Et cetera – edição 13 – primavera 2023
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Primavera <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong><br />
<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong><br />
Gente com Bossa<br />
A visão gringa do jornalista Jack Nicas sobre o Brasil<br />
Carolina Schrappe: no fundo do mar, sem oxigênio<br />
A periferia em miniatura do artista Marcelino Melo<br />
Ana Cañas de corpo, alma e demônios pessoais<br />
A ciência revolucionária de Alysson Muotri<br />
Francisco Bosco, o intelectual com samba no pé<br />
E a energia inesgotável de Vera Holtz:<br />
“Sou otimista e vejo a vida como um sol”<br />
Distribuição gratuita
Foto: Unsplash<br />
Expediente<br />
Direção-Geral e Projeto Gráfico: Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Daniel Motta,<br />
Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Maria Carolina Maia, Marco Aurélio Gois e Simone Costa<br />
Arte e Diagramação: Lucas Trentin Ribeiro | Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Vera Holtz<br />
Foto: Fernando Laszlo<br />
06 Roteiro<br />
Filmes, séries, documentários, exposições,<br />
livros, discos e o que mais houver<br />
de lazer e cultura para descobrir<br />
nesta <strong>primavera</strong><br />
20<br />
Q&A <strong>Et</strong>c.<br />
A atleta Carolina Schrappe, de 48 anos, é<br />
recordista sul-americana em mergulho livre<br />
em apneia e fala sobre os riscos e os benefícios<br />
dessa modalidade esportiva<br />
10<br />
22<br />
O X da Bossa<br />
Em seu artigo, Daniel Motta reflete sobre<br />
a distância entre humanidade e Humanismo<br />
e a (in)compatibilidade entre os princípios humanistas<br />
e o avanço da tecnologia<br />
Com a Palavra…<br />
Em depoimento, o jornalista americano Jack<br />
Nicas, correspondente do NYT que vive no<br />
Rio, conta suas impressões sobre o Brasil e<br />
do sonho de morar no sertão brasileiro<br />
18<br />
24<br />
Gente com Bossa<br />
A linha que separa vida pessoal e trabalho já foi<br />
mais robusta, mas nunca impediu que ambiente<br />
familiar e acontecimentos pessoais influenciassem<br />
carreiras<br />
Guarde Este Nome<br />
As esculturas do projeto artístico Quebradinha,<br />
de Marcelino Melo, estão levando<br />
histórias da periferia de São Paulo a mostras<br />
culturais e museus do país<br />
Foto: reprodução instagram<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Foto: Marcus Steinmeyer<br />
Foto: Uanderson Brittes<br />
26<br />
Vera Holtz<br />
Aos 71 anos, a atriz e diretora de teatro vive uma<br />
das fases mais produtivas de sua carreira sem<br />
perder a energia que emprestou a seus mais de<br />
100 personagens<br />
34<br />
Alysson Muotri<br />
O cientista brasileiro que cria minicérebros em<br />
laboratório vai realizar pesquisas no espaço e<br />
pode revolucionar o conhecimento humano sobre<br />
o desenvolvimento cerebral<br />
42<br />
Ana Cañas<br />
A cantora promete levar para o próximo álbum, o<br />
nono da carreira, tragédias pessoais que ajudaram<br />
a forjar uma artista intensa, sem medo de encarar<br />
seus demônios<br />
50<br />
Francisco Bosco<br />
A juventude do ensaísta, letrista e apresentador<br />
de TV foi marcada por uma transformação<br />
que fez emergir um dos mais respeitados<br />
intelectuais do país na atualidade<br />
58<br />
Um Cartum<br />
O olhar moderno e digital do cartunista Jean<br />
Galvão para uma curiosa personagem da<br />
mitologia grega<br />
59<br />
Uma Tendência<br />
Na dose certa, a prática do bed rotting, que surgiu<br />
na rede social da geração Z, pode trazer benefícios<br />
à saúde<br />
60<br />
Uma Palavra<br />
A portuguesa Patrícia Lino, professora de<br />
literatura luso-brasileira na UCLA, apresenta o<br />
poema Serra do Elóquio<br />
A revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> tem uma versão<br />
pocket: o <strong>Et</strong>c Pop-up! Para receber<br />
semanalmente um boletim com<br />
notícias interessantes, fatos curiosos<br />
e dicas culturais no seu WhatsApp,<br />
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61<br />
Um Sabor<br />
A chef confeiteira Carolina Yamamoto adoça<br />
a <strong>edição</strong> <strong>13</strong> da <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> com uma receita<br />
vegana do versátil cookie<br />
62<br />
Uma Imagem<br />
A seção destaca o centenário de nascimento do<br />
jornalista, escritor e desenhista carioca Millôr<br />
Fernandes
[ R O T E I R O ]<br />
[ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
Estranha Forma de Vida<br />
Duração: 30min<br />
Onde ver: nos cinemas e<br />
Mubi (a partir de 20/10)<br />
Faroeste gay<br />
O espanhol Pedro Almodóvar apresentou<br />
seu primeiro faroeste, Estranha Forma<br />
de Vida, no último Festival de Cannes.<br />
Roubou as atenções com o filme de<br />
apenas 30 minutos que nem participava<br />
da competição oficial. Protagonizado<br />
por <strong>Et</strong>han Hawke e Pedro Pascal, o<br />
curta-metragem esbanja sensualidade<br />
e violência. Depois de 25 anos, Silva<br />
(Pascal) atravessa o deserto a cavalo<br />
para visitar seu amigo, o xerife Jake<br />
(Hawke). O encontro traz à tona antigas<br />
lembranças e desejos, mas fatos<br />
inesperados abalam a relação. Questionado<br />
se o curta era uma resposta a<br />
O Segredo de Brokeback Mountain, que ele<br />
se recusou a dirigir, Almodóvar disse<br />
apenas que “queria um western clássico,<br />
mas com dois homens que, por meio<br />
de diálogos e olhares, criassem um jogo<br />
de paixão e desejo”.<br />
Para ler<br />
Manet no Rio<br />
96 páginas<br />
Editora Ercolano<br />
R$ 98,00<br />
Impressões geniais<br />
Antes de abalar a pintura ocidental<br />
com seu impressionismo de pinceladas<br />
generosas e temas mundanos, o jovem<br />
Édouard Manet (1832-1883) esteve no<br />
Rio de Janeiro, aos tenros 17 anos de<br />
idade. Inédita no Brasil, Manet no Rio<br />
traz as cartas que ele escreveu a familiares<br />
durante sua estada por aqui.<br />
A maturidade e a inteligência do adolescente<br />
sobressaem logo nas primeiras<br />
páginas. Na época, Manet sonhava<br />
com um futuro na Marinha e desenhava<br />
apenas como hobby. O olhar do gênio<br />
forasteiro registra interessantes e<br />
perspicazes impressões sobre a cidade,<br />
os cariocas, a escravidão e o Carnaval.<br />
O mundo novo desperta sentimentos<br />
difusos, como o desprezo pela mesquinhez<br />
da elite local e o encanto pelo “espetáculo<br />
da natureza”.<br />
A Incrível História de Henry Sugar<br />
Duração: 39 min<br />
Onde ver: Netflix<br />
Curta de grife<br />
Roald Dahl (1916-1990) é um dos autores<br />
com mais obras adaptadas para a<br />
telona, entre elas Matilda, A Fantástica<br />
Fábrica de Chocolate e O Fantástico Senhor<br />
Raposo. Mas o galês vai além das<br />
histórias infantojuvenis, como atesta<br />
Wes Anderson em sua adaptação do<br />
conto A Incrível História de Henry Sugar.<br />
O curta leva a assinatura do cineasta:<br />
meticulosa paleta de cores, enquadramentos<br />
simétricos e personagens excêntricos<br />
interpretados por grandes<br />
atores. Aqui, Ralph Fiennes, Benedict<br />
Cumberbatch, Ben Kingsley e Dev Patel<br />
estão na história de Imdad Khan<br />
(Kingsley), homem dotado da estranha<br />
capacidade de enxergar mesmo de<br />
olhos vendados. Cumberbatch interpreta<br />
Henry Sugar, um ricaço que quer<br />
usar as habilidades visuais de Khan<br />
para trapacear em jogos de cartas.<br />
Outlive <strong>–</strong> A Arte e a Ciência de Viver Mais e Melhor<br />
480 páginas<br />
Editora Intrínseca<br />
R$ 75,90 e R$ 49,40 (e-book)<br />
Aprenda a envelhecer<br />
Peter Attia é cirurgião oncologista do<br />
Hospital Johns Hopkins e pesquisador<br />
de terapias imunológicas. Em Outlive,<br />
best-seller da lista do The New York<br />
Times, Attia reavalia o paradigma da<br />
longevidade e a atual abordagem da<br />
medicina para mostrar novos rumos<br />
para a área. Criador da estratégia de<br />
longevidade Early Medical, ele propõe<br />
mudanças na mentalidade convencional<br />
(hábitos que todos já conhecem,<br />
como se exercitar, comer e dormir<br />
bem) e defende a reavaliação de hábitos<br />
diários com o objetivo de personalizar<br />
uma estratégia proativa para viver<br />
mais e melhor. A obra também detalha<br />
a atual abordagem da medicina para o<br />
natural envelhecimento humano, voltada<br />
para uma terceira idade com mais<br />
saúde física, cognitiva e emocional.<br />
The Morning Show <strong>–</strong> 3ª Temporada<br />
Duração: 8 episódios<br />
Onde ver: Apple TV+<br />
Vaidades de bastidores<br />
The Morning Show, produção da Apple<br />
sobre os bastidores de um programa<br />
jornalístico, chega à terceira temporada.<br />
As apresentadoras Alex Levy e Bradley<br />
Jackson (Jennifer Aniston e Reese Witherspoon)<br />
deixam para trás o assédio<br />
sexual e a pandemia, premissas das temporadas<br />
anteriores, para jogar luz em temas<br />
ainda mais atuais, como a invasão<br />
ao Capitólio e o direito ao aborto <strong>–</strong> tudo<br />
com uma boa dose de reviravoltas, claro.<br />
A série também aborda outro assunto<br />
quente no jornalismo e na política: as<br />
disputas narrativas em torno do conceito<br />
de verdade. A temporada ganha<br />
o reforço de Jon Hamm (o Don Draper,<br />
de Mad Men) no papel de um bilionário<br />
da tecnologia narcisista disposto a<br />
comprar a emissora UBA, que transmite<br />
o programa.<br />
Um Funcionário da Monarquia<br />
160 páginas<br />
Editora Todavia<br />
R$ 69,90 e R$ 44,90 (e-book)<br />
País de compadrio<br />
Um Funcionário da Monarquia é o livro<br />
mais curioso da vasta obra de Antonio<br />
Candido (1918-2017). Lançado em<br />
2002, conta a história real de um burocrata<br />
de origem modesta cujo êxito<br />
na administração imperial deveu-se à<br />
competência e ao zelo pela coisa pública,<br />
mas acaba entrando em choque<br />
com os barões da política por sua retidão<br />
moral e profissional. Uma de suas<br />
ideias era, por exemplo, substituir as<br />
indicações e o pistolão por concursos<br />
públicos. O funcionário também defendia<br />
carreiras públicas organizadas por<br />
mérito, livres de indicações políticas.<br />
Candido combina curiosidade pessoal<br />
com história e sociologia para revelar<br />
males e vícios que perduram ainda hoje<br />
na vida pública nacional. Relançamento<br />
necessário e atualíssimo, infelizmente.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 7<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 6
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ouvir<br />
Eletrônico multifuncional<br />
Uma das bandas de música eletrônica<br />
mais importantes do boom do gênero<br />
nos anos 1990, o duo The Chemical<br />
Brothers lança seu décimo álbum de<br />
estúdio. Trinta anos depois, os britânicos<br />
Tom Rowlands e Ed Simons<br />
continuam acertando a mão na fórmula<br />
dançante. Se os outros discos<br />
abrem espaço para instrumentos como<br />
guitarra, teclado e naipe dos metais,<br />
For That Beautiful Feeling é basicamente<br />
um álbum eletrônico <strong>–</strong> com exceção<br />
do baixo na faixa The Weight. Estão lá<br />
as batidas marcantes da dance music<br />
e do techno, refrãos chicletes e aquela<br />
profusão de sons eletrônicos emulando<br />
instrumentos tradicionais. A fórmula<br />
funciona em caráter multifuncional.<br />
The Chemical Brothers vai bem na pista<br />
de dança, no carro e na esteira.<br />
For That Beautiful Feeling<br />
Onde ouvir: Spotify,<br />
Deezer, iTunes e Tidal<br />
Para visitar<br />
35ª Bienal de São Paulo<br />
Parque Ibirapuera<br />
Entrada gratuita<br />
Bienal plural<br />
Com quatro curadores <strong>–</strong> os brasileiros<br />
Diane Lima e Hélio Menezes, a portuguesa<br />
Grada Kilomba e o espanhol<br />
Manuel Borja-Villel <strong>–</strong>, a 35ª <strong>edição</strong> da<br />
Bienal entrega uma mostra mais diversificada.<br />
Mais de 90% dos 121 artistas<br />
(com 37 brasileiros) são não brancos. E<br />
cerca de 70% vêm de países fora do circuito<br />
hegemônico da arte, formado por<br />
nações da Europa e dos Estados Unidos.<br />
Sob o tema Coreografias do Impossível, a<br />
maior e mais tradicional exposição de<br />
artes da América do Sul prioriza trabalhos<br />
que dialogam com conceitos como<br />
ancestralidade, diásporas e descolonização.<br />
E, pela primeira vez, paredes<br />
temporárias fecham todo o vão central<br />
do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, trazendo<br />
outra perspectiva e experiência para<br />
o público.<br />
Caetano dá samba<br />
Desde que saiu do grupo Revelação<br />
para seguir carreira solo, em 2014,<br />
Xande de Pilares ganhou ainda mais<br />
prestígio, versatilidade e fãs. Muitos<br />
artistas já gravaram músicas de Caetano<br />
Veloso, mas poucos o fizeram<br />
chorar com suas próprias obras. Nas<br />
audições do álbum Xande Canta Caetano,<br />
Caê se emocionou e foi às lágrimas<br />
ao ouvir a versão do sambista para<br />
Gente. O vídeo, compartilhado por Paula<br />
Lavigne (produtora de Xande) nas<br />
redes sociais, serviu para o disco cair<br />
rapidamente nas graças do séquito de<br />
Caetano. As novas versões das clássicas<br />
Tigresa, Alegria Alegria, Trilhos<br />
Urbanos, Lua de São Jorge e Gente são<br />
excelentes. São músicas que já fazem<br />
parte do imaginário coletivo, mas que<br />
podem ser ouvidas com o frescor das<br />
descobertas.<br />
Xande Canta Caetano<br />
Onde ouvir: Spotify,<br />
Deezer, iTunes e Tidal<br />
Cores explosivas<br />
Um dos pioneiros da performance no<br />
Brasil, Ivald Granato (1949-2016) foi<br />
um artista polivalente, dono de uma<br />
obra plástica que atravessou a música,<br />
o teatro e as artes visuais. A mostra em<br />
cartaz na Dan Galeria, em São Paulo,<br />
prioriza sua produção pictórica, tão<br />
efusiva quanto a personalidade do artista<br />
que já foi chamado de “maior colorista<br />
da história da pintura brasileira”.<br />
Suas figuras abstratas ou antropomorfizadas<br />
são elásticas e multicoloridas,<br />
sempre retratadas em movimentos. Na<br />
exposição Seres Ivald Granato, as telas<br />
foram separadas de acordo com suas<br />
variações cromáticas, apresentando<br />
a produção do artista em grupos com<br />
fundos pretos, azuis, amarelos e terrosos,<br />
o que realça o domínio de Granato<br />
sobre as cores.<br />
Seres Ivald Granato<br />
Dan Galeria<br />
Entrada gratuita<br />
Happy hour em áudio<br />
A psicóloga Déia Freitas, que faz sucesso<br />
contando histórias enviadas por<br />
ouvintes no podcast Não Inviabilize,<br />
apresenta um spin-off do programa.<br />
Histórias da Firma reúne aqueles barracos<br />
e perrengues que correm de boca<br />
em boca nas mesas de almoço, cafezinhos<br />
e happy hours das empresas. A<br />
cada novo episódio, liberado às sextas-<br />
-feiras, Déia conta causos corporativos<br />
de uma maneira descontraída, descrevendo<br />
tretas divertidas e inusitadas<br />
que aconteceram em ambiente de trabalho.<br />
Não faltam abusos de gestores<br />
preguiçosos, rasteiras de colegas inescrupulosos,<br />
reuniões que viram campo<br />
de batalha, bolas de neve causadas por<br />
e-mails incompreendidos e os clássicos<br />
ladrões de marmitas. No final de cada<br />
episódio, os protagonistas dos casos<br />
podem comentar as histórias narradas.<br />
Histórias da Firma<br />
Onde ouvir: Amazon Music<br />
Vida de escultor<br />
Morto aos 68 anos em outubro de 2022,<br />
vítima de uma doença degenerativa, o<br />
artista plástico Angelo Venosa ganha<br />
sua primeira retrospectiva póstuma,<br />
em cartaz na Casa Roberto Marinho,<br />
no Rio de Janeiro. São 85 trabalhos, que<br />
integram uma boa mostra de todos os<br />
períodos de sua produção, do início dos<br />
anos 1970 até o ano de 2021. Referência<br />
na arte contemporânea, o escultor<br />
utiliza diferentes materiais <strong>–</strong> papéis,<br />
fibra de vidro, tecidos, madeiras e metais<br />
<strong>–</strong> para criar esculturas de formas<br />
orgânicas e abstrações geométricas,<br />
que equilibram-se no chão ou pairam no<br />
ar. Constantemente na vanguarda, já na<br />
última fase de sua carreira, Venosa criou<br />
belíssimas obras com impressoras 3D e<br />
feitas com um material sintético que brilha<br />
no escuro.<br />
Sheroanawe Angelo Venosa, Hakihiiwe: Escultor<br />
Tudo Casa Isso Roberto Somos Marinho Nós<br />
MASP Ingresso: R$ 10,00<br />
Ingressos: www.masp.org.br/ingressos<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 9<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
Humanismo zen<br />
em tempos<br />
sintéticos<br />
caóticos<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Fundador e CEO do BMI Blue Management Institute<br />
O Humanismo atravessou séculos sem conseguir<br />
ultrapassar a barreira do campo teórico. Afinal, teria a<br />
humanidade, de fato, potencial para ser humanitária?<br />
Foto: 8machine_/Unsplash<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 11<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 10
Ecce Homo!<br />
O Humanismo, dentre tantas definições filosóficas há tantos séculos, consolidou-se em torno das premissas de antropocentrismo,<br />
racionalidade, verdade científica e promoção de valores humanos universais (em especial, dignidade, bem-estar e liberdade).<br />
Princípios inspiradores para muitos, mesmo não sendo tão celebrados por niilistas e devotos dogmáticos.<br />
Inspirado nos pensamentos gregos antigos, o Humanismo se desenvolveu nos séculos XV e XVI como uma reação intelectual aos<br />
obscuros tempos medievais. A ilha imaginária criada por Thomas More em sua obra Utopia foi o ambiente perfeito para refletirmos<br />
sobre os contrapontos humanistas ao contexto absolutista europeu vigente naqueles tempos, uma vez que o Humanismo<br />
celebrou a trajetória humana em detrimento dos deuses.<br />
Tamanha revolução intelectual pode ser mais bem compreendida no contexto temporal mais amplo intrínseco à própria transição<br />
de ética social ocorrida ao longo de séculos.<br />
Transição Ética Social<br />
Ética da Sobrevivência Ética do Poder Ética do Dever Ética do Prazer<br />
Espírito do Tempo<br />
“De uma vez por<br />
todas, muitas coisas<br />
Tempos Antigos Tempos Imperiais Tempos Industriais Tempos Líquidos<br />
Ordem Social Dominante<br />
Povos Originários Impérios Europeus Empresas Transacionais Redes sociais<br />
Vetores de Coesão Social<br />
eu não quero saber!”<br />
Misticismo<br />
Tribalismo<br />
Força Bruta<br />
Religiosidade<br />
Absolutismo<br />
Subjugação<br />
Lealdade<br />
Hierarquia<br />
Estabilidade<br />
Conexão<br />
Expressão<br />
Experiência<br />
Friedrich Nietzsche<br />
A<br />
humanidade não vai acabar tão cedo. O Humanismo ainda está longe de surgir,<br />
mesmo tão tarde.<br />
De tempos em tempos <strong>–</strong> e cada vez mais em ciclos curtos <strong>–</strong> a opinião pública<br />
exalta-se, inflama-se com o final dos nossos dias, o ocaso da humanidade, a destruição<br />
civilizatória. O ChatGPT alcançou o feito há alguns meses, encantando, intrigando,<br />
aterrorizando muitos.<br />
Após o pico das expectativas, o reencontro com a normalidade enfadonha. Nada<br />
muda tão radical e rapidamente assim na sociedade ou, muito menos, na natureza.<br />
Tudo é gradual. Mesmo com a percepção de um tempo que corre mais rápido, os rios<br />
ainda correm tranquilos.<br />
A evolução da humanidade no planeta tem sido analisada por diferentes ângulos<br />
científicos e prismas filosóficos, não como um fenômeno homogêneo e síncrono, mas<br />
como uma referência central para o avanço dos estudos. É claro que muitos traços<br />
têm sido comuns ao longo dessa saga humana planetária, mas também é fato que há<br />
muito mais diversidade além da retórica dominante que sintetiza fatos e simplifica a<br />
narrativa como algo universal.<br />
Curioso notar que humanidade e Humanismo não são sinônimos, nem necessariamente<br />
simbióticos. Ao contrário, a humanidade parece evoluir cada vez mais distante<br />
dos princípios humanistas, ainda que o pensamento humanista seja eventualmente<br />
proclamado como sendo o ideal humanitário.<br />
Por que o Humanismo seria relevante para a humanidade? E, assumindo-se um ideal<br />
aspiracional dessa humanidade, por que nunca foi realmente vivenciado em tempo<br />
algum até hoje?<br />
Evidentemente, o Humanismo inseriu-se em um período<br />
turbulento da sociedade europeia. Distante dos tempos greco-romanos,<br />
contrário à ordem social medieval, inserido nas<br />
complexas teias sociais das aristocracias europeias. Não foi<br />
resultante, portanto, da vontade das lideranças políticas dominantes.<br />
Surgiu à margem do sistema político, econômico,<br />
social. Apresentou-se como um ideal. Foi combatido ferozmente<br />
pelo establishment. Inspirou discursos hipócritas. Revelou-se,<br />
afinal, utópico.<br />
A partir de seus primórdios, os princípios humanistas evoluíram<br />
ao longo de tantos outros séculos, passando pelo Iluminismo,<br />
influenciando o Existencialismo. O Humanismo<br />
chegou ao século XX ainda como um ideal, longe de ser prática<br />
comum. A partir de então, nem mesmo se estabeleceu<br />
como paradigma social e já foi sofrendo mudanças em suas<br />
premissas. As correntes Pós-Humanismo e Transumanismo<br />
desenvolveram-se como vertentes do pensamento contemporâneo<br />
<strong>–</strong> enquanto a primeira desafiou as premissas de<br />
antropocentrismo e racionalidade em prol da valorização ecológica,<br />
a segunda flertou com as fusões entre o biológico e o<br />
tecnológico na evolução humana.<br />
No âmbito organizacional, os princípios humanistas começaram<br />
a ser estudados logo no início do século XX, em função<br />
do aumento da escala de produção e suas consequências inevitáveis<br />
sobre a complexidade de gestão de pessoas e processos.<br />
O ambiente de trabalho passou a ser gradualmente<br />
transformado, primeiro do ponto de vista de produtividade,<br />
logo depois com foco adicional em segurança e saúde. O surgimento<br />
das carreiras gerenciais ampliou a relevância da burguesia<br />
urbana, exigindo uma reformulação das práticas de<br />
gestão desse capital humano mais sofisticado nas empresas.<br />
O advento da tecnologia de informação e a crescente automação<br />
do chão de fábrica aceleraram ainda mais a importância<br />
da incorporação de novas práticas na modelagem das relações<br />
de trabalho. Já bem desenvolvidas no início daquele século,<br />
tais premissas avançaram rapidamente a partir dos anos<br />
1950 com a globalização das empresas ocidentais, ainda longe<br />
da plenitude dos princípios humanistas clássicos, mas com<br />
melhoria em diferentes dimensões da vida do trabalhador.<br />
De qualquer modo, as inexoráveis relações de poder <strong>–</strong> como<br />
estudadas por Michel Foucault <strong>–</strong> têm sido sempre desafiadoras<br />
à prática efetiva dos princípios humanistas. Além disso,<br />
as mesmas formas de organização do trabalho que sistematizaram<br />
e otimizaram, também alienaram e padronizaram.<br />
Assim, os paradigmas de comando-controle e de eficiência<br />
operacional sempre impuseram relevantes desafios à incorporação<br />
de práticas humanistas no ambiente de trabalho.<br />
Após mais de 100 anos das grandes corporações, tal desafio<br />
está longe de ser totalmente solucionado.<br />
Sendo as organizações espelho das sociedades em que estão<br />
inseridas, uma vez que os princípios humanistas orbitam<br />
mais nos discursos do que nas práticas, parece ser natural<br />
observar que as organizações humanizadas têm sido também<br />
muito mais vivenciadas no imaginário idealizado.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. <strong>13</strong><br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 12
Pia Fraus<br />
Afinal, o Humanismo é escalável?<br />
Essa questão filosófica assume implicitamente<br />
que o Humanismo seria algo<br />
desejável ao avanço da humanidade<br />
neste planeta em particular e no Universo<br />
em geral. Fato! A sociedade humanizada<br />
<strong>–</strong> muito além da simples sociedade<br />
humana <strong>–</strong> elevaria os valores<br />
humanos universais em torno dos conceitos<br />
de dignidade, bem-estar e liberdade.<br />
Muitos dos males terrenos, das<br />
tragédias humanitárias, dos absurdos<br />
sociais seriam mitigados nessa nova<br />
ordem social. Restaria, claro, ainda significativa<br />
subjetividade nas definições<br />
utilitárias desses mesmos valores <strong>–</strong> é<br />
razoável reconhecer que bem-estar,<br />
por exemplo, é um conceito demasiadamente<br />
elástico para ser preciso.<br />
Seria válido presumir que o Humanismo<br />
<strong>–</strong> possivelmente evoluído em<br />
algumas dimensões propostas pelas<br />
vertentes pós-humanistas e transumanistas<br />
<strong>–</strong> pode representar um ideal<br />
para a humanidade? Penso que sim.<br />
Ato contínuo, coloca-se a questão da<br />
escalabilidade humanista. Seria a dignidade<br />
algo exponencial? Estaria a<br />
liberdade disponível para a longa cauda<br />
social? Poderiam a racionalidade e<br />
o rigor científico direcionarem todos<br />
os processos decisórios planetário<br />
e cotidiano?<br />
A humanidade tem realmente potencial<br />
para ser humanitária?<br />
Sobreviver como humano implica abafar<br />
os mais profundos instintos para<br />
conviver em sociedade. Aceitar as convenções<br />
normativas é algo intrínseco a<br />
todos aqueles que desejam socializar<br />
em prol do prolongamento de sua própria<br />
vida, da perenidade de seus genes.<br />
Diante de um ambiente cada vez mais<br />
complexo e ambíguo <strong>–</strong> de certo modo,<br />
até mesmo hostil <strong>–</strong>, é verdadeiramente<br />
humana a busca pela vida coletiva em<br />
sociedade. Precisamos da sensação<br />
de segurança, afiliação afetiva, espaço<br />
criativo e produtivo para ação individual,<br />
oportunidade de desenvolvimento<br />
e espaço para reflexão. Demandas<br />
compatíveis com o ideal humanista.<br />
É possível afirmar que, teoricamente,<br />
todo grupo social busca uma otimização<br />
de função composta dos produtos<br />
esperados, das variáveis de controle<br />
e das condições restritivas, flertando<br />
com a aleatoriedade do acaso. Os princípios<br />
humanistas podem fazer parte<br />
dos produtos esperados, desde que socialmente<br />
viáveis diante das variáveis<br />
de controle e das condições restritivas.<br />
Premissas individualistas, por exemplo,<br />
podem inviabilizar a produção de<br />
contextos humanistas. Imaginemos,<br />
por exemplo, quanto o comportamento<br />
extremamente predatório de uma organização<br />
em busca da maximização<br />
do retorno sobre o capital investido<br />
seria incompatível com os valores humanos<br />
em torno do tripé dignidade,<br />
bem-estar e liberdade.<br />
Portanto, além da retórica inspiradora,<br />
a vivência humanista está diretamente<br />
relacionada ao perfil da função social<br />
a ser otimizada por indivíduos em<br />
sociedade. Obviamente tal função é<br />
muito mais uma abstração do que algo<br />
realmente passível de ser traduzido<br />
em algoritmos. O argumento aqui apenas<br />
direciona a ação coletiva para algo<br />
realmente passível de ser modelado<br />
e influenciado.<br />
Foto: Eduard Gross/Unsplash<br />
Foto: Simon Lee/Unsplash<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 15<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 14
Augmented Humanism<br />
Já é uma premissa <strong>–</strong> e, para muitos, uma fantasia <strong>–</strong> transumanista<br />
a evolução humana a partir da fusão entre o biológico<br />
e o tecnológico. Seríamos assim ciborgues potencializados<br />
por bioquímica, nanotecnologia neural e tecidos sintéticos.<br />
Estamos cada vez mais próximos dessa realidade ficcional.<br />
Não necessariamente na direção convergente aos princípios<br />
humanistas, a humanidade cibernética corre sério risco de se<br />
tornar (ainda mais) autômata, apática, angustiada.<br />
digma da humanidade está mais posicionado como manifesto<br />
do que como previsão futurista. Tal ordem social validaria os<br />
princípios clássicos humanistas tão proclamados, tão negligenciados.<br />
E ainda celebraria tudo aquilo que hoje está no<br />
campo do além-humano. O Übermensch seria contemplado<br />
como real possibilidade para a vivência humana nesse planeta,<br />
na plenitude de toda potência humana aumentada pela<br />
tecnologia.<br />
Assim, o conceito Augmented Humanism proposto aqui traz<br />
uma substância ética subjacente à digitalização do ser humano.<br />
Muito além do dilema evolucionista em permanecer<br />
ou não uma espécie orgânica (particularmente, acredito que<br />
a era dos ciborgues espaciais começou há alguns anos, ainda<br />
que convivendo pacificamente com os atuais Homo sapiens,<br />
por ora), a proposição direciona a construção do novo a partir<br />
dos princípios humanistas mais aspiracionais. Estou certo de<br />
que o tripé dignidade, bem-estar e liberdade, ancorado na racionalidade<br />
científica que exalta a potência humana integrada<br />
responsavelmente ao Universo, pode ser compatível com<br />
o avanço da inteligência artificial sobre a matéria perecível.<br />
É fato que imaginar o Augmented Humanism como novo para-<br />
Paradoxalmente, distante das falsas e infrutíferas dicotomias<br />
entre a espiritualidade e o Humanismo, o novo paradigma<br />
Augmented Humanism engloba o transcendental como parte<br />
do bem-estar, compreendido aqui como equilíbrio integral do<br />
indivíduo inserido na sociedade humanitária. Não o transcendental<br />
castrador dos dogmas religiosos que restringe a<br />
vida e atormenta a alma, mas a espiritualidade que reconhece<br />
a conexão sistêmica entre corpos em múltiplos universos.<br />
Por fim, o amor... Sim! Impossível imaginar o Augmented Humanism<br />
sem amor. Esse novo humano potencializado por<br />
tecnologia ama, amiúde, com intensidade, integridade, sexualidade.<br />
Quem sabe, assim, a humanidade humanizada seria,<br />
finalmente, feliz!<br />
Artigo escrito a partir de debate com Alina Correa, Cristina Panella,<br />
Maria José Tonelli e Marina von Zuben<br />
Foto: Ryoji Iwata/Unsplash<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 17<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 16
[GENTE COM BOSSA]<br />
Identidade<br />
sem fronteiras<br />
A queixa é universal e justificável: está cada vez mais difícil<br />
impedir a invasão da rotina profissional na vida privada. O<br />
fogo amigo vem do próprio bolso, em forma de notificação<br />
que entra sem pedir licença no convívio familiar, ou do prazo<br />
de entrega que não deixa a mente encontrar foco fora do<br />
trabalho. Mas a vida pessoal também transborda, deixando<br />
na carreira uma marca indelével, uma cicatriz que pode dar<br />
novo sentido à trajetória. Muitos caminhos profissionais encontram<br />
no ambiente familiar sua pedra fundamental.<br />
“Todo o conhecimento, na minha vida, veio por meio do afeto,<br />
do amor e da unidade familiar (…) Eu trabalho utilizando<br />
essas características com as quais fui presenteada, vivendo<br />
cada dia com poesia, delicadeza e harmonia.” As palavras de<br />
Vera Holtz expressam uma conexão percebida pelo público<br />
por meio do carisma e da energia transmitidos pela atriz em<br />
cada um de seus mais de 100 trabalhos no teatro, no cinema<br />
e na televisão. Um deles é As Quatro Irmãs, documentário protagonizado<br />
por Vera e suas três irmãs que concretiza essa<br />
simbiose entre vida pessoal e carreira.<br />
Um evento marcante na vida do ensaísta Francisco Bosco<br />
deixou mais do que um sinal na perna do filósofo pop do Papo<br />
de Segunda, do GNT. A bala perdida que o impediu de andar<br />
por seis meses foi parte crucial do processo de formação do<br />
Francisco poeta que, mais tarde, se tornaria letrista e dono de<br />
um Grammy Latino.<br />
Há anos, o cientista Alysson Moutri pesquisa as características<br />
morfológicas, funcionais e de sinapses no cérebro de<br />
pessoas autistas. Mas o interesse saiu da esfera meramente<br />
acadêmica quando ele se tornou pai de uma criança no espectro.<br />
A partir daí, passou a trabalhar inclusive para melhorar<br />
a qualidade de vida de autistas e suas famílias.<br />
Vivências familiares são marcas-d’água no trabalho da cantora<br />
Ana Cañas. Tragédias pessoais, como a morte do pai e<br />
do irmão e o assédio sexual que sofreu na adolescência, ajudaram<br />
a moldar seu estilo visceral. E, conforme adiantou a<br />
artista à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, estarão impressos nas composições do<br />
próximo álbum, o nono de sua carreira. “Eu acho que estou<br />
fazendo o disco mais importante da minha vida”, disse.<br />
As páginas de Guarde Este Nome apresentam Marcelino Melo,<br />
autor do projeto artístico Quebradinha. Morador do Campo<br />
Limpo, um dos bairros mais carentes de São Paulo, Marcelino<br />
chamou a atenção de museus e outras instituições culturais<br />
com suas esculturas que reproduzem casas da periferia.<br />
Nesta <strong>edição</strong>, a conversa Q&A <strong>Et</strong>c. é com a atleta Carolina<br />
Schrappe, recordista sul-americana em mergulho livre em<br />
apneia. Ela fala sobre os benefícios físicos e mentais e as lições<br />
que tira de suas incursões ao fundo do mar sem cilindro<br />
de oxigênio. Por fim, os brasileiros notáveis que a seção<br />
Gente com Bossa destaca a cada <strong>edição</strong> ganham a companhia<br />
de um gringo que se apaixonou pelo Brasil. Jack Nicas, jornalista<br />
americano que vive no Rio de Janeiro como correspondente<br />
do jornal The New York Times, conta em depoimento seu<br />
ponto de vista sobre hábitos e comportamentos característicos<br />
dos brasileiros.<br />
Foto: Alexander Grey/Unsplash<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 19<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 18
[Q&A ETC.]<br />
O abraço de Netuno<br />
Aos 48 anos e mãe de três filhos, a atleta Carolina Schrappe<br />
é recordista sul-americana em mergulho livre em apneia e<br />
uma das maiores especialistas da atividade no Brasil. Já chegou<br />
a 114 metros de profundidade em uma jornada de dois<br />
minutos e 45 segundos sem respirar. Entre uma competição<br />
e outra no Caribe, no Havaí e no Egito, usa seus conhecimentos<br />
do esporte e da fisioterapia para dar aulas de mergulho.<br />
À <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, Carolina fala sobre as técnicas, os desafios, os<br />
perigos e os benefícios físicos e mentais de encarar o fundo<br />
do mar sem cilindro de oxigênio.<br />
Como você se tornou uma atleta de mergulho livre<br />
em apneia?<br />
Desde criança sempre fui incentivada pela família a praticar<br />
esportes. Eu me formei em fisioterapia e, por muitos anos,<br />
atuei na área, principalmente com reabilitação de atletas e<br />
com respiração mecânica em UTIs. Em 1999, em Fernando<br />
de Noronha, pratiquei mergulho com tanque de oxigênio pela<br />
primeira vez, me apaixonei e não parei mais. Aos poucos, fui<br />
me interessando mais pelo mergulho livre em apneia. A ideia<br />
de superar desafios e limites me atraiu muito. Hoje, dou au-<br />
Foto: Pedro Paulo Cunha<br />
las nessa modalidade e participo desde 2007 de competições<br />
ao redor do mundo. Tenho 15 recordes sul-americanos e sou<br />
uma das três melhores do mundo na categoria de mergulho<br />
livre com lastro variável, quando o atleta desce com o cinto-<br />
-lastro ligado ao cabo e, na hora de voltar, deixa o lastro e<br />
nada até a superfície sem pesos.<br />
O que você ensina nas suas aulas?<br />
No mergulho livre, dependemos somente do nosso corpo. Por<br />
isso, as primeiras aulas são teóricas, de como o organismo<br />
funciona. Depois, vêm os treinos práticos. No seco, na piscina<br />
e, por fim, no mar. É preciso treinar a respiração, aprender a<br />
segurar o fôlego. A primeira barreira nesse quesito, aliás, é<br />
mental. Depois de 30 segundos, as pessoas acham que vão<br />
morrer e se desesperam, mas o corpo de alguém sem treinamento<br />
algum já aguenta um minuto e meio. Outro ponto<br />
crucial é adaptar o organismo para o mergulho profundo e<br />
trabalhar a equalização, que é saber, aos poucos, como equalizar<br />
a pressão dentro do organismo conforme a profundidade<br />
muda. Quando você mergulha, o pulmão se comprime, ficando<br />
até 9% do tamanho original. Sem cuidado, os tímpanos estouram<br />
e o pulmão sofre lesões graves.<br />
Como um atleta se prepara para o<br />
mergulho livre em apneia?<br />
Além de aprender as técnicas de respiração<br />
e equalização e de conhecer<br />
todos os protocolos de segurança, um<br />
bom preparo físico conta muito. É preciso<br />
muita força na primeira etapa da<br />
descida, antes de a pressão do mar gerar<br />
a “queda livre” e nos empurrar para<br />
o fundo. A volta é ainda mais difícil,<br />
precisa de muito esforço para superar<br />
todo o peso do oceano sobre você.<br />
Então, musculação e aeróbico são muito<br />
importantes. Fazer alongamentos e<br />
melhorar a elasticidade da caixa torácica<br />
também. Costumo treinar por seis<br />
meses antes de cada competição.<br />
E a mente é um fator decisivo para<br />
um mergulho de sucesso?<br />
Com certeza. A meditação é parte essencial<br />
do treinamento. A gente precisa<br />
controlar o organismo através da<br />
mente. O mergulho em apneia requer<br />
muito autoconhecimento, para entender<br />
o que está acontecendo no corpo<br />
durante o mergulho, e autocontrole,<br />
para superar momentos adversos e se<br />
manter seguro. E o mergulho precisa<br />
ser prazeroso. Não dá para mergulhar<br />
se você está tenso e preocupado porque<br />
a ansiedade altera a respiração e<br />
os batimentos cardíacos e prejudica o<br />
desempenho. É preciso meditar e se<br />
concentrar muito. Virar uma chavinha,<br />
deixar tudo do lado de fora e se concentrar<br />
100% no ato do mergulho.<br />
Então, apesar do esforço físico e da<br />
falta de oxigênio, o mergulho livre<br />
no fundo do mar é um momento<br />
de paz?<br />
Sim, a gente chama de “abraço de Netuno”.<br />
É um silêncio absoluto que só é<br />
interrompido pelo canto das baleias.<br />
Estar naquele momento de paz é até<br />
perigoso se você não estiver também<br />
concentrado, checando tempo e<br />
profundidade. Porque você não sente<br />
vontade de respirar e vai querendo<br />
descer mais e mais, quer continuar<br />
ali para sempre. Quando vê, vai demorar<br />
muito para voltar, e é aí que os<br />
acidentes acontecem.<br />
Por que atletas bem preparados<br />
acabam sofrendo acidentes fatais,<br />
como aconteceu com a russa<br />
Natalia Molchanova (1962-2015),<br />
23 vezes campeã do mundo?<br />
Ela sempre foi minha grande inspiração.<br />
Era mãe e bateu recorde mundial<br />
aos 53 anos. Mas até as pessoas mais<br />
brilhantes podem vacilar. Eu digo que<br />
os acidentes fatais acontecem, geralmente,<br />
com os pouco experientes e<br />
com os muito experientes. Com estes,<br />
o excesso de confiança pode causar um<br />
erro de cálculo na hora de encarar um<br />
desafio. Tudo é muito calculado, você<br />
precisa entender os riscos e saber até<br />
onde pode ir e quando voltar. Se não tiver<br />
autocontrole quando acontece um<br />
problema, se desespera e piora tudo. A<br />
gente precisa economizar cada molécula<br />
de oxigênio.<br />
Você já chegou perto de morrer ou<br />
de ter um acidente grave em um<br />
dos seus mergulhos?<br />
Tive cinco blecautes na minha carreira,<br />
que é quando o corpo apaga. É o cérebro<br />
desligando tudo para te proteger de<br />
causar danos irreversíveis ao corpo. Já<br />
apaguei por cinco segundos e também<br />
já fiquei 40 segundos apagada, quando<br />
tiveram que fazer respiração boca<br />
a boca, mas voltei bem e nunca fiquei<br />
com sequelas.<br />
Como você lida com esse risco<br />
inerente à prática desse esporte?<br />
Eu nunca penso sobre morrer porque<br />
não mergulho com medo, e me preparo<br />
para todas as situações em que<br />
algo pode sair errado. Se estou ansiosa,<br />
não mergulho. Respeito o mar<br />
e calculo os riscos. Não faço nenhum<br />
mergulho sem conhecer o local, checar<br />
a segurança e o aparato hospitalar ao<br />
redor e se não confio na equipe que vai<br />
me acompanhar.<br />
E o que sua família acha da sua<br />
carreira esportiva?<br />
Meu pai diz que sou meio maluca, mas<br />
ele também ama esportes radicais.<br />
Meus três filhos encaram muito bem<br />
e sempre me apoiaram muito. Eles ficam<br />
um pouco preocupados, claro, mas<br />
me incentivam, sabem que me preparo<br />
muito e que vai ficar tudo bem.<br />
O que a prática do mergulho livre<br />
pode ensinar às pessoas?<br />
A gente vai mudando ao longo da vida.<br />
Na juventude, temos o corpo forte e a<br />
mente fraca. Somos muito ansiosos.<br />
Depois, conforme o tempo passa, a<br />
mente precisa ficar mais forte. Esse<br />
esporte ajuda as pessoas justamente<br />
nessa parte mental: a ganhar mais<br />
consciência, autoconhecimento e autocontrole.<br />
Ele te ensina a se concentrar,<br />
a manter o foco, a fazer o corpo<br />
chegar aonde a mente quer chegar, e<br />
não deixar ele te controlar. Esse controle<br />
mental te ensina a reagir às situações<br />
no trabalho, na vida em família,<br />
no dia a dia.<br />
Entrevista concedida a Guilherme Dearo<br />
Foto: Pedro Paulo Cunha<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 21<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 20
[COM A PALAVRA…]<br />
“Adoro bares pé-sujo”<br />
Antes de assumir o posto de correspondente-chefe do The New York Times na<br />
América do Sul, em janeiro de 2022, o jornalista Jack Nicas morava no Vale do Silício.<br />
Embora vivesse na meca tecnológica, ele queria mesmo era escrever sobre assuntos<br />
mais analógicos. Como já dominava o espanhol, não hesitou em se candidatar à vaga<br />
de correspondente no Brasil. Em depoimento à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, ele conta <strong>–</strong> com sotaque,<br />
mas fluentemente <strong>–</strong> que ralou para aprender português. Fã de Luiz Gonzaga e<br />
torcedor do Vasco, Nicas se apaixonou pelo país, mas ainda não entendeu alguns de<br />
nossos comportamentos peculiares.<br />
Foto: María Magdalena Arrélaga/The New York Times<br />
“Eu sempre quis morar na América<br />
Latina. É uma região com muitas histórias,<br />
muita cultura. Em 2021, um dos<br />
meus chefes no The New York Times me<br />
avisou que seria aberta uma vaga no<br />
Brasil. O idioma português era uma<br />
barreira, mas eu já sabia espanhol<br />
porque morei na Espanha e passei<br />
alguns meses trabalhando no México.<br />
Quando fiquei sabendo da vaga, já<br />
comecei a estudar português. São<br />
idiomas parecidos, mas com sonoridades<br />
e ritmos muito diferentes.<br />
Cheguei ao Rio de Janeiro para um<br />
período de testes sob a supervisão do<br />
correspondente anterior, o Ernesto<br />
Londoño. Foram dois meses muito<br />
intensos, mas consegui emplacar<br />
quatro grandes reportagens no jornal e<br />
fui aprovado.<br />
O trabalho de jornalista em um país<br />
enorme como o Brasil significa viajar<br />
muito. Para mim, é muito importante<br />
sair de casa, conversar com as pessoas<br />
e tentar entender o país. Adoro fazer<br />
reportagens em outros lugares, ver e<br />
conhecer coisas diferentes. Creio que<br />
já visitei mais estados do que a maioria<br />
dos brasileiros, e já viajei muito para<br />
países vizinhos, pois também cubro<br />
Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile.<br />
Nesse sentido, minha rotina é bem<br />
aleatória, como os brasileiros gostam<br />
de dizer. Posso trabalhar por três<br />
semanas seguidas na minha casa,<br />
na Lagoa Rodrigo de Freitas, mas, se<br />
aparecer alguma história urgente em<br />
outro estado, tenho que parar tudo e<br />
me deslocar para lá. Quando a rotina<br />
está mais previsível, consigo passear<br />
de bicicleta, fazer escalada e jogar vôlei<br />
de praia, atividades que descobri aqui<br />
no Rio de Janeiro e que adoro. E, logo no<br />
começo da minha temporada no Brasil,<br />
me apaixonei pelo Vasco da Gama. Na<br />
verdade, gosto de sofrer, tenho um<br />
lado bem melancólico, então o Vasco<br />
deu match. Ia ser muito confortável<br />
torcer para o Flamengo, que ganha<br />
tudo. Fui a um jogo Flamengo X Vasco<br />
e o Vasco perdeu, lógico, mas a torcida<br />
deles me encantou. Mesmo em número<br />
muito menor, eles conseguiam se fazer<br />
presentes. Depois, para completar<br />
minha atração, fiquei sabendo que o<br />
Vasco foi um dos primeiros clubes do<br />
Brasil a aceitar jogadores negros em<br />
seu time. O estádio deles é muito raiz,<br />
antigo, pequeno, mas muito confortável,<br />
tem personalidade.<br />
Uma das coisas de que mais gosto no<br />
Brasil é a informalidade. No Carnaval,<br />
isso fica ainda mais claro, mas é a<br />
informalidade do dia a dia que me atrai,<br />
a maneira como as pessoas chamam<br />
os garçons: “capitão”, “padrinho”,<br />
“chefia”. Tem também as brincadeiras<br />
que desconhecidos fazem uns com<br />
os outros nas barracas de praia, nas<br />
ruas. Na Argentina, se eu falo que sou<br />
jornalista do NYT, as pessoas desconfiam,<br />
pedem para mostrar minha credencial,<br />
essas coisas. Aqui no Brasil,<br />
as pessoas contam sua vida inteira,<br />
não se importam, gostam de se abrir<br />
com estranhos.<br />
Durante o período de testes, fiz uma<br />
reportagem sobre os botecos pé-sujo<br />
do Rio [intitulada Samba, Cachaça and<br />
Pickled Eggs: ‘Dirty Feet’ Bars Are<br />
Essence of Rio], a volta dessa cultura<br />
de rua depois da pandemia. Eu adoro<br />
os bares pé-sujo, são o templo da informalidade.<br />
É possível bater papo com<br />
desconhecidos, tomar cerveja e comer<br />
ovos coloridos em mesas e cadeiras<br />
nas calçadas. Se der sorte, dá até para<br />
curtir uma boa roda de samba.<br />
O outro lado dessa informalidade é a<br />
burocracia. Às vezes, para falar com<br />
alguma pessoa importante, é preciso<br />
passar por uma série de assistentes<br />
antes, e cada um deles dá uma<br />
informação diferente. E tem um tipo<br />
de comportamento que eu ainda não<br />
entendi direito aqui no Brasil, que é a<br />
forma como as pessoas respondem<br />
algumas perguntas aceitando algo,<br />
mas não confirmando. Não é uma<br />
mentira, é mais um jeito de nunca<br />
dizer ‘não’. Por exemplo, eu convido<br />
alguém para um programa e a pessoa<br />
diz: ‘Ah, sim, vamos tentar’. Isso significa<br />
um ‘não’. Demorei a entender<br />
esse comportamento e fiquei decepcionado<br />
muitas vezes. Convidei pessoas<br />
para festas e elas me responderam<br />
dessa maneira vaga; não negaram, mas<br />
também não apareceram.<br />
Muitos aqui me chamam de gringo,<br />
mas não me incomodo. Os brasileiros<br />
chamam até os vizinhos argentinos<br />
de gringos. De vez em quando, ser<br />
estrangeiro possibilita algumas situações<br />
confortáveis, as pessoas<br />
são mais atenciosas comigo. Quando<br />
estou apurando alguma história,<br />
me aproveito disso, vira uma ferramenta<br />
de trabalho. Muitas vezes entro<br />
mesmo no personagem ‘gringo bobo’<br />
para que conversem comigo, me expliquem<br />
tudo o que quero saber.<br />
Outra coisa que facilita meu trabalho<br />
aqui é a minha aparência. Tenho cabelos<br />
pretos e não sou particularmente<br />
alto. Não tenho cara de gringo,<br />
na opinião dos brasileiros. Muitos até<br />
ficam confusos quando escutam meu<br />
sotaque. Isso é ótimo para passar<br />
despercebido, pois, no meu trabalho,<br />
principalmente quando estou investigando<br />
algo, não quero me destacar.<br />
Quando estou no meio de garimpeiros<br />
da Amazônia, por exemplo, não quero<br />
chamar a atenção por ser estrangeiro,<br />
quero ser mais um. Recentemente,<br />
fiz meus primeiros trabalhos sem a<br />
ajuda de um intérprete e foi muito melhor.<br />
Conversar sem um tradutor cria<br />
uma conexão mais pessoal, e essa ligação<br />
facilita meu trabalho. Sinto que<br />
o país e as pessoas estão se abrindo<br />
para mim.<br />
Geralmente, os correspondentes do<br />
NYT ficam uns quatro ou cinco anos<br />
em seus postos de trabalho. É o tempo<br />
mínimo para os jornalistas se ambientarem,<br />
aprenderem bem a língua local.<br />
Eu gostaria de ficar mais. Aliás, eu<br />
gostaria de morar um tempo no sertão.<br />
A viagem que fiz ao interior do<br />
Rio Grande do Norte foi muito marcante,<br />
especial mesmo. Os nordestinos<br />
que conheci lá são pessoas simples,<br />
mas muito sábias e receptivas.<br />
Eles não tinham muito, mas me receberam<br />
em suas casas e compartilharam<br />
tudo o que tinham, café, comida<br />
e suas histórias. Durante essa viagem,<br />
eu escutava muito as músicas do Luiz<br />
Gonzaga, que hoje eu adoro. Aprendi<br />
sobre baião, forró e outras músicas<br />
da região. Gostaria de explorar mais o<br />
sertão, conviver com aquelas pessoas<br />
e aprender mais com elas.”<br />
Entrevista concedida a Diego Braga Norte<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 23<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 22
[GUARDE ESTE NOME]<br />
Marcelino Melo:<br />
O artista que conta histórias da<br />
periferia por meio de esculturas<br />
Por Guilherme Dearo<br />
No final de 2008, aos 14 anos, Marcelino<br />
Melo deixou para trás a cidade de<br />
Carneiros, no sertão de Alagoas, rumo<br />
a São Paulo. Junto dos pais e seus dois<br />
irmãos, foi morar no bairro do Campo<br />
Limpo, bairro periférico da zona sul<br />
da cidade. Os primeiros anos na capital<br />
paulista e suas ruas hostis foram<br />
desafiadores. “Em Carneiros, eu ficava<br />
até tarde com meus amigos na rua.<br />
Chegando aqui, descobri a violência<br />
urbana. Eu me sentia vulnerável, sofria<br />
racismo e xenofobia na escola”, conta.<br />
Já na adolescência, Marcelino passava<br />
os dias entre estudo e trabalho, fazendo<br />
pequenos serviços na quebrada. Trabalhou<br />
entregando água e gás, como ajudante<br />
de pedreiro e em restaurantes,<br />
lava-jatos e oficinas mecânicas. “Eram<br />
todos bicos, acho que nunca passei mais<br />
do que seis meses neles. Aquela rotina<br />
me angustiava muito, era frustrante. O<br />
único trampo de que gostei um pouco<br />
mais foi o de pedreiro, porque tinha<br />
algo mais criativo, de trabalhar com as<br />
mãos. E dava mais dinheiro.”<br />
A consciência política nasceu no ensino<br />
fundamental, quando teve o primeiro<br />
contato com a cultura hip hop e passou<br />
a se interessar mais pela música e<br />
pela arte. Juntou dinheiro para comprar<br />
uma câmera e começou a carreira de<br />
fotógrafo. O interesse pelas artes visuais<br />
só aumentou. Em 2012, Marcelino e<br />
seu irmão Maxwell fundaram a produtora<br />
de audiovisual Fluxo Imagens, ou<br />
FXO, trabalhando com rappers, MCs e<br />
artistas aspirantes no Campo Limpo e<br />
Capão Redondo.<br />
Em 2015, logo após a morte do pai,<br />
comprou um drone que impulsionou a<br />
carreira. Começou a produzir as primeiras<br />
imagens aéreas da periferia da<br />
cidade, que fizeram sucesso no bairro<br />
e lhe renderam o apelido de “Menino<br />
do Drone”. “Eu não aguentava o fato<br />
de que só os pombos e o helicóptero<br />
Águia da PM podiam ver essas imagens<br />
tão belas de cima da quebrada”,<br />
diz. Alguns anos depois, o projeto com<br />
o drone alcançaria grande repercussão<br />
nas redes sociais: na pandemia da Covid-19,<br />
Marcelino decidiu acompanhar<br />
a evolução das novas covas abertas no<br />
Cemitério São Luiz, um dos maiores<br />
da América Latina e famoso por abrigar<br />
muitos jovens pretos assassinados.<br />
“Vistas de cima, as covas pareciam um<br />
código de barras. A pressa da morte, os<br />
corpos passando nessa esteira de mercado,<br />
como objetos numa indústria da<br />
morte. Foi muito pesado, começou a me<br />
fazer mal”, revela.<br />
Naquele momento, Marcelino já investia<br />
em um novo projeto artístico, que o<br />
levaria a conquistar muitos admiradores.<br />
Inspirado pelas imagens captadas<br />
pelo drone, que mostravam os milhares<br />
de pontinhos azuis (caixas-d’água)<br />
espalhados pelo cinza predominante<br />
(concreto, lajes, telhas de fibrocimento),<br />
criou uma escultura que reproduzia,<br />
em pequena escala, uma casa<br />
típica da periferia. Batizou a casinha,<br />
feita com materiais que achou na rua,<br />
como a tampinha de garrafa que virou<br />
caixa-d’água e o papelão transformado<br />
em telha, de Quebradinha 1. “Não tinha<br />
a pretensão de fazer uma série quando<br />
fiz a primeira escultura. Mas gostei,<br />
dei prosseguimento e logo vi que meu<br />
novo projeto tinha a missão de fazer<br />
um registro histórico da arquitetura da<br />
quebrada e de quem ali vive. As esculturas<br />
eram ferramentas para falar de<br />
memória, afetividade e representatividade”,<br />
diz. Em 2020, criou o projeto<br />
Quebradinha no Instagram. Rapidamente,<br />
as fotos das esculturas viralizaram,<br />
e ele ganhou centenas de milhares<br />
de seguidores.<br />
As esculturas de Marcelino não trazem<br />
representações de pessoas, mas os<br />
elementos arquitetônicos expressam<br />
marcas da presença e da vida humana.<br />
“Deixo para o público completar a<br />
obra, imaginar a história que aconteceu<br />
e acontece ali.” Ele gosta de frisar<br />
que o que faz é escultura, não maquete.<br />
“Maquete é de plástico, tudo é artificial.<br />
Além disso, ela não tem vida e história.<br />
É feita para vender apartamento. Nas<br />
minhas obras, eu mostro a vida humana”,<br />
explica.<br />
O sucesso da série não demorou a<br />
chamar a atenção de museus e outras<br />
instituições. As obras de Marcelino já<br />
passaram por Instituto Moreira Salles,<br />
Sesi, Sesc, CCSP, Museu da Cidade de<br />
São Paulo e Museu de Arte do Rio, entre<br />
outros. Em 2022, na SP-Arte, feira<br />
de arte que ocorre anualmente no Pavilhão<br />
da Bienal, vendeu todas as peças<br />
em exibição em quatro dias. “Estar na<br />
SP-Arte como artista preto e da periferia<br />
foi desafiador, e também engrandecedor<br />
porque é um espaço dominado<br />
por uma classe específica”, reflete.<br />
Hoje, ele mora sozinho no Campo Limpo<br />
e tem um ateliê em casa. Muitas vezes,<br />
começa a trabalhar tarde da noite<br />
e segue madrugada adentro, quando<br />
a rua é mais silenciosa. Leva cerca de<br />
quatro meses para produzir cada escultura,<br />
sempre utilizando, com exceção<br />
das tintas, materiais que encontra<br />
pelas ruas do bairro, como papelão, vidro,<br />
cobre, areia e cimento. A série de<br />
esculturas Quebradinha já conta com<br />
15 obras, e tem outras a caminho. Enquanto<br />
isso, o artista alagoano de 29<br />
anos também se dedica à série Pedreiros<br />
São Artistas, explorando materiais de<br />
construção e questões arquitetônicas.<br />
“Não vou agradecer pelas mazelas que<br />
sofri na minha vida, mas tudo o que<br />
me aconteceu me fez ser quem sou”,<br />
analisa. Hoje, além de se dedicar aos<br />
projetos artísticos, Marcelino também é<br />
arte-educador nas Fábricas de Cultura,<br />
programa do governo estadual que leva<br />
arte e cultura a áreas carentes.<br />
Para o futuro, Marcelino revela que planeja<br />
mesclar dois projetos, Quebradinha<br />
e fotos com drone, além de investigar<br />
mais questões de território e memória<br />
da Região Norte e dos povos amazônicos,<br />
com os quais tem tido contato em<br />
viagens recentes para o Acre.<br />
“Tem sido muito divertido participar de<br />
mais exposições e dar mais entrevistas.<br />
A parte mais legal é ir dar oficinas em<br />
escolas, trocar ideia. Recebo até cartas<br />
de alunos animados com meu trabalho”,<br />
diz. “E não tem preço ver seu trabalho<br />
reconhecido. Recentemente, uma amiga<br />
estava em um jantar com OSGEME-<br />
OS [os irmãos grafiteiros Gustavo e Otávio<br />
Pandolfo] e soube que eles já conheciam<br />
meu trabalho. O reconhecimento traz<br />
mais cobrança e mais responsabilidade,<br />
mas é incrível.”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 25<br />
Foto: Léo Britto<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 24
Nome: Vera Lúcia Holtz<br />
Idade: 71 anos<br />
Profissão: atriz e diretora de teatro<br />
Cidade onde nasceu: Tatuí/SP<br />
A estrela<br />
solar<br />
Por Simone Costa<br />
A atriz e diretora de teatro Vera Holtz irradia<br />
carisma e energia. Com mais de 40 peças de<br />
teatro, três dezenas de filmes e outras três de<br />
novelas no currículo, a paulista de Tatuí uniu<br />
intuição, estudos e talento para construir uma<br />
carreira de sucesso<br />
Monólogo Ficções, em 2022 | foto: divulgação<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 27<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 26
“Cresci<br />
convivendo com<br />
esse lugar de<br />
papéis, desenhos,<br />
pintura a óleo,<br />
cheiro de tinta.<br />
Isso influenciou<br />
muito a percepção<br />
da arte e o<br />
respeito pela<br />
criação”<br />
Medicina selvagem<br />
De volta à casa da família em Tatuí, a<br />
<strong>13</strong>0 quilômetros da capital paulista,<br />
Vera prestou vestibular para desenho<br />
e artes plásticas e entrou na primeira<br />
turma do curso na faculdade da cidade.<br />
Ela já tinha uma referência de artes<br />
visuais dentro da família. Tio Rolf era<br />
pintor de formação e produzia natureza-morta<br />
no ateliê que ficava no segundo<br />
andar de sua casa. Foi ele quem<br />
a ensinou a ser letrista, habilidade que<br />
lhe rendeu algum dinheiro na adolescência,<br />
quando produzia cartazes para<br />
bailes das cidades. “Cresci convivendo<br />
com esse lugar de papéis, desenhos,<br />
pintura a óleo, cheiro de tinta. Isso influenciou<br />
muito a percepção da arte e o<br />
respeito pela criação”, revela.<br />
A música também estava presente na<br />
infância em Tatuí. No térreo da casa do<br />
tio ficava o piano que Rita, esposa de<br />
Rolf e professora de canto no colégio,<br />
usava para ensinar as sobrinhas a tocar.<br />
O casal não tinha filhos, mas Vera<br />
e suas irmãs, Maria Teresa, Rosa Cristina<br />
e Regina Maria, estavam sempre<br />
por lá. Além de aprender com a tia, Vera<br />
teve aulas no conservatório de música<br />
da cidade.<br />
Durante a graduação na faculdade de<br />
artes plásticas, Vera começou a dar<br />
aulas de desenho em colégios de Piracicaba.<br />
Todos os dias, encarava 80 quilômetros<br />
de ida e outros 80 na volta do<br />
trabalho. Nesse período, matriculou-se<br />
em um curso de expressão corporal. Os<br />
professores eram bailarinos do Ballet<br />
Stagium, de São Paulo, e ali ouviu pela<br />
primeira vez que levava jeito para o teatro.<br />
“Até então, só tinha visto uma peça<br />
na vida, Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o<br />
Bicho Come, do Oduvaldo Vianna Filho<br />
[1936-1974], com a Myriam Muniz [1931-<br />
2004], no Teatro Anchieta, em São Paulo.<br />
Nunca tinha pensado em ser atriz.<br />
Mas aí decidi: vou tentar. Tudo que eu<br />
colocava na cabeça, eu fazia”, conta.<br />
Fotografia inspirada em obra do artista plástico Zemog no apartamento nos Jardins | foto: Renato Santoro<br />
Vera (à direita), com as irmãs Regina, Rosa e Teresa | foto: arquivo pessoal<br />
O<br />
s 32 degraus na fachada do Edifício Gazeta<br />
pareceram intransponíveis para a jovem Vera<br />
Lúcia. Ao deixar Tatuí rumo a São Paulo, estava<br />
decidida a cursar um pré-vestibular para tentar uma<br />
vaga na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da<br />
Universidade de São Paulo (USP). Mas desistiu dos<br />
planos momentos antes de atravessar a Avenida<br />
Paulista para chegar ao edifício número 900, onde<br />
faria a inscrição do curso. “Eu não estava pronta. A<br />
minha intuição é muito forte e costumo obedecê-la.<br />
Voltei para Tatuí”, relembra, cinco décadas depois.<br />
A intuição aguçada não decepcionou. A garota que<br />
congelou na avenida mais movimentada do país se<br />
tornou Vera Holtz, atriz que, aos 71 anos, já brindou<br />
o público com mais de 100 trabalhos no teatro, no<br />
cinema e na TV.<br />
Entram na contabilidade os recentes As Quatro<br />
Irmãs, documentário disponível em plataformas de<br />
streaming; Tia Virgínia, filme que lhe rendeu o Kikito<br />
de melhor atriz no Festival de Gramado, em agosto;<br />
e o monólogo Ficções, peça inspirada no best-seller<br />
Sapiens <strong>–</strong> Uma Breve História da Humanidade, de Yuval<br />
Noah Harari, em cartaz no Rio de Janeiro. Ela também<br />
é responsável pela supervisão artística do espetáculo<br />
Voz de Vó, escrito e dirigido por Sara Antunes, que<br />
estreou em São Paulo em setembro. “Minha agenda<br />
não costumava ser assim, mas nos últimos meses<br />
sinto como se estivesse surfando uma onda gigante<br />
em Nazaré [em Portugal]. Estou só esperando o<br />
rebote”, brinca. “Receber o Kikito, por exemplo, foi<br />
terrivelmente maravilhoso. Não crio expectativa com<br />
nada, mas me sinto motivada com o trabalho.”<br />
“Minha agenda não costumava ser assim, mas nos últimos<br />
meses sinto como se estivesse surfando uma onda gigante<br />
em Nazaré [em Portugal]”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 29<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 28
Estreia no teatro, com a peça “Rasga coração”, em 1979<br />
foto: arquivo pessoal<br />
Atraída pelo mar<br />
Em 1975, Vera viajou para um festival em Paty do Alferes,<br />
município fluminense que abriga o complexo cultural Aldeia<br />
de Arcozelo. Durante a estada em Paty do Alferes, decidiu<br />
visitar o Rio de Janeiro, a 120 quilômetros dali. Foi amor à<br />
primeira visita. “Eu sempre tive uma atração pela imensidão<br />
que o mar representa. Cheguei à Praia de Copacabana e disse:<br />
daqui a um ano, estarei morando aqui”, conta.<br />
Dito e feito. No ano seguinte, Vera começou a trabalhar como<br />
desenhista técnica numa empresa de engenharia no Rio, deixando<br />
incompleto o curso na Escola de Arte Dramática, em<br />
São Paulo. Sua função era produzir mapas de perfis geológicos<br />
para a obra da hidrelétrica de Itaipu. Quando chegou, seu<br />
único contato na capital fluminense era Leni, uma secretária<br />
que havia conhecido no festival de Arcozelo. A moça trabalhava<br />
na Federação de Albergues da Juventude e deixou Vera<br />
morar em um anexo no Catete, primeiro endereço da atriz na<br />
cidade. “Como se diz hoje, foi graças ao networking que consegui<br />
lugar para morar”, diz.<br />
A pausa nos estudos para se tornar atriz terminou em 1978,<br />
quando ela foi demitida da empresa de engenharia e voltou<br />
para a escola de teatro, desta vez na UniRio. No ano seguinte,<br />
sem experiência profissional de palco, fez um teste para Rasga<br />
Coração, de Oduvaldo Vianna Filho <strong>–</strong> o mesmo diretor da<br />
única peça a que ela havia assistido antes de decidir estudar<br />
teatro <strong>–</strong>, e passou, dando início à trajetória profissional como<br />
atriz.<br />
Os primeiros prêmios vieram na década de 1980. Em 1985,<br />
ganhou o Mambembe de melhor atriz de teatro infantil pela<br />
peça Astrofolia. Seis anos depois, recebeu o Shell de melhor<br />
atriz por Um Certo Hamlet. Foi nesse período que entrou para<br />
o mundo do cinema e da televisão. Em meados dos anos 1990,<br />
já somava três dezenas de peças no currículo, além de personagens<br />
em novelas como Que Rei Sou Eu? (1989) e Barriga<br />
de Aluguel (1990), e filmes como O Menino Maluquinho (1995).<br />
Em 1995, estreou a peça Pérola, espetáculo que foi visto por<br />
200 mil pessoas. “Esse texto do Mauro Rasi fez muito sucesso.<br />
Ficamos em cartaz por cinco anos”, destaca Vera, que recebeu<br />
quatro prêmios como melhor atriz pela atuação, entre<br />
eles, o Shell e o Sharp. “Enquanto tive motivação, foi maravilhoso<br />
fazer Pérola. Era um processo de paixão mesmo. Mas aí<br />
percebi que era hora de girar a chave novamente. Voltei a ter<br />
uma base em São Paulo e segui fazendo teatro esporadicamente.<br />
Entrava em cartaz um ou dois finais de semana. E fiz<br />
também muita televisão nesse período”, resume.<br />
Vera Holtz em A Próxima Vítima (1995) | foto: Arley Alves, Memória Globo<br />
Hora de voltar<br />
a São Paulo<br />
Em 1973, formada e de férias do trabalho<br />
como professora, a jovem de 21<br />
anos se inscreveu no concorridíssimo<br />
vestibular da Escola de Arte Dramática<br />
(EAD) da USP. Na pré-seleção, dos 200<br />
candidatos, só 40 seguiram na disputa.<br />
A fase seguinte envolvia uma semana<br />
de testes, finalizada com uma encenação<br />
diante de um grupo de jurados. Só<br />
20 foram selecionados. Entre eles, Vera<br />
Lúcia. “Minha vida no teatro, portanto,<br />
veio por meio dos estudos. Eu estava<br />
formada em artes plásticas, tinha uma<br />
base teórica e prática de música e foi<br />
com a cabeça dessa menina, com essas<br />
formações, que entrei para o teatro”, diz.<br />
A vida na capital ia além dos estudos.<br />
Habituada a trabalhar desde muito<br />
cedo <strong>–</strong> na adolescência, além de confeccionar<br />
cartazes, apresentava um<br />
programa na rádio de Tatuí e fazia decoração<br />
de festas no clube da cidade<br />
<strong>–</strong>, Vera voltou a dar aulas de desenho.<br />
A rotina era cansativa e, depois de um<br />
ano, ela conseguiu emprego como desenhista<br />
técnica no Instituto de Pesquisas<br />
de São Paulo. A vida como estudante<br />
e desenhista de mapas ainda<br />
era puxada, mas contava a favor o fato<br />
de o IPT ficar dentro da cidade universitária,<br />
onde ela frequentava as aulas<br />
noturnas da EAD.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 31<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 30
Foto: divulgação<br />
Nas graças do<br />
grande público<br />
Premiada no teatro, passou a ser reconhecida<br />
nas ruas por seus personagens<br />
na televisão. Entre tantas, já<br />
foi Quitéria “Quarta-Feira”, a alegre<br />
prostituta que dizia ser professora<br />
em A Próxima Vítima (1995); Ornela<br />
Sabatini, a mulher madura que prefere<br />
se relacionar, sem compromisso,<br />
com garotos de programa em Belíssima<br />
(2005); a platinada Violeta Áquila, vilã<br />
de Três Irmãs (2008); e Mãe Lucinda, a<br />
moradora do lixão que envolve toda a<br />
trama da novela Avenida Brasil (2012),<br />
sucesso de João Emanuel Carneiro. No<br />
remake de Saramandaia (20<strong>13</strong>), deu<br />
vida à icônica personagem interpretada<br />
por Wilza Carla na versão original,<br />
Dona Redonda, que explode no meio<br />
da praça.<br />
Uma de suas personagens mais marcantes<br />
está no ar na reprise vespertina<br />
exibida pela Rede Globo: a professora<br />
alcoólatra Santana, de Mulheres Apaixonadas<br />
(2003). Sobre personagens<br />
tão diversos, a atriz resume: “O ato<br />
de criação sempre esteve presente na<br />
minha vida. E repetir, repetir, repetir<br />
muito tempo uma obra, gravar, gravar,<br />
gravar torna a técnica espetacular. A<br />
gente vai aprendendo sobre a relação<br />
com a câmera e com o público”.<br />
Vera levou seu talento artístico também<br />
para fora de cena. Em 2010, estreou<br />
como diretora teatral, ao lado de<br />
Guilherme Leme, em O Estrangeiro, de<br />
Albert Camus e adaptação do dramaturgo<br />
dinamarquês Morten Kirkskov.<br />
E, em 2015, despontou como musa das<br />
redes sociais. “Foi mais uma curiosidade<br />
de ver o mundo. É uma leitura contemporânea.<br />
Você não precisa ser influenciado<br />
por isso, mas observe”, diz.<br />
Ela vivia um período sabático depois<br />
que um espetáculo teatral não vingou<br />
por falta de captação de recursos. Sem<br />
nenhuma pretensão, fez três fotos:<br />
uma de frente, outra de lado e a última<br />
de costas. A publicação no Instagram<br />
viralizou. “O ócio é criativo”, diz. Uma<br />
Como Mãe Lucinda, na novela Avenida Brasil (2012) | foto: João Cotta/Memória Globo<br />
reportagem chamou o perfil de “Vera<br />
Viral”, e as publicações ficaram ainda<br />
mais populares. “Depois de um tempo,<br />
eu parei. Fui fazer Ficções, e o teatro<br />
é a grande plataforma avassaladora.”<br />
“Vera Viral” está hibernando desde janeiro<br />
deste ano.<br />
Ficções estreou em setembro de 2022,<br />
no Rio de Janeiro, e já passou por várias<br />
cidades. Visto por quase 40 mil<br />
espectadores, o monólogo exigiu bastante<br />
preparo da atriz, que se desdobra<br />
em várias personagens citadas<br />
no livro e outras criadas pelo diretor<br />
Rodrigo Portella. Durante 80 minutos,<br />
ela canta, improvisa e interage com a<br />
única pessoa no palco, que é o músico<br />
Federico Puppi. “Fui superprotegida<br />
para fazer esse espetáculo. Um baita<br />
preparador, o Tony Rodrigues, me ajudava<br />
todo dia para entrar em cena. Até<br />
hoje ainda chego umas três horas antes.<br />
Faço aulas de corpo e voz”, conta.<br />
“É preciso entender o limite do corpo,<br />
mas também dar uma avançadinha.”<br />
“Todo o conhecimento, na minha vida, veio por<br />
meio do afeto, do amor e da unidade familiar.<br />
Por isso, sempre digo que é preciso acordar<br />
todo dia e perceber o outro”<br />
Reencontro com o passado<br />
Aos 71 anos, a atriz não levanta bandeiras em discussões sobre<br />
etarismo e chegada da terceira idade. Para ela, não passam<br />
de necessidade do Homo sapiens <strong>–</strong> numa referência ao<br />
espetáculo teatral Ficções <strong>–</strong> de catalogar tudo. “Os joelhos<br />
não funcionam, meu metabolismo está desacelerado, tenho<br />
questões de memória, a pele muda. Não tem como inventar a<br />
velhice, ela é real”, diz. “Não é a idade que nos limita, o que nos<br />
limita é o corpo. É só saber escutar o corpo”, completa.<br />
Uma parte importante de suas sete décadas de vida está na<br />
produção As Quatro Irmãs, mistura de documentário com ficção<br />
que teve sua estreia na Mostra Internacional de Cinema<br />
de São Paulo, em 2018, mas só agora foi oficialmente lançado.<br />
Sob direção de Evaldo Mocarzel, o filme tem a participação<br />
das três irmãs de Vera. Nenhuma era atriz, mas elas encararam<br />
o desafio proposto por Vera: contar a história do centenário<br />
casarão onde a família viveu em Tatuí. “A história de<br />
uma casa antiga é uma entidade, é necessário cuidar, uma<br />
vez que ela sobreviveu tanto tempo. Falei para minhas irmãs<br />
que elas seriam atrizes e me chamaram de louca. Você não<br />
imagina a farra que foi! O casarão virou do avesso”, conta. O<br />
período das gravações, que reuniu as quatro irmãs no casarão,<br />
trouxe à tona uma dinâmica bastante comum em muitas<br />
famílias brasileiras. Mal terminavam de preparar o almoço, as<br />
irmãs já começavam a discutir o que seria servido no jantar.<br />
“O Evaldo falava: ‘Não é possível, vocês não querem filmar, só<br />
querem comer’”, diverte-se.<br />
A atriz passou parte da infância, a adolescência e o começo<br />
da juventude no casarão, até se mudar para São Paulo. A<br />
casa antiga pertenceu aos avós paternos, de origem alemã. Já<br />
a mãe, Terezinha, descende de italianos que viviam em Pereiras,<br />
município ao norte de Tatuí que hoje conta com pouco<br />
mais de 8 mil habitantes. Filha mais nova de 14 irmãos, Terezinha<br />
não pôde frequentar a escola porque ficava em casa<br />
para cuidar do pai, cego. Em Pereiras, ela conheceu Zé Carlos,<br />
que estava na cidade como professor. “Eu sou a terceira filha<br />
e, no meu nascimento, por causa de complicações no parto<br />
anterior, meu pai levou minha mãe para Tatuí, que tinha mais<br />
recursos. Por isso, brinco que carrego um amor de corpo por<br />
Tatuí e de alma por Pereiras”, afirma.<br />
Junto com as lembranças das aulas de piano e dos bailes da<br />
adolescência em Tatuí, Vera guarda as recordações de Pereiras,<br />
onde passou a primeira infância. Brincadeiras à beira do<br />
rio, na companhia das lavadeiras, e esconde-esconde no meio<br />
do mar de palhas de arroz que o moinho despejava. “Foi uma<br />
infância muito especial.”<br />
Especial e populosa. Vera cresceu cercada de mais de 50<br />
primos, o que a ensinou bastante sobre a convivência com<br />
o outro. “Todo o conhecimento, na minha vida, veio por<br />
meio do afeto, do amor e da unidade familiar. Por isso,<br />
sempre digo que é preciso acordar todo dia e perceber o<br />
outro”, recomenda, e recorre à astrologia para explicar o<br />
olhar solar para a vida: “Sou Leão em Áries, sou otimista<br />
e vejo a vida como um sol. O sol na cabeça [cantarolando ao<br />
ritmo da música Trem Azul, de Lô Borges e Ronaldo Bastos].<br />
Eu trabalho utilizando essas características com as quais<br />
fui presenteada, vivendo cada dia com poesia, delicadeza e<br />
harmonia”, diz. O público agradece.<br />
Que conselho daria<br />
à jovem Vera?<br />
“Sossega, Vera Lúcia! Pode deixar<br />
que, no futuro, a Vera Holtz vai<br />
cuidar de você!”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 33<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 32
Nome: Alysson Renato Muotri<br />
Idade: 49 anos<br />
Profissão: cientista<br />
Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />
Os<br />
cérebros<br />
de Alysson<br />
Por Daniela Macedo<br />
Cientista, astronauta e surfista. O brasileiro<br />
Alysson Muotri cultiva minicérebros em<br />
laboratório para estudar o desenvolvimento<br />
neurológico, vai fazer experimentos na<br />
Estação Espacial Internacional e surfa<br />
nas horas vagas<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 35<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 34
Ciência em órbita<br />
Observar o funcionamento cerebral<br />
sempre foi um desafio. “Existem as<br />
tecnologias não invasivas, como ressonância<br />
magnética e eletroencefalograma,<br />
mas elas não chegam ao nível<br />
molecular. É possível estudar o cérebro<br />
post mortem, mas o órgão está morto,<br />
não dá pra fazer muita coisa. Ou você<br />
pode trabalhar com os modelos de<br />
animais, mas eu sempre bato na tecla<br />
de que o camundongo não é humano,<br />
né?”, explica Muotri. “O organoide aparece<br />
com um modelo que não é perfeito,<br />
mas que vem sendo melhorado para<br />
ficar cada vez mais próximo da realidade.”<br />
As técnicas desenvolvidas pela<br />
equipe do brasileiro na Califórnia são<br />
usadas por pesquisadores no mundo<br />
todo, inclusive no Brasil.<br />
Os estudos com minicérebros já resultaram<br />
em enormes avanços para<br />
a medicina, como o primeiro e único<br />
medicamento para tratar a síndrome<br />
de Rett, distúrbio do neurodesenvolvimento<br />
que já foi categorizado como<br />
autismo. Daybue, nome comercial da<br />
droga trofinetide, foi aprovado pela<br />
agência reguladora americana FDA em<br />
março deste ano. Outro exemplo foi a<br />
comprovação de que o zika vírus causa<br />
microcefalia em fetos. Em 2015, quando<br />
a epidemiologista Celina Turchi<br />
descobriu que as mães de bebês que<br />
nasciam com microcefalia haviam testado<br />
positivo para zika, Muotri correu<br />
para o laboratório para injetar o vírus<br />
em seus organoides. “A gente viu que<br />
o zika vírus mata a célula progenitora<br />
neural, que dá origem ao desenvolvimento<br />
de toda a camada do córtex,<br />
causando o efeito idêntico ao que acontece<br />
no cérebro dos bebês”, explica.<br />
Não havia sido possível comprovar a<br />
associação com camundongos, pois o<br />
tempo de gestação desse animal é de<br />
apenas 20 dias, e, sem o vírus ter tempo<br />
de agir, os ratinhos nasciam sem a<br />
anomalia. “Como o desenvolvimento do<br />
organoide cerebral é semelhante ao desenvolvimento<br />
intrauterino do cérebro<br />
de um bebê, a gente conseguiu capturar<br />
essa ação.”<br />
Por ser um dos pioneiros nessa pesquisa<br />
de ponta, Alysson Muotri foi escolhido<br />
para realizar experimentos com<br />
seus minicérebros na Estação Espacial<br />
Internacional (ISS). A viagem ainda<br />
não tem data definida, pois depende<br />
do calendário de missões da Nasa, mas<br />
deve acontecer em 2024 ou 2025. O<br />
primeiro cientista brasileiro no espaço<br />
embarca com dois objetivos: entender<br />
o envelhecimento cerebral acelerado<br />
dos astronautas, fenômeno que ainda<br />
levanta mais perguntas que respostas,<br />
e estudar algumas condições neurológicas.<br />
Mas por que estudar autismo e<br />
Alzheimer no espaço? Sabe-se que o<br />
cérebro de uma pessoa que passa um<br />
mês na microgravidade (gravidade<br />
zero) envelhece dez anos. Um detalhe:<br />
esse envelhecimento não ocorre no<br />
espaço, e sim no momento em que o<br />
astronauta volta à Terra, no curto período<br />
de uma semana. E o mesmo fenômeno<br />
acometeu os organoides que<br />
Muotri enviou à ISS em três ocasiões<br />
diferentes. Portanto, poucos dias depois<br />
de regressar ao nosso planeta, o<br />
cientista poderá observar o resultado<br />
a longo prazo dos experimentos realizados<br />
a 400 quilômetros da superfície<br />
terrestre. Um salto no tempo inimaginável<br />
em outras circunstâncias.<br />
Foto: Getty Images<br />
I<br />
magine um cientista que cultiva cérebros humanos funcionais para estudar<br />
autismo, Parkinson, Alzheimer e outras condições neurológicas. Parte de seu<br />
trabalho inclui descobrir se esses órgãos, cujas atividades elétricas movem robôs<br />
pelo laboratório, têm consciência e memória. Não satisfeito com os avanços<br />
em terra, o cientista viaja ao espaço para pesquisar os efeitos da gravidade zero no<br />
cérebro humano, levando uma porção deles na mala. Pode parecer ficção científica,<br />
mas essa é a rotina do brasileiro Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia<br />
em San Diego e diretor do Programa de Células-Tronco da UCS. Com inúmeras<br />
publicações em revistas e periódicos científicos de alto impacto, como Nature,<br />
Cell e Science, ele é um dos mais respeitados pesquisadores do autismo no mundo.<br />
Muotri começou a cultivar organoides cerebrais em laboratório há mais de uma<br />
década para tentar desvendar um dos maiores mistérios da ciência: o que torna o<br />
cérebro humano único? São tecidos neurais do tamanho de uma ervilha anatomicamente<br />
muito semelhantes ao principal órgão do nosso corpo. O minicérebro tem 2,5<br />
milhões de neurônios, ante 86 bilhões da versão original. Mas, apesar de suas limitações,<br />
ele é funcional, pois promove sinapses, redes neurais e atividades elétricas.<br />
Como é produzido a partir de célula humana, ele carrega o DNA de seu doador.<br />
Isso significa que células da pele de uma pessoa com Parkinson ou Alzheimer, por<br />
exemplo, originam minicérebros com essas características. E isso permite que, durante<br />
o período de amadurecimento do organoide, os cientistas estudem como as<br />
doenças neurológicas se desenvolvem no cérebro. No laboratório de Muotri estão<br />
milhares de organoides derivados de pessoas com autismo, principal área de pesquisa<br />
do brasileiro.<br />
Organoide | foto: arquivo pessoal<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 37<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 36
Mão na massa<br />
Como grande parte dos cientistas, Muotri nasceu com a curiosidade aguçada. Desmontava<br />
e remontava seus brinquedos para descobrir como funcionavam por dentro.<br />
Logo percebeu que, juntando peças e componentes eletrônicos de meia dúzia de<br />
brinquedos, poderia criar seus próprios robôs. Na adolescência, a leitura era uma<br />
atividade constante. E foi nessa fase que começaram a surgir as questões filosóficas.<br />
Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? “Eu achava que a resposta<br />
estaria no conhecimento do cérebro. E para saber como o cérebro funciona eu teria<br />
que desmontá-lo e montá-lo.” Daí para o interesse pela neurociência foi um pulo.<br />
Concluiu a graduação em biologia na Universidade Estadual de Campinas e seguiu<br />
para o doutorado em biologia genética na Universidade de São Paulo. Estudava cérebros<br />
de camundongos, mas queria mesmo era “desmontar” o cérebro humano.<br />
Enquanto seguia com as pesquisas em animais no Brasil, Muotri tentava um pós-<br />
-doutoramento com Fred Gage, geneticista do prestigiado Instituto Salk, em San<br />
Diego, na Califórnia. Mandava e-mails para a instituição, só que a resposta nunca<br />
vinha. O doutorado sanduíche na USP incluía um período de pesquisas em Harvard,<br />
e o pesquisador brasileiro ganhou uma conta de e-mail da universidade americana.<br />
Era agora ou nunca.<br />
A grife Ivy League não só resultou em resposta como garantiu um convite para<br />
conhecer o Instituto Salk. Bingo! Um ano depois, ele embarcou de mala e cuia para<br />
a Califórnia graças ao programa Pew, que concede dez concorridíssimas bolsas por<br />
ano a candidatos de toda a América Latina. No entanto, assim que Muotri manifestou<br />
desejo de reconstruir o cérebro humano em laboratório, veio o balde de água fria<br />
do orientador. “Ele falou que tinha uma boa e uma má notícia. A boa era que se tratava<br />
de um projeto inovador. Ninguém nunca tinha feito, e era exatamente o que ele<br />
achava que tinha que ser feito.” A má notícia? Muotri teria que começar a trabalhar<br />
com cérebros de... camundongos. Naquela altura, início dos anos 2000, o governo<br />
americano proibia pesquisas com células-tronco embrionárias, mas um certo exterminador<br />
do futuro surgiria para enfrentar a decisão federal: eleito governador<br />
da Califórnia em 2003, Arnold Schwarzenegger autorizou o uso dessas células no<br />
estado, abrindo caminho para o cientista brasileiro se tornar um dos pioneiros na<br />
produção de neurônios a partir de células embrionárias.<br />
“Eu achava que a<br />
resposta estaria<br />
no conhecimento<br />
do cérebro. E para<br />
saber como o<br />
cérebro funciona<br />
eu teria que<br />
desmontá-lo e<br />
montá-lo”<br />
Foto: Andrea Coimbra e o filho Ivan | foto: arquivo pessoal<br />
Neurônios humanos | foto: arquivo pessoal<br />
Minicérebros autistas<br />
Por que, ao contrário das outras espécies,<br />
somos capazes de criar obras de<br />
arte, desenvolver avançadas tecnologias,<br />
compreender as leis que regem<br />
o Universo? Entender o processo de<br />
aprendizagem levou o cientista a estudar<br />
o transtorno do espectro do autismo<br />
(TEA). Mas, mais uma vez, ele<br />
esbarrava na falta de modelos de pesquisa.<br />
Como “desmontar e montar”<br />
um cérebro autista para entender o<br />
neurodesenvolvimento nas pessoas do<br />
espectro?<br />
A revolução veio em 2006, quando o<br />
cientista japonês Shynia Yamanaka<br />
apresentou a técnica de reprogramação<br />
celular, que transforma qualquer célula<br />
do corpo em célula-tronco pluripotente<br />
induzida, espécie de curinga que pode<br />
virar qualquer tecido humano. Assim<br />
que soube da descoberta, Muotri teve a<br />
ideia de produzir minicérebros a partir<br />
de células de pessoas autistas. “A gente<br />
observou que o neurônio derivado de<br />
pessoas com autismo tinha diferenças<br />
morfológicas, diferenças de sinapses e<br />
diferenças funcionais que explicavam<br />
as alterações do comportamento”,<br />
conta.<br />
Com a curiosidade no DNA, a equipe de<br />
Muotri levantou uma importante pergunta:<br />
essas alterações são permanentes<br />
ou reversíveis? A resposta surpreendeu.<br />
“A gente mostrou que elas são<br />
reversíveis, que a condição autista, embora<br />
tenha um caráter genético, não é<br />
determinista. Conseguimos reverter<br />
com terapia genética e farmacologicamente”,<br />
diz o cientista. Ou melhor,<br />
cientista e pai de autista. Em 2011, durante<br />
uma palestra sobre TEA, Muotri<br />
conheceu a modelo Andrea Coimbra,<br />
mãe de Ivan, diagnosticado com autismo.<br />
Hoje, eles formam uma família,<br />
e a convivência e o amor pelo filho incorporaram<br />
ao interesse acadêmico o<br />
empenho para melhorar a qualidade de<br />
vida dos autistas. Há sete anos, Muotri<br />
fundou a Tismoo, empresa de biotecnologia<br />
dedicada à medicina personalizada<br />
para o autismo.<br />
A possibilidade de reversão do autismo<br />
divide opiniões. Pessoas com TEA que<br />
têm uma vida independente rejeitam o<br />
autismo como deficiência, defendem a<br />
neurodiversidade e, muitas vezes, criticam<br />
a busca da ciência pela cura. Por<br />
outro lado, o espectro inclui autistas<br />
severos, com comorbidades que necessitam<br />
de tratamento. Como o próprio<br />
Ivan. Com 17 anos, o filho de Muotri é<br />
autista não verbal, com atraso no desenvolvimento<br />
e convulsões recorrentes.<br />
“Não vejo problema em aceitar tanto o<br />
desejo de inclusão quanto a busca por<br />
tratamento. O maior problema é quando<br />
os extremos começam a brigar, e um<br />
grupo diz ‘Eu não quero a cura e ninguém<br />
tem que ter cura’”, diz o cientista.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 39<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 38
Novas sinapses<br />
Alysson Muotri já produziu organoides<br />
a partir da doação de muitas pessoas,<br />
com e sem distúrbios neurológicos,<br />
mas não há um único minicérebro com<br />
DNA de seu criador no laboratório.<br />
Aliás, por questão de segurança, de<br />
nenhum cientista dali. O material doado<br />
passa pela fase de célula-tronco na<br />
reprogramação celular, e esse tipo de<br />
célula representa risco para seu doador.<br />
“Se ela entrar na minha corrente<br />
sanguínea, o meu sistema imune não<br />
vai reconhecer, e aquilo pode virar um<br />
câncer”, resume.<br />
Embora não possa estudar o desenvolvimento<br />
do próprio cérebro, Muotri<br />
não perde a chance de formar novas<br />
sinapses. “Estou sempre buscando<br />
novos hobbies para estimular o cérebro”,<br />
diz. Foi assim que aprendeu a tocar<br />
saxofone, violão, guitarra, baixo e<br />
trompete, sem a pretensão de alcançar<br />
a perfeição. “Tem um pouco do desafio<br />
de passar pela curva de mediocridade.<br />
Quando eu sinto que sou melhor que a<br />
média, já quero aprender outra coisa.”<br />
O cientista brasileiro também exercita<br />
corpo e mente surfando. “Já tive vários<br />
insights no mar. É o contato com<br />
a natureza, o movimento da água, o<br />
barulho, o cheiro, aquilo tudo me dá<br />
um estímulo.” Assim como muitos executivos<br />
discutem negócios no campo<br />
de golfe, o mar é ponto de encontro de<br />
surfistas com Ph.D. em San Diego, por<br />
causa da concentração de universidades<br />
e centros de pesquisa na cidade.<br />
Entre uma onda e outra, eles trocam<br />
conhecimento sobre suas pesquisas, e<br />
“até colaborações já saíram dali”.<br />
“Estou sempre<br />
buscando<br />
novos hobbies<br />
para estimular<br />
o cérebro”<br />
Foto: Robô que se move por atividades elétricas dos minicérebros | foto: arquivo pessoal<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Consciência<br />
e aprendizagem<br />
Atualmente, as pesquisas com organoides<br />
enveredam por um tema espinhoso:<br />
se o minicérebro tem redes<br />
neurais, pode ter consciência? Aqui<br />
a história fica ainda mais parecida<br />
com ficção científica. “Durante uma<br />
cirurgia, a gente perde a consciência<br />
quando a anestesia entra em ação e<br />
as ondas neurais somem”, explica<br />
Muotri. Os pesquisadores resolveram<br />
anestesiar os organoides e... “aconteceu<br />
a mesma coisa. Entra a anestesia,<br />
as ondas neurais somem, a gente tira<br />
anestesia, as ondas neurais voltam. É<br />
um indício de que eles têm tudo para<br />
ter consciência”.<br />
Se a história ainda parece fictícia, vale<br />
uma informação adicional: a mesma<br />
técnica que permite o cultivo de organoides<br />
cerebrais é usada para estudar<br />
outros órgãos do corpo humano, como<br />
o pâncreas. Os minipâncreas não produziam<br />
insulina porque nunca atingiam<br />
um nível de amadurecimento<br />
necessário para isso. Até cinco anos<br />
atrás. Hoje, os minipâncreas cultivados<br />
em laboratório produzem insulina.<br />
No futuro, essas descobertas podem<br />
levantar questões éticas que impactem<br />
os estudos científicos. Afinal, se o<br />
uso de células embrionárias gera polêmica,<br />
imagine manipular cérebros<br />
conscientes.<br />
A equipe do brasileiro também investiga<br />
a capacidade de aprendizagem e<br />
memória dos minicérebros. Por meio<br />
de eletrodos, os cientistas usam as<br />
atividades elétricas dos organoides<br />
para movimentar robôs pelo laboratório.<br />
Quando detectam obstáculos<br />
no caminho, os robozinhos estimulam<br />
eletricamente o minicérebro, que responde<br />
alterando as redes neurais. Os<br />
cientistas usam essa resposta para<br />
mudar a direção do robô, como se estivessem<br />
“ensinando” os movimentos<br />
do robô ao minicérebro. “Os experimentos<br />
que a gente está fazendo agora<br />
são para saber se ele retém essa<br />
memória. E, aparentemente, ele faz<br />
isso”, revela. Entender a capacidade de<br />
aprendizagem do modelo de cérebro<br />
cultivado em laboratório pode ajudar<br />
a responder a algumas das perguntas<br />
que impulsionam Muotri. “Por que<br />
algumas pessoas levam mais tempo<br />
para aprender? E, se descobrirmos<br />
esse mecanismo, será que não vai ser<br />
possível fazer a gente aprender mais<br />
rápido?”, diz. Será?<br />
Que conselho daria<br />
ao jovem Alysson?<br />
“Preocupe-se menos<br />
com o que os outros<br />
vão pensar. Execute<br />
suas ideias, mesmo<br />
as mais arriscadas,<br />
sem pensar no que<br />
os colegas cientistas<br />
vão dizer”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 41<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 40
Nome: Ana Paula Hipólito Cañas<br />
Idade: 43 anos<br />
Profissão: cantora e compositora<br />
Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />
Das<br />
vísceras<br />
coração<br />
Por Maria Carolina Maia<br />
Ana Cañas vislumbra o abismo existencial<br />
de peito aberto e leva suas tragédias<br />
pessoais, como a perda do pai e do irmão,<br />
o alcoolismo e o suicídio de um amigo, para<br />
suas composições no nono disco da carreira<br />
Foto: Marcus Steinmeyer<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 43<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 42
“Há um abismo existencial quando a gente canta músicas<br />
que permitem que a gente solte os demônios”<br />
Abismos e demônios<br />
Ainda sem título, o novo álbum deve<br />
sair no ano que vem, depois de uma<br />
série de lançamentos dedicados à<br />
obra de Belchior. Ao todo, foram nove:<br />
cinco singles, dois EPs (extended<br />
plays) e dois álbuns, um de estúdio e<br />
outro ao vivo, gravado durante a turnê<br />
baseada na obra de um dos expoentes<br />
do chamado Pessoal do Ceará, grupo<br />
formado também por nomes como<br />
Fagner, Amelinha e Ednardo, sob a<br />
influência do filósofo Augusto Pontes.<br />
“Abri a caixa de Pandora. Era a única<br />
coisa que me restava fazer depois de<br />
cantar Belchior, porque não há como<br />
cantar Belchior sem ir ao fundo de<br />
si mesma”, diz a cantora, que teve no<br />
compositor de Sobral (CE) um esteio<br />
importante na pandemia, quando realizou<br />
lives cantando músicas como<br />
Coração Selvagem, A Palo Seco, Paralelas<br />
e Como Nossos Pais. Nas duas últimas,<br />
Ana encarou legados: as versões de<br />
Vanusa e Elis Regina, respectivamente,<br />
se tornaram clássicas. Mas<br />
conseguiu imprimir o próprio estilo<br />
enquanto honrava a herança. Basta<br />
ouvir, no YouTube ou no Spotify, para<br />
entender.<br />
“É muito difícil estar indiferente para<br />
Vanusa e Elis, né? Tem gente que até<br />
brinca comigo e diz que, na hora em<br />
que eu canto Como Nossos Pais, a Elis<br />
Regina está sentadinha bem na minha<br />
frente, olhando para a minha cara”,<br />
afirma. A companhia de gigantes a<br />
escoltou em mergulhos no despenhadeiro<br />
emocional aberto pelas canções.<br />
“Há um abismo existencial quando<br />
a gente canta músicas que permitem<br />
que a gente solte os demônios.<br />
As grandes intérpretes já saltaram<br />
nesse precipício. Percebi, então, que<br />
não estou apenas diante de Elis ou<br />
Vanusa, mas saltando no abismo de<br />
mãos dadas com elas.”<br />
Ana também tirou lições valiosas<br />
da experiência de se defrontar com<br />
esses ícones. Por um lado, reafirmou<br />
suas escolhas <strong>–</strong> éticas e estéticas <strong>–</strong> e<br />
pôde se enxergar melhor. E usou essa<br />
liberdade para criar a sua leitura de<br />
canções que não chegaram a ser eternizadas<br />
por outras intérpretes, como<br />
Coração Selvagem. Por outro, transcendeu<br />
certa competição que enxerga<br />
na música popular brasileira: as disputas<br />
entre fãs para definir quem é a<br />
maior cantora do Brasil, se Gal, se Elis,<br />
se Bethânia, “uma coisa meio louca”.<br />
Foto: reprodução Instagram<br />
Foto: Marcus Steinmeyer<br />
E<br />
liane Dias. Laura Neiva. Preta Ferreira. Maria da Penha. Carmen Silva. Nathalia<br />
Dill. Cacique Márcia Djeramirim. Zélia Duncan. Elza Soares. Rostos de mais<br />
de 80 mulheres desfilam pela tela no videoclipe da canção de versos fortes:<br />
“Diversão é um conceito diferente / Onde todas as partes envolvidas consentem /<br />
O silêncio é um grito de socorro escondido / Pela alma, pelo corpo / Pelo que nunca<br />
foi dito”. A maioria se expressa apenas pelo olhar. “Meu corpo, minha lei / Tô por aí,<br />
mas não tô à toa / Respeita, respeita / Respeita as mina, porra”.<br />
Quem dá voz a todas as mulheres é Ana Cañas, cantora e compositora paulistana<br />
de 43 anos, que levou duas décadas para pôr em letra e melodia os sentimentos<br />
pelo assédio sofrido no início da adolescência, dentro da própria família. Um assédio<br />
que, mantido em segredo, lhe custou um quadro de bulimia. “Por não ter contado<br />
para ninguém que eu havia sofrido um assédio, comecei a vomitar. Eu claramente<br />
precisava falar, mas não conseguia.” A música Respeita, diz ela, veio para quebrar<br />
o silêncio.<br />
Abordar de maneira aberta temas difíceis é um traço de Ana, que volta a se debruçar<br />
sobre a própria vida e seus percalços para compor o próximo álbum, o primeiro<br />
autoral em quatro anos. “Eu acho que estou fazendo o disco mais importante da<br />
minha vida. Entre os temas, estão meu pai, que perdi para o alcoolismo, meu irmão,<br />
que morreu jovem, por afogamento no mar, vários homens que passaram pela minha<br />
vida, amores vividos e amores não vividos”, conta Ana, em primeira mão, à<br />
revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 45<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 44
“Levei seis anos para me formar.<br />
Eu ia para a aula virada, às vezes<br />
saía do bar às 4, 5 da manhã e<br />
dormia na carteira”<br />
O caminho era cantar<br />
Ana rompeu com a mãe para seguir carreira artística, embora não soubesse<br />
ainda em qual arte se fixaria. Na escola, fez teatro com amigos, por<br />
iniciativa própria. Na faculdade, escolheu o curso de artes cênicas na Universidade<br />
de São Paulo <strong>–</strong> somou duas tentativas sem sucesso antes de<br />
conseguir entrar na USP.<br />
A música surgiu durante o curso na ECA (Escola de Comunicações e Artes).<br />
E se impôs. Mesmo com toda a determinação para entrar e concluir a<br />
faculdade, que em determinado momento passou a andar lado a lado com a<br />
vida noturna nos bares, Ana viu a atuação passar a segundo plano. “Levei<br />
seis anos para me formar. Eu ia para a aula virada, às vezes saía do bar às<br />
4, 5 da manhã e dormia na carteira. Os professores me diziam que o meu<br />
caminho era cantar.”<br />
O maior papel como atriz, interpretando a personagem Duda no filme Amores<br />
Urbanos (2016), veio quase uma década depois do lançamento do primeiro<br />
disco, Amor e Caos. De 2007, o álbum de estreia foi lançado por uma<br />
grande gravadora, a Sony BMG, porque Ana Cañas já havia se tornado um<br />
nome conhecido na cena musical <strong>–</strong> artistas como Chico Buarque eram vistos<br />
na plateia das apresentações de jazz da cantora no Baretto, piano-bar<br />
do hotel Fasano, mesmo lugar onde foi descoberta por um representante<br />
da multinacional.<br />
Ao lado de Chico Buarque | foto: reprodução Instagram<br />
A mãe de todas<br />
Ana passou por diversos bares e bicos até chegar ao luxuoso<br />
Baretto, ao disco de estreia e à trilha sonora da novela<br />
Viver a Vida (2009), da Globo, com a faixa Esconderijo, sem<br />
que tivesse feito qualquer plano para isso. Ao brigar com<br />
a mãe, uma bem-sucedida secretária-executiva temerosa<br />
pelo futuro da filha no meio artístico, a então estudante<br />
de 18 anos dividiu com ratos e baratas o quarto sem janelas<br />
de um pensionato que, ainda não sabia, era reduto de<br />
garotas de programa. A amizade veio seguida do convite<br />
para trabalhar com elas, que ganhavam dinheiro suficiente<br />
para garantir o futuro dos filhos, mas Ana preferiu fazer<br />
biscates variados, de distribuir panfletos na rua a se vestir<br />
de princesa para animar festas infantis.<br />
Enquanto amealhava seus trocados para pagar as contas,<br />
lidava com a doença do pai, que nos últimos anos de<br />
vida passou por nove internações, todas acompanhadas<br />
pela filha. Um amigo veio com uma possível solução para<br />
aumentar a renda mensal. “Você sabe cantar?”, ele quis<br />
saber. Um bar fazia testes para selecionar uma cantora de<br />
Em apresentação no Circo Voador, no Rio de Janeiro | foto: Cristiano Azevedo/reprodução Instagram<br />
verve jazzística. “Eu não tinha grana para nada”, lembra<br />
Ana, que respondeu: “Não sei. Mas, se aprender, vou poder<br />
comer”. O amigo então entregou a ela um disco de Billie<br />
Holiday. Ana deveria aprender as músicas para a audição.<br />
A identificação foi imediata. Com uma biografia dura, que<br />
incluiu abandono pelos pais, episódios de violência sexual,<br />
prostituição, álcool e heroína, a americana encontrou na<br />
música um meio de se expressar. E de sobreviver.<br />
Ana, que já havia passado por maus bocados e ainda<br />
viveria outros tantos, entendeu Billie Holiday no ato.<br />
“É a cantora mais faca na bota que conheço. Mais que a<br />
Édith Piaf, mais que a Elis, mais que a Janis Joplin, mais<br />
que a Nina Simone. A Billie é a mãe de todas”, diz. “Fez todo<br />
o sentido. Como diz o personagem de uma série que estou<br />
vendo para desopilar a cabeça [Manifest], às vezes a nossa<br />
dor nos leva exatamente aonde a gente tem que estar.<br />
A minha vida tem sido assim. A dor me levou até a música.”<br />
E a música chegou para ficar.<br />
Pelo amor e pela dor<br />
“Se tem uma dor que eu conheço, é a<br />
do suicídio de longo prazo por uma<br />
adição”, já declarou a cantora em entrevista.<br />
“Eu vi meu pai morrer de tanto<br />
beber.” Nos últimos anos de vida, o pai<br />
de Ana, um matemático e engenheiro<br />
que vestia sempre a mesma roupa<br />
e pouco se reconhecia no mundo, por<br />
vezes não tomava banho ou comia. À<br />
medida que perdia os dentes, se aproximava<br />
da morte.<br />
Aos 23 anos, a cantora teve de assinar<br />
a internação do pai alcoólatra em um<br />
hospital psiquiátrico público. A primeira<br />
de muitas. Ganhando a vida nos bares,<br />
não tinha como abrigá-lo e cuidar<br />
pessoalmente dele. Em 2019, em um<br />
texto delicado nas redes sociais, Ana<br />
fez um balanço de tudo. “Longe de ser<br />
um cara perfeito, meu pai me ensinou<br />
muito. Através do amor e também da<br />
dor. Nós sempre fomos muito ligados<br />
e ele sabia que eu também enxergava<br />
o mundo por um espectro diferente <strong>–</strong><br />
nossa conexão vinha desse lugar, além<br />
de nos parecermos muito fisicamente”,<br />
escreveu. “Nunca consegui entender<br />
se dependentes escolhem conscientemente<br />
esse caminho ou não possuem<br />
forças para superarem seus vícios.<br />
Eu estava sempre ao seu lado. Acompanhava<br />
as abstinências, as cirurgias,<br />
as crises, as melhoras e as recaídas.<br />
Desde muito pequena, aprendi a amar<br />
com todas as minhas forças aquele<br />
cara tão diferente, carismático mas<br />
autodestrutivo. Vida imensa e lôka. É<br />
doído demais amar alguém que se vai<br />
dessa forma.”<br />
O pai morreu em 2006, de cirrose,<br />
quando Ana e a mãe ainda não se falavam.<br />
O hiato no relacionamento durou<br />
dez anos. Uma tentativa de reaproximação,<br />
nesse intervalo, terminou em<br />
agressão física, com tapas e cabelos<br />
puxados. Flávio Rossi, artista plástico<br />
com quem Ana foi casada até 20<strong>13</strong>,<br />
estava junto e interveio, separando as<br />
duas. Mais um trauma para a cantora,<br />
que levaria anos para compreender melhor<br />
os pais e a si mesma, e reconstruir<br />
a sua relação com eles e com a vida.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 47<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 46
Amy Winehouse<br />
O texto das redes sociais foi escrito <strong>13</strong><br />
anos após o falecimento do pai, com a<br />
serenidade que o tempo traz. No dia<br />
seguinte à morte, porém, a realidade<br />
ainda era turbulenta. Ana Cañas,<br />
até então uma careta para os amigos,<br />
entrou em uma loja de conveniência,<br />
comprou um engradado de cerveja<br />
e bebeu inteirinho. Foi o início de um<br />
período em que chegou a ser chamada<br />
de Amy Winehouse brasileira. Entornando<br />
copos e garrafas “desenfreadamente”,<br />
nas próprias palavras, a cantora<br />
fazia show bêbada, caía no palco,<br />
virava notícia.<br />
Hoje, ela entende que essa foi a sua<br />
forma de viver o luto e sufocar uma<br />
culpa que não fazia sequer sentido, já<br />
que ela esteve sempre presente, em<br />
um processo de autossabotagem similar<br />
ao do pai autodestrutivo. Para sua<br />
sorte, outras pessoas já enxergavam<br />
isso à época.<br />
O cantor Ney Matogrosso, que ela encontrou<br />
em uma <strong>edição</strong> do programa<br />
Som Brasil dedicada a Cazuza, na Rede<br />
Globo, foi quem a resgatou. Depois do<br />
elogiado primeiro disco, Ana estava a<br />
caminho do segundo álbum, Hein?, lançado<br />
em 2009. Ao vê-la com uma garrafa<br />
de vinho embaixo do braço, Ney a<br />
chamou a um canto: “Ana, você é talentosa,<br />
tem um caminho bonito pela frente,<br />
tem certeza de que quer fazer isso?”<br />
A cantora voltou para casa aos prantos<br />
e parou de beber no dia seguinte.<br />
Outra intervenção feliz veio do músico<br />
e produtor Liminha. Em uma festa,<br />
Ana estava prestes a experimentar cocaína<br />
quando foi agarrada pela camiseta.<br />
Como numa cena de filme, Liminha<br />
a puxou para si e falou: “Você não<br />
vai fazer isso. Não na minha frente, eu<br />
não quero participar”. Ela até hoje é<br />
grata. “Foi um anjo”, diz.<br />
Espiritualizada, Ana passou a ver a relação<br />
com a bebida também como uma<br />
forma de se aproximar do pai, provando<br />
que o amava ao repetir seus erros.<br />
A reconciliação com a mãe veio antes<br />
dos 30, quando viu a ambas como dois<br />
espíritos antagônicos que precisavam<br />
se resolver. Uma questão cármica. “Um<br />
dia, eu não me sentia bem e, num impulso,<br />
peguei o telefone e liguei para<br />
a minha mãe. Ela começou a chorar.<br />
E assim nos reaproximamos”, conta<br />
Ana, que nos primeiros reencontros<br />
aproveitou para colocar para fora tudo<br />
o que sentia. “Eu vomitava todas as<br />
mágoas, era parte de um processo de<br />
cura. Depois, passei a ouvi-la também,<br />
e começamos a nos entender.” Hoje, a<br />
mãe é uma presença marcante em seus<br />
shows, onde costuma ser vista se desfazendo<br />
em lágrimas na primeira fila.<br />
Ana também encerrou um ciclo de<br />
mágoas pessoais ao perdoar o familiar<br />
que a assediou. Foi então que entendeu<br />
de modo concreto o significado<br />
de fazer as pazes. “Não estou querendo<br />
dizer que todos devemos perdoar<br />
as pessoas que nos assediam. Nada<br />
disso. Mas tenho uma espiritualidade<br />
que sempre me convidou a fazer isso.<br />
Quando esse familiar esteve muito doente,<br />
senti que era um chamado para<br />
resolver essa parada. Foi a coisa mais<br />
difícil que fiz na minha vida, mas me libertei.<br />
Essa mágoa era como uma bola<br />
de ferro que eu carregava comigo.”<br />
Ao lado do pai | foto: reprodução Instagram<br />
“Um dia, eu não<br />
me sentia bem<br />
e, num impulso,<br />
peguei o telefone<br />
e liguei para a<br />
minha mãe. Ela<br />
começou a chorar.<br />
E assim nos<br />
reaproximamos”<br />
Profunda e pop<br />
Ana Cañas e Ney Matogrosso | foto: Amanda Souza/reprodução Instagram<br />
As ausências do pai e do irmão, que<br />
desapareceu no mar, assim como a espiritualidade<br />
que leva consigo e o suicídio<br />
de um grande amigo, terão lugar<br />
no disco previsto para 2024. Visceral,<br />
Ana Cañas deve contemplar o abismo<br />
em cada faixa. Mas a ideia da cantora<br />
não é apenas elaborar essas dores para<br />
si e para os outros. Ela quer recuperar<br />
o lugar da canção capaz de ser profunda<br />
e pop ao mesmo tempo, de dar sentido<br />
à vida e de dialogar com diversos<br />
gêneros musicais ou artísticos.<br />
“A gente está em um momento de música<br />
nichada, por causa do streaming.<br />
Tem o trap, tem o funk, o sertanejo.<br />
E eu sou supereclética, adoro Marília<br />
Mendonça, por exemplo. Mas acho que<br />
está faltando algo que possa conversar<br />
tanto com Marisa Monte, como com<br />
Lulu Santos e Legião Urbana, para citar<br />
artistas que adoro e escuto”, revela<br />
a cantora. “Desde a Cássia Eller que a<br />
gente não vê esse trânsito e também<br />
essa pegada da música que, embora<br />
seja difícil de definir, nos ajuda a viver.<br />
A música que você coloca para ouvir<br />
quando acorda e vai para a cozinha<br />
preparar o café da manhã. É disso que<br />
estou sentindo falta: não da lista de<br />
mais tocados do Spotify, mas da música<br />
que nos ajuda a viver”, completa.<br />
A lógica de nicho, segundo Ana, se vê<br />
entre os próprios artistas. Como parte<br />
da pesquisa para o nono disco, ela tem<br />
circulado por shows diversos, de Natiruts<br />
a Joss Stone, passando por artistas<br />
menos conhecidos, e, conta, raramente<br />
vê um colega na plateia. “É verdade<br />
que os músicos viajam muito e, quando<br />
estão em casa, muitas vezes querem<br />
descansar, ver um filme ou fazer outra<br />
coisa. Mas é importante que a gente<br />
absorva o outro, até para saber melhor<br />
quem a gente é.”<br />
Ana se diz fã de Olivia Rodrigo, Shawn<br />
Mendes, Billie Eilish e Ed Sheeran<br />
(“Meu favorito”), artistas que, para ela,<br />
dão força à canção. “Estou abraçando<br />
essa ideia. O disco será sobre isso. Tomara<br />
que alcance o coração de quem<br />
ouve. Mas, se não for comigo, que seja<br />
com outro artista. A canção tem de<br />
continuar viva no mercado para tocar<br />
as pessoas.”<br />
Que conselho daria<br />
à jovem Ana?<br />
“Perdoe mais<br />
rápido. Pode parecer<br />
impossível, mas se<br />
esforce, porque essa<br />
vai ser a grande chave<br />
da sua vida”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 49
Nome: Francisco de Castro Mucci (Francisco Bosco)<br />
Idade: 46 anos<br />
Profissão: ensaísta<br />
Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />
Tudo<br />
em seu<br />
lugar<br />
Por Marco Aurélio Gois<br />
Em seus textos e palestras ou no Papo<br />
de Segunda, do GNT, a busca do ensaísta<br />
Francisco Bosco é pelo diálogo com clareza.<br />
Mas nem sempre foi assim: para se tornar o<br />
intelectual respeitado que é hoje, ele precisou<br />
passar por uma transformação profunda<br />
Foto: Uanderson Brittes<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 51<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 50
“Quando chego<br />
do trabalho /<br />
Digo a Deus:<br />
‘Muito obrigado!’<br />
/ Canto samba a<br />
noite inteira / No<br />
domingo e feriado<br />
/ Tudo está no seu<br />
lugar / Graças a<br />
Deus!”<br />
N<br />
o vídeo postado no Instagram em novembro de 2022, a pequena Madalena veste<br />
uma camisa da seleção brasileira e um tutu amarelo que quase cobre suas<br />
canelas. Escolha perfeita para a ocasião: é a estreia do Brasil na Copa do Qatar.<br />
A bailarina camisa 10 segura a mamadeira na boca e dança no melhor estilo que<br />
seus menos de 2 anos de idade permitem. A música é um samba animado, Tudo Está<br />
no Seu Lugar, de Benito Di Paula. “Quando chego do trabalho / Digo a Deus: ‘Muito<br />
obrigado!’ / Canto samba a noite inteira / No domingo e feriado / Tudo está no seu<br />
lugar / Graças a Deus!”<br />
De costas para a câmera, um homem grisalho, descalço, vestindo bermuda e uma<br />
camisa azul da seleção brasileira exibe um invejável samba no pé <strong>–</strong> naquele momento,<br />
o país festejava a vitória de 2 x 0 contra a Sérvia. Os passos são elaborados:<br />
ele requebra para um lado e para o outro, trança as pernas, rodopia sem sair do<br />
ritmo. Madalena observa e tenta imitar os movimentos do pai.<br />
O sujeito que samba com talento de mestre-sala é Francisco Bosco, um dos mais<br />
respeitados intelectuais brasileiros da atualidade. Doutor em teoria literária, ele se<br />
consolidou como ensaísta, colunista e pensador pop. Foi presidente da Fundação<br />
Nacional de Artes (Funarte), órgão ligado ao Ministério da Cultura, no último ano<br />
do governo Dilma, e desde 2018 integra o elenco do Papo de Segunda, programa de<br />
debates do canal GNT.<br />
Esse homem de interesses tão densos nem sempre foi leve assim. A virada veio<br />
no fim da adolescência. Foram dois anos de crise familiar que culminaram com<br />
um tiro. Nada estava no seu lugar. Desse turbilhão, nasceu o Francisco Bosco<br />
que conhecemos.<br />
Com a família ainda criança | foto: reprodução Facebook do João Bosco<br />
Carioca, mineiro,<br />
branco simbólico<br />
Foto: Uanderson Brittes<br />
No dia 22 de abril de 1975, aniversário<br />
do descobrimento do Brasil, o compositor<br />
João Bosco lançou seu segundo<br />
álbum, Caça à Raposa. São 12 faixas em<br />
parceria com Aldir Blanc. Muitos hits: O<br />
Mestre-Sala dos Mares, De Frente pro Crime,<br />
Kid Cavaquinho e Dois pra Lá, Dois pra<br />
Cá. Na retrospectiva de 1975, o jornal<br />
Folha de S.Paulo celebrou o disco como<br />
um dos melhores do período e chamou<br />
João Bosco de revelação do ano.<br />
Em 1976, mesmo ano do nascimento de<br />
Francisco, chegou às lojas Galos de Briga,<br />
outro sucesso da dupla Bosco/Blanc<br />
que viraria clássico da música brasileira.<br />
Alçado ao posto de um dos principais<br />
compositores de sua geração, João<br />
Bosco assinou bons contratos e ganhou<br />
dinheiro. “Cresci num apartamento<br />
de quatro quartos no Jardim Botânico,<br />
uma infância de classe média alta”, conta<br />
Francisco.<br />
Ele nasceu no dia 5 de outubro, dia de<br />
São Benedito, o santo negro. Os avós<br />
paternos são libaneses. A mãe, a artista<br />
plástica Ângela Bosco, tem antepassados<br />
alemães e portugueses. Francisco,<br />
que carrega essa mistura no DNA, se<br />
identifica como um “branco simbólico”<br />
(“Raça tem menos a ver com fenótipo e<br />
mais com a percepção das pessoas”, ele<br />
diz, e “branco simbólico” quer dizer que<br />
ele é “lido” como branco).<br />
Ele também se reconhece igualmente<br />
como carioca e mineiro. Foi uma infância<br />
dividida entre o Rio de Janeiro, Belo<br />
Horizonte e Ponte Nova, Zona da Mata<br />
mineira, onde moravam os avós, tios e<br />
primos.<br />
Ao falar da origem dos pais, Francisco<br />
os define como de “classe média”, mas<br />
com um qualificativo: “da província”.<br />
Eram de classe média naquele contexto<br />
de Ponte Nova em meados do século<br />
XX. No Rio de Janeiro, o casal enriqueceu,<br />
teve uma vida de classe média alta<br />
de metrópole, mas sem o capital social<br />
para circular na alta-sociedade. Em vez<br />
de conviver com a aristocracia carioca,<br />
Francisco frequentava com o pai as<br />
rodas de samba do Morro da Serrinha,<br />
berço da escola Império Serrano, e de<br />
Madureira, origem da Portela.<br />
A formação do intelectual passa por<br />
essa imersão constante na cultura popular:<br />
o samba e o futebol. Samba no pé<br />
ele tem até hoje. O esporte, ele diz, foi<br />
a grande experiência formativa da vida.<br />
Correu tanto atrás da bola que acabou<br />
se lesionando, e hoje só joga mesmo<br />
“com criança e velho”. Ou na cama.<br />
“Sonho muito que estou jogando, é meu<br />
único sonho recorrente.” Os campos<br />
de futebol, segundo ele, são os lugares<br />
onde foi mais feliz na vida.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 53<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 52
Metamorfose<br />
A lagarta já sai do ovo comendo, e passa os dias em constante movimento, devorando<br />
o que vê pela frente. Quando vai chegando a hora da transformação, ela fica<br />
mais lenta e para de comer, numa espécie de stand-by. Até que, um dia, se pendura<br />
de cabeça para baixo e tece em volta de si um casulo. Lá dentro, ela se dissolve, enquanto<br />
grupos de células especializadas que contêm toda a informação necessária<br />
para formar uma borboleta fazem seu trabalho. Ela emerge de dentro do casulo<br />
depois de algum tempo, ainda amarfanhada, mas uma novíssima criatura. Será que<br />
a borboleta se esquece de sua fase como lagarta?<br />
Quando Ângela Bosco ficou doente, Francisco entrou em stand-by. Dos 16 aos 18<br />
anos, ele conviveu com a mãe num quadro de depressão, e se tornou profundamente<br />
melancólico. Quando o pior parecia ter passado, o adolescente estava se divertindo<br />
com um grupo de amigos que entrou numa favela de madrugada, sem querer. Uma<br />
bala perdida o atingiu na perna, e Francisco passou seis meses sem poder andar.<br />
Dentro do casulo da imobilidade forçada associada à melancolia, a lagarta começou<br />
a mudar. “Foi um processo de ascese pessoal.” No contexto religioso e místico, a<br />
ascese consiste na renúncia aos prazeres da vida para o desenvolvimento espiritual.<br />
No contexto intelectual de Francisco, a ascese foi um mergulho profundo na leitura<br />
associado a um processo existencial de encontro consigo mesmo. Depois de seis<br />
meses, finalmente sentia-se ele mesmo, com identidade própria. “Saí desse processo<br />
como poeta.” Uma borboleta, sim. Mas ainda amarfanhada.<br />
“Saí desse processo como poeta”<br />
Assistindo ao jogo do Flamengo | foto: reprodução Instagram<br />
Eu negativo<br />
Fora dos campos, o menino nem era tão feliz, nem brilhava<br />
tanto. A mãe era empresária do pai, como é comum até hoje<br />
no mundo da MPB. Quando João viajava a trabalho, Ângela<br />
ia junto, e o menino se sentia sozinho. O amparo vinha de<br />
alguém com um nome muito adequado: a tia e madrinha<br />
Maria da Consolação, conhecida na família por São ou Sãozinha.<br />
Quando os pais viajavam, era São quem cuidava de<br />
Francisco e da irmã, Júlia. Funcionária pública aposentada<br />
de 79 anos, São mora até hoje em Belo Horizonte. Todos<br />
os anos, o afilhado leva os três filhos, Iolanda, Lourenço<br />
e Madalena, para visitá-la. Francisco quer que os filhos<br />
tenham com ela o mesmo vínculo que ele teve. Está funcionando.<br />
“Ela é uma dessas pessoas de índole tão bondosa que<br />
faz com que as crianças gostem dela imediatamente”, diz,<br />
com justificada parcialidade.<br />
Se a ausência dos pais era recorrente na infância, a adolescência<br />
foi marcada pelo que ele chama de um “eu negativo”.<br />
Francisco não conseguia ser ele mesmo, e tudo nele parecia<br />
determinado por forças exteriores: a personalidade do pai, da<br />
mãe, das pessoas que o cercavam. Ele nem guarda memórias<br />
desse período. “Devia ser muito doloroso, porque eu recalquei<br />
profundamente.” Amigos antigos recordam episódios da<br />
época, juram que ele participou, e ele não se lembra de nada.<br />
Francisco vivia uma vida que nem parecia a dele. Era, em<br />
suas palavras, um barquinho de papel num mar revolto. Até<br />
que vieram a crise e o tiro.<br />
Poeta precoce<br />
“Francisco Bosco sintetiza quase todos os defeitos de seus igualmente jovens colegas.<br />
É sentimental, verborrágico e enfileira chavões constrangedores.” Essa foi a pancada<br />
de Vinicius Torres Freire, então editor de Opinião da Folha de S.Paulo, publicada na<br />
extinta Revista da Folha em novembro de 1997. A crítica está num quadro em destaque<br />
dentro de uma reportagem dedicada a uma nova geração de poetas do fim dos anos<br />
1990. No fim do século passado, a evolução da tecnologia de impressão possibilitou o<br />
nascimento de várias pequenas editoras, que conseguiam publicar tiragens pequenas<br />
a custo baixo. Essa onda trouxe toda uma leva de aspirantes a poeta e escritor. Entre<br />
eles, Francisco Bosco.<br />
“Fiquei muito abalado, mas acabou sendo uma coisa boa”, ele diz, em referência à crítica<br />
de Torres Freire. Francisco tinha então dois livros de poesia já publicados, e mais<br />
um a caminho. Hoje ele acha que essa obra inicial deveria ter ficado na gaveta. “São<br />
livros ruins. Ingênuos.”<br />
O resto da reportagem, de autoria de Alexandra Ozorio de Almeida, é menos cruel,<br />
mas nota-se certo tom de chacota com o jovem filho de compositor popular. Neste trecho,<br />
por exemplo: “Francisco Bosco, que se formou em jornalismo, mas nunca trabalhou<br />
na área, assina as letras do próximo disco de seu pai”. A menção ao pai famoso é<br />
uma constante da qual ele não foge. Sabe o peso do nome. Ele diz que o Brasil tem um<br />
fetiche pelos filhos celebridades, um encantamento que se manifesta de duas formas<br />
opostas: de um lado, a tendência de dar visibilidade a filhos de pessoas famosas. Do<br />
outro, o impulso de castigar essas pessoas assim que a oportunidade surgir. “Quando<br />
eu entendi isso, percebi que não podia mais dar oportunidade.” Isso significa levar as<br />
atividades públicas muito a sério, e só publicar o que estiver maduro.<br />
Hoje, Francisco vê que entrou errado na esfera pública, tanto na poesia quanto na<br />
canção. “Mas, como eu tomei muita pancada e sou uma pessoa muito séria, comecei<br />
a estudar.” O poeta aposentou-se. O letrista não: continuou escrevendo para o pai nos<br />
discos seguintes, e hoje se orgulha do trabalho na música popular. Em novembro de<br />
2020, Abricó-de-Macaco ganhou o Grammy Latino de melhor canção em língua portuguesa.<br />
A música é de João Bosco. A letra, de Francisco.<br />
Com a família reunida | foto: reprodução Instagram<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 55<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 54
Reconstruções<br />
Depois de superar a fase lagarta, de<br />
se desconstruir totalmente e emergir<br />
como outra pessoa, Francisco Bosco<br />
parece ter aplicado esse padrão a tudo<br />
que faz. Numa entrevista à revista Trip<br />
de maio de 2018, é assim que ele fala do<br />
fim do primeiro casamento, com a roteirista<br />
Antonia Pellegrino: “É preciso<br />
zerar os afetos negativos que levaram<br />
ao fim da relação e, só depois disso, reconstruir<br />
a relação em novos termos”.<br />
No futebol, a última dimensão que o<br />
interessa é o de torcedor, embora seja<br />
flamenguista orgulhoso. Ele assiste a<br />
uma partida como quem lê um livro,<br />
tentando entender cada elemento, a<br />
dinâmica, a estrutura, a formação das<br />
equipes, as estratégias. Desconstrói,<br />
reconstrói com novo sentido.<br />
Em 2022, quando as eleições presidenciais<br />
dividiam o Brasil, Francisco<br />
olhava adiante. Publicou O Diálogo Possível,<br />
livro que propõe uma reconstrução<br />
da lagarta feia em que se tornou o<br />
debate público brasileiro. Tudo começa<br />
por uma virtude que ele considera fundamental<br />
para a vida democrática: a<br />
autocontenção. “É a obediência, o zelo,<br />
por regras não escritas de convívio.” No<br />
livro, ele dá um exemplo fácil de entender<br />
e se identificar: você vê uma vaga<br />
no estacionamento do shopping, para,<br />
dá seta para entrar. Vem outro motorista,<br />
enfia o carro na sua frente, ocupa<br />
a vaga. Não há nenhuma lei que o proíba<br />
de fazer isso. Mas faltou o respeito<br />
às regras não escritas, ao contrato social.<br />
Faltou autocontenção.<br />
O livro é denso, mas não é difícil. Francisco<br />
tem na clareza um gosto pessoal.<br />
Quando fez o mestrado em teoria literária<br />
na Universidade Federal do Rio<br />
de Janeiro (onde depois faria também o<br />
doutorado), sua dissertação abordou a<br />
obscuridade na literatura moderna.<br />
Francisco Bosco levou essa dedicação<br />
ao discurso claro para sua coluna<br />
do jornal O Globo, onde escrevia sobre<br />
cultura popular. Criou uma relação intensa<br />
com gente ligada a movimentos<br />
sociais do Rio. Foram essas pessoas<br />
que indicaram Francisco ao então ministro<br />
da Cultura, Juca Ferreira, que o<br />
convidou para reestruturar a Funarte,<br />
no início de 2015. Francisco se orgulha<br />
do trabalho, e lamenta sua brevidade:<br />
quando veio o impeachment da presidente<br />
Dilma Rousseff, em 2016, ele entregou<br />
o cargo.<br />
Ele é de esquerda, mas não se furta a<br />
apontar defeitos na bolha progressista.<br />
A função do intelectual público, ele<br />
defende, é de “lealdade incondicional<br />
à realidade, não a um grupo”. Foi com<br />
essa disposição que virou a figura mais<br />
pop possível: um debatedor de programa<br />
de televisão.<br />
“É preciso<br />
zerar os afetos<br />
negativos que<br />
levaram ao fim<br />
da relação e, só<br />
depois disso,<br />
reconstruir a<br />
relação em novos<br />
termos”<br />
Com João Vicente de Castro, Emicida e Fábio Porchat, ex-colegas do programa Papo de Segunda | foto: Camila Maia/divulgação GNT<br />
O ponto da discórdia<br />
Em 2017, Francisco Bosco estava para<br />
lançar um livro com um título pomposo:<br />
Nem Homem, Nem Cordial <strong>–</strong> Lutas<br />
Identitárias e um Novo Espaço Público<br />
no Brasil. O editor achou pretensioso.<br />
Depois de muito pensar, Francisco escolheu<br />
um título incandescente: A Vítima<br />
Tem Sempre Razão?. No auge do<br />
movimento #MeToo, de denúncias de<br />
assédio moral e sexual de homens poderosos<br />
contra mulheres, esse ponto<br />
de interrogação foi incendiário. “Teve<br />
um custo pessoal, mas também me deu<br />
muita visibilidade.”<br />
A polêmica rendeu, além de muita crítica<br />
e um debate sobre os limites da militância,<br />
o convite para integrar o Papo<br />
de Segunda, programa do canal GNT<br />
que passava por uma reformulação de<br />
elenco no começo de 2018. No programa<br />
em que os quatro apresentadores<br />
conversam sobre temas da atualidade,<br />
Francisco precisou aprender a equili-<br />
brar dois lados. Primeiro porque não<br />
se trata de um programa de conflitos.<br />
Segundo, ele precisava desempenhar o<br />
papel de intelectual público que, acredita,<br />
é arrogante por definição. “Aprendi<br />
a não ser protagonista, a competir<br />
em termos generosos.”<br />
A primeira competição não foi em termos<br />
tão generosos assim. Da formação<br />
antiga do Papo de Segunda <strong>–</strong> Marcelo<br />
Tas, Leo Jaime, Xico Sá e João Vicente<br />
de Castro <strong>–</strong>, só o último permaneceu<br />
depois da reformulação. Francisco<br />
e João Vicente se conheciam havia<br />
tempos, tinham muitos amigos em comum...<br />
e se detestavam.<br />
“João é um cara que faz muita graça<br />
com os outros”, diz Francisco. “Eu não<br />
tinha intimidade e não gostava das<br />
brincadeiras, o achava espaçoso.” O<br />
sentimento era correspondido. “Sabe<br />
aquela história de que dois bicudos não<br />
se beijam?”, comenta João Vicente. “Eu<br />
e Chico passamos algum tempo da vida<br />
amolando nossos bicos.” A chegada de<br />
Francisco foi marcada por essa tensão<br />
inicial entre os dois. Além de não se bicarem,<br />
Francisco diz que nunca foi fácil<br />
para João Vicente receber pessoas<br />
novas no programa. A antipatia mútua<br />
logo virou um amor rasgado. “Conheci<br />
outro João, que é o João quando ele<br />
gosta de você”, explica Francisco. “Ele<br />
é irresistível.”<br />
João Vicente descreve o processo como<br />
uma “desconstrução dos nossos bicos.”<br />
Hoje, ele tem Francisco como um irmão<br />
“com quem aprendo, fofoco e canto ao<br />
som de seu piano madrugada afora”.<br />
Francisco devolve o afeto usando uma<br />
imagem de seu universo mais querido,<br />
o futebol: “É uma pessoa que eu amo,<br />
que está na primeira fila da arquibancada<br />
do meu coração”.<br />
Pingue-pongue<br />
Francisco parece ter se habituado ao<br />
papel de pensador pop. Em outubro de<br />
2020, pouco antes da chegada de Madalena<br />
ao mundo, ele fez um tour do<br />
apartamento em que mora para o Casa<br />
GNT. O programa passeia pelo escritório<br />
onde o intelectual trabalha, mostra<br />
o violão de João Bosco e aquele que parece<br />
ser o xodó do ensaísta: a pequena<br />
mesa de pingue-pongue. No vídeo, ele<br />
nega a fama de competitivo. “Como eu<br />
ganho em quase tudo que faço, surgiu<br />
esse mito da competição”, diz, fingindo<br />
soberba, “mas é só um efeito colateral<br />
da superioridade técnica.”<br />
Conversar com Francisco é como jogar<br />
pingue-pongue. Às vezes, ele é muito<br />
direto. Como prefere ser apresentado?<br />
“Ensaísta”, rebate, prontamente. Noutras<br />
vezes, a bola é devolvida com efeito,<br />
de forma surpreendente, irrebatível.<br />
Francisco pega cada pergunta e a desmembra<br />
em várias partes, que remonta<br />
com clareza. Desconstrói, reconstrói.<br />
Recebe uma lagarta, devolve uma borboleta.<br />
Depois de hora e meia de boa conversa<br />
com a <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, Francisco precisa encerrar<br />
a entrevista. “É que tenho que<br />
buscar meus filhos na escola...” O ensaísta<br />
flamenguista de samba no pé parece<br />
ter hoje prioridades claras e saber<br />
bem quem é. Como diz a música, tudo<br />
está no seu lugar.<br />
Que conselho daria<br />
ao jovem Francisco?<br />
“Acho que eu ficaria em<br />
silêncio. É constitutivo<br />
da juventude uma<br />
certa tendência à não<br />
ponderação. Se eu<br />
desse um conselho,<br />
ele não ouviria”<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 57
Um cartum<br />
Foto: Getty Images<br />
Uma tendência<br />
Preguiça sem culpa<br />
O TikTok, segunda casa da geração<br />
Z, é fonte inesgotável de tendências<br />
musicais, gastronômicas, literárias e<br />
comportamentais. É de lá que vem o<br />
bed rotting (algo como “apodrecer na<br />
cama”), nova mania entre os jovens,<br />
parcela da população disposta a adotar<br />
um estilo de vida distante do estresse.<br />
A ideia da tendência que tem cara<br />
de domingo chuvoso é passar horas<br />
seguidas na cama, não para dormir, e<br />
sim para se dedicar a atividades que<br />
não exigem esforço físico nem mental,<br />
como maratonar séries ao lado de<br />
petiscos, perder a noção do tempo nas<br />
redes sociais ou ler um livro, para dar<br />
um toque analógico ao bed rotting.<br />
O autocuidado que deixa a mente fugir<br />
da rotina por algumas horas tem seus<br />
benefícios. Relaxar entre as cobertas<br />
pode afastar o estresse e recarregar<br />
a bateria, dizem os especialistas em<br />
saúde mental. Entre os defensores do<br />
bed rotting está a psicóloga americana<br />
Courtney DeAngelis. Ela garante<br />
que, em doses moderadas, a prática<br />
pode aliviar a exaustão, principalmente<br />
para pessoas que trabalham<br />
longas horas em funções física ou<br />
mentalmente exigentes.<br />
Mas, como quase tudo na vida, o comportamento<br />
requer moderação. Apesar<br />
das vantagens a curto prazo, o<br />
bed roting começa a preocupar quando<br />
dura mais de um ou dois dias, segundo<br />
informou à revista Health o pesquisador<br />
Ryan Sulton, psiquiatra e<br />
professor na Universidade Columbia,<br />
nos Estados Unidos. Quando se torna<br />
um comportamento recorrente, pode<br />
representar um sinal de depressão ou<br />
outros problemas de saúde mental.<br />
Em uma sociedade que cultua a produtividade<br />
e torce o nariz para os momentos<br />
de ócio, a prática ocasional do<br />
bed rotting chega para quebrar um paradigma<br />
e, quem sabe, dar ao descanso<br />
um papel de maior destaque do que<br />
mero figurante.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 59<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 58
Um sabor<br />
Uma palavra<br />
Serra do Elóquio<br />
— Eu era uma e agora sou outra. Ando às palavras<br />
como quem colhe fruta madura, e vim aqui ter<br />
para querer-te: conhecer-te é um dia de <strong>primavera</strong><br />
a estirar-se ao comprido sobre a grama. Pareço<br />
olha para mim, um corpo vivo a espantar-se<br />
por ter a vida dentro. Não sou de cá nem de lá<br />
e canto, com pés e braços, como se tudo dependesse<br />
do canto, e canto como se tudo antecedesse<br />
a falta. Venho de muito longe, não sei se regresso<br />
e gosto tanto de estar aqui contigo como gosto de cantar<br />
e do café. Não tenho pressa, e sorrio-te com os olhos<br />
a encolherem-se por cima da chávena vermelha. Olá.<br />
Sorris-me de volta e és feita de luz e de canções. Como será<br />
dar inteiro o torso ao teu abraço e tirar os sapatos<br />
no parque? Dispor a cabeça horizontal no teu regaço<br />
e adormecer? Encontrar nas histórias que contas<br />
o que arde, e precipitar-me de repente para a cama<br />
com intenções de beijar-te? Como será, aliás<br />
cair para a tua boca como se cai para um acidente<br />
e desaparecer, como desaparecem os gatos?<br />
Patrícia Lino<br />
Poema do livro A Ilha das Afeições<br />
Editora Fósforo<br />
Beirando a unanimidade, o cookie é um acompanhamento para lá de versátil. Vai bem no café da manhã, no papel de sobremesa,<br />
com um cafezinho no meio da tarde, na lancheira das crianças. Nesta <strong>edição</strong>, a seção Um Sabor agrada a gregos e troianos:<br />
veganos, pessoas com intolerância ao glúten e quem não abre mão do sabor do cookie tradicional irão aprovar a receita da chef<br />
confeiteira Carolina Yamamoto, que durante cinco anos comandou a cozinha do Holy Café, na Vila Madalena. Hoje ela é mentora<br />
na Plantlife, escola de confeitaria 100% plant-based. Carolina eliminou todos os ingredientes de origem animal e o glúten, mas<br />
manteve a irresistível combinação de sabores, a textura e a aparência do cookie raiz (com manteiga e ovos).<br />
Foto: divulgação Plantlife<br />
COOKIE VEGANO<br />
E SEM GLÚTEN COM<br />
GOTAS DE CHOCOLATE<br />
Chef Carolina Yamamoto<br />
INGREDIENTES<br />
• 75 g ou 1/3 de xícara de óleo de coco ou óleo de palma<br />
• 100 g ou ½ xícara de açúcar demerara<br />
• 100 g ou ½ xícara de açúcar mascavo<br />
• 50 ml de água<br />
• 2 g ou ½ colher de chá de extrato de baunilha<br />
• 1 pitada de sal<br />
• 150 g ou 1 xícara de farinha de arroz integral<br />
• 80 g ou 1/3 de xícara de fécula de batata ou amido de milho<br />
• 3,5 g ou 1 colher de chá de goma xantana<br />
• 2,5 g ou ½ colher de chá de bicarbonato de sódio<br />
• <strong>13</strong>0 g ou 1 xícara de gotas de chocolate vegano<br />
MODO DE PREPARO<br />
1. Coloque em uma tigela o óleo, o açúcar demerara, o mascavo,<br />
a água, a baunilha e o sal.<br />
2. Bata na batedeira por 5 minutos ou até formar um creme fofo<br />
e claro. Também é possível bater à mão com um batedor de arame.<br />
3. Em uma tigela separada, misture bem a farinha de arroz integral,<br />
a fécula ou o amido e a goma xantana.<br />
4. Comece a adicionar aos poucos esse mix de farinhas à mistura dos<br />
açúcares, mexendo sempre com uma espátula. Acrescente somente<br />
a quantidade necessária para dar o ponto (massa cremosa que<br />
não gruda nas mãos), para a massa não ficar com a textura soltando<br />
óleo nem muito pegajosa.<br />
5. Por último, adicione o bicarbonato de sódio e as gotas de chocolate,<br />
e misture com uma espátula.<br />
6. Leve a massa para a geladeira por 30 minutos.<br />
7. Separe uma assadeira untada com óleo e preaqueça o forno a 180<br />
graus.<br />
8. Faça as bolinhas de massa e coloque-as na assadeira, deixando um<br />
espaço entre os cookies. Achate levemente o topo das bolinhas.<br />
9. Detalhe: se a temperatura ambiente estiver acima de 25 graus,<br />
deixe os cookies no congelador por 30 minutos antes de assar.<br />
10. Leve ao forno preaquecido a 180 graus por 14 minutos. Espere esfriar<br />
para desenformar (eles saem do forno ainda moles).<br />
11. Podem ser conservados em temperatura ambiente por 7 dias,<br />
na geladeira por 10 dias ou congelados por até 2 meses.<br />
Rendimento: 12 unidades de 60 g cada uma.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 61<br />
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Uma imagem<br />
Arquivo Millôr Fernandes/Acervo Instituto Moreira Salles<br />
Autorretrato (2001) <strong>–</strong> Millôr Fernandes<br />
Jornalista, dramaturgo, escritor, tradutor (de William<br />
Shakespeare, inclusive), humorista, desenhista, mas, acima<br />
de tudo, carioca. É impossível definir Millôr Fernandes<br />
(1923-2012) sem ressaltar sua origem e fonte de inspiração,<br />
a cidade do Rio de Janeiro. Neste autorretrato publicado<br />
no já extinto Jornal do Brasil, em 2001, o cartunista<br />
abusa dos tons de verde para pintar a vista de seu estúdio,<br />
em Ipanema. Ele dizia que, para não perder a perspectiva<br />
humana, devia-se morar sempre, no máximo, até o quarto<br />
andar. Seu apartamento ficava no terceiro. Órfão de pai e<br />
mãe aos 12 anos, Millôr foi criado por um tio, que logo descobriu<br />
o talento do garoto para desenhos. Incentivado pelo<br />
parente, levava suas charges às redações dos jornais cariocas.<br />
Conseguiu publicar no periódico O Jornal e, aos 15, foi<br />
contratado pela revista O Cruzeiro, principal publicação semanal<br />
da época. Estudou desenho e pintura no tradicional<br />
Liceu de Artes e Ofícios, criado em 1852, e não parou mais<br />
de desenhar. Passou por Veja, Jornal do Brasil, O Dia, Correio<br />
Braziliense, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo. Ajudou a<br />
fundar e gerir O Pasquim, semanário satírico que incomodou<br />
a ditadura. Em <strong>2023</strong>, o autor de pérolas como “Viver é<br />
desenhar sem borracha” completaria 100 anos.<br />
PRIMAVERA <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>13</strong> • PÁG. 62