Representações de uma independência
Pretendemos com essa publicação oferecer uma visão abrangente das representações visuais da jornada histórica que culminou na liberdade do Brasil e sua ruptura política em relação ao Império português. Investigando uma ampla gama de fontes iconográficas, desde pinturas e gravuras até esculturas e monumentos públicos, as autoras exploram como a iconografia da independência foi concebida, propagada e reinterpretada ao longo dos últimos dois séculos. O livro é resultado de um esforço coletivo de pesquisa e não seria possível sem a cessão das imagens pelas instituições e famílias dos artistas cujas obras aqui estão reproduzidas. Tampouco seria possível sem o financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro através do edital Retomada Cultural RJ 2.
Pretendemos com essa publicação oferecer uma visão abrangente das representações visuais da jornada histórica que culminou na liberdade do Brasil e sua ruptura política em relação ao Império português. Investigando uma ampla gama de fontes iconográficas, desde pinturas e gravuras até esculturas e monumentos públicos, as autoras exploram como a iconografia da independência foi concebida, propagada e reinterpretada ao longo dos últimos dois séculos.
O livro é resultado de um esforço coletivo de pesquisa e não seria possível sem a cessão das imagens pelas instituições e famílias dos artistas cujas obras aqui estão reproduzidas. Tampouco seria possível sem o financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro através do edital Retomada Cultural RJ 2.
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JULIA BAKER
MARINA MARTINEZ
1
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba – PR
Elaborado pelo Bibliotecário Douglas Lenon da Silva (CRB-9/1892)
B168 Baker, Julia.
Representações de uma independência / Julia Baker, Marina
Martinez. –– Rio de Janeiro: Ed. das autoras, 2023.
104 p. ; il.
Inclui bibliografias
ISBN (versão impressa): 978-65-00-70183-8
ISBN (versão digital): 978-65-00-70182-1
1. Brasil – História – Independência, 1822. 2. Iconografia -
Brasil. 3. Brasil – História – 1889-. I. Martinez, Marina. II. Título.
CDD 981.04
Os contatos para a autorização de uso de imagens
foram realizados com as instituições e responsáveis.
Todos os esforços foram empregados para os contatos.
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introdução
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período I - 1822
32
período II - 1922
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período III - 2022
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referências
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8 9
ntrodução
“Ouviram
do Ipiranga às margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante…”,
assim começa a letra do Hino Nacional Brasileiro. A letra, composta por Joaquim
Osório Duque-Estrada só foi oficializada em 1922, pelo então presidente Epitácio
Pessoa. De acordo com relatos da época 1 , as comemorações do Centenário da Independência
estavam sendo organizadas e havia urgência em definir a letra do Hino, pois o
presidente desejava que, com a primeira transmissão oficial do rádio, ele fosse um dos
primeiros sons a navegar pelas ondas da novidade que chegava ao país. Assim, no dia 6
de setembro de 1922, através de lei sancionada na Câmara e no Senado nacionais, a letra
conhecida por todos nós era estabelecida como o Hino Nacional. Os caminhos para
definir as palavras entoadas foram orquestrados pelo maestro Alberto Nepomuceno,
diretor do Instituto Nacional de Música que, desde 1909, tentava emplacar a letra por
vias oficiais e extraoficiais. Por ser uma figura influente, pediu a dois amigos, Afonso
Pena e Duque-Estrada, para ajudarem na criação e oficialização da letra. Enquanto
um se ocupava de compor a partir da métrica resgatada por Nepomuceno nas partituras,
o outro foi encarregado, devido a seu então cargo como deputado, de apresentar a
ementa de um projeto de lei prevendo a realização de um concurso para definir a letra
do Hino Nacional. A ementa foi barrada, mas o maestro Nepomuceno não desistiu
facilmente. Ao longo dos anos tentou, sem sucesso, emplacar outras medidas solicitando
um concurso para a letra. Vendo que o caminho oficial não parecia surtir efeito, buscou
como alternativa distribuir a letra por escolas e quartéis do país e, assim, o aprendizado
dos versos começou pela população. Com a urgência, em 1922, de palavras oficiais para
acompanharem a melodia, oficializar a canção já conhecida parecia uma solução mais
fácil do que abrir novo concurso para uma criação inédita.
O episódio do Hino é apenas um exemplo de como a nação brasileira e seus símbolos
foram forjados em um passado recente. Na introdução de seu livro A Invenção das Tradições,
Eric Hobsbawm detalha como as tradições que, no imaginário coletivo, parecem
milenares, surgem em pleno século XX, sejam relativas à monarquia inglesa ou a celebrações
religiosas. A partir de repetições, valores e normas acabam se entranhando na
sociedade e, assim, transformam-se em tradições. Não só o aparato da repetição é posto
em prática como, também, o uso de elementos de um passado histórico considerado
apropriado. Se voltarmos ao exemplo do Hino, a estratégia de Nepomuceno parece se
valer de ambos os pontos levantados por Hobsbawm. Não apenas o maestro garantiu a
repetição ao distribuir a letra em lugares chaves (centros de ensino civil e militar), como
se aliou a elementos históricos na criação de versos que remetem ao imaginário da cena
da declaração da Independência e dos personagens presentes em tal momento. Além
disso, valeu-se de uma melodia já criada para o Hino, buscando a partitura original feita
durante o Império pelo também maestro Francisco Manoel da Silva.
10 11
Juntamente a um hino forjado para a criação de uma identidade nacional com ares
solenes, outros símbolos precisam estar presentes para os cidadãos do país sem que haja
questionamento de sua importância. Hobsbawm elenca a bandeira e as armas (brasão)
nacionais para completar a tríade na qual o tradicionalismo nacional irá se calcificar. Sem
grandes esforços, ao pensarmos nestes três símbolos em relação ao Brasil, percebemos
como um jogo de cor parece traçar a costura entre os três. Amarelo, azul e verde permeiam
os símbolos de forma direta ou indireta. Na bandeira e no brasão é visualmente
perceptível o uso destacado das cores no Hino, mesmo não citando diretamente seus
nomes, elas estão presentes quando se entoam versos sobre a natureza, riqueza e o céu
esplendoroso da nova nação que surgia às margens do Ipiranga.
Não apenas os símbolos idealizados pelo Estado criam a narrativa da nação e de sua
história, a iconografia das artes visuais tem papel central, reforçando a identidade e a memória
coletiva. Através de obras comissionadas, concursos públicos ou diferentes formas
de mecenato, a História do Brasil foi sendo narrada em gravuras, pinturas e esculturas.
Parece lógico valer-se das imagens para criar a história da nação pois, assim como a
Igreja Católica utilizava pinturas para que seus fiéis tivessem acesso ao calvário de Cristo
ou outros ensinamentos da Bíblia, em um país que ainda se entendia enquanto espaço
independente, utilizar imagens facilitava a leitura da história, já que havia uma massa
de pessoas não alfabetizadas considerável nos séculos XIX e XX. Assim, para reforçar
personagens ou momentos históricos, artistas eram convocados ou ofereciam seu ofício,
manufaturando a narrativa que conhecemos.
Retomemos a primeira estrofe do Hino: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.
Para onde somos levados quando a ouvimos ou cantamos? A um momento bem específico
que todos aprendemos: as palavras nos levam a data de 7 de setembro de 1822, dia
em que Dom Pedro I, voltando à capital do país – na época o Rio de Janeiro – declara a
independência de Portugal. Eventos prévios e, segundo a História oficial, a chegada de
uma carta avisando dos perigos que rondavam a família real e o Brasil, levaram D. Pedro
ao ato heróico, celebrado nos versos do Hino, na efeméride da data e em representações
pictóricas do exato momento.
As imagens construídas a partir das narrativas da Independência criaram nosso imaginário
único sobre o evento. Uma escolha norteada por questões políticas e econômicas
levou a imagem do quadro Independência ou Morte (1888) de Pedro Américo a prevalecer
sobre outras criações. Não apenas a seleção da cena como dos personagens principais foram
elencados para representar a ruptura com Portugal. Escolhas precisas que privilegiaram
figuras que já estavam no poder, optando-se por apagar heróis e heroínas vinculados
às revoltas populares que antecederam o dia do grito. As imagens eram construídas a
partir de encomendas e os registros que ficaram guardados acabaram sendo os selecionados
por instituições e indivíduos de posse, que tinham meios para manter as gravuras
e pinturas produzidas. Nossa História foi sendo ficcionada através dos movimentos de
pincéis guiados pelos interesses dos governantes.
Porém, revisitar os fatos e abrir espaços para novas narrativas é um exercício e uma necessidade
cada vez mais colocada em prática por historiadores, cientistas sociais e artistas.
Na construção, a partir das artes visuais, da História do Brasil, ao longo dos últimos
anos, novas leituras da Independência ganharam espaço, assim como o retrato de fatos
que desencadearam a entrada em uma nova fase do país. Em 1922, ano comemorativo
do Centenário, percebemos um cenário mais aberto para outras representações “alémgrito”.
O protagonismo feminino ganha espaço, não apenas nas personagens, a participação
de artistas mulheres na criação de nossa história visual é ampliada. A chegada da
modernidade permite criações mais plurais, mesmo que o gênero da pintura histórica
continue prevalecendo na criação da história de nossa nação.
Um antigo provérbio africano afirma: Até que os leões inventem as suas próprias histórias,
os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça. Em meados do século XX e no
momento atual, parece que os leões conquistam mais espaço. As histórias plurais e seus
personagens, que levaram ao desfecho do 7 de setembro, parecem figurar mais nas obras
produzidas. Não apenas o desejo de contar histórias esquecidas pelo caminho, mas a possibilidade
de leituras variadas deste marco, criam matéria para que jovens e renomados
artistas produzam a nossa história. Por vezes é necessário borrar as imagens, repensar seu
papel na criação de ficções e como isso nos influencia diretamente. As possibilidades no
campo artístico permitem que as linhas se encontrem e se fundam, permitem que novas
vozes possam ecoar e apresentar personagens de outros estados, outros gêneros e racializados
que tiveram importante contribuição para que a nação brasileira pudesse existir.
Pensado na pluralidade de representações e como o campo das artes contribuiu na
criação de narrativas singulares, realizamos a pesquisa do livro com o foco em três
momentos marcantes para a Independência: 1822, 1922 e 2022. A partir das efemérides,
selecionamos obras ligadas ao 7 de setembro e eventos necessários para que deixássemos
nosso papel enquanto colônia e nos firmássemos enquanto nação independente. Como a
produção da publicação ocorreu entre final de 2022 e início de 2023, a escrita ocorreu de
maneira simultânea à realização de várias representações do evento, o que impôs limitações
à inclusão de obras produzidas.
Sem dúvida, ainda há muito espaço para criação e análise de obras, incluindo algumas
que ficaram pelo caminho de nossa pesquisa. Desejamos que nossa publicação seja mais
uma faísca na produção de pesquisa no campo das artes e sua ligação com a formação
de uma história visual do país. E que possamos ver a Independência a partir de suas
diferentes representações imagéticas, deixando de lado apenas uma imagem do príncipe
em seu cavalo à beira do Ipiranga, e a enxerguemos enquanto uma conquista das Marias,
Joanas, Joões, Felipas e demais sujeitos cujos nomes não encontramos mais lapidados em
imagens ou registros oficiais, mas que foram fundamentais para que os múltiplos gritos
da Independência ecoassem em todo o território brasileiro.
1 As informações sobre a história, datas e personagens relativos à oficialização do Hino Nacional foram coletadas
em texto produzido pela Agência do Senado. O texto foi produzido através de parceria do Jornal do Senado com
o Arquivo do Senado.
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/antes-da-versao-atual-letra-do-hino-nacional-bajulava-pedro-i/antes-da-versao-atual-letra-do-hino-nacional-bajulava-pedro-ii
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eríodo I 1822
Nono país a tornar-se independente na América Latina, ou décimo se considerarmos
todo o continente americano, a mudança de regime do Brasil deu-se de maneira peculiar.
Uma maneira bem rasa de explicar, repetida nos antigos tempos de escola, é que
não tivemos conflito, não houve revolução, nossa mudança foi pacífica, um acordo entre
cavalheiros. A ruptura não deslocou o poder das mãos da elite atuante, na verdade a
Independência garantiu a manutenção das regalias da monarquia e de seu séquito. Não
cedendo às pressões de Portugal, a família Bragança poderia seguir comandando uma
terra rica em recursos naturais e explorá-los sem precisar compartilhar seus lucros com o
além-mar. Parafraseando uma música popular do final da década de 1990: E o motivo todo
mundo já conhece / É que o de cima sobe e o de baixo desce. No século XIX, tais versos podiam
ser aplicados com igual verdade. A elite mantinha-se no poder, o recém-formado povo
brasileiro continuava em situação exploratória e muitos seguiam sendo escravizados. Ao
trazermos a equivalência de independência com liberdade, percebemos como a mudança
não parece representar realmente o que anunciava. A estrutura social interna não sofreu
grandes alterações, a população não passou a ter voz ativa, o tráfico humano permaneceu,
a condição das mulheres não foi melhorada, afinal, Independência para quem?
Mesmo sem grandes mudanças sociais, o 7 de setembro tornou-se um marco e, a partir
da data, novas tradições precisavam ser inventadas para que fosse possível contar a
história do nascimento da nação. Em seu texto A Invenção das Tradições (1984), Eric
Hobsbawm aponta que rápidas transformações acabam por fragilizar as antigas tradições
junto com as instituições e sujeitos que as promoviam. Quando não há possibilidade de
flexibilidade ou adaptação, surge a necessidade de novos ritos, e novas tradições precisam
nascer. No momento em que o Brasil se torna um país soberano, novos costumes precisam
ser criados para fortalecer a identidade de uma pátria. Surge espaço para construções
simbólicas como a bandeira, o brasão e o hino nacional, e também a necessidade de
datas comemorativas aparece. Com isso, valorizar o dia da Independência, da coroação
ou da aclamação do Imperador tornam-se necessidades para que o mito fundador da
nação possa ser reforçado e repetido infinitamente ao longo dos séculos.
As décadas seguintes à proclamação da Independência foram marcadas pelo progressivo
fortalecimento do 7 de setembro enquanto evento fundador da história da nação livre.
Como sabemos, a Independência, assim como a maior parte dos marcos políticos, não
devem ser entendidos como um evento único. Ao contrário, são diversas as interpretações
que entendem a Independência como um processo dinâmico que contou com
contribuições de vários agentes e para o qual concorreram razões de ordem econômica,
social e política, não limitadas ao contexto local. Porém, no período logo em seguida ao
ano de 1822, a escolha por eventos oficiais fortaleceu a ideia de um momento único e
decisivo, com um apagamento consciente de revoltas e personagens populares. No século
XIX, havia a necessidade de reforçar apenas uma versão, criar um conto oficial de surgimento
e focar na imagem de D. Pedro como principal personagem da Independência.
Tomas Perez Vejo em seu artigo “La Pintura de Historia y la Invención de las Naciones”
(1999) afirma que os costumes e mitos só adquirem poder quando são repetidos e difundidos.
Para reforçar a ideia do 7 de setembro e da importância de D. Pedro na formação
da nação, sua imagem e feitos deveriam ser repetidos para a população até que o mito, a
tradição, não deixassem dúvida. Nos tornamos nação a partir do grito no Ipiranga. Nos
tornamos nação devido ao heroísmo do jovem príncipe. Em textos e imagens, o mito de criação
era reforçado, a representação de D. Pedro ganhava uma iconografia singular: de um príncipe
ativo e militar. Em seu texto, Vejo afirma que o conceito de nação é um assunto de estética. As
imagens criam a ideia da nação e, no caso do Brasil, a produção a partir da pintura de gênero
histórico reforçou a fábula escolhida como oficial. A encomenda de obras junto a pintores voltados
a tal gênero e a instalação de obras públicas em homenagem a história do Brasil fortaleceram
a narrativa do 7 de setembro e de seus personagens. Nas obras analisadas no Período I é
nítida a predominância de D. Pedro I nas representações. Sua imagem era reforçada não apenas
para torná-lo herói da Independência, mas para construir, junto à população brasileira, uma
gratidão e respeito pelo primeiro imperador. Criar a imagem de salvador do país das mãos de um
algoz ajudava a fortalecer seu poder político e seu capital simbólico como sujeito a favor do povo.
O conceito de povo, principalmente no momento de formação de uma nação, pode ser difícil
de delimitar. O jurista Friedrich Müller faz uma análise de três modos em que a palavra povo
pode ser aplicada na prática. O povo ativo são os sujeitos de dominação, que atuam ativamente
no país, no caso de uma República presidencialista, e exercem sua cidadania através do voto,
por exemplo. Seriam excluídos os estrangeiros, algo que o próprio Müller considera complexo
já que esses sujeitos estão exercendo um papel na sociedade. O segundo modo é o povo como
instância global de atribuição de legitimidade, aqui incluindo os estrangeiros, assim como os
sujeitos que, por alguma questão, não podem votar ativamente. Por fim, o povo como destinatário
das prestações civilizatórias do Estado que inclui todos que se encontram no seu território;
estrangeiros, expatriados e detentores da nacionalidade do país. Müller pensa nessas possibilidades
de povo a partir de uma referencial democrático, mas podemos transpô-lo para o momento
da formação do Brasil para uma breve análise do que seria o começo do povo brasileiro e
de como se dá a sua participação, bem como a representação iconográfica da Independência. A
começar, o voto não era uma ferramenta possível, mesmo com o rompimento com Portugal, o
direito de escolha de governantes não passou logo para a população, continuou concentrado na
mão de poucos, e o sistema de Império seguia a tradição de passagem consanguínea de liderança.
A ideia de inclusão de todos também parecia distante, pois, como citado anteriormente, o
sistema escravista continuava a existir, retirando o direito de milhares de pessoas escravizadas
que chegavam ao país e eram extirpadas de seus direitos enquanto indivíduos. Logo, quem era
o povo brasileiro? Primeiro tratado como espectador de seu próprio destino, na representação
escolhida como emblemática do 7 de setembro, o quadro de Pedro Américo, Independência ou
Morte (1888), sua presença mal é percebida. O artista simboliza o povo através de dois trabalhadores
pontuais, que seguem assistindo a cena e exercendo seus ofícios. Quando o povo
aparece nas imagens, como na obra de François-René Moreaux, Proclamação da Independência
do Brasil (1844), suas vestimentas e feições remetem a uma realidade europeia, e não brasileira.
Sempre que a população se faz presente, acaba sendo como espectadora dos atos, celebrando ao
fundo ou criando um mar de pessoas passivas que assistem as ações heróicas de um punhado de
homens. Destacamos aqui o gênero masculino, pois, embora existam algumas representações de
mulheres atuantes nas revoltas do século XIX, a maioria dos quadros e obras criadas remetem
aos homens que permitiram a Independência. Apesar do papel crucial para a realização do ato,
Dona Leopoldina, por exemplo, não é visibilizada nesse momento histórico em nenhuma das
obras analisadas, seu nome ainda não é conectado ao momento de ruptura como uma das vozes
ativas. Retomando a questão do povo, é importante notar as ausências nas representações que
denotam um projeto popular da época: o embranquecimento da nação. Indígenas e negros não
14 15
estão dentro da massa do povo; na iconografia de Independência sua presença é praticamente
nula. Um apagamento que só será revisto no final do século seguinte e que ganha
mais destaque nas artes visuais apenas no século atual. Pensar o povo representado pelos
artistas no século XIX é trazer o conceito de povo iconizado de Müller 1 , que traduz a
ideia metafórica de povo, uma abstração ideal de como essa massa deveria ser representada
e se comportar. No recorte de imagens realizado para o Período I, o povo iconizado
é percebido na aclamação e na coroação de D. Pedro I, assim como na representação de
Moreaux do encontro do príncipe com a população após o grito de Independência. É
difícil criar a identidade nacional a partir do povo quando sua representação é uma ideia
ilusória das pessoas reais. Assim, a nação e sua identidade vão sendo forjadas na criação
dos símbolos e iconografias encomendadas pelo novo Império.
“O século XIX inventou uma história brasileira 2 ”. Jorge Coli resume em uma frase como
a iconografia criada nesse período permitiu a invenção de tradições e de uma história
oficial. Em seu livro Como estudar a Arte Brasileira do Século XIX? (2004), ele analisa a
produção das obras para a criação de verdades a partir de interpretações de fatos. Para
além de um amplo estudo do momento, vestimentas e terreno, os pintores do gênero da
pintura histórica faziam referências aos seus mestres e a obras marcantes da época. Coli
explica que a criação a partir de outras obras não era entendida como cópia ou pastiche, a
conexão entre as telas era esperada. Assim, símbolos e posturas encontradas em quadros
sobre Napoleão eram repetidos em outros líderes militares quando desenhados ou pintados,
por exemplo. A citação de outras obras simbolizava o prestígio do pintor, comprovava
seus estudos e sua ligação com seus mestres. A referência, para Coli, permite demonstrar
como elementos preexistentes podem reaparecer em outros cenários, produzindo
uma nova inter-relação. A partir de símbolos compartilhados, o imaginário de como um
líder devia ser representado vai se tornando norma na pintura histórica.
Em um trecho do livro Mulheres de Cinzas (2015), do autor Mia Couto, dois homens
dialogam sobre uma estátua que um dos homens indica ser de D. Pedro IV, e comenta
que todas as estátuas são iguais, em todas as estátuas de imperadores e reis a pose é a
mesma. O outro sujeito aponta que não é o rei representado na estátua e sim Maximiliano
I que, a partir de golpes e alianças, se tornou Imperador do México. O primeiro
homem reitera que as estátuas, assim como as narrativas imperiais são as mesmas e caso o
monumento fosse de alguém montado, a imagem do cavalo seria a mesma, independente
de quem está em cima. A história de Couto passa-se em Moçambique, nação também
colonizada por Portugal, mas o pequeno trecho descrito mostra como a referência e a
escolha dos símbolos potencializam uma iconografia de poder compartilhada entre os
artistas e países. Não precisa existir diferença, repetir a posse e até elementos das vestimentas
faz com que a representação ganhe poder e sua própria simbologia. A força que
os quadros ou monumentos adquirem é de tornar-se verdades e não mais interpretações.
Após longas décadas de questionamentos e revisões históricas, as obras começam a ser
revistas como interpretações e não como fatos históricos. Mas quando são utilizadas
em livros didáticos e como base para representação em peças ou filmes, a dissociação
da imagem com o fato torna-se difícil de ser percebida pelo senso comum. E por que
a soberania de uma única imagem? Como podemos entender a hegemonia do grito do
Ipiranga como representação visual da Independência? Disputas políticas e preferências
dentro da Academia de Belas Artes levaram a tela de Américo à sua soberania. A criação do
Museu Paulista para reforçar a importância de São Paulo no momento da Independência e o
destaque da tela na exposição permanente também contribuíram para a pintura tornar-se fato e
não interpretação da história.
Trouxemos outros momentos históricos retratados pictoricamente que foram importantes para
a Independência do país. Na busca por visibilizar minorias, a pesquisa tentou localizar a participação
de mulheres artistas na criação de tal iconografia. Infelizmente, a única obra localizada
produzida por uma mulher não pode ser incluída no livro por questões de direito de uso de
imagem. Arco Triunfal erguido na Rua Direita por ocasião da coroação de D. Pedro I como Imperador
do Brasil (1822), de Anne Pepin, é uma aquarela colorida focada mais na arquitetura do que nas
figuras históricas. Há forte presença de população, que parece esperar a chegada de D. Pedro.
Diferente dos pintores, cujas informações são de fácil acesso, encontrar informações sobre Pepin
também se mostrou desafiador em nossa pesquisa. As invisibilidades acontecem não apenas nas
obras, mas também em quem pode realizá-las, principalmente no começo do século XIX.
Em 1822 e em anos seguintes, a necessidade de inventar uma única história da formação da
nação era uma necessidade em todos os campos, inclusive o estético. As imagens produzidas
vão ao encontro do discurso reforçado por quem estava no poder e controlava os meios para
encomendar obras em larga escala e monumentos públicos. Começamos nossa análise a partir
da invenção da tradição do 7 de setembro e como, nos séculos seguintes, novas leituras das imagens
são possíveis, assim como a representação da Independência por outros caminhos.
1 Wilson Coimbra Lemke faz uma análise das obras de Américo e
Moreaux a partir do conceito de povo iconizado em seu artigo “A
Iconização do Povo Brasileiro no Brado do Ipiranga: uma análise
dos movimentos artísticos e suas interfaces com o mundo do direito”,
para a Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 5, número 3, 2019.
2
Coli, Jorge. Como estudar a Artes Brasileira no Século XIX?, São
Paulo: Editora Senac SP, 2004.
16 17
François-René Moreaux
A Proclamação da Independência, 1844
Óleo sobre tela
244 cm x 383 cm
Acervo do Museu Imperial
François-René Moreaux (Rocroi / França,
1807 – Rio de Janeiro / Brasil, 1860) destacou-se
no gênero da pintura histórica por
ter retratado diversos eventos da história do
Império brasileiro.
François-René Moreaux chega ao Brasil sem grande
alarde. Percebe que, para se firmar enquanto pintor, deve
entrar no ambiente das artes acadêmicas brasileiras e,
com as pinturas históricas, consegue se inserir no circuito
das artes. Mesmo não compartilhando, na época,
do prestígio que Pedro Américo teve em relação às representações
históricas, seus quadros seguiam à risca os
caminhos das pinturas da época, especialmente as que
retratavam momentos da História do Brasil, e servem
como uma “documentação imaginada” do período.
O quadro A Proclamação da Independência foi finalizado
em 1844, 44 anos antes de Independência ou Morte de
Pedro Américo. Apesar de tratarem do mesmo tema,
parece que Américo “venceu” a disputa da representação,
e a história oficial do grito está atrelada à imagem
de sua pintura. Até na disputa de importância de territórios,
entre Rio de Janeiro e São Paulo, o quadro teve
vantagens, pois foi encomendado para o espaço que representaria
o momento que o Brasil se torna independente,
o Museu do Ipiranga, na exata localização em
que o grito foi entoado. Já o quadro de Moreaux fixou
residência em solos fluminenses, primeiro no Museu
Histórico Nacional, na cidade do Rio de Janeiro e,
depois, no Museu Imperial, em Petrópolis, onde encontra-se.
Apesar da importância política como então
capital do país, a ideia de um monumento em tamanho
colossal como o parque e museu do Ipiranga acabam
por desviar olhares e se firmam como um espaço oficial
da História da Independência.
O momento capturado por Moreaux remete a um pósgrito,
momento em que a Independência, já declarada,
se transforma em festa, reunindo o povo brasileiro,
representantes da monarquia e militares. D. Pedro,
ao centro, ganha destaque com seu braço erguido e,
por estar na parte mais iluminada do quadro, o olhar
do espectador logo encontra sua figura. Ao dividir a
imagem com uma linha horizontal, percebemos que o
único rosto em destaque é o do governante. Na metade
inferior, em cores mais escuras, encontramos a representação
do povo brasileiro em êxtase com a nova fase
do país. Porém, a iconografia criada para representar
a nova nação em nada parece com seus reais habitantes,
e suas vestes e feições remetem aos camponeses
europeus. Tal equívoco, em que indígenas e negros são
apagados e a nova nação é europeizada para se tornar
apenas uma continuação do velho continente, não é
acidental. A separação entre raças e o entendimento
de que o europeu branco era mais civilizado e superior
aos demais sujeitos era uma prática social recorrente
na época. Se pensarmos que os zoológicos humanos
foram organizados na Europa até metade do século
XX, colocando quem era considerado primitivo e
exótico em exibição como artefatos ou animais, excluir
a representação deles enquanto cidadãos de uma nação
em formação não parece algo tão improvável para as
pinturas da época. Junte-se às referências pictóricas de
Moreaux e temos uma falsa representação da população
em seu quadro.
De acordo com Wilson Coimbra Lemke 3 , no quadro
de Moreaux o povo retratado pode ser lido enquanto
iconizado, termo cunhado pelo jurista Friedrich Müller
para explicar um povo mítico, irreal, um povo enquanto
representação da imaginação que se tem sobre ele.
Segundo Lemke, o mero fato de as pessoas do quadro
remeterem a uma população europeia – seja pela feição
ou vestes – traz a característica de iconização. Quais
eram os representantes da massa brasileira na época?
Pessoas escravizadas, tanto indígenas quanto pretos,
pessoas em condição de miséria e imigrantes europeus.
Um povo heterogêneo, não identificável pela pintura
de Moreaux. O povo da imaginação das cortes, que
era semelhante ao antigo continente e seus habitantes,
foi o retratado, pois assim podia se aproximar mais
de quem estava consumindo aquela obra na época, as
elites. Moreaux baseou-se em sua experiência, bem
como se inspirou em outros pintores para realizar sua
pintura histórica.
O uso de referências de outros quadros para a criação
de uma obra original, atualmente, pode trazer a leitura
de uma mera reprodução ou um pastiche sem qualidade.
Na forma de crítica ou, talvez, mixagem, vemos
quadros que se apropriam de imagens para refutá-las.
Porém, no século XIX, a pintura que referenciava a outras
obras mostrava sinal de erudição de seu executor,
de que o mesmo havia estudado e planejado sua obra
a partir de grandes artistas. Conforme indicam Lima,
Schwarcz e Stumpf 4 , Moreaux faz referências, na
pintura A Proclamação da Independência, à obra Entrada
de Henrique IV em Paris em 22 de Março de 1594, de
François Pascal Simon Gérard, produzida em 1817.
Conforme apontado pelos autores, a prática de citação
de outras pinturas não era incomum, porém, devido à
animosidade entre Moreaux e Araújo Porto-Alegre,
então titular da cadeira de pintura histórica na Academia
Imperial de Belas Artes (Aiba), o segundo julgou
a referência como uma cópia mal executada. Mesmo
não sendo comprado ou exaltado na época como pintura-símbolo
do momento histórico, os elementos do
quadro reforçam a imagem de como a cena histórica
se deu: um herói em seu cavalo, libertando o povo e
trazendo os ares das possibilidades à vista.
3 Lemke, Wilson Coimbra. "A iconização do povo brasileiro no
brado do Ipiranga: uma análise dos movimentos artísticos e suas
interfaces no mundo do direito” Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano
5, 2019.
4
Lima, Carlos, Schwarcz, Lilia Moritz e Stumpf, Lúcia Klück. O
Sequestro da independência - uma história da construção do mito do Sete
de Setembro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
18 19
Pedro Américo
Independência ou Morte, 1888
Óleo sobre tela
415 cm × 760 cm
Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Pedro Américo de Figueiredo e Mello
(Areia / Brasil, 1843 – Florença / Itália,
1905) produziu pinturas históricas de grande
relevância para o imaginário nacional, contribuindo
para a construção da identidade
brasileira durante o Segundo Reinado.
O quadro O Grito do Ipiranga ou Independência ou
Morte, nome pelo qual ficou mais conhecido, tornou-se
a grande representação do momento histórico ocorrido
em 7 de setembro de 1822. Tratado quase como
uma fotografia do ato, o quadro permeia o imaginário
brasileiro de como deve ter acontecido o grito, e como
D. Pedro I e seus companheiros se portaram. Graças
a sua circulação no meio das artes e sua proximidade
com figuras importantes, como Araújo Porto-Alegre,
seu sogro, Américo recebeu a encomenda para criar “A”
representação da Independência. Através de um estudo
do local, conversas e uma extensa pesquisa, o artista
fez uma obra de dimensões grandiosas, concluída em
1888, sessenta e seis anos após o evento. É inegável
analisar o período como um tempo pouco favorável
à exaltação de um monarca já que, no ano seguinte
(1889), o Brasil se tornaria uma república, distanciando-se
cada vez mais de uma estrutura imperial.
Junto ao clima político, existia um problema prático
para a exibição da obra. A construção do Museu do
Ipiranga não havia terminado e, com isso, o quadro
não encontrou seu lugar de repouso quando chegou
ao Brasil. Sua primeira exibição foi na Europa, local
de residência de Américo na época. Ainda em 1888, a
tela foi exposta na Academia Real de Belas Artes de
Florença, tendo uma boa recepção da crítica especializada.
Um ano depois chega ao Brasil e fica armazenada
em uma sala da Faculdade de Direito do Largo
de São Francisco, em São Paulo, sem receber muitos
cuidados para sua preservação. Antes de ser exibida ao
público brasileiro, a tela ainda fez mais uma viagem,
em 1893, para Chicago, onde participou da Exposição
Universal comemorativa dos 400 anos da chegada de
Cristóvão Colombo às Américas. Após dois anos, com
a inauguração do Museu Paulista (1895), Independência
ou Morte foi instalada e seguiu sua trajetória junto
à população local. Um fato curioso é que, devido ao
tamanho do quadro e das portas do Museu, seu deslocamento
se torna inviável. Durante a reforma da instituição
(2013–2022), o quadro permaneceu no Salão
Nobre, enquanto as demais pinturas foram retiradas.
No momento de sua primeira exibição, em Florença,
Américo aproveitou para elaborar um texto sobre a
pintura, explicando suas escolhas e adaptações realizadas
em prol da fidedignidade ao momento. Enquanto
pintor-historiador, queria retratar o momento mas,
na tensão entre história e arte, seu desejo pelo belo
venceu, e liberdades artísticas ligadas ao terreno, animais,
elementos cênicos e personagens foram feitas, a
começar pela distância entre o riacho e o monte onde
se encontram D. Pedro I e seus camaradas.
Américo explicou que fez uma adaptação do terreno,
aproximando os dois elementos em seu quadro para
que ambos pudessem estar presentes. O casebre ao
lado esquerdo do quadro, conhecido como Casa do
Grito, não existia em 1822. Construído como local de
descanso para os viajantes, no momento do grito ele
não fazia parte da paisagem. Os trajes de D. Pedro e
sua comitiva também se destacam na lista das licenças
poéticas. No meio de uma longa viagem entre Santos e
Rio de Janeiro, os pomposos fardos estariam em estado
mais desgastado do que os que são apresentados. Em
vez do soberano em seu cavalo, as pesquisas históricas
apontam que a mula era utilizada para longas trajetórias,
animal no qual provavelmente D. Pedro estaria
montado no momento do grito. Híbrido do burro
com o cavalo, a mula desaparece da cena por completo.
Outra ausência notável é o povo brasileiro, porém tal
representação parece se assemelhar com a realidade,
diferente das licenças poéticas apontadas aqui. Américo
escolheu representações singelas do brasileiro. Em
seu quadro domina a comitiva do futuro imperador e
nas margens, espremido nas beiradas, temos a imagem
de um trabalhador, mero espectador da ação clamando
independência. Um espectador de sua história,
pois a Independência viria em benefício desse sujeito,
trabalhador e servil à nação. É verdade que a ruptura
com Portugal, da forma como foi orquestrada pelas
elites, manteve o poder na mão de poucos e limitou,
novamente, a participação popular nas decisões de seu
território. Em distinção ao quadro de Moreaux, no
qual D. Pedro I celebra com o povo as possibilidades
de seu ato, Américo escolhe retratar o exato momento
do grito, criando uma narrativa de um único herói,
cujo ato é feito para um povo iconizado. Américo
assume em seu quadro as referências a outras pinturas
históricas 5 e, diferentemente de Moreaux, suas citações
geram mais valor simbólico à pintura.
Apesar de suas justificativas e explanação do uso da liberdade
artística para retratar o grito, a obra foi usada,
ao longo dos últimos dois séculos, como retrato fiel do
momento, seja nos livros de história, que a usam como
ilustração, ou em filmes, que replicam a cena exatamente
como no quadro. O momento histórico tornouse
sua representação imagética. Acreditamos mais na
imagem do que nos fatos, fenômeno que parece mais
comum na contemporaneidade, em que manipulação
de imagens e deep fakes são usados como provas cabais.
5 Ver Sequestro da Independência, já citado.
20 21
Jean-Baptiste Debret (Paris / França, 1768
– 1848) integrou a Missão Artística Francesa
no Brasil, tendo trabalhado como pintor e
idealizador de várias celebrações da Corte.
A construção da identidade brasileira, social e política
no século XIX passou pelas mãos de Debret. O
artista chegou ao Brasil junto à Missão Francesa em
1816, e aqui permaneceu por quinze anos, durante os
quais presenciou a mudança da colônia para o Império
e a criação de símbolos para exaltar o nacional que
começavam a ser forjados em nome da tradição. Suas
aquarelas, transformadas em gravuras pelo próprio para
o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado
em 1834, apresentam um país cuja identidade nacional
ainda estava sendo moldada. Através de suas imagens
conhecemos a visão do artista sobre os povos nativos, a
relação com o trabalho nas grandes capitais da época,
o cotidiano, os momentos festivos e as solenidades
políticas e religiosas. Segundo as palavras do próprio:
“Eu me propus a seguir, nesta obra, um plano ditado pela
lógica: o de acompanhar a ‘marcha progressiva da civilização
no Brasil’.” 6
Assim, os volumes do livro ganham ares de documento
oficial da época, em que o artista tem e não tem assinatura,
pois apenas transpõe para o papel o que vê, sem
alterar a cena. Isto faz com que as imagens acabem por
ilustrar não apenas livros de artes mas livros de história
e sejam “fotografias” de um período onde tal registro
não existia ou não era usual 7 . Valéria Piccoli 8 , em seu
texto “O Brasil na viagem pitoresca e histórica de
Debret”, nos faz compreender melhor o título “viagem
pitoresca”. Associado a livros ilustrados, a expressão
que o título carrega significa que o mesmo deveria
ser feito por e para artistas, que poderiam utilizar as
imagens como referência para suas criações. Novamente,
o papel das referências pode ser percebido como
algo aceitável e comum na época, não era visto como
plágio. Junto ao seu caráter de livro-referência, deveria
ser uma narrativa ampla da viagem, incluindo temas
variados, como vemos com os três volumes de Debret.
No volume dedicado às cerimônias oficiais e ao clero,
encontramos representações de momentos históricos
da política brasileira.
A gravura Aclamação de Dom Pedro I, Imperador do
Brasil, no Campo de Sant'Ana, Rio de Janeiro pode ser
encontrada no terceiro volume do livro. O evento
aconteceu alguns meses depois do brado da Independência,
no dia 12 de outubro de 1822. Aclamar, em seu
sentido literal, significa reconhecer ou aprovar mérito,
honra ou condição especial, afirmar; um segundo
significado é saudar, dirigir gritos ou berros a alguém.
O segundo sentido parece casar melhor com a situação.
Após gritar pela independência, agora D. Pedro
gritava pelo seu reconhecimento enquanto imperador
do Brasil. Não apenas ele, mas toda a estrutura política
da época, que pouco mudou após o rompimento com
Portugal, precisava clamar a todos os pulmões por
sua figura. Por algum motivo, acredita-se que, quanto
mais alto se fala, mais se será ouvido. Assim, quanto
mais aclamado, quanto mais visibilizada a cerimônia,
mais D. Pedro I em seu novo cargo político seria
ouvido. Debret, na gravura, não revela a cerimônia em
si, realizada em espaço limitado para poucos; ele nos
mostra o momento seguinte, quando o novo imperador
é aclamado pela massa, pelo povo brasileiro. No
balcão, ao seu lado, podemos identificar as figuras da
Imperatriz Dona Leopoldina (sua esposa e voz ativa
para a Independência e construção de seus símbolos),
José Clemente Pereira (presidente do Senado da Câmara
Municipal) e José Bonifácio de Andrada e Silva
(um dos responsáveis por orquestrar a Independência
junto a D. Pedro). De figuras femininas, só encontramos
duas: a já citada D. Leopoldina, e uma criança,
provavelmente a princesa Maria da Glória, filha do
casal de imperadores. O restante do balcão é composto
por figuras masculinas com trajes militares, ou clérigos
que exaltam a aclamação, com seus chapéus para o alto
e feições alegres. É notável a chuva de papel caindo
no lado esquerdo da imagem. Papeletes onde se pode
ler “aceito” caem sob a horda de pessoas no Campo de
Santana ou da Aclamação, nome pelo qual também é
conhecido. Aceito, o imperador torna-se o novo dirigente
da nação que começa a dar seus primeiros passos
independentes, mas também o aceito do povo, ainda
em busca de um norte para o novo momento político
do país. O quadro cria uma dupla aceitação, não apenas
do monarca, como da população, como se o povo
tivesse espaço de escuta dos seus desejos em relação
aos caminhos de dominância da nação. Entre acenos e
expressões de exaltação, o espaço do balcão parece ser
recorrente, até na atualidade, para demonstrar a relação
entre poderes políticos e a multidão. De políticos a
monarcas, de ditadores a presidentes, a sacada parece
ter um protagonismo político inegável, seja em cenas
oficiais ou em suas representações. Em uma varanda,
os argentinos evocam o imaginário de Evita Perón
zelando pelo povo. Nas solenidades do Reino Unido, a
família real sempre aparece acenando para seus súditos
das varandas do Palácio de Buckingham, e cada aceno,
cada sorriso, é analisado milimetricamente depois por
comentaristas e especialistas da realeza. No Brasil, há
uma imagem do ex-presidente Itamar Franco em um
balcão durante o carnaval, que circulou nas páginas
de jornais e revistas, questionando sua companhia
e suas vestes. Kim Jong-Un aparece inúmeras vezes
em varandas com seu gesto minimalista, mas sempre
demonstrando a força bélica da Coreia do Norte.
Sacada, balcão ou varanda, tal espaço onde os líderes se
colocam visíveis e disponíveis para o povo, parece ter
seu lugar enquanto símbolo de poder e de aproximação
(com ressalvas). Outro símbolo da nação em constru-
ção é o da futura bandeira do Império, que aparece em
destaque no quadro. Verde e amarelo serão as cores
símbolo do novo momento brasileiro.
Por último, como a população aparece na gravura?
Pouco identificável: tornam-se rostos similares em
um mar sem fim. A comemoração ordenada mostra
homens brancos e pretos unidos pela aclamação de
D. Pedro I. O povo perde sua autonomia, é apenas
uma massa passiva e fiel às mudanças daquele tempo
presente.
Jean-Baptiste Debret
Aclamação de Dom Pedro I, Imperador do Brasil,
no Campo de Sant’Ana, Rio de Janeiro, 1839
Litografia
23,2 cm x 31,2 cm
Acervo Biblioteca Nacional Digital
22 23
Jean-Baptiste Debret
Coroação de Dom Pedro I, 1828
Óleo sobre tela
380 cm x 636 cm
Acervo Palácio do Itamaray -
Ministério das Relações Exteriores.
Quase dois meses após a cerimônia de aclamação, a
coroação de D. Pedro I ocorreu no dia 1º de dezembro
de 1822. O evento deu-se na Capela Real, atual
Igreja da Antiga Sé, e foi transformado por Debret em
gravura e tela de grande dimensão. Diferentemente do
que nos acostumamos, aquarelas e gravuras de dimensões
contidas, a tela encomendada assemelha-se, em
tamanho, às imagens históricas produzidas na época
por pintores como Pedro Américo e Victor Meirelles,
para citar alguns, possuindo 380 x 636 centímetros.
Confeccionada em 1828, apresenta alguns elementos
diferentes da gravura produzida por Debret para integrar
seu livro, mas os códigos da nação estão presentes
em ambas, a começar pelo título e pela coroa colocada
na cabeça de D. Pedro I.
Anteriormente à Independência, quando o Brasil ainda
era colônia de Portugal, o cargo mais alto de comando
era o do rei, mas, no Brasil, foi escolhido o título de
Imperador para designar o líder da nação. A coroa e
o cetro já eram símbolos do reinado, contudo, quando
os reis de Portugal eram entronizados, na dinastia dos
Bragança, as representações pictóricas traziam a coroa
ao lado, nunca em cima da cabeça dos monarcas. A
razão para tal representação pode ser interpretada por
dois eventos ocorridos em Portugal. O primeiro é a
força do mito do Sebastianismo: quando o Rei Sebastião
I (1574 – 1578) desaparece durante a Batalha de
Alcácer-Quibir, no Marrocos, surge na cultura popular
a ideia do retorno do monarca, reclamando o trono e a
Coroa real. Por isso, os coroados após seu desaparecimento
apenas guardavam a coroa, na esperança de seu
retorno. O segundo motivo para a ausência da coroação
das cerimônias de entronização foi a devoção a
Nossa Senhora Conceição, que fez com que a mistura
entre Nação e religião colocasse a coroa à disposição da
Igreja. Em 1646, D. João IV colocou a sua própria coroa
na imagem de Nossa Senhora da Conceição como
agradecimento por ter recuperado a independência de
Portugal face aos espanhóis, consagrando “Seus Reinos
e Senhorios” a mesma. Desde então, Nossa Senhora da
Conceição foi elevada ao status de rainha de Portugal e
mais nenhum rei ou rainha portugueses usaram coroa.
Os dois argumentos, baseados na fé e na força da Igreja,
explicam a representação dos reis sem coroas, e por
que os mesmos realizavam cerimônias de aclamação
ao invés de chamá-las de coroação. D. Pedro I pode
ser coroado, pois não está mais salvando a coroa de
Portugal para D. Sebastião; ele pode ser coroado pois
é o primeiro Imperador do Brasil. Porém, não há uma
ruptura em relação à cerimônia e simbolismos desejados
pelo imperador. A realização em um espaço sacro
faz com que as linhas entre política e igreja continuem
misturadas, algo perceptível na tela de Debret, em que
vemos participantes ligados à política e ao clero na
cerimônia. No canto esquerdo superior da tela, percebemos
as únicas presenças femininas, D. Leopoldina
e sua filha, no balcão, observando a coroação ao longe.
As cores-símbolos escolhidas para o Império estão
presentes seja nas próprias vestes do D. Pedro, seja na
bandeira que, novamente, surge em cena. As escolhas
de Debret chamam atenção em relação ao vestuário
do imperador. Os sapatos utilizados por monarcas em
cerimônias não eram botas de montaria; tal calçado
era associado às atividades corriqueiras. A opção de
Debret serve para reforçar a imagem de D. Pedro
enquanto um rei militar, mais ativo, pronto para lutar e
tomar as rédeas do país. Voltando à questão da citação
entre os pintores, Debret buscava suas referências
pictóricas em seu professor, o francês Jacques-Louis
David, que havia feito uma pintura da coroação de
Napoleão. Similaridades, incluindo a bota de montaria,
podem ser percebidas nas duas obras, principalmente
ao retomar a ideia de um líder militar altivo. Outra
parte da indumentária de destaque é o manto, em uma
das cores adotadas pelo império, o verde-americano,
e adornado por desenhos de penas de aves brasileiras,
fazendo uma relação do Império com as terras ainda
em estado selvagem que em breve seriam civilizadas
pelo novo governante, e pelo desejo da unificação e
avanço do Império.
O quadro foi instalado na sala do trono, mas quando
D. Pedro I abdica e volta para Portugal, decide levar
símbolos de seu poder consigo, incluindo o quadro. A
tela segue, enrolada, em um navio para à Europa. Seu
retorno ao Brasil ocorreu apenas em 1972, durante
a ditadura militar. O governo Médici aproveitou a
comemoração dos 150 anos da Independência para
reforçar a imagem de D. Pedro I enquanto um militar
a favor do país. A construção usada por Debret para
exaltar as características de luta e liderança do imperador
em sua tela tornaram-se discurso, décadas depois,
de um governo que necessitava mostrar a importância
das tropas organizadas para manter a ordem no país.
6 Debret, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo
Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1989, v.2, p.13
7
Em 1926, Joseph Nicéphore Niépce, realizou a primeira fotografia.
8
Piccoli, Valéria. O Brasil na viagem pitoresca e histórica de Debret.
Encontro de História da Arte 1 (2005)
24 25
Félix-Émile Taunay (Montmorency / França
1795 – Rio de Janeiro / Brasil, 1881) integrou
a Missão Artística Francesa e é considerado
um dos fundadores do gênero da pintura de
paisagem no Brasil.
A representação da aclamação encontra nos artistas
modos de privilegiar diferentes elementos em cena.
Debret escolhe um ângulo lateral do balcão, destacando
as figuras de D. Pedro I, sua família e aliados.
Taunay nos apresenta um outro ângulo do evento. No
primeiro plano e em destaque está a representação do
povo brasileiro. Em sua gravura, o povo não é apenas
uma massa, as figuras são identificáveis e não se resumem
a corpos masculinos. Logo percebemos mulheres
e crianças comemorando nosso primeiro imperador.
Apesar dos rostos mais visíveis, é inegável que a
população ainda não possui vozes distintas, é unificada
e parece ter apenas um desejo comum: exaltar a
aclamação. Todos comemoram de maneira uniforme
a Independência, o novo regime, o líder atual. Não há
indícios de insatisfação ou protestos, há uma aceitação
geral da alteração de regime e felicidade com os novos
ventos que tal mudança parece apresentar.
Como a força de atrito não é posta nas imagens, a simbiose
entre a população e os representantes do poder
imperial é forjada na iconografia da época. O acordo
está selado e representado em pinturas ou gravuras,
que se tornam resumos históricos de fatos com apenas
uma narrativa da história escrita pelos líderes do Império,
a oficial.
Taunay tomou uma decisão ao destacar a população, ao
mostrar a aceitação do novo regime e como o mesmo
estaria a serviço de todos. São as pessoas, em destaque
na gravura, as protagonistas do momento histórico.
Podem não ter participado fisicamente do ato da
Independência, mas foi para elas que o berro foi dado,
são elas que serão os beneficiários do Império e, por
isso, a aclamação torna-se um grande momento de
comemoração.
Félix Emile Taunay
Aclamação de S. M. D. Pedro I Imperador do Brasil
no dia 12 de outubro de 1822, 1822
Água-forte aquarelada
32,9 cm x 47cm
Acervo Biblioteca Nacional Digital
Ana Flora Guimarães Murano 9 salienta dois elementos
da obra: natureza e arquitetura. No céu azul,
encoberto por nuvens que se confundem com a fumaça
26 27
dos canhões, a bonança de um novo tempo é traduzida.
As intempéries não têm vez, chuvas e trovões não
irão atrapalhar a celebração da população que começa
a criar sua própria identidade pelos símbolos forjados
ao longo do Império. Ao envolver a cena pelas nuvens,
Taunay estampa dramaticidade ao momento, marcando,
mais uma vez, a importância da aclamação para
uma jovem nação independente.
Para Murano, ao dar destaque ao edifício da aclamação,
a obra acaba por criar um contraste entre a multidão
e a arquitetura. Ao optar por uma representação da
cena em plano geral, o volume ocupado pela edificação
ganha proeminência e simboliza o poder político do
novo regime e da capital, o Rio de Janeiro. O destaque
à construção não deixa de marcar quem a ocupa, e D.
Pedro I e seus apoiadores seguem em destaque na obra,
mesmo que a distância não permita o espectador da
obra captar suas feições.
Elegemos imagens em vez de texto ou depoimentos
como representações mais legítimas da História e,
assim, quadros, gravuras, pinturas tornam-se documentos
fiéis de batalhas ou cerimônias. No caso da
aclamação, a história contada pelas imagens é a de um
momento apaziguador e feliz, no qual o aceite de todos
é traduzido na Independência pacífica realizada por
um monarca português-brasileiro. Nas imagens, não há
rebuliço, apenas nos é apresentada uma jovem nação
formada por diferentes sujeitos dispostos a trabalhar
juntos em prol da nova política imperialista.
Taunay, assim como Debret, “capta” um momento de
agitação plácida, no qual a felicidade acalma possíveis
revoltas e unifica os personagens, que agora ganham
papel de povo brasileiro. E, como manda o roteiro, a
população ganha novos símbolos para poder incorporar
à sua identidade: a bandeira, o hino e o brasão, para
citar alguns. No balcão, a bandeira se faz presente, os
militares já trajam as fardas do novo regime. Os símbolos,
sendo replicados na iconografia do século XIX,
permitem que a nova tradição seja criada e reforçada.
Johann Moritz Rugendas (Augsburg / Alemanha,
1802 – Weilheim / Alemanha, 1858)
integrou a expedição Langsdorff, iniciativa do
Império Russo, e publicou Viagem Pitoresca
através do Brasil em 1835.
Rugendas chega ao Brasil em 1822, contratado como
desenhista da missão científica coordenada pelo
alemão Georg Heinrich von Langsdorff. A expedição
reuniria imagens da fauna e flora brasileira, assim
como seus tipos sociais. Por percalços burocráticos, o
trabalho não começou no prazo inicial e Rugendas,
aguardando seu início, pode flanar pela sociedade brasileira,
estando no Rio de Janeiro no dia da coroação
de D. Pedro I. Passeando pela capital de uma nação
ainda em construção, o artista começou a produzir
desenhos e capturar momentos, com a rapidez do
grafite. Possuía o desejo da produção de um livro sobre
sua viagem, concretizado com a publicação de Viagem
Pitoresca através do Brasil. Esboçando as situações
cotidianas ou célebres, o dia 1º de dezembro de 1822
não escapou a seu olhar. Pouco meses separam a sua
chegada ao país do evento, tendo pisado em solo brasileiro
em março do mesmo ano.
Sem a pretensão de fazer uma representação oficial,
pois não era contratado pela monarquia para retratos
oficiais, Rugendas desenha a cena que se desenrola em
frente a seus olhos. Captura o momento priorizando
detalhar os sujeitos da cena, e os monumentos – edificações
e o arco do triunfo construído para a ocasião
– contam com traços mais imediatos, sem o desenho
minucioso dos detalhes da arquitetura. Personagens da
monarquia juntam-se ao clero, militares e a população
em geral, e Rugendas os diferencia por suas vestimentas
no desenho. Novamente, todos estavam unidos em prol
de uma identidade nacional que começava a se formar
a partir dos eventos daquele ano de 1822. Mesmo seguindo
a pé, e não a cavalo para elevar o ar da pompa, o
destaque para D. Pedro no desenho se dá pela centralidade
do personagem, e também pelo detalhamento
maior das suas vestes e feições, conseguimos ver o traço
das plumas em seu chapéu assim como bordados em
suas vestes.
É possível referenciar o desenho a outras obras do
período que trazem uma leitura de triunfo de governantes.
Como aponta Murano 10 , há similaridades com
o quadro Napoleão em Brandemburgo (1810) de Charles
Meynier, no qual o estadista francês cruza o Arco do
Triunfo – que, na tela, já se encontra ao fundo da imagem
– em cima de seu cavalo, sendo saudado e reverenciado
pelo povo francês. Criar conexão entre pinturas e
outros personagens históricos, prática comum na época,
comprova a erudição do artista. Observar uma imagem
repetida várias vezes nos ajuda a fixá-la na memória.
Criar as cenas a partir de referenciais existentes que
já haviam sido traduzidos como imagens oficiais, que
evocavam poder e figuras proeminentes, produzia, de
forma indireta, a legitimidade dos sujeitos retratados e
da cena. Com um olhar para o outro lado do Atlântico,
referenciar as nossas “vitórias” a partir dos “ganhos”
europeus tornava lícitos os caminhos do novo Império.
O esboço não se tornou estudo para uma tela de
grandes dimensões, nem mesmo entrou no livro de
Rugendas sobre o Brasil e, assim, ganhou a possibilidade
de ser um retrato “fiel” do evento. Produzido
apenas para registrar o momento antes que a memória
o apague ou o transforme em outro registro, Rugendas,
aqui, cria um desenho que, a grosso modo, poderia ser
transposto para a prática do registro imediato, feito no
papel e com as ferramentas disponíveis. É como um
desenho de guardanapo, sem menosprezar os desenhos
realizados em tal papel, feito na emoção do momento
que, por vezes é presenteado ao retratado, por outras
torna-se mais um papel no fundo de uma gaveta e, no
caso de Rugendas, um pedaço de uma história construída
com imagens, salvaguardado em um acervo museal.
10 Murano, Ana Flora. D. Pedro I: uma análise iconográfica. Dissertação
de mestrado em História. Campinas, IFCH Unicamp, 2013.
Johann Moritz Rugendas
Cortejo imperial, 1822
Desenho em nanquim e grafite sobre papel
23,3 cm x 36,7 cm
Coleção de Arte da Cidade / CCSP / SMC
/ PMSP. Fotografia / Edição: Sossô Parma /
Luciana Nicolau
9 Murano, Ana Flora. D. Pedro I: uma análise iconográfica. Dissertação
de mestrado em História. Campinas, IFCH Unicamp, 2013.
28 29
João Maximiano Mafra (Rio de Janeiro /
Brasil 1823 – 1908) dedicou-se à pintura e à
escultura, além de ter sido professor da Academia
Imperial de Belas Artes.
Louis Rochet (Paris / França 1813 – 1878)
foi um escultor francês, especialista em
monumentos equestres, que realizou diversas
obras no Brasil.
Quem caminha pelas ruas do centro no Rio de Janeiro,
mesmo que sem muita atenção ou apressado pelos
passos a caminho do trabalho, depara-se com alguns
símbolos de poder do Império e da República. Entre
os trilhos do VLT 11 , carros e ônibus que cortam as
pistas ou seguem parados no trânsito, trabalhadores,
pessoas em situação de rua e barraquinhas em dias
festivos, encontramos a primeira estátua pública do
Brasil. Inaugurado em 1862, o monumento simboliza
o eleito rito fundador da nação: a Independência pelas
mãos de D. Pedro I. Quarenta anos após tal ato, ele
voltava a ser celebrado e marcado em espaço público,
situado em um local central na vida do morador
da capital do país. A inauguração da estátua, como
João Maximiano Mafra
e Louis Rochet
Estátua equestre de Dom Pedro I,
1862
Base em granito carioca,
pedestal em bronze e estátua
em bronze fundido
15,7 metros
Acervo da Biblioteca
Nacional Digital
detalha Paulo Knauss 12 , passou por um pequeno atraso.
Programada para o dia 25, aniversário da primeira
Constituição nacional, as águas de março não deram
descanso e o evento precisou ser adiado. Mesmo sem
a trégua da chuva, a celebração e apresentação do monumento
para a população se deu no dia 30 de março,
com muitos olhares curiosos e a pompa solicitada pelos
comandantes da nação.
Homenagear D. Pedro I através de um monumento
público foi uma ideia que teve início em 1825, mas
que não conseguiu ter continuidade na época devido às
mudanças políticas que levaram à renúncia do monarca
em 1831. O projeto seguiu engavetado até 1839,
quando voltou a ser pauta; porém, foi novamente deixado
de lado, sendo retomado e executado apenas em
1853, quando a Câmara da Cidade do Rio de Janeiro
começou a organizar uma comissão para abertura de
concurso e estudo da viabilidade do monumento. Com
o apoio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
em 1855 é lançado edital para interessados em inscrever
seus projetos de escultura. Três projetos foram premiados,
e o selecionado para execução foi do professor
de Pintura Histórica na Academia de Belas Artes,
João Maximiano Mafra. Seu desenho Independência
ou Morte foi executado em Paris, por Louis Rochet
(também selecionado no concurso) devido a dificuldades
técnicas e de materiais para executar a escultura no
Brasil. Se levarmos em consideração a data do lampejo
da construção do monumento até o momento de sua
instalação, o processo demorou quase quatro décadas.
No decorrer desse tempo, o país passou pela abdicação
e falecimento de D. Pedro I, a Regência Trina, a posse
de D. Pedro II, a construção do IHGB e de instituições
como o Arquivo Público Nacional, dentre outros
eventos e momentos que ajudaram a moldar a história
oficial do país enquanto se desenrolava. E como toda
história necessita de documentos e representações, o
monumento da Independência seria mais um marco,
agora no espaço da praça pública, que ajuda a sociedade
a fincar a História oficial produzida enquanto
narrativa única dos eventos que levam à construção da
nação brasileira.
Em contraste com quadros como Independência ou
Morte de Pedro Américo e O Grito do Ipiranga de
François-René Moreaux, D. Pedro não ergue uma
espada – símbolo de seu poder militar – ou seu chapéu.
Aos céus ele oferece à Constituição brasileira, traduzida
na publicação em sua mão. Juntam-se dois momentos
marcantes para a construção do Brasil enquanto
nação soberana: sua independência de Portugal e a
criação da primeira Constituição, datada de 1824 e
outorgada por D. Pedro I. Mesmo retirado o símbolo
da espada, D. Pedro ainda representa um herói
militar, suas vestimentas reafirmam mais uma vez a sua
“vocação” militar, porém sem suas insígnias monárquicas.
Nas colunas do monumento, uma cronologia de
eventos é apresentada, traçando a história da nação a
partir do herói eleito como fundador. Começa com o
nascimento de D. Pedro em 1798, segue para a data de
seu casamento com Dona Leopoldina (1817), o Dia
do Fico, quando foi nomeado “Defensor Perpétuo do
Brasil”, a aclamação, sua coroação (os quatro eventos
em 1822), a outorga da primeira Constituição do país
(1824) e seu segundo casamento, com Dona Amélia
(1829). Apesar de misturar o que parecem eventos
públicos com a vida privada do primeiro imperador
do Brasil, os autores Mirielly Ferraça e Stanis David
Lacowicz, em seu artigo “Memórias do Império em
disputa: sentidos no espaço urbano a partir da análise
da estátua de equestre de D. Pedro I” (2019), lembram
que os casamentos da realeza não eram considerados
eventos pessoais e sim atividades oficiais, já que eram
arranjados para criar ou fortalecer alianças políticas entre
países. Abaixo de D. Pedro I, encontramos figuras
que personificam os principais rios brasileiros: Amazonas,
Madeira, Paraná e São Francisco. As figuras
são esculturas de indígenas que se unem a animais da
fauna nacional. Apontado por Ferraça e Lacowicz,
a “presença/ausência” dos indígenas no monumento
revela como os povos originários eram compreendidos
na época: como sujeitos sem identidade própria, em
um estado selvagem que se mistura a natureza, já que
à eles não é dada voz, apenas o local da representação
de elementos naturais e geográficos do país. Quem
são esses indígenas? Quais são suas respectivas etnias?
Nada disso parece importar. A inclusão deles em
um nível abaixo de D. Pedro I nos faz entender que
a colonização e o sujeito político-militar está acima
dos indígenas e dos elementos da natureza. Outras
ausências são notadas no monumento, que contém os
dizeres: “A D. Pedro I, gratidão dos brasileiros”. Porém,
quem é a nação brasileira que começa a se constituir?
Os indígenas e os negros estão inclusos nesse agradecimento?
Ferraça e Lacowicz ainda apontam mais
uma provocação: qual povo, na época, era alfabetizado
em português para ler e saber o que estava contido no
monumento? Seria, então, o povo agradecido apenas os
descendentes de portugueses e aqueles que se mantinham
no poder?
A estátua segue, agora envolta por grades, na Praça
Tiradentes. Por mais que, na época ou nos dias atuais,
ninguém pare para observar ou ler os dizeres, a imagem
de D. Pedro I como herói nacional conseguiu ser
disseminada e, obras públicas que são encontradas em
nossas caminhadas diárias ou em passeios acidentais,
reforçam o imaginário construído de um único sujeito
como o pai da pátria.
11 Veículo leve sobre trilhos (VLT) é uma forma de transporte
público utilizado na cidade do Rio de Janeiro. Existem 03 linhas que
servem a cidade e todas estão concentradas no centro. A linha 2 tem
parada na Praça Tiradentes e conecta a Praça XV à Central do Brasil.
12 Knauss, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no
Brasil do século XIX. 1920, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010.
30 31
eríodo II 1922
A conjuntura política do Brasil no início de 1922 não era das mais simples: a jovem
República, então fundada há pouco mais de 30 anos, enfrentava mais uma crise devido a
greves operárias e ao levante militar dos 18 do Forte. Na cultura, a tensão expressou-se
pela realização da Semana de Arte Moderna, que buscava renovar o modo de pensar e
produzir arte no Brasil. Por isso, a celebração da efeméride dos cem anos da Independência
foi vista como uma oportunidade única de promover a união nacional em torno
da comemoração de sua soberania.
Como discutimos na última seção, até aquele momento, as representações da Independência
estavam focadas no ato individual de Dom Pedro, expresso na imagem do grito
do Ipiranga. Apesar da revogação, em 1920, da Lei do Banimento 1 da família imperial,
o cenário ainda não era favorável à exaltação do protagonismo do monarca, mas o era à
possibilidade de reconciliação entre os rivais de 1889. Para isso, foi promovida a criação
de uma nova iconografia baseada em uma interpretação da Independência como ato
coletivo, cuja centralidade não está em um único personagem, mas no conjunto de ações
empreendidas por representantes de origens e posições diversas, desde a soldada Maria
Quitéria até a abadessa Joana Angélica.
Foi nesse contexto que o governo decidiu realizar a Exposição Universal no Rio de
Janeiro, então capital federal. Desde a primeira edição, feita em Londres, em 1851, as
Exposições, denominadas “vitrines do progresso”, caracterizaram-se pelo grande afluxo
de turistas e divisas, pela promoção comercial e pela modernização urbana. Dentre as
atividades desenvolvidas, foi realizada a primeira transmissão oficial do rádio no Brasil,
que se iniciou com um discurso de Epitácio Pessoa, décimo-primeiro presidente do país.
Além disso, a programação da Exposição Internacional do Centenário da Independência,
realizada entre 7 de setembro de 1922 e 24 de julho de 1923, incluiu a disputa de
um concurso organizado pela Escola Nacional de Belas Artes para fomentar uma “outra
imagem da Independência”.
Junto à inauguração do Museu Histórico Nacional, a Comissão Executiva do Centenário
decidiu organizar uma exposição de arte contemporânea e de arte retrospectiva, a partir
da qual seriam adquiridos e incorporados ao acervo da instituição quatro quadros que
retratassem assuntos históricos. Foram selecionados pelo júri as obras Primeiros Sons do
Hino da Independência, de Augusto Bracet; Sessão do Conselho de Estado, de Georgina de
Albuquerque; Tiradentes, o Precursor, de Pedro Bruno; e Minha Terra, de Helios Seelinger.
Com a possibilidade de retratar eventos posteriores e anteriores ao grito e não limitados
ao gênero da pintura histórica, os artistas representaram outros sujeitos que tiveram
papéis determinantes para a fundação da pátria. O grito solitário vai sendo percebido
enquanto ato coletivo, com a ajuda e influência de outros personagens.
Em contraponto à comemoração na capital da República, em São Paulo, o Centenário
da Independência teve como um de seus organizadores Afonso d'Escragnolle Taunay,
cujo projeto centrou-se em dois aspectos: a proeminência paulista na Independência
a partir da atuação dos irmãos Andrada e a exacerbação da figura do bandeirante e do
bandeirantismo como berço da cultura paulista. Para isso, desenvolveu para a reabertura
do Museu do Ipiranga um projeto museográfico marcado, na entrada, por representações do
bandeirantismo e seu papel como “desbravador” do interior do país; na escada, uma estátua de
Dom Pedro I ladeada pelos retratos de Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada Machado e Silva (irmãos de José Bonifácio) recepcionavam os visitantes;
por fim, o ponto culminante do projeto era o Salão de Honra, onde foi expressa a narrativa
paulista da Independência.
No salão principal do Museu destaca-se Independência ou Morte, de Pedro Américo, obra emblemática
da representação da nossa emancipação política. Junto a esta, encontram-se pinturas
encomendadas por Taunay a Oscar Pereira da Silva e Domenico Failutti, que serão tratadas
nesta seção.
A sala de exposição tem papel central na narrativa que pretende produzir o edifício-monumento,
mas não é seu único aspecto digno de nota. O Museu é parte do Conjunto do Ipiranga, composto
também pelo Monumento à Independência, pela Casa do Grito e pelo Parque da Independência.
Construído em etapas, o complexo, que é patrimônio cultural brasileiro, foi levantado às
margens do córrego do Ipiranga, onde foi proclamada a Independência por Dom Pedro I.
Se é verdade que a disputa entre Rio de Janeiro e São Paulo marcou o Centenário, também é
verdade que outros estados empreenderam esforços para produzir obras que retratassem eventos
e repercussões locais da Independência. A necessidade de inventar sua tradição, fez com que
os demais estados – os que possuíam dinheiro – investissem em obras comissionadas a partir
de seus heróis e suas batalhas. Antônio Parreiras é um exemplo de artista que entendeu tal necessidade
e, indo aos estados, conseguiu boas encomendas, além de difundir seus trabalhos em
acervos públicos e privados do país. Ofereceu o serviço primeiro em São Paulo e Belém, mas
logo viu a possibilidade de mercados na Bahia e Pernambuco, por exemplo. Mandava cartas,
conversava com comerciantes e governantes, vendendo seus serviços de pintor e criando a iconografia
dos estados. Outras histórias, para além dos acontecimentos no eixo Rio- São Paulo,
ganhavam suas imagens.
Reforçamos, nesse período, a importância da encomenda de obras públicas. Assim como no
século XIX, o Estado tem papel fundamental para a possibilidade de criação dos artistas e para
o nascimento iconográfico das representações da Independência.
Ao mesmo tempo que a pintura histórica era valorizada, devemos situar que, no ano de 1922, o
rompimento nas artes visuais era tema da Semana de Arte Moderna. Realizada em São Paulo
entre 13 e 17 de fevereiro, não foi tão marcante na época como sua recepção ao longo dos anos
faz parecer. A importância do evento como marco de ruptura compartilha com a Independência
o trabalho de interpretação em anos posteriores para engrandecê-lo e torná-lo marco
de uma época e único indício de uma ruptura. Mesmo com artistas promovendo mudanças e
interessando-se mais pela inclusão de elementos entendidos como brasileiros na construção
de seus pensamentos poéticos, as obras encomendadas ou mesmo selecionadas em concursos
ligados a narrativa da invenção do Brasil ainda se prendiam às técnicas de representação das
escolas europeias e ao compromisso com maior semelhança com a realidade, principalmente
quando a temática envolvia eventos históricos. Assim, em termos de estilo, não vemos muitas
alterações nas obras analisadas em comparação com as do período anterior. A possibilidade de
32 33
conseguir identificar símbolos e marcos era importante de ser mantida nos trabalhos
visuais, pois, assim, não deixariam de ser registros de uma História. Por vezes, os fatos
podiam permitir mais liberdade para serem fantasiados, mas os personagens precisavam
manter-se os mesmos.
O projeto de Taunay para o Museu do Ipiranga (ou Museu Paulista) é um exemplo
de como o controle era exercido junto aos artistas. A visão do diretor do espaço estava
desenhada: ele queria mostrar figuras importantes na formação da nação e, em especial,
o papel de São Paulo. Ao selecionar os eventos a participar dessa narrativa, consultou
artistas que, após conversa com Taunay, declinaram participar do projeto por não terem
liberdade para criar. Manter a imagem mais próxima do que sabiam – ou imaginavam –
ter sido a realidade foi uma das diretrizes a ser seguida. Logo a ideia de obra enquanto
documento oficial e “real” perdura ainda nesse momento.
A presença feminina não só representada mas também como autora das imagens apresenta
aumento no século XX. Georgina de Albuquerque destaca-se na pintura de gênero
histórico, campo dominado por homens, e tem sua obra selecionada no concurso de artes
plásticas do Centenário. Sua escolha por mostrar Dona Leopoldina em papel ativo para
a Independência reforça a multiplicidade de funções que as mulheres exerciam naquele
tempo. Em contraste com as representações de esposa ou mãe, sua imagem ganha centralidade
nas telas e a Imperatriz tem sua importância marcada junto às demais figuras
políticas responsáveis pelo rompimento com Portugal. Ainda assim, outras mulheres com
participação ativa em levantes seguem sem citação, fato que será revisto na atualidade.
As primeiras décadas de 1900 foram propícias para rupturas e manifestos, questionar
o passado e experimentar com o que o futuro poderia nos trazer. As possibilidades,
entretanto, não se esgarçaram como poderiam, frente à História oficial. Era necessário
reforçar símbolos e aumentar o contingente de heróis nacionais. Assim, novos personagens
entram em cena, mas a importância da Independência continua a residir em seu ato
inaugural: 7 de setembro.
1 A Lei do Banimento foi um decreto do governo provisório que baniu
a família imperial do Brasil. Determinou o decreto nº 78-A, de
21 de dezembro de 1889, além do banimento de Dom Pedro II e da
família imperial do território brasileiro, a proibição de Dom Pedro
II e da família imperial de possuir imóveis no Brasil, e estabeleceu
o prazo de dois anos para que os imóveis que possuíssem fossem
liquidados. Foi revogado em 3 de setembro de 1920 por Epitácio
Pessoa, pelo decreto nº 4120.
34 35
Augusto Bracet (Rio de Janeiro / Brasil 1881
– 1960) destacou-se nos gêneros pictóricos
tradicionais durante as primeiras décadas do
século XX: a pintura histórica, o nu e o retrato.
A construção e consolidação das nações passa pela
criação de símbolos que se fortalecem ao serem repetidos
em cerimônias oficiais e momentos corriqueiros
da vida social. As cores verde e amarelo, símbolos da
bandeira nacional, seguem inundando nosso cotidiano
nas camisas das seleções esportivas, em cangas para
turistas, assim como em outros elementos de vestuário
que, ao serem pintados pelas cores nacionais, se tornam
símbolos facilmente identificáveis do Brasil. Assim
como a bandeira, o hino do país reforça o sentimento
de pertencimento e de identidade coletiva. Entoado
na entrada da escola, antes de uma partida de futebol
ou, ainda, em momentos políticos estratégicos, quando
os primeiros acordes ressoam, todos sabem o que a
canção representa.
Oficialmente o Brasil possui quatro hinos: o Nacional 2
(o mais conhecido e cantado em eventos oficiais), o à
Bandeira Nacional 3 , o da Proclamação da República 4 e
o da Independência do Brasil 5 . Na obra Primeiros Sons
do Hino da Independência, Bracet retrata o primeiro
hino da nação sendo composto pelo próprio sujeito que
nos declarou livres do domínio de Portugal: D. Pedro I.
O concurso promovido pela Escola Nacional de Belas
Artes em comemoração ao Centenário da Independência,
no qual obras representando momentos da
Independência seriam premiadas, fez com que os
artistas pensassem para além do grito, para além dos
momentos de celebração de D. Pedro I. Por outro lado,
passados cem anos do brado do Ipiranga, a intenção de
reafirmar o momento de 7 de setembro como marco
do nascimento do Brasil independente continuava a
existir. Os símbolos do país precisavam ser reforçados
assim como suas tradições.
D. Pedro I não se torna um personagem esquecido;
seus feitos são celebrados e sua figura permeia o momento,
mas em posições e leituras diferentes daquelas
obras produzidas na sequência de seu ato em 1822.
Bracet elege a figura do imperador em sua tela, porém,
Augusto Bracet
Primeiros Sons do Hino da Independência, 1922
Óleo sobre tela
250 cm x 190 cm
Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro
como analisa Paulo de Vincentis 6 , ele não o apresenta
como príncipe-militar ou em posição de combate.
No momento retratado, D. Pedro I nos é apresentado
exercendo seus dotes artísticos, sentado em um cravo,
compondo o Hino. Vincentis ainda sublinha a questão
de gênero presente na tela. O instrumento musical que
manuseia, um cravo ou piano, era associado às mulheres.
Em momentos domésticos, nos espaços íntimos
dos lares, cabia às mulheres entreter as famílias ou
convidados, replicando canções no instrumento através
de partituras disponíveis. D. Pedro se encontra, assim,
realizando um fazer associado ao gênero feminino, o
de entreter através da música. Contudo, fato importante
que o diferencia do fazer ligado ao gênero oposto,
ele não apenas reproduz uma canção, ele cria, compõe
a melodia de um dos grandes símbolos da nação: seu
Hino. Por mais que possa ser feita uma leitura de crítica
de gênero da imagem, a figura masculina do monarca
permanece em produção ativa. Não está trotando
em um cavalo e empunhando sua espada, mas segue
criando narrativas do que será a nação brasileira. A
escolha de um momento posterior ao grito e de cunho
intimista cria uma leitura da Independência como
atividade de eterna preocupação de D. Pedro I. Outra
demonstração dessa dedicação é o fato de D. Pedro
utilizar, até o final de sua vida, o título de Protetor e
Defensor Perpétuo do Brasil, concedido em 1822.
Mesmo em momentos íntimos, quando sua figura pública
não está em exposição, ele segue se preocupando
com os caminhos da nova nação, construindo símbolos
importantes em sua criação e nunca a deixando de
lado. Seja o príncipe-militar ou o homem com dotes
artísticos, ele segue em seu papel de pai da nação.
Bracet decide por produzir uma obra de gênero com
características de pintura histórica. Retrata uma cena
do ambiente familiar, uma cena do cotidiano, mas com
figuras históricas, partindo de relatos de Francisco
Castro Canto e Mello sobre a composição do Hino,
depoimento replicado no catálogo da exposição do
Centenário, o que reforça seu caráter histórico.
Valendo-se da figura de D. Pedro I, que aparece centra-
lizado no quadro e como o único sujeito ativo na pintura,
os demais participantes apenas apreciam admirados
suas habilidades artísticas. Ao centro do quadro, sentado
à direita de D. Pedro, podemos identificar Evaristo da
Veiga, letrista e coautor do Hino. É possível perceber
certo paralelismo em relação à centralidade de D. Pedro
I tanto no quadro analisado quanto na letra do Hino,
ambos reforçando o protagonismo do imperador no fato
histórico na estrofe em que é insinuado o “Dia do Fico”:
“O Real Herdeiro Augusto / Conhecendo o engano vil,
/ Em despeito dos Tiranos / Quis ficar no seu Brasil”.
Ou, ainda, na 8ª estrofe, que nomeia diretamente o imperador:
“Mostra Pedro a vossa fronte / Alma intrépida
e viril / Tende nele o Digno Chefe / Deste Império
do Brasil”. Bracet escolhe um momento privado do
monarca para representar a Independência, trazendo
novas imagens para o público sobre o fato histórico, sem
deixar de lado os símbolos oficiais do Império.
2 Oficializado em 1922. Música de Francisco Manoel da Silva e letra
de Joaquim Osório Duque Estrada.
3 Apresentado pela primeira vez em 1906, o Hino foi um pedido
do prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos. Música de Francisco
Braga e letra de Olavo Bilac.
4 Escolhido por meio de um concurso em 1890, para marcar o novo
momento político do país, o Hino tem música de Leopoldo Augusto
Miguez e letra de Medeiros e Albuquerque. Apesar de não ser muito
presente no repertório musical brasileiro, alguns de seus versos são
facilmente lembrados por terem sido incluídos no samba-enredo Liberdade,
Liberdade! Abre as Asas sobre Nós! da ganhadora do Carnaval
carioca de 1989, a escola Imperatriz Leopoldinense.
5 Composto em 1822, tem letra de Evaristo da Veiga e música de
D. Pedro I. De acordo com as versões oficiais, D. Pedro I compôs
a melodia logo após a declaração da independência, tamanha a inspiração
do momento.
6 Vincentis, Paulo de. Pintura histórica no Salão do Centenário da
Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade de
São Paulo, 2015.
36 37
Georgina de Albuquerque
Georgina de Albuquerque, 1922
Óleo sobre tela
210 cm × 265 cm
Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro
Georgina de Moura Andrade Albuquerque
(Taubaté / Brasil, 1885 – Rio de Janeiro /
Brasil, 1962) destacou-se pela produção de
nus, retratos e paisagens baseadas no impressionismo
e suas derivações. É considerada
por muitos especialistas a primeira mulher a
firmar-se como artista no Brasil.
Apenas uma artista mulher foi selecionada no concurso
promovido pela Comissão Executiva do Centenário
na seção de Belas Artes. Apenas uma dentre quantas?
Não havia outras artistas mulheres inscritas no edital
ou mesmo realizando pinturas históricas na época em
questão. Neste momento, cem anos após a Independência,
a participação feminina nas artes visuais, em
especial no gênero de pintura histórica analisado aqui,
era muito reduzida. Georgina foi pioneira em múltiplos
espaços das artes visuais.
Além de seu pioneirismo enquanto artista, a obra premiada
também apresenta ineditismos: nela, a participação
de uma personagem feminina da Independência
do Brasil ganha destaque e, mais importante, retrata
a então princesa em posição de poder, participando
das decisões políticas, e não reduzida à figura materna,
como é comumente retratada.
Conforme anunciado no edital do concurso, os artistas
não estavam limitados a retratar o momento do 7 de
setembro; podiam selecionar momentos relacionados
ao ato, fossem estes anteriores ou posteriores à data.
Georgina seguiu um caminho diferente de Bracet: selecionou
um encontro realizado dias antes do grito às
margens do Ipiranga. Assim como na obra de Bracet, a
cena não é uma cerimônia pública, ocorrendo no espaço
privado. A então princesa Leopoldina encontra-se
reunida com conselheiros, dentre eles José Bonifácio,
que analisam as ordens de Portugal exigindo o retorno
de D. Pedro ao país. Mediante as pressões além-mar,
os conselheiros reúnem-se com D. Leopoldina para
traçar estratégias que irão culminar na Independência.
Georgina realizou vasta pesquisa no Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB) para retratar da
forma mais fiel possível o momento. Tecnicamente, a
artista inova ao incluir elementos do impressionismo
em uma tela com características de pintura histórica.
Vincentis frisa que, mesmo em outros gêneros de pintura,
o efeito de diluição não era aceito com facilidade.
A pintura utiliza-se do contraste de cores para destacar
a figura de Leopoldina, sua pele alva e suas roupas claras
distinguem-se dos outros personagens, com vestes
em tom escuro.
A futura imperatriz do Brasil era comumente retratada
em cerimônias políticas, mas não em posição de destaque
ou como alguém com voz política ativa. Vemos
Leopoldina nas imagens da aclamação e coroação de
D. Pedro I sempre em um papel de acompanhante, da
esposa e mãe dedicada. Georgina questiona o lugar de
submissão da mulher e a coloca como protagonista de
um dos principais momentos da formação da nação
brasileira: quando sua independência está em pauta.
Diferentemente de D. Pedro, retratado como príncipe-militar
que, percebendo as urgências do momento,
toma uma decisão no calor da emoção e brada por
independência, Leopoldina é apresentada como uma
estrategista, analisando a situação e pensando na
melhor saída para eles – os monarcas – e para a elite
da época frente às exigências de Portugal. Georgina
inverte a ordem dos papéis de gênero: se a decisão de
Pedro é entendida como viril e inesperada, a Princesa
representa a parte racional, própria da negociação política,
do processo da Independência. A imagem a coloca
de igual para igual com os conselheiros, a hierarquia de
gênero existente na época – que impedia as mulheres
de ocuparem e estarem em lugares públicos – parece
cessar momentaneamente em prol da nação. Naquele
momento, as decisões estavam nas mãos da princesa, e
ela seria ouvida e suas ações colocadas em prática.
Ana Paula Cavalcanti Simioni 7 faz uma análise do pioneirismo
de Georgina na pintura histórica e como seu
retrato de D. Leopoldina inverte os papéis de gênero
da época. Ao comparar, dentre os quadros selecionados
do edital, a forma como D. Pedro I foi retratado por
Bracet e como D. Leopoldina se apresenta no quadro
de Georgina, vemos ambos no espaço privado, mas
com uma inversão dos papéis ditados para homens e
mulheres. Enquanto o imperador demonstra seus dotes
artísticos, sua esposa toma decisões de estadista sobre o
futuro da nação. O quadro apresenta-nos uma personagem
central para o desfecho de 1822 que, naquela
época, não tinha destaque nas representações pictóricas
da Independência.
7 Simioni, Ana Paula Cavalcanti. “Entre convenções e discretas
ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina
no Brasil.” Revista Brasileira de Ciências Sociais 17 (2002): 143-159.
38 39
40 41
Helios Seelinger
Minha Terra (Tríptico), 1922
Óleo sobre tela
600 cm x 300 cm
Acervo Museu Histórico Nacional /Ibram
Fotografia de Jaime Acioli. N.º 006.471.
Helios Aristides Seelinger (Rio de Janeiro /
Brasil, 1878 – 1965) tem sua produção caracterizada
pela influência do idealismo alemão
e seu misticismo, a partir do qual vemos a
representação frequente de figuras folclóricas
e mitológicas.
Dentre as quatro obras selecionadas no Concurso da
Exposição do Centenário, o tríptico Minha Terra é a
mais distante das representações históricas ou documentais.
Enquanto as três primeiras pinturas retratam
personagens com tons realísticos nos momentos que
antecederam ou sucederam o grito de D. Pedro, a
representação escolhida por Seelinger não se atém
a pessoas reais ou mesmo a momentos próximos de
1822. O pintor opta por símbolos alegóricos da formação
da nação brasileira separados em três momentos
marcantes, segundo as narrativas oficiais.
O tríptico passa pelos séculos fundantes da História
do Brasil enquanto território e nação. Passeia, cronologicamente,
pelos momentos marcados pela invasão,
liberdade e reconhecimento da unidade brasileira.
Todos os segmentos da obra apresentam situações de
embate ou disputa. Por vezes com elementos naturais,
outros com lutas entre poderes, o certo é que a
presença de alguém dominando a cena é marcante.
Diferentemente da narrativa de uma independência
organizada, não violenta, ou de um acordo na chegada
dos primeiros europeus nas terras onde povos
indígenas já habitavam, Seelinger escolhe ressaltar os
estranhamentos e mostrar que, para que alguns alterem
a história, outros são subjugados. Começa com as naus
portuguesas, enfrentando um mar revolto, mas sempre
em frente, com terra à vista logo adiante. O homem
entra em confronto com as forças naturais mas, devido
a sua capacidade de adaptação e criação, consegue
vencer a batalha com as águas e ancorar em solo ainda
desconhecido mas que, em breve, será conhecido como
território brasileiro.
A parte central do tríptico avança alguns séculos. Após
a invasão em 1500, a civilização chega no século XIX
através dos corpos brancos de europeus. Seres fantásticos
parecem sair das águas que iniciaram a jornada
no primeiro momento da obra e lutam pela liberdade,
lutam pela criação da pátria. Vincentis 8 apresenta
três teorias sobre os personagens da parte central da
obra. Fora da água, quatro formas ganham destaque,
são dois homens nus envoltos em uma luta corporal,
dois corpos similares que se diferenciam apenas pela
representação racial à eles evocada: um homem branco
e um negro. A partir de sua disputa, um terceiro corpo
emerge, livrando-se do aprisionamento, representado
em seu pulso por grilhões, sendo um homem com
aparência mais jovem, um corpo nu embranquecido. A
última figura que destacamos se assemelha a uma mulher
com vestes. O símbolo feminino parece estar mais
próximo de uma alegoria do que a representação de
uma mulher em si. Monarquia, independência e nação,
são as três possibilidades descritas na dissertação de
Vincentis sobre a alegoria do feminino, assim como da
ação de cada personagem na centralidade do quadro.
Apesar de poderem representar momentos diferentes,
o destaque que o autor dá na obra é ao embranquecimento
do Brasil enquanto estratégia civilizatória, mostrando
a superioridade dos europeus perante os demais
povos, também responsáveis pela História e formação
da nação brasileira. Teoria comum na época, a eugenia
buscada através de uma miscigenação primordialmente
focada em indivíduos brancos torna-se a representação
central no quadro, simbolizando que, para uma nação
crescer e se tornar potência, a predominância do povo
branco, do colonizador, é necessária. Independente
da real representação da imagem feminina, Seelinger
expressava o desejo das elites da época, lembrando que
a abolição da escravatura no país não havia completado
nem quatro décadas quando a pintura foi produzida.
O terceiro momento invade sorrateiramente a parte
central do quadro para se desenrolar em um último
ato: militares com seus cavalos e a bandeira em punho.
Diferente da bandeira símbolo da Independência, aqui
nos é apresentado o símbolo da República, imagem
que utilizamos até os dias de hoje. Ainda verde e
amarela, remetendo às casas reais dos Habsburgo e dos
Bragança, seu formato foi alterado como símbolo da
nova governança que se iniciava: não estávamos mais
na era da monarquia, chegava a República e, com ela,
novas possibilidades de organização política, de participação
democrática e de nação.
Os fatos representados no quadro são disruptivos.
Cada um simboliza uma etapa de luta que culminou
no nascimento da nação brasileira. Por mais que
personagens históricos não estejam presentes, suas
representações nas ações e figuras criadas por Seelinger
dão conta do mito da formação do Brasil.
8 Vincentis, Paulo de. Pintura histórica no Salão do Centenário da
Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade de
São Paulo, 2015.
Pedro Paulo Bruno (Ilha de Paquetá / Brasil,
1888 – Rio de Janeiro / Brasil, 1949) contribuiu
para o desenvolvimento de símbolos
nacionais conforme o projeto nacional republicano,
implantado no fim do século XIX no
Brasil.
Uma das pinturas selecionadas na premiação do
Centenário, O Precursor, foi realizada na Itália em
1921. Como o concurso incluía a possibilidade de
representar momentos anteriores à Independência, a
obra pôde concorrer junto às demais. O quadro retrata
os últimos momentos de Joaquim José da Silva Xavier,
conhecido como Tiradentes. A pintura centraliza a
imagem do mártir e, com ares religiosos, ilumina sua
figura, a única trajando roupas claras. A barba e o
cabelo comprido remetem à iconografia católica de
Jesus Cristo, comparando o sacrifício deste ao martírio
de Tiradentes em prol da Independência. Bruno traça
um paralelo para que os espectadores da imagem, a
partir da rememoração de símbolos cristãos, entendam
o sacrifício pela pátria como o último ato heróico que
um sujeito republicano poderia realizar.
Os fatos são esquecidos pelo caminho e assim se
inventa a história da República, em que Tiradentes é
alçado ao papel de herói, já que, na criação de uma nação,
para além de seus símbolos, são necessárias figuras
heróicas, os mártires da pátria.
A execução de Tiradentes deu-se no Rio de Janeiro,
em 21 de abril de 1792. Ao ser capturado, assumiu a
liderança do movimento contra a coroa e logo teve sua
sentença declarada. Outros participantes da Inconfidência
Mineira também foram presos, porém o único
que recebeu a sentença de morte foi Tiradentes. Aos
demais, o exílio foi a punição mais aplicada.
Apesar de ter ocorrido algumas décadas antes da
Independência do Brasil, o descontentamento com as
normas impostas pela coroa já circulava em diferentes
províncias brasileiras. Bahia, Porto Alegre e Minas
Gerais tiveram, ainda no século XVIII, movimentos
de insurgência separatista. Desejavam a independência
de Portugal mas, como não era facilmente concebida a
ideia de unificação do que era o Brasil, os movimentos
42 43
ficavam restritos às suas regiões de origem. Isto porque
a ideia de povo brasileiro, de uma única nação, ainda
não havia sido construída. Apenas com a Independência
em 1822, a adesão das demais províncias ao projeto
político de D. Pedro I e o processo de construção da
identidade nacional é que se começa a disseminar a
fábula do “povo brasileiro”.
No entanto, o Brasil era carente de heróis, de revolucionários
a favor da liberdade, que amavam e lutavam
pela pátria. Era necessário criar personagens dentro
do enredo da história oficial e, após 1889, encontrar
personagens que não pertencessem à monarquia, de
forma a fortalecer o caráter republicano do país. Tiradentes
tornou-se um desses personagens. Por evocar
ideais libertários baseados na Revolução Francesa e ser
a favor da República, a figura do herói que se sacrifica
pela pátria caiu como uma luva no mineiro. Assim,
um novo herói da Independência passa a figurar nas
representações pictóricas, um precursor dos ideais
libertários, como o próprio título da obra coloca. Sua
imagem, construída a partir de um homem que se
assemelha muito com as representações de Cristo no
momento de sua Via Sacra, ajuda a fixar, a partir de
uma associação de figuras, a ideia de mártir e santo.
Um novo personagem une-se à história da Independência.
Momentos que, anteriormente, não ganhavam
destaque na história oficial, ganham espaço para que a
história da nação brasileira se torne uma construção de
muitos, um embate com a participação do povo.
Pedro Bruno
O Precursor, 1922
Óleo sobre tela
265 cm x 372 cm
Acervo do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro
Domenico Failutti
Retrato de Dona Leopoldina de
Habsburgo e Seus Filhos, 1921
Óleo sobre tela
233 cm x 133 cm
Acervo do Museu Paulista da
Universidade de São Paulo
dependendo de quem escolhe contar a história.
O tempo que separa a tela de Failutti da pintura de
Albuquerque é de apenas um ano. Ambas foram
pensadas para celebrar a figura de Leopoldina nas
comemorações do Centenário da Independência.
Enquanto uma foi criada por uma artista mulher para
participar do edital da Exposição do Centenário, no
Rio de Janeiro, a outra foi encomendada para celebrar
a reabertura do Museu do Ipiranga, em São Paulo. O
diretor do Museu, Afonso d’Escragnolle Taunay, possuía
um projeto para celebrar a Independência através
de imagens históricas baseadas em ampla pesquisa
documental. Taunay não queria representar imagens,
mas sim criar uma documentação pictórica: obras
que deveriam ser lidas como fatos, e não figurações
imaginativas das ações dos sujeitos retratados. Logo
ele conseguiu contratar artistas que aceitassem a sua
visão de contar as narrativas, artistas que buscariam
fontes em documentos e retratos prévios dos heróis da
Independência.
Domenico Failutti (Zugliano /Itália 1872 –
Udine/ Itália, 1923) foi um pintor italiano de
formação acadêmica clássica que se destacou
pelos seus retratos.
O papel da mulher nas representações da Independência,
quando retratado, ainda era nebuloso. Por mais que
fosse documentado, e cada vez mais reconhecido que
sem certas figuras femininas a trama que inicia a formação
do Brasil-nação não teria ganhado os contornos
que conhecemos, a escolha por uma mulher submissa
na iconografia histórica teimava em existir. A figura
da Imperatriz Leopoldina é um exemplo de como
as identidades são expressas de diferentes maneiras,
Domenico, em relação à missão à ele incubida, foi fiel
a seu contratante. Buscou referências em gravuras de
Debret para retratar Leopoldina e em outras imagens
que documentaram seu lar e seus hábitos. A decisão
era por um retrato de mãe zelosa, uma esposa cuidadora
que, enquanto seu marido precisava governar o país,
ela estaria em casa, responsabilizando-se pela educação
e bem-estar do futuro comandante da nação, D. Pedro
II, sentado em seu colo, na imagem. Ela está rodeada
por suas filhas, e todos têm um semblante plácido na
pintura; nenhuma inquietação se apresenta na imagem.
Taunay queria uma imagem de Leopoldina em
que certos aspectos morais estivessem em evidência.
Ana Paula Cavalcanti Simioni e Carlos Lima Junior 9
fazem uma análise da obra e do papel moral atribuído
à representação de Leopoldina. Os autores apontam
elementos na cena, como o cachorro e a pomba, que
44 45
fazem alusão à vida privada, ao cuidado com o lar e
ao maternar. Eles reforçam o registro de uma princesa
preocupada apenas com seus deveres enquanto esposa
e progenitora.
Enquanto Georgina de Albuquerque, em sua pintura
Sessão do Conselho de Estado, apresenta Leopoldina
como uma das grandes responsáveis pelas decisões que
levaram à Independência do Brasil, a imagem escolhida
para representá-la no Museu dedicado ao evento
histórico da Independência a coloca fora da cena
política e restrita ao ambiente privado.
Apesar da presença feminina na Independência aparecer
em mais representações pictóricas na celebração
do Centenário, o papel da mulher e seu espaço ativo
na formação do Brasil ainda era pouco valorizado, seja
pelo número ínfimo de mulheres artistas atuando nas
pinturas de gênero histórico, seja nas figuras femininas
nas telas e como eram representadas.
9 Simioni, Ana Paula Cavalcanti, e Carlos Lima Junior. “Heroínas
em batalha: figurações femininas em museus em tempos de centenário:
Museu Paulista e Museu Histórico Nacional, 1922.” Museologia
& Interdisciplinaridade 7.13 (2018): 31-54.
Domenico Failutti
Retrato de Maria Quitéria de Jesus Medeiros,
1920
Óleo sobre tela
233 cm x 133 cm
Acervo do Museu Paulista da
Universidade de São Paulo
No projeto de Taunay para a composição do Salão
de Honra do Museu do Ipiranga, que é também seu
projeto de construção de memória nacional, Leopoldina
iria representar o ideal da mãe, calma e protetora,
enquanto Maria Quitéria seria a heroína guerreira. No
repertório imagético do museu, as mulheres presentes
nos eventos que culminaram na Independência e,
consequentemente, na formação da nação brasileira, só
poderiam ser representadas a partir de uma determinada
característica, uma marca para cada personagem,
ajudando a identificá-las com facilidade.
No projeto de Taunay de incluir personagens femininas
da Independência nas representações pictóricas
do Museu, a Maria Quitéria ficou destinado o papel
de mulher lutadora. Como a ficção transborda a vida
real, seja durante a dinastia Tang na China do século
VII ou no período da República Velha em pleno sertão
brasileiro, a mulher que ocupava uma posição bélica
devia despir-se de seu gênero e abraçar características
associadas ao masculino. O símbolo da sedução
feminina, os cabelos longos soltos ou arrumados em
complexos penteados, era deixado de lado por madeixas
escondidas em chapéus ou cortadas rente ao
pescoço. Trajes alterados, a calça – veste tipicamente
masculina até o século XX – mascarava a fragilidade
associada ao sexo feminino e transformava feminilidade
em virilidade.
Maria Quitéria, inicialmente, passou-se por homem
para poder lutar a favor da Independência da Bahia
entre os anos de 1822 e 1823. De origem humilde,
dedicou-se à luta armada contra os portugueses, que
desejavam rebaixar o Brasil à condição de colônia e suprimir
as liberdades conquistadas a partir da elevação
do país à posição de Reino Unido em 1815. Apesar da
descoberta de seu gênero, Quitéria continuou a participar
ativamente no exército, com seus serviços reconhecidos
pelo futuro Imperador D. Pedro I. A luta da
Independência na Bahia difere do episódio retratado
por Pedro Américo como símbolo da dissolução dos
laços entre Brasil e Portugal. No quadro de Américo e
na construção do imaginário coletivo, a Independência
ocorreu de forma pacífica. Antes e depois da decisão
de D. Pedro I, não há qualquer registro de batalha ou
disputa. Teatralizada e eternizada na pintura, o grito
ecoou pelo espaço do país com aceitação unânime, e
quem não queria viver na nova nação poderia apenas
se retirar. Porém, quando novos personagens são
elencados para preencher a história da formação do
país, a lupa colocada sobre disputas territoriais violentas
amplifica a verdade: a Independência não foi o
desejo de um monarca em nome de seu povo, já que o
descontentamento das províncias e dos brasileiros com
as condições impostas pela Coroa – especialmente as
relacionadas à cobrança de impostos – já havia ensejado
batalhas a favor da separação de Portugal. Fossem
movimentos separatistas sem caráter nacional – pois
ainda não havia o sentimento de nação formalizado no
século XVIII – ou, como se deu na Bahia, em paralelo
ao desenrolar dos fatos que levaram ao 7 de setembro,
tais disputas envolveram batalhas e culminaram em
mortes. Na Bahia, a disputa entre a volta ao status de
colônia e a Independência do Brasil durou mais de
um ano, e batalhas em diferentes localidades resultaram
em feridos e mortos. Apesar do caráter violento,
Failutti e Taunay optaram por retratar Maria Quitéria
fora do momento de ação, de forma que a soldada
parece posar para o pintor. Mesmo com as cenas de
batalha sendo valorizadas na pintura histórica, em que
os heróis seguem com a espada em punho aniquilando
seus inimigos, aqui a escolha foi apenas de retratar
a figura de Maria Quitéria sozinha. Na cena não há
outra presença humana. Ao fundo, vê-se uma paisagem
que remete ao Recôncavo Baiano. Para diferenciar as
vestes de Quitéria das roupas de um homem soldado,
Failutti, conforme análise de Simioni e Lima, amplia a
barra de seu saiote, destacando este elemento e simbolizando-o
enquanto peça de vestuário de uma “mulher-
-soldado”. Os autores também apontam a escolha de
retratar a guerreira com traços “mestiços”, imprimindo
a ideia de uma heroína do povo, pois a luta na Bahia
não partiu apenas das elites, foi uma luta coletiva de
toda a população brasileira – classes populares, clero e
elite– a favor do Brasil.
Na composição das personagens mulheres que participam
dos caminhos da Independência, Taunay escolheu
uma tríade para enfeitar as paredes do Museu: a mãe
com sua moral voltada ao zelo familiar, a heroína popular
que abdica de sua feminilidade em defesa da nação e
a mártir religiosa, imagem que analisaremos a seguir.
46 47
Domenico Failutti
Retrato de Soror Joanna Angélica,
1920
Óleo sobre tela
157 cm × 125 cm
Acervo do Museu Paulista da
Universidade de São Paulo
Fechando a tríade de mulheres-símbolo da Independência
no Museu do Ipiranga, Taunay escolheu incluir
a religiosa Joana Angélica. O pintor selecionado foi o
mesmo responsável pela imagem da Imperatriz Leopoldina
e de Maria Quitéria. A pintura não coloca a
abadessa em seu ato de martírio, sendo um retrato em
plano fechado da religiosa, com destaque para os símbolos
católicos que carrega em seu peito. Assim como
a representação de Maria Quitéria, Joana é deslocada
do seu ato histórico, do imagético de sua luta contra
os portugueses que ameaçavam entrar no convento de
Nossa Senhora da Conceição da Lapa, em Salvador.
Soldados portugueses estavam em busca de combatentes
brasileiros. Acreditavam que alguns haviam
buscado abrigo no convento e tentavam adentrá-lo. Ao
tentar impedir a entrada dos homens no espaço, Joana
acabou sendo assassinada ao ser atingida pela baioneta
de um dos soldados. O episódio acontece dentro do
contexto da Independência da Bahia, poucos meses
antes do 7 de setembro de 1822.
Seu sacrifício foi associado à defesa do Brasil contra os
agentes portugueses, mas outras leituras podem ser feitas,
já que ela estaria impedindo a entrada de homens
na clausura, espaço em que as freiras ficavam isoladas.
Sua atitude de salvaguardar as demais mulheres do
convento pode ser entendida como uma defesa da
honra de quem dedica corpo e alma à Deus. Independente
de serem soldados portugueses, sua primeira
intenção pode ser interpretada como a tentativa de
proteger a pureza das noviças e irmãs.
É impossível saber o que Joana pensou ao agir, talvez
uma mistura de suas obrigações com o clero com seus
sentimentos enquanto mulher baiana. A questão é que
seu ato foi interpretado enquanto um sacrifício em
favor da pátria, sendo considerada uma das primeiras
mulheres mártires da Independência.
Oscar Pereira da Silva (São Fidélis / Brasil
1867 – São Paulo / Brasil 1939) produziu
obras que representam momentos relevantes
da história brasileira, encomendadas pelo historiador
e diretor do Museu Paulista, Afonso
d'Escragnolle Taunay.
A figura de D. Pedro I não é esquecida na comemoração
do Centenário. Mesmo havendo mais espaço
nas representações plásticas para outros personagens
relevantes na Independência, a imagem do monarca
continua a ser valorizada e explorada como símbolo
da formação da nação. No projeto de reabertura
do Museu do Ipiranga, a história do Brasil ganhou
destaque. Inicialmente, o espaço podia ser identificado
como museu de história natural, mas a chegada de
Afonso Taunay como diretor fez tomar forma a ideia
de transformá-lo em museu histórico. Conforme dito
anteriormente, Taunay entrou em contato com artistas
para encomendar quadros com temáticas históricas.
Pereira da Silva é um dos artistas que se oferece para
o trabalho, logo sendo contratado e, alinhado com
Taunay, produz obras a partir de documentação sobre
os fatos, utilizando também outras imagens de base
para suas obras.
No projeto de Taunay, o Salão de Honra teria obras
com destaque, sendo Independência ou Morte de Pedro
Américo a principal atração do espaço. Além da representação
de outras figuras marcantes da Independência
(inclusive algumas imagens femininas, já analisadas),
Taunay selecionou acontecimentos anteriores a
setembro de 1822 para destacar o evento como um
fluxo de atitudes pujantes tomadas por indivíduos
heróicos. Carlos Rogério Lima Junior 10 faz uma análise
profunda do projeto do Museu Paulista e dos quadros
produzidos por Oscar Pereira da Silva. Lima elucida
o projeto de Taunay para o Salão, explicando a quais
imagens iria contrapor ao quadro de Américo. As duas
imagens seriam de eventos anteriores ao grito, e ambas
foram produzidas por Pereira da Silva.
A primeira imagem aqui incluida é referente ao
episódio da expulsão das tropas portuguesas do Rio
de Janeiro em 8 de fevereiro de 1822. Na pintura, D.
Pedro I aparece em posição ativa, indicando que as
tropas devem deixar o porto e sair do Brasil. Conforme
Lima analisa, a posição de seus braços – o direito
paralelo ao canhão, apontando os navios que atingiria
caso as tropas não se retirassem, enquanto o esquerdo
encontra-se encostado na base do armamento – denota
o embate e as consequências que os navios portugueses
poderiam enfrentar. Assim como as imagens de D.
Pedro I criadas no século anterior, suas vestimentas e o
uso de botas de montaria evocam o ideal de um príncipe
jovem e pronto para situações conflituosas. D. Pedro
I está sempre pronto para lutar pela pátria, defendendo
a construção da nação brasileira. Ao seu lado, outros
importantes indivíduos ligados à Independência. É
possível identificar José Bonifácio, Joaquim Xavier
Curado, Joaquim de Oliveira Álvares e outros militares
importantes da época. A ênfase em figuras militares e
da elite descarta a participação de diferentes forças nas
ações de formação do país. Na pintura, assim como no
quadro de Américo, o povo, aqui representado pelos
marinheiros, continua sendo espectador e é colocado
à margem, quase como um pano de fundo capaz de
especificar a localidade dos agentes da mudança.
O adversário português, Jorge de Avilez, é representado
na obra de Pereira da Silva. Aparece em destaque,
em frente à D. Pedro. Não tem, porém, uma feição
ameaçadora, nem está cercado por muitos aliados. Sua
postura aparenta aceitar as ordens de retirada.
O quadro tem dimensões reduzidas se comparado com
Independência ou Morte, mas reforça o caráter de personagem
principal de D. Pedro I e reafirma a narrativa
de um salvador da pátria, o qual protagonizou diferentes
atos pela sua liberdade até culminar no grito pela
Independência do Brasil.
10 Lima Junior, Carlos Rogerio. Um artista às margens do Ipiranga:
Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado
nacional. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2015.
48 49
Oscar Pereira da Silva
Príncipe Regente Dom Pedro e Jorge de Avilez
a Bordo da Fragata Uniãos, 1920
Óleo sobre tela
310 cm x 250 cm
Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Oscar Pereira da Silva
Sessão das Cortes de Lisboa, 1920
Óleo sobre tela
315 cm x 262 cm
Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Em uma história de heróis, não necessariamente
super-heróis, a prerrogativa é sempre a mesma: existe
um mal – muitas vezes personificado em um vilão –
que precisa ser vencido por um sujeito excepcional, que
abre mão de seus desejos em prol de um conjunto de
pessoas ou, até mesmo, de toda a população terrestre.
Não é necessário ser um grande entendedor de cinema
para saber que a narrativa se repete e, ao nos envolvermos
com os personagens, vibramos e torcemos para o
mocinho. Esse personagem é construído, nas telas ou
páginas de livros, pelos percalços que enfrenta e por
como lida com eles. No caso da construção do mito
de criação da nação brasileira, os papéis foram distribuídos
e, depois, ilustrados nas paredes de museus e
em publicações. Escalado para mocinho, D. Pedro I
cumpriu o papel de herói destemido, que abre mão até
de seus direitos para libertar os brasileiros e permitir o
nascimento de um Estado independente de Portugal.
Junto a sua caminhada heróica, outros possíveis heróis
permearam seus feitos, porém nenhum ocupou o papel
de protagonista como o monarca. Outros sujeitos e
atos foram sendo construídos pictoricamente para
preencher o enredo do mito da nação.
Ao comemorar os 100 anos de sua Independência, a
escrita da história nacional ainda carecia de imagens
representativas da luta contra Portugal, elevado ao
posto de vilão na história do Brasil. Assim, os atos para
o fim da autonomia brasileira precisavam ser apresentados
de forma ilustrativa para todos. Os obstáculos
enfrentados pelos heróis da pátria viraram imagensdocumento
no Museu do Ipiranga.
A obra representativa do dia 9 de maio de 1822
documenta a sessão em que o desejo de Portugal de
extirpar o caráter de reino do Brasil e o transformar
novamente em colônia era duramente combatido por
deputados brasileiros. O ambiente transpira tensão, e
Pereira da Silva traduz na feição das figuras presentes
tal sentimento. O artista, novamente, inclui sujeitos
conhecidos pelos brasileiros como Antonio Carlos,
Lino Coutinho, Agostinho Gomes, dentre outros 11 que
lutaram pela nossa Independência, pelo reconhecimento
do Brasil enquanto reino e, em poucos meses, nação
independente. Na calorosa discussão, os brasileiros
conseguem garantir que o desejo do inimigo, Portugal,
não seja realizado e pavimentam o caminho para o ato
heróico final da história: o brado no Ipiranga.
Taunay soube criar narrativas valendo-se de documentação
histórica e de releituras de pinturas históricas.
Seja para garantir a imagem heróica nas cenas, ou
a verossimilhança dos salões retratados, os artistas
contratados por Taunay utilizaram todas as referências
disponíveis na época para criar imagens oficiais, o que
era lido como zelo com a história.
Ao final, segundo a narrativa criada pelos livros oficiais
e reforçada na iconografia das artes visuais, o herói
venceu o vilão. Para o bem do povo, seu grito foi ouvido
e Portugal, por mais que logo antes tentasse derrubar
a pátria brasileira, acabou derrotado na história.
Retratam-se momentos prévios à Independência para
que uma narrativa robusta e inquestionável possa ser
produzida e reproduzida ao longo dos séculos.
11 Lima Junior descreve todos os personagens presentes na pintura
no capítulo três de sua dissertação.
50 51
Ettore Ximenes (Palermo/Itália, 1855 –
Roma /Itália, 1926) foi um escultor italiano
que produziu uma série de monumentos no
Brasil na década de 1920.
Ettore Ximenes e Manfredo Manfredi
Monumento à Independência do Brasil, 1926
Conjunto escultórico em granito e bronze
Área total 1600m²
Acervo da Biblioteca Nacional Digital
Manfredo Manfredi (Piacenza/Itália, 1889 –
Piacenza/Itália, 1927) foi um arquiteto italiano
que, no Brasil, destaca-se pela idealização
do Monumento à Independência do Brasil, em
colaboração com o também italiano Ettore
Ximenes.
O projeto do Museu do Ipiranga – ser um marco da
Independência do Brasil e sublinhar a importância
histórica de São Paulo, em contraponto ao Rio de Janeiro
– envolvia a criação de obras públicas, indo além
da história visual retratada em seu interior. Os concursos
para obras comissionadas, no início do século
XX, voltaram a ser prática comum. Anteriormente, a
monarquia encarregava-se de contratar pintores e escultores
para fixar sua história e retratar suas famílias e
feitos. Com o desejo de ilustrar a história da República
e criar figuras simbólicas para o país, o poder público
passou a investir fortemente na produção das artes
visuais. Fosse por comissionamento direto ou concurso,
a necessidade de contar uma história era urgente. Mas
qual história? E quem detinha o controle da narrativa?
A resposta é simples: as elites que se mantinham no
poder. Deixara de pertencer à monarquia e à nobreza,
mas o poder continuava nas mãos dos que já dominavam
a população desde 1500. Com o controle da
narrativa e dispondo de capital para executar suas
vontades, a arte do gênero histórico foi sendo moldada
conforme propósitos específicos e apagamentos
propositais.
Os monumentos públicos com caráter histórico
tiveram seu início no Brasil através de concursos. O
primeiro a ser instalado, conforme mostramos no Período
I, foi uma estátua de D. Pedro I na Praça Tiradentes
(Rio de Janeiro), ainda no século XIX. Projetos de
monumentos anteriores a esse chegaram a ser esboçados
mas não foram concretizados. O monumento ao
monarca seguiu com uma inauguração pomposa em
meio a atrasos em sua instalação. Apesar do idealizador
ser um brasileiro, sua execução deu-se na França,
por um escultor do país. Conforme apontado por
Michelli Cristine Scapol Monteiro 12 , os concursos para
monumentos públicos na América Latina tinham forte
presença de artistas europeus, o que se traduzia na
confecção de obras nacionais pela mão de estrangeiros.
O caso do Monumento à Independência do Brasil não
foi diferente. Aberto o concurso, conforme Monteiro
descreve, a inscrição de estrangeiros foi expressiva. A
possibilidade de investir em projetos de maquetes para
impressionar os jurados e a facilidade para adquirir
alguns materiais na Europa criaram ampla vantagem
para Ettore Ximenes ganhar o concurso de execução
da construção. Mesmo com a aprovação de seu projeto,
os jurados solicitaram adaptações, e outros pedaços da
história e personagens foram alocados no monumento.
A necessidade de ilustrar a Independência a partir de
outros acontecimentos para além do grito fez com que
o monumento incluísse outros momentos históricos
e, consequentemente, territórios e personagens não
vinculados à capital. O projeto do parque e Museu do
Ipiranga era reforçar a importância do estado de São
Paulo para a formação da nação e, para tal, valorizar
eventos acontecidos nesse território em detrimento aos
protagonizados no Rio de Janeiro. Logo, a coroação
e aclamação não são representadas no monumento,
a figura de D. Pedro está presente no 7 de setembro
mas não encontra igual destaque, como lhe era dado
nas pinturas do século anterior. Ele está no meio dos
soldados, junto com o povo, torna-se mais um dos
responsáveis pela Independência, e não o responsável
único. A narrativa criada por Ximenes, conforme
negociações com os jurados, inclui a Inconfidência Mineira
(1789) e a Revolução de Pernambuco (1817) na
edificação. Os dois eventos, anteriores à 1822, mostram
rompantes republicanos em meio à monarquia. Junto
aos eventos, seus líderes e mártires seguem eternizados
em bronze. Figuras públicas ganham destaque
no monumento, representando o “homem comum”,
também envolvido na batalha. José Bonifácio, Joaquim
Gonçalves Lêdo, Diogo Feijó e Hipólito José da Costa
são os homenageados eleitos para criar o vínculo com
o desejo do povo pela mudança. A entrada de D. Pedro
na Rua do Carmo, em São Paulo, após a ação às margens
do Ipiranga, e o Combate de Pirajá, na Bahia, são
outros eventos integrantes do monumento. Alegorias
do que a Independência representa a todos – justiça
e liberdade – estão presentes ao redor e no topo da
obra. 13
A história foi replicada em bronze e instalada no mesmo
terreno em que a suposta Independência ocorreu,
nas margens do Riacho do Ipiranga. Os fantasmas da
História, ou de como ela escolheu ser contada, seguem
na concretude no monumento, instalado para a população
de séculos por vir.
12 Monteiro, Michelli Cristine Scapol. São Paulo na disputa pelo
passado: o Monumento à Independência, de Ettore Ximenes. Tese de
doutorado / USP (2017).
13 Para uma análise mais profunda e descritiva da obra, consultar a
tese de doutorado de Michelli Monteiro, capítulo 4: “O Monumento,
o Museu e o Parque: lugar de memória da nação”.
52 53
Antônio Diogo da Silva Parreiras (Niterói /
Brasil 1860 - 1937) foi um consagrado artista
da virada do século XX. Além de paisagens,
dedicou grande parte de sua produção à pintura
histórica.
Novos heróis precisavam ser construídos na iconografia
da Independência. Pensar em novas representações,
significava, também, revisitar outros momentos da
Independência que não foram retratados com os mesmos
louros que o 7 de setembro. As revoltas anteriores
à data marcada por D. Pedro I começam a ter maior
frequência nos quadros voltados à Independência.
Personagens não vinculados à monarquia passam a ser
investigados para, assim, criarmos uma identidade de
nação republicana. Além disso, a disputa de protagonismo
entre Rio de Janeiro e São Paulo como símbolo
da Independência fez com que os demais estados
da República buscassem criar as suas representações
pictóricas de momentos marcantes em seus territórios
e promover seus heróis. Antônio Parreiras viu nesta situação
uma oportunidade, e ofereceu seus serviços para
contar outras narrativas da Independência, com foco
na Bahia. A partir do mecenato estatal, o artista foi
pago para produzir uma iconografia referente à Independência
naquele estado. Seu quadro Primeiros Passos
para a Independência da Bahia foi encomendado pelo
então governador, Vital Soares, e nos mostra uma cena
que condensa três dias de luta em um único momento,
como aponta a professora Lúcia Kluck Stumpf. 14
Parreiras retrata o momento em que a Câmara Municipal
de Cachoeiras reconhece a independência em
relação a Portugal. As ruas são tomadas pelo povo,
militares e clero, todos combatentes, todos brasileiros.
Em destaque, outros heróis da Independência que
não pertenciam à monarquia, como o militar Rodrigo
Falcão – representante de D. Pedro –, o civil Antônio
Rebouças e representantes do clero. Parreiras dá destaque
ao soldado Manuel da Silva Soledade, considerado
um dos primeiros mártires da Independência, que foi
atingido por canhões dos navios portugueses. Mesmo
com perdas, o povo comemora a sua conquista.
Contrariando o senso comum de uma ruptura pacífica,
a imagem de Parreiras mostra que a disputa não foi
tranquila, que houve sacrifício, houve luta. Conforme
as palavras do artista, é necessário rever a História da
Independência e não se iludir com uma versão criada
pela História oficial em que apenas a voz de D. Pedro I
podia ser ouvida. A obra de Parreiras e seu discurso são
singulares, pois colocam em evidência a necessidade de
se investigar o papel dos outros estados na Independência
e na formação da nação brasileira, assim como
a presença de outros sujeitos ativos, especialmente
pessoas não ligadas à elite, como negros e mulheres.
14 Informações retiradas de sua palestra no YouTube durante o evento
Primavera de Museus (2022) do Museu Antônio Parreiras. https://
www.youtube.com/watch?v=z7tPPtkDgLY
A cena retrata a disputa entre brasileiros e portugueses
na cidade de Cachoeira nos dias 25 a 28 de junho de
1822. Stumpf conta-nos que os croquis produzidos
para a cena encomendada deveriam ser enviados para
avaliação, fato detalhado no contrato do artista a fim
de garantir que este não tomasse liberdades. Assim,
novamente, a imagem ganhava ares de documento
oficial, contando exatamente o ocorrido. Por mais que
não fosse um momento estático e sim três dias, a tela
flerta com os acontecimentos ao colocar personagens
históricos e ser inspirada na documentação salvaguardada
em arquivos públicos.
Antônio Parreiras
Primeiros Passos para a
Independência da Bahia, 1931
Óleo sobre tela
400 cm x 600 cm
Acervo do Palácio do Rio Branco /
Governo do Estado da Bahia
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Romeu Mariz Filho (Belém / Brasil, 1913
– 1947) foi pintor e ilustrador de peças das
indústrias Klabin.
As fronteiras, linhas imaginárias que delimitam os países,
na atualidade, não parecem ser alteráveis. Quando
presenciamos a tomada de territórios por guerras contemporâneas,
a discussão sobre a violência da retirada
dos antigos habitantes daquelas terras, da imposição
de costumes e línguas chega em todos os órgãos de
direitos humanos. Além do mais, aqui, vista do Brasil,
tal possibilidade de mudança de território parece algo
que ocorre apenas com os outros, nunca conosco.
No século XIX, quando viramos nação, nossas linhas
ainda não estavam fincadas, assim como a fronteira
entre México e Estados Unidos seguia em disputa, por
exemplo. A Independência trazia um novo sentido de
unidade, seja do povo como do território e, em um país
de dimensões continentais, garantir a integração das
províncias em um projeto de país não era garantido.
A província do Grão-Pará não aceitou fazer parte do
Império, já que era mais interessante para a sua elite –
composta por comerciantes portugueses – continuar a
relação com Portugal. Por alguns meses tal realidade
foi mantida, mas, em 1823, D. Pedro I decidiu que era
necessário incluir a província no Império e como parte
do Brasil. O governante enviou uma fragata comandada
por John Grenfill para Belém com a intenção
de conquistar o território. A população não aceitou
prontamente a oferta do imperador e revoltas se desenrolaram
com a chegada do comandante; até mesmo
meses antes da fragata chegar, embates no Grão-Pará
entre defensores de Portugal e favoráveis ao Império já
deflagravam no território. Sob o comando de Grenfill,
deu-se uma das maiores chacinas relacionadas às lutas
pela Independência, a qual foi retratada 13 anos após
sua ocorrência por Romeu Mariz Filho. O episódio,
conhecido como o Massacre ou Tragédia do Brigue
Palhaço, causou a morte de mais de 250 pessoas, aprisionadas
em um pequeno porão da embarcação, sem
água nem comida e sofrendo torturas por uma noite.
Mariz traduz o evento, mostrando como os responsáveis
estavam cientes do sofrimento dos prisioneiros. O
autor não opta por uma pintura histórica: percebemos
que mais do que capturar o material do navio, os trajes
dos oficiais ou dos demais sujeitos da cena, Mariz
realçou a agonia enfrentada naquela noite. Terror é a
tradução dos rostos de quem está no porão. As feições
de boca aberta clamam por água e liberdade. Conforme
relatado, o espaço era muito pequeno e os corpos
amontoavam-se, e o artista apresenta o fato ao colocar
quase todos os homens em posição horizontal. Poucos
conseguem ficar em pé. Quem ainda não foi tomado
pelo pavor, olha para cima, em busca de ajuda, ou
esperando algum sinal de humanidade. No topo do
porão, Mariz retrata dois oficiais observando a cena.
A escolha das cores da tela remete ainda mais a um
ambiente de terror, onde claridade e iluminação não
são possíveis. A representação não necessariamente
remete ao tempo da noite, mas à escuridão do evento,
da desumanidade no trato das 256 pessoas presas no
brigue. O título do quadro e de como o evento ficou
conhecido, a Tragédia do Brigue Palhaço, colocam em
evidência como os corpos foram encontrados. Durante
a noite, cal foi jogado dentro do porão, o que acelerou
a asfixia das pessoas. Na manhã seguinte, com o
rosto descolorido pelo pó mas os olhos e lábios roxos,
os cadáveres lembraram a pintura facial de palhaços.
Porém não há graça ou riso ao final do show. Apenas
mais uma batalha no rol das lutas pela Independência
que é colocada de lado para favorecer uma história sem
derramamento de sangue na formação do Brasil.
Romeu Mariz Filho
A Tragédia do Brigue Palhaço, 1936
Óleo sobre tela
127 cm x 145 cm
Acervo do Museu de Arte de Belém – MABE
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eríodo III 2022
Chegamos no Terceiro Período. Os duzentos anos do marco da Independência foram
celebrados em 2022, mas fizemos uma escolha consciente, em nosso recorte, de incluir
obras da segunda metade do século XX que tinham como objetivo pensar criticamente a
representação do marco da Independência.
Mudanças sociais e governamentais marcam o período. Diferente das décadas seguintes a
1822, em que celebramos a quebra do domínio português, ou do centenário da Independência,
em que a República seguia forte em sua era balzaquiana, agora somos marcados
por períodos de governos autoritários e regimes ditatoriais: primeiro, com a Era Vargas,
entre 1930 e 1945, quando Getúlio Vargas governou o Brasil por 15 anos e de forma contínua;
posteriormente, com a sucessão de governos militares que se mantiveram no poder
entre 1964 e 1985. Nesse período, repressão era a palavra de ordem. Em relação ao fazer
artístico, temos muitos depoimentos e registros de censura e perseguição de obras visuais,
cênicas e musicais.
Por fim chegamos ao momento atual, a Nova República, iniciada devido às pressões econômicas
e populares que derrubaram o regime anterior. Seguimos com a possibilidade de
escolha de nossos representantes: presidente, deputados, governadores, senadores, todos
são eleitos através do voto popular, sistema no qual cidadãos brasileiros podem exercer seu
direito de escolha.
Começamos com o fim da relação de colônia com Portugal e o início da formação de
uma nação, o começo da invenção de nossos ritos e a criação de uma identidade brasileira.
Nesse percurso de duzentos anos, o que é o Brasil, seus símbolos e heróis, foi sendo
transformado, e novas leituras dos personagens da História oficial foram sendo realizadas.
Se em 1922 novos sujeitos são trazidos para representar momentos marcantes da Independência,
nas décadas seguintes, outras possibilidades de entender o marco criado como
fundador da nação brasileira se abrem, permitindo o surgimento de caminhos que buscam
reforçar imagens de um passado glorioso, enquanto outros mostram apagamentos de
sujeitos e histórias.
Para escrever novas histórias, precisamos revisitar o passado. Algumas obras do período
em questão seguem esse caminho. Enaltecem heróis e batalhas apagadas pela História
oficial e que dão rosto a heróis populares. Apesar da prática valorizada, no século XIX,
da pintura histórica, o que era elegido pintar era a narrativa dos vitoriosos e, também, de
quem possuía capital para realizar uma obra comissionada. Com isso, as imagens produzidas
pelos artistas, aos moldes de seus fregueses, ficaram conhecidas pelas gerações futuras.
Um exemplo é a imagem de D. Pedro I: a partir dos quadros selecionados, é perceptível
a escolha de retratá-lo enquanto um príncipe com ares militares, suas botas de montaria
parecem não sair de seus pés, independente do momento. Chegaram mesmo a causar
estranhamento, na época, as imagens da coroação e da aclamação em que o príncipe era
representado com tal calçado. Os símbolos ajudam a construir a identidade de D. Pedro
como ativo, lutador, militar, o que gera contraste com outros monarcas portugueses. Além
disso, o fato de ter morrido aos 35 anos acaba por criar uma iconografia jovial relacionada
ao príncipe. Eleito como um dos principais heróis da Independência na História que foi
escolhida, sua imagem precisava trazer o vigor da nova nação que surgia.
Sublinhamos a representação das mulheres na Independência. Três papéis são criados e reforçados
nas iconografias: a de cuidadora/mãe, da guerreira que abdica do feminino e da mulher casta
que dedica sua vida ao serviço da Igreja. Três ideais usados em personagens como Leopoldina,
Maria Quitéria e Joana Angélica nas pinturas logo após a Independência e no início do século
XX. Apesar de vermos tentativas em mudar o perfil criado para elas, como a obra de Georgina
de Albuquerque em 1922, são poucas as representações femininas em espaços políticos nos
anos próximos à Independência. É perceptível um desejo na atualidade de artistas retomarem a
imagem das mulheres e criarem uma nova iconografia, mostrando diferentes facetas delas e seu
papel ativo em batalhas e momentos decisivos na construção da nação. Não só uma nova iconografia
das personagens retratadas anteriormente é revisitada, mas também a representação de
mulheres apagadas pela História oficial. Artistas e historiadores investigam a fundo fontes que
não resumem a Independência a uma luta pacífica da elite. Maria Felipa, importante liderança
na Guerra dos Búzios (1798) pode não ter sido registrada pelos pintores da época, porém, através
do resgate das figuras das histórias do Brasil, vemos sua luta representada em obras visuais da
contemporaneidade. Heróis e heroínas sem rosto são visibilizados por artistas contemporâneos.
A liberdade em relação ao retrato documental, fiel aos fatos e feições dos sujeitos e, também, a
falta de registros dessas pessoas, permite que os artistas expandam seu repertório e representem
essas personalidades através de obras figurativas ou não, mas que de toda forma nos fazem questionar
a narrativa iconográfica da Independência.
Novos ares, novas narrativas. Mesmo com a possibilidade de expansão das histórias, certos símbolos,
em momentos de crise, são retomados e reforçados. Apesar de não trazermos tal análise
nas obras selecionadas, é importante citarmos que, quando a Independência completou 150 anos,
em 1972, certos símbolos – inclusive iconográficos – foram retomados pelo regime vigente. No
ano em questão, o país se encontrava em seu oitavo ano de ditadura militar. Querendo intensificar
a relevância de D. Pedro I enquanto militar, o governo reforçou a imagem do monarca
e de seus feitos para o país. O quadro de Pedro Américo figurou em material oficial, e Aloísio
Magalhães foi convidado a criar uma identidade visual conectando 1822 a 1972. A ideia de que
um príncipe-militar foi o responsável pela Independência reforçaria a importância da classe na
criação do país enquanto território independente. Os símbolos da monarquia brasileira foram
retomados para fortalecer a importância dos militares e enaltecer seu governo. Tal movimento
foi ensaiado novamente em 2022 pelo então presidente durante as comemorações do Bicentenário,
pois o mesmo tinha fortes laços com as Forças Armadas. Ao invés de seguir uma trilha que
vem sendo explorada cada vez mais, das histórias e dos vários personagens que, em diferentes
territórios e datas, contribuíram para que o Brasil existisse enquanto nação, o caminho oficial foi
o de reforçar a importância da monarquia e de D. Pedro I como personagem singular de nossa
história. A tentativa foi mais alvo de críticas do que elogios e, por mais que o governo não tenha
optado por um revisionismo histórico, as artes visuais e suas instituições agiram no objetivo de
questionar as representações dos duzentos anos da Independência.
Citamos algumas exposições que, aproveitando a efeméride, trouxeram uma leitura própria. Um
ponto em comum de todas foi a inclusão de artistas contemporâneos trazendo obras que não necessariamente
foram criadas para simbolizar o marco do 7 de setembro ou de outros eventos que
levaram à dissolução do laço com Portugal, mas que, pelo olhar dos curadores, em seu conjunto,
representam questões importantes para o momento histórico ou para questionar a veracidade
da Independência do povo brasileiro. A partir do livro O Sequestro da Independência, seus autores
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(Lilia Schwarcz, Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior) criaram uma exposição
homônima em São Paulo 1 , na qual obras contemporâneas dialogam com as representações
criadas em 1822 e 1922 dos personagens da Independência. A exposição, assim como
o livro, mostra como as imagens tornaram-se projeto de governo para enaltecer alguns
personagens e territórios, como São Paulo no início do século XX.
Pensando na pluralidade das histórias do Brasil, o Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand (MASP), realizou, também em 2022, a exposição coletiva Histórias Brasileiras.
A partir de uma curadoria compartilhada por funcionários do museu e curadores
convidados 2 , a mostra reuniu obras de diferentes períodos e contou com a forte presença
de artistas contemporâneos que partiram de leituras decoloniais sobre a história e o produzir
artístico. Com narrativas plurais, os personagens da formação do Brasil multiplicamse,
e seu nascimento enquanto nação ultrapassa um marco cronológico, ganhando nova
temporalidade ao considerar as histórias dos povos originários e das matrizes africanas
para além da versão do colonizador. Ao rever o passado de maneira crítica, a exposição
questiona quais histórias foram propositalmente esquecidas pelo caminho.
As instituições cariocas também realizaram mostras inspiradas na data para repensar os
heróis da Independência. No Museu de Arte Moderna (MAM), Atos de Revolta: outros
imaginários sobre a Independência 3 , com curadoria de Beatriz Lemos, Keyna Eleison, Pablo
Lafuente e Thiago de Paula Souza, nos apresenta um pensamento crítico sobre por que o
marco da Independência é tão associado ao grito do Ipiranga. A mostra coloca em evidência
levantes e insurreições anteriores e posteriores ao período de 1822, descentralizando
o papel do Rio de Janeiro e de São Paulo, trazendo acontecimentos em outros Estados,
como a Bahia, por exemplo. A escolha dos núcleos da exposição faz com que os visitantes
questionem as figuras dos heróis perpetuados na iconografia produzida em séculos anteriores
e nos símbolos do Estado, bem como sua produção e quem tem direito nessa nação
gerada em 1822. Visibilizar personagens e minorias como populações indígenas, negras e
mulheres é uma das intenções da mostra.
Ressaltar perspectivas para além da narrativa dominante também é o ponto de partida
da mostra Mulheres na Independência Brasileira 4 , com curadoria de Gabriela Noujaim,
realizada no espaço independente Casa da Escada Colorida. É perceptível, nos momentos
anteriores, a discrepância entre a produção de artistas homens em relação às artistas
mulheres. Pensando nessa sub-representação, a curadora convidou apenas mulheres para
pensar sua posição na sociedade brasileira tendo como ponto de ligação o Bicentenário da
Independência. A mostra coloca luz não somente nas artistas, mas também na participação
feminina nas lutas pela Independência.
Ainda na cidade do Rio de Janeiro, citamos mais uma exposição, Passado Presente: 200
Anos Depois 5 . Com curadoria de Cecília Fortes, a mostra reuniu nove artistas contemporâneos
brasileiros com a intenção de estimular o público a questionar o ideal de liberdade
promovido pela Independência, já que, passados dois séculos, a liberdade ainda parece
não ser um direito alcançável para todos. Além das exposições aqui citadas, é possível
encontrar outras mostras questionando o 7 de setembro assim como debates, publicações
e revistas dedicadas ao tema. Repensar o que a Independência e suas representações
simbolizam para o país na atualidade é uma urgência dentro de todas as camadas da sociedade e,
sem dúvida, dentro do campo das artes em seu amplo espectro. É possível perceber como o que
é questionado muda conforme novas vozes ganham espaço, inclusive nas obras selecionadas para
análise nesta seção.
Algumas obras compartilham de um início comum: foram solicitadas aos artistas para representar
leituras da Independência. Destacamos o papel da Caixa Econômica Federal em criar um
amplo repertório de obras comissionadas para datas festivas. Carnaval, Inconfidência Mineira,
São João, Independência e Natal são as datas que o órgão escolheu homenagear em seus bilhetes
de loteria. As homenagens se iniciam em 1968 e são estendidas até o começo da década de 1990.
Cada ano um artista diferente era chamado para criar obras a partir das celebrações. As obras
foram incorporadas no Acervo da Caixa e também ilustraram os bilhetes dos sorteios da loto
das respectivas datas. Com isso, muitas obras comissionadas relacionadas à Independência foram
produzidas por artistas brasileiros importantes. Em nossa pesquisa, conseguimos a autorização
para o uso de imagem de algumas e, consequentemente, oferecemos aqui uma análise 6 . Em meio
a uma pluralidade de representações, a Independência pode tornar-se uma imagem do grito,
uma comemoração do feriado nos tempos atuais ou, ainda, uma obra abstrata. Cada artista, a
partir da encomenda, apropriou-se da data e, imprimindo seu estilo, fez uma releitura do que
significa a Independência no Brasil. Por vezes percebemos a figura de D. Pedro ou as margens do
Ipiranga? Sim. Mas em outras vemos pessoas comemorando nas ruas, produzindo símbolos do
Brasil como a bandeira da República (símbolo só criado após mais uma mudança política) e, até
mesmo os representantes do povo, com suas mazelas diárias. As presenças femininas tornam-se
comuns, assim como sujeitos do povo que atuam ativamente na celebração, saindo do papel de
espectadores de uma história contada e não criada por eles.
Outras obras comissionadas, mais próximas do ano do Bicentenário, trazem um olhar crítico
da Independência e das representações oficiais. Intervenções em quadros de Pedro Américo e
François-René Moreaux podem ser observadas nos trabalhos analisados de Denilson Baniwa e
Davi Benaion, para citar alguns. Consideramos estas remixagens das obras. Tomando um termo
musical, em que sons existentes são reunidos para criar uma nova canção, as obras dos artistas
citados se valem de tal artifício para criar plástica ou corporalmente novos significados para
antigas imagens que nos rodeiam. Assim como nas músicas em que identificamos os trechos
embaralhados, os autores das obras modificadas estão fortemente presentes nas imagens, mas a
nova “sonoridade” criada pelos artistas é a voz ouvida, e nos faz criticar as representações tidas
como documentos imparciais.
Há imparcialidade na imagem? É possível criar retratos fiéis ao fato? Mesmo a fotografia imprime
a subjetividade do autor. O enquadramento, a escolha do ângulo, o tempo de exposição, a
escolha pela cor ou não, todos os elementos de como o retratado irá se apresentar ao seu receptor
influenciam na interpretação do que é observado. As obras selecionadas para o Terceiro Período
destacam sua parcialidade, elas querem contestar os fatos dados e apresentar outras versões
através da mão de seus criadores. Assim, D. Pedro vai aos poucos deixando de ser o protagonista
da Independência, e outras representações iconográficas surgem, novos heróis e heroínas são
descobertos e retratados.
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A Independência, assim como outros rompimentos políticos, não aconteceu repentinamente; longos caminhos foram
percorridos por diferentes sujeitos que acabaram por influenciar nas rupturas. Não foi pacifico, não foi apenas
uma vontade da monarquia de favorecer o povo, a Independência é um amalgamado de fatos que aconteceram em
diferentes territórios e em diferentes momentos. A luta popular foi sangrenta e marcou o desejo da libertação em
relação a Portugal. A resistência dos povos indígenas e escravizados também se soma ao momento. E quando as
obras questionam o marco e para quem ele foi encenado, revemos a Independência da nação. Reiterada nas exposições
que marcaram o Bicentenário, o questionamento sobre quem é independente, quem é livre, ressoa na atualidade
a plenos pulmões. Apesar da associação, a Independência não significa liberdade, ao menos não significou na
época de sua proclamação, e continua não havendo uma relação direta entre os dois ideais. É inegável que o 7 de
setembro marca, simbolicamente, o início da criação de uma identidade nacional. Mas associá-lo à libertação é algo
falho. Logo, questionar o ato e sua simbologia fortalece a busca pelo direito à liberdade. Mais que independência,
o direito de existir passa a figurar nas representações contemporâneas da Independência. Ao citar figuras apagadas,
ao representá-las, os artistas têm o direito de escolher qual narrativa querem seguir, quais imagens irão representar
a nossa construção de nação. Ademais, colaboram para visibilizar mulheres, indígenas, negros e populações minoritárias
que foram apagadas das representações oficiais.
Nossa análise mantém-se em aberto. As representações da Independência continuam a ser criadas diariamente. A
relação dos sujeitos com esse evento acaba por ser singular e permeada pelas novas imagens que circulam na mídia
e nas artes. Esperamos que as histórias sejam múltiplas e que possam ter sua visibilidade ampliada.
Não tivemos um grito apenas, a pluralidade de gritos ainda ecoa e pede por Independência. Os artistas escutam e
seguem interpretando-os. Esperamos que, quando chegarmos ao Tricentenário, as histórias tenham sido ouvidas e
suas diferentes representações possam ressoar com igual força as imagens ditas como oficiais.
1 A exposição foi realizada na Galeria Arte 123, na cidade de São
Paulo, no período de 13 de agosto a 24 de setembro de 2022.
2
Histórias Brasileiras teve a direção curatorial de Adriano Pedrosa e
Lilia Schwarcz e curadoria de Amanda Carneiro, André Mesquita,
Clarissa Diniz, Fernando Oliva, Glaucea Brito, Guilherme Giufrida,
Isabella Rjeille, Sandra Benites e Tomás Toledo. A mostra ficou em
cartaz de 26 de agosto até 29 de outubro de 2022.
3 A exposição ficou aberta entre 17 de setembro de 2022 até 26 de
fevereiro de 2023.
4
A Casa da Escada Colorida fica localizada no bairro de Santa
Teresa, no Rio de Janeiro. A exposição ficou em cartaz de 03 de
dezembro até 18 de dezembro de 2022.
5 Realizada no Centro Cultural da Procuradoria-Geral do Estado
do Rio de Janeiro (PGE-RJ), a exposição ficou em cartaz de 27 de
outubro de 2022 até 04 de março de 2023.
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Para ter acesso às obras produzidas, consultar o site da Caixa
Econômica Federal.
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Djanira Motta e Silva
Independência, 1968
Guache sobre papel
60 cm x 120 cm.
Acervo da Caixa Econômica Federal
Djanira da Motta e Silva (Avaré / Brasil,
1914 – Rio de Janeiro / Brasil, 1979) desenvolveu
pinturas baseadas na cultura popular
brasileira e no cotidiano das classes trabalhadoras,
como cenas rurais retratando colhedores
de café, vaqueiros e mulheres no campo,
e cenas urbanas com operários da indústria,
além de obras religiosas.
Obras comissionadas ou encomendadas são usuais na
história da arte. Reis, duques e demais membros da
nobreza tinham tal prática como atividade recorrente,
solicitando aos pintores retratos individuais ou de
suas famílias. A representação da monarquia brasileira
e de seus feitos, como a Independência, contou com
pinturas e monumentos encomendados, alguns com
recomendações bem específicas de como deveriam ser
realizados. Momentos posteriores também se valem de
obras encomendadas: na República, os estados brasileiros
tornaram-se grandes financiadores de artistas ao
investir em uma história construída através da imagem
de seus heróis e datas comemorativas. Diferentes intencionalidades
levam à produção de obras comissionadas
na atualidade, como o desejo de expandir um acervo
público ou privado ou a temática de uma exposição.
No caso da comissão da obra Independência, de Djanira
da Motta e Silva, o propósito da instituição Caixa
Econômica Federal era fomentar a produção de artistas
nacionais, ampliar seu acervo e, também, utilizar as
obras comissionadas em bilhetes da loteria em datas
comemorativas 7 . Djanira foi a primeira artista convidada
para o projeto. Dentre as datas temáticas, desenvolveu
obras para ilustrar os bilhetes de loteria das datas
de 7 de setembro, São João e Natal. As encomendas, de
acordo com Dresch, foram solicitadas no ano anterior
à emissão dos bilhetes, em 1967. A Djanira ainda foi
encomendada mais uma obra, em 1969, com a temática
da Inconfidência Mineira. As obras eram usadas como
um “papel de parede” para as informações da loto. Em
algumas edições, além dos números e informações
aparecerem em cima das imagens, suas laterais eram
cortadas, aparecendo apenas figuras centrais, algo que
ocorre com a obra de Djanira. Dresch chama atenção
para mais um detalhe: a autoria não era informada
nos bilhetes. Apenas em 1979, ao utilizar uma obra
comissionada de Glauco Rodrigues, que a imagem foi
identificada com os devidos créditos ao seu autor. Não
foi o caso com as reproduções das obras de Djanira.
Ocultadas pelas informações do jogo, não tinham destaque
enquanto obra. Se, por um lado, o uso da imagem
na loteria supria a possibilidade de apreciação da obra,
financiar e possibilitar a criação de artistas brasileiros
fomentava a coleção da Caixa, levando as obras a
circularem em exposições e catálogos da instituição e de
outros espaços culturais.
A representação da Independência de Djanira não
apresenta qualquer figura histórica. Os sujeitos que
ocupam a centralidade da tela nem rosto possuem e,
assim, podem ser qualquer um, qualquer homem ou
mulher, qualquer criança, qualquer indivíduo pertencente
ao povo brasileiro. A artista não escolheu retratar
um determinado momento ou dar uma temporalidade
definida que situe as pessoas em uma cidade ou território
específico. Eles são de algum Brasil, eles são de todos
os Brasis. Ao invés de rastros de luta, a paz predomina
na pintura através de símbolos como pombas brancas
e flores. Um porém é a quebra das correntes por uma
personagem feminina, que pode simbolizar o fim da
dependência de Portugal ou, ainda, o fim da escravidão
– quando a independência de outros sujeitos brasileiros
foi palco de discussão. Uma terceira ruptura seria com
o próprio Império na criação da República, momento
representado no quadro ao reunir as bandeiras dos dois
regimes em um só espaço. Juntam-se ainda a bandeira
do Estado de Pernambuco – uma das primeiras regiões
a lutar pelo fim da soberania portuguesa – e outras livres
representações. São estandartes misturados que parecem
prontos para um cortejo de celebração. Aqui a Independência
representa a comemoração de todos: o povo vai
para as ruas celebrar a paz e o fim de ligações aprisionadoras.
Djanira ainda inclui elementos abstratos, emoldurando
a cena apresentada. Com forte predominância
de tonalidades de vermelho e azul, as cores escolhidas
não remetem especialmente aos símbolos nacionais, mas
se relacionam com a escolha da paleta da artista para a
cena. Sua interpretação da Independência não passa por
D. Pedro I ou momentos de militarização da história; as
escolhas de Djanira para a obra encomendada apontam
para a união e comemoração do povo brasileiro, o protagonista
de sua pintura.
7 A monografia de Bernardo Souza Dresch, O Acervo Artístico da
Caixa Econômica Federal nos seus bilhetes da loteria, 1968-1989. (2018,
graduação em Artes Visuais, UFRGS) apresenta um panorama das
obras produzidas e reproduzidas nos bilhetes lotéricos no período
delimitado.
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Emiliano Augusto Cavalcanti de
Albuquerque Melo (Rio de Janeiro / Brasil,
1897 – 1976) baseou sua produção na representação
de uma temática nacionalista a partir
da conciliação das vanguardas europeias,
com o desenvolvimento de um estilo próprio.
Emiliano Di Cavalcanti foi o artista seguinte a Djanira
a ter suas obras ilustrando os bilhetes da loteria. Com
temáticas determinadas, Di Cavalcanti criou obras
para as datas comemorativas da Independência, São
João, Natal e a Inconfidência Mineira. Mesmo que o
conteúdo fosse fornecido pelo solicitante da obra – a
Caixa Econômica Federal –, os artistas retratavam
os temas conforme seu estilo e desejos. Figurativas
ou abstratas, as obras eram criadas respeitando-se os
traços dos seus autores, carregavam sua assinatura –
mesmo quando essa não era encontrada na impressão
dos bilhetes da sorte.
Di Cavalcanti escolheu retratar a celebração da Independência
após sua passagem. A cena não remete
à data-marco ou a militares montados a cavalo com
espadas em punho. O destaque é para uma família,
uma mãe, um pai e seus filhos. Celebraram a data
com a bandeira do Brasil 8 em suas mãos e fixadas nos
postes ao fundo do quadro. A formação da nação e seu
entendimento enquanto povo único passa pelo uso de
símbolos, que são (re)forçados durante nossas vidas: na
escola, através das mídias de massa e em datas comemorativas.
Ao replicá-los, associamos tais símbolos
com o país ou com nosso sentimento de coletividade.
Podemos até desconsiderar a bandeira quando a vemos
em uma janela em nosso cotidiano. Todavia, quando a
acrescentamos a um momento de comemoração – seja
uma vitória esportiva ou política – o sentimento de
pertencimento é aflorado e a bandeira parece ganhar
vida. Nas comemorações da Independência do Brasil, o
uso da bandeira é frequente, e Di Cavalcanti vale-se de
sua simbologia para localizar sua obra no momento de
celebração do 7 de setembro. Como explicitado, a imagem
apresentada não remete à data em si, ao evento da
Independência, mas nos faz lembrar de comemorações
nas ruas, momentos de coletividade e reunião de vizinhos
e parentes que celebravam conquistas enquanto
sujeitos pertencentes ao povo brasileiro. O título e o
próprio uso da imagem pelo acervo já indicam qual
é a comemoração, o porquê do encontro e do uso da
bandeira pela família e pelo espaço da rua. O verde e
amarelo se destacam na pintura ao criarem focos de
atenção para os estandartes. A família segue unida, nos
encarando. Seria essa uma comemoração feliz? Teria
sido a Independência proclamada um alívio para eles?
Seriam eles independentes? O semblante do pai coloca
mais dúvidas do que certezas. Celebram uma data que
se tornou marco histórico mas, para além da festividade,
teria sido um desejo de Di Cavalcanti nos fazer
questionar o que a data efetivamente representou para
o povo – aqui representado no microcosmos de uma
família – brasileiro.
8 Importante salientar que a bandeira presente na pintura de Di
Cavalcanti é a bandeira da República, criada em 1889. A bandeira
criada após a Independência utiliza as mesmas cores da atual, mas
sua composição é diferente.
Emiliano Di Cavalcanti
Independência, 1969
Óleo sobre de tela
80 cm x 100 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Aldemir Martins
Independência, 1969
Óleo sobre de tela
80 cm x 100 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Aldemir Martins (Ingazeiras / Brasil, 1922
– São Paulo / Brasil, 2006) possui relevante
produção figurativa com um repertório
formal que inclui aves (sobretudo os galos),
cangaceiros, gatos, flores e frutas, representados
com cores intensas e contrastantes e
formas sinuosas.
Seguimos com mais uma obra produzida através do comissionamento
da Caixa Econômica. Após duas obras
que retratavam personagens ligados à comemoração
popular da Independência, no bilhete de 1970 a imagem
que figurava era D. Pedro I. Aldemir Martins retomou
a iconografia do libertador do Brasil: com suas botas
de montaria e ar jovial. Apesar da imagem remeter ao
momento do grito, o príncipe segue sozinho em cima de
seu cavalo e nenhum outro elemento indica que o cenário
se trata do local onde a Independência foi proclamada.
Porém os elementos utilizados na imagem nos levam
a associá-la ao momento em que o Brasil se torna Império.
A começar pela forte presença das cores da bandeira,
utilizadas tanto na bandeira do Império quanto na da
República. A geometria visível na disposição do céu, sol
e grama também fazem referência à bandeira, porém
com o referencial de cores trocado. O amarelo toma a
forma de círculo contornado pelo azul do céu que divide
o quadro com o verde da grama.
A criação de mitos faz parte da invenção das tradições
nacionais. Ao se narrar uma história de nossos antepassados
ou da formação de nosso povo, parece que a
tradição está localizada em um momento atemporal,
não identificado nas disputas daquele território. Na
bandeira do Império, o verde e amarelo predominam,
sendo a primeira uma referência à Casa de Bragança,
dinastia de D. Pedro, e a segunda à Casa de Habsburgo,
família de D. Leopoldina. O grito que separava o Brasil
de Portugal não ecoava com tanta força, já que a criação
da nação e de seus símbolos mantinham referências
aos nossos colonizadores. A linha frágil de ruptura por
vezes parece até se quebrar para que alguns acordos e
tradições sejam mantidos. E assim, mesmo com novas
transformações políticas, mantivemos os símbolos da
dominação. A bandeira da República seguiu com o
verde e amarelo, para manter a tradição das antigas cores
nacionais, conforme aponta decreto do primeiro presidente
do país, Deodoro da Fonseca. No mesmo decreto,
ainda é citado que “as cores da nossa antiga bandeira
recordam as lutas e as vitórias gloriosas do exército e
da armada na defesa da pátria” 9 . Disfarçando com mais
uma explicação para além da real escolha das cores, há
ainda uma criação poética de analogia das cores com as
“riquezas naturais” do país.
As novas interpretações ou a intenção de manter uma
tradição inventada fazem com que o verde, amarelo e
azul sejam as cores do Brasil. Assim, quando Martins
opta por utilizá-las preenchendo sua pintura, a relação
com a bandeira é quase imediata. O artista escolheu
revisitar símbolos oficiais da Independência em sua
interpretação, relembrando o papel de D. Pedro I e sua
elevação a personagem libertador do país.
9 O decreto na íntegra pode ser lido no site da Presidência da
República: Decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889.
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Clóvis Graciano
Sem título, 1972
Óleo sobre de tela
80 cm x 100 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Carybé
Independência, 1972
Acrílica sobre de tela
80 cm x 120 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Clóvis Graciano (Araras / Brasil, 1907 – São
Paulo / Brasil, 1988) foi integrante do Grupo
Santa Helena e produziu obras sobre temáticas
sociais, tanto em suportes tradicionais,
como telas, quanto em murais públicos.
O ano de 1972 marca a comemoração do Sesquicentenário
da Independência do Brasil, ou seja, 150 anos de
sua separação de Portugal. A data é usada pelo regime
militar vigente para enaltecer a figura de D. Pedro I e
dos militares no processo de Independência do país. E
assim, mais uma vez, reforça-se o mito de uma separação
ordeira e realizada quase que singularmente por
uma pessoa. A imagem de D. Pedro segue no imaginário
como príncipe-herói. Por isso não é de se espantar
que, no bilhete de loteria de 1972, sua imagem apareça
em destaque. Coincidência ou não, Clóvis Graciano
optou por representar o príncipe em seus trajes militares
em uma cena que aparenta ser o 7 de setembro.
Não há mais obrigação dos pintores e escultores com a
criação de imagens-documentos. Carregar a assinatura
do realizador ultrapassa a necessidade da obra ser uma
“fotografia” do fato histórico. Por mais que os autores do
século XIX e início do XX revelassem o uso de elementos
alternativos à cena real, a representação era tomada
como fato, e a obra de Pedro Américo ilustra bem tal
situação. Ela é interpretada como um documento da
Independência, mesmo com texto do autor explicando
certas liberdades tomadas na sua recriação.
O palco torna-se livre quando as representações históricas
estão tatuadas na memória. Graciano seleciona
alguns elementos que remetem ao 7 de setembro para
a criação de sua obra comissionada. A figura central de
D. Pedro I em seu cavalo é destaque no primeiro plano
da imagem. A presença dos soldados de seu exército é
discreta: há menos de dez soldados ao fundo da tela,
divididos em dois polos. Uma forma é replicada na
“Teimosa feito uma mula” é uma expressão popular
muito utilizada. Quando a mula não quer, ela não faz,
fica empacada, sem se mexer. A tradução foi a teimoimagem
diversas vezes, o quadrado. Representando o
céu e a terra, a forma ganha destaque. Ao localizá-la na
imagem, especialmente no que imaginamos ser o horizonte,
o enquadramento da forma sugere três grandes
janelas para o exterior da cena. Enquanto a Independência
acontece, o universo do povo brasileiro segue em
um espaço externo às decisões. A divisão que as supostas
janelas proporcionam, remete a falta de participação
popular naquele momento, que se torna um espetáculo
interpretado por personagens da elite e definidos rapidamente
para que o protagonismo continuasse na mão
dos poderosos. A relação do espectador com o quadro
continua colocando o povo como público passivo frente
ao acontecimento. As escolhas do cenário trazem a crítica
do que seria essa Independência e quais vozes foram
escolhidas, pela história oficial, como ativas e passivas.
Conforme levantado, D. Pedro I segue em primeiro
plano na encenação, e seus companheiros ao fundo.
Em segundo plano, outro homem se destaca, também
montado em seu cavalo. Ao examinarmos com cuidado,
percebemos as semelhanças entre esse sujeito e o representado
no primeiro plano. Seriam ambos D. Pedro I?
As roupas e feição não nos deixam enganar, trata-se da
mesma pessoa. As posturas diferem e podem simbolizar
D. Pedro momentos antes de declarar a Independência
e, depois, quando finalmente solta o grito. Ao repetir
sua imagem, colocando-as praticamente frente a frente,
Graciano cria uma mobilidade na cena, interpretando
momentos anteriores ao que ficou marcado na história
como marco do início do Império.
Hector Julio Páride Bernabó conhecido
como Carybé (Lanús / Argentina, 1911 –
Salvador / Brasil, 1997) possui importante
produção sobre a cultura brasileira, com
especial atenção dada às práticas religiosas, à
música e ao futebol.
A cena escolhida como marco da Independência volta
a figurar nas escolhas de Carybé em sua obra para o
bilhete de loteria da Caixa Econômica Federal. Morros,
soldados, o riacho, todos os elementos que nos vêm à
mente quando alguém fala sobre o grito do Ipiranga
foram retratados pelo artista. A ausência percebida
continua a ser do povo, apenas militares em seus cavalos
aparecem. A imagem de D. Pedro I é facilmente identificável,
seu casaco azul difere dos demais soldados, e
o princípe é apresentado em posição ativa, parece falar:
“Independência ou Morte” no exato segundo escolhido
pelo artista. Sua imagem está centralizada porém
ao fundo do quadro. Em primeiro plano, levemente a
esquerda, percebemos a presença de uma mula (ou um
burro, o gênero do animal não é identificado). Único
animal de carga, não parece se deixar domar às vontades
humanas pois, além de não estar com alguém em
suas costas, não quer sair de seu lugar. Seu desejo de
permanecer evidencia uma ação contrária a sua vontade,
visível na tensão da corda que puxa a mula para fora do
enquadramento.
sia ou preguiça. O animal não trabalha como desejam,
então deve ser um dos dois. A sua exploração não entra
em pauta, pois o bicho deve servir. Quando apresenta
resistência, deve ser domada, quebrada, para que cumpra
funções predeterminadas.
A mula de Carybé não foi domesticada, e mostra sua
irreverência em primeiro plano, é o destaque da imagem.
O evento histórico acontece ao fundo, mas ela continua
em sua posição. Qual relação ela tem com o evento? Vai
mudar seu regime de trabalho? Permitirá descanso ou
será liberta? A resposta é sempre negativa. Sua invisibilidade
e sua exploração são perpetuados.
Fato curioso é que, segundo relatos oficiais, as viagens
de longas distâncias não eram realizadas com cavalos, e
sim com mulas. A possibilidade do grito da Independência
ter ocorrido com D. Pedro montado em uma
mula é maior do que aquelas em que o príncipe é retratado
em cima de vistosos cavalos, reforçando a liberdade
de inclusão de elementos nobres no momento histórico.
Apagar e selecionar foram palavras de ordem quando
pensamos nas representações históricas e nos personagens
elegidos para contar as narrativas.
Ao destacar a mula, animal presente em diferentes
momentos da história do mundo, Carybé promove uma
reflexão sobre a importância do ato de D. Pedro – mais
ao fundo que o animal – e como animais e sujeitos apagados
seguem, teimosamente, marcando sua presença
em espaços e representações das narrativas plurais que
formam o país.
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Antônio Poteiro
Sem título, 1984
Óleo sobre de tela
80 cm x 120 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Glênio Alves Branco Bianchetti (Bagé /
Brasil, 1928 – Brasília / Brasil, 2014) dedicou
parte de sua obra às questões sociais, passando
posteriormente à representação de paisagens,
naturezas-mortas e figuras humanas.
Antonio Batista de Souza (Aldeia de Santa
Cristina da Pousa / Portugal, 1925 – Goiânia
/ Brasil, 2010) é conhecido por uma rica
produção de telas e cerâmicas retratando
temáticas regionais do Centro-Oeste, como a
paisagem do Pantanal.
Antônio Poteiro também entrou no rol de artistas
convidados a criar obras a partir de datas comemorativas
para a coleção da Caixa Econômica. Impressa no bilhete
de loteria, sua leitura da Independência apresenta uma
disputa entre Brasil e Portugal.
Na Idade Média nasceu um tipo de composição teatral
conhecida como Auto. Surgiu no Século XII, na Espanha,
mas tornou-se popular em Portugal e chegou até o
Brasil. Dentre suas características, é notável a criação de
alegorias por meio dos personagens e a intenção moralizante
da peça. Em relação a sua forma, destaca-se o fato
do Auto ser composto apenas por um ato, não haver
intervalo ou cortes, tendo a história toda sua narrativa
exposta naquele tempo.
Apesar da distância temporal, a obra de Poteiro nos
lembra um Auto. Conseguimos ver a narrativa criada
pelo artista, seus personagens, e até mesmo elementos
que remetem a símbolos sacralizados. A começar pela
ideia de batalha: diferente das representações históricas
e de como se deram as disputas pela Independência
e seus fatos anteriores, Poteiro escolheu encenar uma
batalha entre países. Portugal e Brasil em disputa, o
primeiro para manter seu domínio, garantir sua hegemonia
sob as terras invadidas, o segundo em busca de
autonomia, seus defensores com espadas em punho para
garantir a Independência. Os dois exércitos fictícios
enfrentam-se diretamente e são identificados pelas bandeiras
que seus soldados carregam. É interessante notar
que, em 1822, a representação das bandeiras de ambos
países diferia das que vemos na pintura. A bandeira
carregada pelos soldados em prol do Brasil é a bandeira
da República, desenvolvida em 1889, já a de Portugal
parece uma livre adaptação da bandeira atual, adotada
em 1911. Mesmo com os símbolos de Repúblicas na
tela, é visível uma alusão a dois monarcas, cada um
de um lado da batalha. Os dois montados em cavalos
brancos, os dois com suas cabeças coroadas, os dois com
espadas em riste; até suas feições se assemelham, afinal,
vinham de uma mesma família.
A diferença principal encontra-se em seus mantos/
bandeiras, cada um aludindo a seu país. A bandeira e
símbolos que remetem a Portugal têm forte presença de
crucifixos. Poderia ser o artista reafirmando o poder da
Igreja no controle e na colonização do país? Em nosso
Auto, a disputa parece estar a minutos de seu início. O
único empecilho é o riacho repleto de peixes que divide
os lados. O uso da linha divisória, representada pelo
azul da água, ajuda a reforçar os dois pólos opostos da
batalha. No céu temos elementos destacados. Do lado
de cada exército, há a figura de um homem segurando
algo que aparenta ser um animal e portando uma coroa,
que podem ser interpretados como alegorias dos países
e de suas conquistas. O grande destaque é uma pomba
branca localizada bem em cima do riacho. Apesar de sua
simbologia ser a da paz, a pomba carrega uma placa com
a palavra morte. Não há dúvida, a batalha representa a
finitude, a morte de pessoas e de ideais. Antes da paz
reinar, nesse caso, teremos perdas e sangue de ambos os
lados.
No canto inferior do quadro, um conjunto de pessoas
assistem o desenrolar da batalha. Tal representação faz a
analogia com o teatro pulsar fortemente. A forma como
esses sujeitos estão dispostos torna-os espectadores da
cena, mas não conseguimos identificar se estão ligados
a Portugal ou ao Brasil, pois o riacho que divide os
exércitos não separa esse grupo. São um corpo presente
e, em nossa análise, eles seguem sem pertencer a cena,
assistindo ao fundo quem será o vencedor da batalha
pela Independência. É o povo enquanto plateia da
mudança de seu país. O grupo de pessoas representa o
povo iconizado, um ideal de como a massa comporta-se
diante de uma situação de conflito. Assim como foi
escrito na História oficial, a participação da população
foi pontual. O quadro traduz esse senso comum ao colocá-lo
enquanto plateia de uma disputa imaginada.
Poteiro cria uma representação teatral da Independência,
em que mocinhos e bandidos entram em disputa.
Como nos filmes, o final feliz é dado quando podemos
celebrar a vitória do 7 de setembro enquanto povo
brasileiro.
A temática social é recorrente nas obras de Glênio
Bianchetti. A sua escolha para a obra comissionada
pela Caixa Econômica Federal distancia-se das comemorações
que remetem à data de 7 de setembro ou a
figuras históricas como D. Pedro e seus aliados, e nos
mostra uma imagem repleta de mensagens críticas e
políticas. Vote. A obra foi produzida em 1989, ano em
que eram realizadas as primeiras eleições diretas para
a presidência. Votar era o meio que o povo tinha para
expressar seus desejos políticos e qual rumo escolheriam,
pela primeira vez depois de quase quarenta anos sem
poder manifestar sua opinião política com segurança.
Se a Independência comemora a formação da nação
brasileira, o voto simboliza a sua força coletiva enquanto
povo. Bianchetti transmite a mensagem em sua tela e
acaba por propor mais uma reflexão ao compararmos
1822 a 1989. Enquanto no marco histórico o direito
de opinião da população continuava amordaçado pela
elite que se manteve no poder, esse novo momento
democrático dava voz a todo o povo brasileiro. A voz
da nação ecoava nas urnas. Bianchetti faz uma relação
direta entre votar e liberdade ao incluir cartazes com um
rosto masculino e a palavra liberdade colados no muro
que carrega os grafites com o dizer “vote”. A imagem
masculina poderia ser de mártires que conhecemos ao
longo da História. Lembra a iconografia de Jesus Cristo
assim como a de Tiradentes, elevado a mártir da Independência
com o passar dos anos. Importante notar que
nas pinturas realizadas do alferes mineiro, sua imagem
é de um homem barbado e com cabelos longos, corpo
delgado e de tez alva, um reflexo das imagens criadas
pela Igreja Católica para representar Cristo em seus
momentos de martírio e morte. Quem seria o homem
mostrado nos cartazes de Glênio? Talvez aberta à livre
interpretação, a associação da palavra liberdade com tal
figura nos faça pensar em sujeitos que lutaram por nossa
Independência e, no meio da batalha, perderam suas vidas.
Glênio coloca apenas duas palavras no fundo de sua
pintura, mas consegue, com sua presença, indicar como
a liberdade de nossos direitos foi conquistada através
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Glênio Bianchetti
Sem título, 1989
Acrílica sobre madeira
120 cm x 96 cm
Acervo da Caixa Econômica Federal
Laerte Coutinho
Sem título, 2022
Coleção da artista
Laerte Coutinho (São Paulo / Brasil, 1951)
é uma cartunista e chargista. Seu trabalho é
pensado e difundido por diversas mídias e sua
relevância vai além do universo da arte, com
desdobramentos no movimento sindical e nas
questões de gênero no Brasil..
de lutas com grandes perdas, com a morte de homens e
mulheres. Porém, só com essas lutas pudemos chegar ao
momento atual, em que nossos direitos são postos em
prática. A esperança é representada pelos dois jovens
logo no primeiro plano do quadro. Cada um pinta, em
diferentes dimensões, a bandeira do Brasil republicano,
celebrando a Independência e sua liberdade. Festejam o
7 de setembro e as possibilidades que a democratização
do país representava. Mesmo com a temática restrita da
obra comissionada, a Independência do Brasil, o artista
criou uma representação que diz mais sobre o momento
em que ele se encontrava do que a um marco histórico
passado de quase 200 anos. Apesar de um grito simbolizar,
em 1822, a Independência do país, tal fato não
significa liberdade eterna. Repensar tal marco, e como
novas lutas por outras independências são necessárias
– das mulheres, dos LGBT+, dos povos indígenas
e de diversas minorias –, permite aos artistas criarem
representações atualizadas de uma Independência.
Glênio consegue, com sua homenagem à data, revisitar
duzentos anos de disputas políticas e de direitos. Afinal,
liberdade e Independência são sinônimos?
Charges são, por definição, imagens políticas. O que
as diferencia de outras formas de expressão, como o
desenho em quadrinhos, é exatamente o caráter crítico
de situações reais ou que remetem a temas debatidos
pela sociedade. Encontradas, atualmente, em jornais,
revistas ou no ambiente online, tiveram a sua primeira
criação nacional em 1837 por um artista já apresentado
no Período I, Manuel José de Araújo Porto-Alegre.
A Independência, o Império, a República, a ditadura
militar e outros tantos momentos políticos já serviram
de substrato para a criação de imagens questionadoras
e com capacidade de ecoar em diferentes meios. Como
esquecer o atentado de 2015 à revista francesa Charlie
Hebdo, movido pelo descontentamento com uma
charge replicada dez anos após sua criação? A imagem é
uma arma política.
Laerte escolhe questionar a representação da Independência
colocando em evidência a diferença de gêneros.
Como vimos na criação da imagem de D. Pedro
I vinculada ao momento de ruptura com Portugal, a
escolha foi de representá-lo enquanto um príncipe-militar,
sempre com suas botas de montaria. Nas imagens,
a espada não é elemento raro, assim como seu chapéu
e insígnias militares. No imaginário criado para o príncipe
enquanto figura ativa, que se distanciava de uma
monarquia limitada a dar ordens sentada em seu trono,
era necessário mostrar sua agilidade e destreza no meio
do povo, ou comandando exércitos. O cavalo, enquanto
animal de transporte, passa a figurar na iconografia ligada
ao príncipe, pois o retirava de uma postura plácida,
colocando-o no comando da situação em vez de levado
por pomposas carruagens.
Passados 200 anos do grito, por que não alterar o corpo
que o faz ressoar? Por que não incluir um corpo feminino
ao momento da Independência? Laerte nos mostra
como, mesmo dispondo de todos os símbolos utilizados
para o grito, este ainda não pode ser pronunciado por
mulheres. A crítica coloca em evidência as disparidades
de gênero. Nos outros Períodos, é perceptível a
escolha por privilegiar a figura de heróis masculinos.
As mulheres participantes da Independência têm uma
entrada discreta nas obras dos séculos XIX e XX. Mesmo
com o revisionismo histórico, o espaço da mulher
e sua participação nas lutas no Brasil ainda não possui
grande destaque. A imagem de Laerte não deixa dúvida,
mesmo em um cavalo, com espada em punho, a mulher
ainda não consegue ocupar os mesmos espaços que um
homem, devido à estrutura da sociedade. Logo, retomamos
o questionamento: Independência para quem?
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José Antônio da Silva
Grito do Ipiranga, 1977
Óleo sobre de tela
82 cm x 150 cm
Fama Museu - Fábrica de Artes Marcos Amaro
José Antônio da Silva (Sales de Oliveira /
Brasil, 1909 – São Paulo / Brasil, 1996) baseia
sua produção na vida rural experimentada
na infância e juventude: várias vezes retrata
cafezais, plantações de algodão e cenas com
gado. Na composição dos quadros, destaca-se
o uso da cor e o aspecto de fantasia.
Homônimo ao quadro de Pedro Américo 10 , a obra de
José Antônio da Silva não se inspira apenas no título
de Américo, é uma releitura do quadro a partir das
vivências de Silva. O primeiro elemento destacado
pela ausência é o riacho. Silva não parece se importar
em recriar o espaço ocupado pelos elementos naturais
conforme o narrado ou as imagens prévias do evento;
em sua poética não prevalece a necessidade de uma obra
histórica documental. Se, ainda em 1922, quando foram
encomendadas obras para o Museu Paulista, o rigor e
compromisso com a veracidade fizeram com que pintores
recusassem o convite de Afonso Taunay para retratar
momentos ligados à Independência, na atualidade, a liberdade
do autor é privilegiada. Com a possibilidade de
criação expandida, reinterpretar o grito a partir de uma
tela branca ou utilizar referências de imagens anteriores
são tratados como caminhos possíveis nas leituras do
momento histórico.
Fazendo um paralelo com as técnicas empregadas para a
produção das obras no século XIX e do início do século
XX, Silva utiliza-se da inspiração em pinturas anteriores
à sua para facilitar a leitura de sua obra pelo espectador.
Não apenas o título, mas a disposição dos personagens
e de todos os elementos do quadro lembram a imagem
criada do momento da Independência, com adaptações
ao estilo de Silva. Conforme dito anteriormente, um
olhar atento ao quadro logo questiona a falta do riacho
na cena. Porém, como o próprio Américo escreveu na
apresentação de sua obra, algumas liberdades estilísticas
e alteração de elementos da paisagem foram realizados
em seu quadro como, por exemplo, alteração da distância
do riacho para o declive que se faz presente na obra.
Mesmo sem o elemento da água, em Silva a natureza
parece mais abundante. As cores imprimem vivacidade
no céu e na terra, uma vegetação extensiva cobre a paisagem
e destaca-se na obra, especialmente a figura de uma
palmeira, que parece deslocada ao fundo do quadro, mas
nos faz lembrar da fertilidade da terra e de seu potencial
para o trabalho, caráter reforçado pelas enxadas espalhadas
na cena, assim como o trabalhador, que segue ao
fundo encaminhando a boiada.
Apesar do quadro simbolizar um momento de união
do povo brasileiro, quando todos queriam se desvencilhar
do domínio português, a forma como o grupo está
representado aparenta uma batalha, com dois pólos, um
à direita e outro à esquerda do quadro. Em cima dos
cavalos e com as espadas em riste, as imagens humanas
vão se misturando com os animais, tornam-se um
único elemento. Desta forma, não é possível distinguir o
começo de uma figura e o final de outra, parecendo uma
enorme representação de volume de massa popular na
qual a tríade animal, humano e arma comunga em uma
única forma. Rostos coloridos do animal-arma-humano
parecem retomar o conceito do povo iconizado. Quem
é D. Pedro no quadro? Talvez o personagem de camisa
azul mais em destaque à esquerda do quadro? Ou o de
camisa amarela um pouco mais atrás? Sua figura não
está em destaque como nas pinturas do século anterior.
Seria o desejo de Silva incluí-lo como mais um soldado,
um sujeito que poderia ser qualquer um na imagem
pois estava junto da massa popular? Ou não o destacar,
não o identificar, e mostrar a massa dos homens na
luta da Independência mostra que a voz não era de um
indivíduo e sim de um coletivo que viria a ser conhecido
como povo brasileiro? Ainda, quem sabe, D. Pedro I é a
figura central do quadro, entre as duas unidades da tropa,
de costas ao espectador, fora de seu cavalo, ajeitando
sua cela. Tal figura parece alheia aos acontecimentos,
concentrada na tarefa que realiza naquele momento,
quase um espectador. A voz do príncipe foi registrada na
História como a única nas margens do Ipiranga, criando
um protagonismo inigualável desse sujeito salvador. O
quadro de Silva pede por outras vozes, seja ao transformar
as tropas em uma massa humana-animal, em que
todos estão envolvidos de forma igualitária na disputa
pela liberdade, ou ao colocar um sujeito espectador da
cena, não envolto na massa, mas preocupado em realizar
uma ação, organizar sua cela ou dar um grito, enquanto
os demais derramam lágrimas e sangue ao longo da luta.
10 Independência ou Morte, também é conhecido como O Grito do
Ipiranga.
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Denilson Baniwa
Auri sacra fames, 2021
Intervenção sobre reprodução
27 cm x 32 cm
Coleção do artista
Diambe da Silva (Rio de Janeiro / Brasil,
1993) é artista visual. Produz entre as linguagens
do cinema, escultura e coreografia,
especialmente em locais públicos.
Denilson Monteiro Baniwa (aldeia Darí,
Barcelos / Brasil – 1984) é artista visual e
curador. Com suas obras, propõe reflexões
acerca da condição atual do indígena no Brasil,
dos impactos da colonização e dos movimentos
ativistas.
Virgílio foi um poeta romano que morreu no ano 19
a.C. Como os poetas da época, teve trabalhos encomendados
por imperadores, desejosos de contar as glórias
de suas conquistas, assim como a importância de seus
territórios. Eneida foi uma dessas encomendas. Poema
épico solicitado pelo imperador Augusto, conta a saga
de Eneias pelo Mediterrâneo e pela península Itálica.
A obra foi encomendada para ser tão grandiosa quanto
a Odisseia de Homero, e assim o fez Virgílio. Como as
imagens retratadas nos Períodos I e II, o poeta combinou
fatos reais com ficção e criou a narrativa de seu
herói, passando por percalços e saindo vitorioso ao final
de sua grande saga. Auri sacra fames é uma expressão
cunhada por Virgílio no canto III de seu poema épico, e
pode ser versada para a expressão: maldita fome de ouro.
A expressão nomeia a obra de Denilson Baniwa. Séculos
separam a Independência do Brasil das histórias
contadas por Virgílio, mas a expressão cunhada pelo
autor e revisitada por Baniwa parece ser uma constante
quando governantes ou pessoas em posição de poder
veem oportunidades: o desejo de consumir mais e mais
nunca termina.
Denilson cria camadas de leitura em sua obra a partir
de elementos pontuais e viscerais. Ao intervir sobre a
representação de Moreaux da Independência, o artista
cria a possibilidade de ruptura em relação ao seu imaginário.
Apesar de, na época, ter recebido duras críticas,
a pintura de Moreaux integra uma coleção importante
e, volta e meia, é usada para ilustrar a historiografia da
Independência. A ideia de um príncipe à favor do povo
é disseminada com a imagem, reforçando uma unidade
e harmonia no momento de 1822. Denilson questiona
esta noção a partir da imagem que nos é apresentada.
A fome pelo ouro, pelo poder, é a força motriz para a
ruptura política. E como fica o povo? Recebe parcas
recompensas, representadas pela chuva de moedinhas de
ouro que D. Pedro lança ao ar, e segue sendo escravizado
e explorado. A ironia é a ferramenta escolhida pelo
artista, que, utilizando-se de uma linguagem que remete
aos quadrinhos, dá voz a diferentes personagens da imagem
e nos faz ecoar, seja pensando naquele momento ou
na atualidade, o título de sua obra: auri sacra fames.
O fogo é um elemento que perpassa religiões e períodos
históricos em sua importância. Na filosofia da Grécia
Antiga, junto com a água, terra e ar, era considerado
um dos elementos clássicos, o responsável pela criação
da vida e sua manutenção. Para alguns filósofos, era o
elemento predominante, pois consegue fundir-se com
todas as coisas e, quando não cria possibilidades, as
aniquila, deixando apenas as cinzas. Ainda na mitologia
grega, sem ele a humanidade estaria perdida e, graças à
desobediência de Prometeus, os homens tiveram acesso
a este bem e conseguiram sobreviver. Em religiões de
matrizes africanas, como o candomblé e umbanda, é
utilizado em oferendas através da chama de velas que
podem queimar dias a fio. Símbolo da vida e da renovação,
é um dos elementos de Xangô, entidade também
relacionada aos raios, trovões e justiça.
A justiça pelo fogo é elemento comum em diferentes
momentos da humanidade. O fogo que Diambe apresenta
em sua série Devolta cria coreografias possíveis
através de sua execução e labaredas. A obra provoca a
demolição simbólica das representações de sujeitos da
República, Império e Colônia no Brasil. As escolhas da
artista não são casuais e, enquanto a fumaça entranha no
corpo de bronze, as representações escolhidas como as
oficiais de nossa nação vão se dissolvendo, como papel
queimado.
D. João VI, Princesa Isabel e D. Pedro I são os monumentos
escolhidos por Diambe. A cidade do Rio de Janeiro
é o palco para as coreografias produzidas. Sempre
à noite e, com outros artistas e colaboradores presentes,
Diambe inicia sua composição corporal. Seguem para
o local, espalham panos que desenham como o fogo irá
surgir naquele momento. Após a disposição dos elementos,
rodeando o símbolo imponente em espaços públicos
de passagem frequente, os participantes embebedam
com um líquido flamejante as peças. Em breve, fogo e
fumaça tomam conta do entorno daquelas imagens, e
logo a dança começa.
A representação de D. Pedro I que Diambe escolhe já
figurou em nossa análise anteriormente. O monumento,
localizado na Praça Tiradentes, foi instalado ainda no
século XIX em um dia de celebração. A imagem da
Independência e formação da pátria fazia-se presente
naquele sujeito em cima de um cavalo. Com o passar
das décadas, o monumento tornou-se ponto de referência,
algo a ser desviado nos passos apressados a caminho
para o trabalho, ou lugar de repouso de pessoas em
situação de rua. A importância da obra dilui-se para os
usuários da cidade, porém o imaginário da importância
de D. Pedro I permanece, já que sua imponência em
bronze continua fincada na praça.
Quando movimentos surgem, com especial força no
continente americano, questionando os heróis forjados
pelo colonialismo, a derrubada de estátuas torna-se uma
prática possível. Símbolos caem para que novas histórias
possam ser contadas. Estátuas vão ao chão, são decapitadas,
trocadas, pergunta-se por que elas seguem no
espaço público. E com o herói da Independência não é
diferente. Por que mantê-lo como símbolo do movimento,
se a liberdade não foi permitida aos oprimidos?
Se sua intenção era de se manter no poder e garantir o
mínimo de mudança possível em relação às discrepâncias
sociais?
A sua derrocada é constante. Diambe vale-se do fogo, e
assim como a representação não é o fato em si, sua ação
simboliza o extermínio da homenagem. Com seu fogo,
propõe a queima de símbolos do colonialismo para que
possamos, através das chamas, renascer e buscar novas
histórias e sujeitos que lutaram e ainda lutam pela Independência
do Brasil.
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Diambe da Silva
Devolta, 2020
Reprodução fotográfica /
registro de coreografia
Dimensões variadas
Coleção da artista
Fotografia: Lorena Pipa (D. Pedro I),
Jéssica Senra (D. João VI) e
Bléia Campos (Princesa Isabel)
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Davi Benaion (Rio de Janeiro / Brasil, 1991)
é artista visual e performer. Trabalha com
dança e performance a partir das inconformidades
entre seu corpo e algumas articulações
normativas que cercam problemas de
gênero. Rearranja imaginários de sexualidade
e sensualidade com seu corpo, que se torna
negativo ou evidenciador das expectativas de
quem o interpela.
Quinze segundos era o tempo de duração de um vídeo
quando o aplicativo TikTok teve seu boom entre os
jovens. A plataforma tem se adaptado e o tempo de
gravação será expandido para dez minutos, porém são
os vídeos curtinhos com desafios de dança – dance
challenges ou, em sua forma abreviada, dc – que ganham
os maiores números de visualizações entre usuários da
rede. As coreografias são criadas para serem executadas
junto a músicas específicas e rodam o mundo, fazendo
com que velhos sucessos voltem ao topo das listas de
canções mais ouvidas. Benaion utiliza a rede para criar
trabalhos nos quais seu corpo é o suporte. Elu foi um
dos artistas convidados para pensar a Independência a
partir de suas representações oficiais para a exposição
virtual Independência ou Morte - Decolonizando o Grito
e criou uma relação entre a pintura de Pedro Américo
e outras figuras da Independência para performar sua
obra. Totalizando 51 vídeos, Benaion combina imagem
estática e as dancinhas efetuadas à exaustão na plataforma.
Elu seleciona dance challenges “hitados”, criando um
ambiente de ironia em torno da cena do 7 de setembro.
Benaion não está no espaço museal, se insere através do
recurso do chroma key, criando camadas visíveis e invisíveis
de presença. Em séries em que repete a mesma dancinha,
escolhe personagens da história da Independência
para dialogar com D. Pedro I. Através de transparências,
as telas se misturam ao corpo de Benaion. A cada vídeo,
as transparências alteram-se, e a figura que parecia quase
imperceptível ganha protagonismo, faz as outras imagens
desaparecerem. Maria Quitéria, Joana Angélica,
Maria Felipa, Manuel Faustino, Luiz Gonzaga, João de
Deus, Lucas Dantas sobrepõem-se à imagem de Américo
e ganham voz dentro da obra de Davi. As pinturas
dialogam também com a tela do celular e do computador,
dispositivos necessários para a fruição do trabalho.
É sobre as telas. Sobre as telas que retratam um Brasil
em 1822 com o desejo de contar apenas uma versão dos
fatos, sobre as telas de personagens que foram colocados
em uma hierarquia de importância menor que a do
príncipe-militar, mas que vêm ganhando destaque na
história oficial. E é através de representações plásticas
e sobre as telas que carregamos conosco diariamente
em nossos bolsos. O recorte da tela revela apenas uma
imagem, e Davi questiona uma única versão, um único
discurso ao sobrepor as imagens e apresentar possibilidades
de narrativas e discurso em relação ao fato
histórico. Tudo feito em menos de quinze segundos, no
tempo de um desafio de dança do TikTok.
A obra sobre tela poder ser apreciada no TikTok
@davibenayon.
Davi Benaion
sobre tela, 2022/2023
Video
Dimensões variadas
Coleção du artista
Jaime Lauriano (São Paulo / Brasil, 1985)
é artista plástico. Suas obras questionam as
narrativas históricas a partir da crítica ao
colonialismo.
O grito marcado como causador da Independência do
Brasil, que serve de nome para o quadro símbolo do
momento histórico realizado por Pedro Américo, tem
apenas três palavras. Dessas, a do meio, uma conjunção
alternativa, simboliza que as duas outras não podem
acontecer conjuntamente. Teremos, assim, a Independência
ou a morte, não é possível que aconteçam em
paralelo ou uma após a outra; para uma se realizar, a
outra deve ser excluída. Ao trazer as duas palavraschaves
da declaração de D. Pedro como título de sua
obra, Lauriano não dispõe de apenas um resultado em
detrimento do outro. Ao invés da alternância, da negação
de uma ação caso a outra se concretize, o artista as
adiciona: temos sim, Independência, mas junto com a
morte. Independência e morte caminham lado a lado.
Mesmo no século XIX, após a mudança de regime, a
morte continuava pairando junto aos grupos minoritários
e às pessoas escravizadas. Não havia uma escolha,
o país tomava novos ares, mas para elas as sentenças se
mantinham. Um passado que se repete no presente e
parece ser, infelizmente, o caminho do futuro próximo,
a Independência evoca a morte quando os personagens
políticos e com status de poder bradam gritos antidemocráticos
e coloniais: passa boi, passa boiada. Podemos
apagá-los da história? Retirá-los das representações
pictóricas? Mesmo quando não estão presentes, seu
lastro é visível.
A imagem pictórica de Pedro Américo é replicada por
Lauriano, sendo que os corpos estão ausentes. Não
vemos D. Pedro e seu exército, apenas o terreno em
que estiveram reunidos para o 7 de setembro. Porém,
mesmo sem a fisicalidade de sua presença, o artista
mostra a passagem do Império e suas consequências.
Não mais uma mata virgem ou um riacho com vida, a
terra foi abusada, desgastada, o lodo torna a água turva,
consequências da exploração desenfreada de um país e
de seu povo, que tem sua voz enfraquecida pelo capital e
pela possibilidade de extração de riquezas. O que sobra?
Nossos campos não têm mais flores, nossos bosques não
tem mais vida.
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O que resta é uma poeira acobreada que invade a cena
e nos relembra o descaso com o território amazônico e
com as barragens mineiras. Nessa paisagem devastada,
o artista inclui símbolos da Independência em pequena
escala, a primeira bandeira brasileira, o monumento ao
ato histórico levantado em São Paulo e uma pequena
reprodução em relevo do quadro de Américo. O artista
intervém sobre tais imagens incluindo o símbolo do
tridente de Exu. A princípio, por estarem cruzados,
evocam a neutralidade, a entidade não representa nem o
bem nem o mal, mas ela está presente, seja na encruzilhada
ou no passado ficcionado na figura de poucos.
À crítica do mal uso da terra somam-se as disputas por
território das minorias e outras lutas de classes presentes
nos 200 anos do país. Transformados em soldadinhos
de chumbo, o embate ocorre acima da pintura, ele pula
a tela e é representado por um embate “além-quadro”.
No topo, em um enfrentamento direto, a luta cultural
e política é mostrada pelo artista. Os combatentes não
levantam as mesmas bandeiras, os poderes entram em
combate e refletem as lutas populares que ocorrem
desde que existe o desejo de Independência em nossas
terras. Passado e presente confundem-se nesse embate
que segue até os dias atuais.
Independência e Morte nos mostra que não há alternativa,
não há uma escolha entre um ou outro. Enquanto práticas
coloniais seguem sendo colocadas em vigor, caminham
juntas a falsa sensação de liberdade com a morte
de nossos direitos e possibilidades enquanto nação.
Jaime Lauriano
Independência e Morte, 2022
Acrílico, carvão, adesivos, impressão jato
de tinta, soldadinhos de chumbo sobre
placa de MDF e moldura de alumínio
160 cm x 200 cm
Coleção do artista
rafael amorim (Rio de Janeiro / Brasil, 1992)
é poeta, artista visual e pesquisador nascido
em Padre Miguel, Zona Oeste carioca. Seus
trabalhos transitam entre as artes visuais e
a escrita sob uma perspectiva suburbana e
homoafetiva.
Foi através de um convite para pensar as não-presenças
na obra de Pedro Américo que rafael amorim produziu
o díptico Esopo. A obra, criada para a exposição virtual
Independência ou Morte – Decolonizando o Grito 11 , cria
um diálogo com o quadro a partir das vivências do artista.
Em sua primeira parte, amorim utiliza a imagem de
Américo em sua totalidade, é possível identificar a obra
mesmo em um rápido passar de olhos. O artista, através
de palavras, intervém na pintura, abrindo espaço para
questionarmos a escolha de uma voz única na História.
E o que acontece às margens, onde ficam seus registros?
Nas margens do Ipiranga ouviram o brado e a Independência
oficializou-se em um evento. Todavia, ao
investigarmos as bordas da fábula do 7 de setembro,
lutas e sujeitos possibilitaram o estopim para a mudança
de governo. O protagonismo dos centros do Rio de
Janeiro e de São Paulo fez com que lutas de fora do eixo
não tivessem o mesmo espaço nas criações pictóricas do
mito de formação da nação. Apenas no século XX tais
histórias começam a ter maior espaço nas coleções e
reproduções das artes plásticas. Acreditar no que acontece
é propagar a história, deixar que ela seja ouvida por
muitos, e compreender que existem diferentes narrativas,
sendo a oficial a escolha de um recorte. Ao incluir a
frase no quadro, sobrevoando seus personagens, amorim
parece dar voz aos sujeitos ocultos da imagem: o povo
das diferentes regiões do território brasileiro, a população
à margem, que lutou pela Independência, mas que
foi sublimada da pintura. Sua voz apagada torna-se
aparente a partir da ressignificação do artista.
Na outra imagem do díptico, novamente o quadro de
Pedro Américo faz-se presente. A escolha do artista é
de transformá-lo em paisagem para o ato de descarte
realizado com frequência na sua região. amorim revela
uma prática comum do subúrbio fluminense: o abandono
de móveis estragados que seguem entulhando nas
ruas enquanto esperam a retirada, seja por garis ou por
pessoas que trarão novos usos à mobília. Apresenta-se a
provocação: descartar ou criar novos usos para as imagens
produzidas como oficiais?
O artista nos propõe repensar a fábula criada a partir
da Independência. Rever a história e entender que um
conto não traduz um fato, e sim uma das versões do
acontecimento. Abrir-se à possibilidade de novas narrativas,
mesmo que os contos nos tragam lições moralizantes
que parecem firmadas em acordos invisíveis, é
necessário para que possamos compreender as histórias
da formação do país.
11 É possível acessar a exposição no site:
https://decolonizandoogrito.com.br/
rafael amorim
Esopo (díptico), 2022
Dimensões variadas
Apropriação digital
Coleção do artista
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Hal Wildson
Monumento à Independência (I, II, III, IV, V),
2021-2022
Hal Wildson (Vale do Araguaia / Brasil,
1991) é artista multimídia e poeta. Sua
pesquisa envolve os conceitos de identidade
e memória coletiva através de símbolos da
cultura visual e da prática da escrita, o que
resulta na utilização de suportes como cartas,
documentos pessoais, carimbos e imagens
criadas em máquinas de escrever.
Três símbolos são a base para a identificação da nação:
seu hino, sua bandeira e seu brasão. No caso do Brasil,
apesar de ter passado por modificações ao longo dos 200
anos de sua existência, certos elementos foram mantidos
na bandeira: as cores verde e amarelo, as estrelas e as
formas geométricas do quadrado e losango. A primeira
bandeira do país foi elaborada por Debret, a pedido de
D.Pedro I. Durante o Império, sofreu algumas alterações,
mas sua base se manteve. Com a República,
surgiram propostas de bandeira e, ao final, decidiu-se
pela imagem que conhecemos, cuja última alteração foi
em 1992 com a inclusão dos estados de Amapá, Roraima,
Rondônia e Tocantins. Seguimos com cores que
não simbolizam nossas matas ou rios límpidos, e sim as
cores das casas reais de quem comandava o país durante
o ano de 1822. Então, o que simboliza a bandeira? Uma
real Independência ou a perpetuação de valores que
incluem diferenças sociais e fortalecimento de elites já
privilegiadas?
Atualmente vemos que a liberdade e o direito de
existir não são iguais para todos os brasileiros, por mais
que a constituição tente garanti-los. A segregação e
exclusão são frequentes no país e parecem longe de
mudar. O privilégio de poucos e o sofrimento de muitos
é traduzido nas bandeiras de Wildson.
O artista cria novos significados a partir dos desenhos
propostos para simbolizar o país enquanto estandartes.
Alguns não saíram do papel, enquanto outros seguiram
hasteados em nosso território. A questão bélica,
o monopólio da Igreja e dos latifundiários, a tríade
BBB (bala, boi e bíblia) tornam-se os novos brasões ou
símbolos nas bandeiras criadas pelo artista. Criticando
o direito à Independência de poucos, Wildson coloca
em evidência a falta de representatividade do coletivo
que os símbolos nacionais podem apresentar. Desde a
época do Império a bandeira não abarca o coletivo do
povo; os indígenas, os negros e mulheres não estavam
representados naquelas cores, ou por aqueles símbolos
reais. A liberdade nunca foi adquirida, seguimos atrás
de grades reais ou metafóricas que nos aprisionam e
nos afastam de uma prometida independência. Os que
gozam de tal direito seguem fazendo suas juras aos
seus símbolos, às suas bandeiras. Pequenas alterações
podem causar comoção, especialmente em símbolos
dados como intocáveis.
Ao transformar as bandeiras da nação, o artista reafirma
as disparidades de Independência e direitos que
vemos cotidianamente ocorrer, seja do nosso lado ou
nas páginas de jornal.
Bordado sobre cetim
87 cm x 130 cm (cada).
Coleção do artista/Galeria Movimento
Fotografia: Rafael Salim/Galeria Movimento/Divulgação
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Marcela Cantuária (Rio de Janeiro / Brasil,
1991) é uma pintora, artista visual e ativista.
Com o objetivo de fortalecer reparações
históricas e apresentar narrativas alternativas
à História oficial, a memória coletiva é um
conceito constantemente tensionado em sua
produção.
Instalação-monumento-pintura, técnica usada pela artista
para descrever a obra, Maria Felipa e a fera do mar
nos apresenta mais uma personagem da Independência
apagada pela História oficial. A falta de registros não
impede que os feitos de Maria Felipa durante a luta
pela Independência da Bahia ecoem da ilha de Itaparica
para todo o país. Mulher preta que dependia de seu
trabalho braçal para sobreviver, as narrativas em torno
de Maria incluem a liderança de outros habitantes da
ilha contra as investidas de soldados portugueses e a
queima de suas embarcações. Por meio da história oral,
seus feitos e sua presença não foram apagados, e diversos
escritores escolheram romancear sua vida. Através
de extensa pesquisa sobre a personagem, como o livro
Maria Felipa: uma heroína baiana de Lívia Prata, Cantuária
encontrou material para criar um monumento
em homenagem à heroína cujo rosto não se encontra
registrado na iconografia de sua época.
Ao classificar a obra enquanto monumento, uma
importante reparação histórica é feita. Quando
pensamos em obras que recebem tal nomenclatura,
nossas referências pousam em estátuas de figuras que
permeiam a Independência e momentos iniciais da
República. D. Pedro I teve muitas estátuas e obras de
larga escala criadas com suas feições. Mas quantos monumentos
de heroínas vemos espalhados pelo Brasil?
Quantos de mulheres da classe popular e que carregam
as marcas de seu sustento nas mãos? E de mulheres e
homens negros? Conforme citamos ao analisar a obra
da artista Diambe da Silva, há um forte movimento
para a derrubada de monumentos coloniais. Segundo
o teórico Achille Mbembe, as imagens de sujeitos
coloniais não deviam ser destruídas, pois precisamos
lembrar do passado e das marcas deixadas por ele; para
essas estátuas e monumentos, um cemitério deveria ser
construído, e seus espaços ocupados com bibliotecas
e outras construções culturais. Mesmo com a retirada
das imagens, sua reprodução extensa não nos faz esquecer
os rostos retratados. Como podemos construir
lembranças a partir das personagens ocultadas? Através
das possibilidades pictóricas apresentadas pelos artistas.
Através de novos monumentos que visibilizam as
narrativas escondidas. Cantuária apresenta não apenas
a representação de Maria Felipa, mas de sua narrativa,
que inclui até encontros sonhados com outras heroínas
da Independência da Bahia: a abadessa Joana Angélica
e a soldada Maria Quitéria. Seu ofício, suas batalhas e
seus sonhos, todos estão representados no monumento
erguido para Maria Felipa, criado por múltiplas mãos
através do convite de Cantuária à Frente de Mulheres
Brigadistas para a realização da obra. Seu rosto pode
não ter sido oficializado em 1822, porém, se desde o
século XIX liberdades poéticas eram tomadas na construção
de fatos e personagens tidos como verídicos, a
construção simbólica da heroína baiana ultrapassa o
compromisso com um retrato fidedigno, para que a sua
existência seja fincada na História e na história da arte.
Marcela Cantuária, com colaboração das
participantes da Frente de Mulheres Brigadistas
Luciane G. S. Idalino, Anna Carolina Idalino,
Leila Oliveira e Lavynia Vitória Rezende
Maria Felipa e a fera do mar – série Mátria Livre,
2021-2022
Pinturas: óleo e acrílica sobre tela, linha, algodão, arame, tecido
e madeira; Estandartes: juta plástica, cânhamo, lã, tinta acrílica,
arame, miçanga, espuma e madeira; Escultura: tecido, espuma,
plástico e arame
Área na exposição: 440 cm x 640 cm
Cortesia da artista e da galeria A Gentil Carioca
Fotografia: Vicente de Mello
Cibele Nogueira (Sergipe / Brasil, 1988) é
artista visual. Desenvolve uma linguagem
poética que atrela imagem e palavra para criar
narrativas visuais em fotografias e vídeos.
Peixeira, cansanção e espinhos. Objetos e plantas
que parecem não ter ligação, mas que fazem parte da
história de Maria Felipa. Mulher guerreira e liderança
na luta de Independência da Bahia, sua figura foi resgatada
na iconografia das artes visuais no século XXI.
Mesmo sem registros oficiais, sua imagem vem sendo
visibilizada, assim como sua atuação. Lutou contra as
tropas portuguesas com as armas que possuía: sua faca,
seu conhecimento sobre plantas urticárias e com o que
a natureza e sua realidade forneciam. Podia não dispor
do maior exército nem ter conhecimento militar, mas
conseguiu reunir um grande grupo de defensores da
liberdade e protegeu sua ilha, Itaparica, da invasão dos
portugueses, contrários às lutas pela Independência.
Mulher de Turbante é o título dado à fotografia de
Alberto Henschel tirada em torno de 1870. A imagem
de uma mulher negra com o acessório na cabeça é
associada a heroínas sem rostos. Muitas vezes utilizada
na representação de Luísa Mahin 12 , a fotografia também
já foi usada por jornais e revistas para simbolizar
Maria Felipa. Nogueira problematiza a imagem ao
repeti-la três vezes: em sua integridade, porém com
suas cores alteradas, apenas como um contorno em
roxo, e, novamente, sem a face exposta com sombra
em vermelho. Ao apresentar a mulher invisibilizada
com uma fotografia utilizada tantas vezes para retratar
todas as mulheres negras, Nogueira questiona quais
escolhas de representação são dadas aos heróis apagados
da História oficial. Rostos compartilhados são
usados para reforçar estereótipos racistas, igualando
todos os sujeitos e criando uma representação singular
de indivíduos plurais. Ao usar apenas uma imagem
de mulher negra, reduzimos suas possibilidades, suas
presenças nas histórias ao longo dos anos. Nogueira
seleciona a imagem para reforçar o questionamento:
criar uma imagem para todos também é apagá-los. Ao
trazer apenas o contorno da imagem, duas questões são
levantadas. Novamente é sublinhada a representação
de todos através de uma imagem de arquivo, assim
como o apagamento de Maria Felipa da história é
86 87
colocado em evidência. Afinal, qual é sua identidade?
Qual o rosto da mulher lutadora que enfrentou soldados
armados com coragem e voracidade? Podemos não
conhecer seu rosto, mas suas armas e sua história são
compartilhadas cada vez mais.
Seu papel é fundamental na defesa da Ilha de Itaparica,
e sua história não será esquecida ou apagada. O
conjunto de obras de Nogueira reforça a "(re) existência"
de Maria Felipa e coloca luz na ilha baiana
que, graças aos seus moradores, foi palco de uma das
maiores lutas e vitórias contra Portugal.
12 Figura importante na luta contra a escravidão. Participou da
Revolta dos Malês (1835) em Salvador. Não há registro oficial de
Mahin.
À direita
Tiago Sant’Ana
Museu da Revolta Bahiense, 2022
Instalação com objetos produzidos e apropriados, peça de áudio,
mobiliário expositivo e sinalização, dedicada à Revolta dos Búzios,
Independência da Bahia e Revolta dos Malês
Área na exposição: 350 cm x 1150 cm x 560 cm
Coleção do artista
Abaixo
Cibele Nogueira
Vigília de Felipa, 2022
Bandeira: impressão por sublimação e bordado sobre tecido
60 cm x 80 cm
Série Memória de uma (re) existência #1, #2 e #3, 2022
Fotomontagem sobre aspen 230g e gravura sobre vidro
29,7 cm x 42 cm
Coleção da artista
Tiago Sant’Ana (Santo Antônio de Jesus /
Brasil, 1990) é artista visual e curador. Desenvolve
suas obras a partir de questionamentos
acerca da identidade afro-brasileira, tensionando
conceitos como história e memória.
A ideia de nação foi criada ao longo dos séculos XIX
e XX a partir da seleção de uma narrativa. Com a
escolha do marco inicial para formação do Brasil,
era necessário produzir a história, fosse por meio de
concursos, como o do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro, fosse por comissionamentos diretos,
assim as narrativas textuais e plásticas eram criadas
e moldadas conforme as vontades dos governantes
da época. O caso do Museu do Ipiranga ilustra com
precisão como a construção imagética da Independência
ficou na mão de poucos, que selecionaram fatos
e personagens a serem lembrados e, posteriormente,
estes foram homenageados por meio de monumentos
e pinturas. O esforço de Afonso d'Escragnolle Taunay
ao comissionar obras e direcionar os artistas em sua
produção reforçou a narrativa do 7 de setembro como
o momento da Independência. O Museu homenageia,
com maior descrição, outros colaboradores da ruptura
do Brasil, como Maria Quitéria e Joana Angélica, para
citar mulheres nordestinas, mas a dimensão colossal do
quadro de Pedro Américo mostra como os eventos e
sujeitos eram classificados no ranking de favoritismos
da História oficial.
Ao pensar o papel dos espaços museais como produtores
de discursos, Sant’Ana cria o Museu da Revolta
Bahiense, obra comissionada para a exposição Atos
de Revolta: outros imaginários sobre a Independência
(MAM/RJ). Na instalação, o artista mistura ficção
com realidade, ao produzir artefatos pertencentes aos
heróis das revoltas baianas que contribuíram para o
grito final da Independência em 1822. A presença
de Joana Angélica e Maria Quitéria dá-se por itens
de vestuário que teriam pertencido às mulheres. Luis
Lopes, corneteiro a quem é atribuído papel importante
da Batalha de Pirajá, também está presente no Museu
de Sant’Ana com a musealização de seu suposto
instrumento. A criação da instalação-museu nos faz
pensar sobre o papel das instituições culturais enquanto
espaços silenciadores e apagadores de narrativas
alternativas às versões oficiais. A obra coloca à vista
marcos das batalhas baianas e sua importância para a
história brasileira, assim como visibiliza suas diferenças
em relação à versão oficial de pacificidade. As revoltas
eram movimentos populares que lutavam pela autonomia
de uma nação em formação e pela liberdade de
todos que a ela pertenciam, incluindo assim a abolição
da escravidão dos negros e indígenas. Sant’Ana, através
de sua instalação, restabelece o direito de memória que,
por muito, foi negado aos personagens e lutas que não
faziam parte do eixo Rio–São Paulo. Ao transformar a
obra em metalinguagem e instalá-la em um museu, o
artista reforça a necessidade de novas leituras da iconografia
oficial e de acolhimento de outras produções
de histórias e narrativas através da arte em geral.
88 89
Paulo Sérgio da Silva, conhecido como
Paulo Nazareth (Governador Valadares /
Brasil, 1977) é artista visual e performático.
Suas performances caracterizam-se pelo
questionamento em tempo real da existência
e das relações de convivência que estabelece
nos percursos, dialogando com questões
relacionadas à raça, ideologia e políticas de
desenvolvimento no mundo.
Medalha de honra é uma condecoração criada pelos
militares estadunidenses no século XIX para prestigiar
pessoas ligadas às Forças Armadas que tenham realizado
atos de valor. Em outros países o nome pode não ser
compartilhado, mas prêmios por atitudes consideradas
nobres são concedidos. No Brasil, a Ordem Nacional
do Mérito é a homenagem mais alta que pode ser
atribuída a um cidadão brasileiro pelo governo. Prestar
homenagens pomposas parece validar os sacrifícios em
tempos de guerra. Seus corpos, colocados à disposição
do Estado, tornam-se parte de um único coletivo, a
nação, e por isso devem ser honrados. Mas a seleção
dos homenageados reflete como um ranking de
quem fez mais pela história do país. E os combatentes
silenciosos? Os que não receberam medalhas ou foram
grifados na História, tornando-se nomes de ruas ou
feriados? Onde estão? A eles, quais homenagens são
prestadas?
Em contraste ao mito da Independência pacífica brasileira,
nas nações latino-americanas e caribenhas, as
histórias das rebeliões populares contra o colonialismo
são contadas por batalhas sangrentas e lutas populares.
Sem a possibilidade de acordos com as elites, o povo
foi às ruas para a tomada de poder, e sujeitos sem treinamento
militar ou ampla experiência com guerrilhas
transformaram-se em mártires das independências.
Seus atos de valor ressoam pelas linhas que desenham
os países latinos e caribenhos, mas lemos seus nomes
em livros? Reconhecemos as suas fisionomias? Onde
estão suas medalhas de honra?
A instalação de Nazareth coloca em evidência heróis
populares, ao presenteá-los com condecorações por
seus feitos contra as forças hegemônicas coloniais. Seus
atos de bravura os colocam no panteão aos homenageados
por lutar por seus países, porém seus nomes parecem
não ressoar em espaços oficiais como deveriam.
Paulo Nazareth
Medalha de Honra [ou 49 Medalhas + 1], 2017
Cortinas de tecido suspensas em estrutura metálica tubular,
iluminação, caixas de madeira estofadas com veludo, medalhas
de latão, fitas diversas e placas de latão gravadas
Área na exposição: 273 cm x 540 cm x 540 cm
Coleção do Instituto Inhotim, Brumadinho
Atos de revolta: outros imaginários sobre independência,
MAM Rio, 2022
Cortesia do artista e da Galeria Mendes Wood DM São
Paulo, Bruxelas, Nova Iorque. Copyright do artista.
Foto: Fabio Souza/MAM Rio
Apagamentos são escolhas. Reverberar em diferentes
espaços os feitos e identidades desses sujeitos ajuda a
reforçar que as independências só ocorreram pela junção
de forças de muitos, e que suas presenças precisam
ser celebradas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Adjovanes Thadeu Silva de. O Regime Militar em Festa: a Comemoração do Sesquicentenário da Independência Brasileira (1972). 2009. Tese (Doutorado)
– UFRJ, Rio de Janeiro, 2009.
ANDRADE, Fabricio Reiner de. Ettore Ximenes: Monumentos e Encomendas (1855-1926). 2016. Dissertação (Mestrado) – USP, São Paulo, 2016.
BETHEL, L. A presença britânica no Império dos trópicos. Acervo, v. 22, n. 1, p. 53–66, 2011.
BREFE, Ana Cláudia Fonseca. História nacional em São Paulo: o Museu Paulista em 1922. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 10–11, n. 1, p.
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SOBRE AS AUTORAS
JULIA BAKER (Rio de Janeiro, 1984) é pesquisadora, curadora
e produtora. Doutoranda no programa de Artes da Cena na UNI-
CAMP, mestre em História, Política e Bens Culturais (CPDOC/
FGV); possui especialização em História da Arte e Arquitetura no
Brasil (PUC/RJ); graduada em Ciências Sociais (UERJ) e Produção
Cultural (UFF). Integrou a equipe curatorial do Museu de Arte do
Rio (MAR) entre 2013 e 2018, atuando na pesquisa e elaboração de
exposições, dentre elas Dja Guata Porã (2017), Linguagens do Corpo
Carioca (2016) e Tarsila e Mulheres Modernas no Rio (2015). É uma
das fundadoras da coletiva de curadoria e pesquisa NaPupila e sócia
da empresa Bomba Criativa. Também realiza curadorias virtuais,
com destaque para as exposições coletivas Imersões Digitais (2021) e
Independência ou Morte - Descolonizando o Grito (2023).
MARINA MARTINEZ (Rio de Janeiro, 1994)
é historiadora e especialista em políticas culturais.
Integrou a equipe de curadoria do Museu de Arte
do Rio entre 2014 e 2016 e o Setor de Pesquisa em
Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa
entre 2017 e 2020. Em 2020, foi pesquisadora visitante
do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade
(CECS) da Universidade do Minho. Dedica-se
especialmente à pesquisa do discurso ecológico na arte
contemporânea.
FICHA TÉCNICA
Realização
BOMBA CRIATIVA
Coordenação Editorial
JULIA BAKER
Pesquisadores
MARINA MARTINEZ
PRISCILA MEDEIROS
Identidade Visual
MARCELLO TALONE
Revisão
DENNIS STENOS-POSSIDENTE
Administração Financeira
GUSTAVO CANELLA
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imagem é uma arma política.
s fantasmas da História, ou de como ela escolheu
er contada, seguem na concretude no monumento,
nstalado para a população de séculos por vir.
escartar ou criar novos usos para as imagens
roduzidas como oficiais?
ndependência e morte caminham lado a lado.
les são de algum Brasil, eles são de todos os Brasis.
einterpretar o grito a partir de uma tela branca
u utilizar referências de imagens anteriores são
ratados como caminhos possíveis nas leituras do
omento histórico.
sobre as telas.
102 103
Quais as representações da Independência?
Quais personagens foram enaltecidos e
quais foram relegados a um apagamento
pictórico?
A pesquisa apresentada no livro passa por
três períodos marcantes, 1822, 1922 e 2022,
para discutir as imagens criadas sobre o
marco histórico.
PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO
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