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Representações de uma independência

Pretendemos com essa publicação oferecer uma visão abrangente das representações visuais da jornada histórica que culminou na liberdade do Brasil e sua ruptura política em relação ao Império português. Investigando uma ampla gama de fontes iconográficas, desde pinturas e gravuras até esculturas e monumentos públicos, as autoras exploram como a iconografia da independência foi concebida, propagada e reinterpretada ao longo dos últimos dois séculos. O livro é resultado de um esforço coletivo de pesquisa e não seria possível sem a cessão das imagens pelas instituições e famílias dos artistas cujas obras aqui estão reproduzidas. Tampouco seria possível sem o financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro através do edital Retomada Cultural RJ 2.

Pretendemos com essa publicação oferecer uma visão abrangente das representações visuais da jornada histórica que culminou na liberdade do Brasil e sua ruptura política em relação ao Império português. Investigando uma ampla gama de fontes iconográficas, desde pinturas e gravuras até esculturas e monumentos públicos, as autoras exploram como a iconografia da independência foi concebida, propagada e reinterpretada ao longo dos últimos dois séculos.

O livro é resultado de um esforço coletivo de pesquisa e não seria possível sem a cessão das imagens pelas instituições e famílias dos artistas cujas obras aqui estão reproduzidas. Tampouco seria possível sem o financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro através do edital Retomada Cultural RJ 2.

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JULIA BAKER

MARINA MARTINEZ

1


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba – PR

Elaborado pelo Bibliotecário Douglas Lenon da Silva (CRB-9/1892)

B168 Baker, Julia.

Representações de uma independência / Julia Baker, Marina

Martinez. –– Rio de Janeiro: Ed. das autoras, 2023.

104 p. ; il.

Inclui bibliografias

ISBN (versão impressa): 978-65-00-70183-8

ISBN (versão digital): 978-65-00-70182-1

1. Brasil – História – Independência, 1822. 2. Iconografia -

Brasil. 3. Brasil – História – 1889-. I. Martinez, Marina. II. Título.

CDD 981.04

Os contatos para a autorização de uso de imagens

foram realizados com as instituições e responsáveis.

Todos os esforços foram empregados para os contatos.

2 3



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4 5



10

introdução

14

período I - 1822

32

período II - 1922

58

período III - 2022

94

referências

6 7



8 9



ntrodução

“Ouviram

do Ipiranga às margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante…”,

assim começa a letra do Hino Nacional Brasileiro. A letra, composta por Joaquim

Osório Duque-Estrada só foi oficializada em 1922, pelo então presidente Epitácio

Pessoa. De acordo com relatos da época 1 , as comemorações do Centenário da Independência

estavam sendo organizadas e havia urgência em definir a letra do Hino, pois o

presidente desejava que, com a primeira transmissão oficial do rádio, ele fosse um dos

primeiros sons a navegar pelas ondas da novidade que chegava ao país. Assim, no dia 6

de setembro de 1922, através de lei sancionada na Câmara e no Senado nacionais, a letra

conhecida por todos nós era estabelecida como o Hino Nacional. Os caminhos para

definir as palavras entoadas foram orquestrados pelo maestro Alberto Nepomuceno,

diretor do Instituto Nacional de Música que, desde 1909, tentava emplacar a letra por

vias oficiais e extraoficiais. Por ser uma figura influente, pediu a dois amigos, Afonso

Pena e Duque-Estrada, para ajudarem na criação e oficialização da letra. Enquanto

um se ocupava de compor a partir da métrica resgatada por Nepomuceno nas partituras,

o outro foi encarregado, devido a seu então cargo como deputado, de apresentar a

ementa de um projeto de lei prevendo a realização de um concurso para definir a letra

do Hino Nacional. A ementa foi barrada, mas o maestro Nepomuceno não desistiu

facilmente. Ao longo dos anos tentou, sem sucesso, emplacar outras medidas solicitando

um concurso para a letra. Vendo que o caminho oficial não parecia surtir efeito, buscou

como alternativa distribuir a letra por escolas e quartéis do país e, assim, o aprendizado

dos versos começou pela população. Com a urgência, em 1922, de palavras oficiais para

acompanharem a melodia, oficializar a canção já conhecida parecia uma solução mais

fácil do que abrir novo concurso para uma criação inédita.

O episódio do Hino é apenas um exemplo de como a nação brasileira e seus símbolos

foram forjados em um passado recente. Na introdução de seu livro A Invenção das Tradições,

Eric Hobsbawm detalha como as tradições que, no imaginário coletivo, parecem

milenares, surgem em pleno século XX, sejam relativas à monarquia inglesa ou a celebrações

religiosas. A partir de repetições, valores e normas acabam se entranhando na

sociedade e, assim, transformam-se em tradições. Não só o aparato da repetição é posto

em prática como, também, o uso de elementos de um passado histórico considerado

apropriado. Se voltarmos ao exemplo do Hino, a estratégia de Nepomuceno parece se

valer de ambos os pontos levantados por Hobsbawm. Não apenas o maestro garantiu a

repetição ao distribuir a letra em lugares chaves (centros de ensino civil e militar), como

se aliou a elementos históricos na criação de versos que remetem ao imaginário da cena

da declaração da Independência e dos personagens presentes em tal momento. Além

disso, valeu-se de uma melodia já criada para o Hino, buscando a partitura original feita

durante o Império pelo também maestro Francisco Manoel da Silva.

10 11



Juntamente a um hino forjado para a criação de uma identidade nacional com ares

solenes, outros símbolos precisam estar presentes para os cidadãos do país sem que haja

questionamento de sua importância. Hobsbawm elenca a bandeira e as armas (brasão)

nacionais para completar a tríade na qual o tradicionalismo nacional irá se calcificar. Sem

grandes esforços, ao pensarmos nestes três símbolos em relação ao Brasil, percebemos

como um jogo de cor parece traçar a costura entre os três. Amarelo, azul e verde permeiam

os símbolos de forma direta ou indireta. Na bandeira e no brasão é visualmente

perceptível o uso destacado das cores no Hino, mesmo não citando diretamente seus

nomes, elas estão presentes quando se entoam versos sobre a natureza, riqueza e o céu

esplendoroso da nova nação que surgia às margens do Ipiranga.

Não apenas os símbolos idealizados pelo Estado criam a narrativa da nação e de sua

história, a iconografia das artes visuais tem papel central, reforçando a identidade e a memória

coletiva. Através de obras comissionadas, concursos públicos ou diferentes formas

de mecenato, a História do Brasil foi sendo narrada em gravuras, pinturas e esculturas.

Parece lógico valer-se das imagens para criar a história da nação pois, assim como a

Igreja Católica utilizava pinturas para que seus fiéis tivessem acesso ao calvário de Cristo

ou outros ensinamentos da Bíblia, em um país que ainda se entendia enquanto espaço

independente, utilizar imagens facilitava a leitura da história, já que havia uma massa

de pessoas não alfabetizadas considerável nos séculos XIX e XX. Assim, para reforçar

personagens ou momentos históricos, artistas eram convocados ou ofereciam seu ofício,

manufaturando a narrativa que conhecemos.

Retomemos a primeira estrofe do Hino: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.

Para onde somos levados quando a ouvimos ou cantamos? A um momento bem específico

que todos aprendemos: as palavras nos levam a data de 7 de setembro de 1822, dia

em que Dom Pedro I, voltando à capital do país – na época o Rio de Janeiro – declara a

independência de Portugal. Eventos prévios e, segundo a História oficial, a chegada de

uma carta avisando dos perigos que rondavam a família real e o Brasil, levaram D. Pedro

ao ato heróico, celebrado nos versos do Hino, na efeméride da data e em representações

pictóricas do exato momento.

As imagens construídas a partir das narrativas da Independência criaram nosso imaginário

único sobre o evento. Uma escolha norteada por questões políticas e econômicas

levou a imagem do quadro Independência ou Morte (1888) de Pedro Américo a prevalecer

sobre outras criações. Não apenas a seleção da cena como dos personagens principais foram

elencados para representar a ruptura com Portugal. Escolhas precisas que privilegiaram

figuras que já estavam no poder, optando-se por apagar heróis e heroínas vinculados

às revoltas populares que antecederam o dia do grito. As imagens eram construídas a

partir de encomendas e os registros que ficaram guardados acabaram sendo os selecionados

por instituições e indivíduos de posse, que tinham meios para manter as gravuras

e pinturas produzidas. Nossa História foi sendo ficcionada através dos movimentos de

pincéis guiados pelos interesses dos governantes.

Porém, revisitar os fatos e abrir espaços para novas narrativas é um exercício e uma necessidade

cada vez mais colocada em prática por historiadores, cientistas sociais e artistas.

Na construção, a partir das artes visuais, da História do Brasil, ao longo dos últimos

anos, novas leituras da Independência ganharam espaço, assim como o retrato de fatos

que desencadearam a entrada em uma nova fase do país. Em 1922, ano comemorativo

do Centenário, percebemos um cenário mais aberto para outras representações “alémgrito”.

O protagonismo feminino ganha espaço, não apenas nas personagens, a participação

de artistas mulheres na criação de nossa história visual é ampliada. A chegada da

modernidade permite criações mais plurais, mesmo que o gênero da pintura histórica

continue prevalecendo na criação da história de nossa nação.

Um antigo provérbio africano afirma: Até que os leões inventem as suas próprias histórias,

os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça. Em meados do século XX e no

momento atual, parece que os leões conquistam mais espaço. As histórias plurais e seus

personagens, que levaram ao desfecho do 7 de setembro, parecem figurar mais nas obras

produzidas. Não apenas o desejo de contar histórias esquecidas pelo caminho, mas a possibilidade

de leituras variadas deste marco, criam matéria para que jovens e renomados

artistas produzam a nossa história. Por vezes é necessário borrar as imagens, repensar seu

papel na criação de ficções e como isso nos influencia diretamente. As possibilidades no

campo artístico permitem que as linhas se encontrem e se fundam, permitem que novas

vozes possam ecoar e apresentar personagens de outros estados, outros gêneros e racializados

que tiveram importante contribuição para que a nação brasileira pudesse existir.

Pensado na pluralidade de representações e como o campo das artes contribuiu na

criação de narrativas singulares, realizamos a pesquisa do livro com o foco em três

momentos marcantes para a Independência: 1822, 1922 e 2022. A partir das efemérides,

selecionamos obras ligadas ao 7 de setembro e eventos necessários para que deixássemos

nosso papel enquanto colônia e nos firmássemos enquanto nação independente. Como a

produção da publicação ocorreu entre final de 2022 e início de 2023, a escrita ocorreu de

maneira simultânea à realização de várias representações do evento, o que impôs limitações

à inclusão de obras produzidas.

Sem dúvida, ainda há muito espaço para criação e análise de obras, incluindo algumas

que ficaram pelo caminho de nossa pesquisa. Desejamos que nossa publicação seja mais

uma faísca na produção de pesquisa no campo das artes e sua ligação com a formação

de uma história visual do país. E que possamos ver a Independência a partir de suas

diferentes representações imagéticas, deixando de lado apenas uma imagem do príncipe

em seu cavalo à beira do Ipiranga, e a enxerguemos enquanto uma conquista das Marias,

Joanas, Joões, Felipas e demais sujeitos cujos nomes não encontramos mais lapidados em

imagens ou registros oficiais, mas que foram fundamentais para que os múltiplos gritos

da Independência ecoassem em todo o território brasileiro.

1 As informações sobre a história, datas e personagens relativos à oficialização do Hino Nacional foram coletadas

em texto produzido pela Agência do Senado. O texto foi produzido através de parceria do Jornal do Senado com

o Arquivo do Senado.

https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/antes-da-versao-atual-letra-do-hino-nacional-bajulava-pedro-i/antes-da-versao-atual-letra-do-hino-nacional-bajulava-pedro-ii

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eríodo I 1822

Nono país a tornar-se independente na América Latina, ou décimo se considerarmos

todo o continente americano, a mudança de regime do Brasil deu-se de maneira peculiar.

Uma maneira bem rasa de explicar, repetida nos antigos tempos de escola, é que

não tivemos conflito, não houve revolução, nossa mudança foi pacífica, um acordo entre

cavalheiros. A ruptura não deslocou o poder das mãos da elite atuante, na verdade a

Independência garantiu a manutenção das regalias da monarquia e de seu séquito. Não

cedendo às pressões de Portugal, a família Bragança poderia seguir comandando uma

terra rica em recursos naturais e explorá-los sem precisar compartilhar seus lucros com o

além-mar. Parafraseando uma música popular do final da década de 1990: E o motivo todo

mundo já conhece / É que o de cima sobe e o de baixo desce. No século XIX, tais versos podiam

ser aplicados com igual verdade. A elite mantinha-se no poder, o recém-formado povo

brasileiro continuava em situação exploratória e muitos seguiam sendo escravizados. Ao

trazermos a equivalência de independência com liberdade, percebemos como a mudança

não parece representar realmente o que anunciava. A estrutura social interna não sofreu

grandes alterações, a população não passou a ter voz ativa, o tráfico humano permaneceu,

a condição das mulheres não foi melhorada, afinal, Independência para quem?

Mesmo sem grandes mudanças sociais, o 7 de setembro tornou-se um marco e, a partir

da data, novas tradições precisavam ser inventadas para que fosse possível contar a

história do nascimento da nação. Em seu texto A Invenção das Tradições (1984), Eric

Hobsbawm aponta que rápidas transformações acabam por fragilizar as antigas tradições

junto com as instituições e sujeitos que as promoviam. Quando não há possibilidade de

flexibilidade ou adaptação, surge a necessidade de novos ritos, e novas tradições precisam

nascer. No momento em que o Brasil se torna um país soberano, novos costumes precisam

ser criados para fortalecer a identidade de uma pátria. Surge espaço para construções

simbólicas como a bandeira, o brasão e o hino nacional, e também a necessidade de

datas comemorativas aparece. Com isso, valorizar o dia da Independência, da coroação

ou da aclamação do Imperador tornam-se necessidades para que o mito fundador da

nação possa ser reforçado e repetido infinitamente ao longo dos séculos.

As décadas seguintes à proclamação da Independência foram marcadas pelo progressivo

fortalecimento do 7 de setembro enquanto evento fundador da história da nação livre.

Como sabemos, a Independência, assim como a maior parte dos marcos políticos, não

devem ser entendidos como um evento único. Ao contrário, são diversas as interpretações

que entendem a Independência como um processo dinâmico que contou com

contribuições de vários agentes e para o qual concorreram razões de ordem econômica,

social e política, não limitadas ao contexto local. Porém, no período logo em seguida ao

ano de 1822, a escolha por eventos oficiais fortaleceu a ideia de um momento único e

decisivo, com um apagamento consciente de revoltas e personagens populares. No século

XIX, havia a necessidade de reforçar apenas uma versão, criar um conto oficial de surgimento

e focar na imagem de D. Pedro como principal personagem da Independência.

Tomas Perez Vejo em seu artigo “La Pintura de Historia y la Invención de las Naciones”

(1999) afirma que os costumes e mitos só adquirem poder quando são repetidos e difundidos.

Para reforçar a ideia do 7 de setembro e da importância de D. Pedro na formação

da nação, sua imagem e feitos deveriam ser repetidos para a população até que o mito, a

tradição, não deixassem dúvida. Nos tornamos nação a partir do grito no Ipiranga. Nos

tornamos nação devido ao heroísmo do jovem príncipe. Em textos e imagens, o mito de criação

era reforçado, a representação de D. Pedro ganhava uma iconografia singular: de um príncipe

ativo e militar. Em seu texto, Vejo afirma que o conceito de nação é um assunto de estética. As

imagens criam a ideia da nação e, no caso do Brasil, a produção a partir da pintura de gênero

histórico reforçou a fábula escolhida como oficial. A encomenda de obras junto a pintores voltados

a tal gênero e a instalação de obras públicas em homenagem a história do Brasil fortaleceram

a narrativa do 7 de setembro e de seus personagens. Nas obras analisadas no Período I é

nítida a predominância de D. Pedro I nas representações. Sua imagem era reforçada não apenas

para torná-lo herói da Independência, mas para construir, junto à população brasileira, uma

gratidão e respeito pelo primeiro imperador. Criar a imagem de salvador do país das mãos de um

algoz ajudava a fortalecer seu poder político e seu capital simbólico como sujeito a favor do povo.

O conceito de povo, principalmente no momento de formação de uma nação, pode ser difícil

de delimitar. O jurista Friedrich Müller faz uma análise de três modos em que a palavra povo

pode ser aplicada na prática. O povo ativo são os sujeitos de dominação, que atuam ativamente

no país, no caso de uma República presidencialista, e exercem sua cidadania através do voto,

por exemplo. Seriam excluídos os estrangeiros, algo que o próprio Müller considera complexo

já que esses sujeitos estão exercendo um papel na sociedade. O segundo modo é o povo como

instância global de atribuição de legitimidade, aqui incluindo os estrangeiros, assim como os

sujeitos que, por alguma questão, não podem votar ativamente. Por fim, o povo como destinatário

das prestações civilizatórias do Estado que inclui todos que se encontram no seu território;

estrangeiros, expatriados e detentores da nacionalidade do país. Müller pensa nessas possibilidades

de povo a partir de uma referencial democrático, mas podemos transpô-lo para o momento

da formação do Brasil para uma breve análise do que seria o começo do povo brasileiro e

de como se dá a sua participação, bem como a representação iconográfica da Independência. A

começar, o voto não era uma ferramenta possível, mesmo com o rompimento com Portugal, o

direito de escolha de governantes não passou logo para a população, continuou concentrado na

mão de poucos, e o sistema de Império seguia a tradição de passagem consanguínea de liderança.

A ideia de inclusão de todos também parecia distante, pois, como citado anteriormente, o

sistema escravista continuava a existir, retirando o direito de milhares de pessoas escravizadas

que chegavam ao país e eram extirpadas de seus direitos enquanto indivíduos. Logo, quem era

o povo brasileiro? Primeiro tratado como espectador de seu próprio destino, na representação

escolhida como emblemática do 7 de setembro, o quadro de Pedro Américo, Independência ou

Morte (1888), sua presença mal é percebida. O artista simboliza o povo através de dois trabalhadores

pontuais, que seguem assistindo a cena e exercendo seus ofícios. Quando o povo

aparece nas imagens, como na obra de François-René Moreaux, Proclamação da Independência

do Brasil (1844), suas vestimentas e feições remetem a uma realidade europeia, e não brasileira.

Sempre que a população se faz presente, acaba sendo como espectadora dos atos, celebrando ao

fundo ou criando um mar de pessoas passivas que assistem as ações heróicas de um punhado de

homens. Destacamos aqui o gênero masculino, pois, embora existam algumas representações de

mulheres atuantes nas revoltas do século XIX, a maioria dos quadros e obras criadas remetem

aos homens que permitiram a Independência. Apesar do papel crucial para a realização do ato,

Dona Leopoldina, por exemplo, não é visibilizada nesse momento histórico em nenhuma das

obras analisadas, seu nome ainda não é conectado ao momento de ruptura como uma das vozes

ativas. Retomando a questão do povo, é importante notar as ausências nas representações que

denotam um projeto popular da época: o embranquecimento da nação. Indígenas e negros não

14 15



estão dentro da massa do povo; na iconografia de Independência sua presença é praticamente

nula. Um apagamento que só será revisto no final do século seguinte e que ganha

mais destaque nas artes visuais apenas no século atual. Pensar o povo representado pelos

artistas no século XIX é trazer o conceito de povo iconizado de Müller 1 , que traduz a

ideia metafórica de povo, uma abstração ideal de como essa massa deveria ser representada

e se comportar. No recorte de imagens realizado para o Período I, o povo iconizado

é percebido na aclamação e na coroação de D. Pedro I, assim como na representação de

Moreaux do encontro do príncipe com a população após o grito de Independência. É

difícil criar a identidade nacional a partir do povo quando sua representação é uma ideia

ilusória das pessoas reais. Assim, a nação e sua identidade vão sendo forjadas na criação

dos símbolos e iconografias encomendadas pelo novo Império.

“O século XIX inventou uma história brasileira 2 ”. Jorge Coli resume em uma frase como

a iconografia criada nesse período permitiu a invenção de tradições e de uma história

oficial. Em seu livro Como estudar a Arte Brasileira do Século XIX? (2004), ele analisa a

produção das obras para a criação de verdades a partir de interpretações de fatos. Para

além de um amplo estudo do momento, vestimentas e terreno, os pintores do gênero da

pintura histórica faziam referências aos seus mestres e a obras marcantes da época. Coli

explica que a criação a partir de outras obras não era entendida como cópia ou pastiche, a

conexão entre as telas era esperada. Assim, símbolos e posturas encontradas em quadros

sobre Napoleão eram repetidos em outros líderes militares quando desenhados ou pintados,

por exemplo. A citação de outras obras simbolizava o prestígio do pintor, comprovava

seus estudos e sua ligação com seus mestres. A referência, para Coli, permite demonstrar

como elementos preexistentes podem reaparecer em outros cenários, produzindo

uma nova inter-relação. A partir de símbolos compartilhados, o imaginário de como um

líder devia ser representado vai se tornando norma na pintura histórica.

Em um trecho do livro Mulheres de Cinzas (2015), do autor Mia Couto, dois homens

dialogam sobre uma estátua que um dos homens indica ser de D. Pedro IV, e comenta

que todas as estátuas são iguais, em todas as estátuas de imperadores e reis a pose é a

mesma. O outro sujeito aponta que não é o rei representado na estátua e sim Maximiliano

I que, a partir de golpes e alianças, se tornou Imperador do México. O primeiro

homem reitera que as estátuas, assim como as narrativas imperiais são as mesmas e caso o

monumento fosse de alguém montado, a imagem do cavalo seria a mesma, independente

de quem está em cima. A história de Couto passa-se em Moçambique, nação também

colonizada por Portugal, mas o pequeno trecho descrito mostra como a referência e a

escolha dos símbolos potencializam uma iconografia de poder compartilhada entre os

artistas e países. Não precisa existir diferença, repetir a posse e até elementos das vestimentas

faz com que a representação ganhe poder e sua própria simbologia. A força que

os quadros ou monumentos adquirem é de tornar-se verdades e não mais interpretações.

Após longas décadas de questionamentos e revisões históricas, as obras começam a ser

revistas como interpretações e não como fatos históricos. Mas quando são utilizadas

em livros didáticos e como base para representação em peças ou filmes, a dissociação

da imagem com o fato torna-se difícil de ser percebida pelo senso comum. E por que

a soberania de uma única imagem? Como podemos entender a hegemonia do grito do

Ipiranga como representação visual da Independência? Disputas políticas e preferências

dentro da Academia de Belas Artes levaram a tela de Américo à sua soberania. A criação do

Museu Paulista para reforçar a importância de São Paulo no momento da Independência e o

destaque da tela na exposição permanente também contribuíram para a pintura tornar-se fato e

não interpretação da história.

Trouxemos outros momentos históricos retratados pictoricamente que foram importantes para

a Independência do país. Na busca por visibilizar minorias, a pesquisa tentou localizar a participação

de mulheres artistas na criação de tal iconografia. Infelizmente, a única obra localizada

produzida por uma mulher não pode ser incluída no livro por questões de direito de uso de

imagem. Arco Triunfal erguido na Rua Direita por ocasião da coroação de D. Pedro I como Imperador

do Brasil (1822), de Anne Pepin, é uma aquarela colorida focada mais na arquitetura do que nas

figuras históricas. Há forte presença de população, que parece esperar a chegada de D. Pedro.

Diferente dos pintores, cujas informações são de fácil acesso, encontrar informações sobre Pepin

também se mostrou desafiador em nossa pesquisa. As invisibilidades acontecem não apenas nas

obras, mas também em quem pode realizá-las, principalmente no começo do século XIX.

Em 1822 e em anos seguintes, a necessidade de inventar uma única história da formação da

nação era uma necessidade em todos os campos, inclusive o estético. As imagens produzidas

vão ao encontro do discurso reforçado por quem estava no poder e controlava os meios para

encomendar obras em larga escala e monumentos públicos. Começamos nossa análise a partir

da invenção da tradição do 7 de setembro e como, nos séculos seguintes, novas leituras das imagens

são possíveis, assim como a representação da Independência por outros caminhos.

1 Wilson Coimbra Lemke faz uma análise das obras de Américo e

Moreaux a partir do conceito de povo iconizado em seu artigo “A

Iconização do Povo Brasileiro no Brado do Ipiranga: uma análise

dos movimentos artísticos e suas interfaces com o mundo do direito”,

para a Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 5, número 3, 2019.

2

Coli, Jorge. Como estudar a Artes Brasileira no Século XIX?, São

Paulo: Editora Senac SP, 2004.

16 17



François-René Moreaux

A Proclamação da Independência, 1844

Óleo sobre tela

244 cm x 383 cm

Acervo do Museu Imperial

François-René Moreaux (Rocroi / França,

1807 – Rio de Janeiro / Brasil, 1860) destacou-se

no gênero da pintura histórica por

ter retratado diversos eventos da história do

Império brasileiro.

François-René Moreaux chega ao Brasil sem grande

alarde. Percebe que, para se firmar enquanto pintor, deve

entrar no ambiente das artes acadêmicas brasileiras e,

com as pinturas históricas, consegue se inserir no circuito

das artes. Mesmo não compartilhando, na época,

do prestígio que Pedro Américo teve em relação às representações

históricas, seus quadros seguiam à risca os

caminhos das pinturas da época, especialmente as que

retratavam momentos da História do Brasil, e servem

como uma “documentação imaginada” do período.

O quadro A Proclamação da Independência foi finalizado

em 1844, 44 anos antes de Independência ou Morte de

Pedro Américo. Apesar de tratarem do mesmo tema,

parece que Américo “venceu” a disputa da representação,

e a história oficial do grito está atrelada à imagem

de sua pintura. Até na disputa de importância de territórios,

entre Rio de Janeiro e São Paulo, o quadro teve

vantagens, pois foi encomendado para o espaço que representaria

o momento que o Brasil se torna independente,

o Museu do Ipiranga, na exata localização em

que o grito foi entoado. Já o quadro de Moreaux fixou

residência em solos fluminenses, primeiro no Museu

Histórico Nacional, na cidade do Rio de Janeiro e,

depois, no Museu Imperial, em Petrópolis, onde encontra-se.

Apesar da importância política como então

capital do país, a ideia de um monumento em tamanho

colossal como o parque e museu do Ipiranga acabam

por desviar olhares e se firmam como um espaço oficial

da História da Independência.

O momento capturado por Moreaux remete a um pósgrito,

momento em que a Independência, já declarada,

se transforma em festa, reunindo o povo brasileiro,

representantes da monarquia e militares. D. Pedro,

ao centro, ganha destaque com seu braço erguido e,

por estar na parte mais iluminada do quadro, o olhar

do espectador logo encontra sua figura. Ao dividir a

imagem com uma linha horizontal, percebemos que o

único rosto em destaque é o do governante. Na metade

inferior, em cores mais escuras, encontramos a representação

do povo brasileiro em êxtase com a nova fase

do país. Porém, a iconografia criada para representar

a nova nação em nada parece com seus reais habitantes,

e suas vestes e feições remetem aos camponeses

europeus. Tal equívoco, em que indígenas e negros são

apagados e a nova nação é europeizada para se tornar

apenas uma continuação do velho continente, não é

acidental. A separação entre raças e o entendimento

de que o europeu branco era mais civilizado e superior

aos demais sujeitos era uma prática social recorrente

na época. Se pensarmos que os zoológicos humanos

foram organizados na Europa até metade do século

XX, colocando quem era considerado primitivo e

exótico em exibição como artefatos ou animais, excluir

a representação deles enquanto cidadãos de uma nação

em formação não parece algo tão improvável para as

pinturas da época. Junte-se às referências pictóricas de

Moreaux e temos uma falsa representação da população

em seu quadro.

De acordo com Wilson Coimbra Lemke 3 , no quadro

de Moreaux o povo retratado pode ser lido enquanto

iconizado, termo cunhado pelo jurista Friedrich Müller

para explicar um povo mítico, irreal, um povo enquanto

representação da imaginação que se tem sobre ele.

Segundo Lemke, o mero fato de as pessoas do quadro

remeterem a uma população europeia – seja pela feição

ou vestes – traz a característica de iconização. Quais

eram os representantes da massa brasileira na época?

Pessoas escravizadas, tanto indígenas quanto pretos,

pessoas em condição de miséria e imigrantes europeus.

Um povo heterogêneo, não identificável pela pintura

de Moreaux. O povo da imaginação das cortes, que

era semelhante ao antigo continente e seus habitantes,

foi o retratado, pois assim podia se aproximar mais

de quem estava consumindo aquela obra na época, as

elites. Moreaux baseou-se em sua experiência, bem

como se inspirou em outros pintores para realizar sua

pintura histórica.

O uso de referências de outros quadros para a criação

de uma obra original, atualmente, pode trazer a leitura

de uma mera reprodução ou um pastiche sem qualidade.

Na forma de crítica ou, talvez, mixagem, vemos

quadros que se apropriam de imagens para refutá-las.

Porém, no século XIX, a pintura que referenciava a outras

obras mostrava sinal de erudição de seu executor,

de que o mesmo havia estudado e planejado sua obra

a partir de grandes artistas. Conforme indicam Lima,

Schwarcz e Stumpf 4 , Moreaux faz referências, na

pintura A Proclamação da Independência, à obra Entrada

de Henrique IV em Paris em 22 de Março de 1594, de

François Pascal Simon Gérard, produzida em 1817.

Conforme apontado pelos autores, a prática de citação

de outras pinturas não era incomum, porém, devido à

animosidade entre Moreaux e Araújo Porto-Alegre,

então titular da cadeira de pintura histórica na Academia

Imperial de Belas Artes (Aiba), o segundo julgou

a referência como uma cópia mal executada. Mesmo

não sendo comprado ou exaltado na época como pintura-símbolo

do momento histórico, os elementos do

quadro reforçam a imagem de como a cena histórica

se deu: um herói em seu cavalo, libertando o povo e

trazendo os ares das possibilidades à vista.

3 Lemke, Wilson Coimbra. "A iconização do povo brasileiro no

brado do Ipiranga: uma análise dos movimentos artísticos e suas

interfaces no mundo do direito” Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano

5, 2019.

4

Lima, Carlos, Schwarcz, Lilia Moritz e Stumpf, Lúcia Klück. O

Sequestro da independência - uma história da construção do mito do Sete

de Setembro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

18 19



Pedro Américo

Independência ou Morte, 1888

Óleo sobre tela

415 cm × 760 cm

Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo

Pedro Américo de Figueiredo e Mello

(Areia / Brasil, 1843 – Florença / Itália,

1905) produziu pinturas históricas de grande

relevância para o imaginário nacional, contribuindo

para a construção da identidade

brasileira durante o Segundo Reinado.

O quadro O Grito do Ipiranga ou Independência ou

Morte, nome pelo qual ficou mais conhecido, tornou-se

a grande representação do momento histórico ocorrido

em 7 de setembro de 1822. Tratado quase como

uma fotografia do ato, o quadro permeia o imaginário

brasileiro de como deve ter acontecido o grito, e como

D. Pedro I e seus companheiros se portaram. Graças

a sua circulação no meio das artes e sua proximidade

com figuras importantes, como Araújo Porto-Alegre,

seu sogro, Américo recebeu a encomenda para criar “A”

representação da Independência. Através de um estudo

do local, conversas e uma extensa pesquisa, o artista

fez uma obra de dimensões grandiosas, concluída em

1888, sessenta e seis anos após o evento. É inegável

analisar o período como um tempo pouco favorável

à exaltação de um monarca já que, no ano seguinte

(1889), o Brasil se tornaria uma república, distanciando-se

cada vez mais de uma estrutura imperial.

Junto ao clima político, existia um problema prático

para a exibição da obra. A construção do Museu do

Ipiranga não havia terminado e, com isso, o quadro

não encontrou seu lugar de repouso quando chegou

ao Brasil. Sua primeira exibição foi na Europa, local

de residência de Américo na época. Ainda em 1888, a

tela foi exposta na Academia Real de Belas Artes de

Florença, tendo uma boa recepção da crítica especializada.

Um ano depois chega ao Brasil e fica armazenada

em uma sala da Faculdade de Direito do Largo

de São Francisco, em São Paulo, sem receber muitos

cuidados para sua preservação. Antes de ser exibida ao

público brasileiro, a tela ainda fez mais uma viagem,

em 1893, para Chicago, onde participou da Exposição

Universal comemorativa dos 400 anos da chegada de

Cristóvão Colombo às Américas. Após dois anos, com

a inauguração do Museu Paulista (1895), Independência

ou Morte foi instalada e seguiu sua trajetória junto

à população local. Um fato curioso é que, devido ao

tamanho do quadro e das portas do Museu, seu deslocamento

se torna inviável. Durante a reforma da instituição

(2013–2022), o quadro permaneceu no Salão

Nobre, enquanto as demais pinturas foram retiradas.

No momento de sua primeira exibição, em Florença,

Américo aproveitou para elaborar um texto sobre a

pintura, explicando suas escolhas e adaptações realizadas

em prol da fidedignidade ao momento. Enquanto

pintor-historiador, queria retratar o momento mas,

na tensão entre história e arte, seu desejo pelo belo

venceu, e liberdades artísticas ligadas ao terreno, animais,

elementos cênicos e personagens foram feitas, a

começar pela distância entre o riacho e o monte onde

se encontram D. Pedro I e seus camaradas.

Américo explicou que fez uma adaptação do terreno,

aproximando os dois elementos em seu quadro para

que ambos pudessem estar presentes. O casebre ao

lado esquerdo do quadro, conhecido como Casa do

Grito, não existia em 1822. Construído como local de

descanso para os viajantes, no momento do grito ele

não fazia parte da paisagem. Os trajes de D. Pedro e

sua comitiva também se destacam na lista das licenças

poéticas. No meio de uma longa viagem entre Santos e

Rio de Janeiro, os pomposos fardos estariam em estado

mais desgastado do que os que são apresentados. Em

vez do soberano em seu cavalo, as pesquisas históricas

apontam que a mula era utilizada para longas trajetórias,

animal no qual provavelmente D. Pedro estaria

montado no momento do grito. Híbrido do burro

com o cavalo, a mula desaparece da cena por completo.

Outra ausência notável é o povo brasileiro, porém tal

representação parece se assemelhar com a realidade,

diferente das licenças poéticas apontadas aqui. Américo

escolheu representações singelas do brasileiro. Em

seu quadro domina a comitiva do futuro imperador e

nas margens, espremido nas beiradas, temos a imagem

de um trabalhador, mero espectador da ação clamando

independência. Um espectador de sua história,

pois a Independência viria em benefício desse sujeito,

trabalhador e servil à nação. É verdade que a ruptura

com Portugal, da forma como foi orquestrada pelas

elites, manteve o poder na mão de poucos e limitou,

novamente, a participação popular nas decisões de seu

território. Em distinção ao quadro de Moreaux, no

qual D. Pedro I celebra com o povo as possibilidades

de seu ato, Américo escolhe retratar o exato momento

do grito, criando uma narrativa de um único herói,

cujo ato é feito para um povo iconizado. Américo

assume em seu quadro as referências a outras pinturas

históricas 5 e, diferentemente de Moreaux, suas citações

geram mais valor simbólico à pintura.

Apesar de suas justificativas e explanação do uso da liberdade

artística para retratar o grito, a obra foi usada,

ao longo dos últimos dois séculos, como retrato fiel do

momento, seja nos livros de história, que a usam como

ilustração, ou em filmes, que replicam a cena exatamente

como no quadro. O momento histórico tornouse

sua representação imagética. Acreditamos mais na

imagem do que nos fatos, fenômeno que parece mais

comum na contemporaneidade, em que manipulação

de imagens e deep fakes são usados como provas cabais.

5 Ver Sequestro da Independência, já citado.

20 21



Jean-Baptiste Debret (Paris / França, 1768

– 1848) integrou a Missão Artística Francesa

no Brasil, tendo trabalhado como pintor e

idealizador de várias celebrações da Corte.

A construção da identidade brasileira, social e política

no século XIX passou pelas mãos de Debret. O

artista chegou ao Brasil junto à Missão Francesa em

1816, e aqui permaneceu por quinze anos, durante os

quais presenciou a mudança da colônia para o Império

e a criação de símbolos para exaltar o nacional que

começavam a ser forjados em nome da tradição. Suas

aquarelas, transformadas em gravuras pelo próprio para

o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado

em 1834, apresentam um país cuja identidade nacional

ainda estava sendo moldada. Através de suas imagens

conhecemos a visão do artista sobre os povos nativos, a

relação com o trabalho nas grandes capitais da época,

o cotidiano, os momentos festivos e as solenidades

políticas e religiosas. Segundo as palavras do próprio:

“Eu me propus a seguir, nesta obra, um plano ditado pela

lógica: o de acompanhar a ‘marcha progressiva da civilização

no Brasil’.” 6

Assim, os volumes do livro ganham ares de documento

oficial da época, em que o artista tem e não tem assinatura,

pois apenas transpõe para o papel o que vê, sem

alterar a cena. Isto faz com que as imagens acabem por

ilustrar não apenas livros de artes mas livros de história

e sejam “fotografias” de um período onde tal registro

não existia ou não era usual 7 . Valéria Piccoli 8 , em seu

texto “O Brasil na viagem pitoresca e histórica de

Debret”, nos faz compreender melhor o título “viagem

pitoresca”. Associado a livros ilustrados, a expressão

que o título carrega significa que o mesmo deveria

ser feito por e para artistas, que poderiam utilizar as

imagens como referência para suas criações. Novamente,

o papel das referências pode ser percebido como

algo aceitável e comum na época, não era visto como

plágio. Junto ao seu caráter de livro-referência, deveria

ser uma narrativa ampla da viagem, incluindo temas

variados, como vemos com os três volumes de Debret.

No volume dedicado às cerimônias oficiais e ao clero,

encontramos representações de momentos históricos

da política brasileira.

A gravura Aclamação de Dom Pedro I, Imperador do

Brasil, no Campo de Sant'Ana, Rio de Janeiro pode ser

encontrada no terceiro volume do livro. O evento

aconteceu alguns meses depois do brado da Independência,

no dia 12 de outubro de 1822. Aclamar, em seu

sentido literal, significa reconhecer ou aprovar mérito,

honra ou condição especial, afirmar; um segundo

significado é saudar, dirigir gritos ou berros a alguém.

O segundo sentido parece casar melhor com a situação.

Após gritar pela independência, agora D. Pedro

gritava pelo seu reconhecimento enquanto imperador

do Brasil. Não apenas ele, mas toda a estrutura política

da época, que pouco mudou após o rompimento com

Portugal, precisava clamar a todos os pulmões por

sua figura. Por algum motivo, acredita-se que, quanto

mais alto se fala, mais se será ouvido. Assim, quanto

mais aclamado, quanto mais visibilizada a cerimônia,

mais D. Pedro I em seu novo cargo político seria

ouvido. Debret, na gravura, não revela a cerimônia em

si, realizada em espaço limitado para poucos; ele nos

mostra o momento seguinte, quando o novo imperador

é aclamado pela massa, pelo povo brasileiro. No

balcão, ao seu lado, podemos identificar as figuras da

Imperatriz Dona Leopoldina (sua esposa e voz ativa

para a Independência e construção de seus símbolos),

José Clemente Pereira (presidente do Senado da Câmara

Municipal) e José Bonifácio de Andrada e Silva

(um dos responsáveis por orquestrar a Independência

junto a D. Pedro). De figuras femininas, só encontramos

duas: a já citada D. Leopoldina, e uma criança,

provavelmente a princesa Maria da Glória, filha do

casal de imperadores. O restante do balcão é composto

por figuras masculinas com trajes militares, ou clérigos

que exaltam a aclamação, com seus chapéus para o alto

e feições alegres. É notável a chuva de papel caindo

no lado esquerdo da imagem. Papeletes onde se pode

ler “aceito” caem sob a horda de pessoas no Campo de

Santana ou da Aclamação, nome pelo qual também é

conhecido. Aceito, o imperador torna-se o novo dirigente

da nação que começa a dar seus primeiros passos

independentes, mas também o aceito do povo, ainda

em busca de um norte para o novo momento político

do país. O quadro cria uma dupla aceitação, não apenas

do monarca, como da população, como se o povo

tivesse espaço de escuta dos seus desejos em relação

aos caminhos de dominância da nação. Entre acenos e

expressões de exaltação, o espaço do balcão parece ser

recorrente, até na atualidade, para demonstrar a relação

entre poderes políticos e a multidão. De políticos a

monarcas, de ditadores a presidentes, a sacada parece

ter um protagonismo político inegável, seja em cenas

oficiais ou em suas representações. Em uma varanda,

os argentinos evocam o imaginário de Evita Perón

zelando pelo povo. Nas solenidades do Reino Unido, a

família real sempre aparece acenando para seus súditos

das varandas do Palácio de Buckingham, e cada aceno,

cada sorriso, é analisado milimetricamente depois por

comentaristas e especialistas da realeza. No Brasil, há

uma imagem do ex-presidente Itamar Franco em um

balcão durante o carnaval, que circulou nas páginas

de jornais e revistas, questionando sua companhia

e suas vestes. Kim Jong-Un aparece inúmeras vezes

em varandas com seu gesto minimalista, mas sempre

demonstrando a força bélica da Coreia do Norte.

Sacada, balcão ou varanda, tal espaço onde os líderes se

colocam visíveis e disponíveis para o povo, parece ter

seu lugar enquanto símbolo de poder e de aproximação

(com ressalvas). Outro símbolo da nação em constru-

ção é o da futura bandeira do Império, que aparece em

destaque no quadro. Verde e amarelo serão as cores

símbolo do novo momento brasileiro.

Por último, como a população aparece na gravura?

Pouco identificável: tornam-se rostos similares em

um mar sem fim. A comemoração ordenada mostra

homens brancos e pretos unidos pela aclamação de

D. Pedro I. O povo perde sua autonomia, é apenas

uma massa passiva e fiel às mudanças daquele tempo

presente.

Jean-Baptiste Debret

Aclamação de Dom Pedro I, Imperador do Brasil,

no Campo de Sant’Ana, Rio de Janeiro, 1839

Litografia

23,2 cm x 31,2 cm

Acervo Biblioteca Nacional Digital

22 23



Jean-Baptiste Debret

Coroação de Dom Pedro I, 1828

Óleo sobre tela

380 cm x 636 cm

Acervo Palácio do Itamaray -

Ministério das Relações Exteriores.

Quase dois meses após a cerimônia de aclamação, a

coroação de D. Pedro I ocorreu no dia 1º de dezembro

de 1822. O evento deu-se na Capela Real, atual

Igreja da Antiga Sé, e foi transformado por Debret em

gravura e tela de grande dimensão. Diferentemente do

que nos acostumamos, aquarelas e gravuras de dimensões

contidas, a tela encomendada assemelha-se, em

tamanho, às imagens históricas produzidas na época

por pintores como Pedro Américo e Victor Meirelles,

para citar alguns, possuindo 380 x 636 centímetros.

Confeccionada em 1828, apresenta alguns elementos

diferentes da gravura produzida por Debret para integrar

seu livro, mas os códigos da nação estão presentes

em ambas, a começar pelo título e pela coroa colocada

na cabeça de D. Pedro I.

Anteriormente à Independência, quando o Brasil ainda

era colônia de Portugal, o cargo mais alto de comando

era o do rei, mas, no Brasil, foi escolhido o título de

Imperador para designar o líder da nação. A coroa e

o cetro já eram símbolos do reinado, contudo, quando

os reis de Portugal eram entronizados, na dinastia dos

Bragança, as representações pictóricas traziam a coroa

ao lado, nunca em cima da cabeça dos monarcas. A

razão para tal representação pode ser interpretada por

dois eventos ocorridos em Portugal. O primeiro é a

força do mito do Sebastianismo: quando o Rei Sebastião

I (1574 – 1578) desaparece durante a Batalha de

Alcácer-Quibir, no Marrocos, surge na cultura popular

a ideia do retorno do monarca, reclamando o trono e a

Coroa real. Por isso, os coroados após seu desaparecimento

apenas guardavam a coroa, na esperança de seu

retorno. O segundo motivo para a ausência da coroação

das cerimônias de entronização foi a devoção a

Nossa Senhora Conceição, que fez com que a mistura

entre Nação e religião colocasse a coroa à disposição da

Igreja. Em 1646, D. João IV colocou a sua própria coroa

na imagem de Nossa Senhora da Conceição como

agradecimento por ter recuperado a independência de

Portugal face aos espanhóis, consagrando “Seus Reinos

e Senhorios” a mesma. Desde então, Nossa Senhora da

Conceição foi elevada ao status de rainha de Portugal e

mais nenhum rei ou rainha portugueses usaram coroa.

Os dois argumentos, baseados na fé e na força da Igreja,

explicam a representação dos reis sem coroas, e por

que os mesmos realizavam cerimônias de aclamação

ao invés de chamá-las de coroação. D. Pedro I pode

ser coroado, pois não está mais salvando a coroa de

Portugal para D. Sebastião; ele pode ser coroado pois

é o primeiro Imperador do Brasil. Porém, não há uma

ruptura em relação à cerimônia e simbolismos desejados

pelo imperador. A realização em um espaço sacro

faz com que as linhas entre política e igreja continuem

misturadas, algo perceptível na tela de Debret, em que

vemos participantes ligados à política e ao clero na

cerimônia. No canto esquerdo superior da tela, percebemos

as únicas presenças femininas, D. Leopoldina

e sua filha, no balcão, observando a coroação ao longe.

As cores-símbolos escolhidas para o Império estão

presentes seja nas próprias vestes do D. Pedro, seja na

bandeira que, novamente, surge em cena. As escolhas

de Debret chamam atenção em relação ao vestuário

do imperador. Os sapatos utilizados por monarcas em

cerimônias não eram botas de montaria; tal calçado

era associado às atividades corriqueiras. A opção de

Debret serve para reforçar a imagem de D. Pedro

enquanto um rei militar, mais ativo, pronto para lutar e

tomar as rédeas do país. Voltando à questão da citação

entre os pintores, Debret buscava suas referências

pictóricas em seu professor, o francês Jacques-Louis

David, que havia feito uma pintura da coroação de

Napoleão. Similaridades, incluindo a bota de montaria,

podem ser percebidas nas duas obras, principalmente

ao retomar a ideia de um líder militar altivo. Outra

parte da indumentária de destaque é o manto, em uma

das cores adotadas pelo império, o verde-americano,

e adornado por desenhos de penas de aves brasileiras,

fazendo uma relação do Império com as terras ainda

em estado selvagem que em breve seriam civilizadas

pelo novo governante, e pelo desejo da unificação e

avanço do Império.

O quadro foi instalado na sala do trono, mas quando

D. Pedro I abdica e volta para Portugal, decide levar

símbolos de seu poder consigo, incluindo o quadro. A

tela segue, enrolada, em um navio para à Europa. Seu

retorno ao Brasil ocorreu apenas em 1972, durante

a ditadura militar. O governo Médici aproveitou a

comemoração dos 150 anos da Independência para

reforçar a imagem de D. Pedro I enquanto um militar

a favor do país. A construção usada por Debret para

exaltar as características de luta e liderança do imperador

em sua tela tornaram-se discurso, décadas depois,

de um governo que necessitava mostrar a importância

das tropas organizadas para manter a ordem no país.

6 Debret, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo

Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1989, v.2, p.13

7

Em 1926, Joseph Nicéphore Niépce, realizou a primeira fotografia.

8

Piccoli, Valéria. O Brasil na viagem pitoresca e histórica de Debret.

Encontro de História da Arte 1 (2005)

24 25



Félix-Émile Taunay (Montmorency / França

1795 – Rio de Janeiro / Brasil, 1881) integrou

a Missão Artística Francesa e é considerado

um dos fundadores do gênero da pintura de

paisagem no Brasil.

A representação da aclamação encontra nos artistas

modos de privilegiar diferentes elementos em cena.

Debret escolhe um ângulo lateral do balcão, destacando

as figuras de D. Pedro I, sua família e aliados.

Taunay nos apresenta um outro ângulo do evento. No

primeiro plano e em destaque está a representação do

povo brasileiro. Em sua gravura, o povo não é apenas

uma massa, as figuras são identificáveis e não se resumem

a corpos masculinos. Logo percebemos mulheres

e crianças comemorando nosso primeiro imperador.

Apesar dos rostos mais visíveis, é inegável que a

população ainda não possui vozes distintas, é unificada

e parece ter apenas um desejo comum: exaltar a

aclamação. Todos comemoram de maneira uniforme

a Independência, o novo regime, o líder atual. Não há

indícios de insatisfação ou protestos, há uma aceitação

geral da alteração de regime e felicidade com os novos

ventos que tal mudança parece apresentar.

Como a força de atrito não é posta nas imagens, a simbiose

entre a população e os representantes do poder

imperial é forjada na iconografia da época. O acordo

está selado e representado em pinturas ou gravuras,

que se tornam resumos históricos de fatos com apenas

uma narrativa da história escrita pelos líderes do Império,

a oficial.

Taunay tomou uma decisão ao destacar a população, ao

mostrar a aceitação do novo regime e como o mesmo

estaria a serviço de todos. São as pessoas, em destaque

na gravura, as protagonistas do momento histórico.

Podem não ter participado fisicamente do ato da

Independência, mas foi para elas que o berro foi dado,

são elas que serão os beneficiários do Império e, por

isso, a aclamação torna-se um grande momento de

comemoração.

Félix Emile Taunay

Aclamação de S. M. D. Pedro I Imperador do Brasil

no dia 12 de outubro de 1822, 1822

Água-forte aquarelada

32,9 cm x 47cm

Acervo Biblioteca Nacional Digital

Ana Flora Guimarães Murano 9 salienta dois elementos

da obra: natureza e arquitetura. No céu azul,

encoberto por nuvens que se confundem com a fumaça

26 27



dos canhões, a bonança de um novo tempo é traduzida.

As intempéries não têm vez, chuvas e trovões não

irão atrapalhar a celebração da população que começa

a criar sua própria identidade pelos símbolos forjados

ao longo do Império. Ao envolver a cena pelas nuvens,

Taunay estampa dramaticidade ao momento, marcando,

mais uma vez, a importância da aclamação para

uma jovem nação independente.

Para Murano, ao dar destaque ao edifício da aclamação,

a obra acaba por criar um contraste entre a multidão

e a arquitetura. Ao optar por uma representação da

cena em plano geral, o volume ocupado pela edificação

ganha proeminência e simboliza o poder político do

novo regime e da capital, o Rio de Janeiro. O destaque

à construção não deixa de marcar quem a ocupa, e D.

Pedro I e seus apoiadores seguem em destaque na obra,

mesmo que a distância não permita o espectador da

obra captar suas feições.

Elegemos imagens em vez de texto ou depoimentos

como representações mais legítimas da História e,

assim, quadros, gravuras, pinturas tornam-se documentos

fiéis de batalhas ou cerimônias. No caso da

aclamação, a história contada pelas imagens é a de um

momento apaziguador e feliz, no qual o aceite de todos

é traduzido na Independência pacífica realizada por

um monarca português-brasileiro. Nas imagens, não há

rebuliço, apenas nos é apresentada uma jovem nação

formada por diferentes sujeitos dispostos a trabalhar

juntos em prol da nova política imperialista.

Taunay, assim como Debret, “capta” um momento de

agitação plácida, no qual a felicidade acalma possíveis

revoltas e unifica os personagens, que agora ganham

papel de povo brasileiro. E, como manda o roteiro, a

população ganha novos símbolos para poder incorporar

à sua identidade: a bandeira, o hino e o brasão, para

citar alguns. No balcão, a bandeira se faz presente, os

militares já trajam as fardas do novo regime. Os símbolos,

sendo replicados na iconografia do século XIX,

permitem que a nova tradição seja criada e reforçada.

Johann Moritz Rugendas (Augsburg / Alemanha,

1802 – Weilheim / Alemanha, 1858)

integrou a expedição Langsdorff, iniciativa do

Império Russo, e publicou Viagem Pitoresca

através do Brasil em 1835.

Rugendas chega ao Brasil em 1822, contratado como

desenhista da missão científica coordenada pelo

alemão Georg Heinrich von Langsdorff. A expedição

reuniria imagens da fauna e flora brasileira, assim

como seus tipos sociais. Por percalços burocráticos, o

trabalho não começou no prazo inicial e Rugendas,

aguardando seu início, pode flanar pela sociedade brasileira,

estando no Rio de Janeiro no dia da coroação

de D. Pedro I. Passeando pela capital de uma nação

ainda em construção, o artista começou a produzir

desenhos e capturar momentos, com a rapidez do

grafite. Possuía o desejo da produção de um livro sobre

sua viagem, concretizado com a publicação de Viagem

Pitoresca através do Brasil. Esboçando as situações

cotidianas ou célebres, o dia 1º de dezembro de 1822

não escapou a seu olhar. Pouco meses separam a sua

chegada ao país do evento, tendo pisado em solo brasileiro

em março do mesmo ano.

Sem a pretensão de fazer uma representação oficial,

pois não era contratado pela monarquia para retratos

oficiais, Rugendas desenha a cena que se desenrola em

frente a seus olhos. Captura o momento priorizando

detalhar os sujeitos da cena, e os monumentos – edificações

e o arco do triunfo construído para a ocasião

– contam com traços mais imediatos, sem o desenho

minucioso dos detalhes da arquitetura. Personagens da

monarquia juntam-se ao clero, militares e a população

em geral, e Rugendas os diferencia por suas vestimentas

no desenho. Novamente, todos estavam unidos em prol

de uma identidade nacional que começava a se formar

a partir dos eventos daquele ano de 1822. Mesmo seguindo

a pé, e não a cavalo para elevar o ar da pompa, o

destaque para D. Pedro no desenho se dá pela centralidade

do personagem, e também pelo detalhamento

maior das suas vestes e feições, conseguimos ver o traço

das plumas em seu chapéu assim como bordados em

suas vestes.

É possível referenciar o desenho a outras obras do

período que trazem uma leitura de triunfo de governantes.

Como aponta Murano 10 , há similaridades com

o quadro Napoleão em Brandemburgo (1810) de Charles

Meynier, no qual o estadista francês cruza o Arco do

Triunfo – que, na tela, já se encontra ao fundo da imagem

– em cima de seu cavalo, sendo saudado e reverenciado

pelo povo francês. Criar conexão entre pinturas e

outros personagens históricos, prática comum na época,

comprova a erudição do artista. Observar uma imagem

repetida várias vezes nos ajuda a fixá-la na memória.

Criar as cenas a partir de referenciais existentes que

já haviam sido traduzidos como imagens oficiais, que

evocavam poder e figuras proeminentes, produzia, de

forma indireta, a legitimidade dos sujeitos retratados e

da cena. Com um olhar para o outro lado do Atlântico,

referenciar as nossas “vitórias” a partir dos “ganhos”

europeus tornava lícitos os caminhos do novo Império.

O esboço não se tornou estudo para uma tela de

grandes dimensões, nem mesmo entrou no livro de

Rugendas sobre o Brasil e, assim, ganhou a possibilidade

de ser um retrato “fiel” do evento. Produzido

apenas para registrar o momento antes que a memória

o apague ou o transforme em outro registro, Rugendas,

aqui, cria um desenho que, a grosso modo, poderia ser

transposto para a prática do registro imediato, feito no

papel e com as ferramentas disponíveis. É como um

desenho de guardanapo, sem menosprezar os desenhos

realizados em tal papel, feito na emoção do momento

que, por vezes é presenteado ao retratado, por outras

torna-se mais um papel no fundo de uma gaveta e, no

caso de Rugendas, um pedaço de uma história construída

com imagens, salvaguardado em um acervo museal.

10 Murano, Ana Flora. D. Pedro I: uma análise iconográfica. Dissertação

de mestrado em História. Campinas, IFCH Unicamp, 2013.

Johann Moritz Rugendas

Cortejo imperial, 1822

Desenho em nanquim e grafite sobre papel

23,3 cm x 36,7 cm

Coleção de Arte da Cidade / CCSP / SMC

/ PMSP. Fotografia / Edição: Sossô Parma /

Luciana Nicolau

9 Murano, Ana Flora. D. Pedro I: uma análise iconográfica. Dissertação

de mestrado em História. Campinas, IFCH Unicamp, 2013.

28 29



João Maximiano Mafra (Rio de Janeiro /

Brasil 1823 – 1908) dedicou-se à pintura e à

escultura, além de ter sido professor da Academia

Imperial de Belas Artes.

Louis Rochet (Paris / França 1813 – 1878)

foi um escultor francês, especialista em

monumentos equestres, que realizou diversas

obras no Brasil.

Quem caminha pelas ruas do centro no Rio de Janeiro,

mesmo que sem muita atenção ou apressado pelos

passos a caminho do trabalho, depara-se com alguns

símbolos de poder do Império e da República. Entre

os trilhos do VLT 11 , carros e ônibus que cortam as

pistas ou seguem parados no trânsito, trabalhadores,

pessoas em situação de rua e barraquinhas em dias

festivos, encontramos a primeira estátua pública do

Brasil. Inaugurado em 1862, o monumento simboliza

o eleito rito fundador da nação: a Independência pelas

mãos de D. Pedro I. Quarenta anos após tal ato, ele

voltava a ser celebrado e marcado em espaço público,

situado em um local central na vida do morador

da capital do país. A inauguração da estátua, como

João Maximiano Mafra

e Louis Rochet

Estátua equestre de Dom Pedro I,

1862

Base em granito carioca,

pedestal em bronze e estátua

em bronze fundido

15,7 metros

Acervo da Biblioteca

Nacional Digital

detalha Paulo Knauss 12 , passou por um pequeno atraso.

Programada para o dia 25, aniversário da primeira

Constituição nacional, as águas de março não deram

descanso e o evento precisou ser adiado. Mesmo sem

a trégua da chuva, a celebração e apresentação do monumento

para a população se deu no dia 30 de março,

com muitos olhares curiosos e a pompa solicitada pelos

comandantes da nação.

Homenagear D. Pedro I através de um monumento

público foi uma ideia que teve início em 1825, mas

que não conseguiu ter continuidade na época devido às

mudanças políticas que levaram à renúncia do monarca

em 1831. O projeto seguiu engavetado até 1839,

quando voltou a ser pauta; porém, foi novamente deixado

de lado, sendo retomado e executado apenas em

1853, quando a Câmara da Cidade do Rio de Janeiro

começou a organizar uma comissão para abertura de

concurso e estudo da viabilidade do monumento. Com

o apoio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

em 1855 é lançado edital para interessados em inscrever

seus projetos de escultura. Três projetos foram premiados,

e o selecionado para execução foi do professor

de Pintura Histórica na Academia de Belas Artes,

João Maximiano Mafra. Seu desenho Independência

ou Morte foi executado em Paris, por Louis Rochet

(também selecionado no concurso) devido a dificuldades

técnicas e de materiais para executar a escultura no

Brasil. Se levarmos em consideração a data do lampejo

da construção do monumento até o momento de sua

instalação, o processo demorou quase quatro décadas.

No decorrer desse tempo, o país passou pela abdicação

e falecimento de D. Pedro I, a Regência Trina, a posse

de D. Pedro II, a construção do IHGB e de instituições

como o Arquivo Público Nacional, dentre outros

eventos e momentos que ajudaram a moldar a história

oficial do país enquanto se desenrolava. E como toda

história necessita de documentos e representações, o

monumento da Independência seria mais um marco,

agora no espaço da praça pública, que ajuda a sociedade

a fincar a História oficial produzida enquanto

narrativa única dos eventos que levam à construção da

nação brasileira.

Em contraste com quadros como Independência ou

Morte de Pedro Américo e O Grito do Ipiranga de

François-René Moreaux, D. Pedro não ergue uma

espada – símbolo de seu poder militar – ou seu chapéu.

Aos céus ele oferece à Constituição brasileira, traduzida

na publicação em sua mão. Juntam-se dois momentos

marcantes para a construção do Brasil enquanto

nação soberana: sua independência de Portugal e a

criação da primeira Constituição, datada de 1824 e

outorgada por D. Pedro I. Mesmo retirado o símbolo

da espada, D. Pedro ainda representa um herói

militar, suas vestimentas reafirmam mais uma vez a sua

“vocação” militar, porém sem suas insígnias monárquicas.

Nas colunas do monumento, uma cronologia de

eventos é apresentada, traçando a história da nação a

partir do herói eleito como fundador. Começa com o

nascimento de D. Pedro em 1798, segue para a data de

seu casamento com Dona Leopoldina (1817), o Dia

do Fico, quando foi nomeado “Defensor Perpétuo do

Brasil”, a aclamação, sua coroação (os quatro eventos

em 1822), a outorga da primeira Constituição do país

(1824) e seu segundo casamento, com Dona Amélia

(1829). Apesar de misturar o que parecem eventos

públicos com a vida privada do primeiro imperador

do Brasil, os autores Mirielly Ferraça e Stanis David

Lacowicz, em seu artigo “Memórias do Império em

disputa: sentidos no espaço urbano a partir da análise

da estátua de equestre de D. Pedro I” (2019), lembram

que os casamentos da realeza não eram considerados

eventos pessoais e sim atividades oficiais, já que eram

arranjados para criar ou fortalecer alianças políticas entre

países. Abaixo de D. Pedro I, encontramos figuras

que personificam os principais rios brasileiros: Amazonas,

Madeira, Paraná e São Francisco. As figuras

são esculturas de indígenas que se unem a animais da

fauna nacional. Apontado por Ferraça e Lacowicz,

a “presença/ausência” dos indígenas no monumento

revela como os povos originários eram compreendidos

na época: como sujeitos sem identidade própria, em

um estado selvagem que se mistura a natureza, já que

à eles não é dada voz, apenas o local da representação

de elementos naturais e geográficos do país. Quem

são esses indígenas? Quais são suas respectivas etnias?

Nada disso parece importar. A inclusão deles em

um nível abaixo de D. Pedro I nos faz entender que

a colonização e o sujeito político-militar está acima

dos indígenas e dos elementos da natureza. Outras

ausências são notadas no monumento, que contém os

dizeres: “A D. Pedro I, gratidão dos brasileiros”. Porém,

quem é a nação brasileira que começa a se constituir?

Os indígenas e os negros estão inclusos nesse agradecimento?

Ferraça e Lacowicz ainda apontam mais

uma provocação: qual povo, na época, era alfabetizado

em português para ler e saber o que estava contido no

monumento? Seria, então, o povo agradecido apenas os

descendentes de portugueses e aqueles que se mantinham

no poder?

A estátua segue, agora envolta por grades, na Praça

Tiradentes. Por mais que, na época ou nos dias atuais,

ninguém pare para observar ou ler os dizeres, a imagem

de D. Pedro I como herói nacional conseguiu ser

disseminada e, obras públicas que são encontradas em

nossas caminhadas diárias ou em passeios acidentais,

reforçam o imaginário construído de um único sujeito

como o pai da pátria.

11 Veículo leve sobre trilhos (VLT) é uma forma de transporte

público utilizado na cidade do Rio de Janeiro. Existem 03 linhas que

servem a cidade e todas estão concentradas no centro. A linha 2 tem

parada na Praça Tiradentes e conecta a Praça XV à Central do Brasil.

12 Knauss, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no

Brasil do século XIX. 1920, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010.

30 31



eríodo II 1922

A conjuntura política do Brasil no início de 1922 não era das mais simples: a jovem

República, então fundada há pouco mais de 30 anos, enfrentava mais uma crise devido a

greves operárias e ao levante militar dos 18 do Forte. Na cultura, a tensão expressou-se

pela realização da Semana de Arte Moderna, que buscava renovar o modo de pensar e

produzir arte no Brasil. Por isso, a celebração da efeméride dos cem anos da Independência

foi vista como uma oportunidade única de promover a união nacional em torno

da comemoração de sua soberania.

Como discutimos na última seção, até aquele momento, as representações da Independência

estavam focadas no ato individual de Dom Pedro, expresso na imagem do grito

do Ipiranga. Apesar da revogação, em 1920, da Lei do Banimento 1 da família imperial,

o cenário ainda não era favorável à exaltação do protagonismo do monarca, mas o era à

possibilidade de reconciliação entre os rivais de 1889. Para isso, foi promovida a criação

de uma nova iconografia baseada em uma interpretação da Independência como ato

coletivo, cuja centralidade não está em um único personagem, mas no conjunto de ações

empreendidas por representantes de origens e posições diversas, desde a soldada Maria

Quitéria até a abadessa Joana Angélica.

Foi nesse contexto que o governo decidiu realizar a Exposição Universal no Rio de

Janeiro, então capital federal. Desde a primeira edição, feita em Londres, em 1851, as

Exposições, denominadas “vitrines do progresso”, caracterizaram-se pelo grande afluxo

de turistas e divisas, pela promoção comercial e pela modernização urbana. Dentre as

atividades desenvolvidas, foi realizada a primeira transmissão oficial do rádio no Brasil,

que se iniciou com um discurso de Epitácio Pessoa, décimo-primeiro presidente do país.

Além disso, a programação da Exposição Internacional do Centenário da Independência,

realizada entre 7 de setembro de 1922 e 24 de julho de 1923, incluiu a disputa de

um concurso organizado pela Escola Nacional de Belas Artes para fomentar uma “outra

imagem da Independência”.

Junto à inauguração do Museu Histórico Nacional, a Comissão Executiva do Centenário

decidiu organizar uma exposição de arte contemporânea e de arte retrospectiva, a partir

da qual seriam adquiridos e incorporados ao acervo da instituição quatro quadros que

retratassem assuntos históricos. Foram selecionados pelo júri as obras Primeiros Sons do

Hino da Independência, de Augusto Bracet; Sessão do Conselho de Estado, de Georgina de

Albuquerque; Tiradentes, o Precursor, de Pedro Bruno; e Minha Terra, de Helios Seelinger.

Com a possibilidade de retratar eventos posteriores e anteriores ao grito e não limitados

ao gênero da pintura histórica, os artistas representaram outros sujeitos que tiveram

papéis determinantes para a fundação da pátria. O grito solitário vai sendo percebido

enquanto ato coletivo, com a ajuda e influência de outros personagens.

Em contraponto à comemoração na capital da República, em São Paulo, o Centenário

da Independência teve como um de seus organizadores Afonso d'Escragnolle Taunay,

cujo projeto centrou-se em dois aspectos: a proeminência paulista na Independência

a partir da atuação dos irmãos Andrada e a exacerbação da figura do bandeirante e do

bandeirantismo como berço da cultura paulista. Para isso, desenvolveu para a reabertura

do Museu do Ipiranga um projeto museográfico marcado, na entrada, por representações do

bandeirantismo e seu papel como “desbravador” do interior do país; na escada, uma estátua de

Dom Pedro I ladeada pelos retratos de Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos

Ribeiro de Andrada Machado e Silva (irmãos de José Bonifácio) recepcionavam os visitantes;

por fim, o ponto culminante do projeto era o Salão de Honra, onde foi expressa a narrativa

paulista da Independência.

No salão principal do Museu destaca-se Independência ou Morte, de Pedro Américo, obra emblemática

da representação da nossa emancipação política. Junto a esta, encontram-se pinturas

encomendadas por Taunay a Oscar Pereira da Silva e Domenico Failutti, que serão tratadas

nesta seção.

A sala de exposição tem papel central na narrativa que pretende produzir o edifício-monumento,

mas não é seu único aspecto digno de nota. O Museu é parte do Conjunto do Ipiranga, composto

também pelo Monumento à Independência, pela Casa do Grito e pelo Parque da Independência.

Construído em etapas, o complexo, que é patrimônio cultural brasileiro, foi levantado às

margens do córrego do Ipiranga, onde foi proclamada a Independência por Dom Pedro I.

Se é verdade que a disputa entre Rio de Janeiro e São Paulo marcou o Centenário, também é

verdade que outros estados empreenderam esforços para produzir obras que retratassem eventos

e repercussões locais da Independência. A necessidade de inventar sua tradição, fez com que

os demais estados – os que possuíam dinheiro – investissem em obras comissionadas a partir

de seus heróis e suas batalhas. Antônio Parreiras é um exemplo de artista que entendeu tal necessidade

e, indo aos estados, conseguiu boas encomendas, além de difundir seus trabalhos em

acervos públicos e privados do país. Ofereceu o serviço primeiro em São Paulo e Belém, mas

logo viu a possibilidade de mercados na Bahia e Pernambuco, por exemplo. Mandava cartas,

conversava com comerciantes e governantes, vendendo seus serviços de pintor e criando a iconografia

dos estados. Outras histórias, para além dos acontecimentos no eixo Rio- São Paulo,

ganhavam suas imagens.

Reforçamos, nesse período, a importância da encomenda de obras públicas. Assim como no

século XIX, o Estado tem papel fundamental para a possibilidade de criação dos artistas e para

o nascimento iconográfico das representações da Independência.

Ao mesmo tempo que a pintura histórica era valorizada, devemos situar que, no ano de 1922, o

rompimento nas artes visuais era tema da Semana de Arte Moderna. Realizada em São Paulo

entre 13 e 17 de fevereiro, não foi tão marcante na época como sua recepção ao longo dos anos

faz parecer. A importância do evento como marco de ruptura compartilha com a Independência

o trabalho de interpretação em anos posteriores para engrandecê-lo e torná-lo marco

de uma época e único indício de uma ruptura. Mesmo com artistas promovendo mudanças e

interessando-se mais pela inclusão de elementos entendidos como brasileiros na construção

de seus pensamentos poéticos, as obras encomendadas ou mesmo selecionadas em concursos

ligados a narrativa da invenção do Brasil ainda se prendiam às técnicas de representação das

escolas europeias e ao compromisso com maior semelhança com a realidade, principalmente

quando a temática envolvia eventos históricos. Assim, em termos de estilo, não vemos muitas

alterações nas obras analisadas em comparação com as do período anterior. A possibilidade de

32 33



conseguir identificar símbolos e marcos era importante de ser mantida nos trabalhos

visuais, pois, assim, não deixariam de ser registros de uma História. Por vezes, os fatos

podiam permitir mais liberdade para serem fantasiados, mas os personagens precisavam

manter-se os mesmos.

O projeto de Taunay para o Museu do Ipiranga (ou Museu Paulista) é um exemplo

de como o controle era exercido junto aos artistas. A visão do diretor do espaço estava

desenhada: ele queria mostrar figuras importantes na formação da nação e, em especial,

o papel de São Paulo. Ao selecionar os eventos a participar dessa narrativa, consultou

artistas que, após conversa com Taunay, declinaram participar do projeto por não terem

liberdade para criar. Manter a imagem mais próxima do que sabiam – ou imaginavam –

ter sido a realidade foi uma das diretrizes a ser seguida. Logo a ideia de obra enquanto

documento oficial e “real” perdura ainda nesse momento.

A presença feminina não só representada mas também como autora das imagens apresenta

aumento no século XX. Georgina de Albuquerque destaca-se na pintura de gênero

histórico, campo dominado por homens, e tem sua obra selecionada no concurso de artes

plásticas do Centenário. Sua escolha por mostrar Dona Leopoldina em papel ativo para

a Independência reforça a multiplicidade de funções que as mulheres exerciam naquele

tempo. Em contraste com as representações de esposa ou mãe, sua imagem ganha centralidade

nas telas e a Imperatriz tem sua importância marcada junto às demais figuras

políticas responsáveis pelo rompimento com Portugal. Ainda assim, outras mulheres com

participação ativa em levantes seguem sem citação, fato que será revisto na atualidade.

As primeiras décadas de 1900 foram propícias para rupturas e manifestos, questionar

o passado e experimentar com o que o futuro poderia nos trazer. As possibilidades,

entretanto, não se esgarçaram como poderiam, frente à História oficial. Era necessário

reforçar símbolos e aumentar o contingente de heróis nacionais. Assim, novos personagens

entram em cena, mas a importância da Independência continua a residir em seu ato

inaugural: 7 de setembro.

1 A Lei do Banimento foi um decreto do governo provisório que baniu

a família imperial do Brasil. Determinou o decreto nº 78-A, de

21 de dezembro de 1889, além do banimento de Dom Pedro II e da

família imperial do território brasileiro, a proibição de Dom Pedro

II e da família imperial de possuir imóveis no Brasil, e estabeleceu

o prazo de dois anos para que os imóveis que possuíssem fossem

liquidados. Foi revogado em 3 de setembro de 1920 por Epitácio

Pessoa, pelo decreto nº 4120.

34 35



Augusto Bracet (Rio de Janeiro / Brasil 1881

– 1960) destacou-se nos gêneros pictóricos

tradicionais durante as primeiras décadas do

século XX: a pintura histórica, o nu e o retrato.

A construção e consolidação das nações passa pela

criação de símbolos que se fortalecem ao serem repetidos

em cerimônias oficiais e momentos corriqueiros

da vida social. As cores verde e amarelo, símbolos da

bandeira nacional, seguem inundando nosso cotidiano

nas camisas das seleções esportivas, em cangas para

turistas, assim como em outros elementos de vestuário

que, ao serem pintados pelas cores nacionais, se tornam

símbolos facilmente identificáveis do Brasil. Assim

como a bandeira, o hino do país reforça o sentimento

de pertencimento e de identidade coletiva. Entoado

na entrada da escola, antes de uma partida de futebol

ou, ainda, em momentos políticos estratégicos, quando

os primeiros acordes ressoam, todos sabem o que a

canção representa.

Oficialmente o Brasil possui quatro hinos: o Nacional 2

(o mais conhecido e cantado em eventos oficiais), o à

Bandeira Nacional 3 , o da Proclamação da República 4 e

o da Independência do Brasil 5 . Na obra Primeiros Sons

do Hino da Independência, Bracet retrata o primeiro

hino da nação sendo composto pelo próprio sujeito que

nos declarou livres do domínio de Portugal: D. Pedro I.

O concurso promovido pela Escola Nacional de Belas

Artes em comemoração ao Centenário da Independência,

no qual obras representando momentos da

Independência seriam premiadas, fez com que os

artistas pensassem para além do grito, para além dos

momentos de celebração de D. Pedro I. Por outro lado,

passados cem anos do brado do Ipiranga, a intenção de

reafirmar o momento de 7 de setembro como marco

do nascimento do Brasil independente continuava a

existir. Os símbolos do país precisavam ser reforçados

assim como suas tradições.

D. Pedro I não se torna um personagem esquecido;

seus feitos são celebrados e sua figura permeia o momento,

mas em posições e leituras diferentes daquelas

obras produzidas na sequência de seu ato em 1822.

Bracet elege a figura do imperador em sua tela, porém,

Augusto Bracet

Primeiros Sons do Hino da Independência, 1922

Óleo sobre tela

250 cm x 190 cm

Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

como analisa Paulo de Vincentis 6 , ele não o apresenta

como príncipe-militar ou em posição de combate.

No momento retratado, D. Pedro I nos é apresentado

exercendo seus dotes artísticos, sentado em um cravo,

compondo o Hino. Vincentis ainda sublinha a questão

de gênero presente na tela. O instrumento musical que

manuseia, um cravo ou piano, era associado às mulheres.

Em momentos domésticos, nos espaços íntimos

dos lares, cabia às mulheres entreter as famílias ou

convidados, replicando canções no instrumento através

de partituras disponíveis. D. Pedro se encontra, assim,

realizando um fazer associado ao gênero feminino, o

de entreter através da música. Contudo, fato importante

que o diferencia do fazer ligado ao gênero oposto,

ele não apenas reproduz uma canção, ele cria, compõe

a melodia de um dos grandes símbolos da nação: seu

Hino. Por mais que possa ser feita uma leitura de crítica

de gênero da imagem, a figura masculina do monarca

permanece em produção ativa. Não está trotando

em um cavalo e empunhando sua espada, mas segue

criando narrativas do que será a nação brasileira. A

escolha de um momento posterior ao grito e de cunho

intimista cria uma leitura da Independência como

atividade de eterna preocupação de D. Pedro I. Outra

demonstração dessa dedicação é o fato de D. Pedro

utilizar, até o final de sua vida, o título de Protetor e

Defensor Perpétuo do Brasil, concedido em 1822.

Mesmo em momentos íntimos, quando sua figura pública

não está em exposição, ele segue se preocupando

com os caminhos da nova nação, construindo símbolos

importantes em sua criação e nunca a deixando de

lado. Seja o príncipe-militar ou o homem com dotes

artísticos, ele segue em seu papel de pai da nação.

Bracet decide por produzir uma obra de gênero com

características de pintura histórica. Retrata uma cena

do ambiente familiar, uma cena do cotidiano, mas com

figuras históricas, partindo de relatos de Francisco

Castro Canto e Mello sobre a composição do Hino,

depoimento replicado no catálogo da exposição do

Centenário, o que reforça seu caráter histórico.

Valendo-se da figura de D. Pedro I, que aparece centra-

lizado no quadro e como o único sujeito ativo na pintura,

os demais participantes apenas apreciam admirados

suas habilidades artísticas. Ao centro do quadro, sentado

à direita de D. Pedro, podemos identificar Evaristo da

Veiga, letrista e coautor do Hino. É possível perceber

certo paralelismo em relação à centralidade de D. Pedro

I tanto no quadro analisado quanto na letra do Hino,

ambos reforçando o protagonismo do imperador no fato

histórico na estrofe em que é insinuado o “Dia do Fico”:

“O Real Herdeiro Augusto / Conhecendo o engano vil,

/ Em despeito dos Tiranos / Quis ficar no seu Brasil”.

Ou, ainda, na 8ª estrofe, que nomeia diretamente o imperador:

“Mostra Pedro a vossa fronte / Alma intrépida

e viril / Tende nele o Digno Chefe / Deste Império

do Brasil”. Bracet escolhe um momento privado do

monarca para representar a Independência, trazendo

novas imagens para o público sobre o fato histórico, sem

deixar de lado os símbolos oficiais do Império.

2 Oficializado em 1922. Música de Francisco Manoel da Silva e letra

de Joaquim Osório Duque Estrada.

3 Apresentado pela primeira vez em 1906, o Hino foi um pedido

do prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos. Música de Francisco

Braga e letra de Olavo Bilac.

4 Escolhido por meio de um concurso em 1890, para marcar o novo

momento político do país, o Hino tem música de Leopoldo Augusto

Miguez e letra de Medeiros e Albuquerque. Apesar de não ser muito

presente no repertório musical brasileiro, alguns de seus versos são

facilmente lembrados por terem sido incluídos no samba-enredo Liberdade,

Liberdade! Abre as Asas sobre Nós! da ganhadora do Carnaval

carioca de 1989, a escola Imperatriz Leopoldinense.

5 Composto em 1822, tem letra de Evaristo da Veiga e música de

D. Pedro I. De acordo com as versões oficiais, D. Pedro I compôs

a melodia logo após a declaração da independência, tamanha a inspiração

do momento.

6 Vincentis, Paulo de. Pintura histórica no Salão do Centenário da

Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade de

São Paulo, 2015.

36 37



Georgina de Albuquerque

Georgina de Albuquerque, 1922

Óleo sobre tela

210 cm × 265 cm

Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

Georgina de Moura Andrade Albuquerque

(Taubaté / Brasil, 1885 – Rio de Janeiro /

Brasil, 1962) destacou-se pela produção de

nus, retratos e paisagens baseadas no impressionismo

e suas derivações. É considerada

por muitos especialistas a primeira mulher a

firmar-se como artista no Brasil.

Apenas uma artista mulher foi selecionada no concurso

promovido pela Comissão Executiva do Centenário

na seção de Belas Artes. Apenas uma dentre quantas?

Não havia outras artistas mulheres inscritas no edital

ou mesmo realizando pinturas históricas na época em

questão. Neste momento, cem anos após a Independência,

a participação feminina nas artes visuais, em

especial no gênero de pintura histórica analisado aqui,

era muito reduzida. Georgina foi pioneira em múltiplos

espaços das artes visuais.

Além de seu pioneirismo enquanto artista, a obra premiada

também apresenta ineditismos: nela, a participação

de uma personagem feminina da Independência

do Brasil ganha destaque e, mais importante, retrata

a então princesa em posição de poder, participando

das decisões políticas, e não reduzida à figura materna,

como é comumente retratada.

Conforme anunciado no edital do concurso, os artistas

não estavam limitados a retratar o momento do 7 de

setembro; podiam selecionar momentos relacionados

ao ato, fossem estes anteriores ou posteriores à data.

Georgina seguiu um caminho diferente de Bracet: selecionou

um encontro realizado dias antes do grito às

margens do Ipiranga. Assim como na obra de Bracet, a

cena não é uma cerimônia pública, ocorrendo no espaço

privado. A então princesa Leopoldina encontra-se

reunida com conselheiros, dentre eles José Bonifácio,

que analisam as ordens de Portugal exigindo o retorno

de D. Pedro ao país. Mediante as pressões além-mar,

os conselheiros reúnem-se com D. Leopoldina para

traçar estratégias que irão culminar na Independência.

Georgina realizou vasta pesquisa no Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro (IHGB) para retratar da

forma mais fiel possível o momento. Tecnicamente, a

artista inova ao incluir elementos do impressionismo

em uma tela com características de pintura histórica.

Vincentis frisa que, mesmo em outros gêneros de pintura,

o efeito de diluição não era aceito com facilidade.

A pintura utiliza-se do contraste de cores para destacar

a figura de Leopoldina, sua pele alva e suas roupas claras

distinguem-se dos outros personagens, com vestes

em tom escuro.

A futura imperatriz do Brasil era comumente retratada

em cerimônias políticas, mas não em posição de destaque

ou como alguém com voz política ativa. Vemos

Leopoldina nas imagens da aclamação e coroação de

D. Pedro I sempre em um papel de acompanhante, da

esposa e mãe dedicada. Georgina questiona o lugar de

submissão da mulher e a coloca como protagonista de

um dos principais momentos da formação da nação

brasileira: quando sua independência está em pauta.

Diferentemente de D. Pedro, retratado como príncipe-militar

que, percebendo as urgências do momento,

toma uma decisão no calor da emoção e brada por

independência, Leopoldina é apresentada como uma

estrategista, analisando a situação e pensando na

melhor saída para eles – os monarcas – e para a elite

da época frente às exigências de Portugal. Georgina

inverte a ordem dos papéis de gênero: se a decisão de

Pedro é entendida como viril e inesperada, a Princesa

representa a parte racional, própria da negociação política,

do processo da Independência. A imagem a coloca

de igual para igual com os conselheiros, a hierarquia de

gênero existente na época – que impedia as mulheres

de ocuparem e estarem em lugares públicos – parece

cessar momentaneamente em prol da nação. Naquele

momento, as decisões estavam nas mãos da princesa, e

ela seria ouvida e suas ações colocadas em prática.

Ana Paula Cavalcanti Simioni 7 faz uma análise do pioneirismo

de Georgina na pintura histórica e como seu

retrato de D. Leopoldina inverte os papéis de gênero

da época. Ao comparar, dentre os quadros selecionados

do edital, a forma como D. Pedro I foi retratado por

Bracet e como D. Leopoldina se apresenta no quadro

de Georgina, vemos ambos no espaço privado, mas

com uma inversão dos papéis ditados para homens e

mulheres. Enquanto o imperador demonstra seus dotes

artísticos, sua esposa toma decisões de estadista sobre o

futuro da nação. O quadro apresenta-nos uma personagem

central para o desfecho de 1822 que, naquela

época, não tinha destaque nas representações pictóricas

da Independência.

7 Simioni, Ana Paula Cavalcanti. “Entre convenções e discretas

ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina

no Brasil.” Revista Brasileira de Ciências Sociais 17 (2002): 143-159.

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Helios Seelinger

Minha Terra (Tríptico), 1922

Óleo sobre tela

600 cm x 300 cm

Acervo Museu Histórico Nacional /Ibram

Fotografia de Jaime Acioli. N.º 006.471.



Helios Aristides Seelinger (Rio de Janeiro /

Brasil, 1878 – 1965) tem sua produção caracterizada

pela influência do idealismo alemão

e seu misticismo, a partir do qual vemos a

representação frequente de figuras folclóricas

e mitológicas.

Dentre as quatro obras selecionadas no Concurso da

Exposição do Centenário, o tríptico Minha Terra é a

mais distante das representações históricas ou documentais.

Enquanto as três primeiras pinturas retratam

personagens com tons realísticos nos momentos que

antecederam ou sucederam o grito de D. Pedro, a

representação escolhida por Seelinger não se atém

a pessoas reais ou mesmo a momentos próximos de

1822. O pintor opta por símbolos alegóricos da formação

da nação brasileira separados em três momentos

marcantes, segundo as narrativas oficiais.

O tríptico passa pelos séculos fundantes da História

do Brasil enquanto território e nação. Passeia, cronologicamente,

pelos momentos marcados pela invasão,

liberdade e reconhecimento da unidade brasileira.

Todos os segmentos da obra apresentam situações de

embate ou disputa. Por vezes com elementos naturais,

outros com lutas entre poderes, o certo é que a

presença de alguém dominando a cena é marcante.

Diferentemente da narrativa de uma independência

organizada, não violenta, ou de um acordo na chegada

dos primeiros europeus nas terras onde povos

indígenas já habitavam, Seelinger escolhe ressaltar os

estranhamentos e mostrar que, para que alguns alterem

a história, outros são subjugados. Começa com as naus

portuguesas, enfrentando um mar revolto, mas sempre

em frente, com terra à vista logo adiante. O homem

entra em confronto com as forças naturais mas, devido

a sua capacidade de adaptação e criação, consegue

vencer a batalha com as águas e ancorar em solo ainda

desconhecido mas que, em breve, será conhecido como

território brasileiro.

A parte central do tríptico avança alguns séculos. Após

a invasão em 1500, a civilização chega no século XIX

através dos corpos brancos de europeus. Seres fantásticos

parecem sair das águas que iniciaram a jornada

no primeiro momento da obra e lutam pela liberdade,

lutam pela criação da pátria. Vincentis 8 apresenta

três teorias sobre os personagens da parte central da

obra. Fora da água, quatro formas ganham destaque,

são dois homens nus envoltos em uma luta corporal,

dois corpos similares que se diferenciam apenas pela

representação racial à eles evocada: um homem branco

e um negro. A partir de sua disputa, um terceiro corpo

emerge, livrando-se do aprisionamento, representado

em seu pulso por grilhões, sendo um homem com

aparência mais jovem, um corpo nu embranquecido. A

última figura que destacamos se assemelha a uma mulher

com vestes. O símbolo feminino parece estar mais

próximo de uma alegoria do que a representação de

uma mulher em si. Monarquia, independência e nação,

são as três possibilidades descritas na dissertação de

Vincentis sobre a alegoria do feminino, assim como da

ação de cada personagem na centralidade do quadro.

Apesar de poderem representar momentos diferentes,

o destaque que o autor dá na obra é ao embranquecimento

do Brasil enquanto estratégia civilizatória, mostrando

a superioridade dos europeus perante os demais

povos, também responsáveis pela História e formação

da nação brasileira. Teoria comum na época, a eugenia

buscada através de uma miscigenação primordialmente

focada em indivíduos brancos torna-se a representação

central no quadro, simbolizando que, para uma nação

crescer e se tornar potência, a predominância do povo

branco, do colonizador, é necessária. Independente

da real representação da imagem feminina, Seelinger

expressava o desejo das elites da época, lembrando que

a abolição da escravatura no país não havia completado

nem quatro décadas quando a pintura foi produzida.

O terceiro momento invade sorrateiramente a parte

central do quadro para se desenrolar em um último

ato: militares com seus cavalos e a bandeira em punho.

Diferente da bandeira símbolo da Independência, aqui

nos é apresentado o símbolo da República, imagem

que utilizamos até os dias de hoje. Ainda verde e

amarela, remetendo às casas reais dos Habsburgo e dos

Bragança, seu formato foi alterado como símbolo da

nova governança que se iniciava: não estávamos mais

na era da monarquia, chegava a República e, com ela,

novas possibilidades de organização política, de participação

democrática e de nação.

Os fatos representados no quadro são disruptivos.

Cada um simboliza uma etapa de luta que culminou

no nascimento da nação brasileira. Por mais que

personagens históricos não estejam presentes, suas

representações nas ações e figuras criadas por Seelinger

dão conta do mito da formação do Brasil.

8 Vincentis, Paulo de. Pintura histórica no Salão do Centenário da

Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade de

São Paulo, 2015.

Pedro Paulo Bruno (Ilha de Paquetá / Brasil,

1888 – Rio de Janeiro / Brasil, 1949) contribuiu

para o desenvolvimento de símbolos

nacionais conforme o projeto nacional republicano,

implantado no fim do século XIX no

Brasil.

Uma das pinturas selecionadas na premiação do

Centenário, O Precursor, foi realizada na Itália em

1921. Como o concurso incluía a possibilidade de

representar momentos anteriores à Independência, a

obra pôde concorrer junto às demais. O quadro retrata

os últimos momentos de Joaquim José da Silva Xavier,

conhecido como Tiradentes. A pintura centraliza a

imagem do mártir e, com ares religiosos, ilumina sua

figura, a única trajando roupas claras. A barba e o

cabelo comprido remetem à iconografia católica de

Jesus Cristo, comparando o sacrifício deste ao martírio

de Tiradentes em prol da Independência. Bruno traça

um paralelo para que os espectadores da imagem, a

partir da rememoração de símbolos cristãos, entendam

o sacrifício pela pátria como o último ato heróico que

um sujeito republicano poderia realizar.

Os fatos são esquecidos pelo caminho e assim se

inventa a história da República, em que Tiradentes é

alçado ao papel de herói, já que, na criação de uma nação,

para além de seus símbolos, são necessárias figuras

heróicas, os mártires da pátria.

A execução de Tiradentes deu-se no Rio de Janeiro,

em 21 de abril de 1792. Ao ser capturado, assumiu a

liderança do movimento contra a coroa e logo teve sua

sentença declarada. Outros participantes da Inconfidência

Mineira também foram presos, porém o único

que recebeu a sentença de morte foi Tiradentes. Aos

demais, o exílio foi a punição mais aplicada.

Apesar de ter ocorrido algumas décadas antes da

Independência do Brasil, o descontentamento com as

normas impostas pela coroa já circulava em diferentes

províncias brasileiras. Bahia, Porto Alegre e Minas

Gerais tiveram, ainda no século XVIII, movimentos

de insurgência separatista. Desejavam a independência

de Portugal mas, como não era facilmente concebida a

ideia de unificação do que era o Brasil, os movimentos

42 43



ficavam restritos às suas regiões de origem. Isto porque

a ideia de povo brasileiro, de uma única nação, ainda

não havia sido construída. Apenas com a Independência

em 1822, a adesão das demais províncias ao projeto

político de D. Pedro I e o processo de construção da

identidade nacional é que se começa a disseminar a

fábula do “povo brasileiro”.

No entanto, o Brasil era carente de heróis, de revolucionários

a favor da liberdade, que amavam e lutavam

pela pátria. Era necessário criar personagens dentro

do enredo da história oficial e, após 1889, encontrar

personagens que não pertencessem à monarquia, de

forma a fortalecer o caráter republicano do país. Tiradentes

tornou-se um desses personagens. Por evocar

ideais libertários baseados na Revolução Francesa e ser

a favor da República, a figura do herói que se sacrifica

pela pátria caiu como uma luva no mineiro. Assim,

um novo herói da Independência passa a figurar nas

representações pictóricas, um precursor dos ideais

libertários, como o próprio título da obra coloca. Sua

imagem, construída a partir de um homem que se

assemelha muito com as representações de Cristo no

momento de sua Via Sacra, ajuda a fixar, a partir de

uma associação de figuras, a ideia de mártir e santo.

Um novo personagem une-se à história da Independência.

Momentos que, anteriormente, não ganhavam

destaque na história oficial, ganham espaço para que a

história da nação brasileira se torne uma construção de

muitos, um embate com a participação do povo.

Pedro Bruno

O Precursor, 1922

Óleo sobre tela

265 cm x 372 cm

Acervo do Museu Histórico Nacional,

Rio de Janeiro

Domenico Failutti

Retrato de Dona Leopoldina de

Habsburgo e Seus Filhos, 1921

Óleo sobre tela

233 cm x 133 cm

Acervo do Museu Paulista da

Universidade de São Paulo

dependendo de quem escolhe contar a história.

O tempo que separa a tela de Failutti da pintura de

Albuquerque é de apenas um ano. Ambas foram

pensadas para celebrar a figura de Leopoldina nas

comemorações do Centenário da Independência.

Enquanto uma foi criada por uma artista mulher para

participar do edital da Exposição do Centenário, no

Rio de Janeiro, a outra foi encomendada para celebrar

a reabertura do Museu do Ipiranga, em São Paulo. O

diretor do Museu, Afonso d’Escragnolle Taunay, possuía

um projeto para celebrar a Independência através

de imagens históricas baseadas em ampla pesquisa

documental. Taunay não queria representar imagens,

mas sim criar uma documentação pictórica: obras

que deveriam ser lidas como fatos, e não figurações

imaginativas das ações dos sujeitos retratados. Logo

ele conseguiu contratar artistas que aceitassem a sua

visão de contar as narrativas, artistas que buscariam

fontes em documentos e retratos prévios dos heróis da

Independência.

Domenico Failutti (Zugliano /Itália 1872 –

Udine/ Itália, 1923) foi um pintor italiano de

formação acadêmica clássica que se destacou

pelos seus retratos.

O papel da mulher nas representações da Independência,

quando retratado, ainda era nebuloso. Por mais que

fosse documentado, e cada vez mais reconhecido que

sem certas figuras femininas a trama que inicia a formação

do Brasil-nação não teria ganhado os contornos

que conhecemos, a escolha por uma mulher submissa

na iconografia histórica teimava em existir. A figura

da Imperatriz Leopoldina é um exemplo de como

as identidades são expressas de diferentes maneiras,

Domenico, em relação à missão à ele incubida, foi fiel

a seu contratante. Buscou referências em gravuras de

Debret para retratar Leopoldina e em outras imagens

que documentaram seu lar e seus hábitos. A decisão

era por um retrato de mãe zelosa, uma esposa cuidadora

que, enquanto seu marido precisava governar o país,

ela estaria em casa, responsabilizando-se pela educação

e bem-estar do futuro comandante da nação, D. Pedro

II, sentado em seu colo, na imagem. Ela está rodeada

por suas filhas, e todos têm um semblante plácido na

pintura; nenhuma inquietação se apresenta na imagem.

Taunay queria uma imagem de Leopoldina em

que certos aspectos morais estivessem em evidência.

Ana Paula Cavalcanti Simioni e Carlos Lima Junior 9

fazem uma análise da obra e do papel moral atribuído

à representação de Leopoldina. Os autores apontam

elementos na cena, como o cachorro e a pomba, que

44 45



fazem alusão à vida privada, ao cuidado com o lar e

ao maternar. Eles reforçam o registro de uma princesa

preocupada apenas com seus deveres enquanto esposa

e progenitora.

Enquanto Georgina de Albuquerque, em sua pintura

Sessão do Conselho de Estado, apresenta Leopoldina

como uma das grandes responsáveis pelas decisões que

levaram à Independência do Brasil, a imagem escolhida

para representá-la no Museu dedicado ao evento

histórico da Independência a coloca fora da cena

política e restrita ao ambiente privado.

Apesar da presença feminina na Independência aparecer

em mais representações pictóricas na celebração

do Centenário, o papel da mulher e seu espaço ativo

na formação do Brasil ainda era pouco valorizado, seja

pelo número ínfimo de mulheres artistas atuando nas

pinturas de gênero histórico, seja nas figuras femininas

nas telas e como eram representadas.

9 Simioni, Ana Paula Cavalcanti, e Carlos Lima Junior. “Heroínas

em batalha: figurações femininas em museus em tempos de centenário:

Museu Paulista e Museu Histórico Nacional, 1922.” Museologia

& Interdisciplinaridade 7.13 (2018): 31-54.

Domenico Failutti

Retrato de Maria Quitéria de Jesus Medeiros,

1920

Óleo sobre tela

233 cm x 133 cm

Acervo do Museu Paulista da

Universidade de São Paulo

No projeto de Taunay para a composição do Salão

de Honra do Museu do Ipiranga, que é também seu

projeto de construção de memória nacional, Leopoldina

iria representar o ideal da mãe, calma e protetora,

enquanto Maria Quitéria seria a heroína guerreira. No

repertório imagético do museu, as mulheres presentes

nos eventos que culminaram na Independência e,

consequentemente, na formação da nação brasileira, só

poderiam ser representadas a partir de uma determinada

característica, uma marca para cada personagem,

ajudando a identificá-las com facilidade.

No projeto de Taunay de incluir personagens femininas

da Independência nas representações pictóricas

do Museu, a Maria Quitéria ficou destinado o papel

de mulher lutadora. Como a ficção transborda a vida

real, seja durante a dinastia Tang na China do século

VII ou no período da República Velha em pleno sertão

brasileiro, a mulher que ocupava uma posição bélica

devia despir-se de seu gênero e abraçar características

associadas ao masculino. O símbolo da sedução

feminina, os cabelos longos soltos ou arrumados em

complexos penteados, era deixado de lado por madeixas

escondidas em chapéus ou cortadas rente ao

pescoço. Trajes alterados, a calça – veste tipicamente

masculina até o século XX – mascarava a fragilidade

associada ao sexo feminino e transformava feminilidade

em virilidade.

Maria Quitéria, inicialmente, passou-se por homem

para poder lutar a favor da Independência da Bahia

entre os anos de 1822 e 1823. De origem humilde,

dedicou-se à luta armada contra os portugueses, que

desejavam rebaixar o Brasil à condição de colônia e suprimir

as liberdades conquistadas a partir da elevação

do país à posição de Reino Unido em 1815. Apesar da

descoberta de seu gênero, Quitéria continuou a participar

ativamente no exército, com seus serviços reconhecidos

pelo futuro Imperador D. Pedro I. A luta da

Independência na Bahia difere do episódio retratado

por Pedro Américo como símbolo da dissolução dos

laços entre Brasil e Portugal. No quadro de Américo e

na construção do imaginário coletivo, a Independência

ocorreu de forma pacífica. Antes e depois da decisão

de D. Pedro I, não há qualquer registro de batalha ou

disputa. Teatralizada e eternizada na pintura, o grito

ecoou pelo espaço do país com aceitação unânime, e

quem não queria viver na nova nação poderia apenas

se retirar. Porém, quando novos personagens são

elencados para preencher a história da formação do

país, a lupa colocada sobre disputas territoriais violentas

amplifica a verdade: a Independência não foi o

desejo de um monarca em nome de seu povo, já que o

descontentamento das províncias e dos brasileiros com

as condições impostas pela Coroa – especialmente as

relacionadas à cobrança de impostos – já havia ensejado

batalhas a favor da separação de Portugal. Fossem

movimentos separatistas sem caráter nacional – pois

ainda não havia o sentimento de nação formalizado no

século XVIII – ou, como se deu na Bahia, em paralelo

ao desenrolar dos fatos que levaram ao 7 de setembro,

tais disputas envolveram batalhas e culminaram em

mortes. Na Bahia, a disputa entre a volta ao status de

colônia e a Independência do Brasil durou mais de

um ano, e batalhas em diferentes localidades resultaram

em feridos e mortos. Apesar do caráter violento,

Failutti e Taunay optaram por retratar Maria Quitéria

fora do momento de ação, de forma que a soldada

parece posar para o pintor. Mesmo com as cenas de

batalha sendo valorizadas na pintura histórica, em que

os heróis seguem com a espada em punho aniquilando

seus inimigos, aqui a escolha foi apenas de retratar

a figura de Maria Quitéria sozinha. Na cena não há

outra presença humana. Ao fundo, vê-se uma paisagem

que remete ao Recôncavo Baiano. Para diferenciar as

vestes de Quitéria das roupas de um homem soldado,

Failutti, conforme análise de Simioni e Lima, amplia a

barra de seu saiote, destacando este elemento e simbolizando-o

enquanto peça de vestuário de uma “mulher-

-soldado”. Os autores também apontam a escolha de

retratar a guerreira com traços “mestiços”, imprimindo

a ideia de uma heroína do povo, pois a luta na Bahia

não partiu apenas das elites, foi uma luta coletiva de

toda a população brasileira – classes populares, clero e

elite– a favor do Brasil.

Na composição das personagens mulheres que participam

dos caminhos da Independência, Taunay escolheu

uma tríade para enfeitar as paredes do Museu: a mãe

com sua moral voltada ao zelo familiar, a heroína popular

que abdica de sua feminilidade em defesa da nação e

a mártir religiosa, imagem que analisaremos a seguir.

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Domenico Failutti

Retrato de Soror Joanna Angélica,

1920

Óleo sobre tela

157 cm × 125 cm

Acervo do Museu Paulista da

Universidade de São Paulo

Fechando a tríade de mulheres-símbolo da Independência

no Museu do Ipiranga, Taunay escolheu incluir

a religiosa Joana Angélica. O pintor selecionado foi o

mesmo responsável pela imagem da Imperatriz Leopoldina

e de Maria Quitéria. A pintura não coloca a

abadessa em seu ato de martírio, sendo um retrato em

plano fechado da religiosa, com destaque para os símbolos

católicos que carrega em seu peito. Assim como

a representação de Maria Quitéria, Joana é deslocada

do seu ato histórico, do imagético de sua luta contra

os portugueses que ameaçavam entrar no convento de

Nossa Senhora da Conceição da Lapa, em Salvador.

Soldados portugueses estavam em busca de combatentes

brasileiros. Acreditavam que alguns haviam

buscado abrigo no convento e tentavam adentrá-lo. Ao

tentar impedir a entrada dos homens no espaço, Joana

acabou sendo assassinada ao ser atingida pela baioneta

de um dos soldados. O episódio acontece dentro do

contexto da Independência da Bahia, poucos meses

antes do 7 de setembro de 1822.

Seu sacrifício foi associado à defesa do Brasil contra os

agentes portugueses, mas outras leituras podem ser feitas,

já que ela estaria impedindo a entrada de homens

na clausura, espaço em que as freiras ficavam isoladas.

Sua atitude de salvaguardar as demais mulheres do

convento pode ser entendida como uma defesa da

honra de quem dedica corpo e alma à Deus. Independente

de serem soldados portugueses, sua primeira

intenção pode ser interpretada como a tentativa de

proteger a pureza das noviças e irmãs.

É impossível saber o que Joana pensou ao agir, talvez

uma mistura de suas obrigações com o clero com seus

sentimentos enquanto mulher baiana. A questão é que

seu ato foi interpretado enquanto um sacrifício em

favor da pátria, sendo considerada uma das primeiras

mulheres mártires da Independência.

Oscar Pereira da Silva (São Fidélis / Brasil

1867 – São Paulo / Brasil 1939) produziu

obras que representam momentos relevantes

da história brasileira, encomendadas pelo historiador

e diretor do Museu Paulista, Afonso

d'Escragnolle Taunay.

A figura de D. Pedro I não é esquecida na comemoração

do Centenário. Mesmo havendo mais espaço

nas representações plásticas para outros personagens

relevantes na Independência, a imagem do monarca

continua a ser valorizada e explorada como símbolo

da formação da nação. No projeto de reabertura

do Museu do Ipiranga, a história do Brasil ganhou

destaque. Inicialmente, o espaço podia ser identificado

como museu de história natural, mas a chegada de

Afonso Taunay como diretor fez tomar forma a ideia

de transformá-lo em museu histórico. Conforme dito

anteriormente, Taunay entrou em contato com artistas

para encomendar quadros com temáticas históricas.

Pereira da Silva é um dos artistas que se oferece para

o trabalho, logo sendo contratado e, alinhado com

Taunay, produz obras a partir de documentação sobre

os fatos, utilizando também outras imagens de base

para suas obras.

No projeto de Taunay, o Salão de Honra teria obras

com destaque, sendo Independência ou Morte de Pedro

Américo a principal atração do espaço. Além da representação

de outras figuras marcantes da Independência

(inclusive algumas imagens femininas, já analisadas),

Taunay selecionou acontecimentos anteriores a

setembro de 1822 para destacar o evento como um

fluxo de atitudes pujantes tomadas por indivíduos

heróicos. Carlos Rogério Lima Junior 10 faz uma análise

profunda do projeto do Museu Paulista e dos quadros

produzidos por Oscar Pereira da Silva. Lima elucida

o projeto de Taunay para o Salão, explicando a quais

imagens iria contrapor ao quadro de Américo. As duas

imagens seriam de eventos anteriores ao grito, e ambas

foram produzidas por Pereira da Silva.

A primeira imagem aqui incluida é referente ao

episódio da expulsão das tropas portuguesas do Rio

de Janeiro em 8 de fevereiro de 1822. Na pintura, D.

Pedro I aparece em posição ativa, indicando que as

tropas devem deixar o porto e sair do Brasil. Conforme

Lima analisa, a posição de seus braços – o direito

paralelo ao canhão, apontando os navios que atingiria

caso as tropas não se retirassem, enquanto o esquerdo

encontra-se encostado na base do armamento – denota

o embate e as consequências que os navios portugueses

poderiam enfrentar. Assim como as imagens de D.

Pedro I criadas no século anterior, suas vestimentas e o

uso de botas de montaria evocam o ideal de um príncipe

jovem e pronto para situações conflituosas. D. Pedro

I está sempre pronto para lutar pela pátria, defendendo

a construção da nação brasileira. Ao seu lado, outros

importantes indivíduos ligados à Independência. É

possível identificar José Bonifácio, Joaquim Xavier

Curado, Joaquim de Oliveira Álvares e outros militares

importantes da época. A ênfase em figuras militares e

da elite descarta a participação de diferentes forças nas

ações de formação do país. Na pintura, assim como no

quadro de Américo, o povo, aqui representado pelos

marinheiros, continua sendo espectador e é colocado

à margem, quase como um pano de fundo capaz de

especificar a localidade dos agentes da mudança.

O adversário português, Jorge de Avilez, é representado

na obra de Pereira da Silva. Aparece em destaque,

em frente à D. Pedro. Não tem, porém, uma feição

ameaçadora, nem está cercado por muitos aliados. Sua

postura aparenta aceitar as ordens de retirada.

O quadro tem dimensões reduzidas se comparado com

Independência ou Morte, mas reforça o caráter de personagem

principal de D. Pedro I e reafirma a narrativa

de um salvador da pátria, o qual protagonizou diferentes

atos pela sua liberdade até culminar no grito pela

Independência do Brasil.

10 Lima Junior, Carlos Rogerio. Um artista às margens do Ipiranga:

Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado

nacional. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2015.

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Oscar Pereira da Silva

Príncipe Regente Dom Pedro e Jorge de Avilez

a Bordo da Fragata Uniãos, 1920

Óleo sobre tela

310 cm x 250 cm

Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo

Oscar Pereira da Silva

Sessão das Cortes de Lisboa, 1920

Óleo sobre tela

315 cm x 262 cm

Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo

Em uma história de heróis, não necessariamente

super-heróis, a prerrogativa é sempre a mesma: existe

um mal – muitas vezes personificado em um vilão –

que precisa ser vencido por um sujeito excepcional, que

abre mão de seus desejos em prol de um conjunto de

pessoas ou, até mesmo, de toda a população terrestre.

Não é necessário ser um grande entendedor de cinema

para saber que a narrativa se repete e, ao nos envolvermos

com os personagens, vibramos e torcemos para o

mocinho. Esse personagem é construído, nas telas ou

páginas de livros, pelos percalços que enfrenta e por

como lida com eles. No caso da construção do mito

de criação da nação brasileira, os papéis foram distribuídos

e, depois, ilustrados nas paredes de museus e

em publicações. Escalado para mocinho, D. Pedro I

cumpriu o papel de herói destemido, que abre mão até

de seus direitos para libertar os brasileiros e permitir o

nascimento de um Estado independente de Portugal.

Junto a sua caminhada heróica, outros possíveis heróis

permearam seus feitos, porém nenhum ocupou o papel

de protagonista como o monarca. Outros sujeitos e

atos foram sendo construídos pictoricamente para

preencher o enredo do mito da nação.

Ao comemorar os 100 anos de sua Independência, a

escrita da história nacional ainda carecia de imagens

representativas da luta contra Portugal, elevado ao

posto de vilão na história do Brasil. Assim, os atos para

o fim da autonomia brasileira precisavam ser apresentados

de forma ilustrativa para todos. Os obstáculos

enfrentados pelos heróis da pátria viraram imagensdocumento

no Museu do Ipiranga.

A obra representativa do dia 9 de maio de 1822

documenta a sessão em que o desejo de Portugal de

extirpar o caráter de reino do Brasil e o transformar

novamente em colônia era duramente combatido por

deputados brasileiros. O ambiente transpira tensão, e

Pereira da Silva traduz na feição das figuras presentes

tal sentimento. O artista, novamente, inclui sujeitos

conhecidos pelos brasileiros como Antonio Carlos,

Lino Coutinho, Agostinho Gomes, dentre outros 11 que

lutaram pela nossa Independência, pelo reconhecimento

do Brasil enquanto reino e, em poucos meses, nação

independente. Na calorosa discussão, os brasileiros

conseguem garantir que o desejo do inimigo, Portugal,

não seja realizado e pavimentam o caminho para o ato

heróico final da história: o brado no Ipiranga.

Taunay soube criar narrativas valendo-se de documentação

histórica e de releituras de pinturas históricas.

Seja para garantir a imagem heróica nas cenas, ou

a verossimilhança dos salões retratados, os artistas

contratados por Taunay utilizaram todas as referências

disponíveis na época para criar imagens oficiais, o que

era lido como zelo com a história.

Ao final, segundo a narrativa criada pelos livros oficiais

e reforçada na iconografia das artes visuais, o herói

venceu o vilão. Para o bem do povo, seu grito foi ouvido

e Portugal, por mais que logo antes tentasse derrubar

a pátria brasileira, acabou derrotado na história.

Retratam-se momentos prévios à Independência para

que uma narrativa robusta e inquestionável possa ser

produzida e reproduzida ao longo dos séculos.

11 Lima Junior descreve todos os personagens presentes na pintura

no capítulo três de sua dissertação.

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Ettore Ximenes (Palermo/Itália, 1855 –

Roma /Itália, 1926) foi um escultor italiano

que produziu uma série de monumentos no

Brasil na década de 1920.

Ettore Ximenes e Manfredo Manfredi

Monumento à Independência do Brasil, 1926

Conjunto escultórico em granito e bronze

Área total 1600m²

Acervo da Biblioteca Nacional Digital

Manfredo Manfredi (Piacenza/Itália, 1889 –

Piacenza/Itália, 1927) foi um arquiteto italiano

que, no Brasil, destaca-se pela idealização

do Monumento à Independência do Brasil, em

colaboração com o também italiano Ettore

Ximenes.

O projeto do Museu do Ipiranga – ser um marco da

Independência do Brasil e sublinhar a importância

histórica de São Paulo, em contraponto ao Rio de Janeiro

– envolvia a criação de obras públicas, indo além

da história visual retratada em seu interior. Os concursos

para obras comissionadas, no início do século

XX, voltaram a ser prática comum. Anteriormente, a

monarquia encarregava-se de contratar pintores e escultores

para fixar sua história e retratar suas famílias e

feitos. Com o desejo de ilustrar a história da República

e criar figuras simbólicas para o país, o poder público

passou a investir fortemente na produção das artes

visuais. Fosse por comissionamento direto ou concurso,

a necessidade de contar uma história era urgente. Mas

qual história? E quem detinha o controle da narrativa?

A resposta é simples: as elites que se mantinham no

poder. Deixara de pertencer à monarquia e à nobreza,

mas o poder continuava nas mãos dos que já dominavam

a população desde 1500. Com o controle da

narrativa e dispondo de capital para executar suas

vontades, a arte do gênero histórico foi sendo moldada

conforme propósitos específicos e apagamentos

propositais.

Os monumentos públicos com caráter histórico

tiveram seu início no Brasil através de concursos. O

primeiro a ser instalado, conforme mostramos no Período

I, foi uma estátua de D. Pedro I na Praça Tiradentes

(Rio de Janeiro), ainda no século XIX. Projetos de

monumentos anteriores a esse chegaram a ser esboçados

mas não foram concretizados. O monumento ao

monarca seguiu com uma inauguração pomposa em

meio a atrasos em sua instalação. Apesar do idealizador

ser um brasileiro, sua execução deu-se na França,

por um escultor do país. Conforme apontado por

Michelli Cristine Scapol Monteiro 12 , os concursos para

monumentos públicos na América Latina tinham forte

presença de artistas europeus, o que se traduzia na

confecção de obras nacionais pela mão de estrangeiros.

O caso do Monumento à Independência do Brasil não

foi diferente. Aberto o concurso, conforme Monteiro

descreve, a inscrição de estrangeiros foi expressiva. A

possibilidade de investir em projetos de maquetes para

impressionar os jurados e a facilidade para adquirir

alguns materiais na Europa criaram ampla vantagem

para Ettore Ximenes ganhar o concurso de execução

da construção. Mesmo com a aprovação de seu projeto,

os jurados solicitaram adaptações, e outros pedaços da

história e personagens foram alocados no monumento.

A necessidade de ilustrar a Independência a partir de

outros acontecimentos para além do grito fez com que

o monumento incluísse outros momentos históricos

e, consequentemente, territórios e personagens não

vinculados à capital. O projeto do parque e Museu do

Ipiranga era reforçar a importância do estado de São

Paulo para a formação da nação e, para tal, valorizar

eventos acontecidos nesse território em detrimento aos

protagonizados no Rio de Janeiro. Logo, a coroação

e aclamação não são representadas no monumento,

a figura de D. Pedro está presente no 7 de setembro

mas não encontra igual destaque, como lhe era dado

nas pinturas do século anterior. Ele está no meio dos

soldados, junto com o povo, torna-se mais um dos

responsáveis pela Independência, e não o responsável

único. A narrativa criada por Ximenes, conforme

negociações com os jurados, inclui a Inconfidência Mineira

(1789) e a Revolução de Pernambuco (1817) na

edificação. Os dois eventos, anteriores à 1822, mostram

rompantes republicanos em meio à monarquia. Junto

aos eventos, seus líderes e mártires seguem eternizados

em bronze. Figuras públicas ganham destaque

no monumento, representando o “homem comum”,

também envolvido na batalha. José Bonifácio, Joaquim

Gonçalves Lêdo, Diogo Feijó e Hipólito José da Costa

são os homenageados eleitos para criar o vínculo com

o desejo do povo pela mudança. A entrada de D. Pedro

na Rua do Carmo, em São Paulo, após a ação às margens

do Ipiranga, e o Combate de Pirajá, na Bahia, são

outros eventos integrantes do monumento. Alegorias

do que a Independência representa a todos – justiça

e liberdade – estão presentes ao redor e no topo da

obra. 13

A história foi replicada em bronze e instalada no mesmo

terreno em que a suposta Independência ocorreu,

nas margens do Riacho do Ipiranga. Os fantasmas da

História, ou de como ela escolheu ser contada, seguem

na concretude no monumento, instalado para a população

de séculos por vir.

12 Monteiro, Michelli Cristine Scapol. São Paulo na disputa pelo

passado: o Monumento à Independência, de Ettore Ximenes. Tese de

doutorado / USP (2017).

13 Para uma análise mais profunda e descritiva da obra, consultar a

tese de doutorado de Michelli Monteiro, capítulo 4: “O Monumento,

o Museu e o Parque: lugar de memória da nação”.

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Antônio Diogo da Silva Parreiras (Niterói /

Brasil 1860 - 1937) foi um consagrado artista

da virada do século XX. Além de paisagens,

dedicou grande parte de sua produção à pintura

histórica.

Novos heróis precisavam ser construídos na iconografia

da Independência. Pensar em novas representações,

significava, também, revisitar outros momentos da

Independência que não foram retratados com os mesmos

louros que o 7 de setembro. As revoltas anteriores

à data marcada por D. Pedro I começam a ter maior

frequência nos quadros voltados à Independência.

Personagens não vinculados à monarquia passam a ser

investigados para, assim, criarmos uma identidade de

nação republicana. Além disso, a disputa de protagonismo

entre Rio de Janeiro e São Paulo como símbolo

da Independência fez com que os demais estados

da República buscassem criar as suas representações

pictóricas de momentos marcantes em seus territórios

e promover seus heróis. Antônio Parreiras viu nesta situação

uma oportunidade, e ofereceu seus serviços para

contar outras narrativas da Independência, com foco

na Bahia. A partir do mecenato estatal, o artista foi

pago para produzir uma iconografia referente à Independência

naquele estado. Seu quadro Primeiros Passos

para a Independência da Bahia foi encomendado pelo

então governador, Vital Soares, e nos mostra uma cena

que condensa três dias de luta em um único momento,

como aponta a professora Lúcia Kluck Stumpf. 14

Parreiras retrata o momento em que a Câmara Municipal

de Cachoeiras reconhece a independência em

relação a Portugal. As ruas são tomadas pelo povo,

militares e clero, todos combatentes, todos brasileiros.

Em destaque, outros heróis da Independência que

não pertenciam à monarquia, como o militar Rodrigo

Falcão – representante de D. Pedro –, o civil Antônio

Rebouças e representantes do clero. Parreiras dá destaque

ao soldado Manuel da Silva Soledade, considerado

um dos primeiros mártires da Independência, que foi

atingido por canhões dos navios portugueses. Mesmo

com perdas, o povo comemora a sua conquista.

Contrariando o senso comum de uma ruptura pacífica,

a imagem de Parreiras mostra que a disputa não foi

tranquila, que houve sacrifício, houve luta. Conforme

as palavras do artista, é necessário rever a História da

Independência e não se iludir com uma versão criada

pela História oficial em que apenas a voz de D. Pedro I

podia ser ouvida. A obra de Parreiras e seu discurso são

singulares, pois colocam em evidência a necessidade de

se investigar o papel dos outros estados na Independência

e na formação da nação brasileira, assim como

a presença de outros sujeitos ativos, especialmente

pessoas não ligadas à elite, como negros e mulheres.

14 Informações retiradas de sua palestra no YouTube durante o evento

Primavera de Museus (2022) do Museu Antônio Parreiras. https://

www.youtube.com/watch?v=z7tPPtkDgLY

A cena retrata a disputa entre brasileiros e portugueses

na cidade de Cachoeira nos dias 25 a 28 de junho de

1822. Stumpf conta-nos que os croquis produzidos

para a cena encomendada deveriam ser enviados para

avaliação, fato detalhado no contrato do artista a fim

de garantir que este não tomasse liberdades. Assim,

novamente, a imagem ganhava ares de documento

oficial, contando exatamente o ocorrido. Por mais que

não fosse um momento estático e sim três dias, a tela

flerta com os acontecimentos ao colocar personagens

históricos e ser inspirada na documentação salvaguardada

em arquivos públicos.

Antônio Parreiras

Primeiros Passos para a

Independência da Bahia, 1931

Óleo sobre tela

400 cm x 600 cm

Acervo do Palácio do Rio Branco /

Governo do Estado da Bahia

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Romeu Mariz Filho (Belém / Brasil, 1913

– 1947) foi pintor e ilustrador de peças das

indústrias Klabin.

As fronteiras, linhas imaginárias que delimitam os países,

na atualidade, não parecem ser alteráveis. Quando

presenciamos a tomada de territórios por guerras contemporâneas,

a discussão sobre a violência da retirada

dos antigos habitantes daquelas terras, da imposição

de costumes e línguas chega em todos os órgãos de

direitos humanos. Além do mais, aqui, vista do Brasil,

tal possibilidade de mudança de território parece algo

que ocorre apenas com os outros, nunca conosco.

No século XIX, quando viramos nação, nossas linhas

ainda não estavam fincadas, assim como a fronteira

entre México e Estados Unidos seguia em disputa, por

exemplo. A Independência trazia um novo sentido de

unidade, seja do povo como do território e, em um país

de dimensões continentais, garantir a integração das

províncias em um projeto de país não era garantido.

A província do Grão-Pará não aceitou fazer parte do

Império, já que era mais interessante para a sua elite –

composta por comerciantes portugueses – continuar a

relação com Portugal. Por alguns meses tal realidade

foi mantida, mas, em 1823, D. Pedro I decidiu que era

necessário incluir a província no Império e como parte

do Brasil. O governante enviou uma fragata comandada

por John Grenfill para Belém com a intenção

de conquistar o território. A população não aceitou

prontamente a oferta do imperador e revoltas se desenrolaram

com a chegada do comandante; até mesmo

meses antes da fragata chegar, embates no Grão-Pará

entre defensores de Portugal e favoráveis ao Império já

deflagravam no território. Sob o comando de Grenfill,

deu-se uma das maiores chacinas relacionadas às lutas

pela Independência, a qual foi retratada 13 anos após

sua ocorrência por Romeu Mariz Filho. O episódio,

conhecido como o Massacre ou Tragédia do Brigue

Palhaço, causou a morte de mais de 250 pessoas, aprisionadas

em um pequeno porão da embarcação, sem

água nem comida e sofrendo torturas por uma noite.

Mariz traduz o evento, mostrando como os responsáveis

estavam cientes do sofrimento dos prisioneiros. O

autor não opta por uma pintura histórica: percebemos

que mais do que capturar o material do navio, os trajes

dos oficiais ou dos demais sujeitos da cena, Mariz

realçou a agonia enfrentada naquela noite. Terror é a

tradução dos rostos de quem está no porão. As feições

de boca aberta clamam por água e liberdade. Conforme

relatado, o espaço era muito pequeno e os corpos

amontoavam-se, e o artista apresenta o fato ao colocar

quase todos os homens em posição horizontal. Poucos

conseguem ficar em pé. Quem ainda não foi tomado

pelo pavor, olha para cima, em busca de ajuda, ou

esperando algum sinal de humanidade. No topo do

porão, Mariz retrata dois oficiais observando a cena.

A escolha das cores da tela remete ainda mais a um

ambiente de terror, onde claridade e iluminação não

são possíveis. A representação não necessariamente

remete ao tempo da noite, mas à escuridão do evento,

da desumanidade no trato das 256 pessoas presas no

brigue. O título do quadro e de como o evento ficou

conhecido, a Tragédia do Brigue Palhaço, colocam em

evidência como os corpos foram encontrados. Durante

a noite, cal foi jogado dentro do porão, o que acelerou

a asfixia das pessoas. Na manhã seguinte, com o

rosto descolorido pelo pó mas os olhos e lábios roxos,

os cadáveres lembraram a pintura facial de palhaços.

Porém não há graça ou riso ao final do show. Apenas

mais uma batalha no rol das lutas pela Independência

que é colocada de lado para favorecer uma história sem

derramamento de sangue na formação do Brasil.

Romeu Mariz Filho

A Tragédia do Brigue Palhaço, 1936

Óleo sobre tela

127 cm x 145 cm

Acervo do Museu de Arte de Belém – MABE

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eríodo III 2022

Chegamos no Terceiro Período. Os duzentos anos do marco da Independência foram

celebrados em 2022, mas fizemos uma escolha consciente, em nosso recorte, de incluir

obras da segunda metade do século XX que tinham como objetivo pensar criticamente a

representação do marco da Independência.

Mudanças sociais e governamentais marcam o período. Diferente das décadas seguintes a

1822, em que celebramos a quebra do domínio português, ou do centenário da Independência,

em que a República seguia forte em sua era balzaquiana, agora somos marcados

por períodos de governos autoritários e regimes ditatoriais: primeiro, com a Era Vargas,

entre 1930 e 1945, quando Getúlio Vargas governou o Brasil por 15 anos e de forma contínua;

posteriormente, com a sucessão de governos militares que se mantiveram no poder

entre 1964 e 1985. Nesse período, repressão era a palavra de ordem. Em relação ao fazer

artístico, temos muitos depoimentos e registros de censura e perseguição de obras visuais,

cênicas e musicais.

Por fim chegamos ao momento atual, a Nova República, iniciada devido às pressões econômicas

e populares que derrubaram o regime anterior. Seguimos com a possibilidade de

escolha de nossos representantes: presidente, deputados, governadores, senadores, todos

são eleitos através do voto popular, sistema no qual cidadãos brasileiros podem exercer seu

direito de escolha.

Começamos com o fim da relação de colônia com Portugal e o início da formação de

uma nação, o começo da invenção de nossos ritos e a criação de uma identidade brasileira.

Nesse percurso de duzentos anos, o que é o Brasil, seus símbolos e heróis, foi sendo

transformado, e novas leituras dos personagens da História oficial foram sendo realizadas.

Se em 1922 novos sujeitos são trazidos para representar momentos marcantes da Independência,

nas décadas seguintes, outras possibilidades de entender o marco criado como

fundador da nação brasileira se abrem, permitindo o surgimento de caminhos que buscam

reforçar imagens de um passado glorioso, enquanto outros mostram apagamentos de

sujeitos e histórias.

Para escrever novas histórias, precisamos revisitar o passado. Algumas obras do período

em questão seguem esse caminho. Enaltecem heróis e batalhas apagadas pela História

oficial e que dão rosto a heróis populares. Apesar da prática valorizada, no século XIX,

da pintura histórica, o que era elegido pintar era a narrativa dos vitoriosos e, também, de

quem possuía capital para realizar uma obra comissionada. Com isso, as imagens produzidas

pelos artistas, aos moldes de seus fregueses, ficaram conhecidas pelas gerações futuras.

Um exemplo é a imagem de D. Pedro I: a partir dos quadros selecionados, é perceptível

a escolha de retratá-lo enquanto um príncipe com ares militares, suas botas de montaria

parecem não sair de seus pés, independente do momento. Chegaram mesmo a causar

estranhamento, na época, as imagens da coroação e da aclamação em que o príncipe era

representado com tal calçado. Os símbolos ajudam a construir a identidade de D. Pedro

como ativo, lutador, militar, o que gera contraste com outros monarcas portugueses. Além

disso, o fato de ter morrido aos 35 anos acaba por criar uma iconografia jovial relacionada

ao príncipe. Eleito como um dos principais heróis da Independência na História que foi

escolhida, sua imagem precisava trazer o vigor da nova nação que surgia.

Sublinhamos a representação das mulheres na Independência. Três papéis são criados e reforçados

nas iconografias: a de cuidadora/mãe, da guerreira que abdica do feminino e da mulher casta

que dedica sua vida ao serviço da Igreja. Três ideais usados em personagens como Leopoldina,

Maria Quitéria e Joana Angélica nas pinturas logo após a Independência e no início do século

XX. Apesar de vermos tentativas em mudar o perfil criado para elas, como a obra de Georgina

de Albuquerque em 1922, são poucas as representações femininas em espaços políticos nos

anos próximos à Independência. É perceptível um desejo na atualidade de artistas retomarem a

imagem das mulheres e criarem uma nova iconografia, mostrando diferentes facetas delas e seu

papel ativo em batalhas e momentos decisivos na construção da nação. Não só uma nova iconografia

das personagens retratadas anteriormente é revisitada, mas também a representação de

mulheres apagadas pela História oficial. Artistas e historiadores investigam a fundo fontes que

não resumem a Independência a uma luta pacífica da elite. Maria Felipa, importante liderança

na Guerra dos Búzios (1798) pode não ter sido registrada pelos pintores da época, porém, através

do resgate das figuras das histórias do Brasil, vemos sua luta representada em obras visuais da

contemporaneidade. Heróis e heroínas sem rosto são visibilizados por artistas contemporâneos.

A liberdade em relação ao retrato documental, fiel aos fatos e feições dos sujeitos e, também, a

falta de registros dessas pessoas, permite que os artistas expandam seu repertório e representem

essas personalidades através de obras figurativas ou não, mas que de toda forma nos fazem questionar

a narrativa iconográfica da Independência.

Novos ares, novas narrativas. Mesmo com a possibilidade de expansão das histórias, certos símbolos,

em momentos de crise, são retomados e reforçados. Apesar de não trazermos tal análise

nas obras selecionadas, é importante citarmos que, quando a Independência completou 150 anos,

em 1972, certos símbolos – inclusive iconográficos – foram retomados pelo regime vigente. No

ano em questão, o país se encontrava em seu oitavo ano de ditadura militar. Querendo intensificar

a relevância de D. Pedro I enquanto militar, o governo reforçou a imagem do monarca

e de seus feitos para o país. O quadro de Pedro Américo figurou em material oficial, e Aloísio

Magalhães foi convidado a criar uma identidade visual conectando 1822 a 1972. A ideia de que

um príncipe-militar foi o responsável pela Independência reforçaria a importância da classe na

criação do país enquanto território independente. Os símbolos da monarquia brasileira foram

retomados para fortalecer a importância dos militares e enaltecer seu governo. Tal movimento

foi ensaiado novamente em 2022 pelo então presidente durante as comemorações do Bicentenário,

pois o mesmo tinha fortes laços com as Forças Armadas. Ao invés de seguir uma trilha que

vem sendo explorada cada vez mais, das histórias e dos vários personagens que, em diferentes

territórios e datas, contribuíram para que o Brasil existisse enquanto nação, o caminho oficial foi

o de reforçar a importância da monarquia e de D. Pedro I como personagem singular de nossa

história. A tentativa foi mais alvo de críticas do que elogios e, por mais que o governo não tenha

optado por um revisionismo histórico, as artes visuais e suas instituições agiram no objetivo de

questionar as representações dos duzentos anos da Independência.

Citamos algumas exposições que, aproveitando a efeméride, trouxeram uma leitura própria. Um

ponto em comum de todas foi a inclusão de artistas contemporâneos trazendo obras que não necessariamente

foram criadas para simbolizar o marco do 7 de setembro ou de outros eventos que

levaram à dissolução do laço com Portugal, mas que, pelo olhar dos curadores, em seu conjunto,

representam questões importantes para o momento histórico ou para questionar a veracidade

da Independência do povo brasileiro. A partir do livro O Sequestro da Independência, seus autores

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(Lilia Schwarcz, Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior) criaram uma exposição

homônima em São Paulo 1 , na qual obras contemporâneas dialogam com as representações

criadas em 1822 e 1922 dos personagens da Independência. A exposição, assim como

o livro, mostra como as imagens tornaram-se projeto de governo para enaltecer alguns

personagens e territórios, como São Paulo no início do século XX.

Pensando na pluralidade das histórias do Brasil, o Museu de Arte de São Paulo Assis

Chateaubriand (MASP), realizou, também em 2022, a exposição coletiva Histórias Brasileiras.

A partir de uma curadoria compartilhada por funcionários do museu e curadores

convidados 2 , a mostra reuniu obras de diferentes períodos e contou com a forte presença

de artistas contemporâneos que partiram de leituras decoloniais sobre a história e o produzir

artístico. Com narrativas plurais, os personagens da formação do Brasil multiplicamse,

e seu nascimento enquanto nação ultrapassa um marco cronológico, ganhando nova

temporalidade ao considerar as histórias dos povos originários e das matrizes africanas

para além da versão do colonizador. Ao rever o passado de maneira crítica, a exposição

questiona quais histórias foram propositalmente esquecidas pelo caminho.

As instituições cariocas também realizaram mostras inspiradas na data para repensar os

heróis da Independência. No Museu de Arte Moderna (MAM), Atos de Revolta: outros

imaginários sobre a Independência 3 , com curadoria de Beatriz Lemos, Keyna Eleison, Pablo

Lafuente e Thiago de Paula Souza, nos apresenta um pensamento crítico sobre por que o

marco da Independência é tão associado ao grito do Ipiranga. A mostra coloca em evidência

levantes e insurreições anteriores e posteriores ao período de 1822, descentralizando

o papel do Rio de Janeiro e de São Paulo, trazendo acontecimentos em outros Estados,

como a Bahia, por exemplo. A escolha dos núcleos da exposição faz com que os visitantes

questionem as figuras dos heróis perpetuados na iconografia produzida em séculos anteriores

e nos símbolos do Estado, bem como sua produção e quem tem direito nessa nação

gerada em 1822. Visibilizar personagens e minorias como populações indígenas, negras e

mulheres é uma das intenções da mostra.

Ressaltar perspectivas para além da narrativa dominante também é o ponto de partida

da mostra Mulheres na Independência Brasileira 4 , com curadoria de Gabriela Noujaim,

realizada no espaço independente Casa da Escada Colorida. É perceptível, nos momentos

anteriores, a discrepância entre a produção de artistas homens em relação às artistas

mulheres. Pensando nessa sub-representação, a curadora convidou apenas mulheres para

pensar sua posição na sociedade brasileira tendo como ponto de ligação o Bicentenário da

Independência. A mostra coloca luz não somente nas artistas, mas também na participação

feminina nas lutas pela Independência.

Ainda na cidade do Rio de Janeiro, citamos mais uma exposição, Passado Presente: 200

Anos Depois 5 . Com curadoria de Cecília Fortes, a mostra reuniu nove artistas contemporâneos

brasileiros com a intenção de estimular o público a questionar o ideal de liberdade

promovido pela Independência, já que, passados dois séculos, a liberdade ainda parece

não ser um direito alcançável para todos. Além das exposições aqui citadas, é possível

encontrar outras mostras questionando o 7 de setembro assim como debates, publicações

e revistas dedicadas ao tema. Repensar o que a Independência e suas representações

simbolizam para o país na atualidade é uma urgência dentro de todas as camadas da sociedade e,

sem dúvida, dentro do campo das artes em seu amplo espectro. É possível perceber como o que

é questionado muda conforme novas vozes ganham espaço, inclusive nas obras selecionadas para

análise nesta seção.

Algumas obras compartilham de um início comum: foram solicitadas aos artistas para representar

leituras da Independência. Destacamos o papel da Caixa Econômica Federal em criar um

amplo repertório de obras comissionadas para datas festivas. Carnaval, Inconfidência Mineira,

São João, Independência e Natal são as datas que o órgão escolheu homenagear em seus bilhetes

de loteria. As homenagens se iniciam em 1968 e são estendidas até o começo da década de 1990.

Cada ano um artista diferente era chamado para criar obras a partir das celebrações. As obras

foram incorporadas no Acervo da Caixa e também ilustraram os bilhetes dos sorteios da loto

das respectivas datas. Com isso, muitas obras comissionadas relacionadas à Independência foram

produzidas por artistas brasileiros importantes. Em nossa pesquisa, conseguimos a autorização

para o uso de imagem de algumas e, consequentemente, oferecemos aqui uma análise 6 . Em meio

a uma pluralidade de representações, a Independência pode tornar-se uma imagem do grito,

uma comemoração do feriado nos tempos atuais ou, ainda, uma obra abstrata. Cada artista, a

partir da encomenda, apropriou-se da data e, imprimindo seu estilo, fez uma releitura do que

significa a Independência no Brasil. Por vezes percebemos a figura de D. Pedro ou as margens do

Ipiranga? Sim. Mas em outras vemos pessoas comemorando nas ruas, produzindo símbolos do

Brasil como a bandeira da República (símbolo só criado após mais uma mudança política) e, até

mesmo os representantes do povo, com suas mazelas diárias. As presenças femininas tornam-se

comuns, assim como sujeitos do povo que atuam ativamente na celebração, saindo do papel de

espectadores de uma história contada e não criada por eles.

Outras obras comissionadas, mais próximas do ano do Bicentenário, trazem um olhar crítico

da Independência e das representações oficiais. Intervenções em quadros de Pedro Américo e

François-René Moreaux podem ser observadas nos trabalhos analisados de Denilson Baniwa e

Davi Benaion, para citar alguns. Consideramos estas remixagens das obras. Tomando um termo

musical, em que sons existentes são reunidos para criar uma nova canção, as obras dos artistas

citados se valem de tal artifício para criar plástica ou corporalmente novos significados para

antigas imagens que nos rodeiam. Assim como nas músicas em que identificamos os trechos

embaralhados, os autores das obras modificadas estão fortemente presentes nas imagens, mas a

nova “sonoridade” criada pelos artistas é a voz ouvida, e nos faz criticar as representações tidas

como documentos imparciais.

Há imparcialidade na imagem? É possível criar retratos fiéis ao fato? Mesmo a fotografia imprime

a subjetividade do autor. O enquadramento, a escolha do ângulo, o tempo de exposição, a

escolha pela cor ou não, todos os elementos de como o retratado irá se apresentar ao seu receptor

influenciam na interpretação do que é observado. As obras selecionadas para o Terceiro Período

destacam sua parcialidade, elas querem contestar os fatos dados e apresentar outras versões

através da mão de seus criadores. Assim, D. Pedro vai aos poucos deixando de ser o protagonista

da Independência, e outras representações iconográficas surgem, novos heróis e heroínas são

descobertos e retratados.

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A Independência, assim como outros rompimentos políticos, não aconteceu repentinamente; longos caminhos foram

percorridos por diferentes sujeitos que acabaram por influenciar nas rupturas. Não foi pacifico, não foi apenas

uma vontade da monarquia de favorecer o povo, a Independência é um amalgamado de fatos que aconteceram em

diferentes territórios e em diferentes momentos. A luta popular foi sangrenta e marcou o desejo da libertação em

relação a Portugal. A resistência dos povos indígenas e escravizados também se soma ao momento. E quando as

obras questionam o marco e para quem ele foi encenado, revemos a Independência da nação. Reiterada nas exposições

que marcaram o Bicentenário, o questionamento sobre quem é independente, quem é livre, ressoa na atualidade

a plenos pulmões. Apesar da associação, a Independência não significa liberdade, ao menos não significou na

época de sua proclamação, e continua não havendo uma relação direta entre os dois ideais. É inegável que o 7 de

setembro marca, simbolicamente, o início da criação de uma identidade nacional. Mas associá-lo à libertação é algo

falho. Logo, questionar o ato e sua simbologia fortalece a busca pelo direito à liberdade. Mais que independência,

o direito de existir passa a figurar nas representações contemporâneas da Independência. Ao citar figuras apagadas,

ao representá-las, os artistas têm o direito de escolher qual narrativa querem seguir, quais imagens irão representar

a nossa construção de nação. Ademais, colaboram para visibilizar mulheres, indígenas, negros e populações minoritárias

que foram apagadas das representações oficiais.

Nossa análise mantém-se em aberto. As representações da Independência continuam a ser criadas diariamente. A

relação dos sujeitos com esse evento acaba por ser singular e permeada pelas novas imagens que circulam na mídia

e nas artes. Esperamos que as histórias sejam múltiplas e que possam ter sua visibilidade ampliada.

Não tivemos um grito apenas, a pluralidade de gritos ainda ecoa e pede por Independência. Os artistas escutam e

seguem interpretando-os. Esperamos que, quando chegarmos ao Tricentenário, as histórias tenham sido ouvidas e

suas diferentes representações possam ressoar com igual força as imagens ditas como oficiais.

1 A exposição foi realizada na Galeria Arte 123, na cidade de São

Paulo, no período de 13 de agosto a 24 de setembro de 2022.

2

Histórias Brasileiras teve a direção curatorial de Adriano Pedrosa e

Lilia Schwarcz e curadoria de Amanda Carneiro, André Mesquita,

Clarissa Diniz, Fernando Oliva, Glaucea Brito, Guilherme Giufrida,

Isabella Rjeille, Sandra Benites e Tomás Toledo. A mostra ficou em

cartaz de 26 de agosto até 29 de outubro de 2022.

3 A exposição ficou aberta entre 17 de setembro de 2022 até 26 de

fevereiro de 2023.

4

A Casa da Escada Colorida fica localizada no bairro de Santa

Teresa, no Rio de Janeiro. A exposição ficou em cartaz de 03 de

dezembro até 18 de dezembro de 2022.

5 Realizada no Centro Cultural da Procuradoria-Geral do Estado

do Rio de Janeiro (PGE-RJ), a exposição ficou em cartaz de 27 de

outubro de 2022 até 04 de março de 2023.

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Para ter acesso às obras produzidas, consultar o site da Caixa

Econômica Federal.

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Djanira Motta e Silva

Independência, 1968

Guache sobre papel

60 cm x 120 cm.

Acervo da Caixa Econômica Federal

Djanira da Motta e Silva (Avaré / Brasil,

1914 – Rio de Janeiro / Brasil, 1979) desenvolveu

pinturas baseadas na cultura popular

brasileira e no cotidiano das classes trabalhadoras,

como cenas rurais retratando colhedores

de café, vaqueiros e mulheres no campo,

e cenas urbanas com operários da indústria,

além de obras religiosas.

Obras comissionadas ou encomendadas são usuais na

história da arte. Reis, duques e demais membros da

nobreza tinham tal prática como atividade recorrente,

solicitando aos pintores retratos individuais ou de

suas famílias. A representação da monarquia brasileira

e de seus feitos, como a Independência, contou com

pinturas e monumentos encomendados, alguns com

recomendações bem específicas de como deveriam ser

realizados. Momentos posteriores também se valem de

obras encomendadas: na República, os estados brasileiros

tornaram-se grandes financiadores de artistas ao

investir em uma história construída através da imagem

de seus heróis e datas comemorativas. Diferentes intencionalidades

levam à produção de obras comissionadas

na atualidade, como o desejo de expandir um acervo

público ou privado ou a temática de uma exposição.

No caso da comissão da obra Independência, de Djanira

da Motta e Silva, o propósito da instituição Caixa

Econômica Federal era fomentar a produção de artistas

nacionais, ampliar seu acervo e, também, utilizar as

obras comissionadas em bilhetes da loteria em datas

comemorativas 7 . Djanira foi a primeira artista convidada

para o projeto. Dentre as datas temáticas, desenvolveu

obras para ilustrar os bilhetes de loteria das datas

de 7 de setembro, São João e Natal. As encomendas, de

acordo com Dresch, foram solicitadas no ano anterior

à emissão dos bilhetes, em 1967. A Djanira ainda foi

encomendada mais uma obra, em 1969, com a temática

da Inconfidência Mineira. As obras eram usadas como

um “papel de parede” para as informações da loto. Em

algumas edições, além dos números e informações

aparecerem em cima das imagens, suas laterais eram

cortadas, aparecendo apenas figuras centrais, algo que

ocorre com a obra de Djanira. Dresch chama atenção

para mais um detalhe: a autoria não era informada

nos bilhetes. Apenas em 1979, ao utilizar uma obra

comissionada de Glauco Rodrigues, que a imagem foi

identificada com os devidos créditos ao seu autor. Não

foi o caso com as reproduções das obras de Djanira.

Ocultadas pelas informações do jogo, não tinham destaque

enquanto obra. Se, por um lado, o uso da imagem

na loteria supria a possibilidade de apreciação da obra,

financiar e possibilitar a criação de artistas brasileiros

fomentava a coleção da Caixa, levando as obras a

circularem em exposições e catálogos da instituição e de

outros espaços culturais.

A representação da Independência de Djanira não

apresenta qualquer figura histórica. Os sujeitos que

ocupam a centralidade da tela nem rosto possuem e,

assim, podem ser qualquer um, qualquer homem ou

mulher, qualquer criança, qualquer indivíduo pertencente

ao povo brasileiro. A artista não escolheu retratar

um determinado momento ou dar uma temporalidade

definida que situe as pessoas em uma cidade ou território

específico. Eles são de algum Brasil, eles são de todos

os Brasis. Ao invés de rastros de luta, a paz predomina

na pintura através de símbolos como pombas brancas

e flores. Um porém é a quebra das correntes por uma

personagem feminina, que pode simbolizar o fim da

dependência de Portugal ou, ainda, o fim da escravidão

– quando a independência de outros sujeitos brasileiros

foi palco de discussão. Uma terceira ruptura seria com

o próprio Império na criação da República, momento

representado no quadro ao reunir as bandeiras dos dois

regimes em um só espaço. Juntam-se ainda a bandeira

do Estado de Pernambuco – uma das primeiras regiões

a lutar pelo fim da soberania portuguesa – e outras livres

representações. São estandartes misturados que parecem

prontos para um cortejo de celebração. Aqui a Independência

representa a comemoração de todos: o povo vai

para as ruas celebrar a paz e o fim de ligações aprisionadoras.

Djanira ainda inclui elementos abstratos, emoldurando

a cena apresentada. Com forte predominância

de tonalidades de vermelho e azul, as cores escolhidas

não remetem especialmente aos símbolos nacionais, mas

se relacionam com a escolha da paleta da artista para a

cena. Sua interpretação da Independência não passa por

D. Pedro I ou momentos de militarização da história; as

escolhas de Djanira para a obra encomendada apontam

para a união e comemoração do povo brasileiro, o protagonista

de sua pintura.

7 A monografia de Bernardo Souza Dresch, O Acervo Artístico da

Caixa Econômica Federal nos seus bilhetes da loteria, 1968-1989. (2018,

graduação em Artes Visuais, UFRGS) apresenta um panorama das

obras produzidas e reproduzidas nos bilhetes lotéricos no período

delimitado.

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Emiliano Augusto Cavalcanti de

Albuquerque Melo (Rio de Janeiro / Brasil,

1897 – 1976) baseou sua produção na representação

de uma temática nacionalista a partir

da conciliação das vanguardas europeias,

com o desenvolvimento de um estilo próprio.

Emiliano Di Cavalcanti foi o artista seguinte a Djanira

a ter suas obras ilustrando os bilhetes da loteria. Com

temáticas determinadas, Di Cavalcanti criou obras

para as datas comemorativas da Independência, São

João, Natal e a Inconfidência Mineira. Mesmo que o

conteúdo fosse fornecido pelo solicitante da obra – a

Caixa Econômica Federal –, os artistas retratavam

os temas conforme seu estilo e desejos. Figurativas

ou abstratas, as obras eram criadas respeitando-se os

traços dos seus autores, carregavam sua assinatura –

mesmo quando essa não era encontrada na impressão

dos bilhetes da sorte.

Di Cavalcanti escolheu retratar a celebração da Independência

após sua passagem. A cena não remete

à data-marco ou a militares montados a cavalo com

espadas em punho. O destaque é para uma família,

uma mãe, um pai e seus filhos. Celebraram a data

com a bandeira do Brasil 8 em suas mãos e fixadas nos

postes ao fundo do quadro. A formação da nação e seu

entendimento enquanto povo único passa pelo uso de

símbolos, que são (re)forçados durante nossas vidas: na

escola, através das mídias de massa e em datas comemorativas.

Ao replicá-los, associamos tais símbolos

com o país ou com nosso sentimento de coletividade.

Podemos até desconsiderar a bandeira quando a vemos

em uma janela em nosso cotidiano. Todavia, quando a

acrescentamos a um momento de comemoração – seja

uma vitória esportiva ou política – o sentimento de

pertencimento é aflorado e a bandeira parece ganhar

vida. Nas comemorações da Independência do Brasil, o

uso da bandeira é frequente, e Di Cavalcanti vale-se de

sua simbologia para localizar sua obra no momento de

celebração do 7 de setembro. Como explicitado, a imagem

apresentada não remete à data em si, ao evento da

Independência, mas nos faz lembrar de comemorações

nas ruas, momentos de coletividade e reunião de vizinhos

e parentes que celebravam conquistas enquanto

sujeitos pertencentes ao povo brasileiro. O título e o

próprio uso da imagem pelo acervo já indicam qual

é a comemoração, o porquê do encontro e do uso da

bandeira pela família e pelo espaço da rua. O verde e

amarelo se destacam na pintura ao criarem focos de

atenção para os estandartes. A família segue unida, nos

encarando. Seria essa uma comemoração feliz? Teria

sido a Independência proclamada um alívio para eles?

Seriam eles independentes? O semblante do pai coloca

mais dúvidas do que certezas. Celebram uma data que

se tornou marco histórico mas, para além da festividade,

teria sido um desejo de Di Cavalcanti nos fazer

questionar o que a data efetivamente representou para

o povo – aqui representado no microcosmos de uma

família – brasileiro.

8 Importante salientar que a bandeira presente na pintura de Di

Cavalcanti é a bandeira da República, criada em 1889. A bandeira

criada após a Independência utiliza as mesmas cores da atual, mas

sua composição é diferente.

Emiliano Di Cavalcanti

Independência, 1969

Óleo sobre de tela

80 cm x 100 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Aldemir Martins

Independência, 1969

Óleo sobre de tela

80 cm x 100 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Aldemir Martins (Ingazeiras / Brasil, 1922

– São Paulo / Brasil, 2006) possui relevante

produção figurativa com um repertório

formal que inclui aves (sobretudo os galos),

cangaceiros, gatos, flores e frutas, representados

com cores intensas e contrastantes e

formas sinuosas.

Seguimos com mais uma obra produzida através do comissionamento

da Caixa Econômica. Após duas obras

que retratavam personagens ligados à comemoração

popular da Independência, no bilhete de 1970 a imagem

que figurava era D. Pedro I. Aldemir Martins retomou

a iconografia do libertador do Brasil: com suas botas

de montaria e ar jovial. Apesar da imagem remeter ao

momento do grito, o príncipe segue sozinho em cima de

seu cavalo e nenhum outro elemento indica que o cenário

se trata do local onde a Independência foi proclamada.

Porém os elementos utilizados na imagem nos levam

a associá-la ao momento em que o Brasil se torna Império.

A começar pela forte presença das cores da bandeira,

utilizadas tanto na bandeira do Império quanto na da

República. A geometria visível na disposição do céu, sol

e grama também fazem referência à bandeira, porém

com o referencial de cores trocado. O amarelo toma a

forma de círculo contornado pelo azul do céu que divide

o quadro com o verde da grama.

A criação de mitos faz parte da invenção das tradições

nacionais. Ao se narrar uma história de nossos antepassados

ou da formação de nosso povo, parece que a

tradição está localizada em um momento atemporal,

não identificado nas disputas daquele território. Na

bandeira do Império, o verde e amarelo predominam,

sendo a primeira uma referência à Casa de Bragança,

dinastia de D. Pedro, e a segunda à Casa de Habsburgo,

família de D. Leopoldina. O grito que separava o Brasil

de Portugal não ecoava com tanta força, já que a criação

da nação e de seus símbolos mantinham referências

aos nossos colonizadores. A linha frágil de ruptura por

vezes parece até se quebrar para que alguns acordos e

tradições sejam mantidos. E assim, mesmo com novas

transformações políticas, mantivemos os símbolos da

dominação. A bandeira da República seguiu com o

verde e amarelo, para manter a tradição das antigas cores

nacionais, conforme aponta decreto do primeiro presidente

do país, Deodoro da Fonseca. No mesmo decreto,

ainda é citado que “as cores da nossa antiga bandeira

recordam as lutas e as vitórias gloriosas do exército e

da armada na defesa da pátria” 9 . Disfarçando com mais

uma explicação para além da real escolha das cores, há

ainda uma criação poética de analogia das cores com as

“riquezas naturais” do país.

As novas interpretações ou a intenção de manter uma

tradição inventada fazem com que o verde, amarelo e

azul sejam as cores do Brasil. Assim, quando Martins

opta por utilizá-las preenchendo sua pintura, a relação

com a bandeira é quase imediata. O artista escolheu

revisitar símbolos oficiais da Independência em sua

interpretação, relembrando o papel de D. Pedro I e sua

elevação a personagem libertador do país.

9 O decreto na íntegra pode ser lido no site da Presidência da

República: Decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889.

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Clóvis Graciano

Sem título, 1972

Óleo sobre de tela

80 cm x 100 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Carybé

Independência, 1972

Acrílica sobre de tela

80 cm x 120 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Clóvis Graciano (Araras / Brasil, 1907 – São

Paulo / Brasil, 1988) foi integrante do Grupo

Santa Helena e produziu obras sobre temáticas

sociais, tanto em suportes tradicionais,

como telas, quanto em murais públicos.

O ano de 1972 marca a comemoração do Sesquicentenário

da Independência do Brasil, ou seja, 150 anos de

sua separação de Portugal. A data é usada pelo regime

militar vigente para enaltecer a figura de D. Pedro I e

dos militares no processo de Independência do país. E

assim, mais uma vez, reforça-se o mito de uma separação

ordeira e realizada quase que singularmente por

uma pessoa. A imagem de D. Pedro segue no imaginário

como príncipe-herói. Por isso não é de se espantar

que, no bilhete de loteria de 1972, sua imagem apareça

em destaque. Coincidência ou não, Clóvis Graciano

optou por representar o príncipe em seus trajes militares

em uma cena que aparenta ser o 7 de setembro.

Não há mais obrigação dos pintores e escultores com a

criação de imagens-documentos. Carregar a assinatura

do realizador ultrapassa a necessidade da obra ser uma

“fotografia” do fato histórico. Por mais que os autores do

século XIX e início do XX revelassem o uso de elementos

alternativos à cena real, a representação era tomada

como fato, e a obra de Pedro Américo ilustra bem tal

situação. Ela é interpretada como um documento da

Independência, mesmo com texto do autor explicando

certas liberdades tomadas na sua recriação.

O palco torna-se livre quando as representações históricas

estão tatuadas na memória. Graciano seleciona

alguns elementos que remetem ao 7 de setembro para

a criação de sua obra comissionada. A figura central de

D. Pedro I em seu cavalo é destaque no primeiro plano

da imagem. A presença dos soldados de seu exército é

discreta: há menos de dez soldados ao fundo da tela,

divididos em dois polos. Uma forma é replicada na

“Teimosa feito uma mula” é uma expressão popular

muito utilizada. Quando a mula não quer, ela não faz,

fica empacada, sem se mexer. A tradução foi a teimoimagem

diversas vezes, o quadrado. Representando o

céu e a terra, a forma ganha destaque. Ao localizá-la na

imagem, especialmente no que imaginamos ser o horizonte,

o enquadramento da forma sugere três grandes

janelas para o exterior da cena. Enquanto a Independência

acontece, o universo do povo brasileiro segue em

um espaço externo às decisões. A divisão que as supostas

janelas proporcionam, remete a falta de participação

popular naquele momento, que se torna um espetáculo

interpretado por personagens da elite e definidos rapidamente

para que o protagonismo continuasse na mão

dos poderosos. A relação do espectador com o quadro

continua colocando o povo como público passivo frente

ao acontecimento. As escolhas do cenário trazem a crítica

do que seria essa Independência e quais vozes foram

escolhidas, pela história oficial, como ativas e passivas.

Conforme levantado, D. Pedro I segue em primeiro

plano na encenação, e seus companheiros ao fundo.

Em segundo plano, outro homem se destaca, também

montado em seu cavalo. Ao examinarmos com cuidado,

percebemos as semelhanças entre esse sujeito e o representado

no primeiro plano. Seriam ambos D. Pedro I?

As roupas e feição não nos deixam enganar, trata-se da

mesma pessoa. As posturas diferem e podem simbolizar

D. Pedro momentos antes de declarar a Independência

e, depois, quando finalmente solta o grito. Ao repetir

sua imagem, colocando-as praticamente frente a frente,

Graciano cria uma mobilidade na cena, interpretando

momentos anteriores ao que ficou marcado na história

como marco do início do Império.

Hector Julio Páride Bernabó conhecido

como Carybé (Lanús / Argentina, 1911 –

Salvador / Brasil, 1997) possui importante

produção sobre a cultura brasileira, com

especial atenção dada às práticas religiosas, à

música e ao futebol.

A cena escolhida como marco da Independência volta

a figurar nas escolhas de Carybé em sua obra para o

bilhete de loteria da Caixa Econômica Federal. Morros,

soldados, o riacho, todos os elementos que nos vêm à

mente quando alguém fala sobre o grito do Ipiranga

foram retratados pelo artista. A ausência percebida

continua a ser do povo, apenas militares em seus cavalos

aparecem. A imagem de D. Pedro I é facilmente identificável,

seu casaco azul difere dos demais soldados, e

o princípe é apresentado em posição ativa, parece falar:

“Independência ou Morte” no exato segundo escolhido

pelo artista. Sua imagem está centralizada porém

ao fundo do quadro. Em primeiro plano, levemente a

esquerda, percebemos a presença de uma mula (ou um

burro, o gênero do animal não é identificado). Único

animal de carga, não parece se deixar domar às vontades

humanas pois, além de não estar com alguém em

suas costas, não quer sair de seu lugar. Seu desejo de

permanecer evidencia uma ação contrária a sua vontade,

visível na tensão da corda que puxa a mula para fora do

enquadramento.

sia ou preguiça. O animal não trabalha como desejam,

então deve ser um dos dois. A sua exploração não entra

em pauta, pois o bicho deve servir. Quando apresenta

resistência, deve ser domada, quebrada, para que cumpra

funções predeterminadas.

A mula de Carybé não foi domesticada, e mostra sua

irreverência em primeiro plano, é o destaque da imagem.

O evento histórico acontece ao fundo, mas ela continua

em sua posição. Qual relação ela tem com o evento? Vai

mudar seu regime de trabalho? Permitirá descanso ou

será liberta? A resposta é sempre negativa. Sua invisibilidade

e sua exploração são perpetuados.

Fato curioso é que, segundo relatos oficiais, as viagens

de longas distâncias não eram realizadas com cavalos, e

sim com mulas. A possibilidade do grito da Independência

ter ocorrido com D. Pedro montado em uma

mula é maior do que aquelas em que o príncipe é retratado

em cima de vistosos cavalos, reforçando a liberdade

de inclusão de elementos nobres no momento histórico.

Apagar e selecionar foram palavras de ordem quando

pensamos nas representações históricas e nos personagens

elegidos para contar as narrativas.

Ao destacar a mula, animal presente em diferentes

momentos da história do mundo, Carybé promove uma

reflexão sobre a importância do ato de D. Pedro – mais

ao fundo que o animal – e como animais e sujeitos apagados

seguem, teimosamente, marcando sua presença

em espaços e representações das narrativas plurais que

formam o país.

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Antônio Poteiro

Sem título, 1984

Óleo sobre de tela

80 cm x 120 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Glênio Alves Branco Bianchetti (Bagé /

Brasil, 1928 – Brasília / Brasil, 2014) dedicou

parte de sua obra às questões sociais, passando

posteriormente à representação de paisagens,

naturezas-mortas e figuras humanas.

Antonio Batista de Souza (Aldeia de Santa

Cristina da Pousa / Portugal, 1925 – Goiânia

/ Brasil, 2010) é conhecido por uma rica

produção de telas e cerâmicas retratando

temáticas regionais do Centro-Oeste, como a

paisagem do Pantanal.

Antônio Poteiro também entrou no rol de artistas

convidados a criar obras a partir de datas comemorativas

para a coleção da Caixa Econômica. Impressa no bilhete

de loteria, sua leitura da Independência apresenta uma

disputa entre Brasil e Portugal.

Na Idade Média nasceu um tipo de composição teatral

conhecida como Auto. Surgiu no Século XII, na Espanha,

mas tornou-se popular em Portugal e chegou até o

Brasil. Dentre suas características, é notável a criação de

alegorias por meio dos personagens e a intenção moralizante

da peça. Em relação a sua forma, destaca-se o fato

do Auto ser composto apenas por um ato, não haver

intervalo ou cortes, tendo a história toda sua narrativa

exposta naquele tempo.

Apesar da distância temporal, a obra de Poteiro nos

lembra um Auto. Conseguimos ver a narrativa criada

pelo artista, seus personagens, e até mesmo elementos

que remetem a símbolos sacralizados. A começar pela

ideia de batalha: diferente das representações históricas

e de como se deram as disputas pela Independência

e seus fatos anteriores, Poteiro escolheu encenar uma

batalha entre países. Portugal e Brasil em disputa, o

primeiro para manter seu domínio, garantir sua hegemonia

sob as terras invadidas, o segundo em busca de

autonomia, seus defensores com espadas em punho para

garantir a Independência. Os dois exércitos fictícios

enfrentam-se diretamente e são identificados pelas bandeiras

que seus soldados carregam. É interessante notar

que, em 1822, a representação das bandeiras de ambos

países diferia das que vemos na pintura. A bandeira

carregada pelos soldados em prol do Brasil é a bandeira

da República, desenvolvida em 1889, já a de Portugal

parece uma livre adaptação da bandeira atual, adotada

em 1911. Mesmo com os símbolos de Repúblicas na

tela, é visível uma alusão a dois monarcas, cada um

de um lado da batalha. Os dois montados em cavalos

brancos, os dois com suas cabeças coroadas, os dois com

espadas em riste; até suas feições se assemelham, afinal,

vinham de uma mesma família.

A diferença principal encontra-se em seus mantos/

bandeiras, cada um aludindo a seu país. A bandeira e

símbolos que remetem a Portugal têm forte presença de

crucifixos. Poderia ser o artista reafirmando o poder da

Igreja no controle e na colonização do país? Em nosso

Auto, a disputa parece estar a minutos de seu início. O

único empecilho é o riacho repleto de peixes que divide

os lados. O uso da linha divisória, representada pelo

azul da água, ajuda a reforçar os dois pólos opostos da

batalha. No céu temos elementos destacados. Do lado

de cada exército, há a figura de um homem segurando

algo que aparenta ser um animal e portando uma coroa,

que podem ser interpretados como alegorias dos países

e de suas conquistas. O grande destaque é uma pomba

branca localizada bem em cima do riacho. Apesar de sua

simbologia ser a da paz, a pomba carrega uma placa com

a palavra morte. Não há dúvida, a batalha representa a

finitude, a morte de pessoas e de ideais. Antes da paz

reinar, nesse caso, teremos perdas e sangue de ambos os

lados.

No canto inferior do quadro, um conjunto de pessoas

assistem o desenrolar da batalha. Tal representação faz a

analogia com o teatro pulsar fortemente. A forma como

esses sujeitos estão dispostos torna-os espectadores da

cena, mas não conseguimos identificar se estão ligados

a Portugal ou ao Brasil, pois o riacho que divide os

exércitos não separa esse grupo. São um corpo presente

e, em nossa análise, eles seguem sem pertencer a cena,

assistindo ao fundo quem será o vencedor da batalha

pela Independência. É o povo enquanto plateia da

mudança de seu país. O grupo de pessoas representa o

povo iconizado, um ideal de como a massa comporta-se

diante de uma situação de conflito. Assim como foi

escrito na História oficial, a participação da população

foi pontual. O quadro traduz esse senso comum ao colocá-lo

enquanto plateia de uma disputa imaginada.

Poteiro cria uma representação teatral da Independência,

em que mocinhos e bandidos entram em disputa.

Como nos filmes, o final feliz é dado quando podemos

celebrar a vitória do 7 de setembro enquanto povo

brasileiro.

A temática social é recorrente nas obras de Glênio

Bianchetti. A sua escolha para a obra comissionada

pela Caixa Econômica Federal distancia-se das comemorações

que remetem à data de 7 de setembro ou a

figuras históricas como D. Pedro e seus aliados, e nos

mostra uma imagem repleta de mensagens críticas e

políticas. Vote. A obra foi produzida em 1989, ano em

que eram realizadas as primeiras eleições diretas para

a presidência. Votar era o meio que o povo tinha para

expressar seus desejos políticos e qual rumo escolheriam,

pela primeira vez depois de quase quarenta anos sem

poder manifestar sua opinião política com segurança.

Se a Independência comemora a formação da nação

brasileira, o voto simboliza a sua força coletiva enquanto

povo. Bianchetti transmite a mensagem em sua tela e

acaba por propor mais uma reflexão ao compararmos

1822 a 1989. Enquanto no marco histórico o direito

de opinião da população continuava amordaçado pela

elite que se manteve no poder, esse novo momento

democrático dava voz a todo o povo brasileiro. A voz

da nação ecoava nas urnas. Bianchetti faz uma relação

direta entre votar e liberdade ao incluir cartazes com um

rosto masculino e a palavra liberdade colados no muro

que carrega os grafites com o dizer “vote”. A imagem

masculina poderia ser de mártires que conhecemos ao

longo da História. Lembra a iconografia de Jesus Cristo

assim como a de Tiradentes, elevado a mártir da Independência

com o passar dos anos. Importante notar que

nas pinturas realizadas do alferes mineiro, sua imagem

é de um homem barbado e com cabelos longos, corpo

delgado e de tez alva, um reflexo das imagens criadas

pela Igreja Católica para representar Cristo em seus

momentos de martírio e morte. Quem seria o homem

mostrado nos cartazes de Glênio? Talvez aberta à livre

interpretação, a associação da palavra liberdade com tal

figura nos faça pensar em sujeitos que lutaram por nossa

Independência e, no meio da batalha, perderam suas vidas.

Glênio coloca apenas duas palavras no fundo de sua

pintura, mas consegue, com sua presença, indicar como

a liberdade de nossos direitos foi conquistada através

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Glênio Bianchetti

Sem título, 1989

Acrílica sobre madeira

120 cm x 96 cm

Acervo da Caixa Econômica Federal

Laerte Coutinho

Sem título, 2022

Coleção da artista

Laerte Coutinho (São Paulo / Brasil, 1951)

é uma cartunista e chargista. Seu trabalho é

pensado e difundido por diversas mídias e sua

relevância vai além do universo da arte, com

desdobramentos no movimento sindical e nas

questões de gênero no Brasil..

de lutas com grandes perdas, com a morte de homens e

mulheres. Porém, só com essas lutas pudemos chegar ao

momento atual, em que nossos direitos são postos em

prática. A esperança é representada pelos dois jovens

logo no primeiro plano do quadro. Cada um pinta, em

diferentes dimensões, a bandeira do Brasil republicano,

celebrando a Independência e sua liberdade. Festejam o

7 de setembro e as possibilidades que a democratização

do país representava. Mesmo com a temática restrita da

obra comissionada, a Independência do Brasil, o artista

criou uma representação que diz mais sobre o momento

em que ele se encontrava do que a um marco histórico

passado de quase 200 anos. Apesar de um grito simbolizar,

em 1822, a Independência do país, tal fato não

significa liberdade eterna. Repensar tal marco, e como

novas lutas por outras independências são necessárias

– das mulheres, dos LGBT+, dos povos indígenas

e de diversas minorias –, permite aos artistas criarem

representações atualizadas de uma Independência.

Glênio consegue, com sua homenagem à data, revisitar

duzentos anos de disputas políticas e de direitos. Afinal,

liberdade e Independência são sinônimos?

Charges são, por definição, imagens políticas. O que

as diferencia de outras formas de expressão, como o

desenho em quadrinhos, é exatamente o caráter crítico

de situações reais ou que remetem a temas debatidos

pela sociedade. Encontradas, atualmente, em jornais,

revistas ou no ambiente online, tiveram a sua primeira

criação nacional em 1837 por um artista já apresentado

no Período I, Manuel José de Araújo Porto-Alegre.

A Independência, o Império, a República, a ditadura

militar e outros tantos momentos políticos já serviram

de substrato para a criação de imagens questionadoras

e com capacidade de ecoar em diferentes meios. Como

esquecer o atentado de 2015 à revista francesa Charlie

Hebdo, movido pelo descontentamento com uma

charge replicada dez anos após sua criação? A imagem é

uma arma política.

Laerte escolhe questionar a representação da Independência

colocando em evidência a diferença de gêneros.

Como vimos na criação da imagem de D. Pedro

I vinculada ao momento de ruptura com Portugal, a

escolha foi de representá-lo enquanto um príncipe-militar,

sempre com suas botas de montaria. Nas imagens,

a espada não é elemento raro, assim como seu chapéu

e insígnias militares. No imaginário criado para o príncipe

enquanto figura ativa, que se distanciava de uma

monarquia limitada a dar ordens sentada em seu trono,

era necessário mostrar sua agilidade e destreza no meio

do povo, ou comandando exércitos. O cavalo, enquanto

animal de transporte, passa a figurar na iconografia ligada

ao príncipe, pois o retirava de uma postura plácida,

colocando-o no comando da situação em vez de levado

por pomposas carruagens.

Passados 200 anos do grito, por que não alterar o corpo

que o faz ressoar? Por que não incluir um corpo feminino

ao momento da Independência? Laerte nos mostra

como, mesmo dispondo de todos os símbolos utilizados

para o grito, este ainda não pode ser pronunciado por

mulheres. A crítica coloca em evidência as disparidades

de gênero. Nos outros Períodos, é perceptível a

escolha por privilegiar a figura de heróis masculinos.

As mulheres participantes da Independência têm uma

entrada discreta nas obras dos séculos XIX e XX. Mesmo

com o revisionismo histórico, o espaço da mulher

e sua participação nas lutas no Brasil ainda não possui

grande destaque. A imagem de Laerte não deixa dúvida,

mesmo em um cavalo, com espada em punho, a mulher

ainda não consegue ocupar os mesmos espaços que um

homem, devido à estrutura da sociedade. Logo, retomamos

o questionamento: Independência para quem?

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José Antônio da Silva

Grito do Ipiranga, 1977

Óleo sobre de tela

82 cm x 150 cm

Fama Museu - Fábrica de Artes Marcos Amaro

José Antônio da Silva (Sales de Oliveira /

Brasil, 1909 – São Paulo / Brasil, 1996) baseia

sua produção na vida rural experimentada

na infância e juventude: várias vezes retrata

cafezais, plantações de algodão e cenas com

gado. Na composição dos quadros, destaca-se

o uso da cor e o aspecto de fantasia.

Homônimo ao quadro de Pedro Américo 10 , a obra de

José Antônio da Silva não se inspira apenas no título

de Américo, é uma releitura do quadro a partir das

vivências de Silva. O primeiro elemento destacado

pela ausência é o riacho. Silva não parece se importar

em recriar o espaço ocupado pelos elementos naturais

conforme o narrado ou as imagens prévias do evento;

em sua poética não prevalece a necessidade de uma obra

histórica documental. Se, ainda em 1922, quando foram

encomendadas obras para o Museu Paulista, o rigor e

compromisso com a veracidade fizeram com que pintores

recusassem o convite de Afonso Taunay para retratar

momentos ligados à Independência, na atualidade, a liberdade

do autor é privilegiada. Com a possibilidade de

criação expandida, reinterpretar o grito a partir de uma

tela branca ou utilizar referências de imagens anteriores

são tratados como caminhos possíveis nas leituras do

momento histórico.

Fazendo um paralelo com as técnicas empregadas para a

produção das obras no século XIX e do início do século

XX, Silva utiliza-se da inspiração em pinturas anteriores

à sua para facilitar a leitura de sua obra pelo espectador.

Não apenas o título, mas a disposição dos personagens

e de todos os elementos do quadro lembram a imagem

criada do momento da Independência, com adaptações

ao estilo de Silva. Conforme dito anteriormente, um

olhar atento ao quadro logo questiona a falta do riacho

na cena. Porém, como o próprio Américo escreveu na

apresentação de sua obra, algumas liberdades estilísticas

e alteração de elementos da paisagem foram realizados

em seu quadro como, por exemplo, alteração da distância

do riacho para o declive que se faz presente na obra.

Mesmo sem o elemento da água, em Silva a natureza

parece mais abundante. As cores imprimem vivacidade

no céu e na terra, uma vegetação extensiva cobre a paisagem

e destaca-se na obra, especialmente a figura de uma

palmeira, que parece deslocada ao fundo do quadro, mas

nos faz lembrar da fertilidade da terra e de seu potencial

para o trabalho, caráter reforçado pelas enxadas espalhadas

na cena, assim como o trabalhador, que segue ao

fundo encaminhando a boiada.

Apesar do quadro simbolizar um momento de união

do povo brasileiro, quando todos queriam se desvencilhar

do domínio português, a forma como o grupo está

representado aparenta uma batalha, com dois pólos, um

à direita e outro à esquerda do quadro. Em cima dos

cavalos e com as espadas em riste, as imagens humanas

vão se misturando com os animais, tornam-se um

único elemento. Desta forma, não é possível distinguir o

começo de uma figura e o final de outra, parecendo uma

enorme representação de volume de massa popular na

qual a tríade animal, humano e arma comunga em uma

única forma. Rostos coloridos do animal-arma-humano

parecem retomar o conceito do povo iconizado. Quem

é D. Pedro no quadro? Talvez o personagem de camisa

azul mais em destaque à esquerda do quadro? Ou o de

camisa amarela um pouco mais atrás? Sua figura não

está em destaque como nas pinturas do século anterior.

Seria o desejo de Silva incluí-lo como mais um soldado,

um sujeito que poderia ser qualquer um na imagem

pois estava junto da massa popular? Ou não o destacar,

não o identificar, e mostrar a massa dos homens na

luta da Independência mostra que a voz não era de um

indivíduo e sim de um coletivo que viria a ser conhecido

como povo brasileiro? Ainda, quem sabe, D. Pedro I é a

figura central do quadro, entre as duas unidades da tropa,

de costas ao espectador, fora de seu cavalo, ajeitando

sua cela. Tal figura parece alheia aos acontecimentos,

concentrada na tarefa que realiza naquele momento,

quase um espectador. A voz do príncipe foi registrada na

História como a única nas margens do Ipiranga, criando

um protagonismo inigualável desse sujeito salvador. O

quadro de Silva pede por outras vozes, seja ao transformar

as tropas em uma massa humana-animal, em que

todos estão envolvidos de forma igualitária na disputa

pela liberdade, ou ao colocar um sujeito espectador da

cena, não envolto na massa, mas preocupado em realizar

uma ação, organizar sua cela ou dar um grito, enquanto

os demais derramam lágrimas e sangue ao longo da luta.

10 Independência ou Morte, também é conhecido como O Grito do

Ipiranga.

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Denilson Baniwa

Auri sacra fames, 2021

Intervenção sobre reprodução

27 cm x 32 cm

Coleção do artista

Diambe da Silva (Rio de Janeiro / Brasil,

1993) é artista visual. Produz entre as linguagens

do cinema, escultura e coreografia,

especialmente em locais públicos.

Denilson Monteiro Baniwa (aldeia Darí,

Barcelos / Brasil – 1984) é artista visual e

curador. Com suas obras, propõe reflexões

acerca da condição atual do indígena no Brasil,

dos impactos da colonização e dos movimentos

ativistas.

Virgílio foi um poeta romano que morreu no ano 19

a.C. Como os poetas da época, teve trabalhos encomendados

por imperadores, desejosos de contar as glórias

de suas conquistas, assim como a importância de seus

territórios. Eneida foi uma dessas encomendas. Poema

épico solicitado pelo imperador Augusto, conta a saga

de Eneias pelo Mediterrâneo e pela península Itálica.

A obra foi encomendada para ser tão grandiosa quanto

a Odisseia de Homero, e assim o fez Virgílio. Como as

imagens retratadas nos Períodos I e II, o poeta combinou

fatos reais com ficção e criou a narrativa de seu

herói, passando por percalços e saindo vitorioso ao final

de sua grande saga. Auri sacra fames é uma expressão

cunhada por Virgílio no canto III de seu poema épico, e

pode ser versada para a expressão: maldita fome de ouro.

A expressão nomeia a obra de Denilson Baniwa. Séculos

separam a Independência do Brasil das histórias

contadas por Virgílio, mas a expressão cunhada pelo

autor e revisitada por Baniwa parece ser uma constante

quando governantes ou pessoas em posição de poder

veem oportunidades: o desejo de consumir mais e mais

nunca termina.

Denilson cria camadas de leitura em sua obra a partir

de elementos pontuais e viscerais. Ao intervir sobre a

representação de Moreaux da Independência, o artista

cria a possibilidade de ruptura em relação ao seu imaginário.

Apesar de, na época, ter recebido duras críticas,

a pintura de Moreaux integra uma coleção importante

e, volta e meia, é usada para ilustrar a historiografia da

Independência. A ideia de um príncipe à favor do povo

é disseminada com a imagem, reforçando uma unidade

e harmonia no momento de 1822. Denilson questiona

esta noção a partir da imagem que nos é apresentada.

A fome pelo ouro, pelo poder, é a força motriz para a

ruptura política. E como fica o povo? Recebe parcas

recompensas, representadas pela chuva de moedinhas de

ouro que D. Pedro lança ao ar, e segue sendo escravizado

e explorado. A ironia é a ferramenta escolhida pelo

artista, que, utilizando-se de uma linguagem que remete

aos quadrinhos, dá voz a diferentes personagens da imagem

e nos faz ecoar, seja pensando naquele momento ou

na atualidade, o título de sua obra: auri sacra fames.

O fogo é um elemento que perpassa religiões e períodos

históricos em sua importância. Na filosofia da Grécia

Antiga, junto com a água, terra e ar, era considerado

um dos elementos clássicos, o responsável pela criação

da vida e sua manutenção. Para alguns filósofos, era o

elemento predominante, pois consegue fundir-se com

todas as coisas e, quando não cria possibilidades, as

aniquila, deixando apenas as cinzas. Ainda na mitologia

grega, sem ele a humanidade estaria perdida e, graças à

desobediência de Prometeus, os homens tiveram acesso

a este bem e conseguiram sobreviver. Em religiões de

matrizes africanas, como o candomblé e umbanda, é

utilizado em oferendas através da chama de velas que

podem queimar dias a fio. Símbolo da vida e da renovação,

é um dos elementos de Xangô, entidade também

relacionada aos raios, trovões e justiça.

A justiça pelo fogo é elemento comum em diferentes

momentos da humanidade. O fogo que Diambe apresenta

em sua série Devolta cria coreografias possíveis

através de sua execução e labaredas. A obra provoca a

demolição simbólica das representações de sujeitos da

República, Império e Colônia no Brasil. As escolhas da

artista não são casuais e, enquanto a fumaça entranha no

corpo de bronze, as representações escolhidas como as

oficiais de nossa nação vão se dissolvendo, como papel

queimado.

D. João VI, Princesa Isabel e D. Pedro I são os monumentos

escolhidos por Diambe. A cidade do Rio de Janeiro

é o palco para as coreografias produzidas. Sempre

à noite e, com outros artistas e colaboradores presentes,

Diambe inicia sua composição corporal. Seguem para

o local, espalham panos que desenham como o fogo irá

surgir naquele momento. Após a disposição dos elementos,

rodeando o símbolo imponente em espaços públicos

de passagem frequente, os participantes embebedam

com um líquido flamejante as peças. Em breve, fogo e

fumaça tomam conta do entorno daquelas imagens, e

logo a dança começa.

A representação de D. Pedro I que Diambe escolhe já

figurou em nossa análise anteriormente. O monumento,

localizado na Praça Tiradentes, foi instalado ainda no

século XIX em um dia de celebração. A imagem da

Independência e formação da pátria fazia-se presente

naquele sujeito em cima de um cavalo. Com o passar

das décadas, o monumento tornou-se ponto de referência,

algo a ser desviado nos passos apressados a caminho

para o trabalho, ou lugar de repouso de pessoas em

situação de rua. A importância da obra dilui-se para os

usuários da cidade, porém o imaginário da importância

de D. Pedro I permanece, já que sua imponência em

bronze continua fincada na praça.

Quando movimentos surgem, com especial força no

continente americano, questionando os heróis forjados

pelo colonialismo, a derrubada de estátuas torna-se uma

prática possível. Símbolos caem para que novas histórias

possam ser contadas. Estátuas vão ao chão, são decapitadas,

trocadas, pergunta-se por que elas seguem no

espaço público. E com o herói da Independência não é

diferente. Por que mantê-lo como símbolo do movimento,

se a liberdade não foi permitida aos oprimidos?

Se sua intenção era de se manter no poder e garantir o

mínimo de mudança possível em relação às discrepâncias

sociais?

A sua derrocada é constante. Diambe vale-se do fogo, e

assim como a representação não é o fato em si, sua ação

simboliza o extermínio da homenagem. Com seu fogo,

propõe a queima de símbolos do colonialismo para que

possamos, através das chamas, renascer e buscar novas

histórias e sujeitos que lutaram e ainda lutam pela Independência

do Brasil.

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Diambe da Silva

Devolta, 2020

Reprodução fotográfica /

registro de coreografia

Dimensões variadas

Coleção da artista

Fotografia: Lorena Pipa (D. Pedro I),

Jéssica Senra (D. João VI) e

Bléia Campos (Princesa Isabel)

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Davi Benaion (Rio de Janeiro / Brasil, 1991)

é artista visual e performer. Trabalha com

dança e performance a partir das inconformidades

entre seu corpo e algumas articulações

normativas que cercam problemas de

gênero. Rearranja imaginários de sexualidade

e sensualidade com seu corpo, que se torna

negativo ou evidenciador das expectativas de

quem o interpela.

Quinze segundos era o tempo de duração de um vídeo

quando o aplicativo TikTok teve seu boom entre os

jovens. A plataforma tem se adaptado e o tempo de

gravação será expandido para dez minutos, porém são

os vídeos curtinhos com desafios de dança – dance

challenges ou, em sua forma abreviada, dc – que ganham

os maiores números de visualizações entre usuários da

rede. As coreografias são criadas para serem executadas

junto a músicas específicas e rodam o mundo, fazendo

com que velhos sucessos voltem ao topo das listas de

canções mais ouvidas. Benaion utiliza a rede para criar

trabalhos nos quais seu corpo é o suporte. Elu foi um

dos artistas convidados para pensar a Independência a

partir de suas representações oficiais para a exposição

virtual Independência ou Morte - Decolonizando o Grito

e criou uma relação entre a pintura de Pedro Américo

e outras figuras da Independência para performar sua

obra. Totalizando 51 vídeos, Benaion combina imagem

estática e as dancinhas efetuadas à exaustão na plataforma.

Elu seleciona dance challenges “hitados”, criando um

ambiente de ironia em torno da cena do 7 de setembro.

Benaion não está no espaço museal, se insere através do

recurso do chroma key, criando camadas visíveis e invisíveis

de presença. Em séries em que repete a mesma dancinha,

escolhe personagens da história da Independência

para dialogar com D. Pedro I. Através de transparências,

as telas se misturam ao corpo de Benaion. A cada vídeo,

as transparências alteram-se, e a figura que parecia quase

imperceptível ganha protagonismo, faz as outras imagens

desaparecerem. Maria Quitéria, Joana Angélica,

Maria Felipa, Manuel Faustino, Luiz Gonzaga, João de

Deus, Lucas Dantas sobrepõem-se à imagem de Américo

e ganham voz dentro da obra de Davi. As pinturas

dialogam também com a tela do celular e do computador,

dispositivos necessários para a fruição do trabalho.

É sobre as telas. Sobre as telas que retratam um Brasil

em 1822 com o desejo de contar apenas uma versão dos

fatos, sobre as telas de personagens que foram colocados

em uma hierarquia de importância menor que a do

príncipe-militar, mas que vêm ganhando destaque na

história oficial. E é através de representações plásticas

e sobre as telas que carregamos conosco diariamente

em nossos bolsos. O recorte da tela revela apenas uma

imagem, e Davi questiona uma única versão, um único

discurso ao sobrepor as imagens e apresentar possibilidades

de narrativas e discurso em relação ao fato

histórico. Tudo feito em menos de quinze segundos, no

tempo de um desafio de dança do TikTok.

A obra sobre tela poder ser apreciada no TikTok

@davibenayon.

Davi Benaion

sobre tela, 2022/2023

Video

Dimensões variadas

Coleção du artista

Jaime Lauriano (São Paulo / Brasil, 1985)

é artista plástico. Suas obras questionam as

narrativas históricas a partir da crítica ao

colonialismo.

O grito marcado como causador da Independência do

Brasil, que serve de nome para o quadro símbolo do

momento histórico realizado por Pedro Américo, tem

apenas três palavras. Dessas, a do meio, uma conjunção

alternativa, simboliza que as duas outras não podem

acontecer conjuntamente. Teremos, assim, a Independência

ou a morte, não é possível que aconteçam em

paralelo ou uma após a outra; para uma se realizar, a

outra deve ser excluída. Ao trazer as duas palavraschaves

da declaração de D. Pedro como título de sua

obra, Lauriano não dispõe de apenas um resultado em

detrimento do outro. Ao invés da alternância, da negação

de uma ação caso a outra se concretize, o artista as

adiciona: temos sim, Independência, mas junto com a

morte. Independência e morte caminham lado a lado.

Mesmo no século XIX, após a mudança de regime, a

morte continuava pairando junto aos grupos minoritários

e às pessoas escravizadas. Não havia uma escolha,

o país tomava novos ares, mas para elas as sentenças se

mantinham. Um passado que se repete no presente e

parece ser, infelizmente, o caminho do futuro próximo,

a Independência evoca a morte quando os personagens

políticos e com status de poder bradam gritos antidemocráticos

e coloniais: passa boi, passa boiada. Podemos

apagá-los da história? Retirá-los das representações

pictóricas? Mesmo quando não estão presentes, seu

lastro é visível.

A imagem pictórica de Pedro Américo é replicada por

Lauriano, sendo que os corpos estão ausentes. Não

vemos D. Pedro e seu exército, apenas o terreno em

que estiveram reunidos para o 7 de setembro. Porém,

mesmo sem a fisicalidade de sua presença, o artista

mostra a passagem do Império e suas consequências.

Não mais uma mata virgem ou um riacho com vida, a

terra foi abusada, desgastada, o lodo torna a água turva,

consequências da exploração desenfreada de um país e

de seu povo, que tem sua voz enfraquecida pelo capital e

pela possibilidade de extração de riquezas. O que sobra?

Nossos campos não têm mais flores, nossos bosques não

tem mais vida.

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O que resta é uma poeira acobreada que invade a cena

e nos relembra o descaso com o território amazônico e

com as barragens mineiras. Nessa paisagem devastada,

o artista inclui símbolos da Independência em pequena

escala, a primeira bandeira brasileira, o monumento ao

ato histórico levantado em São Paulo e uma pequena

reprodução em relevo do quadro de Américo. O artista

intervém sobre tais imagens incluindo o símbolo do

tridente de Exu. A princípio, por estarem cruzados,

evocam a neutralidade, a entidade não representa nem o

bem nem o mal, mas ela está presente, seja na encruzilhada

ou no passado ficcionado na figura de poucos.

À crítica do mal uso da terra somam-se as disputas por

território das minorias e outras lutas de classes presentes

nos 200 anos do país. Transformados em soldadinhos

de chumbo, o embate ocorre acima da pintura, ele pula

a tela e é representado por um embate “além-quadro”.

No topo, em um enfrentamento direto, a luta cultural

e política é mostrada pelo artista. Os combatentes não

levantam as mesmas bandeiras, os poderes entram em

combate e refletem as lutas populares que ocorrem

desde que existe o desejo de Independência em nossas

terras. Passado e presente confundem-se nesse embate

que segue até os dias atuais.

Independência e Morte nos mostra que não há alternativa,

não há uma escolha entre um ou outro. Enquanto práticas

coloniais seguem sendo colocadas em vigor, caminham

juntas a falsa sensação de liberdade com a morte

de nossos direitos e possibilidades enquanto nação.

Jaime Lauriano

Independência e Morte, 2022

Acrílico, carvão, adesivos, impressão jato

de tinta, soldadinhos de chumbo sobre

placa de MDF e moldura de alumínio

160 cm x 200 cm

Coleção do artista

rafael amorim (Rio de Janeiro / Brasil, 1992)

é poeta, artista visual e pesquisador nascido

em Padre Miguel, Zona Oeste carioca. Seus

trabalhos transitam entre as artes visuais e

a escrita sob uma perspectiva suburbana e

homoafetiva.

Foi através de um convite para pensar as não-presenças

na obra de Pedro Américo que rafael amorim produziu

o díptico Esopo. A obra, criada para a exposição virtual

Independência ou Morte – Decolonizando o Grito 11 , cria

um diálogo com o quadro a partir das vivências do artista.

Em sua primeira parte, amorim utiliza a imagem de

Américo em sua totalidade, é possível identificar a obra

mesmo em um rápido passar de olhos. O artista, através

de palavras, intervém na pintura, abrindo espaço para

questionarmos a escolha de uma voz única na História.

E o que acontece às margens, onde ficam seus registros?

Nas margens do Ipiranga ouviram o brado e a Independência

oficializou-se em um evento. Todavia, ao

investigarmos as bordas da fábula do 7 de setembro,

lutas e sujeitos possibilitaram o estopim para a mudança

de governo. O protagonismo dos centros do Rio de

Janeiro e de São Paulo fez com que lutas de fora do eixo

não tivessem o mesmo espaço nas criações pictóricas do

mito de formação da nação. Apenas no século XX tais

histórias começam a ter maior espaço nas coleções e

reproduções das artes plásticas. Acreditar no que acontece

é propagar a história, deixar que ela seja ouvida por

muitos, e compreender que existem diferentes narrativas,

sendo a oficial a escolha de um recorte. Ao incluir a

frase no quadro, sobrevoando seus personagens, amorim

parece dar voz aos sujeitos ocultos da imagem: o povo

das diferentes regiões do território brasileiro, a população

à margem, que lutou pela Independência, mas que

foi sublimada da pintura. Sua voz apagada torna-se

aparente a partir da ressignificação do artista.

Na outra imagem do díptico, novamente o quadro de

Pedro Américo faz-se presente. A escolha do artista é

de transformá-lo em paisagem para o ato de descarte

realizado com frequência na sua região. amorim revela

uma prática comum do subúrbio fluminense: o abandono

de móveis estragados que seguem entulhando nas

ruas enquanto esperam a retirada, seja por garis ou por

pessoas que trarão novos usos à mobília. Apresenta-se a

provocação: descartar ou criar novos usos para as imagens

produzidas como oficiais?

O artista nos propõe repensar a fábula criada a partir

da Independência. Rever a história e entender que um

conto não traduz um fato, e sim uma das versões do

acontecimento. Abrir-se à possibilidade de novas narrativas,

mesmo que os contos nos tragam lições moralizantes

que parecem firmadas em acordos invisíveis, é

necessário para que possamos compreender as histórias

da formação do país.

11 É possível acessar a exposição no site:

https://decolonizandoogrito.com.br/

rafael amorim

Esopo (díptico), 2022

Dimensões variadas

Apropriação digital

Coleção do artista

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Hal Wildson

Monumento à Independência (I, II, III, IV, V),

2021-2022

Hal Wildson (Vale do Araguaia / Brasil,

1991) é artista multimídia e poeta. Sua

pesquisa envolve os conceitos de identidade

e memória coletiva através de símbolos da

cultura visual e da prática da escrita, o que

resulta na utilização de suportes como cartas,

documentos pessoais, carimbos e imagens

criadas em máquinas de escrever.

Três símbolos são a base para a identificação da nação:

seu hino, sua bandeira e seu brasão. No caso do Brasil,

apesar de ter passado por modificações ao longo dos 200

anos de sua existência, certos elementos foram mantidos

na bandeira: as cores verde e amarelo, as estrelas e as

formas geométricas do quadrado e losango. A primeira

bandeira do país foi elaborada por Debret, a pedido de

D.Pedro I. Durante o Império, sofreu algumas alterações,

mas sua base se manteve. Com a República,

surgiram propostas de bandeira e, ao final, decidiu-se

pela imagem que conhecemos, cuja última alteração foi

em 1992 com a inclusão dos estados de Amapá, Roraima,

Rondônia e Tocantins. Seguimos com cores que

não simbolizam nossas matas ou rios límpidos, e sim as

cores das casas reais de quem comandava o país durante

o ano de 1822. Então, o que simboliza a bandeira? Uma

real Independência ou a perpetuação de valores que

incluem diferenças sociais e fortalecimento de elites já

privilegiadas?

Atualmente vemos que a liberdade e o direito de

existir não são iguais para todos os brasileiros, por mais

que a constituição tente garanti-los. A segregação e

exclusão são frequentes no país e parecem longe de

mudar. O privilégio de poucos e o sofrimento de muitos

é traduzido nas bandeiras de Wildson.

O artista cria novos significados a partir dos desenhos

propostos para simbolizar o país enquanto estandartes.

Alguns não saíram do papel, enquanto outros seguiram

hasteados em nosso território. A questão bélica,

o monopólio da Igreja e dos latifundiários, a tríade

BBB (bala, boi e bíblia) tornam-se os novos brasões ou

símbolos nas bandeiras criadas pelo artista. Criticando

o direito à Independência de poucos, Wildson coloca

em evidência a falta de representatividade do coletivo

que os símbolos nacionais podem apresentar. Desde a

época do Império a bandeira não abarca o coletivo do

povo; os indígenas, os negros e mulheres não estavam

representados naquelas cores, ou por aqueles símbolos

reais. A liberdade nunca foi adquirida, seguimos atrás

de grades reais ou metafóricas que nos aprisionam e

nos afastam de uma prometida independência. Os que

gozam de tal direito seguem fazendo suas juras aos

seus símbolos, às suas bandeiras. Pequenas alterações

podem causar comoção, especialmente em símbolos

dados como intocáveis.

Ao transformar as bandeiras da nação, o artista reafirma

as disparidades de Independência e direitos que

vemos cotidianamente ocorrer, seja do nosso lado ou

nas páginas de jornal.

Bordado sobre cetim

87 cm x 130 cm (cada).

Coleção do artista/Galeria Movimento

Fotografia: Rafael Salim/Galeria Movimento/Divulgação

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Marcela Cantuária (Rio de Janeiro / Brasil,

1991) é uma pintora, artista visual e ativista.

Com o objetivo de fortalecer reparações

históricas e apresentar narrativas alternativas

à História oficial, a memória coletiva é um

conceito constantemente tensionado em sua

produção.

Instalação-monumento-pintura, técnica usada pela artista

para descrever a obra, Maria Felipa e a fera do mar

nos apresenta mais uma personagem da Independência

apagada pela História oficial. A falta de registros não

impede que os feitos de Maria Felipa durante a luta

pela Independência da Bahia ecoem da ilha de Itaparica

para todo o país. Mulher preta que dependia de seu

trabalho braçal para sobreviver, as narrativas em torno

de Maria incluem a liderança de outros habitantes da

ilha contra as investidas de soldados portugueses e a

queima de suas embarcações. Por meio da história oral,

seus feitos e sua presença não foram apagados, e diversos

escritores escolheram romancear sua vida. Através

de extensa pesquisa sobre a personagem, como o livro

Maria Felipa: uma heroína baiana de Lívia Prata, Cantuária

encontrou material para criar um monumento

em homenagem à heroína cujo rosto não se encontra

registrado na iconografia de sua época.

Ao classificar a obra enquanto monumento, uma

importante reparação histórica é feita. Quando

pensamos em obras que recebem tal nomenclatura,

nossas referências pousam em estátuas de figuras que

permeiam a Independência e momentos iniciais da

República. D. Pedro I teve muitas estátuas e obras de

larga escala criadas com suas feições. Mas quantos monumentos

de heroínas vemos espalhados pelo Brasil?

Quantos de mulheres da classe popular e que carregam

as marcas de seu sustento nas mãos? E de mulheres e

homens negros? Conforme citamos ao analisar a obra

da artista Diambe da Silva, há um forte movimento

para a derrubada de monumentos coloniais. Segundo

o teórico Achille Mbembe, as imagens de sujeitos

coloniais não deviam ser destruídas, pois precisamos

lembrar do passado e das marcas deixadas por ele; para

essas estátuas e monumentos, um cemitério deveria ser

construído, e seus espaços ocupados com bibliotecas

e outras construções culturais. Mesmo com a retirada

das imagens, sua reprodução extensa não nos faz esquecer

os rostos retratados. Como podemos construir

lembranças a partir das personagens ocultadas? Através

das possibilidades pictóricas apresentadas pelos artistas.

Através de novos monumentos que visibilizam as

narrativas escondidas. Cantuária apresenta não apenas

a representação de Maria Felipa, mas de sua narrativa,

que inclui até encontros sonhados com outras heroínas

da Independência da Bahia: a abadessa Joana Angélica

e a soldada Maria Quitéria. Seu ofício, suas batalhas e

seus sonhos, todos estão representados no monumento

erguido para Maria Felipa, criado por múltiplas mãos

através do convite de Cantuária à Frente de Mulheres

Brigadistas para a realização da obra. Seu rosto pode

não ter sido oficializado em 1822, porém, se desde o

século XIX liberdades poéticas eram tomadas na construção

de fatos e personagens tidos como verídicos, a

construção simbólica da heroína baiana ultrapassa o

compromisso com um retrato fidedigno, para que a sua

existência seja fincada na História e na história da arte.

Marcela Cantuária, com colaboração das

participantes da Frente de Mulheres Brigadistas

Luciane G. S. Idalino, Anna Carolina Idalino,

Leila Oliveira e Lavynia Vitória Rezende

Maria Felipa e a fera do mar – série Mátria Livre,

2021-2022

Pinturas: óleo e acrílica sobre tela, linha, algodão, arame, tecido

e madeira; Estandartes: juta plástica, cânhamo, lã, tinta acrílica,

arame, miçanga, espuma e madeira; Escultura: tecido, espuma,

plástico e arame

Área na exposição: 440 cm x 640 cm

Cortesia da artista e da galeria A Gentil Carioca

Fotografia: Vicente de Mello

Cibele Nogueira (Sergipe / Brasil, 1988) é

artista visual. Desenvolve uma linguagem

poética que atrela imagem e palavra para criar

narrativas visuais em fotografias e vídeos.

Peixeira, cansanção e espinhos. Objetos e plantas

que parecem não ter ligação, mas que fazem parte da

história de Maria Felipa. Mulher guerreira e liderança

na luta de Independência da Bahia, sua figura foi resgatada

na iconografia das artes visuais no século XXI.

Mesmo sem registros oficiais, sua imagem vem sendo

visibilizada, assim como sua atuação. Lutou contra as

tropas portuguesas com as armas que possuía: sua faca,

seu conhecimento sobre plantas urticárias e com o que

a natureza e sua realidade forneciam. Podia não dispor

do maior exército nem ter conhecimento militar, mas

conseguiu reunir um grande grupo de defensores da

liberdade e protegeu sua ilha, Itaparica, da invasão dos

portugueses, contrários às lutas pela Independência.

Mulher de Turbante é o título dado à fotografia de

Alberto Henschel tirada em torno de 1870. A imagem

de uma mulher negra com o acessório na cabeça é

associada a heroínas sem rostos. Muitas vezes utilizada

na representação de Luísa Mahin 12 , a fotografia também

já foi usada por jornais e revistas para simbolizar

Maria Felipa. Nogueira problematiza a imagem ao

repeti-la três vezes: em sua integridade, porém com

suas cores alteradas, apenas como um contorno em

roxo, e, novamente, sem a face exposta com sombra

em vermelho. Ao apresentar a mulher invisibilizada

com uma fotografia utilizada tantas vezes para retratar

todas as mulheres negras, Nogueira questiona quais

escolhas de representação são dadas aos heróis apagados

da História oficial. Rostos compartilhados são

usados para reforçar estereótipos racistas, igualando

todos os sujeitos e criando uma representação singular

de indivíduos plurais. Ao usar apenas uma imagem

de mulher negra, reduzimos suas possibilidades, suas

presenças nas histórias ao longo dos anos. Nogueira

seleciona a imagem para reforçar o questionamento:

criar uma imagem para todos também é apagá-los. Ao

trazer apenas o contorno da imagem, duas questões são

levantadas. Novamente é sublinhada a representação

de todos através de uma imagem de arquivo, assim

como o apagamento de Maria Felipa da história é

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colocado em evidência. Afinal, qual é sua identidade?

Qual o rosto da mulher lutadora que enfrentou soldados

armados com coragem e voracidade? Podemos não

conhecer seu rosto, mas suas armas e sua história são

compartilhadas cada vez mais.

Seu papel é fundamental na defesa da Ilha de Itaparica,

e sua história não será esquecida ou apagada. O

conjunto de obras de Nogueira reforça a "(re) existência"

de Maria Felipa e coloca luz na ilha baiana

que, graças aos seus moradores, foi palco de uma das

maiores lutas e vitórias contra Portugal.

12 Figura importante na luta contra a escravidão. Participou da

Revolta dos Malês (1835) em Salvador. Não há registro oficial de

Mahin.

À direita

Tiago Sant’Ana

Museu da Revolta Bahiense, 2022

Instalação com objetos produzidos e apropriados, peça de áudio,

mobiliário expositivo e sinalização, dedicada à Revolta dos Búzios,

Independência da Bahia e Revolta dos Malês

Área na exposição: 350 cm x 1150 cm x 560 cm

Coleção do artista

Abaixo

Cibele Nogueira

Vigília de Felipa, 2022

Bandeira: impressão por sublimação e bordado sobre tecido

60 cm x 80 cm

Série Memória de uma (re) existência #1, #2 e #3, 2022

Fotomontagem sobre aspen 230g e gravura sobre vidro

29,7 cm x 42 cm

Coleção da artista

Tiago Sant’Ana (Santo Antônio de Jesus /

Brasil, 1990) é artista visual e curador. Desenvolve

suas obras a partir de questionamentos

acerca da identidade afro-brasileira, tensionando

conceitos como história e memória.

A ideia de nação foi criada ao longo dos séculos XIX

e XX a partir da seleção de uma narrativa. Com a

escolha do marco inicial para formação do Brasil,

era necessário produzir a história, fosse por meio de

concursos, como o do Instituto Histórico Geográfico

Brasileiro, fosse por comissionamentos diretos,

assim as narrativas textuais e plásticas eram criadas

e moldadas conforme as vontades dos governantes

da época. O caso do Museu do Ipiranga ilustra com

precisão como a construção imagética da Independência

ficou na mão de poucos, que selecionaram fatos

e personagens a serem lembrados e, posteriormente,

estes foram homenageados por meio de monumentos

e pinturas. O esforço de Afonso d'Escragnolle Taunay

ao comissionar obras e direcionar os artistas em sua

produção reforçou a narrativa do 7 de setembro como

o momento da Independência. O Museu homenageia,

com maior descrição, outros colaboradores da ruptura

do Brasil, como Maria Quitéria e Joana Angélica, para

citar mulheres nordestinas, mas a dimensão colossal do

quadro de Pedro Américo mostra como os eventos e

sujeitos eram classificados no ranking de favoritismos

da História oficial.

Ao pensar o papel dos espaços museais como produtores

de discursos, Sant’Ana cria o Museu da Revolta

Bahiense, obra comissionada para a exposição Atos

de Revolta: outros imaginários sobre a Independência

(MAM/RJ). Na instalação, o artista mistura ficção

com realidade, ao produzir artefatos pertencentes aos

heróis das revoltas baianas que contribuíram para o

grito final da Independência em 1822. A presença

de Joana Angélica e Maria Quitéria dá-se por itens

de vestuário que teriam pertencido às mulheres. Luis

Lopes, corneteiro a quem é atribuído papel importante

da Batalha de Pirajá, também está presente no Museu

de Sant’Ana com a musealização de seu suposto

instrumento. A criação da instalação-museu nos faz

pensar sobre o papel das instituições culturais enquanto

espaços silenciadores e apagadores de narrativas

alternativas às versões oficiais. A obra coloca à vista

marcos das batalhas baianas e sua importância para a

história brasileira, assim como visibiliza suas diferenças

em relação à versão oficial de pacificidade. As revoltas

eram movimentos populares que lutavam pela autonomia

de uma nação em formação e pela liberdade de

todos que a ela pertenciam, incluindo assim a abolição

da escravidão dos negros e indígenas. Sant’Ana, através

de sua instalação, restabelece o direito de memória que,

por muito, foi negado aos personagens e lutas que não

faziam parte do eixo Rio–São Paulo. Ao transformar a

obra em metalinguagem e instalá-la em um museu, o

artista reforça a necessidade de novas leituras da iconografia

oficial e de acolhimento de outras produções

de histórias e narrativas através da arte em geral.

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Paulo Sérgio da Silva, conhecido como

Paulo Nazareth (Governador Valadares /

Brasil, 1977) é artista visual e performático.

Suas performances caracterizam-se pelo

questionamento em tempo real da existência

e das relações de convivência que estabelece

nos percursos, dialogando com questões

relacionadas à raça, ideologia e políticas de

desenvolvimento no mundo.

Medalha de honra é uma condecoração criada pelos

militares estadunidenses no século XIX para prestigiar

pessoas ligadas às Forças Armadas que tenham realizado

atos de valor. Em outros países o nome pode não ser

compartilhado, mas prêmios por atitudes consideradas

nobres são concedidos. No Brasil, a Ordem Nacional

do Mérito é a homenagem mais alta que pode ser

atribuída a um cidadão brasileiro pelo governo. Prestar

homenagens pomposas parece validar os sacrifícios em

tempos de guerra. Seus corpos, colocados à disposição

do Estado, tornam-se parte de um único coletivo, a

nação, e por isso devem ser honrados. Mas a seleção

dos homenageados reflete como um ranking de

quem fez mais pela história do país. E os combatentes

silenciosos? Os que não receberam medalhas ou foram

grifados na História, tornando-se nomes de ruas ou

feriados? Onde estão? A eles, quais homenagens são

prestadas?

Em contraste ao mito da Independência pacífica brasileira,

nas nações latino-americanas e caribenhas, as

histórias das rebeliões populares contra o colonialismo

são contadas por batalhas sangrentas e lutas populares.

Sem a possibilidade de acordos com as elites, o povo

foi às ruas para a tomada de poder, e sujeitos sem treinamento

militar ou ampla experiência com guerrilhas

transformaram-se em mártires das independências.

Seus atos de valor ressoam pelas linhas que desenham

os países latinos e caribenhos, mas lemos seus nomes

em livros? Reconhecemos as suas fisionomias? Onde

estão suas medalhas de honra?

A instalação de Nazareth coloca em evidência heróis

populares, ao presenteá-los com condecorações por

seus feitos contra as forças hegemônicas coloniais. Seus

atos de bravura os colocam no panteão aos homenageados

por lutar por seus países, porém seus nomes parecem

não ressoar em espaços oficiais como deveriam.

Paulo Nazareth

Medalha de Honra [ou 49 Medalhas + 1], 2017

Cortinas de tecido suspensas em estrutura metálica tubular,

iluminação, caixas de madeira estofadas com veludo, medalhas

de latão, fitas diversas e placas de latão gravadas

Área na exposição: 273 cm x 540 cm x 540 cm

Coleção do Instituto Inhotim, Brumadinho

Atos de revolta: outros imaginários sobre independência,

MAM Rio, 2022

Cortesia do artista e da Galeria Mendes Wood DM São

Paulo, Bruxelas, Nova Iorque. Copyright do artista.

Foto: Fabio Souza/MAM Rio

Apagamentos são escolhas. Reverberar em diferentes

espaços os feitos e identidades desses sujeitos ajuda a

reforçar que as independências só ocorreram pela junção

de forças de muitos, e que suas presenças precisam

ser celebradas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SOBRE AS AUTORAS

JULIA BAKER (Rio de Janeiro, 1984) é pesquisadora, curadora

e produtora. Doutoranda no programa de Artes da Cena na UNI-

CAMP, mestre em História, Política e Bens Culturais (CPDOC/

FGV); possui especialização em História da Arte e Arquitetura no

Brasil (PUC/RJ); graduada em Ciências Sociais (UERJ) e Produção

Cultural (UFF). Integrou a equipe curatorial do Museu de Arte do

Rio (MAR) entre 2013 e 2018, atuando na pesquisa e elaboração de

exposições, dentre elas Dja Guata Porã (2017), Linguagens do Corpo

Carioca (2016) e Tarsila e Mulheres Modernas no Rio (2015). É uma

das fundadoras da coletiva de curadoria e pesquisa NaPupila e sócia

da empresa Bomba Criativa. Também realiza curadorias virtuais,

com destaque para as exposições coletivas Imersões Digitais (2021) e

Independência ou Morte - Descolonizando o Grito (2023).

MARINA MARTINEZ (Rio de Janeiro, 1994)

é historiadora e especialista em políticas culturais.

Integrou a equipe de curadoria do Museu de Arte

do Rio entre 2014 e 2016 e o Setor de Pesquisa em

Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa

entre 2017 e 2020. Em 2020, foi pesquisadora visitante

do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade

(CECS) da Universidade do Minho. Dedica-se

especialmente à pesquisa do discurso ecológico na arte

contemporânea.

FICHA TÉCNICA

Realização

BOMBA CRIATIVA

Coordenação Editorial

JULIA BAKER

Pesquisadores

MARINA MARTINEZ

PRISCILA MEDEIROS

Identidade Visual

MARCELLO TALONE

Revisão

DENNIS STENOS-POSSIDENTE

Administração Financeira

GUSTAVO CANELLA

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100 101



imagem é uma arma política.

s fantasmas da História, ou de como ela escolheu

er contada, seguem na concretude no monumento,

nstalado para a população de séculos por vir.

escartar ou criar novos usos para as imagens

roduzidas como oficiais?

ndependência e morte caminham lado a lado.

les são de algum Brasil, eles são de todos os Brasis.

einterpretar o grito a partir de uma tela branca

u utilizar referências de imagens anteriores são

ratados como caminhos possíveis nas leituras do

omento histórico.

sobre as telas.

102 103



Quais as representações da Independência?

Quais personagens foram enaltecidos e

quais foram relegados a um apagamento

pictórico?

A pesquisa apresentada no livro passa por

três períodos marcantes, 1822, 1922 e 2022,

para discutir as imagens criadas sobre o

marco histórico.

PATROCÍNIO

REALIZAÇÃO

104

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