Tattoo (イレズミ), de Lua Bueno Cyríaco AMOSTRA
light novel escrita e ilustrada por Lua Bueno Cyríaco
light novel escrita e ilustrada por Lua Bueno Cyríaco
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Tattoo
Sobre este livro
Assim como boa parte dos adolescentes que cresceram nos
anos 90 e início dos 2000, fui bem alimentada com o que surgiu
numa onda que logo tomou conta do Brasil: animes, mangás,
games e cultura pop japonesa. Aquele mundo apresentado era
novo e incrível, em várias coisas muito diferente do nosso, e por
um tempo foi um tanto quanto cringe (embora não se usasse esse
termo na época) curtir esse tipo de coisa. Hoje é moda e tá tudo
bem, basicamente toda criança e adolescente conhece animação e
quadrinho japonês.
No entanto, embora seja uma abertura muito estimulante da
cultura japonesa, o que a gente recebe nem sempre corresponde
com a parte mais, digamos, grossa, o que é mesmo vivido lá. Na
verdade, até é, mas as críticas ou observações sobre alguns aspectos
mais duros passam batidos pela gente, pois realmente não temos
ideia de como é o dia a dia das pessoas de um país antigo e tão
distante (física e culturalmente) do nosso. Porém não reclamo. Foi
através dessa aberturinha que comecei a me interessar, tentando
ver e entender mais adiante.
A cultura japonesa fora dos produtos pop é também fascinante,
assim como a nossa, cheia de belezas e contradições. Aaah,
as maravilhas do mundo contemporâneo, né? Em partes, o capitalismo
e a globalização realmente aproximaram todos nós em gostos
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e sofrimentos. Mas, claro, cada um com sua idiossincrasia, que é o
que dá cor, volume e sabor a tudo!
E foi pensando nisso que este livro nasceu. Como brasileiros,
tentamos pensar o que seria receber e perceber uma cultura,
quando inserida nela, e uma coisa que nem sempre vemos nos
mangás, mas comumente vemos nos livros é como a cultura te
envolve com seus altos e baixos.
A ficção aqui mostra, é claro, uma história com personagens
não reais, mas também mescla com alguns acontecimentos e fatos
LUA BUENO E TERESA HELSEN
verídicos. Não cabe a mim defini-los, no entanto. Espero apenas
que se divirtam e que, se você não conhece a cultura japonesa,
possa conhecer algumas coisas, mas sempre mantendo em mente
que essa é apenas uma partezinha, e sob apenas uma perspectiva,
a que eu escolhi. Existem, claro, milhares de outras.
Um outro ponto interessante de se mencionar é a escolha
editorial para a formatação do texto e a diagramação que tomam
uma grande liberdade, típica do que se conhece por Light novels. No
Japão dos anos 90, esse formato de publicação surgiu e rapidamente
ganhou os jovens leitores em especial por apresentar características
como: linguagem coloquial, centro da trama no personagem e utilização
de recursos gráficos (como ilustrações, páginas de mangá
ou formatações gráficas “diferentes”).
O legal da Light novel é que não existe um padrão e cada
editora (ou autor) pode definir como trabalhar, sugerindo assim
uma experiência narrativa em seus próprios moldes. Então, embora
possa causar alguma estranheza, também esperamos que possamos
aproximar a linguagem literária e do quadrinho ao máximo, de
maneira interessante para os leitores.
O Tabuleiro
Como cria dessa geração muito estimulada por cultura
pop de todos os cantos do mundo, posso dizer tranquilamente
que viemos de uma sopa com os seguintes ingredientes: j-pop,
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animes, mangás, sitcoms, R&B, boys e girls bands, Tarantino
e John Woo, uma grande rebarba de anos 80 nas formas mais
absurdas e brilhantes, um quezinho de estéticas espaciais, videogames
de lutinha com personagens extravagantes e, claro, muito
cinema hollywoodiano.
Foi com esses ares que Teresa Helsen criou Scrupulo. Uma
história que poderia ser uma série de TV, novela ou algo parecido.
No entanto, diferentemente do que consumíamos — apesar de toda
a “globalidade”—, dificilmente nos víamos participando dessas histórias.
Então, não por acaso, ela escolheu colocar uma personagem
brasileira no centro nesse universo completamente estranho à nossa
vivência real, mas que faz parte de todo o nosso imaginário.
Claudia Cazarotto — a personagem — então começou uma
ideia que a autora iria estender para outras histórias. Ao criar,
junto às amigas e companheiras de jornada, uma organização de
ajuda mútua entre mulheres (não somente, mas principalmente)
conhecida como “Tabuleiro”, ela desdobrou várias possibilidades
de narrativas.
Agora, unidas em um objetivo de “trocarem serviços e/ou
favores”, essas mulheres vão viver e contar suas histórias que estão
de alguma forma interligadas por essas tramas que envolvem o
mundo feminino no espaço e tempo diferentes.
Na série Tabuleiro, vamos conhecer várias histórias de diversas
personagens diferentes que pertencem a um mesmo mundo
e precisam lidar com as dores e delícias de serem o que são; pessoas
muitas vezes relegadas a cidadãos de segunda classe envoltas
em uma disputa por sua autonomia e lugar ao sol, em maior ou
menor escala.
Claro, tudo sempre regado a generosas doses de cultura pop.
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EU NÃO SEI O QUE VOCÊS FIZERAM NO VERÃO PASSADO...
POSTADO EM 30 DE AGOSTO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Eu sei o que eu fiz e adianto que boa parte não pode ser dita,
pois me implicariam legalmente. Sabem como é. Eu sei de
vocês, mas vocês não sabem de mim: é assim que funciona.
Mas qual não foi a surpresa ao voltar ao império da perda de tempo
e saber que uma das alunas famosas não havia retornado.
A-chan 1 é aluna da turma 3C do prestigioso Colégio Q, conhecida
por sua pele amorenada — como a do pessoal de Okinawa — e descendência
latina. Na verdade não há muitas opiniões sobre ela;
sabe-se que é uma aluna de classe média. Não sendo rica como boa
parte dos esnobes do colégio (filhos e filhas de empresários e gente
do governo), provavelmente, como parte dos outros alunos, apenas
passou na prova e teve alguém com condições para pagar. Tenho
certeza, no entanto, de que ela não faz parte da famigerada classe dos
bolsistas, pois já foi vista zanzando com um ou outro grupo de riquinhos
mais benevolentes (aqueles que adotam uns bichinhos entre
os menos abastados) e participando de seus comentários ácidos e
risadinhas direcionadas a qualquer um que seja o alvo do momento.
A ausência foi percebida como estranha depois da primeira chamada
1 No Japão, é usual que as pessoas sejam chamadas mais pelo sobrenome do que o nome
próprio, por isso muitas vezes as pessoas se apresentam como, por exemplo: Silva João.
O nome próprio é usado em ocasiões informais, ou entre amigos e parentes. Pessoas com
maior hierarquia social (chefes, professores, pessoas mais velhas) podem ocasionalmente
chamar pessoas inferiores na hierarquia pelo nome próprio ou mesmo adicionando um
tipo de pronome de tratamento após o nome ou sobrenome, como, por exemplo, Silva-san
(formal, pode ser usado por todos) ou no caso de jovens garotos João-kun. O chan, como no
caso de Maria-chan é usado para crianças, moças ou mulheres. Em alguns casos, pode-se
usar o “chan” para meninos, rapazes ou homens com intuito de ridicularizar, infantilizar ou
no caso de relacionamentos mais íntimos (ou entre pessoas descoladas), nesse caso, vai
depender muito do “tom” usado e das pessoas envolvidas.
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do dia, diante da expressão de surpresa do professor N da turma
3C. Esta turma é reconhecida como a dos alunos mais promissores
do terceiro ano do Ensino Médio e que, segundo o colégio gosta de
divulgar, ingressam nas melhores universidades — mesmo aqueles
que não fazem cursinho preparatório. No entanto, é de conhecimento
geral que, além do critério de “melhores do colégio”, também entra o
de mais ricos. Então, o que causa estranheza é que, para uma aluna
que não fede nem cheira (nem exemplar, nem rica), a ausência é bem
curiosa. Será que ela sabe que cada dia de aula perdido é um grande
crime contra a sociedade? Mas, o mais importante, será que a falta
dela consiste em apenas um episódio insosso ou se trata de algo que
vale a pena ser divulgado? Isso, senhores, é algo que eu não sei ainda.
E, quando não sei de alguma coisa, isso é muitíssimo
intrigante, não acham?
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS.
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O passado bate à porta
Eu vou começar este relato com a certeza de que, mais uma
vez, um culpado sairá impune.
Quando eu penso o quanto fantasiava sobre a retidão e honra
do povo japonês, chego a sentir aqueles rompantes sardônicos
saindo do fundo da barriga como se fossem gases. Huá, huá, huá.
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É claro que, quando se é uma adolescente afogada em uma
realidade de merda tendo como responsável uma mãe drogada e
morando num beco qualquer da M Norte (a boa e velha “Tailândia”,
como é apelidada a divisa entre Taguatinga e Ceilândia), uma das
piores quebradas de uma cidade interiorana como Brasília (que, à
parte de ser a capital do Brasil, pode facilmente ser comparada a um
condomínio imenso cheio de gente meio caipira, meio emergente),
o que se tem de notícias sobre o Japão é só rosas, ou melhor, vermelhos
crisântemos que esvoaçam de quimonos e espadas empunhadas
por honrados samurais. Infelizmente a verdade é que a
Terra do Sol Nascente e seus habitantes não vivem dentro de um
ukiyo-e. Eu deveria ter me ligado de que “mundo flutuante” deveria
significar algo além do que apenas um conceito poético. Mas eu não
sabia nada naquela época, era só uma menina ignorante. Também,
verdade seja dita, o que a gente pensa sobre o país é um monte de
conceitos antigos que, se forem analisados criticamente, tem várias
falhas. Assim como o código dos cavalheiros era uma piada que
só servia para romances ficcionais de cavalaria, o bushidô também
é uma beleza no teatro. É triste ter que lidar com a realidade, né?
Ver que, não importa o quanto uma cultura pareça evoluída e civilizada,
do lado onde não bate o sol tem muita coisa bizarra. E não
é questão de não entender o outro não, viu? É que as pessoas são
assim, aqui ou lá, em cima ou embaixo...
Enfim, os mangás me enganaram. Malditos sejam!
Eu não queria falar do passado (juro que, apesar de soar
amarga, hoje em dia sou muito mais alegre), mas é difícil não o
relacionar com o que está acontecendo agora. Não somente porque
“quando penso no futuro não esqueço meu passado”, mas porque
a situação é terrível e nauseantemente parecida.
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E porque o passado, literalmente, bateu em minha porta.
Enquanto subia a pequena ladeira que levava à minha casa,
pensando o quanto eu teria que correr com a janta, percebi aquele
carro de luxo estacionado em frente ao meu portão. Quando me
aproximei, o motorista abriu a porta traseira e, dela, vi sair aquelas
pernas longas que só poderiam pertencer à única mulher que
conheci com aquela estatura.
Os saltos tocaram o chão quase sem barulho, e a figura esguia
emergiu e se dirigiu a mim. Apesar do porte imponente, ela não se
aproximou muito. Não tinha mais essa intimidade.
— Você continua cheia de energia — sorriu ela educadamente
enquanto me olhava carregar sacolas de compras montada
no meu melhor moletom e shorts de corrida. Eu não me senti
impelida a ignorá-la, mas não consegui sorrir de volta. Não nos
falávamos há tantos anos... Eu deveria deixar de ser turrona.
Abri o portão calada e rosnei um convite para que Olivia
Yayoi Fujiwara me seguisse, o que ela fez também em silêncio
embora mantivesse aquela irritante expressão simpática protocolar.
Olivia era sempre muito comedida em demonstrações, então,
quando não estávamos entre os mais íntimos, ela era quase inexpressiva,
mas dessa vez, mesmo antes de entrarmos em casa à segurança
de qualquer olhar, ela deu uma boa olhada na fachada de
nossa casa e sorriu satisfeita ao reparar os brinquedos no pequeno
jardim da frente.
— As crianças estão em casa? — perguntou alegremente.
Eu franzi o cenho, estranhando. Como ela sabia que eram mais de
uma? Mas, ao perceber o olhar dela no cabideiro da porta, entendi:
lá estavam o casaco rosa cheio de flores de cerejeira e uma capa de
chuva de robozinhos.
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— Ainda não... — tirei alguns brinquedos do sofá e indiquei
que se sentasse — hoje chegam depois das seis.
— Entendo... sei que não é uma boa hora, peço sinceras desculpas
— ela se curvou com educação, e seu tom e gesto me fizeram
lembrar imediatamente da época da escola, quando ela segurava os
rojões do comportamento deplorável da colega aqui, uma péssima
influência que certamente a levaria para um péssimo caminho. Rá!
Sequer imaginavam quem levava quem... Não resisti, virei para ela
com uma expressão de deboche que, confesso, uso com frequência
maior do que o desejável e disse:
— Eu já não bebo tanto assim, foi mal — e entortei a boca.
Ela sorriu sem mostrar os dentes. É claro que se lembrou que,
depois de pedir sinceras desculpas, ela era a primeira a virar e
dizer: “Hoje vamos beber até esquecer que esses idiotas existem”.
Me virei rapidamente para ir até a cozinha, ia largar os pacotes de
qualquer jeito, mas lembrei que tinha umas coisas pra geladeira.
Reclamei comigo mesma como sempre faço e gritei de lá que já
voltava. Não tinha nada pronto, mas achei umas caixinhas de suco
das crianças, peguei duas e levei — Nakasato mudou de horário,
desculpa — expliquei, esquecendo que ela não fazia ideia do que
isso significava. — Er, tô sem nada pra servir, mas... são bons esses
suquinhos — peguei um e furei com o canudinho — são os mais
saudáveis que tem, pelo menos — comecei a sugar enquanto ainda
a encarava, com aquela pose de madame.
Ficamos em silêncio por uns segundos; é claro que ela não
esperava tomar um suquinho de caixinha assim como não esperava
uma recepção efusiva. De qualquer forma, eu tinha um talento
especial de deixar todo mundo meio confuso, incluindo a mim
algumas vezes.
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Ela se levantou de repente com um barulho de admiração e
foi até uma das paredes onde, em cima do aparador, estavam alguns
quadros com trabalhos fotográficos.
— Estes vejo que são seus... mas esses... são dele? — apontou
ela acertadamente para quais eram os de minha autoria e os
de Nakasato.
— Você tem um bom olho! — me admirei.
— Admiro suas obras — sorriu — adorei a exibição na galeria
M ano passado, não consegui resistir a alguns.
— Ah, você...? Eu não sabia que tinha trabalhos meus, nunca
vi seu nome entre os compradores... — fiquei realmente surpresa
por tudo.
— Sim, costumo adquirir anonimamente — sorriu e voltou
sua atenção para os trabalhos dele — estão muito bons, não acha?
Estou admirada...
— Ah, estão maravilhosas, né?... Ano passado ele fez um trabalho
incrível, chegou a ganhar um prêmio com as fotos que fez para a
cobertura de uma matéria como correspondente internacional da...
— não pude responder com a humildade necessária nessas ocasiões,
eu tinha muito orgulho do trabalho dele, seria inútil esconder, mas
acabei me tocando de que não cabia bem falar tanto assim.
— E uma menção honrosa nas Nações Unidas, sei bem...
muito merecida! Eu fiquei muito tocada com o relatório sobre o
povo dele — disse ela, balançando a cabeça, satisfeita. Eu estava
surpresa, e fiquei sem graça de perceber que ela, mesmo à distância,
acompanhava a gente de alguma forma a ponto de saber até
mesmo nossas recentes conquistas. Mas, antes de eu pensar em algo
para falar, ela tinha um dos porta-retratos que ficavam em cima do
aparador nas mãos e se virou para mim animada:
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— Ah, eles são lindos. Como se chamam?
— Ah, Lana e Kei — sorri. Por um momento estranhei que
ela não os conhecesse, mas é claro, foi um lapso. Paramos de nos
falar desde antes do nascimento da mais velha.
— Lana? Foi ele que escolheu o nome, né? — riu e eu acompanhei.
— Só podia, né, Satsuki? — ri alto. Ele tinha uma queda na
Alanis Morissette que só a gente sabia, pois seria vergonha demais
pra um punk do naipe dele assumir. Por isso ele escolheu algo que
lembrasse, mas não fosse literalmente o nome dela.
— Ah... não me chamam assim há tanto tempo... — falou
quase como que para si mesma. Ficamos de repente um pouco sem
graça, mas ela continuou, recuperando o clima e se aproximando
de mim enquanto olhava a foto — Olha essas ondas nos cabelos...
iguais aos seus, ela é sua cara — rimos concordando. — Já ele...
— Sim! E, sim, a carinha de peste corresponde à personalidade.
Gargalhamos e ela colocou a foto de volta no lugar, com
algum pesar. Eu acho que ela sentia por ter perdido essas coisas
todas. Bem, sei que eu senti por não ter compartilhado com ela.
Quais seriam as coisas incríveis que ela teria feito? Eu tenho certeza
de que teria histórias, apesar de seguir os protocolos e as regras da
forma como esperavam que fizesse, ela tinha uma chama latente
que sempre me deu a certeza de que não conseguiria seguir o caminho
plenamente, sem desviar mesmo que um pouco quando ninguém
estivesse vendo... Eu tinha plena convicção de que ela tinha
segredos, mas, se ela ainda for como quando nos conhecemos, ela
jamais admitiria abertamente.
— A última vez que soube, você tinha anunciado o fim de
sua carreira como modelo... li na Vogue. Aliás, linda a sessão de
fotos daquela edição!
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— Obrigada! Foi um sentimento agridoce... como sempre
— riu de forma misteriosa e nos sentamos juntas. Para minha surpresa,
ela pegou o suquinho e bebeu. — Há alguns anos venho me
dedicando a outras atividades.
Quando ela falou isso, senti que a leveza de nossa conversa
tinha acabado ali.
— Eu gostaria de ter aparecido antes — continuou a conversa
—, mas, bem... perdemos contato — apenas levantei bastante
as sobrancelhas, concordando totalmente com ela, impaciente com
a lenga-lenga, e ela continuou. — Esses dias eu me deparei com
algo muito... intrigante e... doloroso.
Ela escolhia as palavras, e eu soube imediatamente o
que viria.
Seria impossível que, quando nos encontrássemos, fosse
quando fosse, aquilo não voltasse à tona. Só me surpreendi por
ser ela a trazê-lo.
Olivia deve ter sentido meu olhar sobre ela. Não sei qual é
a cara que faço, mas sei que não é agradável. Ela respirou fundo e
continuou (devia estar empenhada; se fosse eu olhando minha cara
feia, tinha mandado à merda e seguido meu caminho. Me policiei
e tentei amenizar. Não tenho a mínima ideia se consegui):
— Lembrei da Arisu esses dias. Encontrei algumas anotações
entre minhas coisas — ela me olhou brevemente, um sorriso sem
graça no canto dos lábios — algumas poucas coisas, mas... sei que
você fez várias mais e, se você ainda é parecida com aquela época,
imagino que tenha guardado...
Virei a cabeça, confusa. O que ela queria com isso, agora?
— O que você quer com isso agora? — tirei a ênfase do
“agora”; uns minutos antes tinha decidido que não ia brigar com
ninguém hoje.
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— Isso... me deixou intrigada. Você sempre foi muito
determinada. Sei que foi mais longe do que qualquer um —
pareceu consternada.
— Você ficou... intrigada...
Minha voz, apenas um murmúrio, saiu vagarosa, como se
estivesse mastigando aquelas sílabas e entendendo o sabor que
aquelas palavras tinham. Meio amargo. Minha reação automática
foi a de esticar os lábios em um sorriso forçado, como tantos que
dei depois de adulta.
— Quem diria! Finalmente conseguiu se sentir intrigada.
Sorrindo, eu me levantei, balançando de leve a cabeça como
se tivesse ouvido uma gracinha qualquer. Em partes, eu estava
achando mesmo uma piada. De terrível mau gosto.
Tattoo
Fechei a porta, ciente de que meu péssimo hábito de negar diretamente
era uma falta de educação na maioria das situações.
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Pensando agora, eu fui uma chatona do caralho. Não precisava
tanto, ainda mais depois desse tempo todo. Nakasato tem
razão, eu não sei deixar pra lá...
***
Tentei desligar a mente e fiz a janta o mais rápido possível,
o que significa que eu escolhi um macarrão com legumes que me
tomou quase uma hora. Especialmente porque hoje eu não teria
ajuda do mais velho, que iria dormir na casa de um amiguinho
para estudar.
— Mamãe, já tá pronto?
Kei aparecia na cozinha de cinco em cinco minutos, coitado.
Apesar de eu ser boa tanto na cozinha do dia a dia quanto com
doces e coisas assim, hoje minha cabeça ia longe.
Me enrolei tanto que Nakasato chegou antes de eu terminar
e acabou levando as crianças pra tomar banho já que eu não tinha
feito isso por conta da janta.
Apesar de tudo estar fora de ordem, ele não falou nada;
porém, sentia aqueles olhinhos cerúleos brilhantes em mim de
cima a baixo. Mesmo que eu fosse do tipo que faz mistério, seria
quase inútil tentar esconder algo dele. Mas de alguma forma eu
não sabia o que dizer sobre o que aconteceu algumas horas antes.
Depois de brincar um pouco com as crianças — quero dizer ele,
pois eu só olhava e sorria vez ou outra, como se estivesse anestesiada
e apenas respondendo aos estímulos automaticamente —, Nakasato
subiu com elas e as colocou para dormir. Assim que ele fez isso, eu liguei
o computador, pois precisava checar meus e-mails; entretanto, assim
que abriu a janela do navegador, antes mesmo de pensar, lá estava eu
no antigo blog que tinha ficado escondido no tempo e espaço da web.
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SEMANA DOURADA FORA DE HORA?
POSTADO EM 4 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Bem, já que nos inteiramos sobre o que vários colegas fizeram no
verão passado (disputa acirrada pelo pior verão entre M-chan, que
é linda como uma fada e burra como uma porta e passou o verão
recuperando nota, e K-kun que passou com o pé pra cima no hospital
devido a uma fratura depois de uma das suas ideias brilhantes
que — certeza — envolviam fazer alguma merda a terceiros), sigo
para tratar do assunto que ainda me intriga: onde está A-chan?
Passou-se uma semana sem que ninguém tenha falado sobre o
motivo da ausência dela. Os menos interessados dizem que só
pode ser algo corriqueiro como algum problema de saúde. Mas
sejamos francos: quem fica uma semana doente? A não ser que
seja sério, e, se fosse sério, creio que os professores já teriam
dito e toda a turma estaria fazendo cartões ou copiando deveres
para ajudar a colega como se pede a boa educação que o faça.
Ao olhar a reação dos professores à menção do nome dela,
além de um buchicho aqui ou outro ali, posso afirmar com
plena certeza de que há algo a mais nessa história. Felizmente
não estou especulando sozinho e devo agradecer aos meus
contatos que compartilham dessa estranheza comigo.
PUBLICADO ÀS 02:15 HORAS.
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A AUSÊNCIA VELADA
POSTADO EM 7 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Já não é mais possível acreditar que A-chan esteja faltando por
um motivo banal ou caso de saúde. Recentemente o professor N
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parece que foi visitar a casa da família para ter notícias. Entretanto,
nada foi dito ainda aos alunos, e a coordenação segue em silêncio
sobre o caso, o que em parte me faz ficar ainda mais curioso.
O interessante de olhar o Ensino Médio daqui do meu
lugar é que é extremamente nítido o quanto ninguém tem
a real noção do quanto os adultos os consideram infantis.
E, pior, o quanto eles têm razão em vários aspectos.
Os pais e professores protegem os alunos do mesmo jeito que
fazem quando ainda são crianças, poupando-os de todo o choque
possível, ao mesmo tempo que exigem que tenham responsabilidades
com os estudos, pois estão prestes a definir o rumo de suas
vidas. Presos dentro dos muros da escola, não fazem ideia de como
as coisas se dão no mundo real. As picuinhas que criam para, sei lá,
dar algum sentido à vida são absurdamente ridículas. Nessa escola
(como em várias), essas pessoas não têm a mínima ideia de como a
vida pode ser difícil para quem pretende corresponder ao projeto do
sistema, e o quanto a vida é muito mais do que seguir essas regras.
Quando me perguntam, em tom de crítica, por que sou como sou, eu
sinto uma imensa alegria dentro de mim. Simplesmente sei que não
preciso responder a isso, e essa certeza parece irritar muito as pessoas.
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS.
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QUEM SABE MAIS?
POSTADO EM 8 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Sei que todos têm curiosidade de saber quem sou (Sério que
não sabem? Rá, vocês são facilmente iludidos pela aparência).
Não vou revelar, mas já não me importo se descobrirem, pois,
agora que estou pra sair do império do mundo no umbigo,
não quero mais saber quem está traindo quem, dando
ou comendo professor(es? as?), tomando, picando, chei-
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rando ou prestes a virar mafioso. Que se foda isso aí!
Minha pequena musa me fez ver que eu posso fazer
algo mais interessante com minha bisbilhotice, e
vocês também, suas criaturinhas ressentidas!
Sei que, atrás dos pseudônimos e dos anônimos, muitos de
vocês estudam no Colégio Q. Então me digam aí: qual foi
a última vez que viram ou falaram com Arisu Higa?
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS.
LINK DO POST COMENTAR VER COMENTÁRIOS (112)
QUEM É AFINAL A-CHAN?
POSTADO EM 12 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
A ausência de Arisu Higa desde o final das férias de verão de
início despertou uma leve curiosidade em seus colegas.
Diz-se leve, pois, apesar de ser vista com uma ou duas garotas da
turma, essas mesmas estudantes não pareceram tão interessadas
quanto ao sumiço da colega. Dizem as más línguas que parte delas
não está achando ruim que a exótica aluna não atraia mais olhares
e comentários. Outra parte sequer sabe quem é a moça, uma
vez que, apesar de ser conhecida na escola, não foi do tipo que
manteve grandes amizades; inclusive os relatos são de que não se
misturava com outros alunos mestiços ou mesmo estrangeiros.
“Apesar do nome, Arisu tinha cara de estrangeira. Muito menos que
alguns outros, mas ainda assim tinha e dizem que isso a incomodava
bastante. Eu já ouvi ela falando que queria ser só japonesa”, disse Fuan.
No entanto, quanto mais o tempo passava, maior era o
silêncio dos responsáveis sobre essa ausência misteriosa,
e isso aos poucos atiçou a curiosidade de alguns.
Um dos relatos é de que Arisu foi vista pela última vez na estação
de Shinjuku e, segundo uma testemunha, mesmo tendo chamado
LUA BUENO E TERESA HELSEN
pelo nome dela, a menina não atendeu: “Eu gritei ‘Arisu-chan!’,
mas ela me ignorou. Tenho certeza de que me ouviu, mas fingiu
que não. Sei que ouviu, porque andou até mais depressa!”
Esse relato é corroborado por Myumyu: “Eu tenho certeza de
que vi ela descendo aquela rua, do lado de baixo de Kabukichô,
do lado que fica aquele fliperama grande. E posso dizer que, pela
roupa, ela não tava indo só pra um passeio, se é que me entende”.
Há quem diga que ela foi vista com um salaryman 2 com idade o suficiente
pra ser pai dela, entretanto são apenas especulações, uma
vez que todas as testemunhas estão escondidas pelo anonimato da
rede. Eu procurei analisar os comentários e recolhi os plausíveis, e
realmente há certa consistência que nos permite inferir que Arisu
tinha algum tipo de vida secreta: “eu nunca contei isso, mas agora vou
falar. Ela sequer tinha meias que prestassem! No primeiro ano na
escola, Arisu comprou meias em uma loja qualquer e bordou a logo da
grife preferida dos alunos de elite. Recentemente, ela estava usando
bolsas Louis Vuitton. Pra uma garota que não tinha grana pra comprar
uma meia, comprar uma bolsa daquelas... e não era imitação!”.
Bem, parece que Arisu, além de criticar coleguinhas “saidinhas”,
também dava suas escapadelas quando ninguém
olhava. Nada de novo sob o sol até aqui, e ainda assim
nada explica seu sumiço, embora muito se insinue...
PUBLICADO ÀS 05:21 HORAS.
LINK DO POST COMENTAR VER COMENTÁRIOS (87)
2 Sararîman (サラリーマン “homem assalariado”). É o termo wasei eigo (ou seja, uma palavra
inglesa criada pelos japoneses, aos moldes de seu idioma) pelo qual os trabalhadores
designam os executivos de baixo escalão numa empresa no Japão. Refere-se a uma pessoa
cujo rendimento é o salário-base, particularmente aquelas que trabalham na ordem de
corporações. No uso moderno, o termo carrega conotações a profissionais que executam
longas horas de trabalho, ao baixo prestígio na hierarquia corporativa, à ausência de significativas
fontes de rendimento para além do salário e ao karôshi ( 過 労 死 “morte por excesso
de trabalho”). O termo salaryman refere-se exclusivamente aos homens.
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Por que esse assunto agora?
—Caceta, achei que tinha apagado isso há séculos!
Pulei de susto ao ouvir a voz grave de Nakasato às minhas
costas, e ele riu da minha reação. Mas logo estreitou seus olhinhos
de gato e apertou sua boca daquele jeito engraçado que o deixava
com feições ainda mais felinas. Ou seriam raposinas?
— Já esqueceu? Você tirou do ar, mas ainda deixou guardado
de forma que só o autor poderia ler...
— Humm... é, isso foi na minha vida passada de nerd do HTML
— acima da minha cabeça, ele passou os olhos por aquelas palavras que
conhecia tão bem, soltou um sibilo — nossa, a gente fala muita merda
quando é jovem, hein? Geeez... e o que aquela vírgula está fazendo ali?...
Interrompi seu pensamento alto ao me levantar, saindo assim
de baixo dele. Fui até a cozinha pegar uma água. Quando voltei, ele
estava sentado na frente do computador tomando meu lugar.
— Quem você encontrou hoje?
Ele disparou de repente, e eu quase me engasguei.
Olhei pra ele meio surpresa, mas virei os olhos logo
em seguida.
— Ai, como você é irritante... —
Todas as minhas ações eram óbvias
pra ele, mas provoquei — se já sabe
a resposta, por que pergunta?
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
Ele virou a cabeça numa expressão desconfiada e um sorrisinho
no canto da boca.
— Pode ser qualquer um, só sei que tem a ver com... — olhou
bem para mim e, de repente, seus olhos se arregalaram — Não! Ela?
Achei que ela tava fora do país.
Bufei. Nakasato se aproximou e sentou-se ao meu lado no
sofá, chegando bem perto, curioso.
— Eu sinceramente não sei o que ela queria... — confessei
diante do olhar insistente.
Tattoo
Dei de ombros, nunca fui boa com palavras. Não sabia explicar
pra ele o que era, mas sabíamos que alguma coisa dentro de
mim intuía o que viria.
Fomos dormir e pensei naquela história da princesa que tem
uma ervilha na cama e não a deixa dormir, sabe qual é? Tinha
alguma ervilha, só que era na minha cabeça. Ha, ha, não era meu
cérebro, acho que ele é maior que isso. Enfim, dormi mal, com
alguma coisa me incomodando.
Acordei com os lençóis e travesseiros todos bagunçados, pelo
visto me agitei muito naquela noite, devo ter sonhado, mas não
conseguia lembrar de nada.
***
No dia seguinte da visita de minha amiga. Ex-amiga? Hum... que
seja! Levantei cedo e segui a nova rotina; arrumei Lana, Kei, marmitas,
e corre com todo mundo pra escola. “Anda, menino”, “deixa isso, não
pode levar pra escola”, “desce daí e entra no carro”, “não coloca essa
coisa na boca que, se isso não te matar, eu te mato!” e essas coisas de
sempre. Bem, quando se tem um minibípede ligado em 220 volts ao
menos, deve ser assim pra outras mães também. Depois de todo mundo
devidamente entregue, sigo pro estúdio alugado pela gravadora.
O maldito dia in-tei-ri-nho com um negócio na cabeça enevoado,
maleável como água que ia e vinha tentando tomar forma.
Quando eu fico assim, sei que é a minibruxinha dentro da cabeça
rodando as engrenagens da intuição, trabalhando pra me fazer
entender alguma coisa maluca.
Eu estava fazendo uma pausa, bebendo água e enxugando o
suor quando de repente me toquei. Não, na verdade eu tava repassando
a conversa com Satsuki o tempo todo em minha mente. Era
me distrair um tiquinho só e voltava aquilo. O que eu tinha dito,
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
o que ela tinha dito. E foi o que ela disse que me passou batido na
hora, mas... veja se não faz sentido: “Creio que teremos muito o
que...”. Teremos. Ela não falava do passado, ao menos não inteiramente.
Então de fato tinha algo a ver com o que aconteceu. Ela
sabia que não nos contentamos com aquela notícia ridícula que
apareceu no jornal. Havia muito mais e a gente foi além sem ela. E
se ela era como vários outros colegas que seguiam o The Outsider
e... aliás, esse era um dos seus problemas com o blog, ou com a
gente. É, vai ver o problema era com a gente, porque... Argh, tá
vou dar uma pausa no ressentimento. O ponto é que ela sabia que
a gente chegou mais longe até mesmo que a polícia, mas deixou a
gente na mão. Mandou o foda-se e foi viver a vida de madame dela.
E a gente que se fodeu pra... ah, eu fico muito puta. Irritada. Triste.
Magoada. Pffft. AhrggbrRRrgGgGGrr#$*#*&!!!
Bem, mas agora era claro que o interesse dela não era exatamente
no passado, e sim no presente. E, se alguma coisa como
aquela aconteceu, decerto está em algum jornal. Foi aí que me
toquei e, na primeira oportunidade, dispensei os bailarinos e fui
correndo na banca de jornal que ficava ao lado do prédio. Comprei
todos os jornais e ainda consegui uns do dia anterior. No processo,
me atrasei pra buscar Makoto na escola.
Quando cheguei, ele estava com a carinha linda de anjo de
sempre, mas eu sabia que estava chateado pelo meu atraso.
— Você tá me odiando, eu sei!
— Um milk-shake compra todo o meu amor por hoje —
sorriu meigo e, antes de sentar, viu a quantidade de jornais no
banco, pegou e colocou no colo, estranhando. — Que isso agora,
novo trabalho? Você não é muito da colagem... Asahi, Mainichi,
Yomiuri... todos estão aqui?
— Eu estou precisando fazer uma pequena pesquisa...
— Pra escola?
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Virei com careta debochada pra ele, que riu.
— Por que, em vez de comprar todos, você não acessa o
acervo na biblioteca, então?
— Porque na biblioteca só tem os números antigos, e o que
eu preciso... — me dei conta de repente de que isso seria ideal,
afinal Satsuki se referiu a algo que está acontecendo, então talvez
estivesse em edições antigas, de talvez dias, semanas ou meses atrás
— escuta, o milk-shake compra amor e uma ajuda numa pesquisa
da mamãe fofa e querida, hein? Hum?
— Rola um bolinho também? — acrescentou ele de besteira,
pois eu sempre o alimentava com guloseimas, e, em se tratando de
Makoto, ele faria tudo isso por absolutamente nada, pois, além de ser
traça de livro, ele é o filho que qualquer um pediu aos deuses, nem sei
como foi sair daquele tornado humano. Talvez tivesse puxado a mãe,
infelizmente jamais saberei. De qualquer forma sorri concordando
e seguimos pra biblioteca, onde nos concentramos nos acervos dos
jornais, felizmente boa parte já digitalizada. Makoto sentou-se ao
computador; do lado eu dava uma checada no jornal.
— Qual a palavra-chave, mãe?
— Hummm... deixa pensar...
Como eles nunca aliviaram para mim, me obrigando a esfregar
todas aquelas notas máximas nas fuças deles, mesmo sendo conhttps://cityline.blog.co.jp/outsider
QUEM QUER SABER ONDE ELA ESTÁ?
POSTADO EM 15 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Pelos corredores, a preocupação com a aproximação dos simulados
fez com que os alunos esquecessem o sumiço de Arisu,
e parece que os professores estavam aliviados por isso.
LUA BUENO E TERESA HELSEN
siderado um marginal, resolvi que não ia pegar leve também. A
tática foi simples, importunei alguns indiretamente através de um
truque ou outro, ou fazendo um ou outro colega comentar algo
para eles, e claro, também tive a tática de “confronto direto”. De
qualquer forma, o que pude descobrir é que, da parte dos professores,
eles não tinham nenhuma informação sobre Arisu.
O que eles sabiam era o que o mundinho da escola sabia; talvez ela
desse uma de enkô 3 por aí sem que os pais ou professores soubessem.
Segundo o que consegui de alguns deles, a professora responsável
pela turma 3C foi até a casa dos pais, que preferiram não se comunicar
muito com a escola, mas pude perceber que havia algo de estranho.
Já que os professores não poderiam falar nada (afinal, ninguém
queria nenhum tipo de publicidade inadequada para o renomado
Colégio Q), resolvi que iria eu mesmo falar com os pais da
moça. Me disfarcei de gente normal, peguei minhas comparsas
e fomos até a casa de Arisu Higa, como colegas preocupados.
Como fomos logo após a aula, encontramos apenas a mãe em casa,
uma dona de casa japonesa mais típica impossível. Agradeceu
nossa preocupação, mas estava pouco disposta a falar sobre
Arisu. Felizmente, quando vestido apropriadamente, poucas
pessoas resistem a falar comigo, em especial mulheres.
Um pouco antes dela conseguir nos tirar da casa, o marido chegou.
Era ele o estrangeiro; um sujeito baixo de pele bronzeada e olhos
mais arredondados. Não consegui saber se era mistura de índio da
América do Sul ou japonês ou os dois. Uma de minhas comparsas
disse que ele era peruano, acho; ela viu isso em algum lugar. Além
disso, parecia que os pais seriam de Okinawa. De qualquer forma nos
apresentamos e engatamos uma conversa. É curioso como pessoas de
3 Enkô ( 援 交 ). Abreviação do termo “enjo kôsai” ( 援 助 交 際 = relacionamento auxiliado) é
uma prática em que garotas colegiais são pagas por homens mais velhos para acompanhá-los
em saídas ou, algumas vezes, para lhes prestarem serviços sexuais. Está intimamente ligado
à subcultura consumista kogal (anglicismo para kogyaru, uma contração de kôkôsei gyaru =
menina do Ensino Médio).
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culturas diferentes tem trejeitos que não são tão fáceis de ler, mas, de
forma geral, as pessoas se comportam de maneira bem semelhante.
Se observar bem, sentem medo, alegria, raiva e desprezo de forma
parecida, e tudo isso transparece em seus olhares ou gestos. Demorei
um pouco, mas uma coisa foi extremamente clara: os pais não estavam
em sintonia sobre o que fazer com relação ao sumiço da filha.
“Não importa o que, temos que saber o paradeiro dela. Tenho
certeza de que não fugiu” foi o que ele disse em determinado
momento, e isso ficou ecoando na minha mente pois, um pouco
antes, quando estava prestes a se livrar da gente a mãe disse: “Só
espero que ela não seja encontrada em um lugar qualquer”.
O que seria pior para esses pais? Não encontrar a filha ou encontrar
(talvez morta ou fugida) e ter a confirmação de que tinha mesmo
algum envolvimento com o submundo da sociedade de bem?
“Eu acho que a mãe está com medo de descobrir qualquer coisa, ela
sabe que algo ruim aconteceu” foi o que T, minha comparsa disse,
alegando ser essa sua intuição. Talvez não estivesse errada. Mas uma
coisa eu “intuí” aqui com meus miolos: eles já procuraram a polícia.
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS.
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É UMA FUGA OU UM SEQUESTRO?
O SUMIÇO AGORA É CASO DE POLÍCIA!
POSTADO EM 25 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
A direção da escola se recusava a falar qualquer coisa, e os professores
endossavam a postura: a moça deve ter apenas “tirado umas
férias”. Porém, depois da visita aos pais, vi que não era esse o caso;
ela tinha sumido. Seria uma fuga ou um sequestro? Estaria ela viva?
Com a certeza de que o caso era de polícia, restaria descobrir
qual seria a alegação e como o trabalho estava sendo
feito, pois, até então, nada havia sido sequer comentado
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
nos jornais. Não tenho dúvida de que isso se deve à influência
do Colégio Q, que pode ter abafado o caso ao máximo.
Não teríamos resposta da família, nem do colégio, nem da
imprensa. Só restava a polícia. Olhando a região, vimos que existia
uma unidade policial próxima à casa de Arisu. Seria nossa primeira
opção óbvia; decerto os pais teriam ido à mais próxima.
Desde o dia 16 comecei a passar em frente à unidade, vestido
como um bom estudante normal, acompanhado de minhas
comparsas, todos de uniformes alinhados e aparência impecável.
Cumprimentávamos os policiais, paramos próximos para
lanchar vez ou outra, ou andar na quadra de skate próxima.
Conversávamos, dávamos frutas e dividíamos chá com alguns.
Conversa vai, conversa vem: “Que uniforme bonito vocês usam!
Parece importante”, comentaram eles certa vez. Ficaram interessados
na gente, claro, era a ideia. Eles perguntavam coisas do colégio,
e a gente respondia e respondia, dando e dando corda. Chegamos
a sentar uma tarde depois do colégio para tomar um café brasileiro
que uma comparsa estava levando para o tio da polícia com quem fez
amizade (quando quer, a cara marrenta dá lugar a uma simpatia alegre
que costuma caracterizar os conterrâneos), e qual não foi a “surpresa”
quando um inspetor se sentou com a gente e papeamos a taaaaaarde
toda até ficar tão tarde que o sr. Inspetor B nos levou para casa.
É mais do que óbvio que nos fizemos de idiotas e respondemos a
várias perguntas, afinal, era muito conveniente para eles que dois
ou três alunos do Colégio Q conversassem espontaneamente
com eles, sem nenhum adulto para os impedir. Só que, enquanto
falávamos, também escutávamos, e não tenho nenhuma ressalva
de dizer que, enquanto minha comparsa os distraía vez ou outra,
eu acessava um ou outro documento, via uma ou outra coisa
nos computadores sempre que tinha oportunidade de uma “ida
ao banheiro” ou diante de uma pequena distração dos tios.
Como eu não podia contar com nada além de partes de
documentos ou informações, por melhor que fosse minha
Tattoo
memória, eu teria que completar as lacunas com teorias
ou lógica (dentro do possível com as informações).
A única coisa que posso afirmar é que os policiais não tinham total
certeza de que ela não tinha fugido, pois consta no depoimento dos
pais que, quando tentaram entrar em contato com a menina através
do celular, ela respondeu dias depois com uma mensagem dizendo:
“Não aguento mais essa vida. Vou buscar um retiro onde possa lavar
minha alma. Não me procurem, adeus”. Também não havia indícios
de sequestro. A opção que restava não era nada animadora.
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS.
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A VIDA SECRETA DE UMA ESTUDANTE
POSTADO EM 29 DE SETEMBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Devo começar essa postagem agradecendo ao universo, que fez com
que as pessoas certas se encontrassem no momento certo. Posso
afirmar que sinto que estou indo em uma direção boa por causa
da influência de minha Terpsícore tupiniquim. E isso me faz pensar
exatamente no oposto... enquanto algo maravilhoso acontecia na
minha vida (pra variar), o que teria acontecido de sinistro com Arisu?
Ela estudava no mesmo colégio, passávamos pelos mesmos
portões, víamos os mesmos professores, jogávamos nas mesmas
quadras, somos mestiços. Não fossem algumas diferenças
de personalidade, talvez pudéssemos ser amigos... Tínhamos
tanto em comum. O que foi que aconteceu de diferente?
E foi isso que nos fez pensar, depois de tanto discutir
as descobertas e as possíveis teorias.
Nós tínhamos várias coisas em comum, porém talvez o que nos
diferenciasse fosse exatamente o que não sabíamos um do outro.
Passei toda a minha vida sendo marginalizado pelos mais variados
motivos: descendência, origem, classe social, capacidade,
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
várias coisas que eram características, mas que não me definiam.
Eu aprendi desde muito cedo a me defender, usando o defeito
dos outros (e a ideia e a imagem que tinham de mim) a meu favor.
Fui desonesto, cínico, violento, egoísta, cruel. Mas essas também
eram características, e eu não deveria deixar que me definissem.
Especialmente porque isso veio por causa de outros
que nem sequer acreditavam ou se importavam comigo.
É por isso que eu sei que muitos fazem o que eu fiz. Por isso
sei que Arisu não é quem todos pensavam que fosse.
Enquanto os nossos tutores pensam que a vida de um
jovem se resume a ir para a escola e se preparar para ter
uma profissão e ser um adulto, a verdade é que parte da
gente já está aprendendo a ser adulto de outro jeito.
À parte a maioria de alunos que seguem o script de mangás gakuen 4 ,
existem aqueles que, ou são desajustados por completo e ninguém
tem muita esperança, ou são come-quieto e aprontam sem que a
maioria saiba. Tenho contatos em todos esses grupos. Mas vou me
concentrar nos que os perfeitinhos (ou ingênuos) não conhecem.
A vida de um adolescente é estudar bastante e, sempre que possível,
cair na farra. E é aqui que a coisa difere. Farra pra maioria
é se vestir de um jeito extravagante e ir passear ou dançar seus
para para 5 em Harajuku, fazer umas compras, dormir na casa
dos colegas e ver filme ou jogar videogame até tarde da noite.
Pra outros, é ir curtir a noite em karaokês, bares e clubes de
dança, fumar e beber assim como adultos costumam fazer.
E é no segundo grupo que a coisa esquenta.
Uma coisa em comum nos relatos que muitos de vocês deixaram aqui
era o local em Shinjuku onde ela foi vista. Pegamos essas dicas de vocês
4 Gakuen ( 学 園 ). Um subgênero de mangás; em tradução livre, “escola”.
5 Para para (パラパラ), é uma dança que se originou em boates, clubes e festas japonesas.
O principal gênero musical que acompanha as coreografias é o eurobeat, além de músicas
pop, trance, techno etc., popularizado pelos jovens que muitas vezes se encontravam em
Harajuku e dançavam lá mesmo.
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Tattoo
(valeu, galera!) e fomos lá dar uma olhada. Conversamos daqui e dali, e
qual não foi nossa surpresa? Descobrimos uma ou outra pessoa de lá
que já tinha visto Arisu, e confirmaram que ela ia aos karaokês com uns
velhotes de terno. Então nossas suspeitas estavam confirmadas, né?
Melhor que isso só se encontrássemos algum dos “namorados” dela.
As opções então se estreitaram. Depois de um tempo se aproveitando
dos velhos, teria ela se cansado ou sentido vergonha?
O retiro mencionado na mensagem de celular seria
um retiro de fato ou um eufemismo pra algo pior?
Independentemente do que tenha acontecido, tudo tem a ver com uma
coisa: Arisu não estava satisfeita. E isso me faz ficar com pena. Talvez
se ela tivesse esperado mais um pouco, poderia encontrar seu lugar, ou
alguém que visse além do que ela deixava que vissem. Pois comigo foi
assim: depois que parei de vestir uma armadura, tive a oportunidade
de ser quem eu sou, sem necessidade de me provar ou me defender.
Às vezes, amigos, é só preciso deixar o tempo passar
pra encontrar as pessoas e as motivações certas.
PUBLICADO ÀS 20:00 HORAS
. LINK DO POST COMENTAR VER COMENTÁRIOS (82)
O elegante cartão
Depois do destaque graças aos trabalhos com uns relatórios
para um escritório ligado aos direitos humanos da ONU, Nakasato
tinha recebido uma proposta como correspondente internacional
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
de um jornal estrangeiro, com o que ele ficou muito satisfeito, pois
andava chateado com o trabalho no jornal japonês. No entanto,
como nada estava firmado ainda, ele estava no momento com dois
empregos, basicamente.
Já eu, desde que Kei havia nascido, fiquei na fase “ateliê”. Foi
assim com a Lana também. Eu produzia muito quando grávida e
em período pós-parto. Até um ano e pouquinho deles eu ficava
assim. Sabe como é, né? Você fica imensa e não pode mais descer
na boquinha da garrafa pelo menos até a criança sair e você se
recuperar e não vazar como uma vaca leiteira a qualquer impacto
maior... Ah, desculpe, detalhes demais. Mas depois eu voltava à
ativa onde mais gostava: a dança. E, nesse momento, tinha voltado
à cena fazia apenas três anos. Parece muito, mas não. É como voltar
quase do zero pela segunda vez. Recuperar contatos, alunos,
contratos, trabalhos, apresentações... Enfim, o ponto é que estava
me reestabelecendo, já estava fixa em uma companhia de dança e
começando a trabalhar com algumas produtoras de televisão e gravadoras.
A tendência atual por aqui é começar a investir em coreografias
mais elaboradas, aos poucos se aproximando um pouco
mais do trabalho realizado pela indústria internacional ocidental,
especialmente norte-americana. Mmm, tá, mas ninguém quer saber
disso, desculpe. Comigo assim e Nakasato mais ocupado que o
habitual, sobrava para meus pais. Mas por escolha da minha mãe,
que preferia que eu levasse as crianças pra ficar com ela do que
deixar com babá ou na escola.
Acho que vale eu falar uma coisa sobre minha família, pois
você deve estar achando um pouco estranho, né? Eu nasci no Brasil,
e lá é comum que pessoas com várias descendências diferentes se
casem e tenham filhos, certo? No caso, meu pai era de descendência
libanesa e italiana, algo assim, bem antigo, né? Nem sei dizer. Mas ele
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Tattoo
morreu cedo, quando eu ainda era criancinha. Minha mãe também
era misturada, como é comum, mas era neta de japoneses por parte
de pai, o que fazia dela uma sansei 6 , assim como minha tia, que me
adotou e me fez vir pro Japão. Ah, me adiantei, vamos voltar. Minha
mãe era uma pessoa complicada. Quando as pessoas não conhecem
a história toda, é comum comentarem que “quando você tiver filhos,
vai entender sua mãe”, mas não é bem o meu caso. Acho que, depois
de tê-los, entendi minha mãe menos ainda. Mas fazer o quê? Ela era
uma pessoa diferente. A morte do meu pai deve ter afetado ela, ou
talvez ela fosse assim mesmo, sei lá. O ponto é que eu era criada ao
deus-dará, como dizemos lá. Passava temporadas nas casas de um ou
outro avô ou avó, pois ela passava períodos indo e voltando da reabilitação
que seu pai a forçava fazer. Acredito que, por ser forçada, ela
nunca ficou mesmo boa. Enfim, eu não fazia mesmo questão de ficar
por perto, e talvez a proximidade com as drogas tão frequente me
tenha deixado careta, segundo Nakasato (o que é injusto, eu experimentei
um monte de coisas com ele, eventualmente, quando éramos
jovens). Um dia, recebi uma ligação dessa minha tia, que havia se
mudado para o Japão para trabalhar fazia vários anos, eu tinha mais
convivência com ela quando criança, mas lembrava dela pois sempre
mandava presentinhos pros pais e mandava junto coisinhas pra mim,
sua única sobrinha filha de sua irmã mais nova. Bem, ela me chamou
para ir morar com ela lá por uns tempos. Apesar do choque, entendi
muito rápido a situação: meus avós estavam muito velhos e cansados,
e minha mãe andava tendo recaídas em intervalos cada vez menores.
Depois eu descobri que o plano dela era trazer os pais, mas, diferente
6 Sansei ( 三 世 ). Refere-se à terceira geração de descendentes. Issei ( 一 世 ) é a primeira, nisei
( 二 世 ) é a segunda, sansei a terceira, yonsei ( 四 世 ) a quarta.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
de alguns descendentes, meu avô não queria ir, pois minha avó (que
não era japonesa nem descendente) não queria. Além disso, sequer
tinha pisado no Japão na vida! Ele não sentia muita ligação com a
coisa toda. Enfim, faz todo sentido, né?
Bem, foi assim que, sem ter um responsável com idade e
saúde suficiente para cuidar de uma menina de quase quinze anos
(beeeem reclusa, respondona e, acredito, com uma aura meio
pesada com toques de morbidez que até que me deixavam cool
aos olhos dos espécimes de minha idade, mas pra um adulto devia
ser uó), minha tia Tati assumiu a bucha. Um choque de realidade
— ou melhor, de uma realidade em que tudo seria desconhecido —
talvez fosse bom pro meu espírito e futuro. Claro que inicialmente
foi bem difícil, não pela minha tia, que era um amor, mas pra me
adaptar, é claro. Em pouco tempo deixei de ser Tsukiko Takeda
Mansur para virar Tsukiko Van der Berg (tenho um primeiro nome
que detesto; por isso não conto qual é!). Ah sim, faltou dizer que
o Van der Berg do nome veio do meu tio Finn, marido de minha
tia, que é um holandês que trabalha numa empresa de tecnologia
como chefe de projetos laboratoriais. Eles tinham um filho uns
três anos mais velho do que eu chamado Aden (Curiosidade: eles
queriam chamar ele de Zephyr, que é o deus do vento oeste, porém
coitada da criança vivendo no Japão e ouvindo o nome sempre ser
pronunciado “zefâ”. A segunda opção seria dar um nome japonês,
mas “kamikaze” pega mal por causa dos, bem, kamikazes da
segunda guerra; então resolveram usar uma corruptela de “adem”,
que é “vento” em holandês, e voilá! Todo mundo consegue falar!
Aliás, essa ideia de “inventar” nomes acabou caindo no gosto da
gente lá em casa também. Ah, poxa, brasileiros adoram inventar
moda mesmo, né?).
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Depois de sair da capital do meu país para a capital do
meu novo lar, acabei indo parar numa escola muito esnobe e foi
puríssima sorte ter conseguido entrar, pois eu não sabia japonês
direito (sabe como é, né? Aprendi com as baa-chan 7 do clube nipo
lá de Taguatinga, então é uma coisa bem, como podemos dizer,
idioma de colônia, sabe? A gente chega falando como uma criança
que nasceu nos anos quarenta. Ao menos era assim que Satsuki
e Nakasato me explicaram quando ficamos amigos. Depois percebi
que fazia sentido, até acho graça hoje), mas eles facilitavam a
entrada de transferência de estrangeiros. Ainda bem, pois eu nunca
teria passado na prova de admissão. E todo mundo sabia disso, o
que era um grande motivo de hostilidade da minha parte, pois eu
também não me sentia merecedora. O Colégio Q era uma referência,
com alunos vindos de famílias riquíssimas. Empresários,
artistas e gente de família tradicional. A coisa era séria, e eu, vinda
do ensino fundamental público do centro-oeste brasileiro, estava
muito abaixo no currículo. Então, além da deficiência escolar e do
idioma, era estrangeira, um quarto japonesa (nem me perguntem;
antes quando eu falava que era “meio” japonesa, eles me corrigiam
quando sabiam das ascendências e diziam “você é como um quarto
japonesa”, pois era difícil entenderem que ser brasileiro às vezes
é ser mistura de uma mistura e que a gente às vezes nem sabe de
onde veio isso. Talvez nem importe, sei lá, mas aqui importa. Bem,
de alguma forma, acho. Curiosidade: lá eu era a japa, aqui eu sou a
gaijin 8 . Foi esquisito no início, hoje acho graça), tinha sido adotada
7 Baa-chan ( 婆 ちゃん). Abreviação de obaa-chan (お 婆 ちゃん), que seria como “vovozinha”.
8 Gaijin ( 外 人 ). Palavra composta por duas letras kanji: ( 外 gai), que significa “de fora”; e ( 人
jin), que significa “pessoa(s)”. Assim a palavra significa literalmente “pessoas de fora” e pode
se referir tanto à nacionalidade quanto à raça ou à etnia. Em geral se usa com o sentido de
“estrangeiro”, “não japonês” ou “forasteiro”.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
pela tia dekasegi 9 que tinha um marido estrangeiro e me aproximei
da pessoa mais torta possível; o terrível marginal que tinha também
uma carga de características absurdas como as minhas.
Nakasato era órfão de mãe, o pai era alcoólatra e ele sofria
bastante bullying na infância por sua ascendência, que resolveu que
o carimbaria com a chamativa combinação de olhos azuis e cabelos
alourados que rarissimamente atinge essa etnia. Com onze anos
fugiu de casa e mudou de cidade, saindo de Sapporo para Tokyo,
onde passou a morar sozinho. Você deve se perguntar como um
garotinho conseguiu isso, né? Só quem nunca falou com ele por
pelo menos um minuto teria esse pensamento. Ele é de uma inteligência
e de um poder de observação tamanhos, que você poderia
mesmo dizer que ele consegue ler mentes. Ele consegue ludibriar e
guiar a atenção para onde quiser, mente como se estivesse dando
informação pra turista e consegue brincar facilmente com as percepções
das pessoas. Eu não sei detalhes específicos, mas ele conseguia
tudo só na lábia. Ele era tão bom que conseguiu viver em
uma casa abandonada durante três anos, com todos os funcionários
da escola e prefeitura pensando que ele morava com um avô que
trabalhava de caixeiro viajante. Sim. Desse jeito. Pode até ser história
dele, né? Mas nem ligo, o que importa é que ele conta assim,
e sinceramente? Não duvidaria. Não por minha relação com ele
somente, mas eu já o vi em ação várias vezes, é uma coisa incrível...
mas depois conto com calma sobre isso, vamos ter oportunidade.
Ah, sim, como deixou de ser criança cedo, virou homem cedo também,
quer dizer... na acepção “fácil” de ser homem, que é beber,
9 Dekasegi ( 出 稼 ぎ). É um termo formado pela união das palavras japonesas 出 る (deru, sair)
e 稼 ぐ (kasegu, trabalhar, ganhar dinheiro trabalhando), tendo como significado literário “trabalhando
distante de casa” e designando qualquer pessoa que deixa sua terra natal para trabalhar
temporariamente em outra região ou país.
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fumar, se drogar, trepar e arrumar confusão. Eventualmente roubava
também, mas se mantinha principalmente dando pequenos
golpes, bancando o vidente ou convencendo as pessoas a lhe darem
dinheiro. Com o tempo ele entendeu que não teria muito futuro
se não finalizasse os estudos. Quer dizer, pra uma pessoa que vivia
aquela vida, o natural seria ser cooptado para trabalhos escusos
por algum dos “exércitos yakuza” 10 , certamente teria sucesso fácil
(com sua esperteza e habilidades, certamente poderia ter se tornado
um bakuto 11 de sucesso). Mas ele não queria isso e resolveu
que iria mostrar pra todos que poderia ser mais do que esperavam.
Ele entrou no renomado Colégio Q ao passar com a pontuação
máxima na prova. Não, nisso ele não enganou ninguém. Ele era,
literalmente, o melhor aluno da escola, chegando a bater recordes
de nota de alunos aclamados de outrora. Ao mesmo tempo, por sua
história passada e por carregar todo esse conjunto de características
exóticas, ele causava uma certa repulsa na grande maioria dos colegas.
E foi assim que, poucas semanas depois de entrar no Colégio Q,
ele começou a ser chamado de Onihito em vez de Akihito (é uma
brincadeira com a pronúncia. Os bípedes mais inventivos substituíram
“aki”, de brilhante, por “oni”, de demônio, e, como o som
“hito” é igual ao da palavra “pessoa”, ficou pessoa-demônio, mas, se
10 Yakuza (ヤクザ). São os membros de grupos de uma organização criminosa transnacional
originária do Japão. O termo deriva da junção de Ya-Ku-Za (que significa 8-9-3). A sequência
numérica é considerada o pior tipo de mão em um jogo de baralho típico japonês, similar ao
Blackjack. O surgimento de grupos yakuza parece ter sido no período Edo (1603-1868).
11 Bakuto ( 博 徒 ). Apostador. É um “tipo” de yakuza. Agiam ilicitamente, já que o jogo era
proibido. A maior parte dessas casas de jogo operava negócios de agiotagem para seus clientes
e eles normalmente mantinham seus próprios seguranças pessoais. Os próprios locais, bem
como os bakuto, eram vistos com desdém pela sociedade em geral, e muito da imagem indesejável
dos yakuza surgiu dos bakuto, incluindo o próprio nome (que vem do jogo de cartas). Hoje
em dia continuam no ramo de jogos, agiotagem, cobrança de taxas de proteção, cafetinagem
e especulação financeira.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
eu fosse traduzir, pelo tom que o povo usava, seria “cara-monstro”.
Pegou fácil). Ele simplesmente tocou o terror em qualquer um que
tentasse perturbá-lo (o que devo dizer, não é exatamente difícil,
pois eu também peguei as manhas de botar medo e... falo mais disso
depois). Claro que, em pouco tempo ele começou a andar como se
fosse o dono do colégio, pois, muito embora adorasse o papel de
bad boy que o deixava em partes isolado da maioria que detestava,
ele também se aproximava de algumas pessoas que costumavam
ser perseguidas e acabava descobrindo várias coisas sobre a escola,
além, claro, de fazer o papel de aluno-rebelde-que-precisa-de-uma-boa-educação-para-seguir-o-caminho-certo
pra os professores,
fazendo grande sucesso especialmente com as professoras (total
cretino, se aproveitava da carinha bonita, da estatura alta e esguia e
de ares maduros). O filho da mãe era o marginal e o nerd ao mesmo
tempo, e ninguém, mas ninguém mesmo sequer considerava tirar
uma com ele. Sabe? Acho que, pra ele, várias das coisas que fez era
um grande “quer apostar?”. Se você dissesse que Oki Nakasato não
conseguiria fazer tal coisa, ele faria. E faria melhor (ou pior).
— Faz tempo eu descobri por que nasci como nasci... cof...
eu vim ao mundo pra bagunçar tudo!
Era o que ele dizia vez ou outra, com essas ou outras palavras.
E é verdade. Acho que ele ter nascido todo diferente despertou um
destino, ou um carma, que o fazia sempre se inclinar ao caos. Ele
conseguia ser esquisito e lindo, doce e rude, bom moço e marginal.
Tudo ao mesmo tempo. Se você esperasse calor, ele te dava frio. E
sempre fazia o que queria e como queria. E sempre conseguia, o
desgraçado! Dá raiva, né? Ele fazer tudo torto e conseguir os louros,
céus, como eu ficava possessa! Mas enfim, esse era o superpoder
dele. Ainda é.
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Eeeeeita... pensando nisso tudo agora, faz bastante sentido
a bronca de Satsuki com algumas atitudes nossas no passado... o
que me faz lembrar do que eu queria falar, que era sobre o que eu
ia fazer, mas comecei a falar da família e uma coisa puxa a outra.
Mas foi bom, assim dá pra entender que eu não sou assim à
toa! Já vem de família e me juntei com outro também bem doido.
Então é por isso que minha mãe (como
chamo minha tia Tati desde meus
dezesseis anos), como boa avó
brasileira, curte muito ficar
com os netos. O que me deu
a oportunidade seguir para
Kabukichô a fim de matar a
curiosidade que a espertinha
da Satsuki tinha plantado em
minha mente inquieta.
— Huh, o que
é esse cartão tão
chique? — perguntou
Makoto,
que estava comigo no
carro pegando uma
carona do cursinho,
balançando
aquele pedaço
de papel minúsculo
e caríssimo
na minha
frente, de um
lado pro outro.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
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https://cityline.blog.co.jp/outsider
ONDE ARISU ANDAVA QUANDO CAÍA A NOITE
POSTADO EM 4 DE OUTUBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Passamos o final de semana (que começa na quinta,
pra bons entendedores de boemia) de bar em bar
onde Arisu possivelmente poderia ter passado.
Falando com uma pessoa aqui e ali, descobrimos um karaokê que era
muito frequentado por meninas de fora e executivos. Por “meninas
de fora”, quero dizer que a casa não dispunha de serviço de hostess,
então quem chegava lá pra curtir tinha que “levar a garota por si só”,
daí costumava ser um lugar frequentado por colegas de empresa ou
coisa assim. Dava muita gente variada e esquisita: meu tipo de lugar.
E aqui vai uma dica: se querem saber alguma coisa sobre
algum lugar ou alguém, faça amizade com o barman (ou
“woman”), eles sempre tão ligados no que acontece.
Foi assim que descobri que Arisu não era contratada de lugar nenhum,
mas que, por vez ou outra, aparecia pelo local (reconheceram o uniforme,
mas achavam que era uma cópia). Segundo o pessoal do bar,
já a viram por lá antes uma ou duas vezes, acompanhada de pessoas
diferentes. Infelizmente não souberam descrever bem os caras, mas
mesmo assim tentamos fazer os retratos falados discretamente.
Um parecia um salaryman meio deprê, e o outro um sujeito
metido a jovem com cara de tarado boa pinta. Sinceramente?
Não dá pra saber só baseado nisso se eles tinham a ver com
o sumiço dela. Demos uma passada nas delegacias da região
para ver os retratos dos procurados. Talvez um deles parecesse
com o nosso, mas não dava mesmo pra ter certeza.
Seguimos sem muitas pistas até aqui, mas vamos continuar
a combater o mal sob a luz da lua.
PUBLICADO ÀS 23:15 HORAS.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
CLUBES DE HOSTESS
POSTADO EM 15 DE OUTUBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Apesar de sexo ser um tema de profundo interesse de qualquer
adolescente punheteiro, pouco se fala sobre isso na escola
(excetuando as aulas de biologia, em que se ensina sobre a parte
técnica da coisa), acho que pensam que, quanto menos falarem
com a galera, menos todo mundo vai pensar em sacanagem.
Que besteira! Entre os rapazes (e sei que também entre as moças),
tudo gira em torno de conseguir passar de ano e tentar descolar
uma namoradinha que, se Deus for bom e misericordioso, vai
liberar umas mãos bobas aqui e ali e, quem sabe, algo mais?
Não é de se espantar, então, que os mais ingênuos (tanto professores
e pais quanto alunos) desconheçam como boa parte das relações
amorosas do mundo adulto se dão: em clubes noturnos de Shinjuku.
Para você, elegante colega do Colégio Q, pode soar estranho o que vou
dizer, mas funciona assim: o assalariado trabalha feito um cachorro e,
quando tem dinheiro, vai a um bar, onde poderá desfrutar da companhia
de uma bela moça, que, se lhe pagar umas bebidas boas, vai
conversar e passar um tempo muito agradável com ele. Quanto mais
liberar o bolso, mais tempo e mais coisas as moças fazem. Mas, não,
nada de sexo. Elas estão lá só pra fazer companhia. Acredito que,
para os colegas estrangeiros (que são muitos), isso soe estranho,
pois já fui questionado várias vezes por minha namorada e vários
conhecidos. Mas é assim que funciona. Sexo pago no Japão é crime,
por isso a indústria do entretenimento adulto aprendeu a driblar a
lei. É aquele negócio, não mostramos o que não se pode ver, mas, se
você levantar o tapete, pode ser que veja algo... tem um ditado que
ela me ensinou, e acho que ele pode ser usado aqui: “Longe dos olhos,
longe do coração”. Quer dizer, o que não se vê não existe, não é isso?
Pois bem, as moças então oferecem apenas companhia. É claro
que isso começou a atrair as meninas, afinal, é um dinheiro muito
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fácil. Salaryman tarado é o que mais tem nesse mundo! Eles fazem
de tudo só pra ter uma menina colegial do lado. Assim elas descolam
as bolsas da moda que os pais não podem pagar. Eu confesso
que acho uma puta falta de noção, mas fazer o quê? Esses filhinhos
e filhinhas de papai não têm ideia do que é passar fome. Mas
cada um usa a bunda como quiser, não tenho nada com isso.
Em uma de nossas noites de investigação, entramos em um
bar. Bem, como sou alto, não tenho problemas e, como minha
companheira é estrangeira e tem um corpão, então todos
já acham que se trata de uma maior de idade. Sentamos
com uma moça e ela falou um monte da vida dela.
Foi fácil tirar coisas dela, e descobrimos que, pela região, o sujeito com
cara de “jovem adulto tarado” já tinha sido visto e curtia sair com umas
meninas com menos cara de japonesas. Ele frequentava principalmente
Roppongi, mas, de uns tempos pra cá, lá anda sendo alvo de várias
batidas policiais, segundo o que disseram. Então quem não era estrangeiro
começou a voltar ao Kabukichô pra fugir desse fuzuê dos tiras.
Não é nenhuma surpresa que ninguém tenha
visto Arisu por esses tempos.
PUBLICADO ÀS 05:40 HORAS.
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POR QUE VOCÊ QUER SABER DAQUELA HAFU?
POSTADO EM 25 DE OUTUBRO DE 1999 POR OKI, THE OUTSIDER.
Quero compartilhar aqui minha resposta para a pergunta que
me foi feita diretamente e que dá título a este post. Mas antes
vou compartilhar alguns dos comentários recebidos:
“Eu gostava mais quando você falava dos podres dos alunos exemplares!
Jamais esquecerei quando revelou que o incrível W cheirava
até pó de giz!”, disse MoshiMoshi86. Eu também jamais esquecerei
da estranha preparação esportiva do nosso astro do rúgbi.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
“Ah, cala a boca! Aposto que você é só um esquisitão ferrado
que tá querendo atenção” Himitsu-sama escreveu,
em vez de ir trepar, perdendo seu tempo num blog de
um esquisitão. Agradeço, mas já tenho namorada.
Agora um fato chocante pra você aí que me lê: o blog
é meu e eu escrevo sobre o que quiser. Obrigado, e
quem não gostar see you spaceweb cowboy...
Eu sei que por alguns anos nos divertimos com a miséria dos filhinhos
de papai que tanto perseguem a maioria de vocês, mas chega
uma hora em que precisamos mesmo nos livrar dessa opressão.
Deixem eles serem os poderosos ou não, tanto faz. Daqui a pouco
vocês podem conseguir um emprego que gostem, fazer a viagem
dos sonhos ou criar uma família, muitos podem se tornar um monte
de gente medíocre, mas outros podem ter mesmo uma vida boa.
E ela começa quando a gente saca que a vida é muito mais do que
o colégio e essa pequena amostragem cruel do mundo aqui fora.
Aqui fora é maior, algumas vezes muito mais perigoso, mas acreditem
é bem menos ácido que o Ensino Médio, essa caixa de aniquilar
personalidades programada para tortura. Não é exatamente mais
fácil, mas é menos cheio de “histórias da carochinha”, o que pode ser
um grande baque para alguns. Para outros, pode ser libertador.
O sumiço de Arisu despertou uma grande inquietação na gente.
Nos perguntávamos várias vezes sobre como pode uma pessoa
desaparecer? Qual o impacto dessa falta e por que isso causa
estranheza. Tem alguma coisa errada, vocês não percebem?
Tem alguma coisa errada com o fato de Arisu ter escolhido fazer coisas
perigosas. Tem alguma coisa muito errada em não ter alguém pra
cuidar dela. Tem alguma coisa errada na gente ter feito teorias contra
o caráter dela ou, como vi alguns, se divertindo com isso. Outros,
nem ligando. Até que em uma de nossas andanças a gente ouviu algo
sobre que as pessoas não se importam com os marginalizados.
“À margem” é algo que não está na plenitude. Não
está aqui nem ali. Estamos no limiar, no meio.
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Eu digo “estamos” porque, apesar de eu mesmo ser japonês, não
sou o japonês que todos querem. Não tenho uma mãe em casa e
um pai que trabalha das 9h às 20h. Não sou educado. Não sigo
regras. Exceto por minhas notas, o resto é só ladeira abaixo; fumo,
bebo, trepo, xingo, tenho tatuagem, não respeito as pessoas
por suas posições sociais ou experiências, não ligo pra sobrenomes,
alguns dos meus bons amigos vivem à base de pequenos
golpes ou de bicos e são homeless. No entanto, se eu entrar
em um terno (e pintar meu cabelo de uma cor aceitável) e falar
direitinho, eu deixo de estar na margem no mesmo instante.
Mas minha companheira jamais vai conseguir isso. Apesar de algumas
peculiaridades pessoais, ela tem uma mãe em casa, um irmão
esportista, um pai bem-sucedido. É talentosa como poucas pessoas,
daquele tipo de gênio que pode ser a artista que quiser; pinta, desenha,
fotografa, dança, canta, compõe faz qualquer coisa com grande
beleza. Nunca roubou nem enganou na vida, segue as regras ao
máximo possível, respeita os pais e as pessoas. No entanto ela pode
falar o melhor possível, se vestir da melhor forma, mas nada vai mudar
o fato de que ela não se parece totalmente japonesa. Ela é uma hafu 12 ,
e todos podem ver isso. E já por aí, ela ganha um monte de características
que não têm nada a ver; ela é exótica, estranha, curiosa nas
melhores acepções. Nas piores ela é maliciosa, vulgar, bárbara, como
uma manchinha na sociedade, pois não pertence a este lugar. E calha
de T não ser daqui mesmo, mas Arisu é. Nascida e criada no Japão,
não tem a mínima ideia de como um peruano vive, exceto por qual-
12 Hafu (ハーフ). Palavra usada em para se referir a alguém que é birracial, isto é, etnicamente
meio-japonês. O termo surgiu na década de 1970 no Japão e é agora é um termo
mais comumente utilizado e preferido com autoafirmação. A palavra vem do inglês (half)
e significa “metade”, indicando uma pessoa cuja metade de suas raízes estão no exterior.
Um dos primeiros termos para designar um japonês de origem mestiça foi ainoko ( 合 の 子 ),
ou seja, uma criança nascida de uma relação entre duas raças diferentes. Este rótulo, no
entanto, contribuiu para o surgimento de uma série de problemas sociais nos anos 1940,
como a pobreza, a impureza racial e a discriminação devido a tratamento negativo dado aos
mestiços naquela época. A palavra foi então gradualmente substituída na década de 1950
pelo termo konketsuji ( 混 血 児 ), que significa, literalmente, um filho de sangue misturado.
Isso foi utilizado numa tentativa de separar os meio-japoneses dos japoneses “puros”.
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LUA BUENO E TERESA HELSEN
quer costume pessoal de seu pai. No entanto, são vistas da mesma
forma; metade. No meio do caminho. Uma pessoa que é e não é.
“É tipo viver no Limbo”, T me disse uma vez. O Limbo, segundo o
catolicismo, é um lugar “fora dos limites do céu, onde se vive de
forma esquecida e sem a visão plena da eternidade e privado da
visão beatificada de Deus”. Ou seja, para lá vão as almas inocentes
que não cometeram pecados mortais, no entanto estariam para
sempre privadas da presença de Deus, pois seu pecado original
não teria sido submetido à remissão através do batismo, uma das
principais consagrações cristãs. Não se sofre como no Inferno, mas,
para um cristão, o que significa existir longe da presença de Deus?
Imagine que seja como viver no jardim que separa o Paraíso do
Inferno. Talvez não faça muito sentido pra quem não é cristão
ou não vem do Ocidente, mas é uma analogia interessante.
Essas pessoas hafu, mesmo sem terem pecado, ainda assim
são julgadas como não sendo dignas de viverem como qualquer
um nesta cidade, por mais exemplares que sejam.
E se algumas vezes falham com aqueles que são
daqui, imagine com os que parecem não ser?
Talvez vocês devam se fazer essa pergunta, pois pode ser
que você também esteja, de alguma maneira, no meio. Ou
será que você se encaixa em tudo que esperam que seja?
Essa questão pode ser mais presente em sua vida do
que as lembranças das pequenas fofocas revanchistas
que compartilhamos durante esse Ensino Médio.
PUBLICADO ÀS 23:00 HORAS.
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http://www.catarse.me/tattooirezumi