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Portugal, as questões de género... As pessoas

acham muito interessante utilizarmos

uma música que consideram tradicional

para mostrar uma realidade nova, como fizemos

com “Povo Pequenino”, que cruza a

tradição musical com a experiência ‘queer’.

Muitas vezes, são consideradas coisas irreconciliáveis

e acho isto muito interessante

e desafiante, esta ideia de ‘a tradição exclui

pessoas como nós’. É muito interessante

porque o estilo tradicional não é apenas tradição.

A tradição é um processo social que

cria uma normatividade que vai passando

de geração para geração como representativo

dessa sociedade, cria uma normatividade

que exclui pessoas e isto faz com que as

pessoas não liguem à tradição, ou não se

ligam com determinados aspetos da tradição

por causa disso. Mas nós fazemos parte

do passado, fazemos parte do fado. As ‘bichas’,

as pessoas LGBT não surgiram para

fazer as marchas do orgulho gay, as pessoas

sempre estiveram ali e sempre fizeram

parte desse passado e da criação artística.

No nosso caso, recusamos esse carácter

apagador da tradição e reinvidicamos esse

lugar na tradição.

O que gostariam que as pessoas sentissem

ou com que ideias ficassem depois

ouvir o vosso disco, ‘Ocupação’?

- É uma pergunta bonita... Gostaria que as

pessoas sentissem muitas coisas diferentes.

‘Ocupação’ é um disco que funciona para

nós de uma forma muito bonita porque,

como o trabalho do disco acabou por ser

esticado no tempo por causa da pandemia,

acabou por ser diferente do plano inicial. Ele

faz uma espécie de eixo do passado para o

futuro, então tem músicas que bebem muito

de uma ideia de passado, nomeadamente

de passado comunitário, como o Valentim

de Barros na primeira música, tem referências

a pessoas transgénero como a Gisberta

e Mathew Shepard - ambas assassinadas, a

primeira em Portugal e a segunda nos Estados

Unidos nos anos 90, tem essas referências

a um passado de violência, e também

tem de passado pessoal, como a música

1997 - que é a minha história de crescer a

ter de lidar com a violência homotransfóbica.

Tem ainda algumas músicas que cantamos

desde o início como ‘Lila Fadista’, a ‘Crónica

do Mais Discreto’, tema este que vem

do início do nosso projeto. Tem outras músicas

que não só trazem esse aspeto de força,

de resistência e de rebelião, como ‘Fogo

na Casa’ ou ‘Medusa’, mas também o olhar

para a sociedade portuguesa, como o tema

‘Povo Pequenino’ que levamos ao Festival da

Canção deste ano e aborda a nossa visão de

Portugal em relação com a sua história, com

10 saber novembro 2022

Eu e o João decidimos

muito cedo que não iríamos

depender da legitimação

de ninguém

o nosso passado e com o nosso presente.

Tem ainda músicas que apontam para sítios

musicalmente muito diferentes daquilo que

já experimentámos... É um álbum que tem

muito esse diálogo entre passado e futuro

e de mim, porque ligo-me muito ao Tempo,

que é uma coisa que me preocupa mas também

que me anima e instiga artisticamente

e criativamente. Essa ideia de passado, da

morte, de futuro... Ao ouvirem este disco,

gostava que as pessoas se sentissem entusiasmadas

e entendessem as pessoas que

criaram o disco e as pessoas/histórias que o

disco canta. Ao conseguirmos criar/mostrar

as nossas narrativas, estamos a expôr o sofrimento

de pessoas que não conseguem ter

voz, então, é preciso mostrar esse sofrimento

e de onde vem esse sofrimento e que as

pessoas conseguissem entender que aquele

sofrimento é o nosso sofrimento pessoal,

mas é um sofrimento mais antigo e aquela

resistência também é muito mais antiga do

que nós, que nos sentissem a nós como a

outros artistas ‘queers’, que nos sentissem

como um canal de expressão desse sofrimento

e dessa resistência que são simultaneamente

antigas, simbólicas, comunitárias,

bem pessoais e muito reais.

Quem são a Lila Fadista e o João Caçador

fora do palco, despidas da profissão de

‘fadista´?

- Nunca nos tinham feito essa pergunta...

Olha, a Lila é uma pessoa muito menos confiante

do que aquilo que aparenta ser em

palco. Acho que, sou muito menos confiante

do que aquilo que aparento ser em palco.

Temos uma relação de amizade muito próxima,

de companheirismo e de apoio que é

o que sustenta o nosso projeto. Acho que,

não seria possível de outra forma. Como

relação meramente profissional, isso era

impensável. Este projeto só aguenta porque

é assente numa relação muito próxima

e de amor. Somos pessoas com dúvidas,

com receios, com vontades, com inseguranças

mas também somos alegres, entusiasmadas

pela vida, apaixonadas por Lisboa

e pela arte e com vontade de fazer coisas

novas e diferentes. Saímos de um período

pandémico que foi bastante perturbador

mas, atualmente, conseguimos viver exclusivamente

da arte e da música, o que é uma

coisa maravilhosa.

A Madeira é uma possibilidade em termos

de concertos/espetáculos vossos?

- Já atuámos na Madeira. Foi a primeira vez

que fui à Madeira, em 2019, e atuámos no

desfile Pride da Madeira, no Jardim Municipal.

Foi um concerto lindíssimo, com muita

gente a assistir. Gostamos muito. A Madeira

tem vivências específicas e a comunidade

LGBT das ilhas tem experiências muito

específicas, é uma insularidade dentro de

uma insularidade e nós ouvimos de muitas

pessoas da Madeira casos de violência,

depressão, rejeição familiar, de armário

– muito armário... Mas gostávamos muito

de voltar a atuar na Madeira. De momento,

não temos plano de voltar a fazê-lo em

termos de Fado Bicha – não é fácil dado que

há ainda alguma resistência por parte dos

programadores nacionais de quererem um

concerto do Fado Bicha, mas vamos com a

peça do Pedro Penim ao Funchal em julho

de 2023, o que irá ser maravilhoso, com certeza.

Muito obrigada pelo interesse e pelas

perguntas e um beijinho grande. s

Eu sempre quis cantar

fado, mas trazendo-me

a mim por inteiro, com

as minhas experiências,

sentimentos e género

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