OR #17
A Originais Reprovados é uma revista literária com textos da comunidade USP editada desde 2005 pela Com-Arte Jr., empresa júnior do curso de Editoração da ECA. Em 2023, os textos selecionados entre cerca de 200 originais foram reunidos em um exemplar que homenageia o movimento Tropicália, responsável por destacar tanto as manifestações tradicionais da cultura popular brasileira quanto as inovações estéticas radicais. Dessa forma, as cores vivas e elementos surrealistas entram em harmonia no projeto gráfico da revista, que conta com inspirações nos nomes e na musicalidade política e irônica de Tom Zé e Gilberto Gil, por exemplo. Em especial, esta edição presta homenagem à vida de Rita Lee e Gal Costa, cujos legados artístico e crítico permanecem como uma bússola para tantos criadores e editores. Acompanhe a Com-Arte Jr. nas redes sociais, Boa leitura!
A Originais Reprovados é uma revista literária com textos da comunidade USP editada desde 2005 pela Com-Arte Jr., empresa júnior do curso de Editoração da ECA. Em 2023, os textos selecionados entre cerca de 200 originais foram reunidos em um exemplar que homenageia o movimento Tropicália, responsável por destacar tanto as manifestações tradicionais da cultura popular brasileira quanto as inovações estéticas radicais. Dessa forma, as cores vivas e elementos surrealistas entram em harmonia no projeto gráfico da revista, que conta com inspirações nos nomes e na musicalidade política e irônica de Tom Zé e Gilberto Gil, por exemplo. Em especial, esta edição presta homenagem à vida de Rita Lee e Gal Costa, cujos legados artístico e crítico permanecem como uma bússola para tantos criadores e editores.
Acompanhe a Com-Arte Jr. nas redes sociais,
Boa leitura!
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
1
BRAINSTORM
Faça a sua história com a Lis!
Por amar o que fazemos há mais de 30 anos é
que cuidamos do seu livro com muita dedicação
e responsabilidade. Por isso, oferecemos
atendimento personalizado desde a entrada dos
arquivos até a entrega do produto finalizado.
Temos profissionais qualificados e treinados para
avaliar sua publicação e acompanhar todas as
fases de produção para que, no final, tenhamos
orgulho de ter impresso o seu livro e feito jus
à oportunidade e confiança a nós concedida.
Mais do que especializados na produção de
livros, jornais e revistas para pequenas e grandes
tiragens com qualidade na impressão e no
acabamento, oferecemos todo o suporte e
cuidado necessários para que sua obra alcance
o sucesso almejado.
Entre em contato conosco e entenda
como a Lis cuida da sua história.
Rua Felício Antônio Alves, 370
Bonsucesso, Guarulhos SP
Fone: 11 3382.0777
www.lisgrafica.com.br
17
Créditos Editoriais
Coordenação Geral
Gabriela Fernandes
Seleção de Originais
Amanda Machado (coordenação)
Janaína Veríssimo (coordenação)
Ana Claudia Almeida
Bruna Letícia de Souza
Debora Campos
Eloisa Queiroz
Gabriella Oliveira
Jonathan Leandro
Maria Clara Moreira
Maria Paula Lucena
Mariana Weizenmann
Milena López
Rafaela Santos
Rhany Siqueira
Preparação e Revisão de Texto
Ana Marcílio (coordenação)
Larissa Vidal (coordenação)
Amanda Machado
Bruna Letícia de Souza
Debora Campos
Isabella Berardinelli
Isabella Marchetto
Letícia Panula
Maria Clara Moreira
Maria Paula Lucena
Milena López
Projeto Gráfico
Eloisa Queiroz (coordenação)
Gabriela Fernandes (coordenação)
Alexandra Viana
Jonathan Leandro
Diagramação
Gabriela Fernandes (coordenação)
Bruna Letícia de Souza
Eloisa Queiroz
Fernanda Benachio
Jonathan Leandro
Jorge Buzzo
Marcela Ribeiro
Milena López
Rafaela Santos
Divulgação
Alexandra Viana
Ana Beatriz Lisboa
Bruna Letícia de Souza
Debora Campos
Eloisa Queiroz
Fernanda Benachio
Gabriela Fernandes
Milena López
sumário
9 Nota Editorial
11 Estampido 86
16 Oficina
17 A Vaidade de um Deus
19 Vida Morte Poesia
20 Presa e Predador
24 Ser Ou… — Manifesto
25 Jardins Numéricos
30 A Balada do Beija-Flor
32 Me Disseram que os Poetas Sangram Poesia
33 Meu Único e Grande Medo
35 Agora Inês É Morta
39 muros e molduras
40 Tired as I Am
43 Como Vou Dizer que te Amo?
45 Temos Todo o Tempo do Mundo
48 Seca Vida
49 Penso, logo...
51 Vesuvius
54 Subsolo
56 Ponto sem Nó
57 Aquela que (Re)Nasceu depois
dos Infortúnios
61 Autores
63 Agradecimentos
PRECISANDO DE
SERVIÇOS EDITORIAIS
Conte com a com-arte júnior! Uma editora fundada
em 1999 pelos alunos do curso de Editoração da USP.
Nossos serviços incluem:
Publicação de revistas e livros digitais e impressos
Preparação
Revisão
Diagramação
Capas
Jornais
Cartões de visita
Banners
Folders
Cartazes
Catálogos
Redação de paratextos
Transcrição de áudios
Normatização de artigos em ABNT
comartejr
8
nota editorial
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
[…]
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
manuel bandeira
A
Originais Reprovados é uma revista literária publicada
anualmente, desde 2005, com poesias, crônicas e
contos inéditos de toda a comunidade usp. O processo
editorial completo, da seleção dos textos à publicação, é
completamente realizado pelos alunos do curso de Editoração
da Escola de Comunicações e Artes, dentro da empresa
júnior, a Com-Arte Júnior. Seu objetivo é fomentar
a escrita literária no ambiente acadêmico e proporcionar
uma experiência prática e real aos editores em formação.
Em 2022, ano marcado pelo retorno presencial da
Universidade, pelo centenário da Semana de Arte Moderna
e pelos cinquenta anos de nosso curso, o projeto chega
a sua 17ª edição com este exemplar, preparado pela tur-
9
ma ingressante de 2021 em colaboração com a de 2022. Os
21 textos que a compõem foram selecionados cuidadosamente
entre os 230 recebidos e avaliados.
A presente edição, portanto, é muito significativa
diante de tais comemorações. Buscamos inspirações gráficas
na produção visual modernista e trabalhamos para
que a escrita dos autores saísse da penumbra, permitindo
a experimentação de diversas fôrmas e formas, sem deixar
de devorar as antigas referências e de regurgitá-las.
Como disse Oswald de Andrade, “a poesia existe nos fatos”.
No verde das bandeiras da Copa ou no vermelho do
sangue dos poetas, ali existem fatos estéticos. Queremos
resgatar a arte brasileira para além das paredes acadêmicas.
Queremos que a poesia esteja na língua e nas mãos de
todos. Queremos que estas páginas sejam a exportação de
versos outrora reprovados.
Agradecemos aos inscritos e a todos que trabalharam
e ainda trabalham para que possamos receber, avaliar,
aprovar, revisar, diagramar, divulgar, ilustrar, revisar
novamente, e por fim, publicar nossos queridos Originais
Reprovados.
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.
E a Originais Reprovados é o nosso manifesto.
Boa leitura!
Gabriela Fernandes
presidente da com-arte júnior, 2022
10
Estampido 86
Quando eu descobri as bombinhas...
Flavio Bastos
Foi na Copa do Mundo de 1986 que eu descobri que existia
uma Seleção Brasileira de Futebol e que eu provavelmente
deveria me importar com isso. Afinal, todo
mundo parecia se importar e eu não ia querer ficar de fora.
Como cada um tinha seu jogador favorito, quando
me perguntaram sobre o meu, respondi que era o Careca,
talvez pela empolgação com a qual eu ouvia o célebre
narrador Luciano do Valle gritar o “nome” dele. Esclareço
aos fãs do esporte bretão para que não haja mal-
-entendidos: aos meus sete anos de idade, meu negócio
era muito mais saber como o Jaspion se sairia no próximo
confronto contra o Satan Goss do que me preocupar com
o destino do Careca — com todo o respeito que o Careca
certamente merece.
Foi também durante a Copa de 1986 que me foram
apresentadas as bombinhas — daquelas que a gente acende
com fósforo mesmo —, também conhecidas como “traques”
no submundo das crianças que se entusiasmam
com o que “não presta”, como diria meu pai. No bairro
11
em que eu morava, era possível comprar uma caixa com
trinta bombinhas na mesma “vendinha” em que se podia
comprar alguns gramas daqueles salgadinhos que já
vinham semimurchos e cuja receita, mais tarde, serviria
de modelo para a lista de produtos proibidos para o
consumo humano da oms.
Eu não sei quanto custava uma caixa de bombinhas
naquela época, mas lembro que a situação financeira em
casa não era nada boa e isso levou à criação de medidas
de austeridade que afetavam desde o consumo de biscoitos
até o uso das minhas recém-presenteadas bombinhas.
Assim, meus pais me deram a caixinha com uma
condição: eu só poderia estourar uma bombinha quando
o Brasil fizesse gol.
Agora, relembre comigo a Copa de 86. O Brasil fez
cinco gols na primeira fase, quatro contra a Polônia nas
oitavas de final e mais um gol no empate contra a França
nas quartas, o que me deu direito a dez “sorridentes”
explosões. Os pênaltis, após o empate contra Les Bleus,
me permitiram mais três bombinhas extras, o que foi alimentando
em mim a ilusão de que aquela seria uma tarde
jubilosa. Contudo, poucos minutos depois daquelas três
pequenas alegrias infantis, minha mãe veio até a porta da
lavanderia, que dava para o quintal, e me disse que, infelizmente,
o pior havia acontecido.
— Como assim perdeu? — perguntei à minha mãe,
que retomava a vida, abrindo a torneira do tanque de
lavar roupa.
— Perdeu, fazer o quê?… Futebol é assim mesmo.
12
— E não vai jogar mais? — insisti, atordoado.
— Não, agora os jogadores voltam para o Brasil. Eles
não jogam mais — continuava a explicar minha mãe, pois
meu pai ainda não tinha forças para se levantar do sofá.
Eu me lembro de sentar sob o batente da porta, de
frente para o quintal — que era o palco do meu festival
pirotécnico —, e ficar com o olhar perdido por um
tempo, sem conseguir entender o que acabara de enlutar a
terça-feira dos meus pais e do bairro todo, embora eu
compreendesse muito bem o meu luto: se não haveria
mais gols do Brasil, quando é que eu ia estourar as outras
17 bombinhas que ainda tinha?
Imaginando tratar-se de uma afronta às diretrizes
que regem os combinados entre pais e filhos, resolvi esperar
até o final da Copa para perguntar ao meu pai se podíamos
renegociar os termos de uso dos explosivos.
Não sei se ficaram claras ao estimado leitor as possíveis
sequelas psicológicas que isso pode ter me causado, pela intensidade
dos impulsos contra os quais eu tive que lutar… Eu
nem sequer ficava na sala com meus pais acompanhando os
jogos! O jogo estava lá, comendo todo mundo vivo de tensão,
e eu só queria saber de ficar a postos no quintal, com a caixinha
de “traques” e os fósforos na mão, esperando que meus
pais ou algum vizinho me permitissem mais um estouro.
Meu pai, já recomposto da Copa, disse-me que eu poderia
brincar com as bombinhas quando quisesse e até me
deu umas ideias. Mas quem trouxe mesmo contribuições
valiosas ao meu projeto “Estampido 86” foi um amigo que
morava no fim da rua chamado Ângelo.
13
Ângelo, de acordo com o Dicionário de Nomes
Próprios, tem origem no grego Ággelos, que quer dizer
“mensageiro”, “anjo”. A mensagem que ele veio me anunciar
no caso, foi que simplesmente estourar a bombinha
não garantiria a plena realização de sua existência neste
mundo. Uma bombinha, para cumprir sua missão na
Terra, deveria explodir alguma coisa. Sendo uma pessoa
cheia de compaixão desde criança, não pude evitar de
solidarizar-me e comprometer-me a ajudar as pobrezinhas.
Meus pais haviam saído e estávamos, Ângelo e eu,
examinando o quintal em busca de possibilidades, até que
um “objeto” nos fez começar a rir em antecipação. O mensageiro,
então, soprou-me aos ouvidos:
— Coloca três de uma vez embaixo!
Eu devo ter pensado que era uma ótima ideia, pois foi
exatamente o que fiz, embora só me lembre mesmo de
estar rindo tanto que mal conseguia falar, tamanha era
a minha excitação. Acendi as bombinhas e corri para
me proteger da explosão atrás da porta da lavanderia.
Assim que ouvi o estouro, abri a porta e tive uma visão
de como seria o apocalipse: havia merda de cachorro —
o “objeto” — chapiscada por todo o lado, nas paredes,
na porta e nos lençóis que minha mãe havia estendido
no varal.
Aquela pintura impressionista do fim do mundo em
tons de marrom fez com que eu saísse caminhando atônito
pelo quintal. Parei entre os fios dos varais e fiquei ali
sozinho, pois o mensageiro não gostou quando eu usei as
profanas palavras “limpar”, “antes”, “pais” e “chegarem”.
14
Não lembro do que aconteceu quando meus pais
chegaram — é repressão de trauma que se chama? Para ser
honesto, minha memória desse incidente só vai até um
evento que, até hoje, não consigo explicar: uma bostinha
cair bem ao meu lado, minutos após a explosão.
15
Oficina
Lucas Gregório
Uma homenagem a Drummond
Eu queria escrever um soneto leve,
Como vejo companheiros fazer.
Algo de bom que tocasse na pele,
Não algo falando do meu sofrer.
Eu queria um soneto pomposo, célebre,
Um poema com poesia boa de se ler.
Um texto com uma palavra que sele
E que indique a alegria do viver.
Todavia, este meu soneto é intérprete
Desta alma que me obriga a escrever.
Um poema importuno, mesmo que breve,
Inapropriado, com nada que gere,
Que não ilumina, só entristece
A alma da pessoa dedicada a ler.
16
A
Vaidade
de um
Deus
Beatriz Leal de Sousa
Existe uma beleza infantil em
ver um adulto desconcertado.
É a sutileza de um desconforto
que surge nas menores
particularidades. Falo do constrangimento
de ser deixado só
num vagão de metrô depois de fazer
parte do trajeto com alguém. É
nítido o embaraço de alguém que
veio conversando com um outro,
de pé, boa parte do caminho, se segurando
nas barras de leve, quase
imperceptível o balanço do trem.
Quando seu interlocutor deixa o vagão apressado, antes
que a porta se feche, há um baque. O que fica olha para
os lados. É como se só agora notasse a publicidade do lugar
onde se encontra e fosse trazido ao chão pelos cabelos,
pego de assalto. Olha o chão, vê se não há lugar vago para
se sentar. Nunca há. Pega o celular no bolso, vê as horas.
De fato, o mundo não parou durante sua conversa acalorada
de sete estações, mas agora, no seu silêncio, é como se
rodasse mais devagar
Para onde vamos nesse descolar de realidade das
conversas? Qual o motivo do tempo apertar o passo quando
estamos bem? A vaidade de Cronos torna inaceitável
a nossa indiferença, como se tomássemos de suas mãos
enormes as rédeas da vida. Não vivemos, nesses momentos,
em função dele nem apesar. Vivemos apenas como se
ele não fosse nada.
17
Talvez não seja, nunca, nada. A vaidade
também está nisso. Só quem pode ser somos
nós, de forma direta, sem a mediação
de qualquer fenômeno. Somos porque
sim. O deus do tempo é deus porque tem o
tempo, existe por meio dele, existe porque
nós o aceitamos como convenção.
Imagino sua existência se desfazendo
caso tacitamente a humanidade não mais
o aceitasse. Não haveria nada que pudesse
fazer se cada um adotasse o seu tempo,
colocasse os ponteiros ou dígitos aleatoriamente,
como bem quisesse, e tomasse dali
seu novo ponto de partida. O que faria? Se
cada um fosse o deus do seu próprio tempo,
ele não seria mais deus de nada.
Mas nós não somos deuses. Precisamos
deles, vivemos em função deles. Ser
deus de si implica numa responsabilidade
assustadora. O fardo de carregar sua própria
liberdade pelas mãos talvez seja demais,
faz enlouquecer.
Enquanto isso, e por isso, ele vinga
sua vaidade nos colocando o constrangimento:
nossa vergonha de voltar ao mundo
dos mortais, depois de, por alguns instantes,
termos sido deuses.
18
Vida Morte Poesia
Rafael Corrêa
Se a morte é um suspiro de alívio
Que finaliza as dores do viver,
E a vida um respirar claro e sonívio
Que contrasta as angústias com o prazer,
Torna-se a existência um curso trívio
Para eu pensar, amar e, sim, morrer
Sem risco de cair no eterno oblívio
Escrevo, e como escrevo, é o meu poder.
Se os versos são momentos de catarse
Sem frescuras, diretos, elegantes
E o poema foto a colocar-se
Em telas, papéis brancos e estantes,
Os guardo e vivo leve no ar se
Eu sei que depois morro e não antes.
19
Presa e Predador
Thaís Helena Moraes
Era uma vez, no topo de uma ameaçadora montanha,
um reino de caçadores. Todos os aldeões eram treinados,
desde o nascimento, à perseguição e à caça de
animais os mais variados; e faziam belas peles para vender
nas feiras do vale da montanha, e serviam os jantares
mais fartos e mais apetitosos de toda a região. O reino era
comandado por um rei, de ombros robustos e pele cheia
de cicatrizes, que diziam ser capaz de caçar qualquer tipo
de animal que andasse pela terra. A cada dia, porém, ele
ia tornando-se mais velho, e seu povo o pressionava para
que tivesse herdeiros. Assim, numa noite de raios e trovões,
o rei pediu aos deuses um presente: uma esposa que
pudesse dar-lhe um filho mais forte que ele mesmo.
Quando a noite acabou, ele reuniu seus companheiros
e desceu a encosta da montanha rumo à floresta. Lá
permaneceram durante todo o dia, mas não encontraram
caça alguma. Ao parar no leito de um riacho para matar a
sede, o grupo viu aproximar-se uma mulher, de tez macia
e olhos profundamente negros. Dirigindo-se ao rei, ela
perguntou:
20
— É você o rei desses homens, que vivem no topo da
montanha?
Ao que ouviu a resposta afirmativa, disse:
— Eis aqui vossa esposa.
O grupo, então, conduziu a moça até os portões do reino;
o povo, apesar de receoso, foi instruído a recebê-la em
festa, e o casamento foi marcado para dali a quatro dias.
Como não havia carne, o rei ofereceu mel e frutas à mulher,
que recusou tudo, com um sorriso doce. À noite, no
leito nupcial, ela sussurrou:
— Amanhã, preciso que me traga a carne do animal
mais veloz do mundo.
Então, no dia seguinte, o rei reuniu seus homens e saiu
para caçar; ao pôr do sol, retornaram trazendo uma gazela,
de pernas finas e muito ágeis, que foi ricamente preparada
e oferecida, no jantar, à esposa do rei. Com avidez
selvagem, a mulher comeu o animal inteiro, desde a carne
nobre até os órgãos comumente descartados, em tempo
assombroso. À noite, no leito nupcial, o rei reparou
que a barriga da esposa crescera. Antes de cair no sono, a
mulher sussurrou:
— Amanhã, preciso que me traga a carne do animal
mais feroz do mundo.
Mesmo hesitante, o rei reuniu seus homens novamente
e desceu a montanha em direção à floresta, de onde
retornou, ao final do dia, trazendo um grande urso, de
garras enormes e dentes afiados. Mais uma vez, a carne
do animal foi ricamente preparada e servida, no jantar, à
rainha — que devorou a refeição em tempo ainda menor.
21
Ao deitar-se outra vez no leito nupcial, a mulher tinha a
barriga com o dobro do tamanho, e sussurrou:
— Amanhã, preciso que me traga a carne do animal
mais poderoso do mundo.
Transtornado, o rei mal dormiu e, na manhã seguinte,
reuniu seus homens uma última vez, para, juntos, adentrarem
a floresta. Quando o sol se pôs e a noite subjugou
o dia, o grupo retornou trazendo a caçada mais farta que
já haviam feito. Trouxeram coelhos de todos os tipos; vinham
carregados em carroças peixes, aves, veados, porcos
do mato e muitos outros animais mortos, que foram
preparados e servidos num grande banquete aberto ao
povo. Os aldeões comeram e beberam até se fartarem,
mas a esposa do rei permaneceu em jejum. Depois de findado
o banquete, quando foi deitar-se com sua mulher, o
rei suava frio. Notou que não apenas a barriga dela roncava
muito, tal qual o rugido de um leão, como também
suas unhas pareciam maiores, seus olhos eram mais inquisitivos
e seus dentes estavam muito mais afiados. Estando
os dois sozinhos no quarto, ela sussurrou:
— Hoje, você não foi capaz de me trazer o que lhe pedi.
Mas vamos dar um jeito nisso; não vou passar fome esta
noite.
Em um instante, sua boca cheia de dentes abriu-se tão
grande que o rei não teve tempo de gritar; numa única
mordida, ela comeu o homem inteiro, sem deixar rastro
algum de sangue. Com passos que pesavam toneladas, ela
deitou-se no leito nupcial para dormir, satisfeita, a barriga
enorme. No quarto dia, antes mesmo que o sol raiasse,
22
o reino inteiro ouviu seus urros de dor, porque dava à luz
um filho. Ele nasceu de ombros largos e mais forte que o
pai, mas com chifres de gazela, dentes pontudos de urso
e olhos profundamente negros, como os do animal mais
poderoso do mundo.
23
Ser
Filippo Valiante Filho
Ou...
— Manifesto
Sou poeta de versos brancos,
negros e pardos
Autor de versos livres
outrora escravizados
Sou poeta de amor à humanidade
em manifesto antropofágico
Sou poeta de formas concretas
que já foram abstraídas,
Sublimando ideia e sentimento
de quem amou ou odiou a vida
Sou poeta de palavras cândidas,
que não branqueiam versos sórdidos
Sou poeta das antigas
em um mundo pós-moderno
O ser poeta filosófico
no país das cantigas
Sou poeta da verdade
em território de mentiras
24
Jardins Numéricos
David Machado
Homenagem a John Nash
Ele cultivava números. Algarismos balançavam
leves ao vento, dígitos se concatenavam
para formar números completos. Sua preferência
sempre foi a base decimal, embora gostasse da complexidade
dos hexadecimais e da singeleza dos binários,
crescendo em cadência lógica de zeros e uns. Mas a
maior parte dos números que cultivava crescia na boa e
velha base 10…
O 357 29367 -29 3221 ele cultivava com mais atenção atualmente.
Um híbrido promissor, combinação aritmética de
quatro números igualmente interessantes. Suspeitava que
fosse primo, indivisível, e isso o levava a despender mais
tempo de cálculo nele que nos demais números de seu jardim
numérico. Via seus dígitos se revelando dia após dia,
alimentados pelos seus cálculos. Havia aprendido a ser
paciente. O número surgiria com o tempo, aos poucos sua
beleza apareceria em toda completude e complexidade.
Vislumbrou os algarismos mais significativos, fatorou-os,
dissecando suas notas aromáticas. Sim! Era bem parecido
com os fatores centrais do 25783!-2 35 . Um dos números de
25
melhor aroma que cultivara até então! Seria superior em
riqueza de fatores primos? Não se realmente fosse primo,
o que seria ainda melhor!
Lógico que não eram apenas esses números gigantescos
que apreciava. Gostava dos mais simples também,
particularmente dos ímpares. Os pares possuíam um
odor adocicado que, agradável em poucas doses, se tornava
enjoativo em excesso. Apreciava a simplicidade do 2,
sua pureza de cheiro adocicado, ainda mais por ser o único
par primo! Já o número 65536 lhe causava náuseas de tão
adocicado. Multiplique a doçura do 2 por ele mesmo, 16
vezes! Além disso, uma potência de 16? O número 2 multiplicado
por ele mesmo quatro vezes? E, pior, 4, um número
também doce, vezes 2 vezes 2? Eram pares demais
para suportar, definitivamente um número que nunca faria
parte do seu jardim numérico.
Após calcular o 357 29367 -29 3221 por algum tempo, interrompeu-se
e começou a calcular outros números em
desenvolvimento no seu jardim. Não era justo gastar
tempo de cálculo demais com esse, mesmo estando claro
que era seu predileto. Os números eram ciumentos,
especialmente os primos ou os que apresentavam características
muito fortes de sê-los. E havia razão para isto:
eram mesmo especiais! Aroma forte, indivisível! Impossível
dissecá-los em notas mais simples. Grande parte
dos números que ele cultivava eram primos, mas havia
poucos outros interessantes, alguns até mesmo pares,
que fazia questão de manter em seu jardim por outros
motivos…
26
Apesar de ser o método mais importante, fatorar as
notas aromáticas de um número não é a única maneira de
apreciá-lo. Sequências numéricas cuja soma reproduz os
próprios números da sequência concatenados em ordem
crescente: como não admirar esse tipo de coisa? O problema
é que, além de raros, exigiam mais tempo de cálculo
para se desenvolverem que os demais, como trevos
de quatro folhas exigindo ser regados por litros de água
para crescerem viçosos! Não valia a pena procurá-los,
mas quando se deparava com essas raridades por acaso a
surpresa sempre lhe era agradável.
Palíndromos o interessavam particularmente! Bom,
um palíndromo qualquer é algo fácil de se conseguir: tome
qualquer número do jardim, concatene-o com seu reverso
e eis aí um palíndromo! O que ele buscava eram palíndromos
com características especiais. Palíndromos primos,
por exemplo. O 101 era seu xodó, primeiro representante
dessa família — obviamente, desconsiderando os primos
de um dígito, palíndromos evidentes: 2, 3, 5 e 7. O 11 é simples
demais, não conta. E todos os outros palíndromos de
dois dígitos são divisíveis por 11, por motivos óbvios… Mas
o 101!!! Esse número tinha um lugar especial! Mas o que
dizer então do 1.111.111.111.111.111.111 em representação decimal?
Palíndromo, primo e formado apenas de dígitos 1.
Como não apreciar a beleza desse número imponente em
seu jardim?
Começa a entrar na parte dos números triangulares
de seu jardim quando vê ao longe os dois odiosos homens
de avental branco:
27
— Nash, é hora de tomar seu remédio!
Bem agora que distribuiria tempo de cálculo a seus
números piramidais? A fragrância incomparável de dízimas
periódicas binárias com representação exata em
sistema decimal impregnava suas narinas enquanto engolia
as pílulas amarelas das mãos dos enfermeiros. Não
adiantava mais só fingir e cuspir depois, os enfermeiros já
conheciam esse seu truque.
— Que caderno é este que ele está… – Nash berra insano
quando o enfermeiro novato tenta puxar suas anotações,
preenchidas com infindáveis sequências de dígitos.
— Calma aí, novato! Não precisa tirar isso dele, é inofensivo!
— O que é?
— Ele diz que é seu “jardim”. Vai entender esses malucos…
Nash abraça com força seu jardim numérico contra
o peito.
— Quem era esse infeliz?
— Respeito, novato! Qualquer um está sujeito a isso.
Dizem que, quando são, era um matemático brilhante!
Ninguém sabe ainda como esse tipo de distúrbio começa…
As pílulas começam a fazer efeito. Nash até já começava
a apreciar esses momentos, colocavam-no em contato
mais direto com seu mundo de números. Nesses momentos
ele podia, além de sentir o cheiro, também tocar e
ver as cores dos números que cultivava tão zelosamente!
Abriu seu jardim na página do 357 29367 -29 3221 … Que pena!
Estava claro agora que não tinha nem a cor nem a textura
28
de um número primo. Mas parecia ter outras características
inéditas, ainda valia a pena regá-lo com mais tempo
de cálculo para ver como se desenvolveria.
— Para mim, qualquer um que goste de matemática
definitivamente não pode mesmo ser normal…
Fecham a porta do quarto de John Nash, abandonado
em seus delírios. Senta-se na cama, a página de seu jardim
aberto no 1.111.111.111.111.111.111… Que belo primo!!!
Que aroma, que simetria… E que cores impressionantes
tinham seus milhares!!!
FIM
29
A Balada do Beija-Flor
Isabella Oricolli
O beija-flor que me beijou dois dias atrás num jazz
Me olhou, sorriu, plantou saudade em mim e partiu
E fez de meu corpo orquestra quando me despiu
Me deixou uma água de cheiro e um perfume doce
Quando seu crespo macio em meu travesseiro deitou
Só queria de novo esse teu toque intenso e ligeiro
Nossas mãos enlaçadas, risadas e afeto durante um dia
[inteiro
Querida, você não tem noção do bem que você me faz
O peito arrepia com a ternura que tua alma me traz
Tua dança, tua arte, tua beleza sem vaidade
Complexa e bela na pura simplicidade
Devidamente coroada, é como Nefertiti em seus brincos
[e anéis
Porque foi desenhada em aquarela nos mais delicados
[pincéis
Teus olhos de estrelas me provocam e me causam
[admiração
Já que você não brilha, é a própria constelação
O raiar da luz da lua refletindo sob tua pele escura
Me leva à loucura, me tira do sério, me faz suspirar
30
Quando me olha nos olhos pra desvendar o meu mistério
Com a doçura e carinho de quem sabe o jeito de se achegar
E, ah, impossível é não fazer dela a musa da minha poesia
Se eu entrei na valsa dessa menina “facinho, facim”
Meio passarinho, meio felina…
Será possível existir um ser assim?
E eu que seguia meio sem rumo, feito andarilho
[caminhando
Me peguei em seus caminhos, porque ela já chegou
[gostando
Nem pergunto. Só vou acompanhando…
Sinto gratidão por tudo que vou recebendo
E fico em êxtase só em te olhar vivendo: andando por aí
Sem complicação, dançando e sorrindo
Nem sei do futuro, remotamente falando
Só sei que quando chegou,
Meu mundo certamente ficou mais lindo…
31
Me Disseram que os Poetas
Sangram Poesia
Giovanna Mendonça
Faz um tempo que eu não escrevo. Não escrevo com
alma-coração, com café na mão e os pés no chão. Dizem
que tudo que um poeta faz é sangrar poesia. E,
meu bem, eu acredito que minha poesia é triste e vazia.
Toda vez que sangro é quando meu coração se parte com
tanta intensidade que me sinto estilhaçada demais para
pedir socorro. Quando escrevo, é porque minhas lágrimas
não conseguem mais carregar o peso dos meus sentimentos
confusos e,
acima disso tudo,
quando escrevo,
é quando me sinto viva.
Faz um tempo que eu não escrevo.
32
Meu Único e Grande Medo
Robert Alcantara
Tenho medo de abortar
sem antes ter realizado
meus sonhos e objetivos.
Tenho medo de ir embora
sem antes ter liberado o que
tenho aprisionado no peito.
Tenho medo de definhar
sem antes dizer tudo que sempre quis,
mas nunca tive coragem.
Tenho medo de sucumbir
sem antes ter sido a razão
de alguém sorrir.
33
Tenho medo de me apagar
sem antes ter superado o meu
medo de amar e ser amado.
Tenho medo de partir
sem antes me despedir das pessoas
que mais amo neste mundo.
Eu não tenho medo de morrer,
tenho medo é de viver sem ter vivido,
de, em meio à vastidão deste universo,
apenas ter existido.
34
Agora Inês É Morta
João Ribeiro Neto
Quando entro no cômodo, a primeira cena que meus
olhos percebem são as paredes brancas, manchadas
pelo sol e marcadas pelo falso luto que emana de cada
indivíduo aqui presente. Todos, como se espera, estão vestidos
de preto, realçando a atmosfera densa e obscura que
circunda o acontecimento que trouxe todos aqui. Primeiro,
passo os olhos por aqueles que estão no fundo do salão,
distantes do caixão localizado do outro lado do cômodo,
pois não eram muito próximos do velado, apesar de sempre
estarem dispostos a ouvir boatos acerca dele, além de
não perderem um segundo sequer para tecer comentários.
Essas pessoas vieram apenas
para mostrar presença aos parentes,
pois não dão a mínima para o
corpo que já não respira, já não ri,
já não sonha. Talvez estejam procurando
um novo alvo para seus
comentários, alguém que sirva
para alimentar sua vazia existência,
a qual gira em torno de espa-
35
lhar mentiras. Não sei se “vazia” é o termo correto para se
referir à vida dessas pessoas, mas não consigo pensar em
algo melhor para definir seres que não estenderam a mão
a alguém que claramente precisava de ajuda.
Dou um passo adiante e estou mais próximo de amigos
e familiares. De certa distância, vejo meus amigos,
todos unidos, de mão dadas, consolando uns aos outros,
ao mesmo tempo que não conseguem digerir o que está
acontecendo. Eles não querem acreditar que este dia chegou.
Sempre foram tão carinhosos, amorosos e acolhedores
que não mereciam estar passando por isso, despedindo-se
de um amigo. Lembro-me de todos os dias que
estive triste, devastado e foram eles que atenderam o celular
para me consolar, foram eles que abriram mão de uma
parte de seu dia para me acolher e ajudar. Foram eles que
não atiraram pedras enquanto todos faziam o contrário.
Como eu poderia não ter um sentimento tão forte por eles,
que sempre me ajudaram?
Mas quando olho para meus parentes, vejo o olhar de
reprovação sobre meus amigos. Um olhar que condena,
que os transforma em indivíduos inferiores. Eu conheço
esse olhar. Fico estudando o comportamento dos parentes
e não consigo deixar de me perguntar como eles conseguem
chorar sobre algo que sempre desejaram, que sempre
tiveram vontade de fazer.
Vejo meu pai chorando, como se tivesse perdido uma
parte de seu mundo. A ironia disso é que ele sempre bateu
nessa parte do mundo, a expulsou de casa, sempre reprovou
tudo que ela conseguia, sempre a rebaixava. Fico
36
me perguntando como ele chora pela perda de alguém
que sempre fez questão de mostrar que não queria em sua
vida. A mãe age quase por mímica, chorando pela perda
de seu alvo diário de humilhações, ações e palavras. Como
essas pessoas choram por alguém que nunca trataram
com mínimo respeito? Os tios, os primos, os mesmos que
sempre olharam com nojo e repulsa, os que sempre fizeram
piadas e brincadeiras. Pessoas que compartilham
sangue e a falta de empatia estão todas aqui unidas.
Talvez seja isso, talvez estejam chorando pelo fato
de um jovem de 17 anos ter perdido a vida. Talvez eles o
amassem e esse era o modo que eles encontraram de expressar
seus sentimentos. Mas eu não acredito que o amor
seja tão doloroso assim. Ou, talvez, estejam chorando por
puro peso na consciência de terem agredido uma pessoa
durante tanto tempo e de agora a verem morta diante de
seus olhos.
A parte mais dolorosa de tudo isso é que tudo que o
velado ouviu durante a agressão de dois homofóbicos —
que se sentiram no direito de agredir e matar um garoto
— ele já tinha ouvido antes de todos os parentes aqui presentes.
Todas as frases de ódio, todas as piadas, os olhares
de desgosto, de reprovação, as atitudes odiosas, a exclusão,
a violência silenciosa. Um riso irônico surge em meu
rosto quando penso que talvez eles estejam tentando diluir
tudo isso com suas lágrimas falsas.
Dou um passo em direção ao caixão e finalmente vejo
o motivo pelo qual estou aqui. Vejo um jovem com a alma
destruída depois de tantos anos de violência, com perso-
37
nalidade e sonhos reprimidos. Um corpo cansado de tantos
olhares hostis, cortantes. Eu sabia que esse dia chegaria.
Todos aqui presentes sabiam que esse dia chegaria. A
maioria aqui desejava ter feito isso, cegados por um ódio
irracional, queriam destruir um indivíduo que desafia a
vida vazia que todos levavam. Mas eles fizeram um bom
trabalho em organizar este funeral, se arrumaram, organizaram
e compraram arranjos bonitos. Até escolheram
uma foto em que estou bonito, me vestiram com um terno
que combina com a coroa de flores ao meu redor.
Queria dizer a todos os enlutados aqui que já não
adianta chorar, agora que suas preces e desejos já foram
atendidos. Já estou morto.
38
muros e molduras
Mariana Fleischner
segunda-feira em casa
sem pé na areia;
ruas vazias,
cabeça cheia.
dia lindo,
verão na janela;
mundo feio,
barulho de panela.
carro sem volante,
país desgovernado;
parede angustiante,
abraço adiado.
cotidiano interrompido.
de certo, a incerteza;
mesmas coisas,
nunca mais as mesmas.
39
Tired as I Am
Clara Maas
My mother always held a praise for us, a glimmer of
pride in her eyes that, from our grades to our childhood
mischief, was little but justified. Perhaps it
was because she hoped we would become something
different, better than she ever was able to.
I knew she had built plans for us, as all parents do.
Greater dreams so that at least in her mind we would
always be far far away from here, from this house. The
same house that chewed her up all those years, with heavy
mold velvet walls and stained carpeting that refused to
be washed off, no matter how much she would scrub until
her hands were raw. So I prayed, cried and worked my
hardest to climb my way out of that ceiling, but whenever
I tried to stand on my own, I swear that the same ceiling
would come crashing down on top of me, as if the house
40
itself was forcing its weight onto my body, just like it had
done to hers before.
But as I grew up, I started to read something different
in her eyes. That glimmer of hope had now slowly shifted
into more of sympathy, or perhaps mercy. She recognized
on our slumped shoulders the same weight that she
had been forced to carry so many years before. From her
fragile body, carrying many more inside of herself, or a
weighted loved hand, whose finger marks never seemed
to vanish completely from her cheeks.
I wasn’t frightened by that look. That melancholic caress
from which my other siblings would shy away from.
But at the pit of my stomach grew a stillness I couldn’t contain,
almost as the desire to hold my breath for as long as I
could when, at night, she came to rest beside me. But there
in the dark, that mercy began to take the recoiled shape of
that harmless care. I couldn’t quite understand her words,
but the unsettling feeling only grew from the little I could
grasp. We were “too many” and the house was “suffocating”,
but, mostly, she was “so exhausted”. I was never so
scared of a word as I was then. And I shouldn’t have been
surprised at all, after the events that followed.
I asked my siblings, once or twice, if they recalled
something similar at all. They would always deny it. Mother
wasn’t really talkative, even less so with us. So if she
had ever given signs that she would do what she’d done to
them, they would’ve remembered.
So perhaps I was the only one she whispered to. And
perhaps it wasn’t a sign or a cry for help, but an invitation.
41
An invitation that would start with the same words which
I now come to put together after many nights have finally
passed. Because back then, when mommy would lie with
me, she would ask, just to be sure:
— Are you as tired as I am?
42
Como Vou Dizer que te Amo?
Leticia Facchini
Poeta não te elogia,
ele te recita um verso
daqueles viciados em boca a boca
trocados e alterados pra cada persona.
Poeta não te admira,
ele constrói estrofes
com curvas que te desenham
com palavras, que dão voltas
e enlaçam, enfeitiçam até você se apaixonar.
Poeta não mente,
ele enfeita a verdade para rimar,
usando da beleza montada para transformar
fatos inalterados em fantasias verossímeis.
43
Poeta não é corajoso,
ele se esconde atrás de uma tela,
lapidando palavras até ficarem pontiagudas,
furando o ouvido do primeiro que atingir,
fazendo chorar, rir ou emocionar,
mas nunca vendo o estrago de sua arma engatilhada.
Poeta não vai te amar,
ele vai mergulhar fundo para se afogar,
ele vai procurar a frase perfeita para te dar,
ele vai pensar-te em todo livro lido,
ele não vai te dizer: eu te amo.
Ele te escreverá (esta) poesia.
44
Temos Todo o Tempo do Mundo
Ana Luiza Ramos de Luna
Meu momento de fraqueza, o único que me permito
ter, não é quando estou prestes a dormir, enrolada
nas cobertas e chorando no travesseiro. Também
não é durante o banho, quando as lágrimas se perdem no
meio dos pingos do chuveiro e não escuto nada além da
água caindo. Eles já foram um dia. Meu momento mais
frágil é no meio da tarde, quando estou no trabalho.
Eu odeio meu trabalho. Faz quatro
anos que trabalho para a mesma firma
de advocacia e, apesar do salário
ser razoável, é simplesmente
um inferno. O pior de tudo é que
eu mesma atirei no meu próprio
pé. Eu escolhi a faculdade. Encontrei
a vaga disponível de estágio e
me candidatei. E, então, quando meu
chefe ofereceu uma posição definitiva na
equipe, eu não recusei. Por quê? Sinceramente, sinto
que fazer essa pergunta agora é inútil. Já se passaram
anos, afinal.
45
O trabalho é exaustivo e sempre sobra uma pilha de
pastas em cima da minha mesa, não importa o quanto eu
tente adiantar as coisas. Sei que isso também acontece
porque o sobrinho do dono não cumpre o que deveria fazer,
mas não posso reclamar. Eu não sou a única, e todos
sabem disso. Então os casos se acumulam e preciso tentar
controlar tudo numa agenda lotada para não perder nenhum
prazo apertado. Algumas vezes, cinco ao todo até
agora, meu sistema falha, e sou chamada na sala do meu
supervisor. Nunca é algo grave, mas fico queimada na empresa
por alguns meses, o que não contribui para que eu
passe a gostar do que faço.
Apesar de viver trabalhando, ainda há um certo
equilíbrio na minha vida social. Becca, Vera, Hugo, Nora
e Gabriel. Meu círculo de amigos, que se manteve desde
o penúltimo ano da faculdade. Marcamos de nos reunir
uma vez a cada duas semanas e conversamos bastante durante
a semana, quando estamos livres à noite. Eles são a
única coisa boa que eu tenho atualmente.
Assim, meu momento de fraqueza é no meio da tarde.
Quando estou parada em frente ao computador, resolvendo
a décima quarta papelada do dia, e me levanto para ir
ao banheiro depois que o café acaba. Nessa hora, tranco a
porta e me encaro no espelho. É nesse momento, quando
sei que ainda tenho muita coisa para fazer e não posso ir
embora e ficar com meus amigos, em que me sinto cansada
e sozinha e covarde, que eu desabo por alguns minutos.
Fui covarde por me manter no mesmo curso após descobrir
que não era o que eu queria, apenas porque eu não
46
tinha certeza e não queria decepcionar ninguém.
Fui covarde ao aceitar um emprego que nunca
me trouxe satisfação, apenas cansaço.
Fui idiota, ponto final. E, mesmo agora,
quando vejo isso cinco dias por semana
naquele reflexo no espelho do banheiro,
continuo sendo covarde por ter medo de
mudar as coisas e ficar sem rumo.
Sei que eu devia destrancar a porta, sair do banheiro
e ir para a minha mesa. Então, juntar todas as minhas
coisas, desligar o computador e pedir demissão. Consigo
imaginar como seria. Eu deixaria a caneca de café vazia
na pia da cozinha, largaria todas as pastas na mesa daquele
incompetente e entregaria meu cartão de acesso
para o guarda da portaria enquanto estivesse saindo pela
porta da frente para nunca mais voltar. Seria incrível. Eu
ligaria na mesma hora para Nora e reuniria o pessoal para
comemorar. Talvez eu faça isso. Talvez não hoje, talvez
amanhã, ou, então, quando a semana acabar. Talvez eu esteja
apenas inventando desculpas mais uma vez e precise
tomar uma atitude ou me conformar de vez. Talvez hoje.
Saio do banheiro e olho para o relógio em cima da
porta da sala da frente. Ainda são 15h40. Eu ainda tenho
tempo. Não é tarde demais.
47
Seca Vida
Bia Naiara
Às vezes, me sinto como Fabiano, como um bicho, não
como um homem. Às vezes, me sinto como Fabiano,
gritando calado todas as dores do mundo, as palavras
que me pertencem esgueirando-se por entre as entranhas
em protesto, recusando-se a saírem pela boca. Às
vezes, me sinto como Fabiano, sendo espancado, vivendo
da raiva, mas me calando na hora da revolta. Às vezes, me
sinto como Fabiano, desfrutando o sangue seco, estancado,
andando descalço sobre o chão batido de terra rachada,
tirando pedra sobre pedra de onde nada jaz. Às vezes,
me sinto como Fabiano, matando aos poucos quem me deu
lealdade para aliviar o meu sofrimento. Às vezes, me sinto
como Fabiano, travando uma batalha injusta contra meu
próprio eu. Às vezes, me sinto como Fabiano, me partindo
para estar, ao mesmo tempo, em ambos os lados.
Às vezes, me sinto como Fabiano,
Mas só às vezes.
48
Penso, logo...
Isabelle Moura
Penso, logo… Tenho crise de ansiedade.
Choro, sofro, quase destruo minhas amizades;
já penso em trancar a faculdade.
Logo, quero mudar de cidade.
Pensar está sendo a ruína de meus dias;
não porque o ato em si de pensar seja ruim. Jamais!
Muito pelo contrário, pensar é uma grande dádiva que temos,
mas pensar demais…
Pensar demais me faz mal.
Penso antes de falar, antes de uma refeição,
antes de andar.
Se bobear, até entre cada respiração.
Penso antes de dormir ou enquanto estou sonhando,
penso se amanhã ainda vou estar aqui
ou se vou falhar, simplesmente desmoronando.
49
Penso sobre tudo, mas não chego à conclusão de nada.
Pensar sempre me fez sentir livre,
mas, ultimamente, só me deixa sufocada.
Pensar demais é cansativo, é chato e me faz ter diversos
[surtos mentais.
Mas, ao mesmo tempo, não me deixa vulnerável,
como se fosse a única coisa que me fizesse ser capaz.
Saudades de quando pensar era sinônimo de apenas sorrir,
de quando pensar só me fazia refletir e até me divertir,
de quando conseguia somente sonhar antes de dormir,
de quando me fazia apenas… EXISTIR!
Mas, hoje, pensar me causa palpitação.
Daquelas que machuca a cabeça, aperta forte o coração,
que me faz perder o sono, tira-me da minha dimensão.
Pensar, que antes era minha cura,
minha liberdade e salvação de saúde mental.
Pensar, que agora é quase como uma condenação:
o cadeado sem chave da minha própria prisão pessoal.
50
Vesuvius
Julia Martiniana
Aos 12 anos de idade, fui pela primeira vez ao dermatologista.
Espinhas, dezenas delas. Hormônios, coisa
da idade. Ele (ou ela) me receitou um ácido: use todo
dia e não saia no sol sem protetor, senão vai manchar sua pele. Religiosamente,
eu passava aquele creme no meu rosto todas
as noites (ou manhãs). Religiosamente, quase como uma
prece disfarçada de penitência, minhas narinas queimavam
e meus olhos ardiam com a acidez. Com o tempo, as
espinhas foram desaparecendo.
Com mais tempo, elas voltaram. Dessa vez, não foram
só os hormônios: estresse, alimentação, maus hábitos
trazidos pela adolescência. A segunda visita ao dermatologista
nunca chegou; não valia a pena quebrar o monopólio
exclusivo de acidez que minha boca e meu estômago
tinham. Ambiente hostil, ph baixíssimo. Chance zero de
sobrevivência de qualquer coisa que merecesse a classificação
de vivo e respirando.
Além do mais, o grande problema das espinhas nunca
foram as espinhas, mas sempre as mãos. Mais especificamente,
os dedos. Quando eu menos esperava, lá estavam
51
eles, munidos de unhas longas, apertando todo e qualquer
ponto saliente do meu rosto. A tradição, milenar, entre o
meu tipo, de perturbar partes em perpétua inércia. Não
importavam as consequências, os pedaços de queratina e
carne estavam prontos para apertarem cada um dos pequenos
vulcões até que entrassem em erupção em umalava
branca, densa e gordurosa.
O ritual se seguia todas as noites após o banho, em
frente ao espelho embaçado do banheiro.
Primeiro: a tarefa de usar o doloroso (e detalhado) conhecimento do
próprio rosto para mapear as Rochosas.
Segundo: usar a habilidade de observação, impulsionada por nada
menos que obsessão, para escolher as mais fáceis de se estourar, em ordem:
as penhascais, ávidas pela superfície, antes; depois, especialmente
nos dias ruins, as tartáricas, confortadas no epitélio.
Terceiro: progressivamente, de maneira masoquista e automutiladora,
apertar os milímetros quadrados de pele em volta da massa leitosa
e observar a erupção. Depreender força bruta, se necessário.
O prazer durava alguns segundos na história, ínfimos
se comparados às consequências negativas de tal
missa. Há, obviamente, a dor do aperto no momento da
erupção; ela aumentava à medida que a timidez da espinha
era maior. Com a prática, essa dor tornou-se insignificante
perto do prazer martírico.
O após era, como se podia esperar, a pior parte. O imediato
contato da ferida aberta com o ar era paralisante.
A pequena quantidade de sangue misturada com suor dava
uma sensação inebriante de sujeira. E, como ato final da
ópera, havia as marcas. Escuras, dois tons acima da mi-
52
nha pele. Ressecadas. Inconstantes. Não dava para saber
por quanto tempo permaneceriam, algumas nunca saíram.
Grudaram-se para sempre no tom arenoso da minha epiderme
(essa palavra aqui, pura herança de Kilkerry).
Porém, nada disso me importava. Nem a dor, nem o
sangue, nem a mancha. Nada era comparável ao esforço
de mártir, à força de santo sacrificado, para me perturbar
o corpo. Nem mesmo o fracasso ao expulsar o ponto
branco da pele me detinha: 15 minutos depois, lá estavam
de novo os indicadores esquerdo e direito prontos para o
despejo. Nenhum dermatologista conseguiu me explicar
o porquê desses pequenos picos de dor serem tão satisfatórios,
mesmo sendo microagressões autoinfligidas. Tive
medo de perguntar à psicologia.
Tenho alguns palpites. Talvez seja a concentração
empreendida na missa descrita naquele cubículo de azulejos
esverdeados, que organizava meus pensamentos em
uma única linha de raciocínio, simples e clara, sem memórias
ou premonições. Talvez seja a satisfação momentânea
da obsessão generalizada por algum objeto alvo de
toda a energia e movimento armazenados em potencial.
Talvez seja a sensação de autocontrole que a autoagressão
traz. Talvez seja uma doença.
De qualquer forma, discordo quando dizem que os
olhos são a janela da alma. A janela da alma são seus dedos
e o que eles fazem quando um Vesúvio está quase entrando
em erupção na região gordurosa entre o massette
e o bucinador.
53
Subsolo
Pedro Pimentel
A duas estações do futuro,
cruzando corpos que
não tornarei a ver.
Há poucos acasos
mais improváveis do que
rever alguém no metrô.
Ainda mais improvável
de se lembrar do rosto estranho.
Tal rosto
de jogador de pôquer
coberto por um véu
da minha própria ignorância.
54
Quem sabe,
com o dom de Virgínia,
mergulhando na cabeça dos passantes,
seria capaz de incinerar o véu.
Em meio a esta selva,
aconselhado pelo gato de Alice,
subi no primeiro trem,
sozinho e rodeado de pessoas,
cujo destino desconheço.
Cidade essa
onde seres metafísicos
são mais acessíveis
que as pessoas ao meu redor.
Buscando, assim como eu,
qualquer forma de sair do subsolo
em que se encontram.
Estaríamos perdidos se Deus
fosse tão misterioso
quanto um paulistano no metrô.
55
Jennyffer Stheffanny Pereira da Silva
A ferida, ainda aberta,
Costurada com remendo.
Dizem que o tempo cura tudo,
Mas então, o que cura o tempo?
O que foi perdido se perdeu
Sem possibilidade de regresso.
Do corte procedeu
Inviabilidade ao retrocesso.
A linha e a agulha
Cruzam-se por retalhos,
Com caminhos entrepostos
Recompondo os pedaços.
Em meio aos reparos,
Consertam-se os estilhaços
Restaurando danos causados
Por ferimentos do passado.
A cicatriz que foi deixada
Permanece externada.
Ainda que fechada,
Fica a dor que foi sentida,
Sempre ali, para ser lembrada.
56
Aquela que (Re)Nasceu
depois dos Infortúnios
Oluwa Seyi
Vinte anos de vida e os meus amanhãs não prometiam
coisa alguma. A cada dia que eu saía de casa e
enfrentava, alquebrada, os olhares de desdém e ódio,
regressava ao lar com um pedaço a menos.
Quando ainda era pequena demais para compreender,
já perdia os olhos de me ver por dentro. Me chamavam
de “sem time do jogo de bola”, “sem par da dança de
junho”, “sem dupla do trabalho bimestral”. Fiquei sem.
Quando ainda era fraca demais para me impor, já furtavam
de mim uma enorme fatia do coração. Me chamavam
de “sem convite para festa”, “sem admirador secreto”, “sem
uma gota de beleza”. Mais uma vez, fiquei sem. E quando
finalmente deixei de ser pequena e fraca, eu já estava
acostumada às cotidianas mutilações e deixava cair por
aí, quase que por vontade própria, vários fragmentos de
mim: me vi sem esteio, sem destino e até sem nome. Novamente,
fiquei sem. Mas isso nem me parecia tão ruim.
Foi um bálsamo não poder ser chamada de nada depois
57
de tanto tempo sendo, repetidas vezes, chamada de toda
e qualquer coisa.
O nome que eu carregava, escolhido pelo amor de pai
e mãe, não era hábil em me proteger da dor. Na verdade, o
som daquelas letras juntas se converteu, em algum ponto
inespecífico do caminho, em outra fonte de sofrimento.
Era aquele substantivo próprio que antecedia ou arrematava
cada ofensa, cada humilhação. Ouvir meu nome reafirmava
os tantos ferimentos fundos em minhas certezas
de também ser gente.
No início, a falta de nome me dava um tipo de medo
peculiar. E se alguma autoridade notasse minha condição
e me acusasse de má-fé? Afinal, ninguém perde o nome
no ônibus, esquece-o no bolso de uma calça. Soava como
algo demasiadamente grande para desconhecer. Por isso,
eu andava temerosa pelas ruas, tentando puxar meu nome
pela memória, querendo mantê-lo ao alcance dos dedos.
Por vezes, eu me pegava examinando meus documentos,
lendo-os em voz baixa. Até era capaz de decodificar o
nome que figurava naqueles pedaços de papel, mas a palavra
parecia não ter significado. Eu buscava decorar as letras,
anotá-las no corpo com tinta permanente, porém,
na hora de ensaiar sua pronúncia, as sílabas não
me saiam da boca, tropeçavam na língua. Meu
nome, definitivamente, já não era mais meu.
Quando ouvia aquele termo incógnito
sendo projetado em minha direção, eu me
sentia esbofeteada com força. Meu nome antigo
já conformava um sincero vazio, a invo-
58
cação desrespeitosa de um morto recente. Por causa dele,
ensaiei um luto que jamais tinha experimentado: o luto
que só a própria morte talvez provoque.
Com o passar do tempo, porém, fui me perdoando pela
falta. Percebi que, sendo ninguém, talvez eu conseguisse
ser qualquer um; estando um pouco morta, porventura eu
poderia experimentar um tipo primordial de renascimento.
A inominação me acarinhava feito uma segunda chance,
uma lufada de vento fresco neste rosto, tantas vezes descrito
como feio ou negro demais. Finalmente, tive coragem
de lavar as letras incompreensíveis da minha pele e anunciar:
“Eu já não caibo mais neste nome!”.
Aquela minha decisão inaugurou um novo tempo, de
um devir ainda lacunar. Sendo gestada no útero do mundo
— óvulo, placenta e cordão umbilical de mim mesma
—, precisei aguardar que um outro nome, mais meu do
que o antigo, enfim me encontrasse. Porém, a espera por
algo que nem deu sinais de que viria também era dolorosa
e cravejada de incertezas. E se meu nome ficasse para
sempre em suspensão, num constante quase? E se tudo
que a vida me reservava fosse o anonimato ou o retorno
irrevogável a um ventre selado?
E mesmo rodeada de dúvidas, eu esperei. Esperei contrariada,
lamentosa e colérica. Esperei aflita, desnorteada
e febril. Esperei até enquanto garantia que já não esperava
por nada. Finalmente, a espera acabou e contrações essenciais
me convidaram, insistentemente, a viver outra vez.
Recém-parida e em frente ao espelho que por tanto
tempo evitei, percebi: não era eu quem esperava por um
59
nome, era meu nome que, como um bravo, esperava por
mim. E só quando vi meu reflexo, tão bonito, pude compreender
que estava pronta para outro nome, pois também
já era outra mulher. Nasci novamente, à revelia de toda a
força que me desejou morta. Ali, num banheiro mal iluminado,
embalado pelo som de uma goteira constante, eu me
rebatizei. Daquele dia em diante, meu nome tem sido Awiti
— aquela que (re)nasceu depois dos infortúnios.
Vinte e um anos de vida e os meus amanhãs, finalmente,
prometem tudo. Quantas outras décadas eu vou
levar para me acostumar às costas leves, ao termo às mutilações?
Sei que nada pode me devolver os muitos pedaços
que os outros roubaram e danificaram, mas sei, ainda
mais, que nada pode ferir de novo minhas certezas de
também ser gente.
Hoje, já não permito que me chamem de qualquer
coisa além de Awiti, meu nome autoinfligido. E quem
pode me retorquir ou condenar? Ter paz ao morar no próprio
corpo, ao vestir o próprio nome, deveria ser a principal
lei incontestável da experiência humana. Disso eu já
não posso duvidar. Não mais.
60
Autores
Estampaio
Flavio Bastos
bastosfh@usp.br
A Balada do Beija-Flor
Isabella Oricolli da Silva
oricolli@usp.br
Oficina
Lucas Gregório
lucas.gregorio@usp.br
A vaidade de um deus
Beatriz Leal de Sousa
beatrizleals@usp.br
Vida morte poesia
Rafael Corrêa
rafasouzacorrea@usp.br
Presa e Predador
Thaís Helena Moraes
thaismoraes@usp.br
Ser ou... — Manifesto
Filippo Valiante Filho
filippo@usp.br
Jardins Numéricos
David Machado
davidmachadosf@gmail.com
Me disseram que poetas sangram
poesia
Giovanna Mendonça
gimenfer2010@usp.br
Meu único grande medo
Robert Alcantara dos Santos
robert.alcantara238@gmail.com
Agora Inês é morta
João Ribeiro Neto
joãoribeironetodoani@gmail.com
Muros e molduras
Mariana Fleischner
marifleischner@gmail.com
Tired as I am
Clara Maas
clara.maas@usp.br
61
Como vou dizer que te amo?
L. Facchini
lefacchini2002@gmail.com
Vesuvius
Julia Martiniana
juliamartiniana@hotmail.com
Temos todo o tempo do mundo
Ana Luiza Ramos de Luna
analrluna@hotmail.com
Subsolo
Pedro Pimentel
pimentel.ppt@usp.br
Seca vida
Bia Naiara
bianaiara2001@hotmail.com
Penso, logo...
Isabelle Moura
isabelle.moura@usp.br
Ponto sem nó
Jennyffer Stheffanny Pereira
da Silva
jenny.stheffanny@usp.br
Aquela que (re) nasceu depois
dos infortúnios
Oluwa Seyi
oluwaseyi@usp.br
62
Agradecimentos
Agradecemos a todos aqueles envolvidos nesta
edição da Originais Reprovados: aos autores inscritos,
aos alunos editores, à Lis Gráfica e Editora e
aos leitores, nosso muito obrigado.
Voltamos no próximo ano!
Equipe Originais Reprovados #17
Conheça as nossas edições anteriores
a revta lirária da usp
Co, Crônas e poesias
Apoio
64