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Um Lugar à Mesa: A Importância das Organizações Sociais na Sociedade Portuguesa

A quarta edição da revista Um Lugar à Mesa traz a debate a Importância das Organizações Sociais na Sociedade Portuguesa. "Estamos a falar de cerca de 72 mil organizações que servem um milhão de beneficiários e mantêm 235 mil postos de trabalho", sublinha João Paulo Feijoo (Voluntário na Fundação Manuel Violante), no editorial. Esta é uma edição muito especial que reúne, não apenas a visão de líderes dos setores privado e social, mas também a voz, na primeira pessoa, dos beneficiários destas organizações. O nosso muito obrigado aos autores que aceitaram este desafio e que partilharam connosco a sua experiência e saber, tornando esta edição tão rica: - Mariana Ribeiro Ferreira (Diretora de Cidadania Empresarial da CUF) - Matilde Sirgado (Membro da Direção e Coordenadora do Projeto Rua "Em família para crescer" no Instituto de Apoio à Criança) - Marta Bastos dos Santos (Coordenadora do Programa de Voluntariado do Grupo EDP) O nosso obrigado, ainda, às extraordinárias Organizações FMV e beneficiários que partilharam connosco o seu tão importante testemunho: - Associação Mais Proximidade (Lisboa) | Sra. Dona Adélia - Ser Alternativa - Associação de Apoio Social (Mem Martins) | "João" - Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental do Porto | Isabel Girão --- A Um Lugar à Mesa, promovida pela Fundação Manuel Violante (FMV), é a primeira publicação digital em Portugal dedicada à liderança social. Trata-se de uma publicação trimestral online e gratuita que tem como objetivo dar voz aos líderes de organizações com missão social em Portugal. Em dezembro de 2021, foi lançado o primeiro número sobre o tema “Dar Voz aos Líderes Sociais”. Esta primeira edição contou com entrevistas exclusivas a 10 líderes de instituições sociais portuguesas.

A quarta edição da revista Um Lugar à Mesa traz a debate a Importância das Organizações Sociais na Sociedade Portuguesa.

"Estamos a falar de cerca de 72 mil organizações que servem um milhão de beneficiários e mantêm 235 mil postos de trabalho", sublinha João Paulo Feijoo (Voluntário na Fundação Manuel Violante), no editorial.

Esta é uma edição muito especial que reúne, não apenas a visão de líderes dos setores privado e social, mas também a voz, na primeira pessoa, dos beneficiários destas organizações.

O nosso muito obrigado aos autores que aceitaram este desafio e que partilharam connosco a sua experiência e saber, tornando esta edição tão rica:

- Mariana Ribeiro Ferreira (Diretora de Cidadania Empresarial da CUF)
- Matilde Sirgado (Membro da Direção e Coordenadora do Projeto Rua "Em família para crescer" no Instituto de Apoio à Criança)
- Marta Bastos dos Santos (Coordenadora do Programa de Voluntariado do Grupo EDP)

O nosso obrigado, ainda, às extraordinárias Organizações FMV e beneficiários que partilharam connosco o seu tão importante testemunho:

- Associação Mais Proximidade (Lisboa) | Sra. Dona Adélia
- Ser Alternativa - Associação de Apoio Social (Mem Martins) | "João"
- Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental do Porto | Isabel Girão

---

A Um Lugar à Mesa, promovida pela Fundação Manuel Violante (FMV), é a primeira publicação digital em Portugal dedicada à liderança social.

Trata-se de uma publicação trimestral online e gratuita que tem como objetivo dar voz aos líderes de organizações com missão social em Portugal.

Em dezembro de 2021, foi lançado o primeiro número sobre o tema “Dar Voz aos Líderes Sociais”. Esta primeira edição contou com entrevistas exclusivas a 10 líderes de instituições sociais portuguesas.

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A I M P O R T Â N C I A D A S O R G A N I Z A Ç Õ E S

S O C I A I S N A S O C I E D A D E P O R T U G U E S A


caro

leitor


O vazio

Este número de um Lugar à Mesa é dedicado ao

tema "A importância das organizações sociais na

sociedade portuguesa”, dando continuidade à

reflexão iniciada com a tertúlia "E se as

organizações sociais não existissem?", organizada

pela Fundação Manuel Violante no passado dia 18

de julho. O repto contido naquela pergunta pode

parecer algo esdrúxulo – custa-nos imaginar uma

sociedade sem organizações sociais independentes,

embora ela seja uma realidade em regimes

totalitários – mas serve, em primeiro lugar, para

tomar consciência do que a economia social

representa num país como Portugal.

Estamos a falar de cerca de 72 mil organizações que

servem um milhão de beneficiários e mantêm 235

mil postos de trabalho e mais de 4.3 mil milhões de

euros de remunerações, das quais só cerca de um

terço é financiado pelo Estado. Estes grandes

números sugerem, por si só, o impacto que o

hipotético desaparecimento das organizações

sociais teria não só na capacidade da sociedade

para enfrentar os desafios sociais do país como no

plano económico mais geral do emprego e dos

rendimentos.

Mas não fiquemos por aqui.

Em “A Democracia na América”, escrita em meados

do século XIX na sequência do seu périplo pelos

então jovens Estados Unidos, o aristocrata francês

Alexis de Tocqueville dava conta da propensão do

cidadão comum para se associar livremente para

resolver problemas sociais e económicos complexos,

vendo nesta dinâmica de alinhamento dos

interesses pessoais ao serviço de um interesse

mútuo e coletivo uma das pulsões vitais da

democracia. A sabedoria do seu comentário

perdura: uma economia social pujante é inseparável

de um modelo de sociedade plural, vibrante e

verdadeiramente democrático. A sua ausência é um

duplo vazio.

João Paulo Feijoo

Voluntário da Fundação Manuel Violante


/ U M L U G A R À M E S A / S E T 2 0 2 2 • N º 4

CONTEÚDOS

02

M E N S A G E M A O L E I T O R

Uma breve nota de João Paulo Feijoo (Voluntário da

Fundação Manuel Violante) sobre a presente

publicação

ARTIGOS

07

A E C O N O M I A S O C I A L - A T R A V E

M E S T R A D O E S T A D O S O C I A L

Mariana Ribeiro Ferreira

11

E S E N Ã O H O U V E S S E 3 º S E T O R ?

Matilde Sirgado

15

O C O N T R I B U T O D A S O R G A N I Z A Ç Õ E S

S O C I A I S P A R A A C O N S T R U Ç Ã O D E

U M M U N D O M E L H O R

Marta Bastos Santos


ENTREVISTAS

21

A D É L I A G O N Ç A L V E S

Beneficiária da Associação Mais Proximidade

(Lisboa)

26

" J O Ã O "

Beneficiário da Ser Mais Alternativa -

Associação de Apoio Social (Mem Martins)

31

I S A B E L G I R Ã O

Mãe de Beneficiária da APPACDM - Associação

Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão

Deficiente Mental (Porto)


A visão dos

líderes


A R E S P O S T A À R E F L E X Ã O

A importância das

organizações sociais na

sociedade portuguesa

P O R 3 L Í D E R E S D O S S E T O R E S P R I V A D O E S O C I A L



A Economia Social - a

trave mestra do Estado

Social

P O R M A R I A N A R I B E I R O F E R R E I R A

Diretora de Cidadania Empresarial da CUF


P Á G I N A 9

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / A ECONOMIA SOCIAL - A TRAVE MESTRA DO ESTADO SOCIAL

Perante problemas sociais complexos e multidimensionais,

designadamente a pobreza, a exclusão social e o desemprego de longa

duração, o Estado já não atua sempre de forma isolada e procura ativar

parcerias, sobretudo com entidades que partilham valores comuns,

centradas no desenvolvimento social em que as famílias e os indivíduos

sejam o foco da intervenção. Nas últimas décadas, temos vários exemplos

práticos de situações em que o Estado, e o poder político, reconhece o

papel da economia social, que nasce da aspiração de colocar a economia

ao serviço das pessoas e da sociedade[1], confiando-lhe a execução de

políticas e programas em parceria, ciente da sua capacidade de

intervenção descentralizada, em rede, com proximidade territorial e com

cada vez mais disponibilidade para a inovação social.

Em Portugal, a importância da economia social tem vindo a ser

reconhecida pelas autoridades públicas, de uma forma geral, e pela

sociedade e comunidades de forma particular. A criação da Conta Satélite

da Economia Social (CSES), que permite fazer uma recolha e

sistematização do impacto económico deste setor, é uma das

materializações desse reconhecimento. Em Abril de 2011, a Cooperativa

António Sérgio para a Economia Social (CASES) e o Instituto Nacional de

Estatística assinaram um protocolo de colaboração para a elaboração da

CSES com o objetivo principal de apresentar alguns indicadores sobre as

atividades relacionadas com a economia social. Atualmente, já foram

publicados três boletins da CSES pelo INE, sendo de destacar, na sua

última publicação de julho de 2019[2] referente a 2016, os seguintes

dados:

Em 2016, o Valor Acrescentado Bruto (VAB) da Economia Social

representou 3,0% do VAB da economia, tendo aumentado 14,6%, em

termos nominais, face a 2013.

A Economia Social representou 5,3% das remunerações e do emprego

total e 6,1% do emprego remunerado da economia nacional.

Neste contexto, há evidências de esforços de procura de um

posicionamento inter-pares entre as entidades estatais e as da economia

social, apesar do enquadramento jurídico-legal que confere ao Estado as

funções de regulador, financiador e fiscalizador do setor social. Este

[1] Manuela Silva (2012)

[2] disponível em https://www.ine.pt/xportal/xmain?

xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=379958840&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt


P Á G I N A 1 0

posicionamento, aparentemente paradoxal, do Estado em relação

às entidades da economia social, tem vindo a ser construído com base

em relações institucionais e em regulamentos que enquadram a

cooperação e o trabalho em rede na ação social.

Nas últimas décadas, o Estado tem vindo a aumentar a

contratualização de serviços com a economia social, facto que pode ser

interpretado como um aumento do reconhecimento da capacidade

técnica de intervenção das instituições. De forma proporcional, também

o valor das verbas atribuídas ao setor tem crescido. Quando analisadas as

contas na perspectiva das entidades da economia social, verifica-se que

as transferências ou subsídios representaram, em, 2018, 28,0% do total

dos meios de financiamento, seguidas pelas prestações de serviços

(22,0%) e pelos empréstimos (19,2%)[3]. Estes dados são muito relevantes

porque evidenciam que as instituições, que prestam um trabalho

essencial, imprescindível e com qualidade, de uma forma geral, fazem-no

com enormes dificuldades e têm aprendido a ativar outras formas de se

financiarem, para além dos apoios públicos.

A economia social, e esta rede virtuosa de entidades que a integram,

são a prova de que o Estado, que tem de assegurar o cumprimento das

suas principais funções, do apoio social, não precisa de ser o (único)

prestador desses serviços. Não precisa de ter exclusividade nem a

propriedade das entidades que os promovem. Quando o Estado permite

e incentiva que outras entidades parceiras, para além das públicas,

também assegurem essas funções e esses serviços, está a apostar na

resolução dos problemas e não está preocupado com a paternidade de

quem propõe a solução.

O Estado não poderá deixar de ser o garante e a salvaguarda, mas

deve permitir que a economia social se fortaleça, qualifique seja

reconhecida como a plataforma da intervenção e da prestação direta de

apoios e serviços.

[3] Instituto Nacional de Estatística - Inquérito ao Setor da Economia Social : 2018. Lisboa : INE,

2020. Disponível na www:<url:https://www.ine.pt/xurl/pub/450307417>. ISSN 2184-7932. ISBN

978-989-25-0557-2



E se não existisse

3º Setor?

P O R M A T I L D E S I R G A D O

Membro da Direção e Coordenadora do Projeto Rua "Em

família para crescer" - Instituto de Apoio à Criança


P Á G I N A 1 3

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / A ECONOMIA SOCIAL - E SE NÃO HOUVESSE 3º SETOR?

As organizações do 3º Setor têm um papel fundamental na

transformação social, tanto pelo trabalho de proximidade que

desenvolvem junto das comunidades, como pelas metodologias de

mobilização dos grupos-alvo. Com base neste trabalho de intervenção

direta nas comunidades, acabam por ter legitimidade para influenciarem

de forma ativa as políticas públicas.

Estas organizações sociais podem ser definidas como um grupo de

pessoas que se organizam em defesa de uma causa comum e que se

propõem dar resposta a problemas sociais e humanitários da sociedade.

Apesar das dificuldades que normalmente têm de enfrentar em termos

financeiros, encontram-se num lugar privilegiado de atuação, pois

beneficiam de autonomia face ao poder político e da proximidade aos

públicos-alvo.

A título de exemplo, o Instituto de Apoio à Criança, desde a sua

fundação em 1983, desenvolve um trabalho em parceria, tanto com

estruturas governamentais, como com outras organizações parceiras,

sempre na perspetiva de ampliar o impacto da sua intervenção e de

reunir dados que comprovem a necessidade de produzir alterações nas

políticas públicas e na legislação, em matérias relacionadas com os

Direitos da Criança. Este é um trabalho de grande dedicação que implica

um diálogo constante com as partes envolvidas, nomeadamente

parceiros, governo, profissionais de diversas áreas, pais, crianças e jovens.

Pelas palavras da nossa Presidente Honorária - Dra. Manuela Eanes, o

IAC sempre desenvolveu programas de informação e sensibilização, com

projetos de intervenção direta em áreas não cobertas anteriormente pelo

Estado, nem por outras entidades, com o objetivo de conseguir condições

de maior dignidade para a Criança. O Projecto Rua – Em Família para

Crescer é um exemplo vivo deste tipo de projetos: foi criado em 1989, com

o objetivo de interromper os ciclos de marginalidade das crianças em

situação de rua e, embora tenha vindo a recriar-se ao longo dos tempos,

manteve sempre a sua metodologia inovadora de não ficar à espera nos

gabinetes, nem pelas crianças e jovens, nem pelas famílias. Um dos

princípios fundamentais é “Ir ao encontro e estar com…”. Não importa o

local, nem a hora, mas a proximidade.

Não há, por isso, a intenção de sobreposição ou substituição ao Estado,

nem aos programas governamentais, mas sim, intervir numa lógica de

complementaridade, identificando necessidades e testando metodologias

de intervenção e soluções para os problemas sociais identificados.


P Á G I N A 1 4

As estruturas estatais, infelizmente, não têm capacidade de resposta

para todas as situações sociais. As organizações de 3º Setor, beneficiando

da sua autonomia face ao Estado, conseguem angariar fundos próprios e

mobilizar pessoas interessadas em determinadas causas para

implementar projetos e programas de intervenção que complementam a

execução de políticas públicas. Como exemplo disto, temos a

dinamização de serviços de apoio, como creches, casas de acolhimento,

centros juvenis, escolas de 2ª oportunidade, entre outros.

Não seria possível ter diagnósticos de proximidade junto das

populações, respostas adaptadas a cada comunidade, produtos e serviços

adaptados a cada grupo-alvo nem estruturas de apoio e de assistência

imediata.

Perder-se-ia, na minha opinião, um bem maior, que é esta capacidade

de despertar a sociedade para a importância da participação cívica, da

solidariedade e da entreajuda social. Perder-se-ia a maior ferramenta de

mobilização social – as organizações da sociedade civil – que para além

de terem a capacidade de mobilizar as comunidades e de influenciar

positivamente as políticas públicas, reforçam a democracia, ao

defenderem os interesses e necessidades das minorias e dos mais

vulneráveis.

Face aos desafios que se anteveem nesta fase de crise sócioeconómica,

e que irão afetar principalmente os mais vulneráveis, é

urgente repensar e reforçar o papel fundamental que as organizações do

3º Setor têm na sociedade e possibilitar que, ao invés do seu

desaparecimento, se maxime o impacto da sua intervenção. Quanto

maior for o envolvimento das pessoas na intervenção das organizações

sociais, maior será a sua consciência cívica e a sua capacidade de

participação nas questões que afetam a sociedade na sua globalidade.



O contributo das

organizações sociais para

a construção de um

mundo melhor

P O R M A R T A B A S T O S D O S S A N T O S

Coordenadora do Programa de Voluntariado do Grupo EDP


P Á G I N A 1 7

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / E SE AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NÃO EXISTISSEM?

O seu valor é inquestionável. Caracterizadas por uma forte componente

humana, as organizações sociais são cada vez mais importantes no

contexto adverso em que vivemos. Se antigamente podíamos pensar que

apenas existiam para colmatar fracassos institucionais do mercado e do

Estado, funcionando como um complemento a estes sectores, a sua

crescente expansão e forma de abordar as temáticas sociais prova-nos o

contrário, revelando-se como uma verdadeira fonte de inovações sociais

pioneiras, replicadas ou apoiadas, quer pelo governo, quer pelo mercado.

Dotadas de uma multiplicidade de valências e abarcando diversas

áreas, representam novos modos de pensar e agir sobre os problemas

sociais, respondendo criativamente aos desafios que se apresentam,

desenvolvendo novas formas de organização e interação e respondendo a

problemas que tradicionalmente não são atendidos. Com a sua atuação

conseguem promover uma verdadeira transformação na forma como a

sociedade pensa e age. Esta, cada vez mais global, num Mundo que se

tornou num único lugar para todos os seres humanos, numa redefinição

da noção de espaço, em que problemas locais rapidamente se

transformam em questões globais, pede a criação de redes mais coesas,

que conectam os seus membros e as comunidades, permite aumentar a

sua confiança, empoderar, potenciar uma cidadania mais ativa e uma

democracia mais participativa.

Dotadas de uma capilaridade inigualável, são aquelas que melhor

conhecem os problemas sociais e que se revelam de extrema importância

na dinamização da economia, sobretudo em zonas desprotegidas,

dinamizando economias locais e impulsionando a criação de emprego,

sobretudo numa vertente de integração de indivíduos tendencialmente

excluídos do mercado de trabalho.

Em paralelo, tem se assistido a uma crescente colaboração entre

organizações sociais e empresas, o que assume um importante papel na

redução de desequilíbrios sociais e económicos. Hoje em dia quase todas

as empresas investem na sociedade, com a consciência que tal se afigura

fundamental para a sustentabilidade de todos nós, fazendo assentar este

investimento, na maior parte das vezes, numa colaboração com

organizações sociais.

Um futuro sem estas organizações iria implicar a necessidade de

aumentar a mobilização dos governos para agir e de envolver ainda mais

as empresas na resposta a problemas sociais e económicos, que muitas

vezes não conseguem por estas ser identificados. Além disso, seria


P Á G I N A 1 8

resposta tão inovadora e humana, como aquela a que as

organizações sociais nos habituaram? Sabendo dos inúmeros desafios

que estas organizações enfrentam e dos esforços para a concretização

das suas ações e para a sua sustentabilidade, será que estamos longe

dessa realidade?

Num Mundo que atualmente, no que se refere a desigualdades, se

assemelha ao do início do século XIX, onde género, raça, economia e

acesso à educação - este pilar fundamental de cidadania mais ativa,

participativa e informada -, continuam desiguais, o que para além de ser

eticamente inaceitável, afeta as economias mundiais, excluindo milhões

de pessoas que podiam estar, em conjunto, a construir uma sociedade

mais igualitária e justa, baseada no bem-estar social. Enganem-se os que

pensam que a desigualdade apenas prejudica alguns – a desigualdade

prejudica-nos a todos. A construção de um mundo mais justo é uma

tarefa coletiva, ainda que cada indivíduo possa e deva dar sua

contribuição, pelo que pensar e desejar um mundo menos desigual não

pode ser somente uma questão de esperança, mas uma questão

intrínseca ao que somos como seres humanos. Apesar dos inúmeros

desafios, não devemos aceitar o eventual colapso da própria humanidade,

pois tal impede-nos de pensar de forma positiva e impulsionadora de

novas esperanças e potencia uma forma de sociabilidade sem vínculos de

solidariedade e sem referências de um projeto democrático de

Sociedade. Num Mundo tão diverso, mas uno, o Futuro só pode ser

colaborativo.


na primeira

pessoa


E N T R E V I S T A S A

3 beneficiários de

organizações sociais

portuguesas

C O N D U Z I D A S P O R K A T A R I N A A M A R A L D I A S ( K A D )

O n o s s o o b r i g a d o à s O r g a n i z a ç õ e s F M V :


Dona

Adélia


A Dona Adélia não morou sempre em Lisboa. Nasceu em Fornos de

Algodres, no distrito da Guarda, em 1935. Quando, em pequenina, os olhos

lhe pousavam nos mapas, começava já a nascer-lhe a formulação:

"Portugal é tão pequeno!". A Dona Adélia conta-nos isto totalmente

desprendida da ideia de uma pequenez de valor nacional. A ânsia dos

seus pulmões é que era muito grande. "Eu tinha de respirar mais!", diznos.

Queria ser enfermeira, conhecer o mundo, mas o seu pai rapidamente

lhe cortou o querer. A dor causada pela expressão com que o pai a tentou

convencer de que a enfermagem não era uma profissão aceitável e

respeitosa, ainda cintila nos olhos muito claros de Adélia. Numa altura de

particulares opressões, a nossa aventureira teceu, para si, vias e maneiras

para respirar mais fundo. Trocou as linhas de um percurso mais evidente

como modista, por linhagens suas.

P Á G I N A 3 1


P Á G I N A 2 3

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / ENTREVISTA À DONA ADÉLIA

Viveu em Moçambique e em Luanda. Tomou conta de crianças, foi auxiliar

numa Clínica de Saúde e trabalhou para a função pública, tanto em

África, como em Portugal. Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, vive na

Almirante Reis, em Lisboa. O seu filho e o seu neto moram consigo. É aí

que quer viver "o que faltar viver do meu trajeto".

Em 2020, a Dona Adélia sofreu um acidente vascular cerebral. É por

essa altura que conhece a equipa da Associação Mais Proximidade (AMP).

DA: Quando tive o AVC, fui internada no Hospital dos Capuchos. Sentiame

fragilizada e passou-me pela cabeça que talvez tivesse que ir para um

lar. Numa das visitas da assistente social que acompanhava o meu caso,

falei-lhe nisso, mas não foi uma ideia bem acolhida. A minha lucidez e

clareza de espírito não se adaptariam a uma vida num lar. Para além

disso, vivíamos em pandemia e os lares não estavam a aceitar ninguém.

Quando, pouco tempo depois, me foi dada alta hospitalar, a assistente

social deu-me o contacto de uma associação que me poderia ajudar,

dando-me apoio numa altura em que, depois do AVC, iria ser mais difícil

manter a minha vida de todos os dias, ir sozinha à farmácia ou ao médico.

Apesar de desconhecer que existissem associações que nos pudessem

ajudar e apoiar nestas situações, três dias depois de voltar a casa,

arrisquei ligar. E foi nesse momento que a minha vida, que antevia tão

complicada, de repente ficou mais simples.

No dia seguinte, tinha companhia em casa. A primeira visita foi feita pela

Patrícia e pela Renata, que me explicaram no que consistia o apoio e o

que eu podia esperar delas. Desde a primeira visita, fiquei espantada com

a disponibilidade de pessoas, na altura desconhecidas, para me apoiarem

e acompanharem. Mas, nessa altura, eu ainda não conhecia o maravilhoso

trabalho que esta organização viria a fazer comigo.

KAD: Desde essa primeira visita até agora, a Dona Adélia manteve uma

relação com a equipa da AMP. Que apoio é que esta equipa lhe continua

a dar?

DA: Desde essa primeira visita, mantiveram sempre o contacto. Ligam-me

e vêm visitar-me com toda a frequência que seja necessária. Vêm

conversar, oferecer um ombro amigo, apoiar-me em tudo o que eu

preciso. Sem elas, muitos dias seriam passados sozinha e, na minha idade,

a solidão não é nossa amiga. Como moro no quarto andar de um prédio

sem elevador, quando tenho a saúde mais frágil, não tenho


P Á G I N A 2 4

facilidade em subir e descer. Nessas alturas, a associação trata de

tudo o que preciso, permitindo que fique a recuperar e não corra riscos

desnecessários.

KAD: Se, quando a Dona Adélia teve este problema de saúde em 2020,

não tivesse conhecido a AMP, quem é que lhe teria prestado este

acompanhamento?

DA: Ninguém. As minhas amizades são da minha idade e precisam de

tanto apoio como eu. Há uns tempos, fui operada às cataratas e os meus

familiares não tiveram possibilidade de me acompanhar ou de ficar

comigo. Fiquei sem apoio.

KAD: Mas, hoje, já não tem de ser assim...

DA: Não, hoje já não é assim. Enquanto eu puder ir sozinha à farmácia e

às consultas, às compras ou ir beber o meu café, muito bem. E gosto de ir

porque isso é sinal de que ainda posso ir. Mas, agora, sei que quando, um

dia, eu deixar de conseguir, tenho quem me ajude. E isso já é uma grande

mudança. Porque toda a gente precisa de ajuda. Há uns tempos, o meu

frigorífico avariou-se e, na altura, eu não tinha possibilidade de o arranjar

ou de comprar um novo. Apesar da vergonha que admito ter sentido,

contei às meninas da AMP e, umas semanas depois, ofereceram-me um

novo. Quando se foram embora, escorreram-me as lágrimas pela cara e eu

pensei para mim: "Louvado seja Deus, ainda há pessoas boas neste

mundo!".

KAD: Como é que descreveria a equipa da AMP?

DA: Maravilhosa. Eu não tenho palavras suficientes para lhes agradecer.

Não é só "vir fazer o seu trabalho". São tão carinhosas e atenciosas. Eu

estou-lhes eternamente grata por todo o apoio e carinho que me dão. Se

houvesse uma manifestação por esta associação, mesmo com esta idade,

eu seria a primeira a apresentar-me com o estandarte.


P Á G I N A 2 5

BREVE COMENTÁRIO

D E M A F A L D A S O U R E

Coordenadora Geral da Associação Mais Proximidade

A missão da AMP é reduzir o

impacto da solidão e isolamento,

contribuindo para a melhoria da

qualidade de vida das pessoas

idosas. Providenciamos uma

resposta a uma necessidade

concreta. As necessidades básicas

como a higiene e alimentação estão

asseguradas por outras entidades

presentes na comunidade, mas não

há respostas para combater o

sentimento de solidão e isolamento

e para acompanhar a pessoa como

um todo, com uma abordagem

humanista, centrada na pessoa,

assente numa metodologia de

proximidade com elevado nível de

personalização da intervenção. A

intervenção da AMP pressupõe a

construção em conjunto de um

Plano Individual de

Desenvolvimento para cada

beneficiário e a atribuição de um

Gestor de Caso. A figura de um

Gestor de Caso é inovadora e

essencial para a avaliação,

diagnóstico, planeamento,

implementação, coordenação,

monitorização e avaliação do Plano

de Desenvolvimento Individual. O

Gestor de Caso é entendido pela

AMP como um gestor de cuidados,

não só a nível físico, social,

emocional, psicológico e

nas diversas áreas abrangentes da

vida de cada beneficiário, sendo

obrigatoriamente alguém com

capacidades técnico-científicas e

relacionais. E, se é no contexto de

relações afetivas gratificantes que

nos desenvolvemos, é na ausência

destes mesmos relacionamentos

que a inatividade substitui a

atividade - maior desleixo em

relação à alimentação, higiene,

medicação, relações sociais -

fatores desencadeadores de baixa

auto-estima. Desta forma, a AMP

consegue intervir com cada

beneficiário de forma

personalizada, identificar as

necessidades, mas também as

potencialidades de cada indivíduo,

garantindo a eficácia e eficiência na

resolução das situações

identificadas.

A intervenção realizada com a Srª

Dª Adélia é espelho disto mesmo,

um olhar centrado na pessoa, que

potencia as suas capacidades e

procura responder às suas

necessidades promovendo sempre a

manutenção da sua autonomia. É

para nós uma alegria acompanhar a

Srª Dª Adélia e aprender com o seu

trajecto e exemplo de vida.


"João"


P Á G I N A 2 7

O "João" viveu e passou a grande parte da sua vida na Guiné-Bissau

onde, em 2018, sofreu um acidente de viação que lhe partiu a perna em

três sítios diferentes. O "João" já foi sujeito a duas operações e aguarda,

agora, sem data prevista, o agendamento de uma terceira. Custa-lhe o

caminhar, mas o "João" sabe apoiar-se, não apenas nas necessárias

canadianas, como no largo sorriso e força de vontade que rapidamente

compreendemos caracterizá-lo. "Eu tenho cabeça rija!", diz-nos, entre

risos. O pai, antigo combatente e alto comandante das Forças Armadas, a

viver em Portugal, por altura do acidente, trouxe o "João" para Lisboa,

para viver consigo e com a sua esposa, por forma a assegurar o apoio e

acompanhamento necessários. Porém, em 2020, com a morte do pai o

"João" vê a sua vida mudar. "A minha família era o meu pai. E o meu pai

morreu". É também em 2020 que se dá início ao percurso do "João" com

a Ser Alternativa.

J: Quando o meu pai morreu, a minha madrasta expulsou-me de casa.

Disse-me que não tinha nada a ver comigo. Que não era minha mãe.

Mandou-me embora. Chamou a polícia. De repente, só com o meu

colchão estava na rua. Dormi na rua durante oito meses. O sítio que

encontrei para ficar era descoberto e fazia muito frio. Sofri muito com as

duas muletas e sem ninguém.


P Á G I N A 2 8

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / ENTREVISTA AO "JOÃO"

Até chegar aqui, à Ser Alternativa, não encontrei apoio. Eu tinha amigos,

mas a verdade é que nenhum me convidou para a sua casa nesses oito

meses. Quando a vida se torna difícil, vemos quem realmente temos para

nos apoiar e, nesses oito meses, eu não tive ninguém. Passava quinze dias

sem tomar banho. Tinha que ir ao supermercado para lavar a cara. Fui a

uma Paróquia pedir ajuda e mandaram-me para uma Igreja maior porque

já tinham muita gente a quem apoiar.

Lá, disseram-me o mesmo: muita gente. Demasiada gente a precisar de

ajuda. A dada altura, ocupei uma casa desocupada, mas chamaram a

polícia e voltei para a rua. Numa outra ocasião, liguei para a Linha

Nacional de Emergência Social e indicaram-me um centro de apoio. O

centro estava cheio de gente, jovens, idosos, homens e mulheres. Apanhei

Covid e estive muito doente. Fiquei lá dois meses e, desses dois meses,

muito tempo em isolamento. Com medo de voltar a ficar doente, voltei à

rua. E acabou por ser uma amiga de rua a dar-me a primeira indicação

sobre a Ser Alternativa. Logo no primeiro contacto com a Ser Alternativa,

percebi que se preocupavam. E há tanto tempo que ninguém se

preocupava comigo. Depois de chegar à Ser Alternativa, a minha vida

começou finalmente a dar certo.

KAD: Que apoio é que a Ser Alternativa lhe tem vindo a dar, desde então?

J: Um apoio contínuo. Ligam-me, todas as semanas, para saber como é

que eu estou, se preciso de roupa ou de alimentação. Se eu disser que

ainda tenho comida das refeições que eles me entregam, eles insistem,

preocupam-se verdadeiramente. Ajudaram-me a entender como pedir o

apoio da segurança social. Hoje, moro num quarto alugado na Tapada das

Mercês. Saí da rua. Trabalham comigo para perceber o que é melhor para

mim e para o meu futuro. Perguntaram-me o que é que eu quero para o

meu futuro e eu respondi "trabalho". Ajudaram-me a fazer uma inscrição

para a Jerónimo Martins, a explicar a minha situação, que eu uso muletas

e que tenho a mobilidade reduzida. Aceitaram-me e estou a fazer o

estágio de três meses. Além de me ajudarem a fazer a inscrição, deramme

encorajamento e motivação. Fizeram-me acreditar em mim. E eu

consegui.


KAD: Como é que descreveria a equipa da Ser Alternativa?

J: Eu não tenho com que lhes retribuir. Não tenho como lhe agradecer ou

recompensar. Eu sou um homem de fé e acredito que eles receberão em

dobro o bem que me dão. Dizem-me que estão cá para isso, que é a sua

missão mas eu acho que fazem muito mais do que a sua missão.

Preocupam-se comigo como se se preocupassem com um filho. Mesmo

quando eu tenho dificuldade ou vergonha em ligar. São humanos e

tratam-me como humano.


P Á G I N A 3 0

BREVE COMENTÁRIO

D E R U T E C A L A I M L A M Ú R I A

Presidente da Direção da Ser Alternativa

É com alegria e encorajamento que

testemunhamos o percurso do Sr.

João.

A missão da Ser Alternativa, como

instituição de inspiração cristã, é

contribuir para o desenvolvimento

harmonioso, físico e espiritual das

pessoas socialmente

desfavorecidas, proporcionandolhes

condições de integração na

sociedade. Se nós não existíssemos,

como seria a vida do Sr. João? Não

podemos responder a 100%, embora

tenhamos um pequeno vislumbre de

como foi, mas o seu testemunho

vem reforçar a importância da

nossa atuação.

De forma a melhorar as nossas

respostas sociais e

correspondermos à nossa missão, a

nossa atuação tem por base quatro

eixos: angariação de bens junto da

comunidade para distribuição às

famílias; mobilização de pessoas na

adesão ao voluntariado; mediação

entre a comunidade, as empresas e

as pessoas que apoiamos; e sermos

um veículo de esperança.

É nossa missão levar uma

mensagem de fé e esperança às

pessoas à nossa volta.

O sucesso da história do Sr. João é

dele primeiramente, mas é também

da equipa que o acompanha para

promover a sua autonomização e

capacitação, das pessoas e

empresas parceiras, e dos nossos

voluntários.

Sabemos que nem sempre a

mudança na vida das pessoas que

chegam até nós ocorre como

desejaríamos, mas não devemos

desanimar. Que este testemunho

nos possa encorajar a permanecer e

a melhorar a nossa atuação junto

das pessoas com quem nos

cruzamos e partilhamos tempo.


Isabel


P Á G I N A 3 1

A Isabel é a Isabel, mas é também a mãe da Inês. A Inês é uma jovem

de trinta anos, de sorriso franco e olhos curiosos, com um "jeitaço" para

desenhar e, também, para desafiar as perspetivas. A Inês travou a primeira

batalha quando nasceu. No seguimento de uma asfixia neonatal, a Inês

está privada de 85% da sua capacidade cerebral. Embora a luta seja

principalmente da Inês, é a história da Isabel e da Inês que nos inspiram.

I: Foi uma asfixia neonatal, por parto muito prolongado. Primeira filha e

única, a Inês esteve ligada a uma máquina para poder respirar, durante

quarenta e oito horas. Depois, começou a respirar sozinha, mas

permaneceu internada nos cuidados intensivos durante dez dias.

Informaram-nos que tinha enormes lesões parieto-occipitais bilaterais.

Mas após seis meses de estímulos diários com constantes exercícios de

musicoterapia (orientados pela neuropsiquiatra Dra. Jacqueline Verdeau-

Paillés) e de fisioterapia (propostos pelo Centro de Reabilitação de

Paralisia Cerebral do Porto) surgiu a primeira reação da Inês. Ser

professora e poder persistir permitiu a sua crucial evolução.

Quando pedimos a sua interdição, a Inês tinha dezassete anos; na altura

teve de realizar vários exames médicos. Quer no da TAC, quer no do

eletroencefalograma, as técnicas ficaram surpreendidas com a autonomia

física da Inês.


P Á G I N A 3 3

/ UM LUGAR À MESA / SET 2022 • Nº 4 / ENTREVISTA À ISABEL

KAD: Que tipos de apoio é que existem para os pais ou adultos de

referência de pessoas com este género de condições?

I: A Inês tem trinta anos. Durante os seus primeiros vinte e oito anos de

vida, o apoio foi zero. Era o socialmente correto, em função do IRS. Em

outubro de 2017, o Governo determinou que as pessoas maiores com dada

percentagem de incapacidade, passariam a receber uma prestação

mensal. Nós, os pais, vamos acabar por desaparecer, não é? Como vai ser a

vida da Inês?

KAD: Como é que a APPACDM do Porto ingressa a vida da sua família?

I: A Inês fez um percurso semelhante ao que fazem estes miúdos.

Frequentou o ensino pré-escolar, seguidamente integrou uma escola

primária pública (acompanhando o grupo durante quatro anos) e, depois,

um externato de ensino especial, onde esteve alguns anos. Quando esse

externato fechou passou para outro externato. No início, funcionou muito

bem, apenas com sete alunos. Mas, depois, começaram a surgir

problemas relacionais relativamente fortes, porque foram integrados

muitos alunos numa só sala. Nessa altura, decidimos que a Inês devia ficar

com uma babysitter.

Sempre que ia dar aulas, deixava a Inês em casa de uma amiga que a

acolhia. Era uma pessoa extraordinária, levava a Inês a museus e

preocupava-se com a sua integração social, mas era apenas uma pessoa a

interagir diretamente com a Inês e acabou por passados dois anos,

abandonar o projeto. Estávamos em 2021. Nessa altura, a APPACDM

aceitou a Inês. A resposta social da APPACDM que a Inês frequenta, o

CACI - Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão, tem idade

mínima para ingressar, dezoito anos e não tem idade para sair. Saliento

que a nível nacional há pouquíssima oferta de instituições para a procura.

KAD: Isabel, que impacto é que a APPACDM do Porto tem no dia-a-dia da

sua família?

I: Foi uma mudança radical. Eu não trabalho à terça-feira. Portanto,

mesmo quando a Inês estava com a babysitter, eu ficava com ela à terçafeira.

Ora, na primeira terça-feira em que a Inês foi para a APPACDM, eu

liguei a cada um dos meus irmãos e perguntei-lhes: “O que é que eu

faço?!”. Foi a primeira vez, em vinte e nove anos, que eu tinha tempo para

mim. Só para mim. Era algo que eu não sabia fazer.


P Á G I N A 3 4

KAD: E o que é que acabou por fazer?

I: Fui dar uma volta! Fui andar a pé, só porque sim. Andei a passear, a ver

ruas que eu já não via há quase trinta anos, ver o mar.

KAD: E como foi a mudança para a Inês?

I: A Inês esteve sempre em evolução, mesmo antes de entrar para a

associação. Eu entendo que tudo é passível de ser trabalhado: com maior

ou menor tempo as coisas podem ser aprendidas e assimiladas. Agora,

essa evolução dá-se de uma forma diferente. Além de interagir com toda

a equipa da APPACDM que trabalha diretamente com ela e que lhe

desenvolve uma série de competências com estratégias ocupacionais

bem definidas, ela está numa sala de trabalho. Dou-lhe um exemplo: a

Inês tem pouca memória de curto prazo e, dantes, era incapaz de dizer o

que tinha almoçado. Agora, é capaz de o fazer. Passou só um ano! Só

neste espaço de tempo, a Inês já passou a conseguir contar-me as coisas

que se passam lá, durante o dia. Aí está, outra dimensão maravilhosa da

APPACDM: se o objetivo for levar a Inês a movimentar-se, eles promovemlhe

um sentido de autonomia, de formas criativas. Eles dizem-lhe para ela

ir levar, por exemplo, os menus ao rés do chão. E ela, depois, conta-me:

“Fui sozinha!”. A Inês faz, ainda, uns desenhos espetaculares e

aproveitaram isso para fazer, por exemplo, sacos de pano que, depois, são

vendidos na loja social da associação. Outra coisa muito engraçada que

aconteceu neste último ano: a Inês ganhou um vício, veja bem! Um pingo

de descafeinado. Ela leva trinta cêntimos para ir à máquina e beber o seu

pingo social.

KAD: Então, do contexto de interação com apenas uma pessoa – a

babysitter –, a Inês passa a ter um vício social!

I: Exatamente. Mesmo que a babysitter tomasse café, a Inês nunca o fez.

Na APPACDM, percebeu que os seus pares tomavam café e, por isso, quis

também experimentar. Além disso, na APPACDM, a Inês tem a

oportunidade de se preocupar com os outros e de realmente os querer

ajudar, sentindo-se útil. Em qualquer uma das outras escolas, depois


© Fotografias gentilmente cedidas pela Isabel, para a presente publicação.

das férias, o recomeço era um sarilho. Este ano, logo no início de

agosto, ela dizia-me: “Não pode ser! Já chega de férias. Eu quero ir para a

escola. Eu tenho saudades.” A mudança foi incrível. Foi a primeira vez que

disse que queria ir. E a verdade é que continua a querer ir todos os dias.

KAD: Isabel, consegue descrever-nos numa ideia-chave a importância da

APPACDM, não apenas nas vossas vidas, mas na sociedade?

I: A inclusão. Trata-se de desenvolver as capacidades destes cidadãos. A

equipa da APPACDM está “à escuta do utente”: traçam um plano para

cada utente e enviam aos pais ou adultos de referência, para nos

perguntarem: “Está de acordo com este plano? Quer acrescentar alguma

coisa?”. Há uma adaptação às necessidades de cada pessoa, com vista a

desenvolver as suas competências. Trata-se da valorização pessoal, social

e emocional de toda e cada uma destas pessoas.


P Á G I N A 3 6

BREVE COMENTÁRIO

D E T E R E S A G U I M A R Ã E S

Presidente da Direção da APPACDM do Porto

Há 3 anos, festejámos os 50 anos da

APPACDM do Porto e a divisa do

nosso aniversário foi “50 anos a

transformar vidas!”. É isso mesmo

que acontece: trabalhamos

diariamente para transformar as

vidas das pessoas que apoiamos e

das suas famílias. Fico muito feliz

por ver acontecer essa

transformação na vida da Inês e da

sua mãe Isabel.

A APPACDM do Porto tem como

missão apoiar e capacitar pessoas

com deficiência intelectual ou

incapacidade para que conquistem

uma melhor qualidade de vida.

Pautados por esta missão, todos os

dias 180 colaboradores dedicam-se

empenhadamente para encontrar a

resposta à medida certa de cada

um, seja prestando o serviço dentro

ou fora da instituição. Se para uns o

apoio necessário passa por

frequentar um dos nossos 4 Centros

de Atividades e Capacitação para a

Inclusão (CACI), como é o caso aqui

testemunhado da Inês, ou viver num

dos nossos 4 lares residenciais, para

outros o apoio requerido será no

seu contexto, seja através da

assistência

pessoal disponibilizada pelo nosso

CAVI (Centro de Apoio à Vida

Independente) ou pela reabilitação

social do CAARPD (Centro de

Atendimento, Acompanhamento e

Reabilitação Social para Pessoas

com Deficiência ou Incapacidade).

Somando a estas respostas a

Intervenção Precoce disponibilizada

para crianças dos 0 aos 6 anos,

atualmente a APPACDM do Porto

apoia quase 500 pessoas e suas

famílias.

Quando entrei para este mundo da

APPACDM do Porto, testemunhei o

carinho e dedicação com que todos

os colaboradores recebem

diariamente as pessoas que lhes são

confiadas. E, atrevo-me a

acrescentar para sempre, pois a

maioria trabalha na APPACDM do

Porto há mais de 20 anos. Uma

experiência que depois de se

conhecer não se quer sair -

exatamente por isso: por sabermos

que estamos a fazer a diferença na

vida de tantas pessoas e porque

recebemos muito mais do que o que

damos.



SE ESTÁ ENVOLVIDO NO

SETOR SOCIAL

E Q U E R C O L A B O R A R C O M A R E V I S T A

U M L U G A R À M E S A , E S C R E V A - N O S P A R A :

H E L L O @ F M A N U E L V I O L A N T E . P T


/ U M L U G A R À M E S A / S E T 2 0 2 2 • N º 4

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