos.
No final do meu percurso académico
passei ainda pela Federação
Académica do Porto, enquanto
vice-presidente e enquanto presidente.
Mas garanto-vos que não há
cargo nenhum que tenha tido do
qual me orgulhe tanto como de ter
tido a honra de poder representar
os estudantes da FMUP.
12 ZERO UM
ZERO UM
13
Hélio Alves
Na viragem da década, a AEFMUP
vivia uma realidade muito distinta
da actual. Atravessámos nesses
anos uma tremenda crise económico-financeira,
que necessariamente se repercutiu
nos estudantes e nas suas famílias, pelo que
um dos principais focos desses mandatos foi
a acção social (directa e indirecta), com vista
a salvaguardar o aproveitamento académico
de todos. A nível nacional, as principais
preocupações (discutidas acaloradamente
em RGAs com o Salão de Alunos tão cheio
como nos famosos Churrascões) prendiam-se
com a necessidade de implementação de um
novo modelo de Prova Nacional de Seriação,
a inclusão da média de curso e a sua forma
de normalização no acesso à especialidade,
a criação de novos cursos de Medicina (que,
por pressão estudantil junto do Conselho
Geral da U. Porto, acabou por culminar no
encerramento do curso de Aveiro) ou a discussão
do novo Regulamento do Internato
Médico.
Também a nível desportivo se atingiu a
excelência característica da mui nobre, com
a equipa de voleibol feminino da FMUP a
conquistar os Campeonatos Nacionais Universitários
e a alcançar um honroso 3º lugar
nos Europeus. Mas mais do que tudo o que
se possa escrever ou contar, pertencer à AE-
FMUP é uma experiência inesquecível. Esta
casa, agora com 40 anos, é uma verdadeira
Educadora: generosa, definidora de carácter,
transmissora de princípios e valores que mar-
cam todos os que por ela passam, e que, na
tentativa de “eternizar a ilusão de um instante”,
a levam consigo para a vida.
A própria FMUP encontrava-se num período
de reorganização, quer estrutural, quer
pedagógica. Decorrente da introdução do
regime fundacional da U. Porto, houve uma
revisão estatutária da Faculdade e a necessidade
de implementação de uma nova organização
em Departamentos académicos e
não académicos; por outro lado, eram já evidentes
os sinais de esgotamento do plano de
estudos do MIMED, e davam-se os primeiros
passos no sentido da implementação da Reforma
Curricular de 2013 e do novo Regulamento
Pedagógico. Foi também nesses anos
que se concluiu o projecto do novo edifício da
Faculdade (CIM), que constituiu um desafio
para a AEFMUP na tentativa da manutenção
do sentimento de pertença e da unidade do
corpo estudantil, evitando a sua segregação
em edifícios distintos para os ciclos básico e
clínico. Nesse sentido, a AEFMUP tentou dinamizar
a forma como comunicava com os estudantes,
numa altura em que se assistia ao
dealbar das redes sociais. Para isso, e como
sempre, também muito contribuíram todas as
actividades que a AEFMUP desenvolve com o
intuito de complementar a vivência académica
dos seus estudantes, quer do ponto de vista
mais formal e científico, com a organização
do Congresso Nacional de Educação Médica,
do 1º Curso de Cuidados Paliativos ou a dinamização
da revista científica dos Arquivos de
Medicina, quer do ponto de vista mais lúdico,
com a criação das primeiras edições do FMUP
Music Fest, Noites de Tasco, Jantar Regional
ou Medicina vai a Banhos.
Além da tradicional e inestimável articulação
com todos os Grupos Académicos da
casa, foi igualmente nestes mandatos que se
assistiu a uma maior participação espontânea
dos estudantes em novos grupos informais,
com o apoio da AEFMUP à criação do
Quórum (Fórum Político), do CineFMUP ou
do Grupo de Teatro Bastante Amador (actual
GATU).
Parabéns AEFMUP!
Francisco
Sousa Vieira
Cumprem-se 40
anos de AEFMUP.
Agradeço a honra
de a ter liderado num tempo
de grande agitação e de
muita transformação. Nesses
mandatos de 2016 e 2017,
assumimos uma missão que
nos absorveu de responsabilidade,
tal foram o desafio e o
privilégio: repensar a AEFMUP
no espaço e no tempo.
No espaço, afirmando a
associação como uma casa
de ideias mas sobretudo de
ações, assumindo a força da
nossa matriz perante as instituições
da cidade, da região
e do país. Mas também na defesa
da nossa casa-comum de
partilha e convivência - o 01
-, promovendo o sentido de
pertença a este espaço que
Duas dimensões que marcaram
a passagem pela
AEFMUP e me ajudaram
a crescer. A primeira prende-se com
a profissionalização da gestão e a
procura da sustentabilidade económico-financeira.
Nesse âmbito, a AEFMUP sofria
na altura de uma crise económico-financeira
grave, colocando em causa a
sua estrutura. A capacidade da equipa
na altura ter tido uma visão de médio-
-longo prazo, ter procurado as escolhas
tecnicamente mais fundamentadas,
elaborado um plano de negócios
(ainda que rudimentar) e de uma forma
se quer vivo, digno e organizado.
No tempo, destacando
três atitudes e momentos. A
reconciliação com o passado
- simbolizada pelo Pátio dos
Pensadores em homenagem
ao Professor Daniel Serrão, figura
eminente do pensamento
livre a quem o tempo fez
justiça. A consciência do presente
- marcada pela criação
da Sala de Estudo Professor
Daniel Moura, que nos desperta
para a inexorabilidade
do tempo e para aquilo que
com este fazemos.
Fernando
Araújo
muito profissional (pelo menos
empenhada) o ter implementado,
permitiu a sua recuperação,
a credibilização da instituição e
a sua preparação para o futuro. A
capacidade que tivemos de fazer
acontecer, penso que foi o embrião
da vontade de poder voltar
pessoalmente a exercer funções
de gestão. A segunda dimensão
foi a luta pela representatividade
dos interesses dos alunos
de medicina na Universidade do
Porto. Com a promulgação da lei
da autonomia universitária, foi
aprovada a primeira Lei Orgânica
da Universidade do Porto e os
primeiros Estatutos da Universidade
do Porto, neste âmbito. A
E a assunção do futuro com uma conquista
intangível - a do espírito de urgência, o substrato
intelectual incorporado pelos estudantes desta
faculdade, em dar novos mundos ao mundo, na
ciência e na vida. Mas se o passado é também
de orgulho e o presente de celebração, o futuro
deve ser de coragem e ambição.
De todos aqueles que fazem parte desta história,
é certo, mas sobretudo dos atuais estudantes
de Medicina, pois são esses que vão à frente,
hoje e sempre.
Parabéns a todos!
possibilidade de poder participar
nesta discussão e ter sido eleito
para o primeiro Senado Universitário
do Porto (por Medicina),
foi algo marcante, por reconhecer
a importância da inclusão
nestes órgãos, na construção de
projetos com impacto, que mudaram
a forma como a academia
se construiu e é hoje uma realidade.
14 ZERO UM
ZERO UM
15
Manuel
Pizarro
Na segunda metade dos
anos 80 a Associação
de Estudantes da Faculdade
de Medicina da Universidade
do Porto funcionou para
mim coma uma segunda casa.
Um espaço de fortalecimento
de relações humanas profundas
e duradouras, muitas das quais
permanecem fortes até aos dias
de hoje. Uma oportunidade para
estudar os problemas da profissão,
do sistema de saúde e
do país que nos qualificou para
sermos melhores profissionais e
Do 40° Aniversário da AEFMUP
Como atual Diretor da Faculdade
de Medicina da Universidade do
Porto, não poderia deixar de aqui
saudar o 40° aniversário da constituição da
sua Associação de Estudantes, a AEFMUP!
Mas, a razão porque o faço, não é, de todo
ou apenas, uma mera razão de circunstância,
mas antes o justo e inequívoco reconhecimento
do elevado mérito académico e
social da sua ação ao longo destas quatro
décadas. De facto, quero aqui testemunhar
o enorme empenho que sucessivas gerações
de estudantes da nossa Faculdade têm
vindo a demonstrar, através da AEFMUP e
dos diversos grupos científicos, recreativos,
culturais e solidários a ela associados.
cidadãos mais atentos. Um desafio
à combinação harmoniosa
entre o estudo, a vida pessoal e
a participação cívica. A AEFMUP
constitui uma parte indelével da
minha vida e, não tenho dúvidas,
moldou de forma positiva parte
importante do que eu sou.
Fico feliz por manter, até aos
nossos dias, o mesmo espírito
combativo e construtivo.
Altamiro
Pereira
Empenho esse que se tem
vindo a traduzir na melhoria das
condições pedagógicas, na promoção
da investigação, da ciência
e do profissionalismo e até
no domínio da inter-ajuda ou da
solidariedade social da FMUP,
envolvendo doentes e pessoas
carenciadas.
Na verdade, a AEFMUP tem
sido capaz de motivar, programar,
gerir e, sobretudo, executar
inúmeras atividades estudantis
que, sendo tantas e tão significativas,
não caberá aqui uma
menção mais específica. Todavia,
tendo tido o privilégio de
já ter conhecido e privado com
três dos seus mais recentes presidentes,
o Nuno, o Henrique
e a Margarida, não posso deixar
aqui de os mencionar, bem
como de homenagear o dedicadíssimo
e competente trabalho
das equipas da AEFMUP que
representaram ou representam,
em prol da Faculdade e de todos
os seus Colegas. Assim, a
todos os membros e dirigentes
da AEFMUP, já passados ou
presentes, creiam-me, pessoal e
institucionalmente, muito reconhecido,
pois sem vós a FMUP
não seria o que hoje é: uma
Faculdade que ambiciona ser
sempre um Exemplo, dentro da
Universidade do Porto e no País,
de promoção e de prática de
valores de natureza humanista,
de defesa da verdade e do rigor
científicos, de prossecução de
princípios éticos e da compaixão
pelos doentes, de ensino,
de investigação, de assistência
e de inovação em Saúde. A bem
da Medicina!
Tive a honra de integrar a Lista A
no 2º ano do MMED. À data do
telefonema que recebi do Nuno,
o entusiasmo foi imediato. Não fazia a mais
pequena ideia da jornada que se seguiria e
do rumo que a minha vivência na FMUP viria
a tomar.
Em 2019 fui, então, Departamento Cultural
e Recreativo, ao qual se seguiu um
mandato no Departamento Académico, Pedagógico
e de Educação Médica, em 2020,
depois do qual fui Vice-Presidente Externa,
em 2021, culminando na equipa que tenho
este ano o prazer de liderar.
Se hoje a AEFMUP se vangloria de ser
grande é por, ao longo destes 40 oficiais
anos, e tantos outros oficiosos para trás, ter
sido encabeçada e composta por gigantes.
É com irreverência que nos destacamos
enquanto estrutura na Academia, na Medicina,
no Ensino Superior e no País. Foi com
profissionalismo e brio que nos tornamos
uma mais-valia para quem trabalha connosco,
uma força simbiótica para os nossos
parceiros.
Foi graças à nossa competência e trabalho
sério e rigoroso que nos atribuíram
credibilidade.Tudo isto, assente num pilar
fundamental: a nossa independência. Dela
depende toda a nossa ação.
Temos, neste momento, a felicidade de
poder dizer que as relações institucionais
e sociais com os principais envolvidos no
ecossistema basilar em que nos embebemos
são por demais excelentes. A abertura
para o diálogo, construtivo e reivindicativo,
a competência e responsabilidade que nos
reconhecem, o olhar e atuar em conjunto no
aprimoramento pedagógico e científico, no
sentido da melhoria do ensino e aprendiza-
Margarida
Albuquerque
gem, a preocupação partilhada
pelas condições infraestruturais
são o quid pro quo vigente com
a direção de curso, a direção da
FMUP e a administração do Hospital
de São João.
Conscientes da atuação que
podemos ter a diversos níveis
em prol dos estudantes, começamos
a ação deste mandato pelos
espaços que sabemos tão importantes
para quem diariamente
habita o 01 – renovamos o salão
de alunos, do chão ao teto,
do palco ao balcão, e ainda lhe
demos um toque comemorativo,
sob a forma de logótipo edição
aniversário, na parede, em vinil.
Estes 40 anos foram feitos
de valores e ideais. De profissionalização
da gestão, brio político
e representatividade dos interesses
e das pessoas. De batalhas e
de conquistas, como recordam
com mais fidelidade os testemunhos
dos meus antecessores
nesta exposição. Muito mudou
desde ’82, mas a inquestionável
prioridade e grande força motriz,
essa, permanece a mesma: os
estudantes. A eles, aos passados,
aos atuais e aos que ainda virão
pertence esta história!
Muitos dos problemas antigos
continuam, com algumas
nuances, a ser batalhas inacabadas
contemporâneas – o planeamento
dos recursos humanos em
medicina, a necessidade de reformar
o sistema de ensino médico,
a premência pela qualidade
formativa pré e pós graduada, o
numerus clausus, a abertura de
novas escolas de medicina.
Revivamos a nossa história
para perspetivar audaciosamente
os próximos passos. Se o passado
está cumprido e alicerçou a
qualidade que hoje temos nesta
estrutura associativa de referência
interpares, o presente envolve-se
de celebração, orgulho e
vontade de fazer sempre mais,
sempre melhor - lançar as bases
para fazer cumprir o futuro, com
a ambição e proficiência que tão
bem nos tem caracterizado.
É para esta direção uma
imensa honra celebrar o 40º aniversário
da AEFMUP. Pertencer
a esta casa é uma experiência
indelével e indescritível. Diariamente
molda quem somos, os valores
que reforçamos, o carácter
que adquirimos, o que aprendemos
e quem nos tornamos. Se as
horas na sala da direção ou em
representação são infindáveis, se
o investimento é contínuo, a dedicação
e responsabilidade são
profundas, a recompensa, essa,
acredito ser imensurável.
E uma certeza tenho: levarei
daqui para a vida muito mais do
que alguma vez conseguirei dar.
Viva a AEFMUP, Viva Medicina!
16 ZERO UM
ZERO UM
17
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Dr.
LUÍS
PORTELA
Luís Portela é licenciado
em Medicina pela
Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto,
tendo exercido atividade clínica
no Centro Hospitalar Universitário
de São João e lecionado
Psicofisiologia durante 6 anos.
Após esse período inicial da sua
vida profissional, passou a dedicar-se
à gestão da empresa familiar,
a BIAL, da qual assumiu a
presidência executiva de 1979
a 2011, momento em que passou
a presidente não executivo
da mesma até se retirar da vida
profissional em 2021. Paralelamente,
foi presidente do Health
Cluster Portugal e do Conselho
Geral da Universidade do Porto,
vice-presidente da Fundação
Serralves e membro da Direção
da COTEC Portugal.
Publicou um total de 10 livros
até à data e, de entre uma
vasta lista de condecorações,
podemos destacar as de Comendador
da Ordem do Mérito,
Grã-Cruz da Ordem do Mérito,
Grã-Cruz da Ordem da Instrução
Pública, concedidas pela Presidência
da República, quatro
doutoramentos Honoris Causa
pelas Universidades de Cádis,
Porto, Coimbra e Lisboa e várias
outras medalhas e prémios concedidos
por diferentes municípios
e instituições científicas.
Neste momento dedica-se à
Fundação Bial, criada em 1994
com a missão de incentivar o
estudo científico do ser humano,
tanto do ponto de vista físico
como espiritual, e a projetos
pessoais.
Doutor Luís Portela
Dada a história da sua família, porque escolheu o
curso de Medicina e não o de Farmácia?
Constituição da Fundação BIAL, 1994.
Eu escolhi a medicina por
duas grandes razões. A primeira
foi gostar de ser útil ao outro,
aos seres humanos, às pessoas
em geral, e achava que a prática
da medicina me ajudava a
ser útil, a ajudar as pessoas que
tivessem problemas de saúde,
problemas físicos ou psíquicos.
Era uma maneira de eu poder
ser útil. Não queria ir para farmácia
ou para economia, que
eram as áreas para as quais o
meu pai gostaria que eu fosse,
porque não me sentia vocacionado
para isso. O mundo empresarial
não me dizia nada. Não
gostava de lidar com números
e mesmo a parte da farmácia
também não me atraía. A outra
razão para a escolha do curso é
que desde jovem colocava algumas
questões existenciais...
desde jovem que eu achava que,
quer na área das neurociências,
quer na área da parapsicologia,
havia muitas coisas por explicar
- se ainda hoje há, naquela altura,
há mais de 50 anos, mais
havia – e, portanto, eram áreas
que eu gostava de, se pudesse,
um dia vir a investigar e ajudar
a esclarecer.
ZERO UM
19
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Que memórias dos tempos de estudante e docente universitário guarda com mais
carinho? O que lhe ficou de melhor desse período da sua vida?
Eu acho que na faculdade há, por vezes, momentos
mais difíceis. Lembro-me de estar a estudar algumas
coisas e a pensar: “Mas isto para que serve? Não vai
servir para nada...” Quando estava a estudar anatomia
e tinha de estudar os ossinhos da mão, os ossinhos do
pé, as facetas que tinham e com o que estavam interligados,
às vezes ficava desesperado porque eu nunca
quereria ir fazer ortopedia, não quereria fazer nada ligado
a esse estudo. Mas depois, de facto, fui percebendo
que aquilo que de melhor aprendi na faculdade foi a
maneira de aprender. Aprendi a aprender. E acho que da
Faculdade de Medicina do Porto eu saí preparado para
procurar aprender fosse o que fosse na vida, nomeadamente
na área da saúde, mas até mesmo extrapolando
para fora da área da saúde. Como disse há pouco aos
seus colegas, o meu curso de medicina foi absolutamente
essencial para a carreira que eu fiz como presidente
da Bial, porque me deu uma sensibilidade para as
Sei que, desde cedo, desenvolveu interesse pela área
da parapsicologia e psicofisiologia. Esse interesse
foi incentivado durante o seu percurso académico?
No meu tempo, eu sentia
que não havia grande interesse
no estudo das questões da parapsicologia.
As pessoas tinham
alguma curiosidade como seres
humanos, mas, como profissionais
de saúde, não havia
grande interesse para se dedicarem
a esse estudo. No entanto,
curiosamente, há muitas
vezes a ideia de que nos meios
universitários se renega um bocadinho
a parapsicologia, se renega
fenómenos que ainda não
estão explicados... e, de facto,
na minha experiência, isso não
aconteceu. Enquanto estudante,
as pessoas sabiam que eu tinha
esse interesse e respeitavam
isso; ninguém me aborrecia por
causa disso. Quando eu ganhei
uma bolsa para ir para Cambridge,
ia trabalhar na área da
psicofisiologia, mas o professor
que me ia apadrinhar o doutoramento
dava-me a esperança
de, se as coisas corressem bem,
no final do doutoramento eu
poder desenvolver uma linha
de investigação na área da parapsicologia.
Isso era bem aceite,
os professores aqui não me
punham qualquer obstáculo em
relação a isso. Depois, a experiência
que eu tenho ao longo
destes anos em que a Fundação
Bial apoia bolsas de investigação
é que, de facto, essa
investigação que hoje é feita
em universidades europeias e
norte-americanas – aquilo que
nós apoiamos são projetos de
investigação desenvolvidos em
universidades, quer europeias,
quer norte-americanas – é
respeitada. Os neurocientistas
respeitam isso e têm curiosidade.
Há muitas universidades
europeias e norte-americanas
que têm seminários e cadeiras
de parapsicologia, departamentos
de parapsicologia... e em
Portugal, que eu saiba, isso não
existe. Apenas na Universidade
de Lisboa há um laboratório,
questões da saúde, uma sensibilidade para as questões
da investigação que, de outra maneira, não teria. Desse
período de faculdade, enquanto aluno, foi isso que me
ficou de melhor.
Enquanto docente, o que eu guardo é uma relação
muito boa com as pessoas. Eu tinha prazer em comunicar
com os alunos, mas também percebia que as minhas
aulas eram das mais frequentadas e eu gostava muito
disso. Depois, na Faculdade de Psicologia, cheguei a dar
aulas teóricas e a ter 200 alunos e conhecia-os todos
pelo nome. Isto quer dizer que havia uma relação minha
com eles e deles comigo. Isso foi, para mim, um processo
fantástico: o modo como eu me sentia útil a colaborar
com aqueles jovens para eles poderem desenvolver
as suas carreiras, poderem aprender conhecimento, foi o
que mais gozo me deu enquanto professor universitário.
A PARAPSICOLOGIA CENTRA-
-SE NA INVESTIGAÇÃO DE FENÓ-
MENOS QUE NÃO PODEM SER
EXPLICADOS PELOS PRINCÍPIOS
OU CONHECIMENTO CIENTÍFICO
JÁ DEFINIDOS. PODE EXPLORAR
TEMAS COMO A CONSCIÊNCIA, VI-
DAS PASSADAS E REENCARNAÇÃO,
SENSIBILIDADE, SEXTO SENTIDO,
INTUIÇÃO OU TRANSMISSÃO DE
PENSAMENTO.
chamado LIMMIT, que estuda a área da parapsicologia
e acho que foi muito interessante a sua constituição.
Nas outras universidades, que eu saiba, não há nada
constituído. No entanto, se me pergunta qual é a linha
de tendência, eu acho que é de uma abertura progressiva.
Aquilo que eu percebo ao longo dos 30 anos de
apoios com bolsas de investigação é que, na Europa,
nos Estados Unidos, no mundo, há uma abertura progressiva
às questões da parapsicologia e há como que
um assumir da obrigação dos meios universitários de
procurarem esclarecer de uma forma definitiva o que
é que, de toda essa panóplia de coisas que andam à
volta da parapsicologia, é verdade e o que é mentira,
para que, sob o rigor do método científico, se possam
tirar conclusões e esclarecer a humanidade.
Acha que o estudo da parapsicologia nas
escolas médicas poderá aliviar o peso
que a convivência com a morte constitui
para os profissionais de saúde? E, na
sua opinião, terão os médicos o dever de
estudar mais esta área como meio de diminuir
o sofrimento de quem se encontra
no fim da sua vida?
A parapsicologia tem aparecido nas mais diversas
universidades europeias e norte-americanas muito
associadas a departamentos de psiquiatria ou a departamentos
de psicologia clínica/ psicologia médica,
e eu penso que faz sentido. A investigação faz-se, normalmente,
para esclarecer fenómenos... Por exemplo,
a telepatia, há 30 ou 40 anos atrás, era olhada pelo
canto do olho... as pessoas não aceitavam a telepatia.
Entretanto, foi feita investigação em muitas universidades,
sob o rigor do método científico, e, hoje, a
telepatia é relativamente bem aceite. Há muitas experiências
feitas e, portanto, é uma realidade. Assim,
quando eu falo de investigação, é na tentativa de esclarecimento.
Parece-me que à medida que esse esclarecimento
for sendo feito, algumas ilações devem
ser tiradas. Esclarecimento que será desenvolvido por
experimentação, com base em teorias que terão de
alimentar essa experimentação e, depois, haverá, naturalmente,
algum benefício para os profissionais de
saúde e para as pessoas em geral. Naturalmente, se
um profissional de saúde entender que a morte é apenas
uma mudança de capítulo na vida de uma pessoa,
ele encara isso de forma diferente da que se achasse
que a morte é o fim, o momento em que tudo acaba.
Isso já é um trabalho que poderá ser desenvolvido a
partir dos resultados da investigação em parapsicologia
e que deverá ser trabalhado por psicólogos e
profissionais de educação médica.
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Desde os seus tempos de estudante de
medicina, o que sente que mais mudou no
curso de medicina para melhor e para pior?
Aquilo que tem mudado para melhor, ao longo dos
anos – eu não acho que foi um fogacho, foi algo consistente
ao longo do tempo –, é que os atuais jovens licenciados
saem francamente bem preparados. Saem com
uma preparação teórica e prática que me parece muito
boa. Digo-lhe isto pela experiência enquanto empregador,
enquanto presidente de uma companhia farmacêutica
que tem ao seu serviço algumas dezenas de médicos e
que beneficia dos bons conhecimentos que esses jovens
profissionais apresentam. De resto, deixe-me dizer-lhe
que essa será a razão fundamental pela qual os jovens
médicos portugueses, hoje, saem para o estrangeiro
quando querem e como querem. Pela Europa fora há alguns
milhares de médicos portugueses a trabalhar e isso
só é possível dada a boa formação que têm. Eu acho que
a formação, no meu tempo, era uma formação teórica boa,
mas não era, sob o ponto de vista prático, tão boa como
depois foi sendo desenvolvida ao longo do tempo. Hoje, é
uma formação mais completa.
Que conselho daria aos estudantes que estão
agora a formar-se em medicina?
Curiosamente, contrariando um bocadinho um dos
preletores desta tarde, eu diria que o acaso não existe.
Eu acredito profundamente que as pessoas, quando têm
sentido de responsabilidade, podem planear a sua vida,
ponderar o que querem fazer na vida e depois focarem-
-se naquilo que desenham como os seus objetivos e, com
muita paciência e muita persistência, com muita tenacidade,
com muita dedicação, podem construir e fazer trajetos
muito bonitos. Eu acho que o acaso não existe, que as
coisas não caem do céu... Por vezes parece obra do acaso,
mas, como também foi dito aqui, quando as oportunidades
surgem, nós temos de estar verdadeiramente atentos
e verdadeiramente disponíveis para as agarrarmos.
Em algum momento, durante os seus anos
na Bial, pensou em abandonar o seu cargo
na empresa e regressar à prática clínica ou à
investigação e docência?
Não. Eu devo-lhe dizer, e já tenho dito algumas vezes
na vida, que o meu ambiente ou, como se costuma dizer,
as minhas águas, eram estas. Era a ver os doentes, a dar as
minhas aulas e a fazer investigação que eu me sentia bem
e bem enquadrado. Isso era o meu ambiente. Quer isto
dizer que, ainda hoje, eu tenho alguma nostalgia por não
ter seguido esse percurso. Também devo dizer que optei
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
por fazer um percurso diferente em defesa da empresa
da família, pelo grande respeito e admiração que tinha
pela obra do meu avô e do meu pai. Fiz isso com muito
carinho, com grande dedicação... e acho que fiz bem.
Procurei dar o meu melhor, esforçar-me o mais possível
para o fazer. Hoje, olho para trás e acho que fiz bem...
e fui relativamente feliz, as coisas foram acontecendo
com satisfação minha e, portanto, ao longo de toda a
vida, mantive a nostalgia – “daquele lado teria sido ainda
melhor”, pensava eu – mas fui assumindo responsabilidades
progressivas na Bial que me fizeram achar que
nunca mais haveria espaço para voltar atrás.
O QUE NOS ENSINA UMA
PANDEMIA
Professora Doutora
Raquel Duarte
in gov.pt
O Doutor Luís é adepto da prática de meditação.
Ao longo dos anos, quais os aspetos
nos quais essa prática mais o ajudou?
Essa é uma pergunta fácil. Eu acho que a meditação
me ajuda a conhecer-me melhor. Ajudou, ajuda e
vai continuar a ajudar a conhecer-me melhor. E ajudou,
ajuda e vai continuar a ajudar a procurar melhorar a
minha prestação enquanto ser humano, enquanto profissional,
enquanto ser espiritual. Ou seja, eu acho que
a meditação é, para mim, uma excelente base para um
processo de autoaperfeiçoamento que eu faço com
muito prazer.
Numa entrevista prévia disse que “é pena
as pessoas, na vida, focarem-se na exacerbação
dos sentidos”. O que queria dizer
com esta frase?
O que eu queria dizer com essa frase é que eu acho
que, durante o século XX e mesmo no início deste século
XXI, as pessoas tornaram-se muito focadas na materialidade
das coisas. Muito focadas no ter, muito focadas
no parecer. Na minha opinião, isso alimenta uma enorme
ilusão que perturba o percurso da humanidade, que
cria enormes desequilíbrios. Eu acho que é uma pena
hoje nós vermos desequilíbrios enormes sob o ponto de
vista económico e financeiro, sob o ponto de vista social,
sob o ponto de vista ambiental. Nós percebemos que
a humanidade vive num jogo de desequilíbrios, quando
me parece possível e desejável que façamos um percurso
mais focados no ser, mais focados nos grandes valores,
mais focados numa postura harmoniosa que nos
permita viver, deixar viver, apoiar a vida à nossa volta.
E, quando olhamos em volta, vemos tantos exemplos de
postura que não é essa. Portanto, a mim, parece-me que
seria útil que as pessoas, em vez de se focarem no prazer
efémero dos sentidos, se focassem no profundo prazer
em apoiarmos os outros, sermos úteis aos outros, apoiarmo-nos
a nós próprios, aperfeiçoarmo-nos, sermos úteis
a nós próprios, procurarmos a melhor versão de nós próprios
e irmos encontrando a mesma com uma profunda
e enorme satisfação... Irmos vencendo as dificuldades da
vida. Eu acho que quando vencemos, quando ajudamos,
quando apoiamos, quando damos, quando nos damos
aos outros, podemos ter uma sensação de felicidade
muito superior à mera exacerbação dos sentidos.
Raquel Duarte é médica pneumologista, Mestre
em Saúde Pública, Mestre em Gestão e
Economia de Serviços de Saúde e Doutora
em Saúde Pública. Foi Diretora do Programa Nacional
para a Tuberculose da DGS e Professora Auxiliar na Faculdade
de Medicina e no Instituto de Saúde Pública da
Universidade do Porto. Foi Vice-Presidente da “Europe
Region Officers of the International Union Against Tuberculosis
and Lung Disease”, bem como Presidente do
Grupo de Tuberculose da European Respiratory Society.
Tem sido uma das especialistas que aconselha o
Governo nas medidas a tomar para o controlo da pandemia
e, após a sua Health Beats Talk, concordou falar um
pouco connosco acerca do seu percurso e da sua opinião
sobre a gestão da crise dos últimos dois anos.
Como foi aceitar o cargo de Secretária de
Estado? Como viveu essa função e quais foram
os principais objetivos e desafios?
Eu sou médica, sou pneumologista e, ainda como
estudante, comecei a dar aulas de epidemiologia e saúde
pública e, portanto, fiz mestrado e a minha carreira
académica na área da epidemiologia e saúde pública.
Entretanto, ainda no decorrer do meu desenvolvimento
profissional e pessoal, achei que não tinha respondido
a tudo aquilo que queria e, portanto, fui tirar um mestrado
em economia e gestão de serviços de saúde. Ao
longo da minha carreira fui tendo várias experiências
como clínica, na gestão de programas nacionais e de
investigação a nível nacional e europeu, como professora
na faculdade... e, portanto, de certa maneira, quando
surgiu esse convite, surgiu numa altura em que, de
facto, tinha uma série de competências – quer na área
clínica, quer na área de epidemiologia e saúde pública,
de políticas de saúde e de economia e gestão de
serviços de saúde - que me permitiam poder aceitar o
convite. Quando se aceita um convite destes, temos que
estar preparados para identificar as necessidades a nível
nacional e tentar encontrar respostas de acordo com
as capacidades que o país tem. Haverá sempre desafios,
sendo sempre uma posição de grande responsabilidade
e, portanto, eu aceitei o convite como uma tarefa que
estava na altura certa para fazer.
Há um programa: a definição das necessidades e
de prioridades, de um plano que é implementado de
acordo com a capacidade de resposta no momento. Essa
é a tarefa: a definição do diagnóstico e de um plano
e a aplicação do mesmo com os recursos disponíveis.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Enquanto estive na Secretaria de Estado houve várias
medidas que foram implementadas como, por exemplo,
em termos de políticas de saúde na área da alimentação,
a redução da publicidade a alimentos com alto teor
Foi uma das especialistas que aconselhou o
governo nas medidas a tomar para travar a
pandemia. O que é que, na sua opinião, correu
melhor e pior e o que é que poderemos
aprender para próximas situações semelhantes?
As pandemias são sempre imprevisíveis, mas, se as
planearmos de forma adequada, conseguimos geri-las
melhor. Por muito tempo, os coronavírus foram identificados
como patogénicos com alto risco pandémico
e, no entanto, nós não estávamos preparados de forma
eficaz para a pandemia a que assistimos. Demoramos
a aceitar que seríamos afetados por estes vírus e, hoje,
temos claramente algumas lições que devemos guardar
deste período de pandemia, que ainda não acabou.
Apesar de o mundo não estar preparado, conseguimos,
na realidade, desenvolver tecnologia que permitiu
manter uma rede de vigilância mais eficaz, muito
apoiada no digital, e evoluímos muito em termos de
organização e utilização destas tecnologias de videoconferência,
partilha de dados... e isso permitiu manter
uma vigilância do que estava a acontecer muito mais
adequada. Houve, claramente, esta lição. Havia muito
trabalho já feito, mas a pandemia obrigou-nos a utilizar
e otimizar o que já existia.
Em termos hospitalares, tivemos uma fase inicial de
grande ameaça em que a pandemia causou uma avalanche
de infeções e, portanto, pessoas a procurar cuidados
de saúde. Claramente, houve necessidade de avaliar
respostas. Era necessário fazer alguma coisa para reduzir
a pressão ao nível da urgência, dos internamentos e,
sobretudo, a nível dos cuidados intensivos. Houve necessidade
de encontrar respostas internas, mas também
procurar parcerias com outras entidades, quer a nível
privado, quer a nível social, de maneira a tentar retirar
doentes dos hospitais e aumentar a capacidade de resposta.
Os cuidados de saúde primários também foram
uma peça fulcral na resposta à Covid19 e conseguiram
reinventar-se com grande celeridade – também foi uma
lição aprendida – em termos organizacionais, com a
criação de agrupamentos de centros de saúde com ligação
aos centros hospitalares e com proximidade ao
serviço de saúde pública e equipas de enfermagem,
desenvolveram horários flexíveis, criaram uma resposta
para a urgência dedicada à Covid e depois as áreas
dedicadas a doentes respiratórios, conseguiram ter uma
linha própria para utentes ainda antes do SNS24 estar
preparado para esta emergência e apoiar até mesmo os
centros de acolhimento que entretanto se desenvolveram.
Agora, era preciso era que esta experiência fosse
sustentável no futuro... mas que esta experiência sirva
para aprender como é que se podem reorganizar e melhorar
a sua estratégia, a sua forma de atuar.
Uma fragilidade que também se mostrou e foi mais
difícil de se resolver foi a resposta da saúde pública. A
resposta da saúde pública no terreno permitiu identificar
as cadeias de transmissão e implementar as medidas
que permitem cortar a transmissão da infeção e
isso é determinante para conter a doença na comunidade.
A verdade é que, face ao enorme número de casos
de infeção, a saúde pública rapidamente ultrapassou
a capacidade de resposta e não foi fácil encontrar
soluções flexíveis, até mesmo com envolvimento dos
intervenientes, para que esse trabalho não quebrasse.
Nós vimos, várias vezes na pandemia, que houve incapacidade
de identificar as pessoas para rastrear e ainda
para implementar as medidas necessárias para cortar a
cadeia de transmissão. Uma das missões, eu diria que
é urgente, é reavaliar a capacidade da saúde pública
e, sobretudo, a necessidade de reorganização e fortalecimento
da mesma, de forma a estar preparada para
outras situações.
Outro ponto que eu diria que foi importante durante
esta pandemia foi o investimento que houve na promoção
da literacia em saúde, porque ganhou um relevo
enorme em todo o lado, junto das pessoas, das comunidades
e organizações, e foi uma importantíssima resposta
e ferramenta da saúde pública. Isto contou com
a colaboração de vários intervenientes, nomeadamente
da parte da ciência, que muito rapidamente se mostraram
disponíveis para tirar todas as dúvidas junto da comunicação
social, mas, sobretudo, da parte dos próprios
meios de comunicação social que logo se encarregaram
de serem os primeiros a passar uma mensagem correta
à população. Vamos precisar muito que esta comunicação
e esta literacia sejam mantidas, porque é preciso
que a população incorpore na rotina uma série de comportamentos
associados à proteção quanto às infeções
respiratórias, não só a SARS-Cov2, e a literacia e comunicação
social não podem faltar. A comunicação que foi
muito eficaz no período da pandemia deve ser mantida.
Uma das coisas importantes em termos da literacia
em saúde é que os profissionais de saúde nunca estiveram
tanto na linha da frente da comunicação como
agora. Não estávamos preparados para isso, portanto,
de certa maneira, de repente, a comunicação saiu do
âmbito dos comentadores tradicionais e jornalistas e
abriu-se a porta à classe científica, aos profissionais de
saúde, que iam explicar de uma forma muito isenta o
que é que estava a acontecer: que vírus era este, como
é que se transmitia, como é que se tratava... O facto
de se ter tirado a política desta comunicação científica
fez com que a população percebesse o que se estava a
passar, mas também criou um desafio adicional à classe
que é: nós precisamos de saber comunicar de uma
forma eficaz. Não basta sabermos tratar os doentes.
Precisamos de saber comunicar, não só com o doente,
mas para a comunidade. Há uma série de situações em
que, de facto, se vê o peso da comunicação. Tu vês a
adesão da população geral à vacinação e vês a adesão
da população infantil à vacinação e houve uma comunicação
mal gerida e vês o efeito que pode ter. Outra
das coisas muito boas que aconteceu na pandemia foi a
utilização regular de ciência de dados, com modelação,
que permitiu o apoio à decisão. Isto foi extremamente
importante, quer a nível nacional quer mesmo a nível
internacional.
Também me faltaria aqui dizer que foi bom a população
perceber que a ciência sozinha não vai controlar
uma pandemia. Temos, de facto, de incluir todos os interlocutores.
Um ponto que eu diria que estivemos mal um pouco
por todo o lado, foi termos estado sempre muito
atentos às variantes que estavam em circulação, cada
país foi tomando as suas decisões em termos do que é
que fazia em termos de controlo das fronteiras, muito
preocupados com as vacinas e como é que era o plano
vacinal de cada uma das populações... e, na realidade,
estamos numa fase em que nós estamos muito ocupados
a discutir a quarta ou quinta dose, quando há muitos
países que ainda tentam aceder à primeira ou à segunda.
Portanto, estamos muito preocupados em controlar
as nossas fronteiras e menos preocupados em garantir
que todo mundo tenha acesso às vacinas que são tão
importantes para voltarmos à nossa vida normal.
Em que problemas acha que devemos voltar,
agora, a focar a nossa atenção?
Nós temos que estar preparados para qualquer
coisa que venha a acontecer. A próxima crise mundial
pode ser de causa infeciosa, mas pode também ser uma
crise associada às alterações climáticas, pode ser uma
crise associada à guerra... e, portanto, aquilo que nós
temos de estar é preparados. Preparados não significa
estarmos preparados para uma coisa exatamente igual
à pandemia pela qual passámos. Estarmos agora a focar-nos
em ter stocks de material necessário para uma
pandemia, mas que não seria necessário, por exemplo,
para uma crise global associada à guerra, seria uma
perda de recursos. Isto significa que devemos perceber
como é que podemos aumentar a resiliência da nossa
capacidade de resposta. Quer isto dizer que temos que
estar preparados para, sobretudo, reduzir os efeitos a
longo prazo da ameaça que nos vier bater à porta. Temos
que perceber o que correu bem e o que correu mal
e quais são as melhores estratégias em termos de organização
para aumentar a nossa capacidade de resiliência
a qualquer ameaça. Uma das coisas que será importante
para a nossa resiliência é sermos capazes de ser
flexíveis. Isto é, nós, profissionais de saúde, temos que
ser flexíveis – uma das coisas que correu bem na resposta
à pandemia foi a capacidade de sermos flexíveis,
nomeadamente no ajuste de recursos de enfermarias e
cuidados intensivos, humanos e técnicos, enquanto não
se aumentou o número de camas nos cuidados intensivos,
humanos e técnicos, enquanto não se aumentou
o número de camas nos cuidados intensivos – e o ser
flexível permite aumentar os recursos que são necessários
de momento e depois voltar a reduzir quando
eles deixam de ser necessários, adaptando os recursos
às necessidades do momento. Isto foi verdade numa
fase inicial, quando nós não tínhamos capacidade de
resposta, quando se alargou a capacidade de internamento
às instituições sociais e privadas, deixando nos
hospitais os casos mais graves e permitindo aumentar
a resposta a doentes não Covid, que ficou muito negligenciada.
Essa capacidade de ser flexível aumenta a
nossa resiliência – reduz o efeito da crise que estamos a
atravessar –, portanto, temos que aprender como é que
podemos ser mais flexíveis e trabalhar em conjunto,
porque, para sermos flexíveis, temos que ser capazes de
trabalhar em conjunto com os diferentes interlocutores,
não só dentro da saúde, mas também fora da saúde.
O que é que na sua opinião deve mudar
prioritariamente no SNS e nas escolas médicas?
Nas escolas médicas, eu diria que é aquilo de que
falava: a capacidade de ser flexível. Temos que perceber,
junto dos profissionais e junto das estruturas, quais
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
são as melhores estratégias técnicas para aumentar a
nossa resiliência, a nossa capacidade de sermos flexíveis
e nos ajustarmos às necessidades que estamos a
enfrentar no momento para reduzir o efeito da ameaça,
quer a curto, quer a longo prazo. Aprender também a
comunicar, aprender a trabalhar em conjunto, não só
dentro do nosso ambiente.
Como é que vê o futuro da prática clínica,
particularmente da Pneumologia? Como
acha que se vão alterar as funções do médico
nos próximos 40 anos? Poderão estas
ser substituídas por sistemas de inteligência
artificial?
algum erro, temos que assumir algum risco de experimentação
para responder às necessidades reais, quer da
população, quer dos profissionais de saúde, sem esquecer
as populações mais vulneráveis e sem esquecer que
tudo isto tem de ser sempre associado a muita cautela
em termos de cibersegurança. Estamos a falar de dados
muito sensíveis, de saúde da população, portanto temos
de ter muito cuidado com a segurança e qualidade dos
dados que são partilhados. Nós temos uma série de ferramentas
digitais que não comunicam entre si e é preciso
também melhorar isso para assegurar a qualidade
dos dados.
Nós estamos ainda a anos-luz daquilo que será o
ideal, mas o médico faz parte desta equação. O médico
e a população, os doentes, fazem parte desta equação.
PERSUASÃO E COMUNICAÇÃO
O desafio de envolver o cidadão no complexo mundo
da Literacia em Saúde
Por Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira
A transformação digital é excelente e foi de uma
utilidade extraordinária nestes tempos de pandemia.
Permite, seguramente, de uma forma muito clara, a ajuda
à atividade clínica. Torna os nossos comportamentos
muito mais rentáveis e eficazes e até muito mais sustentáveis
no tempo. Temos tido uma série de transformações
que são extremamente úteis em termos de monitorização
dos doentes à distância, a telemedicina que
foi tão útil, e de realidade virtual e realidade aumentada
que nos ajudam a treinar sem risco para o doente ou
até mesmo um cirurgião a planear a cirurgia com muito
mais detalhes, reduzindo alguns riscos. Temos aqui uma
evolução que tem sido muito grande, no entanto traz
algumas ameaças.
Nós não podemos esquecer que a relação médico-
-doente é fundamental. Não podemos esquecer que não
basta as pessoas porem num computador as suas queixas
e sintomas para sair um diagnóstico e tratamento. É
necessária a parte humana. Esta transformação digital
é extremamente importante e pode-nos ajudar imenso,
a nós e à população, mas não nos podemos esquecer
também das pessoas potencialmente vulneráveis e que
podem não ter acesso a esses recursos. Por exemplo,
nesta altura da pandemia isso foi posto em causa. Houve
populações vulneráveis que podiam não ter acesso a estas
ferramentas digitais e, portanto, à consulta. É preciso
que essa transformação digital seja fácil e adaptada às
necessidades.
É preciso envolver os profissionais de saúde nessa
transformação, porque somos também as pessoas que
identificam as necessidades dos pacientes. É preciso envolver,
também, as pessoas que utilizam estas ferramentas
digitais no seu desenvolvimento, porque ninguém
melhor do que elas consegue perceber quais são as necessidades
e quais as melhores maneiras de responder
a essas necessidades. É preciso que essa transformação
seja adaptada facilmente de uma forma maleável, muito
flexível, para que qualquer pessoa seja capaz de ajustar
as ferramentas àquilo que é necessário, àquilo de que
precisa, e essa adaptação tem de ser sempre básica e
rápida. Temos, também, que assumir que pode haver
Há alguma mensagem final que gostasse
de transmitir aos estudantes da FMUP?
Eu costumo dizer aos meus alunos e aos meus internos:
façam tudo com paixão, gostem do que fazem.
Procurem fazer sempre aquilo que gostam e façam-no
com paixão. Dediquem-se, porque o futuro da medicina
é vosso.
Tem sido constante a importância atribuída à participação dos cidadãos
na área da saúde desde há muitos anos. De facto, o tópico da
Cidadania em Saúde ganha forma com o aparecimento dos Cuidados
de Saúde Primários, nos finais da década de 70, registando-se como
“o direito e dever das populações em participar individual e coletivamente
no planeamento e prestação dos cuidados de saúde”. [1] É a
partir do movimento da Promoção da Saúde, em 1986, que as práticas
de Saúde Pública foram adquirindo um corpo teórico mais robusto e
assertivo para trabalhar a “centralidade do cidadão”. [2] Ainda assim,
a operacionalização deste conceito tem sido colocada em causa, exacerbando-se
as dificuldades de envolver a pessoa numa verdadeira
decisão partilhada com os profissionais de saúde.
Mas o que é de facto a Literacia em Saúde e
porque é que ela é importante?
O
galopante
interesse
pela área da
Literacia em Saúde
foi evidente nos últimos vinte
anos. A Organização Mundial
de Saúde apresenta uma
definição para este conceito
só em 1998, referindo-se a
este termo como o “conjunto
de competências cognitivas
e sociais e a capacidade dos
indivíduos para acederem à
compreensão e ao uso da informação
de forma a promover
e manter uma boa saúde”.
[3]
Exemplos concretos como
saber interpretar a bula de um
medicamento, compreender a
informação de um diagnóstico
dado por um profissional
de saúde, saber utilizar os diferentes
serviços do Sistema
Nacional de Saúde, ou conseguir
seguir as recomendações
médicas estão incluídas
nas capacidades relacionadas
com a Literacia em Saúde de
um indivíduo. [4]
Um baixo nível de Literacia
em Saúde está fortemente
associado a uma elevada probabilidade
de hospitalização
e readmissão hospitalar, a
uma elevada prevalência de
doenças crónicas, a um difícil
entendimento sobre a organização
dos serviços de saúde
e a uma qualidade de vida
inferior em comparação com
pessoas com níveis considerados.
Diabetes, doenças cardio-
Prof. Dr. Hernâni Zão Oliveira
In Público
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
vasculares ou obesidade são
exemplos de doenças mais
comuns em pessoas com baixos
níveis de Literacia em
Saúde. [5]
De acordo com os resultados
de um estudo da Escola
Nacional de Saúde Pública,
61% da população Portuguesa
apresenta um nível de Literacia
em Saúde geral problemático
ou inadequado. [6]
Num outro estudo de investigadores
nacionais do Instituto
Universitário de Lisboa,
o valor é inferior, mas são
ainda 49% dos participantes
a caracterizarem-se por terem
um nível de Literacia em
Saúde problemático ou inadequado.
[7] Um estudo mais
recente da Direção-Geral da
Saúde, publicado em 2021,
revela que 29,5% da população
tem um nível inadequado
ou problemático de Literacia
em Saúde. [8]
Para além dos impactos
individuais, este panorama
leva ainda à criação de um
maior desperdício de recursos,
com aumento de gastos
individuais e para os sistemas
de saúde. [5]
“The Hope Project” – o desenvolvimento de
um ecossistema promotor de Literacia em
Saúde para a criança com doença oncológica
Como resultado da evolução dos tratamentos em
oncologia pediátrica, assistiu-se a um aumento significativo
nas taxas de sobrevivência em crianças com cancro,
e, consequentemente, a um constante crescimento
na população de sobreviventes. [9] Apesar destes desenvolvimentos,
o cancro pediátrico continua associado
a um amplo espetro de efeitos colaterais relacionados
com a doença, podendo evoluir para consequências crónicas
e resultando num impacto negativo a longo prazo.
A este panorama junta-se, muito frequentemente, o impacto
nos níveis social, psicológico e fisiológico do indivíduo
sobrevivente. [10] Inatividade, comprometimento
da função cardiopulmonar e musculoesquelética, assim
como redução dos níveis de desempenho motor e das
habilidades cognitivas são frequentemente detetados.
[11] Durante os últimos anos, vários estudos demonstraram
os primeiros indícios cientificamente válidos dos
efeitos positivos de intervenções que incorporavam o
exercício físico na rotina do tratamento oncológico. Em
As repercussões da baixa Literacia
em Saúde numa especialidade: o
caso da Oncologia
Para os doentes com cancro, a baixa Literacia
em Saúde compromete a adesão à
terapêutica, e está associada a uma comunicação
ineficaz com os profissionais de saúde,
levando a intervenções desnecessárias. Para
além disso, doentes oncológicos com pouca
compreensão sobre a sua doença podem
sentir maior ansiedade e maior insatisfação
em relação aos cuidados que recebem.
Mas, façamos um pequeno exercício
exemplificativo do que podem ser algumas
das dificuldades de um doente oncológico
com baixa Literacia em Saúde. Se pensarmos
em toda a jornada do doente oncológico, encontramos
obstáculos evidentes agravados
por este contexto: no momento da comunicação
do diagnóstico, o menor entendimento
de alguns termos médicos e não médicos
pode aumentar a confusão do doente; seguir
as recomendações médicas durante o tratamento,
como a toma medicamentosa feita
em casa, poderá ser um desafio e levar a procedimentos
incorretos; a obtenção de apoios
sociais e fiscais durante a doença pode ser
dificultada; assim como a sua integração na
vida ativa em período de sobrevivência poderá
ser mais demorada.
Estes são apenas pequenos exemplos, de
entre muitos, que podem ser referidos
particular, o funcionamento físico é aumentado, a ansiedade
é reduzida e a integração social é encorajada. [10]
Esta foi a base para a criação do The HOPE Project,
um videojogo sério para crianças e adolescentes.
Este videojogo pretende aumentar a resposta física e
emocional aos tratamentos, através do aumento da atividade
física, potenciando: a) a redução do tempo de
hospitalização da criança; b) a diminuição de sequelas
do tratamento e da doença a longo prazo; c) e o esclarecimento
relativamente ao regresso à vida ativa. Procura-se
que esta solução possa combater os constrangimentos
sentidos com a falta de profissionais de saúde
nos hospitais, nomeadamente fisioterapeutas; possa
diminuir o custo/tempo de hospitalização dos doentes
oncológicos; e contribua para melhorar o processo de
recuperação, com impacto a longo prazo na vida das
crianças, familiares e cuidadores.
Jornada com desafios que vão desde os exames de diagnóstico ao início da quimioterapia.
A tecnologia ao serviço da Literacia em Saúde
O videojogo Hope foi idealizado para unir a perspetiva
realista de uma doença oncológica a um mundo
fantástico. A perspetiva realista é conseguida através
das ilustrações utilizadas no videojogo com base em
fotorreportagens de espaços hospitalares, para que as
crianças reconheçam toda a realidade por que passam,
e possam estar preparadas para enfrentar novos procedimentos
clínicos; já o mundo fantástico é introduzido
com a narrativa que conta a história de uma criança, a
personagem principal, que combate o cancro como um
super-herói luta contra o seu adversário. A introdução
desta analogia torna-se importante para promover a
motivação da criança doente e poder aumentar a adesão
emocional aos tratamentos.
Associando-se os medos das crianças internadas aos
superpoderes da personagem principal do videojogo, recorre-se
à persuasão para modificar a aceção da criança
em relação ao que lhe provoca desconforto. Desta forma,
foi já conseguido, através do entretenimento, moldar o
comportamento da criança para tornar as rotinas hospitalares
mais eficazes, com diminuição do tempo de
preparação dos exames. O videojogo utiliza processos
interativos para explicar, por exemplo, a importância de
a criança permanecer calma ao realizar uma colheita de
sangue, implementa desafios de movimentação, coordenação
e elasticidade para explicar o que é uma radiografia,
e desafia a criança a tornar-se aliada na destruição
das células malignas, incorporando exercícios
de fisioterapia nos desafios que permitem o herói ter
sucesso. Também a perda de cabelo é percebida como
causa deste tratamento, mas é associado a um novo
superpoder do super-herói, a par do seu pijama, o seu
fato imprescindível, para que novos desafios sejam superados.
O simbolismo de se associar uma criança sem
cabelo a um super-herói tenta, assim, imprimir na criança
um sentimento contrário ao que atualmente sente
quando se vê sem cabelo. O videojogo foi pensado para
ser instalado em dispositivos informáticos utilizados
no dia-a-dia pela criança internada - smartphones e
tablets.
Tirando o máximo partido das características destes
dispositivos móveis, utilizou-se a câmara frontal
como ferramenta de exergaming, isto é, uma ferramenta
combina o exercício físico com as mecânicas de
jogo. Apesar de se ter como cenário inicial o hospital,
pretende-se encorajar o utilizador a voltar à vida ativa
novamente, razão pela qual este projeto irá contemplar
um cenário da escola e outro da casa, com níveis que
trabalham ludicamente os principais desafios sentidos
nesses contextos. Assim, através de vários níveis interativos
e de um design simples e atrativo, pretende-se
cativar a atenção dos mais novos, e poder aumentar a
adesão emocional aos tratamentos. Associando-se os
medos das crianças internadas aos superpoderes da
personagem principal do videojogo, recorre-se à persuasão
para modificar a perspetiva, tornando o período
que passam no hospital, em casa e na escola mais saudável
e produtivo. Os níveis reproduzem uma sequência
lógica de motivação e aumento de qualidade de vida,
com dinâmicas familiares e sociais imprescindíveis à
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
recuperação total da criança.
Este é apenas um pequeno exemplo do que a Literacia
em Saúde tem ao seu dispor, enquanto área
emergente e que depende de uma inovação constante.
Nesta inovação, ocupam uma parte importante as áreas
do saber focadas na Comunicação e na Persuasão. São
elas grandes determinantes de um envolvimento maior
do cidadão nas suas escolhas em saúde.
O Laboratório de Criação para a Literacia em Saúde
da Universidade do Porto e a spin-off BRIGHT, promotores
do projeto HOPE, sabem disso, e, todos os dias,
trabalham para que a Literacia em Saúde seja mais e
melhor.
Cuidar desde sempre
Problemas que o projeto HOPE pretende combater.
Referências
[1] World Health Organization. (1986). The Ottawa charter for health promotion. Geneva.
[2] Portugal. Sistema Nacional de Saúde (2017). SNS + Proximidade 2017/2018. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/wp-content/
uploads/2017/11/20171120_LivroSNsProximidade-1.pdf
[3] World Health Organization (1998). Commission on the Social Determinants of Health. Achieving health equity: From root causes to fair
outcomes. Geneva.
[4] Kickbusch, I.; Wait, S.; Maag, D. (2006). Navigating health: the role of health literacy. London: Alliance for Health and the Future. International
Longevity Centre-UK.
[5] Kindig, D.A. (2004). Health Literacy: A Prescription to End Confusion. Washington, DC: National Academy of Sciences.
[6] Pedro, A.R.; Amaral, O.; Escoval, A. (2016). Literacia em saúde, dos dados à ação: tradução, validação e aplicação do European Health Literacy
Survey em Portugal Revista Portuguesa de Saúde Pública, 34(3), 259-275.
[7] Espanha, R.; Ávila, P. (2016). Health Literacy Survey Portugal: A Contribution for the Knowledge on Health and Communications. Procedia
Computer Science, 100, 1033-1041.
[8] Portugal. Direção-Geral da Saúde. (2021). Níveis de Literacia em Saúde – PORTUGAL. Lisboa: Direção-Geral da Saúde Disponível em: https://
www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/estudo-apresenta-nivel-de-literacia-em-saude-dos-portugueses-pdf.aspx
[9] Siegel, R.; Naishadham, D.; Jemal, A. (2013) Cancer statistics 2013. CA Cancer, 63, 11–30.
[10] Florin, T.A.; Fryer, G.E.; Miyoshi, T. et al. (2007). Physical inactivity in adult survivors of childhood acute lymphoblastic leukemia: a report from
the childhood cancer survivor study. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev. 16, 1356–63.
[11] De Souza, A.M.; Potts, J.E.; Potts, M.T. et al. (2007). A stress echocardiography study of cardiac function during progressive exercise in pediatric
oncology patients treated with anthracyclines. Pediatr Blood Cancer. 49, 56–64.
Mudar para sempre
30 ZERO UM
ZERO UM
31
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
A Pediatria por Diferentes
Gerações de Especialistas
FORMAÇÃO MÉDICA
1
Descreva a sua formação médica em 3 palavras
Não restam dúvidas de que a medicina é um domínio em permanente mutação e desenvolvimento.
Assim, foi com este mote que procuramos recolher e comparar vivências, conselhos e perspetivas de
três pediatras de diferentes gerações. Através dos seus testemunhos pudemos compreender de que
forma tem evoluído a formação médica e prática clínica, na área da pediatria, ao longo dos anos no nosso país.
CONHECE AS 3 GERAÇÕES
CARLA RÊGO
Desafiante
Gratificante
Exigente
SANDRA TEIXEIRA
Sólida
Exigente
Com algumas lacunas, na componente prática
Carla Rêgo
Nasceu a 13 de julho de 1960 e
ingressou, em 1978, na Licenciatura
em Medicina pela Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto,
tendo concluído em 1984.
Posteriormente, realizou um Mestrado
em Medicina Desportiva e um
Doutoramento em Medicina (área
da Pediatria) pela FMUP. É especialista
em Pediatria com diferenciação
na área da nutrição pediátrica, em
particular da Obesidade e Developmental
origins of health and disease.
Neste contexto, criou a 1ª consulta
de Medicina Desportiva (1996) e a
1ª consulta de Obesidade Pediátrica
do país, no Centro Hospitalar S. João.
Atualmente, para além do exercício
da prática clínica, é presidente (e
fundadora) do Grupo Nacional de
Estudo e Investigação em Obesidade
Pediátrica (GNEIOP) e da Health-
4Moz (ONGD).
Sandra Teixeira
Nasceu a 5 de fevereiro 1973.
Ingressou, em 1990, na Licenciatura
em Medicina na Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto,
tendo concluído em 1996.
Realizou o Internato Geral no
Centro Hospitalar S. João entre 1996
e 1998, tendo posteriormente concluído
o Internato de Pediatria Geral
no Centro Hospitalar do Tâmega e
Sousa em 2004. Atualmente, e desde
2015, é Assistente Hospitalar Graduada
no Centro Hospitalar do Tâmega
e Sousa.
Sofia Lima
Nasceu a 20 de julho de 1996,
tendo ingressado no Mestrado Integrado
em Medicina na Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra
em 2014 e concluído em 2020.
Atualmente é interna de formação
específica (1º ano) de Pediatria
no Centro Hospitalar e Universitário
da Cova da Beira.
SOFIA LIMA
2
Se
CARLA RÊGO
Desafio
Trabalho
Compromisso
pudesse mudar algo no curso quando o frequentou,
o que seria?
Não consigo imaginar nada que quisesse mudar! A formação teórica era
sólida e exaustiva, o que nos permitia ter excelentes bases - anos mais tarde,
quando da aprendizagem clínica, verificamos a importância das aulas teóricas
de Anatomia e de Fisiologia, apenas para citar 2 exemplos dadas por verdadeiros
Mestres, para a elaboração do raciocínio clínico conducente às hipóteses
de diagnóstico. A formação prática era incentivada desde o 4º ano, com a possibilidade
de integrar as equipas de urgência, sempre sob tutela dos colegas
mais velhos. O relacionamento entre colegas de diferentes anos do curso e colegas
a cumprir o internato nas diferentes valências era excelente, pro-activo e
de verdadeira inter-ajuda e partilha de experiência e conhecimento.
32 ZERO UM
ZERO UM
33
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SANDRA TEIXEIRA
Se pudesse mudar algo no curso que frequentei, mudaria o ciclo básico de
formação, tornando-o mais generalista e sem tanto enfoque na “exceção” ou
“no pormenor”, em detrimento do que é mais habitual e tem mais relevância
para a clínica. Tornaria o ciclo clínico mais prático, com uma abordagem baseada
em algoritmos de diagnóstico e terapêutica. Desde o primeiro ano, e em
todos os anos do curso, trabalharia competências em comunicação e autoconhecimento,
que considero essenciais para qualquer médico.
4
Quais
eram as ferramentas de estudo que utilizava mais
regularmente?
SOFIA LIMA
3
O
A organização do curso de Medicina difere consoante a faculdade e a universidade
em questão, naturalmente. Daquilo que foi a minha experiência, mudaria
talvez o facto de existirem várias especialidades com as quais não temos
contacto, apesar de, na minha faculdade, nunca me ter sido negada a possibilidade
de conhecer um Serviço, caso tivesse interesse para tal. Além disso, há
ainda várias cadeiras teóricas que poderiam ser agrupadas numa só, de modo
a possibilitar um contacto mais precoce com a prática clínica.
que acha que mudou para pior no curso? Há alguma
lacuna que tenha surgido desde que se formou?
CARLA RÊGO
SANDRA TEIXEIRA
Sebentas e livros de texto.
Durante o curso, estudava pelos livros de texto e atlas sugeridos pelos professores
regentes das cadeiras. Tínhamos também as sebentas elaboradas pela
Associação de Estudantes e as aulas teóricas que gravávamos e distribuíamos
por cada elemento do curso, para as passarem a texto, que era posteriormente
disponibilizado para todos, no centro de fotocópias do 01.
CARLA RÊGO
A perda de referências humanas e da proximidade docente-aluno, bem
como a ausência de uma aprendizagem mais prática a partir do meio do curso
e, também relacionado, a falta de tempo e de treino para falar com os pacientes.
SOFIA LIMA
Para além dos livros e atlas aconselhados, há sempre as famosas sebentas
e resumos. Adicionalmente, plataformas que incluem ferramentas de estudo
teóricas e práticas, com várias perguntas acerca de casos clínicos. São elas a
AMBOSS e a UWorld, ferramentas de estudo muito importantes principalmente
para o exame final – a PNA.
SANDRA TEIXEIRA
SOFIA LIMA
Na minha opinião pessoal, que acredito possa ser controversa, no ciclo
básico de formação, a abordagem morfo-funcional por sistemas de órgãos, sem
que haja depois uma disciplina obrigatória de interligação dos mesmos, deturpa
o raciocínio clínico, dando a falsa ideia de que está tudo compartimentado.
Ainda, o aumento do número de alunos que entram por ano no curso de medicina,
tem como consequência turmas igualmente maiores nos anos clínicos,
o que condiciona por um lado uma maior dificuldade a que todos possam praticar
e, por outro lado, forçosamente altera/deturpa a relação médico-doente,
quando um doente está “exposto” perante vários médicos.
Como já referi anteriormente, penso que a aposta na formação em comunicação,
logo a partir dos primeiros anos, constitui uma lacuna que continua
nos nossos dias.
Como tirei o curso há relativamente pouco tempo, poderei não ter muito a
acrescentar neste tópico. No entanto, julgo que a disparidade na forma como
está organizado e como é avaliado o último ano do curso tem vindo a aumentar.
Acredito que tal possa constituir um fator de ansiedade para alguns alunos.
5
Quais
CARLA RÊGO
as competências adquiridas na faculdade que considera
mais úteis na prática clínica?
A capacidade de organização do tempo, a disciplina de trabalho e a superação
do esforço e da fadiga. São competências que se desenvolvem e adquirem
para a vida, em todas as suas vertentes.
34 ZERO UM
ZERO UM
35
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SANDRA TEIXEIRA
As competências que adquiri na faculdade que considero mais úteis foram
a capacidade de sistematização: analisar a situação, elaborar a minha lista de
problemas, colocar hipóteses, estudá-las, para depois planear a solução.
SOFIA LIMA
Surgiu mais tarde, durante o 5º ano, quando passei pelo Hospital Pediátrico
de Coimbra. Para mim foi um mundo novo, mais leve. É uma especialidade
desafiante e muito gratificante.
SOFIA LIMA
Ter espírito prático, sem dúvida. Na prática clínica e na vida em geral. A faculdade
é uma fase da vida em que crescemos muito como pessoas. E aprendemos
a gerir as tarefas, o tempo e a informação. Aprender a trabalhar em equipa
em prol do doente é muito importante. Há alguns professores que servem de
modelos, o que, por vezes, se torna mais importante do que todas as competências
teóricas que adquiri.
PRÁTICA CLÍNICA
1Que instrumento utilizava no início da sua vida profissional
e, entretanto, abandonou?
6
Porquê
a escolha da Pediatria? Durante a formação sempre
sentiu uma inclinação para essa especialidade
ou esta vontade surgiu mais tarde?
CARLA RÊGO
Termómetro de mercúrio e esfigmomanómetro aneróide. Não me lembro
de mais nenhum!
CARLA RÊGO
A escolha da Pediatria surgiu por forte influência do Professor Norberto
Teixeira Santos e daquilo que era a sua visão da vida, da medicina, da pediatria
e do ser médico. Nomeadamente, a sua capacidade de perseguir objectivos
que considerava válidos e o seu arrojo em desafiar e incentivar a avançar
aqueles que achava que podiam crescer. Era alguém com uma visão muito à
frente, quase futurologista, e certamente fez a mudança na Pediatria, quer na
FMUP, quer a nível nacional.
SANDRA TEIXEIRA
Bloco de notas em papel, termómetro de mercúrio, esfigmomanómetro
aneróide.
SANDRA TEIXEIRA
A série televisiva da RTP1 “Retalhos da vida de um médico”, adaptação do
livro homónimo de Fernando Namora, marcou-me e levou à minha escolha do
curso de Medicina. Eu encaro a medicina como um serviço ao próximo. Sinto-me
realizada quando vejo que faço a diferença na vida das pessoas e ainda
mais, quando elas o reconhecem. Estudo, reciclo-me, atualizo-me, também
para reconhecimento dos meus pares, mas acima de tudo, para tratar o melhor
possível os meus doentes e fazer a diferença na vida deles. Daí que para mim
foi uma alegria imensa ter tido a possibilidade de escolher fazer o internato
de formação específica na terra onde moro e no hospital onde nasci e poder
trabalhar para melhorar as condições de saúde dos meus conterrâneos. A Pediatria
surge nesta linha, pois dá-me a possibilidade de participar na “construção”
de uma pessoa ao longo de 18 anos, em colaboração com uma família e
fazer parte dessa família. E é com grande orgulho que alguns destes meninos
e meninas, hoje, são meus colegas de profissão e outros, já me trazem os seus
filhos para eu acompanhar, reforçando a importância que tive nas suas vidas.
SOFIA LIMA
Ainda não tive tempo de abandonar nenhum. Nem imagino qual será!
2
A seu ver, qual a principal vantagem e desvantagem da
informatização da Medicina?
36 ZERO UM
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
CARLA RÊGO
SANDRA TEIXEIRA
Como vantagem considero o acesso fácil e imediato, em tempo real, aos
dados do paciente. Deste modo, o clínico não está dependente do acesso ao
processo clínico, guardado no arquivo que, habitualmente, só estava aberto
nas horas de expediente, sendo que o mais frequente era este estar mal
arquivado, pelo que não aparecia para a consulta. Para além desta ser uma
enorme vantagem no contexto da prática clínica, é também extremamente
importante numa perspectiva de investigação. Por outro lado, vejo como desvantagem
o facto de, aquando do registo, durante a avaliação clínica, sobretudo
em contexto de ambulatório, parte do contacto visual e consequentemente
da interacção com o utente perde-se.
A principal vantagem da informatização da Medicina, sobretudo no que diz
respeito ao registo clínico/processo clínico do utente, é a partilha da informação,
possibilitando a sua consulta pelos diferentes prestadores de cuidados, o
que obsta à duplicação de meios complementares de diagnóstico, por exemplo.
Que bom que seria se se concretizasse a proposta da Ordem dos Médicos
e se pudesse alargar este projeto aos prestadores privados e criar um processo
clínico único por utente!
A desvantagem é que, atualmente, com material informático obsoleto
(“hardware”), servidores de internet lentos e sobrecarregados e software desajustado,
obriga o médico a uma perda de tempo de consulta excessivo com
registos e a resolver estes constrangimentos, em detrimento de tempo útil de
comunicação com o utente.
SOFIA LIMA
4
Se
fazem com que seja difícil ser médico em Portugal, em todas as especialidades.
No meu caso em particular, trabalho num hospital claramente subdimensionado
para a população que serve, com dificuldades logísticas graves, sobretudo
nos setores de urgência e ambulatório e uma grande insuficiência de recursos
humanos. No entanto, não baixamos os braços, pois estamos habituados a fazer
muito, com o pouco que temos!
Há falta de pediatras em algumas regiões do nosso país. Por isso, não poderá
ser muito fácil ser pediatra. É uma especialidade que requer muita empatia.
Além disso, por vezes não é fácil orientar o crescimento e neurodesenvolvimento
de uma criança em tão pouco tempo de consulta, ou chegar a todos
os problemas da vida de um adolescente. Tudo isto, para além do desafio que
poderá ser explicar as informações aos pais.
pudesse voltar atrás, faria alguma coisa de forma diferente?
SOFIA LIMA
3
É
CARLA RÊGO
O facto de a informação estar mais disponível para todos é, por si só, uma
vantagem e uma desvantagem. Vantagem, porque a informatização veio agilizar
a forma como se trabalha, de modo a que haja mais tempo para dedicar ao
doente. Além disso, ter uma consulta à distância de um clique pode ser uma
grande mais-valia para quem reside longe do hospital. Desvantagem, uma vez
que se perde muito tempo com registos durante uma consulta. O facto de haver
muita informação médica disponível para todos pode dificultar o trabalho
do médico, na medida em que muitas vezes os pais julgam já ter uma ideia
daquilo que poderá ser o melhor tratamento para o seu filho.
fácil ser médico, em especial Pediatria, em Portugal?
Quais os principais obstáculos que identifica?
Actualmente, não é fácil ser médico em Portugal, nem na perspectiva
profissional, nem humana. A perda do respeito pela profissão, decorrente da
noção de que o médico é “um serviçal” devendo estar disponível ilimitadamente;
O desrespeito e a banalização do conhecimento científico, uma vez
que qualquer informação pode ser encontrada na internet, nas redes sociais
ou na imprensa; A pressão das instituições pelos números, em detrimento da
qualidade e do atendimento personalizado; O desgaste dos horários de trabalho
e as próprias condições em que se trabalha; A ausência de expectativas
de progressão justa na carreira. Estas e muitas outras razões levam à desmotivação
e ao burnout, bem como ao abandono do Serviço Nacional de Saúde.
CARLA RÊGO
SANDRA TEIXEIRA
Faria tudo de igual forma: em cada fase da vida devemos tomar as decisões
que julgamos mais acertadas e tirar o máximo partido delas.
Se voltasse atrás, faria o meu percurso formativo, da mesma forma e nas
mesmas instituições. O facto de ter escolhido fazer o internato de Pediatria
num hospital distrital, permitiu-me realizar estágios em diferentes unidades
hospitalares, conhecer novas formas de organização de trabalho, habituar-me
a mudar e adaptar-me a várias equipas de trabalho e a crescer mais rapidamente
em termos profissionais. No final do internato estava pronta a trabalhar
em qualquer hospital, central ou distrital, com poucos ou muitos recursos, pois
conhecia bem as duas realidades!
Relativamente à minha vida profissional, hoje não aceitaria fazer turnos de
24h de urgência, nem 300 a 400 horas extraordinárias de urgência, por ano,
durante anos a fio. Este sacrifício que era e é efetuado para manter o Serviço
de Pediatria em funcionamento, em prol dos utentes, ao fim de alguns anos, é
assumido pela tutela como “normal” e não vemos diligências para solucionar o
problema. Foram horas subtraídas à família e que tiveram o efeito perverso de
afugentar mais recém-especialistas, que não querem enveredar pelo mesmo
destino, e com toda a razão!
SANDRA TEIXEIRA
Fruto de uma politização da Administração Pública, não há programas de
atuação a longo prazo. As medidas no Sistema Nacional de Saúde alteram-se
em cada legislatura, ao sabor da força política a governar. Os Conselhos de
Administração, Diretores Clínicos e Diretores de Serviço mudam de acordo com
a cor política do governo. Por outro lado, na maioria das instituições no setor
privado, a gestão dos serviços é fundamentalmente realizada por gestores de
carreira, sem conhecimentos de medicina e muitas vezes mal assessorados,
cujo objetivo fundamental é o lucro. Nesta panorâmica, o subfinanciamento
crónico e a exaustão física e psicológica agravada pela pandemia COVID-19
SOFIA LIMA
A nível formativo, não!
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ZERO UM
39
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
5
Que
CARLA RÊGO
SANDRA TEIXEIRA
conselhos daria aos atuais estudantes?
Falem com os doentes, escutem os doentes e olhem-nos. Muitas vezes,
como sabem, quem procura o médico não tem necessariamente uma doença
física e, mesmo que a tenha, esta pode ter uma forte componente emocional.
Ora, a confiança no profissional e a capacidade de sentir, da parte deste, empatia
e interesse pode não representar “metade da cura”, mas tem um forte impacto
na recuperação! E os actuais estudantes não têm tempo, nem interesse
em falar. Na verdade, muitas vezes não sabem falar com doentes, porque, em
regra, leem pouco e, por outro lado, não treinam a comunicação e a gestão de
sentimentos.
Aos atuais estudantes aconselho a trabalharem no seu autoconhecimento
e capacidade de comunicação, a manterem-se sempre focados e com os
sentidos bem despertos, para que possam absorver ao máximo a vivência dos
Serviços por onde passam.
Quanto ao futuro profissional, que façam as suas escolhas sem esquecerem
a vida pessoal, que não abdiquem de tempo para descanso e para si próprios.
Só quem está de bem consigo próprio poderá ser um bom médico!
SANDRA TEIXEIRA
SOFIA LIMA
A perceção que tenho dos médicos recém-formados é que têm uma boa
formação teórica, mas algumas lacunas na parte prática. Já incorporaram que
há limites de trabalho e de condições de trabalho que não devem ser ultrapassados,
facto com o qual concordo plenamente.
Fruto da dependência das novas tecnologias, redes sociais e da própria
pandemia COVID 19, sinto algum distanciamento e dificuldades de comunicação,
em alguns colegas, mas que é transversal a todos os grupos etários.
Relativamente aos colegas mais velhos, este é um momento de desânimo
e extremo cansaço no Sistema Nacional de Saúde. No entanto, e como sempre
fizemos, cá estaremos para lutar por ele!
Da minha experiência, até agora, tenho a sorte de poder dizer que tanto os
médicos mais novos como os mais velhos têm em comum o facto de se dedicarem
a 100% àquilo a que se propõem. Tem sido muito útil, pelo menos para
mim, aprender com o espírito prático e com a experiência de ambos.
SOFIA LIMA
São 6 anos que passam a correr! É importante que os aproveitem bem e
que não adiem a vossa vida pessoal em prol da vida profissional, pois há tempo
para tudo. Na verdade, o crescimento pessoal é fundamental e será o que vai
definir o vosso carácter como futuros médicos. É importante que se foquem no
objectivo, mas que aproveitem a jornada até lá.
6
Qual
a sua perceção acerca dos médicos recém-formados?
Qual a sua perceção acerca dos médicos mais velhos?
CARLA RÊGO
Os recém-formados são muito mais “calculistas”, no sentido de ponderados,
na escolha da sua vida futura, concretamente na escolha da especialidade
e, por outro lado, têm pouco treino no raciocínio clínico. Muitas vezes, estão
cheios de informação, mas não sabem aplicá-la à prática clínica, desenvolvendo
um raciocínio estruturado até às hipóteses de diagnóstico. No entanto, são
muito ágeis na pesquisa!
Os mais velhos trabalharam (e trabalham) com mais amor à camisola e
com uma maior componente “emocional”.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Marcos Internacionais da Evolução dos
INSTRUMENTOS CIRÚRGICOS
OS INTRUMENTOS CIRÚRGICOS SÃO O TESTEMUNHO DA
CIÊNCIA, E DA TECNOLOGIA DO SEU TEMPO DE FABRICO.
Os Estudantes do Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto podem aprender o ABC deste género de instrumento na Unidade
Curricular optativa, a História do Instrumento Médico. Paralelamente existe a Unidade de
Formação Contínua, a História do Instrumento Cirúrgico, acessível a Licenciados ou Mestres
na área das Ciências da Saúde e domínios afins e a Estudantes universitários destas
e de outras áreas do saber com interesse nesta temática. Ambas as unidades de formação
são da nossa responsabilidade e integram a oferta formativa do Departamento de
Medicina da Comunidade, Informação e Decisão em Saúde desta Faculdade. Pretende-se
a partir do saber sobre as origens e a evolução do instrumento cirúrgico complementar o
que é conhecido pelas fontes documentais e criar um corpo estruturado, capaz de veicular
investigações interdisciplinares. É matéria de estímulo à reflexão sobre a Medicina e
forma de captar e sentir os valores da Cultura pela autoformação. O património museológico
e documental da Faculdade, pela sua diversidade e valores histórico e social, tem
uma aplicação pedagógica ímpar entre os seus pares a nível nacional e internacional.
Por Catarina Pedro Carrinho
Estojo de Amputação do séc. XVIII
Instrumentos com extremidades proximais em
material orgânico, madeira, e as extremidades distais
em aço composto por camadas justapostas.
Neste ano comemorativo do bicentenário do nascimento de
Louis Pasteur (1822- 1895), importa lembrar este insigne cientista
francês, conhecido por ter desmoronado a teoria da geração
espontânea e defendido a origem da vida a partir de outra
preexistente, indicar a etiopatogenia infeciosa de várias doenças,
propor o processo de pasteurização na conservação de alimentos
e bebidas fermentadas, contribuir para o desenvolvimento
de vacinas (antirrábica, 1885) e defender a assepsia em
meio hospitalar e laboratorial, entre as principais descobertas.
As suas investigações desencadearam uma mudança de paradigma
em diferentes domínios, muito em particular na Cirurgia.
Louis Pasteur chegou a afirmar que se fosse cirurgião lavaria as
suas mãos e passaria os seus instrumentos sobre uma chama.
No período que antecedeu os estudos de Louis Pasteur,
os instrumentos cirúrgicos eram o espelho do estatuto
social do cirurgião, seu proprietário. O desconhecimento
da existência de micróbios como agentes causais de
doenças permitia a manufatura de exemplares com cabos ricos
numa diversidade de materiais orgânicos, tais como o marfim, a
carapaça de tartaruga, a barba de baleia e o ébano, densamente
adornados e muitos com propriedades ergonómicas evidentes.
A necessidade do cirurgião se deslocar e transportar consigo
os seus instrumentos ditou a sua inclusão em estojos com os mais
diversos tamanhos e materiais, preferindo-se os de menores dimensões
para facilitar a sua mobilização. Assim, era comum encontrar
um cabo único ao qual se adaptavam várias extremidades
distais com diferentes funcionalidades. Cada estojo podia reunir
instrumentos dirigidos exclusivamente a um género de cirurgia ou
dar respostas às múltiplas exigências clínicas com instrumentos
associados a diferentes cirurgias. Os metais ferrosos compunham
a maioria das extremidades distais dos instrumentos e serviam
de suporte aos materiais orgânicos das extremidades proximais.
No século XVI, a introdução de foles condutores de água,
chaminés altas, a fundição do coque e os fornos convetores com
processos de cementação a 1000ºC conduziram ao fabrico de um
aço de melhor têmpera composto por camadas sucessivas justapostas.
Era um aço quebradiço que obrigava ao fabrico de instrumentos
com extremidades distais de maior espessura e dimensão.
Ter-se-ia de aguardar os avanços tecnológicos ocorridos na segunda
metade do século XVIII para dar início à produção de um aço
com uma percentagem maior de carbono, mais resistente, que permitia
criar superfícies de corte mais homogéneas, delicadas e ajustadas
às necessidades clínicas. Na verdade, as lâminas descartáveis
dos nossos bisturis atuais são compostas por este tipo de aço.
Os metais não ferrosos utilizados na manufatura de instrumentos
cirúrgicos no período pré-Pasteur foram o bronze no
período greco-romano e, ao longo dos tempos, o cobre, o ouro,
a prata, o latão, o estanho, o chumbo e a prata alemã, com particular
preferência durante do século XIX entre os fabricantes
franceses. A utilização deste tipo de metais dependeu dos avanços
da Física, da Química, da Engenharia, da Eletrometalurgia e
da Química Analítica. A limpeza do instrumento, para facilitar
a sua funcionalidade e prevenir a sua deterioração, era o único
tratamento a que era submetido quando considerado necessário.
Na década de 70 do século XVIII, produziram-se cateteres maleáveis
ao impregnar uma estrutura de tecido com gomas de plantas.
Até aí, para os modelos tubulares predominavam os exemplares
metálicos, na maioria de prata, metal não ferroso muito resistente
42 ZERO UM
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Escultura de Enrique Zofio
Dávila (1840/43-c.1915)
Aplicação de um forceps obstétrico
representado com extremidades
proximais de material orgânico.
Por Enrique Zofio
à corrosão e bem tolerado pelo organismo. Foi ainda na década de 90
do século XVIII que se produziu a mais antiga forma tubular em borracha
com fins cirúrgicos, por volatilização da borracha. A vulcanização
com enxofre (1841) por Charles Goodyear (1800-1860) conduziu à
produção de um material mais resistente às variações térmicas.
O primeiro catálogo de instrumentos cirúrgicos conhecido data de
1772 de J. J. Perret. Este cuteleiro afirmava ser intenção do cirurgião a
cura do paciente e a sua contribuir com o seu ofício para a segurança
do homem. Utilizava um símbolo como marca identificativa dos seus
instrumentos, enquanto outros preferiram adotar um nome. Até ao seu
tempo, o processo de manufatura dos instrumentos variou pouco, cingindo-se
basicamente a três tipos: os de corte, os não cortantes e as
pinças articuladas e de disseção. No século XIX, na primeira metade,
assiste-se à individualização de algumas especialidades médicas e, na
segunda, das especialidades cirúrgicas, fruto dos avanços no domínio
da dor (década de 40), do controlo das hemorragias com a introdução
das pinças hemostáticas e das infeções. Assim, foi exigido aos
fabricantes a idealização, quando não partia do próprio cirurgião, e
a produção de instrumentos novos para colmatar as novas exigências
clínicas. Uns foram mais criativos e procuraram adaptar-se aos
avanços científicos, tecnológicos e técnicos evidenciando uma clara
afirmação profissional com consequente poderio económico.
Ao nível dos instrumentos cirúrgicos, o primeiro sinal da recetividade
no meio cirúrgico das descobertas de Louis Pasteur foi o
flamejado na ponta das extremidades distais. Paralelamente, o cirurgião
britânico Joseph Lister (1827-1912) introduz de forma sistemática
o ácido carbólico como antisséptico na preparação pré-operatória
Por Catarina Pedro Carrinho
dos fios de sutura e dos instrumentos e, sob a forma de
spray, no decurso da cirurgia. A vulgarização da assepsia
e da antissepsia determinou uma profunda transformação
no meio hospitalar, agora centros de assistência médica,
proprietários dos instrumentos de diagnóstico médico,
laboratoriais e cirúrgicos. Ao nível destes instrumentos,
houve uma profunda revolução que se traduziu no fabrico
de formas mais estilizadas; na substituição por metais a
quase totalidade dos materiais orgânicos; no desmembramento
das suas partes constituintes com a introdução de
novas formas de articulação e marcação numérica igual
das partes; e, na eletrolaminação com níquel e crómio,
visando uma maior resistência aos processos antisséticos
e asséticos. Instrumentos com estas características foram
produzidos até à generalização do aço inoxidável.
Os primeiros instrumentos cirúrgicos em aço inoxidável
surgem em 1916 e destinaram-se à cirurgia da apófise
mastoide, produzidos por Mayer & Cª. Na década de vinte
do século XX, os catálogos de instrumentos cirúrgicos
comercializavam os modelos eletrolaminados e os de aço
inoxidável, sendo estes consideravelmente mais dispendiosos.
Paralelamente outros metais não ferrosos, como a
platina, o alumínio, o titânio, o tungsténio e o vitálio, foram
introduzidos na instrumentação cirúrgica. Alguns passaram
a ser largamente utilizados na microcirurgia oftálmica
e maxilo-facial e em implantes ósseos. Com exceção
do celuloide (1869) e da baquelite (1907), a maioria dos
plásticos, polímeros de resinas sintéticas, foram descobertos
entre 1930 e 1955, com múltiplas utilizações em
instrumentos médicos de diagnóstico e cirúrgicos, substituindo
muitos dos fabricados em aço e em borracha. O
nosso principal instrumento, a nossa mão, continua desde
1900, de forma sistemática, a vestir-se de borracha e mais
recentemente de plásticos. Na década de 80, assistimos ao
desenvolvimento da sutura automática com a aplicação de
máquinas descartáveis, essencialmente de plásticos, com
extensão à cirurgia endoscópica.
O caminho percorrido faz-nos antever as potencialidades
inesgotáveis futuras onde os instrumentos cirúrgicos,
na diversidade das suas dimensões, formas, materiais e
marcas, coabitam com novas formas de energia, como os
ultrassons e o laser, sempre com o objetivo major de restabelecer
a saúde humana.
A Evolução do Bisturi
Desde os materiais orgânicos aos plásticos, do aço rico em carbono
ao aço inoxidável.
AMÉLIA RICON FERRAZ
Licenciada em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto em 1985. Especialista
em Ginecologia e Obstetrícia pela Ordem dos Médicos
(1995). Professora Associada desta Faculdade desde 2006.
Membro do Conselho Científico da FMUP (2018-2022). Diretora
do Museu de História da Medicina “Maximiano Lemos”
da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
(desde 1990/91). Delegada Nacional de História da Medicina
para a Sociedade Internacional de História da Medicina
(desde 1996).
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Prof. Dr. Tiago Taveira Gomes
Tecnologia na Medicina:
Onde estamos e para onde vamos
Doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 2016, fez
o curso de Medicina na nossa Faculdade, em 2012, assim como um mestrado em
Engenharia Informática na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em
2018. É médico especialista em Medicina Geral e Familiar e Professor Auxiliar Convidado
da FMUP.
Tem vasta experiência em desenvolvimento de software na área da saúde, e conversamos
com ele para descobrir um pouco mais acerca do que será o futuro da
tecnologia em saúde na vertente técnica e humana, o seu percurso de carreira e o
que gostaria de ver desenvolvido nos próximos tempos.
Antes de mais, gostaríamos de saber um pouco
acerca do seu percurso profissional. De onde
vem a paixão pela informática, e como a conseguiu
conciliar com o percurso na Medicina?
A
informática apareceu no 3º ano da faculdade,
por Farmacologia e pelo YES Meeting.
Mas aqui não foi gosto, foi o contacto forçado
com a informática, quando tive que montar o site
do registo do YES Meeting. Depois de ter passado mal
duas semanas para fazer isso é que pensei que poderia
usar isto para me ajudar a aprender os fármacos. E aí
comecei a ganhar o gosto.
Antes, já tinha experimentado todas as coisas possíveis
e imaginárias que se pode fazer com um computador,
desde 3d, música, posters, vídeo, ... Sempre adorei
tudo o que era criar. Ia reinstalando certas aplicações e
tentava fazer coisas clicando aí e ali, frustrava-me várias
vezes, mas, com o tempo, ia aprendendo. O código eu já
tinha tentado antes, mas achava aquilo asqueroso, nunca
consegui chegar a alguma coisa que fizesse sentido.
No 4º ano, então, decidi mergulhar a fundo nisto.
Vivia entre a sala de estudo e a sala da AE, era uma
Sabemos que está atualmente envolvido no
grupo de investigação AI4Health. Neste seguimento,
gostaríamos de compreender um pouco
melhor o que está atualmente a ser desenvolvido
neste âmbito na nossa faculdade.
Estes são grupos do CINTESIS, que não são específicos
da FMUP. Vou falar do que estou a desenvolver aqui
com os meus colegas. São sobretudo duas linhas.
A primeira é conseguir ter algoritmos preditivos
que sejam clinicamente úteis e que estejam validados
para ser usados no contexto clínico. O exemplo prático
mais simples é qualquer Score de Risco, qualquer Taxa
de Filtração Glomerular, os FEVs… Todas essas medidas
previstas são algoritmos. Não lhes vamos chamar Inteligência
Artificial porque admitimos que isso corresponde
a um nível de complexidade superior. Tu não metes
nada disto na prática clínica sem estar demonstrado em
coortes observacionais e em ensaios que o modelo realmente
prediz o que nós conseguimos validar, com uma
técnica mais invasiva ou mais cara, como verdade. Por
exemplo, a creatinina sanguínea é usada para estimar a
taxa de filtração glomerular, mas a taxa de filtração glomerular
não é a creatinina que ta dá. Existem fórmulas,
que são algoritmos, podes chamar-lhe machine learning
primitivo, que estão instituídos de tal forma na medicina
que nem nos lembramos que existem.
Queremos enveredar no sentido de identificar doentes
que beneficiariam de um acompanhamento mais
apertado, e com isto desenvolver ferramentas que ajudem
o médico a identificar as patologias e doentes a
priorizar. Temos 20 minutos para dar a cada doente, mas
20 minutos para um pode não dar para nada, e 20 minutos
para outro pode ser excessivo. Não podemos admitir
que se parta assim tudo de uma forma tosca. Nós estamos
muito focados nos aspetos operacionais de ajudar
os colegas a perceber a doença e a otimizar o trabalho
de ponto de vista administrativo.
Outra área que também estamos a trabalhar é a capacidade
de explorar sintomas de patologias crónicas
em fases ainda muito precoces, para tentarmos encontrar
padrões que identifiquem pessoas que possam estar
em risco de desenvolver determinada patologia daqui a
algum tempo, ou que até já estão a desenvolver a patologia.
Também temos um trabalho na área da violência
em que nos questionamos se existem padrões nos registos
clínicos que nos ajudem a identificar pessoas em
risco de violência. Por certos padrões mais complicados
podemos achar que há uma probabilidade grande o suficiente
para explorar a opção.
A outra linha é na área do processamento seguro da
informação. Estamos a desenvolver modelos que permitam
processar dados de saúde de várias instituições
sem que os dados saiam da instituição. Ou seja, sem ter
que pôr tudo no mesmo saco, construir uma figura que
tradicionalmente implicaria pôr tudo no mesmo saco. E
para quê? Para garantir que os dados do paciente são
preservados, que ninguém olha para o que não deve, e
que não tens que confiar que a instituição a quem tu
passas os dados não os vai usar de forma errada ou ter
uma quebra de segurança.
Não focamos tanto na direção que se pensa assim
à primeira de fazer o diagnóstico em vez do médico, ou
sugerir ao médico o que fazer. Em tudo o que fazemos,
admitimos que o médico é soberano, e que a parte chata
o algoritmo pode fazer.
Temos que olhar para os instrumentos como algo
que nos ajude, e temos que gostar deles. As primeiras
pessoas a defender algoritmos de machine learning têm
que ser as pessoas que os vão usar.
Quando as coisas são feitas sem ter pessoas do terreno,
o normal é que venha empurrado. Nós queremos o
contrário, que venha puxado por quem está dentro.
Ainda dentro do tópico da Inteligência Artificial,
qual considera que será o papel destas tecnologias
no futuro? Em quais áreas serão verdadeiramente
benéficas, e quais são as tarefas mais
sujeitas à sua aplicação?
A questão de a Inteligência Artificial poder vir a tirar
trabalho não é só aos médicos que mete medo. Mas
podemos contribuir para a valorização da atividade profissional
ao remover a parte chata burocrática. Para dar
uma consulta há que ligar o computador, registar não
sei o quê, ir ver não sei onde, meter aqui, meter ali, validar
não sei quantas listas, ver caixas… Isso tudo ocupa
tempo e esforço que vai subtrair ao tempo a aplicar a
medicina ao doente. Se houver algoritmos que fazem
isto, ficamos só com a parte boa, que é a parte para a
qual voces estão a ser treinados, e a parte na qual quem
quer ser médico pensa. Ninguém quer ser médico para
fazer cliques no programa.
Como prevê que evoluirá a relação médico-
-doente face à crescente mecanização da prática
médica?
Acho que os médicos vão ter mais tempo para olhar
o doente e que vá haver naturalmente mais espaço para
investir na relação médico doente, na comunicação,
na relação terapêutica, em toda a parte mais humana
da Medicina. Mas há também uma situação paradoxal.
Quanto mais tecnologia temos na mão, mais incapazes
ficamos. Apesar de existir na internet toda a informação
para consulta, a grande maioria das pessoas não a sabe
validar. Ou então, porque o telefone realiza determinada
tarefa, não desenvolvemos essa competência. Se
eu consigo encomendar pelo UberEats, porque hei de
aprender a cozinhar?
Quanto mais tecnologia tenho, mais fácil é ficar confortável
com não aprender nem desenvolver tal competência.
Mas o caminho que eu vejo é a medicina ser
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Quais vê como sendo, hoje, os principais entraves
à automatização dos cuidados de saúde em
Portugal?
O problema maior que a saúde tem face a tecnologia
é a gestão do legado. O que é que isto significa?
Significa que os sistemas de informação e as tecnologias
evoluem muito depressa. Há linguagens que são
standard hoje em dia que não existiam há 5 anos atrás.
Essa velocidade faz com que, muito rapidamente, se vá
desatualizando aquilo que já foi produzido. E o problema
do software é que tem que ser atualizado há medida
que a visão do problema vai crescendo e modificando.
Além disto, o mercado por pessoas técnicas é extremamente
agressivo, e é difícil termos pessoas técnicas
muito competentes a querer vir para estas áreas. É muito
difícil competir com lojas de roupas online e outros
que pagam 500 mil de bónus e têm negócios simples de
perceber. A medicina não é simples de perceber.
Portanto, temos tecnologias rapidamente desatualizadas,
pouca massa crítica capaz de a atualizar, e ainda a
gestão hiperpormenorizada de recursos que difere entre
os hospitais x, y ou z. Isto faz com que a implementação
destes softwares seja muito frágil.
Então, se eu quiser mais uma coisinha passados dois
anos, a tecnologia já não é aquela e quem desenvolveu
o programa já foi embora. Faz isto ao longo de 20 anos
e tens um problema brutal. Nós construímos muitos sistemas
em torno de sistemas, e para o consumidor até se
apresenta muito bonito numa app, mas o pilar está na
tecnologia de 1960. Na medicina temos uma gestão de
legado impossível. Por isso é que, num país onde estão
a começar um sistema de saúde do zero, tudo é rápido
e fácil e funciona. Porque não há, em grande medida, o
problema do legado. E isso faz toda a diferença.
O percurso académico que traçou é, para dizer
o menos, peculiar. A capacidade de trabalho especializado
e integrado médico e informático
revelar-se-á cada vez mais uma necessidade.
Com a hiperespecialização que é atualmente
prática em qualquer profissão, como prevê que
esta área de sobreposição seja abordada no futuro?
O conhecimento é como um sol de onde nascem
vários raios. Cada raio é uma área de conhecimento, e
conseguimos evoluir muito nas áreas puras. Mas a ponta
de cada raio, há medida que cresce, está cada vez mais
longe dos restantes. A vida real não acontece nestes
raios, mas no espaço entre eles.
A ciência é maravilhosa, mas tem que ser aplicada
onde faz falta. Não é possível uma colaboração entre os
hiperespecialistas em tecnologia e os hiperespecialistas
em medicina. É como pôr um francês e um chinês a falar
– não dá –, mas talvez pior, porque podem achar que
se compreendem. Na verdade, só não falam a mesma
língua no significado. É como se dissesses a um empreiteiro
que queres uma sala grande sem especificar os m2.
O empreiteiro constrói da forma que acha, que não é a
forma que tu achas, e o resultado não serve o propósito.
Aqui é igual.
O que tenho sentido da minha carreira, que é no fundo
na ponta de dois raios, é que é um exercício muito
difícil, e desnecessário a partir do momento em que haja
um novo raio no meio. Não havendo, é preciso quem se
estique para unir as pontas. O grande asset que acrescento
é conseguir falar a língua dos dois lados e garantir
que se entendem. Além disto, há o trabalho específico de
começar numa área nova, e criar espaço e conhecimento
em torno dela. E neste caso há uma imensa necessidade.
Há áreas com perfis que devem ser mais híbridos,
por estarem menos perto da ciência e mais perto da implementação
do terreno. Como já vemos na engenharia
biomédica, outras áreas beneficiariam claramente de
perfis híbridos. São precisas pessoas especializadas que
tenham aprendido especificamente, por exemplo, sobre
ressonância. Conhecê-la do ponto de vista fisiológico,
patológico, eletromecânico… Ou então, se queremos
sistemas de informação realmente robustos, precisamos
de profissionais com experiência clínica e de desenvolvimento.
Estes perfis híbridos, por vezes, existem encapotados,
informais. É o perfil híbrido de quem concluiu um
curso do qual gostou mais ou menos, exerceu uns anos,
foi para a indústria e depois na indústria aprendeu gestão.
Só que isso aconteceu aos 30 e muitos anos, com
um prejuízo grande de carreira que se calhar foi dispensável.
Acho que vamos ter cada vez mais perfis híbridos,
e híbridos desde cedo.
SEMPRE ADOREI TUDO O QUE
ERA CRIAR.
O Sindicato Independente dos Médicos - SIM é uma organização sindical médica autónoma e
independente e baseia-se na participação ativa dos Associados.
Dedica-se a defender os direitos de todos os Médicos e sempre prestou grande “apoio aos
Estudantes de Medicina e Médicos Internos”.
Para os Estudantes e Médicos Internos são já frequentes os patrocínios de eventos
científicos, a realização de ações de formação sobre Carreiras Médicas, Percursos
Alternativos, Internato Médico, Legislação Médica e Direitos Laborais; realização de sessões
de esclarecimento sindical, existindo uma Comissão Nacional Especializada, a Comissão
Nacional de Médicos Internos (SIM-Internos) para apoio e orientação dos Médicos Internos.
Para os Médicos Internos o SIM disponibiliza ainda e especificamente:
- Um Livro de Apoio ao Médico Interno (gratuito e já na sua 4ª edição);
- Um Fundo de Formação (80.000€ anuais), destinado aos associados há pelo menos um ano,
para apoio na sua formação pós-graduada, nomeadamente a participação em Congressos,
Cursos, Workshops e Estágios em Portugal e no estrangeiro;
- Uma Spring School.
Todos os seus associados, Especialistas e Internos, beneficiam ainda de:
- Possibilidade de passar férias e fins-de-semana em Isla Canela (Espanha), a preços
reduzidos;
- Apoio jurídico gratuito e dedicado;
- Usufruto do Fundo Social do SIM, caso cumpra critérios sociais;
- Mais-valias laborais vertidas nos Acordos Coletivos de Trabalho;
- OUTRAS vantagens em https://www.simedicos.pt/pt/.
A quota do SIM é no valor de 1% sobre o vencimento x 14 meses, descontado diretamente no
vencimento e dedutível em IRS.
Só organizados e cientes dos nossos direitos é possível a defesa da
Carreira Médica e do Serviço Nacional de Saúde
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Como é que a iLoF encontrou casa no Centro de Investigação Médica?
Quando surgiu esta ideia, nós andamos a
ver vários espaços. Como tu sabes, levar trabalho
para casa é, para nós, normal e como a
minha esposa fez o MIMED na FMUP decidiu
fazer algumas chamadas. Ligou, na altura, à
Professora Maria Amélia que considerou que
o melhor sítio para nós era na Bioquímica.
Entretanto, falámos com Doutora Raquel
Soares, que era diretora do departamento
(agora é o Professor João Tiago), e começámos
com uma pequena salinha com metade
do tamanho desta copa. À medida que fomos
crescendo fomos ficando com espaços maiores
e atualmente temos um espaço mais amplo
e uma sala com uma arca onde guardamos
as nossas amostras biológicas. Na altura
eramos 3 pessoas e agora somos cerca de 20.
LUÍS VALENTE
ATUALMENTE,
tem um espaço no Departamento
de Bioquímica do CIM
Como é que nasceu a ideia de criar a iLoF?
O
projeto em si nasce dos seus fundadores.
Nós somos quatro fundadores: eu, que neste
momento desempenho a função de diretor
executivo, a Paula Sampaio, professora de carreira
e diretora de grupo no i3S, a Joana Paiva, doutorada e
minha colega no INESC TEC, e a Mehak Mumtaz que conhecemos
num programa de aceleração, mesmo quando
estávamos a tentar lançar a empresa, e que conseguimos
roubar para o nosso projeto.
A ideia inicial vem de um projeto de investigação
de quatro a cinco anos, que estava a ser desenvolvido,
e que tinha como objetivo usar métodos óticos
para entender melhor partículas biológicas em fluidos,
maioritariamente sangue- no início era meios de cultura,
células e afins- que estava a ser levado a cabo pela
Paula Sampaio e pela Joana Paiva, entre outros. Entretanto,
eu, juntei-me, por acasos da vida, ao mesmo grupo
no INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e
Computadores, Tecnologia e Ciência) e vi, acho que todos
vimos, um potencial enorme no projeto. Em inícios
de 2019 começámos a fazer um caminho de translação
para o mercado, fomos aceites num programa de aceleração
da Comissão Europeia, o Wild Card que é organizado
pelo EIT Health, e, em 9 meses, falamos com cem
stakeholders globais em cinco continentes, fechamos
um investimento de dois milhões de euros e começamos,
em novembro de 2019, a recrutar as primeiras pessoas.
Foi aí que encontramos aqui espaço na bioquímica,
onde temos continuado.
In Sigarra U.Porto
Qual o objetivo principal do vosso trabalho?
Focam-se apenas em biomarcadores relacionados com a Doença de Alzheimer?
O objetivo principal da plataforma é usar a captura
de grandes quantidades de dados óticos para fazer
identificação de perfis biológicos. Isso, obviamente, tem
abordagens e objetivos a curto e longo prazo. Primariamente,
o que nós já estamos a fazer com alguns parceiros,
como empresas de biotecnologia, especialmente no
Reino Unido, é usar isto como uma plataforma de identificação
de analitos, como proteínas, vesículas..., para
cortar o tempo e custo da investigação pré-clínica. Devido
a algumas circunstâncias e, obviamente, ao facto de
sermos financiados por capital de risco, escolhemos as
doenças neurodegenerativas, em especial o Alzheimer,
como um caminho a seguir e, neste momento, primariamente
estamos a trabalhar nesse ângulo com empresas
de biotecnologia e farmacêuticas. O objetivo a longo
prazo é criar uma plataforma que consiga capturar e
integrar quantidades massivas de dados óticos baratos
e processar isso com pipelines de inteligência artificial
bastante avançadas e conseguir dar aos investigadores
de farmacêuticas, biotechs e hospitais ferramentas para
acelerar o desenvolvimento de novos tratamentos no
futuro. Obviamente, o objetivo é também providenciar
aos clínicos ferramentas que permitam perceber melhor
o paciente e avançar no caminho do que é a verdadeira
medicina personalizada.
No que toca às empresas farmacêuticas e ao desenvolvimento
de novos fármacos, é interessante que não é
importante apenas quantificar o máximo de marcadores
e dados possível, mas também perceber que um medicamento
que para ti te dá um aumento de 5% em algum
marcador, a mim pode dar-me um aumento de 0%. Se
eles analisarem uma população geral, vai dar um aumento,
provavelmente, de 2,5% que, se calhar, no limite,
está dentro dos limites do placebo e o medicamento
não é aprovado. Se eles conseguirem testar apenas em
pessoas com o teu perfil, podem dizer que o fármaco
não serve para pessoas com o perfil do Luís, mas serve
para pessoas com o perfil do João. Torna-se um medicamento
personalizado, porque não funciona para toda a
gente, mas, para quem funciona, funciona muito bem.
Isso é o futuro da medicina. Tal como quando vamos ao
pronto a vestir cada um tem o seu tamanho. No caso da
medicação houve muito tempo em que se tentou que
todos os fármacos funcionassem para toda a gente, mas
há muitas doenças em que não funciona, e o caso da
Doença de Alzheimer é claro.
Nos últimos 20 anos tivemos mais de quatrocentos
estudos clínicos falhados sobre Alzheimer e tivemos,
muito recentemente, um medicamento aprovado,
que causou muita controvérsia, pela FDA, nos Estados
Unidos, porque se conseguiu provar que ele funcionava
bem num grupo da população, mas tinha sido testado
no grupo errado. Existe essa corrente de pensamento de
que há muitas doenças paras as quais já se descobriram
medicamentos que funcionam, mas não funcionam na
população toda e, como testámos na população toda,
aquilo dá um efeito assim um bocado estranho, acabando
por não ser aprovado. É a visão por trás da iLoF: massificar
ferramentas para que farmacêuticas, empresas de
biotecnologia e, eventualmente, clínicos as possam usar
para democratizar a medicina personalizada.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Neste momento, estão ainda em fase de criação de base de dados ou já têm ação perto
de empresas e instituições de saúde?
Nós vamos fazer 3 anos em meados deste ano, por
isso estamos numa fase que para uma startup parece já
antiga, mas para um deep tech não é. Temos exemplos
de outras empresas fantásticas como a FASTinov, uma
empresa fundada pela Professora Doutora Cidália, que
está à frente e com um crescimento brutal, mas que leva
já mais anos. O desafio das deep techs é que demoram
algum tempo a evoluir.
Neste momento, estamos a capturar quantidades
muito grandes de dados para criar esta base de dados.
Estamos também a fazer testes de correlação. Eu não
sei se já chegaste ao ponto no curso em que ouves falar
da proteómica, metabolómica e multiómica, mas genómica
já ouviste falar seguramente. A genómica tem
muito interesse em dizer qual é o perfil com que tu nasces,
qual é o teu baseline, mas não é tão capaz de dizer
como é que o teu perfil se vai alterando à medida que
tu envelheces, fazes diferentes escolhas de vida, comes
melhor e comes pior... isso tudo afeta o teu perfil e a
forma como o teu risco evolui. A abordagem multiómica
é o estudo do perfil biológico como um todo. Nós, neste
momento, temos uma abordagem de captura de dados
muito mais barata, usando a ótica, a luz. Assim, estamos
a capturar grandes quantidades de dados óticos e a fazer
estudos de correlação genómica com a proteómica e
afins. Estamos, em paralelo, já a trabalhar com algumas
farmacêuticas, e empresas de biotecnologia, maioritariamente
fora de Portugal, no Reino Unido, e esperamos,
dentro de 12 meses, estar no mercado com uma solução
para investigadores em farmacêuticas, biotechs e instituições
académicas que os ajude a cortar o tempo e custo
de levar medicamentos para o mercado. Esperamos,
depois, em 24 a 36 meses, estar no mercado com uma
solução mais abrangente para área clínica que ajude
na triagem do paciente num ambiente clínico. Algo tão
simples como um projeto que fizemos aqui com o Hospital
de São João e com a Faculdade de Medicina: um
modelo preditivo capaz de perceber, quando infetados
com COVID-19, quais são os pacientes que vão ficar em
condição grave e ter de ir para os cuidados intensivos e
quais os pacientes que apenas vão ter sintomas leves a
moderados.
Quais os tipos de amostras de produtos
biológicos que vocês recolhem?
Maioritariamente são amostras de sangue. Fluídos
sanguíneos, plasma ou soro é o que nós mais usamos.
A tecnologia de base tem a visão de usar fluidos corporais
como saliva e urina para detetar estes analitos
e criar estes perfis biológicos. Porquê sangue? Porque
há bio bancos por todo o mundo que captam grandes
quantidades de sangue, como aqui no São João, e é de
fácil acesso, para além de ser um meio já muito bem
estudado.
Essas amostras são colhidas a pessoas com uma determinada patologia para estudar os
biomarcadores da mesma ou a pessoas saudáveis?
Depende... Por exemplo, para o caso concreto do
projeto que tivemos aqui a decorrer com o Hospital de
São João na área do COVID, nós formos buscar pacientes
que já tinham uma bateria de testes feita e depois
relacionámos a nossa assinatura ótica com os biomarcadores
que já conhecíamos e fizemos um modelo preditivo,
com inteligência artificial, que conseguia detetar
a presença de alguns marcadores e classificar com base
em alguns outcomes. Varia muito dependendo do projeto.
Nesta fase ainda estamos a ir buscar cohorts muito
específicos, focados em problemas concretos. No Reino
Unido, estamos, com uma empresa, a criar um modelo
para detetar um péptido específico, obviamente, para
treinar esse modelo precisamos de grandes quantidades
de dados específicos àquele caso.
Qual o vosso objetivo em relação à Doença
de Alzheimer?
Nós temos duas possibilidades: conseguimos ir
buscar os biomarcadores específicos do Alzheimer ou,
e isto é o que nos distingue, conseguimos ir buscar um
perfil agnóstico, em que não necessitamos de saber
se é a proteína x, o pépetido a ou o exossoma c, mas,
pela assinatura conjunta, conseguimos dizer qual é o
perfil do paciente com Alzheimer, o perfil do paciente
com défice cognitivo ligeiro e o perfil de um paciente
baseline. Nós, neste momento, temos já centenas de
perfis capturados, uma grande parte deles em Alzheimer,
e conseguimos ver essas diferenças com muita
clareza.
Acha que, no futuro, esta tecnologia pode
substituir, por exemplo, as punções lombares,
no caso da Doença de Alzheimer?
“
“
O objetivo é exatamente
Neste momento eu posso dizer que 90% dos pacientes
desistem dos estudos clínicos de Alzheimer
quando lhes dizem que vão ter de fazer punções lombares
e mais do que uma vez, porque, nestes estudos,
tem de ser uma medição contínua no tempo. O objetivo
é uma ferramenta não invasiva, confortável e
humana que permita fazer a essas avaliações. Isto é
muito importante no caso do Alzheimer para o desenvolvimento
de medicamentos que alterem o curso da
doença. É importante haver ferramentas destas para
ajudar os medicamentos a chegarem ao mercado mais
rapidamente. A partir da estreia no mercado, é importantíssimo
usar ferramentas destas para rastrear a população
geral, até porque, muito provavelmente, serão
medicamentos mais eficazes numa fase assintomática
da doença.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
Virtuleap
AMIR BOZORGZADEH
What’s your background? Can you tell us a bit about your
journey?
I
grew up in Canada. My professional
background began
as a market researcher
with thousands of quantitative
and qualitative studies. While
I was in Dubai, for about eight
years, I got into mobile games
publishing. I had a studio and
I ran some interesting experiments
about the social impact
of games and online platforms. I
moved to Amsterdam back in 2015
and I started writing for Venture-
Beat and TechCrunch about virtual
reality, augmented reality and
emerging technologies and how
they intersect in areas that were
interesting to me. I wasn´t a professional
journalist, I just did it for my
own research. I wanted to enter the
space, but I wanted to understand
what that space was. So, I started
writing a lot for about four years,
and, I think, about two and a half
years into that, I got into figuring
out what I wanted to do. So: market
researcher, games publisher, tech
writer and then, finally, founder of
a virtual reality company that ultimately
has its headquarters here in
Lisbon, Portugal.
Did those ideas to create your company come from your
time as a tech writer or did they appear before that?
A VIRTULEAP É UMA STARTUP COM SEDE EM LISBOA QUE TEM COMO
OBJETIVO A CRIAÇÃO DE MEIOS EFICAZES DE AVALIAÇÃO E TREINO DE
CAPACIDADES COGNITIVAS ATRAVÉS DE TECNOLOGIAS EMERGENTES
COMO A REALIDADE VIRTUAL E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. O DESENHO
DOS JOGOS E TECNOLOGIAS QUE PRODUZ TEM POR BASE A MAIS RE-
CENTE INVESTIGAÇÃO NOS CAMPOS DA NEUROCIÊNCIA E CIÊNCIA DO
COMPORTAMENTO, DE MODO A POTENCIAR AO MÁXIMO O SEU IMPAC-
TO COGNITIVO.
AMIR BOZORGZADEH É O CEO E CO-FUNDADOR DA VIRTULEAP, COM
QUEM ESTIVEMOS À CONVERSA PARA CONHECER UM POUCO MELHOR
O PROCESSO DE CRIAÇÃO E OS OBJETIVOS DA EMPRESA E RECOLHER
ALGUM DO CONHECIMENTO QUE ESSA EXPERIÊNCIA LHE PROPORCIO-
NOU.
The initial seed of it came during the writing. We
ran online hackathons for VR and had a lot of participation
in the community. I started seeing what community
developers were creating and, when we started
Virtuleap, back in 2018, it initially began as something
different. We were creating algorithms that could analyze
all of the data in virtual reality scenarios in order
to know whether the person is focused, nervous…
a lot of emotions. We felt we could create analytics that
could actually understand whether you are emotional,
because of all the body language and all the physiological
sensors that virtual reality has in hardware. After a
year into running that company and developing these
algorithms, we were creating these games. The games,
which are ultimately neuroscience-based games, scientific
driven games, were about giving a sense to
individuals about their cognitive health. And then we
realized the games were more interesting for the market
than the actual algorithms Basically, in the startup
community, that’s called a pivot, and that was a very
monumental moment for the company. In May 2019
we pivoted into the current version of our company. So:
writing leads to some idea that I want to be in the vr intersection
of healthcare and education, specifically education.
Then, we get into the startup and it’s very much
about the analytics and the analytics from the point of
view of health and education, because it can be useful
for training purposes and have therapeutic applications.
And, finally, we pivoted because the market was telling
us that this was a more viable business model than the
algorithms. Running a company that sells algorithms or
figuring out how you do sell algorithms is far more challenging
than a product-driven company that is creating
games that are actually available to consumers directly.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
It’s a “games as
medicine” product that
would be one of the
main milestones within
five years.
A REALIDADE VIRTUAL AO
SERVIÇO DA MEDICINA
In the beginning, what was the purpose of the algorithms you were creating and data
you were collecting?
It was basically giving you core data, like the
heart rate or if the person is more nervous because
of this environment in the VR. It’s like being able to
give telemetric data to the creators of this content so
that they can be able to shape the experiences and
improve the comfort levels of their content. We call
it biometric algorithms because they are about the
physiological state of the individual. Someone might
want to use this in a healthcare setting, but initially
we weren’t thinking about healthcare. We were thinking
about what this whole new 3D world is in terms
of opportunities and what are the new tools that need
to be created. Google Analytics gives you, for your
website, KPIs (Key Performance Indicators) like traffic,
drop-off and retention. In virtual reality we are talking
about a 3D rendered environment that is embodied,
and in an embodied digital format, your body is giving
all sorts of KPIs about whether that experience is
giving the intended kind of user experience design.
For user content that is intended to be emotionally
engaging, you might like that you’re seeing a lot of
excitement, but in an educational, school-driven experience
or meditative one, you might want to bring
that reaction down. And you can actually infer these
things, the physiological reactions of individuals in
VR, in a way that can give you a lot of insight on how
to create highly accessible, highly comfortable or
highly engaging content. So: neurofeedback, physiological
sensors… biometrics was the term we used to
call it. When we created those algorithms, we created
games in order to test whether the algorithms were
working; we were using the games for our own testing
purposes. Then we understood the games were more
interesting than the actual algorithms and much more
The games you’re producing now are more focused on improving memory and attention,
right?
We try to avoid saying whether they improve it…
that’s ultimately what the clinical studies will show.
It’s a very controversial field. There’s a lot of controversy
in terms of: “Can we improve memory? Or is it
actually just that, if you play these games a lot, you get
better at the games and then you think your memory
is better?”. We call that: transferability. In the industry
we try to find out scientifically, in clinical studies, and
studies in general, that get peer-reviewed and published,
whether we see any evidence of transferability:
does playing this game, or these fifteen games, - some
focused on memory (short-term, long-term, working
memory), some focused on attention, some focused
on spatial orientation, spatial audio-awareness, information
processing - make you better at remembering
your grocery list or does it not; is there evidence that
it improves your working memory?… Whether it can
be therapeutic is one of the applications of our technology.
Whether it’s a great monitoring tool that gives
you a sense of how you’re performing in certain areas
is another. For example, we know, based on our
data, that people who sleep less than 6 hours per day
see their scores drop in certain memory and attention
scores, but not other ones. The same goes for sleep
monitoring.
We are becoming a very data-driven population
where the games can be a monitoring tool, potentially
therapeutic – for example, if I had ADHD, maybe I
could use this to counterbalance my tendency to a
lack of focus – and maybe the data can be used for
applications in something else. So, there’s a few different
areas, but what we are, essentially, an emerging
technology-based startup. That means that we
are, sadly, almost all the time, in pilot-mode, because
we’re working with a pharma company here, a hospital
there, a private high school there, and we’re trying
to figure out what are the business models. However,
we are not, right this moment, in a position where we
know exactly what’s the best market to address first.
It’s really hard when you’re a company based on
emerging technology that isn’t mainstream yet. We
have an application that you can download… we
have about forty thousand registered users in four
languages, including European Portuguese - we have
four more languages launching this year - but we
don’t charge for it, it’s free. Then we have a platform
with a data portal and companion applications that
allow clinicians to remote-navigate the experience of
the person in the VR, with their phone, and add survey
questions before and after the session, for clinical
settings. We’re navigating the field and trying to
understand and explore what is the business model
and the applications, because, unfortunately or fortunately,
we have a variety of different paths ahead of
us, which can be a weakness or a strength, depending
on how the company is managed.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
What’s your main consumer at the
moment?
We have been making revenue, since
last year, with organizations that are using
us for rehabilitation in hospitals – cognitive
reimplantation for stroke, for example – and
that’s our main client. The second biggest
client, for the data side, is HP. We’re really
trying hard to work with pharma companies,
because we think our solution can pare
nicely with drugs for Alzheimer’s and other
cognitive disorders. But, as I said, we’re still
in exploratory mode and figuring out things
as we go.
Can your products be a tool for
self-development and mental
health?
I think one of the insights in companies
like us is: you shouldn’t be focusing on your
strengths; you should be trying to figure out
what your weaknesses are and why you avoid
developing them. People mask their weaknesses
by overdeveloping their strengths
and whenever their weaknesses are being
touched on in some activity in life, they realize
it’s something they were unconscious
about. We avoid and sometimes are not even
aware of what we’re weak on and in all these
circumstances we gravitate towards activities
that are petting on ourselves in terms of
our strengths. That is ultimately, in my opinion,
detrimental.
People right now are so much in a rush
to succeed, they’re under so much pressure,
and it’s only getting worse and worse… since
covid, everything has gotten, in fact, worse…
There are so many more mental health startups
out there, but I think we are the most
mentally unhealthy we’ve ever been. I think
we are more mentally unhealthy as a society
than we were last year and the year before
that, and I think it’s on decline. Instagram,
tiktok… are destroying our capacity to be
versatile and resourceful. The only way to
stand out is being really good in one thing
and that kind of focus causes a one-sidedness
in our perception and, because of that,
we’re not able to cope and deal with life as
effectively, because we’re underdeveloped
in so many fundamental ways that have an
equal role in contributing for our mental fitness
and health.
Our data shows people are caricatures,
What’s your plan for the next five years
and what’s your ultimate goal?
We have two clinical studies underway right
now. One is in Spain, focusing on whether we’re
slowing down the rate of cognitive decline in people
with type II diabetes, which is a two-year study.
The other one is in the US, where we’re mapping
the game-play patterns of people with Alzheimer’s
disease to potentially create algorithms that
can detect the condition years before it becomes a
problem. We’re studying those patterns and whether
we can identify the people who are starting to
have a tendency towards those patterns. Those
are going to take at least two years to finish and
probably another year to publish the results, after
having them peer reviewed. In the next three to
five years, we would have a digital therapeutic,
reimbursable by insurance companies, in markets
like the US and Germany, so that it’s something the
healthcare system actually reimburses as medicine.
It’s a “games as medicine” product that would
be one of the main milestones within five years.
I also want it to be considered as the new gold
standard for cognitive assessment. When people
want to, in high school, do an assessment of
their IQ, they should also be using our games to
see their cognitive performances and see where
they’re weak and strong. We have so much data
that is worthwhile for students and companies to
use for HR and performance programs… It’s not
just a healthcare solution, it’s also a wellness and
productivity solution. So, hopefully, the clinical
studies will give us reputation as a technology that
is worthwhile for education and training as well.
weird shapes where some things are overdeveloped at the
expense of underdeveloped things. We need to break away
from this erroneous idea that we can only succeed by being
really great in one way. I think we are in a position, now,
to start focusing on everything we’re trying to avoid. These
data driven solutions, like ours, reveal things that you might
not like, but the more you acknowledge these things, the
better for your long-term health.
As a CEO, what’s the advice you have for us
STUDENTS?
It doesn’t matter what you do, it just
matters that you do something. It doesn’t
matter what it is, you just have to start it
and, when you start something, a process
begins, and that process will go somewhere.
It’s like dropping a marble on
some path and it just goes somewhere
based on gravity and what the world is
like in accordance to how it reacts to
you. People go: “Follow your dreams!”…
What the hell are you talking about?
What dreams? I don’t have any of these
things… Is there something wrong with
me? Am I not talented?... You have to
get rid of all those preconceptions and
ideas, focus only on yourself and how you
relate to the world and, whatever way
that happens, when you just take steps
of any kind to do something, when you
do things, they lead to things. One thing
progresses to the next. It’s a process. Begin
processes!
It doesn’t matter finding the best
idea. In our company, the pivot happened
because we tested it. If you do the wrong
degree, or the wrong specialty, or pick
the wrong job, don’t blame yourself, don’t
get stuck in hiccups about things. It’s all
inevitable and you have to chill the hell
out and just do things. Then, you’ll get
more data from the universe on what
direction you’re supposed to be going.
People I’ve talked to don’t do startups
or certain special ventures or projects
or hobbies because they’re in their own
way! There’s no reason they can’t start
something. I think a lot of us are stuck,
and there’s nothing worse than feeling
stuck, so get unstuck as soon as possible,
because anything you do will be better
than not doing something.
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
A forma como se nasce importa:
Histórias de violência obstétrica
O
conceito de Violência Obstétrica foi introduzido
no âmbito legal em 2007, na
Venezuela, tendo sido definido como
“a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos
da mulher por profissionais de saúde, representando
tratamento desrespeitoso, abuso de
intervenções farmacológicas e conversão de processos
fisiológicos em patológicos. Implica perda
de autonomia e da possibilidade de livre escolha
da mulher sobre o seu corpo e sexualidade, afetando
negativamente a qualidade de vida da mesma”
(1).
A institucionalização do parto teve, sem dúvida,
um grande impacto na redução da mortalidade
materno-infantil. Porém, promoveu também
a transformação de um estado/evento fisiológico
num processo patológico (2), na medida em que a
“necessidade” de monitorização e/ou intervenção
torna a mulher uma espectadora.
A apropriação do corpo feminino durante o
parto remonta ao século XVI. Ambroise Paré e Jacques
Guillemeau, ambos cirurgiões franceses da
época, defendiam a adoção da posição em decúbito
dorsal durante o trabalho de parto, mais tarde
impulsionada por Mariceau. No seu livro de 1668
“The Diseases of Women With Child and Child-
-Bed”, Mariceau defendia que a posição reclinada era mais confortável e conveniente para o médico. (3)
Quase 400 anos depois, ainda é comum a perda de autonomia das mulheres durante o parto, seja
pelo jejum forçado durante o trabalho de parto, seja pela perda de mobilidade ou mesmo pela execução
de intervenções farmacológicas e/ou invasivas sem consentimento informado ou com recurso à coação.
Este fenómeno não se restringe apenas aos países em desenvolvimento, estando presente em países
industrializados como Canadá ou os Estados Unidos da América. (4)
As vivências negativas durante a gravidez e o parto têm impacto na saúde mental durante o puerpério.
De facto, um estudo de 2020 sobre coação informal durante o parto verificou que as mulheres
sujeitas a este tipo violência tinham maior probabilidade de desenvolver depressão pós-parto. (5)
Apesar de a definição usada na lei venezuelana se referir aos profissionais de saúde como perpetradores
destes atos, o facto é que o modelo biomédico de assistência ao parto é o principal responsável
pela violência obstétrica. (6) O uso de protocolos estandardizados, por exemplo, não permite a prestação
de cuidados de saúde centrados na parturiente. Ainda, a falta de recursos humanos e logísticos impede
o acompanhamento mais personalizado das grávidas durante o trabalho de parto e condiciona o tempo
atribuído ao trabalho de parto, deixando as mulheres numa corrida contra o tempo.
O parto humanizado e o papel dos profissionais de saúde na resolução do problema da
violência obstétrica
A evidência mais recente demonstra que as experiências positivas durante o parto são determinantes
para a saúde materno-infantil, sendo essencial proporcionar um ambiente que promova o vínculo
mãe-bebé. Efetivamente, as recomendações da Organização Mundial de Saúde de 2018 são claras nesse
sentido. (7)
Um estudo publicado na revista The Lancet, em 2022, verificou que, por exemplo, o recurso à manobra
de Kristeller ainda é prevalente em diversos países europeus, incluindo Portugal (8), apesar de ser
considerada má prática médica.
Diversas sociedades médicas de obstetrícia e ginecologia, incluindo a sociedade portuguesa, não estão
de acordo com o uso do termo “Violência Obstétrica”, considerando-o ofensivo e, no caso português,
negam a sua existência. (9-10) Não obstante, os abusos existem, apesar de não se saber a sua prevalência
real. As mulheres deles vítimas relatam ter-lhes sido roubado um momento
extremamente especial da sua vida. (11)
O dilema ético entre a autonomia da mulher e a beneficência do bebé
será sempre uma área cinzenta. Neste contexto, a tendência fetocêntrica
conduz à aceitação generalizada de que uma intervenção “tem que ser feita”,
mesmo que seja contra a vontade da mulher ou a sua indicação seja dúbia.
Assim sendo, questionar determinadas práticas não implica diminuir a
entrega ou a dedicação dos profissionais de saúde materno-infantil. Os profissionais
precisam de ouvir as mulheres e caminhar em conjunto para melhorar,
ainda mais, a prestação de cuidados. Certamente, este diálogo irá traduzir-se
em ganhos de saúde quer para as mulheres quer para os seus bebés.
Referências
(1) Organic Law on the Right of Women to a Life free of Violence, 2007, Caracas, Venezuela. Retrieved:
Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia.
(2) Torres JA, Santos I, Vargens OMC. Constructing a care technology conception in obstetric nursering:
a sociopoetic study. Texto Contexto Enferm. 2008; 17(4) 656-64.
(3) Dundes L. “ The evolution of maternal birthing positions” Am J Public Health. 1987 May; 77(5):
636–641.
(4) Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC et al. The mistreatment of women during childbirth in health
facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLOS Medicine 2015
(5) Oelhafen S, Trachsel M, Montevede S et al. “ Informal coercion during childbirth: risk factors and
prevalence estimates from nationwide survey among women in Switzerland” https://doi.org/10.1101/202
0.10.16.20212480
(6) Garcia L. “ Theory analysis of social justice in nursing: Applications to obstetric violence research”
https://doi.org/10.1177/096973302999767
(7) WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Guideline 7 February
2018
(8) Lazzerini M, Covi B, Mariani I, et al. “Quality of facility-based maternal and newborn care around
the time of childbirth during COVID-19 pandemic: online survey investigating maternal perspectives in 12
countries of the WHO European Region”. The Lancet Regional Health- Europe 2022; 13:100268.
(9) Los colegios médicos niegan el concepto de «violencia obstétrica» (lavozdegalicia.es)
(10) Visão | Violência obstétrica: Ordem dos Médicos conclui que termo não se aplica em Portugal,
vítimas, ativistas e profissionais de saúde garantem que sim (sapo.pt)
(11) Niles PM, Stoll K, Wang JJ et al. “I fought my entire way”: Experiences of declining maternity care
services in British Columbia. PLos One. 2021 Jun 4; 16(6):20252645.
Dra. Sofia Teixeira da
Cunha
• Especialista em Cirurgia
Geral pela FMH (Federation
Medicorum Helveticorum)
• Membro-fundadora do
Observatório de Violência
Obstétrica em Portugal
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
A Ética do
Envelhecimento
Entrevista a Prof. Dr. Miguel Ricou
Quais considera serem os principais desafios éticos apresentados pelo envelhecimento?
Como os podemos contornar de forma a praticar a melhor medicina para os nossos doentes?
Essas são sempre as perguntas de 100 milhões. Responder a isso de forma objetiva é muito difícil. Não é só
uma questão de haver uma população envelhecida e falta de recursos, também existem muitos desafios
ligados à desumanização que isso nos vai provocando.
Vivemos num mundo paradoxal. Por um lado as pessoas são cada vez mais diferentes umas das outras e, portanto,
com necessidades específicas a serem atendidas por uma medicina cada vez mais personalizada. Por outro, temos
cada vez mais dificuldade em fazê-lo, no sentido em que a medicina é cada vez mais tecnológica e tenta encontrar
respostas que consigam atingir e ajudar o maior número de pessoas por ser, no longo prazo, menos dispendioso e
porque, evidentemente, há cada vez menos tempo e mais dificuldades.
Encontrar o equilíbrio entre estes dois pontos é a chave para não perder aquilo que é fundamental na nossa
capacidade enquanto profissionais de conseguir compreender os doentes e fazê-los sentirem-se compreendidos.
Isto, de alguma forma, é o que lhes dá mais segurança.
Por fim, encontrarmos soluções exequíveis tendo em conta a escassez de recursos que não só vai continuar, como
aumentar, ao longo do tempo. Em suma, não cairmos numa desumanização total e tornarmos a medicina uma mera
aplicação técnica.
Recentemente, Portugal assistiu a acesos debates face à legalização e consequente enquadramento
legal da eutanásia e suicídio assistido. Quais foram os principais entraves a
estas discussões, e como se posiciona Portugal no panorama internacional?
Na verdade, só agora de alguma forma a sociedade a chamou. E, ainda assim, se repararmos, foi uma elite intelectual
que trouxe esta discussão, mas não importa. O que importa é que ela veio a ser discutida e as pessoas têm
aparentemente uma sensibilidade positiva em relação a isto.
Tenho muitas dúvidas acerca da aplicação de um referendo para este tipo de situações. Tenho muitas dúvidas
SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
que as pessoas consigam pensar para além do que são as suas crenças, os seus medos e as suas
dificuldades, o que é legítimo. Mas temos que nos conseguir preocupar sobre isto e sobre as
consequências que possa acarretar com uma perspetiva mais global.
Se a discussão sequer existiu, eu também tenho algumas dúvidas. Pelo menos com a profundidade
e a clareza com que eu gostaria. Mas ainda vamos a tempo, porque, afinal de contas, ainda
temos algum caminho a percorrer.
Considera adequada a atual literacia dos idosos face aos direitos recém-
-conquistados relativamente à tomada de decisão no final de vida? Através
de que meios podemos trabalhá-la, e seria ético procurá-la?
Eu acho que é absolutamente ético procurá-la. A ética serve para dar respostas e nos ensinar
a encontrar as melhores soluções. Não há princípios ou valores que sejam absolutos. Se não há
valores absolutos, quando a sociedade pede, temos que conseguir pensar nas consequências
positivas e negativas e tentar tomar as melhores medidas para evitar as negativas e reforçar as
positivas. Não podemos partir de pré-decisões sobre o que queremos e não queremos e depois
tentar encontrar argumentos que o sustentem.
Esse, para mim, é o grande problema, pois é uma dimensão muito ligada às pessoas. Não há
ninguém que nunca tenha pensado na morte. De cada vez que nos confrontamos com a morte,
pensamos na nossa, na de pessoas próximas e no sofrimento que isso provoca. Por isso, facilmente
se fazem e constroem opiniões, e só depois se parte à discussão. Não vejo, na maior parte
das vezes e pela maior parte das pessoas, esta discussão centrada nos pontos onde deveria estar.
Muito rapidamente: onde é que acho que ela deveria estar? Primeiro, nas próprias definições. Fazem-se
confusões entre eutanásias passivas, ortanásias, eutanásias ativas, suicídios assistidos…
Assim, as condições sobre as quais é estruturada a lei não são compreendidas, tanto menos o
seu alcance. De momento não temos lei nenhuma, mas vamos ter uma muito semelhante à que
foi proposta. Portanto, inevitavelmente, não são conhecidas as aplicações da lei, as situações nas
quais se coloca e quais são as pré-condições.
Vê-se a eutanásia “single noun”: “Eu acho que sim porque as pessoas devem decidir”, ou
“Eu acho que não porque a vida é um valor inalienável”, e a discussão fica muito limitada.
Assim, onde é que não se faz a discussão? Onde não se faz investigação e desenvolve conhecimento? Na forma
como as pessoas gerem as decisões e vontades. Investimos, e muito bem, no estudo do suicídio, mas nunca investimos
no estudo da morte antecipada. Parece que, se as pessoas pedem para morrer no contexto de uma doença,
sabem seguramente aquilo que querem e aquilo que não querem sem qualquer dúvida. Teremos dificuldades, se
assim continuarmos, em ajudar as pessoas neste contexto. O fundamental é conseguir acertar o mais possível, e
acompanhar as pessoas ao longo deste processo. É isso que, de facto, ajuda a mitigar o sofrimento. Além de que não
A autonomia corporal e de decisão são fatores que se tendem a deteriorar ao longo dos
anos, e Portugal tem uma das maiores diferenças europeias entre esperança média de
vida e esperança média de vida com saúde. Quais padrões decidem a autonomia na tomada
de decisão, e o que deveria ser feito para prolongar este intervalo de tempo?
Nós continuamos a valorizar demasiado a autonomia, o princípio que resolve tudo. Fazemos o que as pessoas
querem e está resolvido. Acho que a grande dificuldade é conseguir ajudar as pessoas a definir o que querem, e
fazê-las sentirem-se compreendidas. Fala-se tanto em humanização, mas ninguém sabe o que é humanização. Para
mim, humanização é tratar as pessoas de acordo com as suas caraterísticas e por aquilo que elas são. Chegar a elas,
preocupar-se com elas e com o que pensam, sentem e vivem.
Além disto, há uma série de condições que não têm a ver com os cuidados de saúde, mas sim com a própria
sociedade. Há toda uma dimensão socioeconómica a ser trabalhada. Todos já ouvimos histórias de idosos a viver
isolados, sem acesso a cuidados de saúde. Claro que isto condiciona um aumento do seu sofrimento.
Teremos que compreender que a vida não é feita de utilidades. Sabemos que o sentimento de integração e
funcionalidade são fundamentais a aumentar ou diminuir a discrepância de que falava entre o tempo de vida e o
tempo de vida com qualidade.
Por último, a personalização da medicina contribuirá para a construção de relações de valor com os profissionais
e sentimentos de compreensão e aceitação. Este é o caminho para que os pacientes consigam exprimir os seus
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SAÚDE, CIÊNCIA E POLÍTICA
receios, vontades e frustrações. É evidente que isto é a
utopia da ética, mas, sem dúvida, esse tem que ser o
caminho.
Com o crescente envelhecimento da população,
como prevê que se sustentará o Sistema
Nacional de Saúde? Será possível responder
à procura aumentada dos próximos
anos e com que qualidade?
A isto não sei responder. Tenho mesmo muitas dúvidas
e muito medo, confesso. A menos que arranjemos
fontes de financiamento milagrosas, vamos ter sérias
dificuldades. Mas quem toma decisões é que tem que
conseguir pensar nessas soluções.
A questão é muito desafiante, porque sabemos que
se as pessoas vão viver cada vez mais, vão passar mais
anos ao longo dos quais serão necessários cuidados
e ajuda. Pela forma como a sociedade está hoje organizada,
não vai haver tecido produtivo para sustentar
esta necessidade. Eu tenho muita esperança, com o meu
otimismo crónico, na Inteligência Artificial, que pode
rentabilizar muito a produção. Neste cenário, a produtividade
deixa de estar apenas associada ao que é a capacidade
de cada indivíduo produzir. Ainda assim, vamos
ter que trabalhar essas necessidades crescentes, porque
tudo tem que ter um limite. Evidentemente, não vamos
aguentar um sistema sempre a crescer.
Ando há procura de uma terceira via, mas ainda não
consegui construir nenhuma que me agradasse e que
não tivesse dificuldades. Provavelmente não há nenhuma
perfeita. Mas não tenho dúvida de uma coisa, somos
muito mais fortes se tomarmos decisões partilhadas,
nas quais nos consigamos sentir incluídos e revistos.
Isso, para mim, vai ser fundamental à construção de modelos
sustentáveis, ao invés da bipolarização que testemunhamos
hoje.
O acesso à habitação e condições dignas
de vida são essenciais ao envelhecimento
saudável, e questões pertinentes no domínio
das políticas públicas. O médico e a
sociedade têm um papel na sua garantia?
Acho que sim, a medicina, a educação e as condições
socioeconómicas básicas são os pilares básicos das sociedades
atuais. Sem saúde as pessoas não conseguem
ser elas próprias e, portanto, não têm capacidade de tomar
as suas decisões. Isto influencia o próprio funcionamento
das sociedades.
Quais são, a seu ver, as prioridades na promoção
do envelhecimento ético ao longo
dos próximos anos?
faixas etárias. Temos que abandonar a ideia de que o
velhinho tem que ter os filhos a cuidar dele, a responsabilidade
que tanto tempo existiu e que ainda pesa hoje.
Temos que evoluir no sentido de serviços personalizados,
com um grande investimento e de qualidade.
Não são depósitos, mas são sítios onde as pessoas
se sintam ativas, incluídas, positivas e autónomas. Para
que essa fase da vida seja cada vez menos uma fase do
fim da vida, mas antes uma fase como qualquer outra,
com as suas vantagens e desvantagens.
Prof. Dr. Miguel Ricou
Doutorado pela Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade de Coimbra na
área de Psicologia Clínica.
Mestre em Bioética pela Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto.
Licenciado em Psicologia Clínica pelo Instituto
Superior de Ciências da Saúde-Norte.
Associação Portuguesa de Bioética - Vogal da Assembleia
Geral.
Primeiro Presidente do Conselho Jurisdicional da
Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Representante no Board of Ethics da EFPA.
A ÉTICA SERVE PARA DAR
RESPOSTAS E NOS ENSINAR
A ENCONTRAR AS MELHORES
SOLUÇÕES. NÃO HÁ PRINCÍPIOS
OU VALORES QUE SEJAM ABSO-
LUTOS.
É o envelhecimento ativo. Este é um lugar-comum,
mas acho que é fundamental. São necessárias pessoas
muito formadas para conseguir trabalhar com estas
64 ZERO UM
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
Medicina Geral e Familiar e decorria uma palestra introdutória aos objectivos para aquele ano de formação específica.
Esta obra resulta da encomenda por Henry Tate a Luke Fildes, que pediu uma obra realista com pendor social.
Julga-se que Luke Fildes quis destacar a figura médica como homenagem ao médico que terá assistido o seu filho
doente. Detenhamo-nos um pouco no que vemos. Um médico que situamos na época vitoriana em visita domiciliária
para assistir uma menina doente. Ressalta de imediato a humildade da casa, evidenciada por elementos como sejam
a construção no geral, a decoração espartana, as cadeiras que não combinam e que servem simultaneamente de leito
à menina. A criança parece gravemente doente, a julgar pelas expressões circunspectas das figuras do quadro; no
casal – que se adivinha serem os pais da criança – o contraste entre o homem, que se divide entre o apoio à esposa
e, talvez, a procura de uma réstia de esperança em algum gesto do médico, e a mulher, que parece inconsolável na
sua dor, com a cabeça entre os braços. A luz incide na díade médico-doente. O médico cofia a barba e não parece
precisar de nenhum elemento da parafernália médica, tão só oferece a sua presença naquele momento, àquela família.
Os progressos terapêuticos e todos os avanços tecnológicos nos procedimentos diagnósticos revolucionaram
a Medicina nos últimos anos, para enorme benefício dos nossos doentes; não obstante, a presença, a escuta activa,
a relação com o doente são ainda o âmago do cuidar médico.
Um sonho caminhado
“The Doctor”, Sir Luke Fildes, 1891, Óleo sobre tela, 1664 x 2419 mm.
Fotografia: Tate Britain.
A arte encontra a Medicina
no nosso zero um
Drª Sofia Baptista
Mãe e Médica de Família (especialista
em Medicina Geral e Familiar).
Doutorada em Medicina, Professora
Auxiliar no MEDCIDS – Faculdade
de Medicina da Universidade do Porto.
Investigadora CINTESIS.
Correspondente Médica na CNN
Portugal.
Apaixonada por bossa nova e poesia.
De encontro ao “Médico” de Sir Luke Fildes
Quando andava pelo nosso “zero um” como estudante,
entre o agitado networking social e a
vontade de, nesse corredor de transição, caminhar
mais para os doentes e pousar por um pouco os livros,
nos momentos mais duros do caminho, “fugia” sempre para
a arte: ora escrevia poesia, ora ia à ópera. Julgava-a uma
forma de catarse, mas nunca na altura pensei que me poderia
tornar melhor observadora e ouvinte e, por conseguinte,
melhor médica. Hoje acredito inequivocamente nisto: para
além da evidência que se acumula para fundamentar esta
afirmação – pesem embora as óbvias dificuldades metodológicas
deste tipo de estudos – percebo como no dia-a-dia
clínico isto faz diferença, para médico e doente. Já aqui
voltaremos, pois tenho um convite a fazer-vos, mas só me
deram escassas páginas para vos escrever e, por natureza,
não gosto de faltar ao rigor, mas também não abdico do
que vos quero contar.
Cruzei-me tardiamente com a pintura “O Médico” por Sir
Luke Fildes, estava então no primeiro ano de internato em
Pois é, os sonhos caminham-se. Pelo menos, assim acredito. E este, parecendo que consigo dizer o dia e a hora em
que começou como ideia, sei que resulta de muitas vivências, de um gosto enorme por arte desde muito pequena, de
uma grande curiosidade por ouvir as estórias das pessoas, da experiência clínica da prática diária, de uma perspectiva
contemplativa em relação ao que me rodeia, mas também de algumas frustrações e metas que tiveram de ser
ajustadas às circunstâncias. Falo-vos da unidade curricular de inovação pedagógica, cuja primeira edição teve lugar
este ano “Observar: da arte à clínica”. Coordenada por mim e pelo Prof. Doutor Domingos Loureiro (FBAUP), nasce de
uma ideia colaborativa e iterativa entre FMUP e da FBAUP, com o objectivo primeiro de, através da arte, melhorar a
capacidade de observação e o diagnóstico clínico. Observar é uma ferramenta imprescindível a todos, no entanto, a
sua utilização no contexto clínico não é inata, por isso, nesta unidade, aprendemos a treinar o olho: primeiramente
com a observação de obras de arte, depois com uma breve introdução ao desenho da figura humana, fomentando a
discussão permanente para a translação para clínica e para o que vemos no doente, fomentando também a escuta
activa, a empatia e a consciencialização sobre o viés pessoal.
Rodrigo Abd/Associated Press (2012)
Nem toda a arte é pintura
(spoiler alert: contém exercício de observação)
Uma das competências a que nos iniciamos na aventura
da unidade curricular “Observar: da arte à clínica” são as estratégias
de pensamento visual (visual thinking strategies
- VTS). As VTS são um método de facilitação de discussões
sobre arte visual que visa melhorar a aprendizagem em
áreas diversificadas. De modo muito sumário, as VTS baseiam-se
na colocação e resposta a três questões:
• “O que se passa nesta imagem?”
• “O que vê aqui que o leva a dizer isso?”
• “Que mais consegue encontrar?”
Deixo-vos o desafio de pararem por um pouco, olharem esta foto e responderem às
três questões acima. Se quiserem descobrir o contexto da fotografia sigam este link:
https://learning.blogs.nytimes.com/2013/04/29/whats-going-on-in-this-picture-
-april-29-2013/
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
Entrevista a
RITA FERREIRA
Por outro lado, eu acho que todos os atletas têm momentos menos bons em
que pensam em desistir, mas temos de pensar se, a longo prazo, isso nos vai fazer
bem. Eu gosto muito daquilo que faço, ou não treinaria tantas horas, e momentos
maus todos passamos... É como quando estamos num curso e vemos que os exames
são difíceis e não queremos continuar, mas depois acabamos por ir buscar as
partes positivas e isso é o que nos dá garra e nos permite continuar.
Porquê a medicina?
Eu estava muito indecisa entre engenharias, principalmente gestão industrial,
e medicina e foi um bocadinho em cima da hora que optei pela medicina. Ao longo
da minha carreira tive algumas lesões e alguns médicos disseram-me que tinha de
abandonar a ginástica acrobática e dedicar-me a outra coisa, por vezes de modo
um pouco agressivo, e como eu sempre me interessei pela área da saúde, vi na
medicina o poder de juntar duas coisas – a saúde e o desporto – ligando-me ao
desporto através da saúde, no trabalho com atletas em recuperação... e, por isso, a
fisiatria e a ortopedia são do meu interesse.
Tens algum truque para conciliar a medicina e os treinos?
Eu agora estou um bocadinho mais focada na ginástica, porque, provavelmente,
este será o meu último ano competitivo e sei que o curso, depois, consigo fazê-lo.
É uma questão de definir prioridades e ter o tempo organizado. Na altura de
exames tento focar-me mais nos exames, faço menos horas de treino... isto se não
tiver competições importantes. Se coincidirem as duas coisas, tenho de optar pela
ginástica e recorrer a épocas especiais ou deixar para depois.
Qual a sensação de competir no Campeonato do Mundo e trazer o ouro? Que
locais mais gostaste de visitar nesse contexto?
A sensação é indescritível. Ir representar o meu país sempre foi, para mim, um
grande sonho. Sempre tive o sonho de fazer parte da seleção nacional e representar
bem o meu país. Tem corrido bem, o que para mim é um orgulho.... ouvir o
hino... faz com que todo o esforço valha a pena. Acima de tudo, eu gosto de fazer
os meus exercícios bem e treino muito para que isso aconteça. Se isso acontecer,
já fico feliz. As medalhas, os primeiros lugares dão-me o sentimento de que tudo
Desde que idade praticas ginástica acrobática e como surgiu esse interesse?
lembro-me de praticar ginástica acrobática desde os 5 anos, mas primeiro era uma ginástica mais
para crianças e aos 7 anos é que começou a ser mesmo ginástica acrobática. O interesse surgiu quando
os meus pais me levaram a uma aula, porque a minha professora de educação física do primeiro ano achava que eu
tinha jeito para a parte da ginástica e eles já me queriam inscrever num desporto extracurricular. Na altura, foram
comigo ao Ginásio Clube da Maia para experimentar, eu gostei e nunca mais saí.
Como era a carga semanal de treinos? Quando é que se tornou algo mais sério?
No início eram apenas 2 treinos por semana, porque era algo mesmo para crianças, chamado “fun gym”, que era
para nos atirarmos para colchões e brincarmos, não sendo nada competitivo.
Eu lembro-me que, aos 9 ou 10 anos, via competições do Acro Clube da Maia, que era já um clube de referência,
e queria começar a competir. Não me foi incutida nenhuma obrigação. Eu olhava para os mais velhos e queria ser
como eles, fazer o mesmo que eles. Foi por isso que, com essa idade, pedi à minha mãe para ir experimentar um
treino no Acro Clube da Maia, que é o meu clube desde então, e adorei. Foi aí que se tornou um bocadinho mais
sério para mim.
Ao longo dos anos houve algum momento em que tenha sido particularmente difícil conciliar o estudo e os
treinos? Em algum momento pensaste em desistir?
Agora que estou na faculdade é mais tranquilo... O 11º ano foi um ano mais complicado porque a carga horária
era grande, era o primeiro ano com exames nacionais e sempre tive algum rigor com a minha vertente académica.
Foi o ano em que mudei da escola pública para uma escola privada para ter um acompanhamento mais adequado
e uma gestão de horário um pouco mais facilitada, apesar de ter estatuto de atleta de alta competição. Esse ano foi
o mais complicado pela mudança de escola e também foi um ano difícil em termos competitivos, mas nunca foi um
bicho de sete cabeças.
Rita Ferreira e o seu par, Ana Teixeira, com o treinador, Lourenço França
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
compensou... receber as inúmeras mensagens, mesmo das meninas mais pequenas do clube, faz valer a pena. Para
além disso, para Portugal foi um abrir portas, porque, até ao ano passado, ainda não tínhamos tido nenhuma medalha
em nenhum Campeonato do Mundo, por isso ninguém acreditava que seria possível. Nós éramos as loucas
que estavam a tentar fazer o impossível... Acho que isso abriu portas para o país e ajudará as próximas gerações de
atletas a acreditar que é possível.
Os países que mais gostei de visitar foram os EUA, fui a Las Vegas e foi incrível, Israel e China. Este foi o meu top
3. Fui agora ao Azerbaijão e também gostei, mas não está no meu top 3.
Qual é, neste momento, o objetivo pelo qual estás a trabalhar?
Nós temos uma Taça do Mundo para a semana, aqui na Maia, mas agora estamos a trabalhar para os World Games,
que serão em julho. A ginástica acrobática não é um desporto olímpico, mas temos uma competição que é como
os Jogos Olímpicos, os World Games, também de 4 em 4 anos – por isso tivemos a sorte de ter a idade certa para ir
–, para os quais Portugal conseguiu alguns lugares e vai levar uma equipa grande. Estamos a trabalhar a sério para
isso que também é um sonho.
A Arte, a Cultura,
a Psiquiatria e o
Estigma
Vês a ginástica na tua vida daqui a 10 ou 20 anos?
Sim. Eu já estou a tirar todos os cursos possíveis. Já tirei o curso de juiz, agora estou a fazer o estágio do curso
de treinador..., portanto é algo que quero ter sempre presente, porque, na verdade, não me vejo sequer a deixar de
treinar, quanto mais deixar aquele complexo que é mesmo uma segunda casa. Eu passo lá uma grande parte da
minha vida. Hoje de manhã já fui treinar, agora tive aqui um tempo de pausa e vou treinar outra vez à tarde e isto é
a minha rotina. Eu não me vejo a deixar de vez isto, e, por isso, dar treinos é o meu plano para o futuro.
Rita Ferreira e Ana Teixeira no Campeonato Europeu de
Ginástica Acrobática
uma entrevista a
Drª. Inês Homem de Melo
Como é que a música surgiu na sua vida?
Eu canto desde os 8 anos. A minha mãe pôs-
-me num coro chamado “Círculo Portuense de
Ópera”, que tinha uma parte para adultos e
uma parte para crianças. Não é que alguém na minha
família fosse muito musical, simplesmente a minha mãe
achava que eu tinha jeito, que cantava bem, e viu um
concerto desse coro e inscreveu-me. Foi um momento
determinante na minha vida, porque aquilo era um coro
bastante sério – tinha 2 ensaios por semana – e os concertos
eram maioritariamente encenados. Nós fazíamos
a parte das crianças das óperas, isto num tempo em que
havia, ao contrário de hoje, imensas óperas a acontecer
no Coliseu. Portanto, eu comecei a cantar diretamente
em cima do palco e já com a música casada com a
encenação. Isso foi determinante para mim. Sempre
entendi a palavra como uma parte importantíssima da
música - o significado das coisas, que personagem estaria
a cantar aquilo... e é assim que eu desde criança
até agora entendo a música e, nos meus concertos, faço
sempre questão de contar a história das canções, quem
as escreveu e porquê!
Rita Ferreira e Ana Teixeira no Campeonato Mundial de
Ginástica Acrobática, em Baku
E a música esteve continuamente na sua
vida?
Continuamente. Eu experimentei muitas coisas na
minha vida. Agradeço aos meus pais por me terem dado
a oportunidade de saltitar imenso de atividade em atividade
quando era criança e adolescente. Mas a música
nunca troquei, desde os 8 até agora, nunca saiu da minha
vida!
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
Como é que surgiu a oportunidade de participar no festival da canção e como é que viveu
essa experiência?
Eu queria já há muito tempo participar no Festival da Canção, mas nunca se tinham alinhado os astros. Na
nossa vida, estão sempre coisas a acontecer e acabamos por dar prioridade às tarefas de curto e médio prazo.
O prazo mais desafiante que me ofereceram até hoje acho que foi a PNA, porque é de muito longo prazo
e, para pessoas com a minha estrutura do “agora, agora, agora”, é um desafio enorme. Participar no festival era sempre
a longo prazo, por isso nunca ganhava aos outros prazos que eu tinha... Até que conheci o Pedro Marques, que
é o compositor da minha música, porque a minha mãe encomendou uma canção para oferecer à minha irmã Sara
no dia em que ela tivesse o seu bebé. Eu não o conhecia lado nenhum, a minha mãe é que o conhecia das aulas de
ginástica ao ar livre que começou a fazer na pandemia. Na altura, ela escreveu um poema e, literalmente, encomendou
ao Pedro uma canção de embalar que haveria de ser cantada por mim. É que o Pedro é compositor de bandas
sonoras, por isso está habituado a escrever por encomenda! Ele fez, eu conheci-o no estúdio, adorei a maneira dele
trabalhar, o espírito dele e a forma como ele se adapta aos pedidos que fazem e pensei “É isto! É agora!”. O prazo
estava perto, o que também ajudou, porque passou a ser um curto prazo. Eu expliquei ao Pedro o que queria, porque
eu tinha uma ideia fixa do que queria levar ao festival da canção – eu queria uma música para cantar nas línguas
que eu sei falar, porque quando era adolescente era muito obcecada por aprender línguas –, e ele, por acaso, trabalhava
com um letrista que também é muito poliglota e fizemos a música. Íamos trocando impressões num grupo
do WhatsApp e fizemos a música numas 3 semanas, gravámos tudo, mandámos para lá e foi selecionada. Nós mandamos
para o processo da livre submissão – a RTP convida 16 compositores e depois deixa 4 vagas para pessoas
da população geral que se queiram candidatar – onde eramos 619 candidatos, dos quais ficámos 4, incluindo os
nossos outros colegas, a banda Os Quatro e Meia, onde está um MGF, um de cirurgia cardiotorácica e um pediatra.
A experiência foi tudo o que esperava?
Eu não esperava nada, porque eu nunca tinha feito
televisão... O que eu esperava ou deixava de esperar
não passavam de fantasias da minha cabeça. Eu tinha
uma fantasia do que é que era e, enfim, não tinha nada
a ver. À televisão falta aquilo que, para mim enquanto
cantora, é uma das componentes mais gratificantes da
música ao vivo, que é o público. Tu estás a cantar para
as câmaras e não está ninguém a assistir, é mesmo estranho.
Depois, tive que que pensar em pormenores nos
quais eu nunca tinha pensado: o guarda roupa, staging,
as personagens, bailarinos... Eu escolho a roupa que
vou vestir nos meus concertos, mas nunca com aquele
detalhe. Eu não tinha uma equipa por trás como outros
cantores que lá estavam... O Pedro escreve bandas sonoras,
o letrista é engenheiro e eu sou médica. A mim
ensinam-me a escolher entre 2 antipsicóticos, ninguém
me ensina a escolher entre 2 vestidos. Já agora,
o vestido que eu levei na semifinal era com desenhos
feitos por pessoas com doença mental grave ou com
perturbações de desenvolvimento intelectual. Tudo
gerou uma grande ansiedade, mas foi muito divertido
e inesquecível.
Sente que a música a ajuda a lidar com o
stress da profissão médica e do estudo?
É, para si, um escape?
Definitivamente. A música é tão intensa, recruta
tanto todos os domínios cerebrais e a atencionais,
que eu não consigo estar a pensar noutra coisa quando
estou a cantar. Depois, sendo uma atividade muito
emocional, consigo sublimar emoções pesadas que a
psiquiatria implica e, quando era aluna, que o estudo
acarretava. Tanto como interna de psiquiatria como
quando era aluna, a música ajudou-me imenso.
Quando era aluna, ajudou-me o facto de – isto
parece um paradoxo – ter pouco tempo disponível.
Como eu tinha que conjugar a minha agenda de aluna
do conservatório com a agenda de aluna da FMUP,
fui obrigada a reformular completamente o método de
estudo que trazia do secundário e a maximizar em absoluto
o rendimento, o que, para o perfil que eu tenho,
foi essencial.
Por que é que escolheu a medicina?
A resposta não é romântica… Eu não vou estar aqui
a dizer que era o sonho da minha vida, porque não é
verdade. Eu não sabia o que era ser adulto. Tenho pai e
mãe médicos e as minhas irmãs já estavam as duas na
FMUP – houve um ano que estávamos as 3 ao mesmo
tempo – por isso, para mim, ser adulto era ser médico.
Os casais amigos dos meus pais (como os médicos
acasalam uns com os outros, aparentemente), eram
quase todos médicos. Fazíamos viagens com várias
famílias que também eram assim, por isso, enquanto
adolescente, a vida adulta, para mim, era ser-se médico.
É óbvio que eu sabia que havia outras profissões, mas
não as conhecia de perto. Conhecia apenas os relatos
dos meus avós, que eram professores primários. Uma
alternativa, que não tinha nada a ver, era ser artista,
portanto eu pensei ainda ir para teatro ou música, mas
recebi aquelealerta – que, convenhamos, é bastante razoável
– da minha mãe, principalmente, sobre a incerteza
desse percurso e fiz a opção mais segura de ir para a
medicina. Não vou dizer que não achasse gira a ideia de
ter uma profissão centrada em ajudar o outro e também
me fascinava a ideia de poder ser útil em qualquer sítio
para onde fosse, mas não era um sonho. Tanto não era,
que fiz o curso de medicina completamente em sofrimento.
Esse sofrimento durou até ter psiquiatria.
De entre todas as áreas da medicina,
porquê a psiquiatria?
Porque era a única opção – ou pedopsiquiatria,
mas eu na altura não sabia nada sobre pedopsiquiatria,
porque no curso contato é escasso e esse é um
dos problemas que eu vejo no ensino da saúde mental
nas escolas médicas. Era isso ou MGF, porque eu gosto
de saber tudo sobre as pessoas, preciso de tempo
para as ouvir, quero saber a vida toda... a mim interessam-me
imenso os determinantes sociais da doença,
como, por exemplo, a religião, a raça, se são imigrantes,
a profissão, a estrutura familiar, o background cultural...
Isso fascina-me. As outras especialidades não têm
tempo para isso... O que está a acontecer na medicina
é uma fragmentação total e uma sub-sub-subespecialização.
Eu não queria isso para mim, eu queria aquela
máxima de entender o doente de uma forma holística,
ter tempo e espaço para a relação médico-doente. É a
beleza da nossa profissão.
Falou do primeiro contato com a psiquiatria.
Na altura, o que é que sentiu?
Foi um eureka moment. Há professores hipercarismáticos
na FMUP que sabem como fascinar os alunos
e eu lembro-me de sair das teóricas e sentir uma espécie
de euforia interior. Depois comecei a perceber que
qualquer coisa também estava muito diferente em mim,
que era o facto de eu não me atrasar para as aulas. era
um sinal gigante de interesse. A partir daí, o facto de
saber o que queria já me aliviou imenso, eu sabia que
ia ser feliz a ser médica, coisa que eu não sabia antes,
e fiz o curso com muita mais alegria. Também não
sou daquelas pessoas que foi para medicina para ser
psiquiatra –tenho alguns colegas assim – até porque a
minha família, sendo de médicos – e isto leva-nos para
o estigma que existe sobre a psiquiatria, mesmo dentro
da nossa classe –, ficou estupefacta quando comecei a
falar nesta especialidade.
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
Estou agora nos últimos cartuchos da especialidade
e gostei sempre imenso do internato.
Nós estamos em constante aprendizagem até ao
fim da vida e isso tem um lado mau e um lado bom. O
lado mau é que os nossos amigos que foram para outras
carreiras, quando nós estamos a começar uma especialidade,
já estão com aquela sensação de expertise e
nós, médicos, chegamos ao início do internato e é quase
como um início de licenciatura, com os mais velhos a
questionarem o teu conhecimento, constantemente a
pensar que tens de estudar... Mas também tem o lado
bom, que é: tu nunca te fartas, nunca sentes estagnação.
Dentro da psiquiatria, há alguma área em
que se foque mais ou que tenha captado
mais o seu interesse?
As minhas áreas de especialização, digamos assim,
são as perturbações aditivas, dependências de substâncias
e dependências comportamentais – e eu comecei
a trabalhar numa estrutura de atendimento a pessoas
com dependências no segundo ano de especialidade e
aprendi imenso, foi uma área que me surpreendeu muito
e amo trabalhar com esta população –, e as perturbações
do neurodesenvolvimento no adulto. Eu comecei o
internato em Lisboa e, quando cheguei ao Porto, percebi
que não havia resposta nenhuma para as crianças e
adolescentes que saíam da pedopsiquiatria com diagnósticos
destas perturbações, como o autismo e a Perturbação
de Hiperatividade/ Défice de Atenção (PHDA).
Como me interessei por esse tema, criei, em conjunto
com o Gustavo, que é especialista do Magalhães Lemos,
essa consulta no Magalhães Lemos e é um desafio enorme
que me dá imenso prazer. É onde a psiquiatria dos
adultos mantém uma costela de pedopsiquiatria.
Já falámos aqui de estigma em relação
à psiquiatria e às doenças psiquiátricas.
É esse estigma, na sua opinião, responsável
pelas lacunas que existem, como a que
acabou de referir, nos cuidados de saúde
psiquiátricos?
Estigma tem uma definição estrita que inclui tu
achares que as pessoas são inferiores, não têm solução
e que nunca vão ser válidas para a sociedade. Estas
doenças, nomeadamente a PHDA, eu diria que enfrentam
um bocado menos estigma. É mais fácil dizer publicamente
que se tem PHDA do que esquizofrenia ou
doença bipolar... O que tu estás a dizer tem mais a ver
com iliteracia da classe médica relativamente ao facto
destas doenças se manterem na idade adulta. Isto acontece
porque, realmente, no início da história da psiquiatria,
achava-se que eram doenças da criança e que depois
desapareciam, principalmente a PHDA. O autismo
foi descrito pela primeira vez nos anos 40. Antes disso,
eram consideradas crianças com psicose infantil. São
diagnósticos tão recentes que a literacia médica não
acompanhou as novas descobertas, mas não acho que
seja estigma.
Em relação às outras doenças, o estigma
ainda define o tratamento que os pacientes
psiquiátricos recebem em Portugal?
Totalmente. Isso é a maior barreira à nossa prática.
As pessoas, como não querem correr o risco de serem
estigmatizadas, não procuram ajuda. Procuram ajuda
noutras formas de terapia que não lhes ponham estes
rótulos assustadores, por isso vão procurar ajuda inadequada
e aparecem-nos já com quadros avançadíssimos,
o que é uma pena porque a doença mental dita grave,
tratada de uma forma precoce, tem bom prognóstico.
Mesmo em quadros clínicos que cursam com falta de insight,
em que a própria pessoa não sabe que está doente,
a família, fruto do estigma e da iliteracia, não sabe
que está perante um quadro de doença mental e, como
tal, não conduz o seu familiar às ajudas necessárias. No
início, quando eu comecei a trabalhar, ficava com uma
frustração absurda por causa disto. Há preconceito em
relação à doença, há preconceito em relação aos fármacos
que se usam na psiquiatria “os psicofármacos
são terríveis, transformam as pessoas em zombies “–...
o estigma metastiza para tudo aquilo que a doença
mental toca... metastiza também para os prestadores
de cuidados de saúde mental – “os psiquiatras são maléficos,
sádicos, só fazem internamentos compulsivos,
administram tratamentos como castigos, são homens
de barbas... são mais doentes que os próprios doentes.”
Tem algum conselho sobre como conservar
alguma saúde mental durante o curso de
medicina?
Eu vi esta metáfora algures e acho que é mesmo
brilhante: o curso de medicina é como tentar beber
água de um extintor. É muita coisa. Primeiro, há que
aceitar que é muita coisa e reformular o nosso mindset.
No secundário, todos os alunos de medicina queriam
saber tudo, bebiam o copo todo até ao fim e, na
faculdade, não dá. Portanto é reformular o mindset,
fazer as pazes com o good enough e não com o perfection,
fazer-se rodear de 2 grupos de pessoas: um de
pessoas do mundo da medicina, que são aquelas que
vão entender os desafios do curso, com quem iremos
dizer mal da nossa vida, partilhar as dificuldades, o
mau génio dos professores... e depois, para além desse
grupo, temos que ter outro que é o das pessoas de
fora, que nos mantêm ligados à Terra, que nos mostram
que há mais mundo para além daquilo – que nos
impedem de sermos sugados para um buraco negro.
Coisas como estas... fazer uma revista, participar num
grupo académico, em tertúlias de poesia, voluntariado,
escrita, atividades desportivas... atividades várias.
Quem não as tinha, que arranje, e quem já as trazia,
que nunca as abandone. Manter sempre, por menos
intensa que seja, uma vida à parte, para não perder,
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
É da opinião que esse estigma está a diminuir, por um lado, e, por
outro lado, que as doenças mentais estão progressivamente a ser
mais aceites em estudantes ou jovens?
Eu respondia-te que não, antes da pandemia, mas, agora, com a pandemia, tenho
ficado muito contente com o discurso mais aberto a que temos assistido em Portugal.
A este respeito, o que eu acho que tem feito melhor pela saúde mental e pelo estigma
é o coming out de celebridades, ou seja, pessoas que são bem-sucedidas e que assumem
publicamente ter doença mental. Estou a falar do António Raminhos, do Hugo
van der Ding, da Vanessa Fernandes, da Marisa Matias, nomes portugueses que eu
uso para falar com os doentes, para terem uma referência de alguém bem-sucedido
com a sua doença, que eles recebem como uma condenação.
As pessoas recebem os diagnósticos acompanhados das próprias fantasias que
têm acerca deles, e zangam-se, são capazes de bater com a porta e não aparecerem
mais durante uns meses. Mas também há doentes que têm a reação oposta: “Então
é isto que se passa comigo! Agora tenho um caminho, vamos fazer o que é preciso
fazer!”. Há pessoas que vêm com um bocadinho mais de informação, porque se interessaram
pelas histórias das figuras públicas ou porque têm pessoas na família que
já acompanharam.
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
como nós dizemos em psiquiatria, o teste da realidade,
porque uma pessoa que está sempre no mesmo ambiente
perde a realidade.
É preciso também reformular o método de estudo,
porque o método do secundário não dá. Para esse processo,
quem não conseguir por si, pode procurar pessoas
entendidas no assunto. Eu gostava muito, como
tenho uma memória mais visual, de vídeos e de estudar
e depois explicar a alguém, da técnica de Feynman – tu
só sabes uma coisa quando és capaz de explicar a quem
não percebe nada daquilo.
Quem passar mal, procurar ajuda o mais rapidamente
possível, não adiar.
Tem alguma mensagem final para os estudantes
de medicina?
Ouçam os doentes! Ouçam-nos com tempo. Sem
tempo, não é possível que se construa, sólida e segura,
a relação médico-doente. Ela que é a grande beleza
da nossa profissão! Enquanto alunos, pratiquem já a
empatia, o mais que puderem. E ao final do dia, chegados
da faculdade, pousem os livros, atirem com a bata,
e dediquem-se a trabalhar arduamente para a cadeira
que tem mais créditos de todas – serem felizes, pintar,
surfar, jogar (o que for), cantar, o que cada um gostar. A
saúde mental não se hipoteca por razão nenhuma deste
mundo! Mas se preciso for, cá estamos os psiquiatras,
para ajudar.
Já falámos aqui da PNA. Tem algum conselho mais específico para esse ano de estudo e
sobre como conservar a saúde mental?
Eu teria que atualizar o meu mindset, porque eu ainda sou do tempo do Harrison e eu acho este exame uma
maravilha; eu adorava ter feito esse exame. Adorava, porque acho que seria melhor psiquiatra se tivesse estudado
as coisas dessa maneira, que é uma forma mais centrada na resolução de problemas. Eu acho que se deve assumir
o desafio com alegria, porque é uma maneira ótima de acabar o curso, e distribuir as tarefas e os momentos de
lazer pelo tempo todo, não entrar em loucuras, porque isso, paradoxalmente, não tem interesse em termos de
custo-benefício. No fundo são os mesmos conselhos que eu dei para o curso, mas aplicados à PNA. Quem tiver
mais dificuldades com as corridas de fundo, pode ser interessante ter uma ajuda para organizar as tarefas, mais na
linha do coach. Eu não fiz isso, mas, se calhar, se voltasse atrás, faria. Eu tinha coachs informais que eram amigas
minhas que tinham um perfil completamente diferente do meu, muito mais organizadas, muito mais metódicas,
e que eram os meus pacemakers. Se não for uma ajuda formal, amigos e colegas que sejam bons nisso. Eu tenho
doentes meus com Perturbação de Hiperatividade/ Défice de Atenção que tiveram muito boas notas à custa de
namorados ou namoradas de chicote na mão... não é que isso apague o défice de atenção, mas a pressão e a vigilância
melhoram muita os sintomas.
A GUERRA NA UCRÂNIA
UMA PERSPETIVA EUROPEIA
UMA COLABORAÇÃO COM
QUÓRUM- FÓRUM POLÍTICO
GUILHERME JOSÉ RUIVO PEREIRA
Introdução
Para começar, gostaria de debruçar-me
sobre um assunto
menor, mas que seguramente é
bastante exemplificativo de algo do qual
não nos devemos esquecer. O título deste
artigo contém a palavra “Guerra”, proibida
de ser utilizada pelos media russos desde
o início do conflito por parte da entidade
reguladora. Para os mais atentos, esta
atitude fará lembrar o Ministério da Verdade,
da famosa utopia de George Orwell
“1984”, na qual se proibiam palavras. É
apenas uma pequena parte da imagem do
conflito que a máquina propagandística de
Putin tenta fazer passar ao povo russo (e
aos seus apoiantes além-fronteiras), mas
é bastante exemplificativo do que o líder
russo pretende com esta proibição. A limitação
da liberdade de expressão é sempre
“perdoada” em contexto de conflitos militares,
no contexto de “defesa”. A autocracia
russa apenas confirma a já conhecida
censura, usada em diferentes momentos
dos últimos 20 anos.
Contexto histórico
A guerra russo-ucraniana de 2022 é o
tema central, mas para isso, precisamos de
entender o contexto histórico do conflito. A
Ucrânia, como estado independente, praticamente
nunca existiu ao longo da história
até 1917, embora o povo ucraniano, ou
ruteno, como era chamado durante a Idade
Média e princípios da Idade Moderna, sempre
tenha vivido nesta zona do mundo. Enquanto
parte do Império Russo, a Ucrânia
ocupava a parte central do atual território.
Em 1917, durante a Revolução Russa,
e como parte do Tratado de Brest-Litovski
entre a Rússia de Lenine e a Alemanha
do Kaiser Guilherme II, a Ucrânia ganhava
a sua independência, com o seu território
aumentado. No entanto, nunca foi intenção
da Rússia que a Ucrânia fosse independente
– passado um par de anos, e após a
derrota da Alemanha na I Guerra Mundial,
a Rússia Soviética (futura URSS) invadiu a
Ucrânia novamente, conquistando-a. Neste
momento, inicia-se o processo de russificação
da Ucrânia – dentro da URSS, a
República Soviética da Ucrânia duplica o
seu território, acrescentando-lhe territórios
com muitos russos e incentivando a
emigração russa para a região, para assim
aumentar a população falante de russo e
diminuir a percentagem de ucranianos no
território.
Durante este tempo ocorre o Holodomor
(em ucraniano, “deixar morrer à
fome”), período no qual, durante a Grande
Fome Soviética de 1932-33, e como resultado
das políticas fracassadas do governo
comunista de Estaline, existe uma grande
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
fome por toda a URSS. Os agricultores etnicamente
ucranianos são obrigados a entregar todas as suas reservas
alimentares ao governo de Moscovo, causando
uma grande fome em toda a região, que matou entre 3,5
e 5 milhões de ucranianos, segundo a maioria das fontes
neutrais. Até hoje existe grande discussão se foi um
genocídio (como defende o governo da Ucrânia), com
o objetivo de retirar a capacidade da Ucrânia de revoltar-se,
ou uma fome consequente do fracasso comunista.
Ainda assim, foi um choque enorme para a Ucrânia,
onde viviam na altura cerca de 20 milhões de pessoas,
e que levou a uma perda a rondar os 25% da população.
A Ucrânia passou assim a ser um estado “fantoche”
dentro da URSS, ao qual foram entregues territórios por
Estaline em 1939 (da Polónia) e a Crimeia, de maioria
russa, por Khruschev em 1954 – porque esta república
não tinha qualquer poder, e era parte da URSS, logo
não passava de uma alteração do mapa provincial russo,
sem qualquer consequência real.
Avançando para 1991, a URSS vivia uma enorme crise
sob a liderança de Gorbachev, e na Ucrânia cresceu
um movimento que pedia a autodeterminação. O referendo
foi aceite pelo governo soviético, e marcado para
1 de dezembro de 1991. Ainda antes, uma declaração de
independência foi ratificada a 24 de agosto pelo parlamento.
O “sim” ganhou com uns espantosos 90% de votos
a favor, incluindo (embora em menor percentagem)
nas regiões de Donetsk, Luhansk e na Crimeia.
Desde 2000, os sucessivos governos ucranianos lutaram
para integrar a Ucrânia na União Europeia. Em
2010 chegou à presidência um homem de Donetsk,
falante nativo de russo, chamado Viktor Yanukovych.
Yanukovych bloqueou as conversas com a UE, recusando-se
a assinar o acordo de livre-comércio, apesar de
ter prometido o contrário durante a campanha eleitoral.
Isto gerou uma revolta enorme na região central
e ocidental da Ucrânia, que sonhavam com um futuro
europeu como os seus vizinhos polacos e romenos. Isto
levou ao início dos protestos conhecidos como Euromaidan.
Yanukovych aceita, em vez do acordo com a
União Europeia, um acordo com a Rússia, incluindo um
empréstimo que poderia chegar aos 15 mil milhões de
dólares, e em troca da primeira tranche, ordena cargas
policiais sobre os manifestantes Euromaidan, causando
a morte a mais de 100 pessoas. Yanukovych é removido
do poder graças a estes protestos e a uma votação
unânime no parlamento e exila-se na Rússia – num dia
conhecido na Ucrânia como “A Revolução da Dignidade”.
Nesse momento, os líderes das províncias da Crimeia,
Luhansk e Donetsk apoiaram o presidente deposto Yanukovych,
e o acordo com a Rússia. A Crimeia declarou
a independência, seguida um dia depois pela união com
a Rússia, e a 2 de março de 2014, a Crimeia passava a
ser uma região russa. Já as outras repúblicas separatistas,
que declararam a independência, foram combatidas
pelo exército de Kiev, dando lugar à Guerra Civil Ucraniana.
Entre março e novembro de 2014, a Guerra Civil
Ucraniana continuou, com avanços e recuos na área da
fronteira russo-ucraniana. A certo ponto, parecia evidente
que as tropas ucranianas iam esmagar a rebelião, mas
tal não aconteceu devido a um “comboio da paz” que na
realidade era um envio massivo de armas russas para
os rebeldes separatistas, que assim mantiveram a sua
região e as duas principais cidades, Donetsk e Luhansk.
Após imensa pressão russa, os líderes dos principais
países envolvidos encontraram-se em Minsk para
fazer um acordo de paz. A Ucrânia concedia autonomia
às duas regiões separatistas – Donetsk e Lugansk – em
troca da recuperação da fronteira leste, com a Rússia.
Este cenário acordado nunca saiu do papel. Na verdade,
conseguiram apenas uma redução da intensidade dos
combates, com mudanças e conflitos constantes. Isto
ocorreu desde logo porque a Rússia e a Ucrânia tinham
interpretações diferentes em relação ao protocolo. Para
Kiev, os territórios estavam apenas “temporariamente
ocupados”. Para Moscovo, eram repúblicas com vontade
de se virarem para leste. Ambos previam que a Ucrânia
concedesse às regiões separatistas uma autonomia e
um estatuto especial.
O problema é que estes compromissos esbarram naquilo
que Rússia e Ucrânia entendem por autonomia:
a Rússia considera que as repúblicas de Donetsk e Lugansk
devem ter, por exemplo, direito de veto em questões
importantes, como é o caso dos pedidos de adesão
à NATO ou à União Europeia, passos que a Rússia não
quer que a Ucrânia dê. Moscovo entende até que dessa
autonomia faz farte a celebração de acordos com estados
estrangeiros. Já a Ucrânia entende que isso é ir longe
demais e uma intromissão na autonomia de um país
livre e independente como é a Ucrânia. Por outro lado, o
governo de Kiev faz exigências como o desarmamento
das milícias pro-Rússia e o controlo das fronteiras pelo
estado central, o que, no terreno, não acontece.
A 21 de fevereiro de 2022, após semanas de incerteza,
a Rússia entrou nos oblasts de Lugansk e Donetsk,
seguido de uma invasão, três dias depois, do resto da
Ucrânia. Vladimir Putin justificou a invasão com a “desmilitarização
e des-nazificação da Ucrânia”, conceitos
difíceis de entender num país que entregou as suas
bombas nucleares há mais de 15 anos e cujo presidente
é judeu e com familiares que faleceram nos campos de
concentração nazis.
A posição da União Europeia e a necessidade de um
acordo
Dentro da União Europeia, no entanto, existem diferentes vozes
com diferentes perspetivas sobre o assunto. Enquanto o eixo
franco-alemão quer condenar e sancionar fortemente a Rússia e
a maioria dos países estão de acordo, existem líderes, como Viktor
Orbán, que não pretendem enviar qualquer arma ou soldado para
a Ucrânia. Outros países, como a Itália ou a Bélgica, querem isentar
o seu bem de luxo favorito das sanções – os milionários russos
que compram estas peças são uma parte importante do comércio
desses mesmos países. Existe neste momento a necessidade de
um grande acordo na UE – acordo esse que é impossível devido
à necessidade de unanimidade nas decisões – a UE só funciona
quando os 27 países-membros votam a favor – algo praticamente
impossível numa União fraturada politicamente. É por isso imperativo,
como defendeu Emmanuel Macron, a abolição da unanimidade
e a criação da maioria qualificada (de dois terços dos países)
para tomar decisões – algo que poderemos tentar ver no futuro
próximo. Neste momento, só nos resta tentar encontrar compromissos
inadiáveis em relação à Ucrânia – e mudar as regras para
o futuro.
Outro passo inadiável para a manutenção da soberania será,
na opinião de Ursula Von der Leyen e de muitos outros líderes
O INTERESSE EUROPEU
Existem vozes, dentro de
alguns partidos políticos e
na sociedade civil, que reagiram
a esta guerra com a pergunta
“E porque é que isso
nos interessa? A Ucrânia nem
é parte da União Europeia?”. A
razão é simples: porque não
há nenhum indício de que a
Rússia pretenda parar por
aqui. Várias notícias cobriram
páginas de jornais sobre
o assunto: a Rússia ameaça a
Finlândia e a Suécia com intervenção
militar caso adiram
à NATO, a Rússia fecha o seu
espaço aéreo a países da EU,
a Rússia invade o espaço aéreo
sueco com quatro caças,
Vladimir Putin decide que
países podem ou não podem
fazer parte de um bloco militar
exclusivamente defensivo
como é a NATO. Os sonhos de
grandiosidade e de recuperar
um império há muito perdido
do líder russo alcançam países
bem dentro da União.
78 ZERO UM
ZERO UM
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SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
europeus, a criação de um exército europeu – a necessidade
de um comando unificado que controle as tropas
para proteger as fronteiras europeias de tropas invasoras
parece uma necessidade. Tal exército evitaria que
a União Europeia se visse arrastada para conflitos de
interesse do maior membro da NATO, os Estados Unidos
da América. No entanto, mais uma vez isso apenas
pode ocorrer a longo-prazo – existe a necessidade de
um novo Tratado Europeu que consagre essa instituição
militar.
Vladimir Zelensky, o atual presidente ucraniano,
assinou recentemente um protocolo para a adesão da
Ucrânia à União Europeia – protocolo rapidamente aceite
por Bruxelas. No entanto, e para desagrado do presidente
ucraniano, tal não irá acontecer com essa velocidade
– pelo menos não existe nenhum tipo de protocolo
que o permita, e as entidades europeias já descartaram
(pelo menos para já) tal adesão rápida. Existem países
cujo processo de adesão dura já há mais de 15 anos – e
nada parece reduzir o prazo mínimo de dois anos para a
entrada da Ucrânia na União Europeia. Para além disso,
a tal unanimidade não existe quanto a um processo de
admissão acelerado – vários países já manifestaram a
sua oposição a tal protocolo e a uma possível entrada
na guerra provocada pela adesão da Ucrânia ao bloco
europeu.
MEDICINA DE GUERRA
GUSTAVO
CARONA
Então que pode então fazer a União Europeia?
Isto não significa que a União Europeia esteja de
mãos atadas – muito pelo contrário, é a União Europeia
que tem maiores possibilidades de ajudar a Ucrânia.
Para além das faladas sanções económicas, como o fim
do gasoduto Nordstream 2, a expulsão da Rússia do sistema
SWIFT ou o fim do comércio com a Rússia, a União
Europeia está em condições de enviar ajuda económica
à Ucrânia (pacote de ajuda entretanto aprovado pelo
Parlamento Europeu), ajuda militar (nomeadamente
com o envio de armas, já entregues por alguns países
como é o caso da Alemanha), e por fim com apoio diplomático
– a União Europeia é a instituição mais respeitada
do mundo a esse nível, e pode agora dar apoio nas
organizações internacionais e no “sufoco” económico à
Rússia caso esta não aceite as condições de paz propostas.
A Rússia pode resistir ao esforço de guerra uns
meses, mas não tem condições de sobreviver economicamente
sem o comércio com o “mundo livre” durante
anos. É por isso que o caminho a percorrer é longo e
turbulento, mas não deixa de ser necessária que a União
funcione, mais do que nunca, como isso mesmo – uma
União.
Para quem tiver mais interesse:
“Winter on Fire – Ukraine’s Fight for Freedom” – documentário
da Netflix sobre a Revolução da Dignidade.
[Texto de março de 2022]
Talvez tenha sido pela adrenalina que escolhi
o caminho médico que fui traçando.
Salvar uma vida? Salvar vidas? Haverá
alguma sensação mais inebriante do que olhar
para alguém que poderia estar morto, mas não está,
graças ao meu trabalho, às minhas mãos, e ao meu
conhecimento? ...bom, cada um vê a vida à sua maneira,
mas esta parecia-me a mais bonita... Até que,
o olhar o mundo me levou a fazer perguntas: “Será
que alguma vida humana tem menos valor do que as
que estão à minha volta? Não? Então faz as malas!”
A minha 1a missão ensinou-me quase tudo o que
sei sobre este assunto até hoje, as restantes foram
só para confirmar que só na persistência, insistência
e consistência se constrói algo que valha a pena, e
que fica para sempre. Fui para a linha da frente da
guerra da Rep. Democrática do Congo. Previam-se
feridos de guerra... por tiros, granadas e bombas, e
assim foi... E lá está, a minha busca por uma certa
adrenalina dizia-me que era neste tipo de vítimas
que eu poderia efectivamente fazer a diferença. E
foi. Ou também foi. Mas pouco foi.
Passo a explicar. Em 13 missões, perdi a conta
aos feridos de guerra que me passaram pelas mãos...
fiz parte de equipas que salvaram muitas destas vidas.
Machetes, balas, estilhaços, granadas, bombas,
queimados... e até armas químicas. Mas será isto a
Medicina de Guerra? Sim, é, mas pouco. Cada conflito
tem a sua história, e a tipologia de feridos também é
muito variada consoante o tipo de violência que se
encontra em cada local. Mas com ou sem adrenalina,
o que a minha experiência em cenário de guerra
me foi mostrando é que aquilo, que nós na medicina
chamamos de trauma violento, é apenas uma pequena
expressão da medicina de guerra.
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ZERO UM
81
SOCIEDADE, CULTURA E DESPORTO
As consequências indirectas dos tiros e das bombas
são muitos mais impactantes do que as directas.
Primeiro porque há uma drenagem de recursos humanos
qualificados, visto que são estes que mais facilmente
conseguem fugir e se refugiar noutros países.
Depois as falhas na logística do funcionamento de
um hospital; falha o abastecimento de água, de electricidade,
de oxigénio, de medicamentos, de material,
alimentos... e isto mata muito mais do que os tiros e
as bombas, mas claro, é o conflito a causa de todos
os males. Logo, num local de guerra, os desafios vão
muito para além de parar as hemorragias e amputar
membros. Há crianças que morrem pela falta de um
antibiótico ou anti-malárico, há mulheres que morrem
no parto pela falta de capacidade de fazer uma cesariana
(um estudo dos Médicos Sem Fronteiras, há uns
anos mostrava que as cesarianas são mais de 50% das
cirurgias que se realizam em locais de guerra), diabéticos
por falta de insulina, reaparecimento de doenças
erradicadas por falta de vacinação (exemplo da Poliomielite
na Síria), uma apendicite não operada que leva
à morte... no fundo as pessoas, de todas as idades morrem
por tudo e por nada, quando as estruturas de saúde
entram em disfuncionamento, como consequência
do conflito armado.
prémio Nobel da paz em 2019, que salvou da fome
cerca de 100 milhões de pessoas em cerca de 88 países,
faz uma ressalva especial à situação catastrófica
do Iémen, do Afeganistão, e do Sudão do Sul, três países
que eu conheço por dentro e que sofrem terríveis
consequências de conflitos armados invisíveis para o
mundo e, como tal, intermináveis. Há 30 milhões de
crianças a viver em situação de refugiadas, mas há
mais de 430 milhões de crianças a viver em locais com
conflitos armados horrendos. Palavras na entrega do
Nobel da Paz ao PAM: “for its efforts to combat hunger,
for its contribution to bettering conditions for peace in
conflict-affected areas and for acting as a driving force
in efforts to prevent the use of hunger as a weapon of
war and conflict.”
Comecei por falar da adrenalina de salvar uma
vida no limite, e acabo em algo tão simples de se fazer
que é prevenir que uma criança morra à fome. Mas
para quem tem o coração virado para o mundo, é isto
a Medicina de Guerra.
E se nós não somos parte da solução, então somos
parte do problema.
E depois temos a fome. Parece que estou a fugir
do tema, mas não. A maior causa de fome no planeta
são os conflitos armados. Quando nos escandalizamos
(e bem!) pelo ataque a hospitais durante uma guerra,
esquecemo-nos que matar à fome sempre foi uma estratégia
de guerra, e uma consequência inevitável de
todos os conflitos. No Iémen, por exemplo, a cidade
de Hodeidah tem sido o palco das lutas mais ferozes
e potencialmente decisivas, porque é o último porto
de mar, onde se abastecem todos os que vivem nas
áreas controladas pelas forças do norte, da guerra civil.
Não é por acaso que o Programa Alimentar Mundial,
82 ZERO UM
SAÚDE MENTAL
SAÚDE MENTAL
Viver em plenitude:
Mindfulness 101
Por Profª. Drª. Isaura Tavares
Neurocientista e Docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Investigação principal na área de modulação encefálica da dor.
Desempenhou cargos de Direção em várias Sociedades Científicas, nomeadamente
na Sociedade Portuguesa de Neurociências (Presidente) e na Associação
Portuguesa para o Estudo da Dor (Vice-Presidente).
Integrou vários órgãos de gestão académica na FMUP, nomeadamente no Conselho
Executivo, Conselho Científico
e Conselho Pedagógico.
Coordenador do Curso de Formação
Contínua “Mindfulness
em Contextos de Saúde” da
FMUP (4 edições consecutivas).
Na FMUP, regente de diversas
Unidades Curriculares de matérias
de Histologia e Embriologia,
desde 2004/05, e da Unidade
Curricular de “Neurociências
Contemplativas”, com 3 edições
consecutivas, desde 2020/21.
ISAURA TAVARES
As últimas décadas foram marcadas pelo
crescimento do interesse nas práticas baseadas
em Mindfulness. A palavra poderá
traduzir-se por “Atenção plena” ou “Consciência Plena”
e pretende designar o conjunto de atitudes e práticas
que nos permitem, de modo intencional, viver mais focados
no momento atual, reconhecendo as atividades
naturais de deambulação da mente.
A estruturação de cursos de 8 semanas de práticas
baseadas em Mindfulness começou nos anos 80 do século
passado, na Faculdade de Medicina da Universidade
de Massachusetts, através de Jon Kabat-Zinn. Este
investigador, com décadas de prática de meditação Zen,
codificou um programa de 8 semanas que ficou conhecido
por Mindfuness Based Stress Reduction (MBSR).
A investigação acerca dos benefícios da prática de
Mindfulness encontra-se numa fase crucial, dado ter
sido necessário rever os estudos realizados, de modo
a aumentar a sua robustez científica. As Neurociências
Contemplativas, ramo do estudo neurocientífico que
explora os mecanismos neurobiológicos das práticas
contemplativas, têm trazido resultados interessantes. O
aumento da regulação emocional e da capacidade de
foco detetados em indivíduos saudáveis que participaram
em programas MBSR foram associados ao decréscimo
na atividade da amígdala e ao aumento da atividade
do córtex pré-frontal, havendo correlação inversa do
funcionamento das duas áreas. O aumento do bem-estar
após participação nestes programas estava negativamente
correlacionado com alterações estruturais e
funcionais de áreas produtoras de neurotransmissores
envolvidos na manutenção do bem-estar, como a serotonina.
Estudos realizados em monges treinados nas
práticas de meditação baseadas na compaixão, mostraram
grande ativação em áreas envolvidas nos mecanismos
de recompensa.
Em resumo, os estudos indicam que a participação
em cursos de MBSR e a prática de meditação ativam
mecanismos de neuroplasticidade que têm efeitos na
auto-regulação emocional e no bem-estar de quem os
pratica. É, contudo, fundamental analisar os estudos
através do crivo das meta-análises para avaliar a robustez
dos efeitos descritos. É também necessário entender
a quem será mais benéfico estas práticas e garantir o
acompanhamento dos indivíduos que as executam por
profissionais com experiência pessoal nestas técnicas.
No contexto do ensino médico, frequentemente desafiante
e gerador de stress excessivo, tem havido muito
interesse na aplicação de técnicas contemplativas e no
envolvimento dos estudantes em programas MBSR ou
semelhantes. Os resultados têm mostrado melhorias na
gestão do stress e na promoção de atividades de auto-
-cuidado. Além disso, por serem realizados em grupos
de cerca de 12 participantes, o efeito de grupo cria uma
sensação de partilha e a consciência de que os desafios
da vida universitária no contexto dum curso de Medicina
são mais comuns do que o indivíduo, isoladamente,
pode intuir. Este conceito de “Humanidade Comum”
pode ajudar o estudante a ter a perceção de que faz
parte de uma comunidade. A prática regular de atividades
de conexão com o corpo e de monitorização da
mente permitem detetar momentos de maior desgaste
a que se pode responder com práticas de auto-cuidado
personalizadas, a serem descobertas por cada um.
O poder dos pensamentos é relativizado não porque, e
como erradamente se acredita, a meditação faça parar
os nossos pensamentos, mas porque temos consciência
da sua impermanência e transitoriedade.
Os estudantes de Medicina que são envolvidos, enquanto
comunidade, a participar em programas MBSR
demonstram redução do stress, quantificado através
de auto-registo e de medição do cortisol, menor reatividade
a eventos stressores, como os exames, e melhor
regulação emocional. A utilidade destas práticas
nas Faculdades de Medicina deve ser investigada como
métodos de auto-cuidado e auto-monitorização que poderão
ajudar a promover a saúde mental e aumentar a
resiliência para a prática de uma profissão de elevado
desgaste.
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85
SAÚDE MENTAL
A relevância das atividades extracurriculares no
percurso de se tornar médico
Por Profª. Drª. Elizabete Loureiro
O
sistema educativo tem sofrido inúmeras
transformações e debates, potenciado
pelos desafios constantes que
enfrenta, estando a evoluir para um modelo em
que a “sala de aula” já não é o centro da atividade
educativa. Concomitantemente, as políticas
educativas orbitam em torno das competências
a adquirir, com um foco no “casamento” entre as
competências técnicas e as competências não-
-técnicas. No entanto, estas últimas são raramente
abordadas (quer no ensino secundário, quer no
ensino superior), devido à sua complexidade e por
falta de estratégias transversais que ultrapassem
os desafios inerentes ao seu ensino e avaliação.
Também a Educação Médica tem assumido
o desafio de refletir sobre o médico do Século
XXI, destacando, para além das competências
técnicas/clínicas, a necessidade da aquisição de
competências transversais, humanísticas, de desenvolvimento
pessoal e de prática reflexiva. As
“15 Core Competencies” da Associação Americana
das Escolas Médicas (AAMC), para os candidatos
ao curso de medicina, destacam 4 grandes áreas:
competências inter- e intrapessoais, competências
de raciocínio e competências científicas. Estas
áreas implicam sobretudo competências de comunicação,
gestão de tempo, trabalho em equipas
(intra- e inter-profissionais), gestão de conflitos,
liderança, empatia e pensamento crítico. Nas últimas
duas décadas, o Processo de Bolonha e outros
movimentos educativos compeliram as escolas
médicas a reorganizarem os seus curricula e a introduzirem
as competências transversais. A FMUP
não é exceção, tendo vindo a fazer um claro investimento
nesse sentido.
Mas a formação médica é muito mais do que
estudar para a obtenção de um diploma. O caminho
para ser médico é bem mais abrangente,
desafiando valores, a auto-perceção e perspetiva
da vida em si. Para se tornar médico, um jovem
terá de partir para uma viagem longa com uma
“mochila” vazia às costas e regressa com uma “bagagem”
cheia de competências de todas as cores
e formas. Este longo caminho para ser médico implica
desafios académicos, sociais e emocionais,
que incluem lidar com exigências clínicas, com a
doença e com a morte. Também implica sacrifícios
pessoais, familiares e sociais, com implicações
claras (e bem documentadas) para o seu bem-estar
geral - nomeadamente para a saúde mental
(stress, ansiedade, burnout) - que permanecem
para além do final do curso. Neste enquadramento,
será útil acrescentar à bagagem de competências,
uma maior capacidade de coping, adaptação
e resiliência. Isto implica que as escolas médicas
investam no desenvolvimento pessoal (desligado
de um processo de avaliação com notas e médias)
de forma a garantir pessoas enriquecidas, motivadas
e com saúde mental, para que possam exercer
a sua futura profissão médica com mais qualidade
e satisfação.
São vários os estudos que apontam para os
benefícios das atividades extracurriculares durante
a passagem pelo ensino superior, e na educação
médica em particular, nomeadamente ao nível
da motivação, persistência e níveis aprendizagem
mais ambiciosos. Permitir-se envolver neste tipo
de atividades ajuda a garantir um nível de desenvolvimento
pessoal e emocional mais sólido, além
de possibilitar o desenvolvimento de uma rede
alargada de conexões interpessoais que promovem
níveis mais elevados de confiança e de sentido
de propósito. Mais ainda, este tipo de atividades
confere experiência (“jogo de cintura”) em
diversas áreas e situações, potenciando o desenvolvimento
de competências per si. Concomitantemente
a estes ganhos, aprende-se a importância
de um equilíbrio entre o trabalho e as restantes
esferas de vida (work-life balance), promovendo
maior capacidade de gestão de stress e autocuidados
(self-care).
Assim, as atividades extracurriculares ou co-
-curriculares, ao serem consideradas partes integrais
e complementares do processo educativo
são um dos meios mais completos para responder
aos desafios e exigências da vida académica,
embora ocorram fora da “sala de aula”. Estas “salas
de aula” são transitórias e podem ser tão diversas
quanto a academia onde se pratica dança, ou as
ruas onde se distribui sopas durante um voluntariado.
A pesada carga de atividades letivas a que um
estudante de medicina é exposto, pode levar a
pensar: “isto é tudo muito bonito, mas não tenho tempo…pois
preciso de estudar”. Ao olharmos para estas
atividades como soft/dispensáveis/desperdiçadoras de
tempo vamos continuar a atribuir significados marginais
e haverá uma maior relutância e ansiedade associadas
à sua prática. Mas é necessária uma mudança de
paradigma de pensamento. É necessário pensar nestas
atividades como uma mais valia global, que permitirão
a aquisição de competências transversais fundamentais
para a futura prática clínica e a maiores níveis de bem-
-estar físico e emocional. Adicionalmente, estes benefícios
irão repercutir na aquisição de conhecimentos e
competências técnicas, levando a uma completude de
As atividades extra- ou co-curriculares
mais recomendadas para os
estudantes de medicina são:
1. Voluntariado (que implique cuidar, escutar,
compromisso e trabalho)
2. Projetos de investigação (porque promovem,
por exemplo, trabalho em equipa,
pensamento crítico e resolução de problemas)
3. Programas comunitários (porque promovem,
por exemplo, o sentido de compromisso,
sacrifício e priorização de objetivos)
4. Explicações ou outra atividade ligada
a ensinar/orientar (ex. escutismo) (porque
promovem, por exemplo, competências de
comunicação, liderança, paciência, compaixão/rapport,
empatia)
5. Trabalho (em part-time ou não)
6. Associativismo
7. Atividades multiculturais
8. Hobbies vários (sempre de acordo com
o seu interesse pessoal), desde o desporto
(que promove, por exemplo, o sentido de
equipa e/ou trabalho sobre pressão) à escrita,
leitura, arte, teatro e música – (para
realçar competências cognitivas, interpretação,
compreensão observação e retenção)
Elizabete Loureiro
Psicóloga Clínica
aptidões/competências.
A decisão e escolha de atividades deve ser bem
gerida e priorizada (qualidade vs quantidade), sendo
essencial refletir sobre as experiências (prática
reflexiva continuada), com as seguintes questões:
• O que aprendi com esta experiência?
• Porque foi significativa para mim?
• Como é que isto me ajuda/enriquece/como
posso transpor isto para o meu futuro pessoal e
profissional?
Termino com um excerto de um discurso numa
cerimónia de graduação de Anna Quindlen (2017):
SMART IS GOOD. SMART
AND HARDWORKING IS REALLY
GOOD. SMART, HARDWORKING
AND FEARLESS, THAT’S THE HAT
TRICK. YOU POSSESS AN INVAL-
UABLE CREDENTIAL THAT WILL
SOON BE RATIFIED HERE, BUT
ARE YOU STRONG AND SMART
ENOUGH TO BECOME WHO
YOU MIGHT BE WERE YOU NOT
AFRAID? THAT’S THE PROBLEM,
ISN’T IT? – I´M AFRAID OF LIVING
A LIFE THAT SEEMS MORE LIKE A
RESUME THAN AN ADVENTURE
STORY.
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ZERO UM
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LIFESTYLE
Os Alimentos mais Instagrammavel do momento
Dicas para manteres um feed saudável
Por Dr.ª Iara Rodrigues
iararodriguesnutricao
www.iararodrigues.com
Iara Rodrigues é licenciada em Ciências da Nutrição
pela Faculdade de Ciências da Nutrição e
Alimentação da Universidade do Porto e Mestre
em Nutrição pela Faculdade de Medicina da Universidade
de Lisboa.
Especializou-se em 2009, pela Fundação Universitária
Ibero-Americana, em Medicina Ortomolecular
e Biorresonância.
O seu percurso profissional conta com múltiplas
publicações em revistas diversas, bem como
participações regulares em programas de televisão
que contribuíram largamente para a maior
visibilidade do seu trabalho e um maior reconhecimento
pelo público.
Para além de consultora de nutrição para várias
marcas nacionais, é autora de livros, como 'A
Dieta Simples', 'Dieta 1, 2, 3' e 'Emagreça sem fome'.
No ano de 2016, fundou a sua própria clínica,
em Paço de Arcos, integrando uma equipa multidisciplinar
dedicada a uma abordagem integrativa
da Nutrição e outras áreas médicas.
Foi mais tarde, em 2018, que deu início ao
projeto Iara Kitchen, um espaço destinado à realização
de workshops e formações, entre outros
eventos no âmbito da cozinha saudável, segundo
uma perspetiva holística da saúde, nas suas múltiplas
vertentes.
Atualmente, é uma das nutricionistas com
maior influência a nível nacional, que exerce particularmente
através da sua página de Instagram,
que inclui publicações recorrentes que atingem
milhares de seguidores.
ZERO UM
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LIFESTYLE
LIFESTYLE
ABACATE
A pera abacate é um fruto que está na moda e que
ficou especialmente conhecido pelo Guacamole, um
famoso molho mexicano que se pode comer com palitos
de aipo, cenoura ou pepino. É um fruto que pode
ser incluído em variadas receitas e tanto combina
bem com doces como com salgados.
Do ponto de vista nutricional, o abacate é sobretudo
uma fonte de ácidos gordos monoinsaturados, ou
seja, uma fonte de gordura “boa”, tal como o azeite ou
os frutos oleaginosos.
É rico em fibras, em vitaminas lipossolúveis (solúveis
em gordura) como a E e a K, e tem cerca de 73%
de água na sua composição. A gordura do abacate, tal
como outras fontes, fornece energia ao organismo e
entra na constituição da membrana das células.
É importante ressalvar que, por ser uma fonte de
gordura, contém um elevado valor calórico e, por essa
razão, o seu consumo deve ser moderado. Uma porção
diária equivale a meio abacate médio (cerca de 100g),
quantidade que pode variar consoante a pessoa.
Devido à sua versatilidade, é possível incluí-lo em
diversas receitas de saladas, omeletes, wraps, bowls e,
até, para dias de festa, em sobremesas como a mousse
de abacate e cacau, tornando-se mais uma alternativa
saudável, com o dom de proporcionar experiências
gastronómicas únicas.
MATCHA
O matcha é um chá verde em pó, originário do
Japão, que se tornou mediático por se considerar benéfico
à saúde devido ao seu elevado teor em antioxidantes.
A quantidade de antioxidantes varia consoante a
idade da folha utilizada, a temperatura da água e o
tempo de infusão. Ao contrário do chá verde tradicional,
as folhas para produção do matcha são mantidas
à sombra, semanas antes de serem transformadas em
pó, o que poderá ser uma das razões para alguns estudos
evidenciarem um conteúdo superior em antioxidantes
e teanina (um aminoácido com efeitos benéficos
no organismo).
A cafeína, presente no chá comum, em quantidades
definidas é um antioxidante com efeito benéfico
na proteção das células. Alguns estudos revelam um
teor de cafeína consideravelmente superior no matcha
(18 a 45 mg/g), quando comparado com os teores
no chá verde (11 a 25 mg/g).
Certos grupos de pessoas, como grávidas, lactantes,
crianças ou até mesmo quem sofra de insónias ou
ansiedade, devem ter em especial atenção a ingestão
da cafeína, podendo não ser aconselhável o consumo
de infusão de matcha. Devido aos seus componentes,
o matcha tem um sabor que combina com bebidas
quentes, sumo de fruta e sobremesas.
MANTEIGA DE
AMENDOIM
A manteiga de amendoim é um dos topping mais
vistos nas receitas de papas de aveia e panquecas
do Instagram. A adição de uma gordura saudável ao
pequeno-almoço torna-o mais completo e é um bom
substituto das gorduras animais. O amendoim é uma
leguminosa oleaginosa, que por 100 g de alimento
fornece perto de 50g de gordura, predominantemente
polinsaturada e monoinsaturada (gordura “boa”)
da família ómega 6, sendo que cerca de 30 % do seu
conteúdo nutricional é proteína, o que lhe confere um
grau de saciedade interessante.
É também uma fonte de vitaminas do complexo B,
minerais como o magnésio e o fósforo, folatos e vitamina
E. Recentemente, descobriu-se que o amendoim
tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias
que protegem as células dos danos provocados por
radicais livres.
Para além de a quantidade a ingerir dever ser controlada,
devido ao seu alto teor em calorias, devemos
escolher as embalagens de manteiga de amendoim
que indiquem 100% de amendoim na sua composição,
evitando os produtos embalados que contêm excesso
de sal, açúcares e gorduras adicionadas. O ideal é fazer
a própria manteiga de amendoim em casa, numa
liquidificadora, utilizando amendoins naturais, sem
sal, até obter uma pasta cremosa.
IOGURTES
PROTEICOS
Nos últimos anos, os iogurtes proteicos ganharam
destaque nas prateleiras do supermercado. O interesse
geral das pessoas por um estilo de vida mais ativo
e a preocupação em saberem mais sobre o que comer
após os treinos, fizeram com que, em conjugação com
os avanços científicos, se desenvolvessem produtos
novos com um objetivo nutricional orientado para essas
necessidades.
Os iogurtes proteicos, tal como os iogurtes naturais,
são ricos em cálcio, fósforo e outros minerais.
Quanto à gordura, esta varia entre iogurtes magros,
meio-gordos e gordos. A diferença entre iogurtes proteicos
e iogurtes naturais está no teor de proteínas,
sendo que, nos primeiros, os valores variam entre 12g
e 22g por porção, de acordo com a marca. Por essa
razão, devem ser consumidos preferencialmente por
indicação de um nutricionista e integrados numa alimentação
variada e equilibrada.
A proteína láctea é considerada de alto valor biológico,
tendo na sua composição aminoácidos essenciais
ao organismo, principalmente a leucina - que é
um dos aminoácidos com maior impacto na síntese
muscular. Estas propriedades tornam os iogurtes proteicos
uma boa opção para quem quer aumentar a
massa muscular.
No supermercado, é importante ler o rótulo e ver
a lista dos ingredientes que fazem parte da constituição
de cada iogurte. Devem preferir-se versões mais
saudáveis, como os iogurtes magros sem adição de
açúcar.
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LIFESTYLE
Rotinas de Pele
em Estudantes Universitários
Guia Básico para sobreviveres à
Febre do Skincare
Prof. Drª. Sofia Magina
Atendendo ao seu percurso enquanto dermatologista
e também enquanto docente nesta
faculdade [FMUP], uma vez que consegue
estabelecer, aqui, um contacto mais próximo
com os estudantes universitários, quais são
os principais motivos que levam os estudantes
universitários a procurar acompanhamento por
um especialista em dermatologia?
Eu acho que o motivo número um é a acne. Até
porque é uma das patologias dermatológicas
mais prevalentes na idade jovem. Existe outra
entidade, que nós nem chamamos uma doença, mas
que é também muito comum neste grupo etário, que é
a dermatite seborreica. Assim, a dermatite seborreica e
questões relacionadas com o couro cabeludo e com o
cabelo acabam por ser o segundo motivo; isto dentro do
grupo dos jovens saudáveis. Sem dúvida que são as causas
mais frequentes de procura de um dermatologista.
E atendendo às particularidades da
vida de um estudante universitário,
sente que há obstáculos específicos
que dificultam a aquisição dos resultados
pretendidos?
Quer na acne quer na dermatite seborreica
e em algumas questões relacionadas com
o cabelo, nós sabemos há alguma relação
com o stress emocional. Portanto, o stress
pode agravar a acne; a dermatite seborreica
também é uma entidade muito relacionada
com o stress; e obviamente que a vida universitária,
com as épocas de exames, com estes picos de stress,
acaba por poder condicionar aqui algum agravamento.
Relativamente à acne, o que eu vejo nos estudantes
universitários é que o componente mecânico é um
importante fator de agravamento. Ou seja, na altura de
exames, nas alturas de maior stress, as pessoas “mexem”
muito na pele e isto chama-se acne escoriado do adulto
jovem. Nós vemos muito esse padrão nos estudantes
universitários, em particular nos estudantes de Medicina,
porque passam muito tempo sentados a estudar, às
vezes também têm alguns traços de personalidade mais
obsessivos e esses traços de personalidade e as lesões
escoriadas de acne estão muito relacionadas.
E, depois, claro, a vida universitária também proporciona
alguns excessos que também acabam por não ser
muito saudáveis para a pele, porque nós sabemos que
uma pele saudável também está relacionada com um
estilo de vida saudável, com bons hábitos alimentares,
de sono,… Enfim… E nós sabemos que isso é tudo o que
um estudante universitário tem mais dificuldade em fazer.
Portanto, sim, identifico algumas dificuldades, mas
que, claramente, não são um obstáculo de maior.
Com base na sua experiência, diria que a maior
parte dos jovens, principalmente estudantes
universitários, tem uma preocupação em manter
cuidados de pele e consegue fazer diariamente
uma rotina de pele ou sente, por outro
lado, que há uma certa negligência relativamente
a este tipo de cuidados?
São duas perguntas. A primeira é se têm uma preocupação
com os cuidados de pele; sim, sem dúvida nenhuma.
Essa é uma questão que está identificada na
dermatologia em todo o mundo, que há uma crescente
preocupação dos jovens relativamente aos cuidados de
pele, com o objetivo duma pele saudável, que não havia
há, diria, 10 anos atrás. Isso é transversal ao mundo moderno.
Essa preocupação está bem identificada e nunca
o skincare esteve tão na moda. Indiscutível. Muito também
por causa das redes sociais, por causa da questão
das pessoas valorizarem, cada vez, mais, uma pele sau-
dável,… mas isto é transversal a todos os grupos etários,
em particular aos grupos jovens.
A segunda questão é se, de facto, são capazes, depois,
de cumprir os cuidados a que se propõem. Diria
que não. Por isto tudo que eu disse há pouco. Porque,
muitas vezes acabam por se deitar tarde, não têm tempo
de limpar a pele, frequentam, às vezes, ambiente com
mais fumo e tudo isso cria aqui alguma falta de cuidado.
Portanto, não acho que haja negligência; há, sim,
preocupação, mas há dificuldade, depois, em manter o
patamar a que se propõem.
“...porque nós sabemos que uma pele saudável
também está relacionada com um estilo de vida saudável,
com bons hábitos alimentares, de sono,…”
Essa dificuldade em manter uma boa rotina de
pele e em concretizar a tal rotina que seria adequada
leva-nos a uma outra pergunta. De uma
forma geral, acha que, mesmo os estudantes
que não são acompanhados por um dermatologista,
conseguem, de uma forma autónoma,
selecionar os produtos adequados para uma
boa rotina de pele, constituir a sua própria rotina
de pele? Ou acha que isso é difícil?
Nós temos aqui que distinguir dois grupos. Temos
que distinguir jovens que, por exemplo, tenham uma
pele com acne, com algum tipo de patologia, como alergias,
dermatite atópica, eczema, que, indiscutivelmente,
na minha opinião, precisam de um acompanhamento de
Dermatologia. Até porque, caso contrário, acabam por
ser invadidos por vários cosméticos, fazem experiências
e, o que eu vejo é que, muitas vezes, corre mal, porque
acabam por associar cosméticos que não deviam ser associados,
a pele fica irritada, afeta a barreira cutânea,
e a acne, em vez de melhorar, agrava. Portanto, tudo
corre mal! Até existe uma entidade que se chama acne
cosmético, que resulta do facto do uso errado de cosméticos
poder, ele próprio, desencadear acne - ou seja,
muitos cosméticos, muita limpeza e esfoliação da pele
podem agravar a acne.
Numa pele saudável, “sem nada”, eventualmente,
poderá não ser preciso um dermatologista se as pessoas
não se propuserem a fazer muita coisa, ou seja, se disserem:
‘Muito bem, eu vou limpar a pele, aplicar um creme
hidratante e ter cuidado com o sol e usar protetor solar’.
Para isto, talvez não seja preciso, mas quando as pessoas
gostam muito de skincare e quando pretendem mais do
que isto, acho que, aí, precisam de um aconselhamento,
porque, se não, vão procurar esse aconselhamento nas
redes sociais. Isso está estudado - a informação sobre
skincare nas redes socais dada por dermatologistas é
abaixo de 10%. Portanto, já se percebeu que quem domina
esta área nas redes sociais, que é muito daquilo
que nos chega, não são os dermatologistas. Há até um
alerta. Por exemplo, este ano, na reunião da Academia
Americana, havia um apelo aos dermatologistas para
que se instalassem nas redes sociais para, de facto, aumentar
esta cota de informação para que a informação
fosse mais credível.
Portanto, se as pessoas querem usar vários produtos,
acho que precisam de um dermatologista, porque,
se não, tem tudo para correr mal. Se querem um hidra-
tante e limpar a pele, acho que, eventualmente, numa
pele saudável, isso não será tão necessário.
Mas é verdade também que eu, há 5 ou 6 anos atrás,
não tinha adolescentes nem jovens saudáveis, com pele
saudável, a chegarem à minha consulta a perguntar
‘Como é que eu devo tratar a mina pele?’. Era uma consulta
que eu não tinha, isto não existia. E, agora, tenho.
Adolescentes que chegam, não têm “nada”, e a única
coisa que querem saber é cuidados de skincare para se
orientarem. É um fenómeno que é interessante. Eu agora
digo muitas vezes - eu tenho consultas de pessoas
bonitas e saudáveis que a única coisa que querem saber
é como manter a sua pele saudável. E eu acho bem! Se
as pessoas tiverem tempo e disponibilidade para isso,
acho muito bem!
Atendendo ao panorama atual e até a alguns
dos pontos de que já fomos falando, sente que
existe ainda uma lacuna grande no que diz respeito
à literacia em saúde dermatológica?
Sim, acho que existe. De facto, há uma grande quantidade
de informação disponível nas várias plataformas
sobre skincare. Skincare é, sem dúvida, um dos temas
mais procurados. E o número crescente que tem havido
de influencers nesta área é brutal e claro que esta é uma
informação muito enviesada e, portanto, que está associada
a muitos riscos - as pessoas depois acabam por ter
ideias erradas. Há muita coisa relativamente até a determinados
cosméticos que são quase que endeusados
e, depois, todas as pessoas usam aquilo e, na realidade,
não é bom para todos. Acontece até com determinados
tipos de alimentos, em que é feito completamente o
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LIFESTYLE
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contrário - diz-se ‘este alimento é perigosíssimo para a
pele’ e, de repente, há uma quebra no consumo. Há muita,
muita desinformação.
Portanto, respondendo à pergunta: sim, há muita
desinformação. E nós já estamos habituados a isso em
todas as áreas e, claro, numa área que está a crescer,
como é o skincare, obviamente que isso acontece. E, depois,
há marcas que promovem isso. Enfim, há muitos interesses
ocultos, como acontece sempre. E eu vejo esse
fenómeno a acontecer: vi um produto de higiene, que
até era um produto de uma gama baixa, económico, e
não é que fosse mau nem bom, mas houve uma altura
em que houve uma divulgação de tal forma importante
numa rede social, neste caso até foi no TikTok, e foi uma
coisa esmagadora - todas as minhas pacientes passaram
a usar aquele produto de higiene. Um fenómeno que eu
não imaginava há uns tempos atrás e que, até a mim, me
faz alguma confusão.
Portanto, sim, há muita desinformação, há muitos
erros, há muita combinação de cosméticos errada - as
pessoas combinam ácido salicílico com retinoides, ácido
glicólico com esfoliantes. Depois, isto tem tudo para
Sente que a oferta crescente de produtos e o
acesso cada vez mais fácil a informação que raramente
é selecionada podem dizer-se aquilo a
que se costuma chamar ‘um pau de dois bicos’?
Sim, é verdade. É um bocadinho dentro daquilo que
estou a dizer. Eu acho que nós, como médicos, temos
aqui um papel importante. Não só nesta área da Dermatologia
como em todas - é que sejamos nós a liderar
a informação em saúde. E acho que é importante, até,
falarmos sobre isto porque é transversal na Medicina.
Nós devemos liderar a informação em saúde; seja ela no
que diz respeito à atividade física e risco cardiovascular,
seja skincare e cuidados de pele,… Tudo, tudo. Portanto,
nós, na realidade, temos, nos últimos anos, perdido aqui
algum poder. E para pessoas que têm muito mais tempo
do que nós, têm outros interesses que nós não temos e
que acabam por ser fontes de informação privilegiada. E,
portanto, lá está aquilo que eu dizia da Academia Americana
e que eu concordo inteiramente - que, de facto,
nós, como médicos, e eu, na minha área, como Dermatologista,
não posso dizer ‘Aquilo está tudo errado’ - tenho
que também estar lá a passar uma informação credível.
E isso tem sido uma preocupação das sociedades
científicas. Ou seja, não podemos dizer só que aquilo
não presta, temos que pôr informação. Só que a nossa
informação é sempre muito menos apelativa. Eu noto
isso, agora que tento ter alguma presença nas redes sociais,
também fruto deste caminho. Eu penso que vou
passar uma informação credível nas redes sociais, mas,
o que eu sinto, é que eu digo coisas que as pessoas não
querem ouvir e que não gostam! Nesta sociedade que
nós temos agora, é privilegiada uma informação que
é a informação simpática, em que é tudo bonito, tudo
agradável. Nós, médicos, dizemos coisas como ‘Não faça
solário, que lhe vai dar cancro de pele’. Ninguém quer
ouvir isso!
Abordando agora, especificamente, as rotinas
de pele. Quais são os elementos-chave para
uma boa rotina de pele? Pode dizer-se que há
produtos ou etapas que deviam ser comuns a
qualquer rotina de pele?
Sim, há três aspetos na rotina que são, digamos, o
que eu considero “serviços mínimos”: limpar, hidratar e
proteger do sol. E eu acho que este deve ser um cuidado
para todos.
Depois, obviamente que cada um destes produtos
pode ser um bocadinho adequado àquele tipo de pele
e àquele grupo etário. Obviamente que uma pessoa que
tem uma pele atópica, com algum defeito na barreira
cutânea, mesmo sendo um jovem com acne, não pode
limpar a pele com um produto demasiado detergente,
porque isso vai afetar-lhe a barreira cutânea e, a partir
daí, a pele vai piorar.
Relativamente ao hidratante - o que é para nós o hidratante?
É uma emulsão de óleo em água que mantém
o teor de água na pele. Obviamente que o hidratante
depende um bocadinho do tipo de pele, mas isso é um
serviço que deve ser feito. Ou seja, aplicação diária de
um hidratante, seja no homem, seja na mulher, é fundamental.
E, depois, a proteção solar. Nós sabemos que o sol
é o que mais danifica a nossa pele e que esse dano começa
em idade jovem e, portanto, devemo-nos proteger
desde cedo. Isto é o mínimo.
Depois, a partir daqui, nós podemos subir o patamar.
Imaginemos que é um jovem que até se preocupa com o
envelhecimento e que o quer prevenir - faz sentido usar,
antes do protetor solar, um antioxidante, usar um cosmético
com vitamina C, por exemplo. Ou, se é uma pessoa
que tem tendência para ficar com a pele manchada,
faz, se calhar, sentido usar um cosmético que tenha ou
vitamina C ou ácido azelaico. Ou, se é um jovem que, por
exemplo, tem uma pele que tem um bocadinho de tendência
para a oleosidade, para alguns comedões, pode
encaixar, nesta rotina, um cosmético como um retinoide.
Isto já são cuidados mais específicos. E voltamos à outra
pergunta - para isto, eu acho que é preciso orientação de
um Dermatologista, porque, se não, a combinação destes
produtos pode, depois, não correr bem.
Sente que, hoje em dia, é possível ter
uma rotina de pele completa a um preço
acessível?
Sim, sim. Acho que, também, um dos aspetos
positivos desta exigência no mundo
da skincare é que existem produtos económicos
com qualidade. Ou seja, conseguimos
ter um produto de higiene adequado, um
bom hidratante e um protetor solar sem
grande investimento. Portanto, o preço não
é um fator condicionante. Acho que qualquer
um pode ter bons cuidados de skincare.
Relativamente àqueles estudantes que têm
condições como dermatite seborreica, de que já
falamos, ou mesmo psoríase, as rotinas de pele
exigem cuidados acrescidos ou, pelo menos,
uma maior atenção na escolha dos produtos?
Estamos a falar de duas coisas diferentes.
Não se considera, na Dermatologia, a dermatite seborreica
como uma doença. A dermatite seborreica é
um bocadinho um tipo de pele, que tem que ver com o
microbioma do couro cabeludo, alguma predisposição
genética,… Não é uma doença. Portanto, sim, quem tem
dermatite seborreica, seja na face, seja no couro cabeludo,
tem que usar cosméticos diferentes, que tenham
alguma ação antifúngica - porque nós sabemos que, na
dermatite seborreica, há uma alteração do microbioma
a favor da Malassezia furfur -, outros que tenham alguma
ação queratolítica. E devem fazê-lo de uma forma
regular para, digamos, manter ali algum equilíbrio. Obviamente
podemos usar anti-inflamatórios em fases de
crise, mas, de rotina, que é aquilo de que estamos a falar,
sim, têm de ter cuidados especiais.
A psoríase é uma doença imuno-mediada. É uma patologia.
E os cosméticos também têm um lugar na psoríase,
porque há alguma hiperqueratose e, portanto, o
uso de cosméticos que tenham ureia, que tenham ácido
salicílico, que tenham algum efeito queratolítico, têm
benefício. Mas são coisas diferentes. Nós estimamos que
dermatite seborreica quase que todos temos. Eventualmente,
com mais ou menos impacto, em diferentes fases
da vida, mas não há ninguém que, alguma vez, possa
dizer ‘eu nunca tive um bocadinho de descamação no
couro cabeludo’ - e isso é uma dermatite seborreica.
Hoje em dia, atendendo, então, a este panorama
global em que há cada vez mais oferta, cada
vez mais informação acessível, mas também
uma deficiente qualidade em grande parte da
informação disponível, qual é o papel do der-
matologista e de que forma tem vindo a evoluir
esse papel ao longo do tempo?
Eu acho que o papel do dermatologista, que é o papel
do médico, é orientar. E, depois, aquilo a que nós
assistimos muito, é um excesso de produtos. Eu, às vezes,
fico completamente assustada com jovens que já
ouviram informação de todo o lado e que já fizeram
um ‘cocktail’ de skincare com rotinas complicadíssimas
e que, às vezes, precisam de um dermatologista para
dizer ‘Esse produto não interessa nada. Basta isto para
a sua pele.’. Portanto, o dermatologista tem um papel
fundamental em identificar erros de skincare, evitar até
consumos excessivos que não trazem nenhum tipo de
benefício - as pessoas gastam imenso dinheiro sem sentido
- e adequar os cosméticos para cada tipo de pele,
porque, como digo, uma combinação errada de cosméticos
(por exemplo, uma limpeza exagerada da pele, uma
exfoliação exagerada da pele combinada com cosméticos
com o mesmo efeito), ao contrário do que as pessoas
imaginam - eu acho que as pessoas têm um bocado a
ideia de que os cosméticos podem não fazer bem, mas
também mal não farão, e isso é uma ideia completamente
errada - pode ser prejudicial para uma pele que
até estava bem. E eu vejo isso muitíssimo, vejo isso cada
vez mais. As pessoas fazem máscaras, fazem exfoliações,
combinam tudo o que veem aqui e acolá e, portanto, o
dermatologista tem o papel de orientar. Nós, sim, queremos
manter uma pele saudável e não pode haver aqui
exageros nem para um lado nem para o outro.
Para terminar, que conselho deixaria aos jovens
para manterem uma boa saúde dermatológica?
O que eu vou dizer é um lugar-comum, mas a verdade
é que uma pele saudável espelha uma vida saudável.
Não há dúvida quanto a isso. Nós sabemos que fumar, a
poluição, os excessos, as noites mal dormidas, uma alimentação
desequilibrada, excesso de açúcares podem
interferir com uma pele saudável e, portanto, a primeira
coisa para ter uma pele saudável não é gastar uma fortuna
em cuidados de skincare. A primeira coisa é ter uma
vida saudável! (...)
Nós sabemos que tudo o que diz respeito à pele interfere
muito com a nossa imagem, interfere muito com
a nossa autoestima. E, se nós formos procurar estudos
sobre isso, não faltam. A pele saudável e a autoestima
estão muito ligadas e, portanto, é bom saber que o dermatologista
tem soluções e que pode tratar. Se, depois,
aparecem cicatrizes, tudo isso complica. Portanto, devemos,
precocemente, ter uma intervenção.
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