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Et cetera – edição 14 – verão 2024

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Verão <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong><br />

<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong><br />

Gente com Bossa<br />

A filosofia lunar de Luiz Felipe Pondé<br />

Maria Paula Bandeira, a defensora das pacientes com câncer<br />

O talento empreendedor do jovem Rhayann Vasconcelos<br />

Laurentino Gomes, o escritor que coleciona Jabutis<br />

O suingue no DNA da garota carioca Fernanda Abreu<br />

Thiago Soares: a reinvenção do maior bailarino brasileiro<br />

E a força do pensamento positivo de Rebeca Andrade:<br />

“Estou sempre pensando em coisas boas, desejando<br />

o melhor para mim e para a minha equipe”<br />

Distribuição gratuita


Foto: Unsplash<br />

Expediente<br />

Direção-Geral e Projeto Gráfico: Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo,<br />

Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Heloísa Noronha, Marco Aurélio Gois, Mariane Morisawa e Simone Costa<br />

Arte e Diagramação: Lucas Trentin Ribeiro | Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


Sumário<br />

Capa: Rebeca Andrade<br />

Foto: Rafael Bello/COB<br />

06 Roteiro<br />

Uma seleção de filmes, séries, documentários,<br />

exposições, livros, discos<br />

e outras ideias de lazer e cultura para<br />

o <strong>verão</strong><br />

20<br />

Q&A <strong>Et</strong>c.<br />

Esta <strong>edição</strong> traz um papo filosófico com Luiz<br />

Felipe Pondé sobre seu mais recente livro,<br />

Diálogos sobre a Natureza Humana <strong>–</strong> Perfectibilidade<br />

e Imperfectibilidade<br />

10<br />

22<br />

O X da Bossa<br />

Alessandra Lotufo, nova autora da coluna, investiga<br />

os ruídos modernos que invadem o silêncio<br />

introspectivo e impedem o cultivo do verdadeiro<br />

autoconhecimento<br />

Com a Palavra…<br />

Diagnosticada com um câncer metastático,<br />

a advogada Maria Paula Bandeira passou a<br />

ajudar outras mulheres a enfrentar os entraves<br />

jurídicos do tratamento<br />

18<br />

24<br />

Gente com Bossa<br />

A disciplina que parece limitar a liberdade quando<br />

manda seguir regras e obedecer à hierarquia<br />

tem outras faces, como a dedicação para estudar,<br />

praticar e se aperfeiçoar<br />

Guarde Este Nome<br />

Durante a pandemia, Rhayann Vasconcelos<br />

criou sozinho um cursinho online gratuito<br />

para jovens que iriam prestar o Enem.<br />

Hoje, sua equipe apoia 500 mil estudantes<br />

Foto: divulgação<br />

Foto: divulgação<br />

Foto: Murilo Alvesso<br />

Foto: divulgação<br />

26<br />

Rebeca Andrade<br />

A atleta Rebeca Andrade foi morar longe da<br />

família aos 10 anos e encarou uma série de<br />

cirurgias antes de se tornar o maior nome da<br />

ginástica artística brasileira<br />

34<br />

Laurentino Gomes<br />

O escritor e jornalista Laurentino Gomes, que se<br />

interessou pela leitura quando era seminarista,<br />

já vendeu mais de 3 milhões de livros e soma oito<br />

Prêmios Jabuti<br />

42<br />

Fernanda Abreu<br />

A carioca Fernanda Abreu imitava os passos de<br />

Michael Jackson quando era criança, estourou<br />

com a Blitz e gravou seu nome na história da<br />

dance music brasileira<br />

50<br />

Thiago Soares<br />

Nascido em São Gonçalo e criado no subúrbio<br />

do Rio, Thiago Soares superou todas as dificuldades<br />

e chegou ao posto de primeiro bailarino<br />

do Royal Ballet de Londres<br />

58<br />

Um Cartum<br />

Espelho, espelho meu, existe cartunista mais<br />

sagaz e antenado que Jean Galvão?<br />

59<br />

Uma Tendência<br />

A ficção via streaming extrapola as fronteiras<br />

das plataformas tradicionais e desembarca nas<br />

redes sociais<br />

60<br />

Uma Palavra<br />

Um trecho de Brancura, o novo livro do escritor<br />

norueguês Jon Fosse, Prêmio Nobel de Literatura<br />

em 2023<br />

A revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> tem uma versão<br />

pocket: o <strong>Et</strong>c Pop-up! Para receber<br />

semanalmente um boletim com<br />

notícias interessantes, fatos curiosos<br />

e dicas culturais no seu WhatsApp,<br />

cadastre-se pelo QR Code:<br />

61<br />

Um Sabor<br />

Na happy hour da <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, a cerveja dá<br />

lugar a dois drinques: um para fãs de café e<br />

outro com a cara do <strong>verão</strong><br />

62<br />

Uma Imagem<br />

As cores do morro pelo olhar do fotógrafo<br />

Dede Fedrizzi na exposição Do Samba ao Funk,<br />

da Bossa.etc


[ R O T E I R O ]<br />

[ R O T E I R O ]<br />

Séries, filmes etc.<br />

Maestro<br />

Duração: 129 min<br />

Onde ver: Netflix<br />

Regendo a vida<br />

Bradley Cooper definitivamente gosta<br />

de música. Seu segundo trabalho como<br />

diretor, depois de Nasce uma Estrela,<br />

também traz a música como elemento<br />

condutor do filme. Maestro aborda<br />

a vida do regente Leonard Bernstein.<br />

Genial e genioso, Bernstein era um ás<br />

à frente da Orquestra Filarmônica de<br />

Nova York, mas tinha uma vida pessoal<br />

bastante complicada. Casado com<br />

Felicia Montealegre (Carey Mulligan)<br />

durante anos, eles tiveram três filhos e<br />

muitos problemas conjugais. A prótese<br />

no nariz usada por Cooper deu o que<br />

falar, e o ator foi acusado até de antissemitismo.<br />

Porém, uma declaração da família<br />

de Bernstein acalmou os ânimos<br />

dos haters. “É verdade que papai tinha<br />

um nariz bonito e proeminente. Temos<br />

certeza de que ele não teria problema<br />

com isso”, escreveram seus filhos.<br />

John Lennon: Assassinato<br />

sem Julgamento<br />

Duração: 3 episódios<br />

Onde ver: AppleTV+<br />

A confissão<br />

Repleto de entrevistas inéditas, o documentário<br />

da AppleTV+ joga uma nova<br />

(e perturbadora) luz sobre o assassinato<br />

do ex-Beatle John Lennon, um dos<br />

maiores ícones culturais do século XX.<br />

Revelada logo nos primeiros materiais<br />

de divulgação, a confissão de Mark David<br />

Chapman, assassino de Lennon,<br />

choca pela frieza e pela aparente ausência<br />

de arrependimento. Na produ-<br />

ção, Chapman conta como ele matou<br />

Lennon enquanto uma voz em sua cabeça<br />

dizia “Faça isso! Faça isso!” Atrás<br />

das grades desde o dia do crime, 8 de<br />

dezembro de 1980, o assassino foi sentenciado<br />

à prisão perpétua e está atualmente<br />

com 68 anos. A produção tem<br />

um trabalho investigativo caprichado, e<br />

apresenta entrevistas exclusivas com<br />

testemunhas oculares e fotos inéditas<br />

da cena do crime.<br />

Assassinato no Fim do Mundo<br />

<strong>–</strong> 1ª Temporada<br />

Duração: 7 episódios<br />

Onde ver: Star+<br />

Mistério no retiro<br />

A detetive amadora Darby Hart (Emma<br />

Corrin) ganha uma fama súbita ao desvendar<br />

a identidade de um serial killer<br />

com suas habilidades em computação,<br />

com a ajuda de IA e análise de bancos<br />

de dados. O ricaço Andy (Clive Owen<br />

emulando Elon Musk), um empreendedor<br />

exótico da área de tecnologia,<br />

convida Hart e mais oito pessoas para<br />

passar uma breve temporada num retiro<br />

de inverno idílico. Tudo muda quando<br />

um dos hóspedes aparece morto. A<br />

descoberta do corpo motiva a detetive<br />

Hart a descobrir quem é o assassino<br />

antes que ele cometa o próximo crime.<br />

Claramente inspirado nos livros<br />

de Agatha Christie, a série acerta ao<br />

transpor o clima de whodunnit para a<br />

geração Z. A produção também tem<br />

a brasileira Alice Braga no elenco, fazendo<br />

uma astronauta que pesquisa a<br />

colonização da Lua.<br />

Para visitar<br />

Eixos — Jarbas Lopes<br />

Estação Pinacoteca<br />

Ingresso: R$ 30<br />

Arte elástica<br />

Tome uma curta distância, dê passos<br />

rápidos e se jogue de lado ou de costas<br />

contra uma tela com uma trama elástica<br />

apoiada na parede. Essas são as<br />

instruções da obra Shock Pintura, um<br />

dos quadros elásticos do artista carioca<br />

Jarbas Lopes, 59 anos. A tensão<br />

dos fios amortece o impacto e projeta<br />

a pessoa para fora da tela. Essa e outras<br />

obras interativas estão em Eixos,<br />

retrospectiva de 30 anos de carreira do<br />

artista em São Paulo. A extensa exposição<br />

também traz instalações, desenhos,<br />

pinturas e fotografias. A obra instalada<br />

no pátio da Estação Pinacoteca, O Bem<br />

e Mal Entendido, traz dois Fuscas, um<br />

preto e um branco, encaixados como<br />

se formassem o símbolo taoísta do yin-<br />

-yang, que representa a dualidade das<br />

forças e da vida. Uma curiosidade: o artista<br />

dirigiu o Fusca branco de Maricá<br />

(RJ), onde mora, até o museu. Até 31 de<br />

março.<br />

Os Delinquentes<br />

Duração: 183 min<br />

Onde ver: Mubi<br />

O argentino do Oscar<br />

Na atual Argentina em grave crise financeira,<br />

o bancário Morán (Daniel Elías)<br />

elabora um plano para roubar seu próprio<br />

local de trabalho e, assim, se aposentar.<br />

Para isso, ele coopta e chantageia<br />

Román (Esteban Bigliardi), seu colega<br />

de trabalho, obrigando-o a participar da<br />

empreitada. Como num clássico filme de<br />

roubo, tudo funciona bem até que as coisas<br />

começam a sair do controle. Apesar<br />

de ser um filme de gênero, os acertos es-<br />

tão justamente na fuga dos clichês que<br />

marcam tais obras. É um filme de roubo,<br />

sim, mas muito original e surpreendentemente<br />

humano. A obra está na disputa<br />

para representar a Argentina no Oscar.<br />

Dinâmico e engraçado, mesmo com<br />

mais de três horas de duração, o filme<br />

não deixa o espectador entediado.<br />

Ònà Irin: Caminho de Ferro<br />

Museu de Arte do Rio<br />

Entrada gratuita<br />

A ferro e fogo<br />

A artista baiana Nádia Taquary inaugura<br />

sua primeira exposição individual<br />

com a mostra Ònà Irin: Caminho de Ferro.<br />

Ela começou a se aventurar pela joalheria<br />

ainda jovem, fazendo brincos e colares<br />

para si própria com as técnicas que<br />

aprendia com o pai em sua oficina nos<br />

fundos da casa, em Valença, na Bahia.<br />

Hoje ela cria joias de ferro, com cordas,<br />

pedras, búzios e outros elementos que<br />

remetem à ancestralidade africana.<br />

Por causa do tamanho das peças, suas<br />

joias se confundem com esculturas. A<br />

exposição apresenta ainda instalações<br />

e videoinstalações que exploram as<br />

joias de tradições nagô e iorubá, além<br />

de outros elementos afro-brasileiros.<br />

Nádia já exibiu suas obras em diversas<br />

exposições coletivas nacionais e<br />

internacionais, inclusive no prestigiado<br />

Museum of Arts and Design de Nova<br />

York. Até 27 de fevereiro.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 7<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 6


[ R O T E I R O ]<br />

[ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

Siron Franco na Coleção de Justo Werlang<br />

255 páginas<br />

Editora Cosac Edições<br />

R$ <strong>14</strong>0<br />

Obra (livro) de arte<br />

Oito anos depois de fechar as portas, a<br />

editora que subiu o sarrafo do mercado<br />

brasileiro de livros está de volta. A primeira<br />

publicação da nova fase da Cosac<br />

reúne obras do artista goiano Siron<br />

Franco presentes na coleção de Justo<br />

Werlang. Bem ao estilo de criar livros<br />

que são objetos de desejo, o tomo tem<br />

um acabamento primoroso, capa dura,<br />

formato grande, texto bilíngue e centenas<br />

de fotos. Com obras abrangendo<br />

cinco décadas da trajetória do artista,<br />

a <strong>edição</strong> mostra o desenvolvimento<br />

pictórico de Siron: suas inúmeras e conhecidas<br />

“séries”, seus vários suportes<br />

e suas experimentações com materiais<br />

<strong>–</strong> ele criou obras com resina, cimento,<br />

terra e até enxadas. O texto é do crítico<br />

de arte Gabriel Perez-Barreiro, que comenta<br />

a obra do artista e entrevista o<br />

colecionador Justo Werlang.<br />

Para ouvir<br />

Bossa sempre Nova<br />

Somente um músico da envergadura<br />

de Carlos Lyra seria capaz de reunir<br />

num só disco nomes como João Donato,<br />

Marcos Valle, Mart’nália, Gilberto<br />

Gil, Ivan Lins, Caetano Veloso, Lulu<br />

Santos, Djavan, Fernanda Abreu, Leila<br />

Pinheiro, Ney Matogrosso, Paula Morelenbaum,<br />

Roberto Menescal, Edu Lobo,<br />

Mônica Salmaso, dentre outros. Pouco<br />

antes de falecer, em dezembro de<br />

2023, Lyra ganhou uma linda homenagem<br />

para celebrar seus 90 anos: uma<br />

releitura de algumas de suas músicas<br />

em disco carinhoso como um abraço<br />

entre amigos. Há frescor nas <strong>14</strong> faixas.<br />

Como o diálogo entre o piano de Marcos<br />

Valle e a guitarra de Lulu Santos,<br />

intérpretes de Maria Ninguém (1959),<br />

e o samba Ciúme (1960), cantado com<br />

graça por Caetano Veloso. Nada sobra<br />

e nada falta neste álbum gigantesco.<br />

Afeto<br />

Onde ouvir: Spotify,<br />

Deezer, Apple Music e Tidal<br />

Coleção Todos os Livros de Machado de Assis<br />

26 obras<br />

Editora Todavia<br />

R$ 1.599,90<br />

Caixa do Machado<br />

O projeto é grandioso: uma única caixa<br />

com toda a obra de Machado de Assis.<br />

O pacote reúne 26 volumes, contendo<br />

poesia, teatro, conto e romance. Fruto<br />

de uma parceria entre a editora Todavia<br />

e o Itaú Cultural, os textos foram<br />

estabelecidos a partir de edições revistas<br />

pelo autor, com apresentações inéditas<br />

para cada livro e projeto gráfico<br />

que recupera a tipografia das edições<br />

originais. Entre sua estreia, em 1861,<br />

com a peça teatral Desencantos, até seu<br />

último livro, o romance Memorial de<br />

Aires, de 1908, Machado produziu algumas<br />

das obras mais importantes da língua<br />

portuguesa, como Dom Casmurro e<br />

Memórias Póstumas de Brás Cubas. Neste<br />

combo, há ainda um volume extra com<br />

o testemunho pessoal do autor sobre<br />

seu trabalho como servidor público no<br />

final do Império e início da República.<br />

London calling<br />

Com apenas três anos de existência, os<br />

londrinos do bar italia (assim mesmo,<br />

em minúsculas) lançam seu quarto álbum.<br />

Formada por Nina Cristante, Sam<br />

Fenton e Jezmi Fehmi, a banda de rock<br />

indie tem uma sonoridade com uma<br />

pegada bastante anos 1990, remetendo,<br />

em alguns momentos, ao Sonic Youth<br />

e, em outros, ao Pavement. A alternância<br />

de vozes masculina e feminina, com<br />

Cristante e Fehmi dividindo os vocais,<br />

dá um charme extra e leveza às músicas.<br />

A mistura cool entre guitarras<br />

do fim do século XX com vocais sexy<br />

e boas harmonias funciona. A faixa<br />

Worlds Greatest Emoter tem uma linha<br />

de baixo animada e é grande candidata<br />

a hit do disco. Já Jelsy tem uma levada<br />

de violão bastante agradável e poderia<br />

ser uma dessas músicas que animam<br />

um luau na praia.<br />

The Twits<br />

Onde ouvir: Spotify,<br />

Deezer, Apple Music e Tidal<br />

Especulações Cinematográficas<br />

422 páginas<br />

Editora Intrínseca<br />

Para Dylan, com amor<br />

R$ 89,90 ou R$ 56,90 (e-book)<br />

Cinema, por Tarantino<br />

Desde o estouro com Pulp Fiction (1994),<br />

seu segundo filme, até Era uma Vez em<br />

Hollywood (2019), as obras de Quentin<br />

Tarantino sempre são cercadas de<br />

grandes expectativas — e não decepcionam.<br />

Cinéfilo de carteirinha, Tarantino<br />

lança seu segundo livro, um ensaio<br />

sobre a magia que o cinema exerce sobre<br />

as pessoas. Misturando histórias<br />

pessoais, rigor intelectual e entretenimento,<br />

o diretor analisa muitas obras<br />

que o influenciaram, sobretudo filmes<br />

da década de 1970, época em que era<br />

um jovem e assíduo frequentador de<br />

cinemas. Na medida em que escreve<br />

sobre os filmes, analisando aspectos<br />

da produção, da direção e até das<br />

atuações, vai compartilhando sua visão<br />

sobre cinema, uma forma de arte<br />

e comunicação poderosíssima, capaz<br />

de produzir beleza, encantamento e<br />

diversão.<br />

Uma das principais vozes da música<br />

alternativa dos anos 2000, Cat Power<br />

até ameaçou fazer parte do mainstream,<br />

principalmente depois de ter uma<br />

música na trilha sonora do filme Juno<br />

(2007) e de ter feito uma campanha da<br />

marca Chanel. Preferiu dar um passo<br />

atrás e manter-se fiel ao seu público<br />

e ao seu intimismo sincero. Seu 12º<br />

álbum é uma aposta arriscada e bem<br />

pessoal. Ela decidiu recriar o histórico<br />

show de Bob Dylan no Royal Albert<br />

Hall, em 1966, em Londres. Foi o show<br />

que marcou a transição de Dylan do<br />

folk acústico e engajado para abraçar<br />

a guitarra elétrica e o rock. No registro,<br />

é possível ouvir Dylan discutindo com<br />

pessoas da plateia que criticavam a<br />

mudança. Gravado ao vivo e no mesmo<br />

local, o disco de Power limpa a tensão<br />

anárquica do show original com<br />

versões luminosas e inspiradas.<br />

Cat Power Sings Dylan<br />

Onde ouvir: Spotify,<br />

Deezer, Apple Music e Tidal<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 9<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

O silêncio<br />

que fala<br />

e a beleza<br />

que cala<br />

Por Alessandra Lotufo <strong>–</strong> Chief Innovation and<br />

Communication Officer <strong>–</strong> House of Brains<br />

Os ruídos <strong>–</strong> urbanos, intelectuais e emocionais <strong>–</strong><br />

decorrentes das revoluções industrial e digital ocuparam<br />

o silêncio da introspecção e da reflexão sobre quem<br />

somos. Mas o autoconhecimento que se busca hoje<br />

promove, de fato, um mergulho em si mesmo?<br />

Foto: Getty Image<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 11<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 10


O silêncio que expande<br />

A<br />

exploração da natureza do autoconhecimento revela uma verdade desconcertante:<br />

o mergulho nas profundezas de nossa própria psique não é uma<br />

jornada prazerosa. O silêncio nos força a confrontar nossos abismos internos,<br />

habilmente mascarados pelo ruído externo da agitação do dia a dia.<br />

Nesse silêncio, não encontramos o conforto, mas as dissonâncias do nosso ego.<br />

É aqui que a modernidade e o autoconhecimento colidem. A sociedade contemporânea<br />

nos vende a ideia de que devemos estar constantemente presentes, respondendo<br />

e reagindo. O silêncio é visto como uma lacuna improdutiva, um vácuo que deve ser<br />

preenchido com mais ruído, mais ação, mais conteúdo, mais produtividade. No entanto,<br />

esse preenchimento ininterrupto nos afasta da compreensão íntima de nossa<br />

própria vida.<br />

O filósofo coreano Byung-Chul Han captura em sua obra a essência do desconforto<br />

que o silêncio traz à alma moderna. Ele não descreve apenas o mundo como é, mas<br />

também como o sentimos <strong>–</strong> um lugar onde o silêncio se tornou um vazio ruidoso.<br />

Em vez de conduzir à paz, a ausência de barulho exterior promove uma espécie de<br />

cacofonia interior, em que cada pensamento e cada sentimento não expressos gritam<br />

por atenção.<br />

Diante disso, devemos nos perguntar: seria o autoconhecimento uma mercadoria<br />

desvalorizada na prateleira da existência contemporânea? A busca pelo silêncio interior<br />

e o enfrentamento do ego ruidoso podem parecer obsoletos, mas talvez sejam<br />

o antídoto de que precisamos contra o esvaziamento de nossa experiência humana.<br />

Nesse contexto, a desaceleração pode ser vista como uma oportunidade <strong>–</strong> um convite<br />

para abraçar o silêncio e enfrentar o desconforto do autoconhecimento. Talvez o verdadeiro<br />

crescimento e a realização passem por aceitar o silêncio e aprender com ele.<br />

A reflexão que se impõe é complexa e multifacetada: como podemos reequilibrar a<br />

relação com o nosso eu interior em um mundo que teme o silêncio? Como podemos<br />

redescobrir o valor do autoconhecimento em uma sociedade que parece funcionar no<br />

piloto automático do ruído constante?<br />

A obra do astrônomo americano Carl Sagan propõe uma<br />

perspectiva que transcende o cotidiano: na contemplação do<br />

Cosmos, o silêncio é uma reverência diante da imensidão do<br />

Universo. Em sua poética exploração do espaço, Sagan sugere<br />

que a beleza celeste provoca um tipo de silêncio saturado<br />

de admiração e humildade.<br />

O silêncio cósmico de Sagan, povoado por estrelas e planetas,<br />

é um convite a uma introspecção inerentemente pacífica,<br />

ao contrário do silêncio interno ruidoso descrito por<br />

Byung-Chul Han. Não se trata de um silêncio que se origina<br />

do autoesquecimento. Ele vem da autoexpansão <strong>–</strong> um alargamento<br />

do self para incluir o vasto, o eterno, o infinito.<br />

Pelas lentes de Sagan, o silêncio torna-se um espaço para a<br />

maravilha e o aprendizado, não um poço de confronto interior.<br />

Quando olhamos para as estrelas, não é a ausência de<br />

palavras que nos emudece, é a constatação de que elas são<br />

inúteis diante de tal grandeza. A beleza astronômica nos<br />

obriga a reconhecer nossa pequenez, e, quando isso acontece,<br />

encontramos uma espécie de silêncio que é preenchido com o<br />

sussurro do Universo.<br />

Refletir sobre o pensamento de Sagan nos leva a uma apreciação<br />

profunda de como a beleza e a imensidão do Cosmos<br />

podem impactar nosso senso de identidade e lugar no mundo.<br />

Talvez o silêncio provocado pela beleza seja uma forma de<br />

autoconhecimento que, em vez de olhar para dentro, expande<br />

nossa consciência além dos limites do ego e do indivíduo,<br />

rumo a uma compreensão mais holística da nossa existência.<br />

Nesse silêncio estelar, encontramos uma pausa no constante<br />

diálogo interno, uma oportunidade para simplesmente “ser”.<br />

E, assim, talvez possamos encontrar as respostas que as perguntas<br />

ruidosas do dia a dia não conseguem fornecer. Afinal,<br />

no grande esquema do Cosmos, somos todos feitos das mesmas<br />

estrelas, e o silêncio que o Universo oferece é um lembrete<br />

da nossa unidade fundamental com tudo o que existe.<br />

Na cacofonia incessante de uma era que glorifica a visibilidade,<br />

em que cada momento é capturado, compartilhado e monetizado,<br />

existe uma beleza subversiva no silêncio da existência<br />

pura. Essa é a beleza que não grita por atenção, mas<br />

que atrai os olhos pela sua plácida confiança e autenticidade.<br />

O marketing pessoal tornou-se quase um mandamento da<br />

modernidade, uma obrigação implícita de cada indivíduo que<br />

busca seu lugar ao sol em um mundo superpovoado de estímulos.<br />

No entanto, a quietude de “ser” <strong>–</strong> não o ato frenético<br />

de “se tornar” <strong>–</strong> carrega consigo um magnetismo próprio. Na<br />

serenidade de quem não busca aplausos, há um eco de auten-<br />

ticidade que transcende a necessidade de aprovação externa.<br />

O indivíduo desapegado da necessidade de se vender ou provar<br />

seu valor se torna um farol para quem está cansado do<br />

ruído incessante do automarketing. É um lembrete silencioso<br />

de que a plenitude e a autoestima não requerem validação<br />

constante. Em um mar de autopromoção, a escolha de apenas<br />

“ser” pode ser o ato mais radical e notável.<br />

A escolha de viver no silêncio da própria existência, desvinculada<br />

do imperativo de se apresentar ao mundo, pode ser<br />

entendida como um ato de autoesquecimento deliberado. O<br />

autoesquecimento, uma noção filosófica refinada, não é a negação<br />

do self, mas um desvio do foco egoísta que domina a<br />

consciência moderna. No contexto do autoesquecimento, a<br />

pessoa que se recusa a participar do jogo do automarketing<br />

adota uma forma de ser que transcende o ego ruidoso.<br />

Em vez de ocupar a mente com preocupações sobre como se<br />

é percebido ou como se deve aparecer, o autoesquecimento<br />

permite a existência em um estado de consciência mais elevado,<br />

em que o ser interior prevalece sobre as expectativas e<br />

as exigências externas. Esse estado de ser não é uma abdicação<br />

da identidade ou das responsabilidades, mas uma escolha<br />

consciente de valorizar a experiência pessoal acima da percepção<br />

pública.<br />

Esse retorno ao essencial, à essência do que realmente somos,<br />

é um convite para reconhecer a plenitude e a satisfação<br />

que vêm de dentro. É um reconhecimento de que o barulho<br />

incessante do “eu” pode ser silenciado para dar espaço a uma<br />

experiência mais rica e profundamente conectada com o<br />

mundo e com os outros.<br />

A beleza desse silêncio está no fato de que ele não é um vazio,<br />

ele é um espaço cheio de potencial. No autoesquecimento, há<br />

um eco de liberdade <strong>–</strong> a liberdade do jugo do constante autoescrutínio<br />

e da necessidade de validação. Isso não é uma<br />

retração da vida, mas sim uma imersão mais profunda nela.<br />

Em vez de medida pelo reconhecimento externo, a satisfação<br />

vem da paz interior.<br />

Em um mundo onde o marketing de si mesmo é muitas vezes<br />

uma compulsão, escolher o autoesquecimento é optar por<br />

uma forma de resistência, uma afirmação de que somos mais<br />

do que nossas imagens projetadas. Aqueles que encontram<br />

beleza no silêncio do autoesquecimento muitas vezes descobrem<br />

que, paradoxalmente, esse silêncio ressoa mais alto e<br />

atrai mais atenção do que qualquer campanha de marketing<br />

pessoal. É um testemunho poderoso da plenitude de estar<br />

confortável e completo na própria pele.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 13<br />

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Simplesmente ser,<br />

como os animais<br />

Em Cachorros de Palha: Reflexões sobre<br />

Humanos e Outros Animais, o filósofo<br />

britânico John Gray nos convida a<br />

contemplar a quietude dos animais,<br />

uma existência vivida sem o constante<br />

diálogo interno que caracteriza<br />

a consciência humana. Para Gray,<br />

a vida animal é vivida diretamente,<br />

sem a intermediação do autoconhecimento,<br />

ou autoconsciência, que tanto<br />

preocupa a humanidade.<br />

Conectar esse pensamento ao conceito<br />

de autoesquecimento e à escolha de<br />

uma existência silenciosa e autêntica<br />

revela uma dimensão fascinante do<br />

ser. Enquanto a sociedade moderna<br />

nos pressiona a constantemente nos<br />

expressar e nos promover, há uma sa-<br />

bedoria a ser encontrada na simplicidade<br />

da vida animal, que não necessita<br />

de autoafirmação por meio da linguagem<br />

ou do pensamento simbólico.<br />

Os animais, segundo Gray, não estão<br />

perdidos em reflexões sobre si mesmos;<br />

eles simplesmente são. Essa forma<br />

de ser sem o ruído constante do ego<br />

sugere que a plenitude talvez não seja<br />

encontrada no acúmulo de realizações<br />

ou na construção de uma identidade,<br />

mas sim no silêncio que aceita a vida<br />

como ela é. Nesse silêncio, não há necessidade<br />

de provar nada a ninguém<br />

nem a si mesmo. A vida é vivida com<br />

um tipo de presença e imediatismo que<br />

os humanos muitas vezes anseiam.<br />

O som urbano e o ruído digital<br />

Foto: Getty Image<br />

Quem nasceu no século XX viveu em uma era dominada pela condição urbana e<br />

industrial, que significava estar imerso em um mundo onde o barulho era predominantemente<br />

físico e tangível. As cidades pulsavam com o som das máquinas, o<br />

apito das fábricas, o tráfego incessante de veículos e as multidões em movimento.<br />

O barulho era um reflexo da atividade humana e do progresso tecnológico. Uma<br />

poluição sonora que, embora muitas vezes esmagadora, era unidimensional em seu<br />

impacto <strong>–</strong> um ruído com fonte visível e concreta.<br />

Contraste isso com o mundo contemporâneo, onde a poluição sonora é complementada<br />

pelo barulho incessante do mundo digital. Agora, além dos sons da cidade, somos<br />

bombardeados por um fluxo constante de informação e comunicação. Um ruído<br />

mais abstrato e onipresente, que não se limita a um local físico; segue-nos em nossa<br />

casa, nosso local de trabalho e até mesmo em nossos espaços pessoais de quietude.<br />

A poluição sonora do mundo digital é composta de milhões de vozes. E cada voz<br />

busca por atenção, validação ou simplesmente espaço para ser ouvida. Esse é<br />

um ruído que não podemos evitar; ele permeia nossa vida digital, exigindo engajamento<br />

constante.<br />

Essa transição do barulho físico e localizado para o ruído digital e onipresente reflete<br />

uma mudança significativa na experiência humana. Enquanto o barulho da era<br />

industrial era um sinal de progresso e atividade externa, o barulho “digital” representa<br />

sobrecarga de informação <strong>–</strong> e cansaço. O desafio agora não é apenas encontrar<br />

refúgio do barulho físico, mas também navegar e gerenciar o ruído constante<br />

da era da informação <strong>–</strong> um mundo onde o silêncio se tornou um bem ainda mais<br />

precioso e difícil de alcançar.<br />

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Charlie Chaplin em cena do filme Tempos Modernos | Foto: reprodução<br />

Desumanização e individualidade<br />

É também no século XX que experimentamos uma preocupação<br />

central em torno da desumanização, que estava ligada<br />

à representação do trabalhador como uma mera engrenagem<br />

na linha de montagem industrial, vividamente ilustrada em<br />

Tempos Modernos, de Charlie Chaplin. Essa preocupação refletia<br />

o medo de que a industrialização e a mecanização levassem<br />

à perda da individualidade e da humanidade. Ironicamente,<br />

enquanto o século XX avançava e entrávamos no<br />

século XXI, a desumanização assumiu uma forma diferente,<br />

menos tangível, mas igualmente perturbadora: em um mundo<br />

saturado de ruídos digitais, há uma tendência à redução<br />

das pessoas a meros consumidores ou produtores de informação.<br />

A individualidade e a profundidade do ser humano<br />

são frequentemente subjugadas sob o peso de uma cultura<br />

que valoriza a velocidade, a novidade e a visibilidade.<br />

Assim como o personagem de Chaplin luta para manter sua<br />

humanidade em meio às demandas da linha de montagem,<br />

o indivíduo contemporâneo luta para preservar sua identidade<br />

e sanidade em um ambiente digital que muitas vezes<br />

parece indiferente às necessidades humanas de quietude,<br />

reflexão e conexão genuína. A desumanização, tanto no contexto<br />

industrial quanto no digital, emerge da mesma raiz:<br />

um sistema que prioriza a eficiência e a produtividade sobre<br />

a experiência humana autêntica.<br />

A introspecção no progresso<br />

De volta à filosofia, John Gray aborda frequentemente em<br />

suas obras a relação do progresso com o conceito de silêncio,<br />

sem recorrer à saída simplista de apresentar o primeiro<br />

como antítese do segundo. Em vez disso, Gray oferece uma<br />

perspectiva mais matizada, argumentando que as noções<br />

contemporâneas de progresso muitas vezes falham em considerar<br />

aspectos fundamentais da condição humana, como a<br />

necessidade de silêncio, reflexão e conexão com a natureza.<br />

Para o filósofo, o progresso <strong>–</strong> apresentado em termos de<br />

avanço tecnológico, crescimento econômico e aumento do<br />

consumo <strong>–</strong> tende a afastar as pessoas de uma compreensão<br />

mais profunda de sua vida e do mundo ao seu redor. Em sua<br />

visão, a constante busca pelo progresso material pode levar a<br />

uma desvalorização do silêncio e da introspecção, na medida<br />

em que promove um estilo de vida centrado na ação, na eficiência<br />

e na constante estimulação, em detrimento da quietude,<br />

do contemplativo e do introspectivo.<br />

Gray frequentemente critica a ideia de que a humanidade<br />

está em um caminho linear de melhoria e progresso, sugerindo<br />

que essa crença pode levar ao descaso com valores essenciais<br />

que não estão alinhados com a aceleração e a eficiência.<br />

Outro produto artístico do século XX, a ópera-rock The Wall,<br />

de Pink Floyd, se concentra em temas de alienação, isolamento<br />

e construção de barreiras mentais. A narrativa de The Wall<br />

gira em torno da construção de um muro metafórico que isola<br />

o protagonista do mundo externo, formando uma barreira<br />

contra as experiências dolorosas da vida e o isolamento<br />

emocional. Analogamente, as pessoas na era moderna muitas<br />

vezes constroem muros psicológicos como defesa contra<br />

o ruído incessante da comunicação digital.<br />

No contexto urbano e industrial, o barulho físico e tangível<br />

se aliava à opressão social e criava um desejo de isolamento,<br />

um impulso de construir um muro entre si e o mundo externo.<br />

Da mesma forma, no mundo digital, o fluxo interminável<br />

de vozes e informações pode levar a um estado de sobrecarga<br />

sensorial, incentivando uma desconexão semelhante e a<br />

construção de barreiras emocionais e mentais.<br />

The Wall também explora como o isolamento pode ser autoimposto,<br />

um reflexo de nossos medos, traumas e desejos de proteção.<br />

Isso espelha como, na realidade moderna, muitas vezes<br />

nos isolamos não apenas fisicamente, mas emocional e digitalmente,<br />

criando nossos próprios muros em uma tentativa<br />

de filtrar o ruído e gerenciar o estresse da hiperconectividade.<br />

Em suas obras, ele explora como a modernidade e o progresso<br />

podem levar a um empobrecimento da experiência humana,<br />

ao invés de seu enriquecimento.<br />

Portanto, a relação que Gray estabelece entre progresso e<br />

silêncio não é simplesmente de oposição direta, mas sim de<br />

uma crítica à tendência da modernidade de menosprezar o<br />

valor do silêncio, da contemplação e da conexão mais profunda<br />

com o mundo natural e com nosso ser interior.<br />

Diferentemente das previsões de que máquinas e linhas de<br />

montagem nos reduziriam a componentes de um sistema impessoal,<br />

a realidade se mostrou mais complexa. As pressões<br />

da vida moderna, agora intensificadas pela constante conectividade<br />

digital e pela sobrecarga de informação, conduziram<br />

a uma crise de saúde mental e a um embotamento emocional.<br />

A ironia é marcante: enquanto temíamos a desumanização<br />

pelas máquinas, acabamos enfrentando um tipo de desumanização<br />

que vem de dentro, uma perda de contato com nossas<br />

emoções. A tecnologia, que prometia conectar-nos, em muitos<br />

casos, nos isolou ainda mais, levando a um sentimento de<br />

alienação e desconexão.<br />

Um ato de resistência<br />

No caldeirão da modernidade, fervilha<br />

um paradoxo peculiar: a busca incessante<br />

pelo autoconhecimento em meio<br />

a um mundo ruidosamente vazio. Esta<br />

era, marcada por uma cacofonia digital<br />

e urbana, parece lançar o autoconhecimento<br />

<strong>–</strong> aquele profundo e genuíno<br />

<strong>–</strong> para a prateleira do esquecimento,<br />

substituindo-o por um simulacro<br />

mais frívolo e acessível. Mas o que se<br />

perde quando o silêncio é substituído<br />

pelo barulho e a introspecção dá lugar<br />

à autopromoção?<br />

Na era do barulho constante, em que<br />

o zumbido das cidades e o clamor das<br />

redes sociais formam um coro ininterrupto,<br />

o autoconhecimento parece ter<br />

se transformado. Deixou de ser a busca<br />

silenciosa por entendimento interno<br />

para se tornar uma mercadoria, algo a<br />

ser exibido nas vitrines virtuais para<br />

admiração e validação social. Essa versão<br />

diluída de autoconhecimento despreza<br />

o mergulho profundo na psique<br />

para se alimentar de reflexões superficiais<br />

que se adequam mais a uma postagem<br />

do que a um diário íntimo.<br />

Assim, a busca pelo autoconhecimento<br />

na era moderna se torna uma jornada<br />

paradoxal. Por um lado, somos encorajados<br />

a nos conhecer melhor, a mergulhar<br />

em nosso íntimo. Por outro, o<br />

mundo em que vivemos <strong>–</strong> ruidoso, acelerado<br />

e superficial <strong>–</strong> desfavorece essa<br />

busca interior.<br />

O anseio pelo silêncio e pela introspecção<br />

na era moderna surge como um<br />

antídoto para a sensação de vazio que<br />

acompanha o autoconhecimento frívolo.<br />

A prática de se afastar do ruído<br />

constante não é uma mera fuga, mas<br />

sim um movimento em direção a um<br />

tipo mais autêntico de autoconhecimento,<br />

que ressoa com a verdade pessoal<br />

em vez de ecoar as vozes do mundo<br />

externo.<br />

Esse movimento em direção ao silêncio<br />

é, em si, um ato de resistência. É<br />

uma recusa em se conformar com o<br />

ruído incessante que caracteriza tanto<br />

a vida urbana quanto a digital. Nesse<br />

silêncio, encontramos um espaço para<br />

reflexão e para o cultivo de um autoconhecimento<br />

que é mais profundo e<br />

verdadeiro. Mais que uma atividade<br />

passiva, a introspecção se apresenta<br />

como uma exploração ativa do eu,<br />

livre das distrações e das exigências<br />

do mundo exterior.<br />

A arte e a filosofia nos mostram que há<br />

beleza e profundidade nesse silêncio. O<br />

silêncio que fala e a beleza que cala são<br />

presenças cheias de potencial e significado.<br />

Podemos encontrar no silêncio<br />

um caminho para uma compreensão<br />

mais profunda de nós mesmos e do<br />

mundo ao nosso redor e ver a beleza e<br />

a profundidade na quietude de nossa<br />

própria existência.<br />

E, assim, o autoconhecimento deixa<br />

de ser um produto de prateleira, pronto<br />

para consumo, e se torna uma jornada<br />

pessoal e íntima. É um processo<br />

que requer tempo, paciência e, acima<br />

de tudo, disposição para se afastar do<br />

ruído e se voltar para dentro. Assim,<br />

podemos descobrir que as respostas<br />

que buscamos não estão nos barulhos<br />

externos, estão nos sussurros silenciosos<br />

da alma.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 17<br />

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[GENTE COM BOSSA]<br />

Sangue, suor<br />

e sorriso<br />

A disciplina se manifesta em múltiplas faces. Ora aparece em<br />

formato de respeito incontestável às regras, rigor com o cumprimento<br />

das normas, obediência à hierarquia. Ora desponta<br />

como determinação e dedicação para alcançar um objetivo,<br />

uma conquista, um sonho. A primeira, isolada, tem o intuito<br />

de cortar asas. A segunda, temperada com uma boa dose de<br />

paixão, ensina a voar. Foi o que aconteceu com a ginasta paulista<br />

Rebeca Andrade. A menina que mal aprendeu a andar<br />

e já queria ver o mundo de cabeça para baixo entregou-se à<br />

disciplina do esporte aos 6 anos de idade. Caminhava quase<br />

duas horas para chegar ao ginásio. Aos 10, despediu-se da<br />

família para morar com os treinadores em outro estado. Encarou<br />

a dolorosa recuperação de quatro cirurgias com determinação<br />

para competir, vencer e gravar seu nome na história<br />

da ginástica artística.<br />

A disciplina para sentar e escrever, mesmo nos dias em que<br />

os problemas ocupam a mente e bloqueiam a inspiração, é a<br />

lição número 1 que os autores aprendem na carreira. Que o<br />

diga o jornalista e escritor Laurentino Gomes, dono de oito<br />

troféus do Prêmio Jabuti, o mais prestigiado da literatura brasileira.<br />

Antes de sentar e escrever as 1.600 páginas da trilogia<br />

Escravidão, o paranaense que se encantava com as histórias<br />

que o pai contava na roça leu mais de 300 livros ao longo de<br />

seis anos de pesquisa, que incluiu viagem a 12 países em três<br />

continentes diferentes.<br />

Também tem muita disciplina na história da “Mãe do Pop<br />

Foto: Nathan Dumlao/Unsplash<br />

Brasileiro”. A dança entrou na vida de Fernanda Abreu quando<br />

ela tinha 9 anos e não saiu mais, tanto que a cantora e<br />

compositora quase se tornou bailarina profissional antes de<br />

levar seu suingue sangue bom para os palcos. A ex-backing<br />

vocal da Blitz conta que, quando a banda estourou e seus integrantes<br />

viraram celebridades do dia para a noite, manteve<br />

os pés no chão graças à rigidez e à disciplina do balé clássico,<br />

em que “o movimento nunca está perfeito, pode sempre melhorar”,<br />

disse, em entrevista à revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>.<br />

Com talento e oito horas de treino diárias, Thiago Soares deixou<br />

o subúrbio do Rio de Janeiro e alcançou o cobiçado posto<br />

de primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Aos 42 anos,<br />

ele se dedica a um novo ato: a reinvenção da carreira. A história<br />

de Thiago, assim como a de atletas, artistas, escritores,<br />

médicos, engenheiros e muitos outros profissionais brasileiros,<br />

mostra que a disciplina pode dar asas e ensinar a voar.<br />

Esta <strong>edição</strong> <strong>14</strong> traz ainda a história do pernambucano<br />

Rhayann Vasconcelos, empreendedor prodígio da educação<br />

que, aos 23 anos, criou um cursinho online gratuito para<br />

preparar estudantes para o vestibular, o emocionante depoimento<br />

de Maria Paula Bandeira, uma advogada que passou<br />

a dar apoio jurídico e emocional a mulheres com câncer<br />

enquanto ela própria trata um câncer metastático, e um bate-papo<br />

filosófico com Luiz Felipe Pondé sobre a evolução<br />

(ou não) da humanidade.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 19<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 18


[Q&A ETC.]<br />

O filósofo lunar<br />

Durante um debate sobre ética, um jornalista introduziu da seguinte maneira uma pergunta ao escritor e professor Luiz Felipe<br />

Pondé, tido por muitos como pessimista: “Pondé, você que gosta do sofrimento...” O filósofo interrompeu: “Ninguém gosta de<br />

sofrimento! Você não precisa gostar, ele te acha”. Em seu livro mais recente, Diálogos sobre a Natureza Humana <strong>–</strong> Perfectibilidade<br />

e Imperfectibilidade, transcrição de uma série de aulas dadas em 2022, Pondé vai de Santo Agostinho ao Instagram para tentar<br />

descobrir se a humanidade está ou não melhorando. Nesta entrevista à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, o filósofo fala sobre seu ponto de vista sombrio<br />

(que ele chama de “lunar”) e dá informações em primeira mão sobre seu próximo livro.<br />

O que é a perfectibilidade, conceito central no seu mais recente livro?<br />

Foto: divulgação<br />

A perfectibilidade é um conceito em filosofia que afirma que o ser humano pode se aperfeiçoar moralmente, politicamente. Que<br />

nós temos todos os elementos necessários e suficientes para nos tornar cada vez melhores, e que a história seria uma comprovação<br />

disso. A imperfectibilidade é a afirmação de que nós não melhoramos. A gente melhora, depois piora. Avança aqui, cai ali.<br />

A história não caminha no sentido da melhora do ser humano.<br />

Então a história caminha em<br />

que sentido?<br />

Nenhum. Um conceito que eu acho<br />

muito elegante é o de “conglomerado<br />

herdado”, que o [intelectual britânico]<br />

Gilbert Murray, e depois o aluno<br />

dele E.R. Dodds, usa para explicar a<br />

religião na Grécia antiga. Esse conceito<br />

descreve um processo não linear, não<br />

racional, não organizado, sem nenhuma<br />

liderança, que vai acontecendo ao<br />

longo do tempo. Isso está presente em<br />

todas as culturas. A modernidade é<br />

uma grande declaração de guerra ao<br />

conglomerado herdado ocidental. É<br />

uma crença de que agora nós vamos<br />

inventar o que é melhor. Apenas esse<br />

conglomerado herdado absolutamente<br />

ancestral, confuso e contraditório nos<br />

organiza. Quando esse conglomerado<br />

vai ruindo, a gente não sabe o que fazer.<br />

Cada vez mais, ninguém sabe coisa<br />

nenhuma, não se tem vínculo com coisa<br />

nenhuma. Estamos à deriva.<br />

Essa noção de imperfectibilidade<br />

não soa a conservadorismo?<br />

Não dei muita atenção a esse assunto<br />

no livro porque sei como ele rapidamente<br />

destrói a discussão e reduz tudo<br />

a baixarias de polarização. Mas desde o<br />

século XVIII, quando a política moderna<br />

começa mais ou menos a se arrumar, as<br />

posições céticas em relação à natureza<br />

humana, que duvidam da perfectibilidade,<br />

das engenharias sociais e políticas,<br />

são conservadoras em política. No<br />

sentido de que é melhor a gente ir com<br />

calma, porque o ser humano é meio<br />

louco, mais irracional do que racional.<br />

Não significa que você não possa fazer<br />

ajustes de curso, mas você nunca deve<br />

fazê-los a partir de uma ideia abstrata<br />

de ser humano, e sim a partir de problemas<br />

concretos. Mudança só no varejo,<br />

nunca no atacado.<br />

Por que esse tema é importante<br />

agora? A noção da perfectibilidade<br />

está mais presente hoje, com a<br />

evolução tecnológica?<br />

Primeiro porque a modernidade <strong>–</strong> vinculada<br />

como é à Revolução Industrial,<br />

ao avanço técnico-científico, ao surgimento<br />

das democracias modernas<br />

<strong>–</strong> tem uma autopercepção fetichizada<br />

de que ela é um motor de aperfeiçoamento<br />

contínuo. O homem moderno<br />

tem certeza de que as coisas estão<br />

melhorando: se ainda não está bom é<br />

porque a gente ainda não descobriu<br />

como deixar bom. Por outro lado, o<br />

marketing transformou a concepção<br />

de perfectibilidade numa espécie de<br />

coaching barato, universalizante. Então<br />

as pessoas acreditam que podem<br />

se reinventar, que é só uma questão de<br />

ler o livro de autoajuda certo, de fazer o<br />

workshop motivacional certo. O século<br />

XXI, pelo menos até agora, parece que<br />

vai ser mais estúpido do que o século<br />

XX. Eu acho mais sábio viver com a imperfectibilidade.<br />

Mas, se o ser humano não melhora,<br />

para que serve a filosofia?<br />

Para nada. Por isso ela é livre. Platão e<br />

Sócrates seguramente concordariam<br />

com essa ideia de que a filosofia nasceu<br />

para melhorar a vida. Mas a filosofia<br />

não é homogênea. Ainda na antiguidade<br />

greco-romana havia filosofias<br />

como o epicurismo e o estoicismo, que<br />

pensavam mais num modo de você sobreviver<br />

no mundo difícil como ele é.<br />

Quando “se casa” com o cristianismo,<br />

a filosofia começa a trabalhar com a<br />

ideia de Deus, transformação moral.<br />

Mas continuam a existir correntes filosóficas<br />

e autores que formam o que<br />

eu chamo de “filosofia lunar”, que olha<br />

a dimensão sombria do ser humano. É<br />

um contraponto à ideia de filosofia solar,<br />

da razão, do aperfeiçoamento, do<br />

avanço. Para mim, quem inaugurou<br />

essa tradição lunar foi [o filósofo alemão]<br />

Arthur Schopenhauer. Ele rompe com<br />

a ideia de que a história vai em direção<br />

ao aperfeiçoamento humano, ou que<br />

existe uma ordem harmônica na natureza.<br />

Não! A natureza é louca, violenta.<br />

O Universo, ainda que belo e sublime, é<br />

indiferente a nós.<br />

Você se encaixa nessa escola da<br />

filosofia lunar?<br />

Sim, e isso vai virar livro. Por enquanto<br />

estou chamando de Ensaio de Filosofia<br />

Lunar. Vou trabalhar a seguinte hipótese:<br />

nós sobrevivemos até hoje porque<br />

não conseguimos dominar o meio<br />

ambiente, por fraqueza cognitiva e<br />

dificuldade técnica. Aí vêm a Revolução<br />

Industrial, o capitalismo, enfim, a<br />

modernidade, que é um surto de uma<br />

espécie que sempre teve a vocação<br />

para surtar <strong>–</strong> por isso ela delira com<br />

vida após a morte, Deus, essas coisas.<br />

Eu suspeito que a situação do Homo<br />

sapiens é a de uma espécie louca. A<br />

modernidade nos jogou no ar. Não sabemos<br />

absolutamente nada sobre o que<br />

é certo ou errado. E não é que soubéssemos<br />

no passado: só não tínhamos<br />

muita opção, então vivia-se de acordo<br />

com o que estava estabelecido. Agora,<br />

não! Agora, a gente acha que pode inventar<br />

uma humanidade nova a partir<br />

da aula de filosofia. “Olha, eu sei como<br />

fazer uma humanidade nova, basta ler<br />

esse livro.” Entendeu o surto?<br />

Se a humanidade não evolui,<br />

se a vida não melhora, por que<br />

continuar? O que te move?<br />

Porque gostar da vida não tem nada a<br />

ver com achar que ela está melhorando.<br />

Você gosta da vida porque gosta de<br />

comer, de transar... De amar, se tiver<br />

sorte. Estou falando do que, em filosofia,<br />

a gente chama de vida estética, que<br />

não tem nada a ver com arte, mas sim<br />

com gosto, sensações. Você perde muito<br />

tempo se batendo porque não consegue<br />

ser feliz. Achando que “ser feliz”<br />

é uma definição que se pode comprar.<br />

A gente quase não sabe o que é felicidade.<br />

Essa é uma palavra nova. Nós<br />

somos adaptados a uma vida infeliz<br />

a maior parte do tempo. Muito difícil,<br />

muito. [O criador da psicanálise] Sigmund<br />

Freud disse que “aparentemente,<br />

a felicidade do homem não faz parte<br />

dos planos da Criação”. Freud e Schopenhauer<br />

perceberam que nós somos<br />

seres dominados por uma vontade louca,<br />

incontrolável, cega, irascível, insatisfeita,<br />

que arrasta nossa razão. E do<br />

outro lado está a contingência, o fato de<br />

estarmos o tempo todo submetidos a<br />

elementos que não controlamos. Às vezes,<br />

conseguimos vencer a luta contra<br />

a contingência, depois perdemos, como<br />

indivíduos ou em grupo. Eu acho isso<br />

uma grande ópera: você sabe que vai<br />

perder, mas continua vivendo.<br />

Entrevista concedida a Marco Aurélio Gois<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 21<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 20


[COM A PALAVRA…]<br />

Maria Paula Bandeira<br />

Ela descobriu um câncer de mama aos 24 anos e um câncer metastático aos 29.<br />

Quando a esperança ameaçava esmorecer, a advogada pernambucana Maria Paula<br />

Bandeira decidiu criar um perfil no Instagram para acolher mulheres na mesma<br />

situação. Hoje, faz quimioterapia e ajuda outras pacientes a enfrentar o emaranhado<br />

jurídico e emocional dessa jornada<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

“Cresci em uma casa repleta de amor.<br />

Sou a mais velha de quatro irmãos,<br />

com pais casados há quatro décadas.<br />

Fiz faculdade de direito, e passei a<br />

prestar concurso porque tinha o sonho<br />

de ser defensora pública, trabalhar<br />

com algo que fizesse diferença na<br />

sociedade.<br />

Conheci o Rodrigo na universidade, e<br />

nos casamos em 2010. Seis meses depois,<br />

aos 24 anos, recebi um diagnóstico<br />

de câncer de mama. Foi um choque.<br />

Após a cirurgia, vivia uma rotina<br />

de radioterapia, quimioterapia e reposição<br />

hormonal, enquanto via minhas<br />

amigas passando em concurso, engravidando.<br />

Mas segui adiante e, ao fim<br />

do tratamento, acreditei estar curada.<br />

Cinco anos depois, porém, já trabalhando<br />

como advogada em direito eleitoral,<br />

fiz alguns exames porque meu<br />

marido e eu queríamos engravidar.<br />

Novamente, recebi um diagnóstico<br />

inesperado: câncer no ovário. Retirei<br />

os dois ovários, mas os exames revelaram<br />

tratar-se de um câncer metastático<br />

da mama que estava em várias<br />

outras partes do corpo, como fígado,<br />

pulmão, ossos e pleura. Faço quimioterapia<br />

periodicamente desde janeiro<br />

de 2016. Hoje, o intervalo é de 21 dias,<br />

mas já passei por uma fase com três<br />

sessões semanais.<br />

A perspectiva de ter uma doença<br />

grave e sobrevida curta pega qualquer<br />

pessoa de surpresa. Além de encarar<br />

a realidade de não poder ser mãe biológica,<br />

passei a viver um grande luto<br />

ao pensar que meu sobrinho de 1 ano<br />

não teria lembranças minhas, ou que<br />

não estaria presente no casamento<br />

da minha irmã. Apesar do choque, vi<br />

que precisaria extrair o maior bem<br />

do maior mal que me aconteceu. Tirei<br />

muita força da minha religião, o catolicismo.<br />

Para mim, esse lado sagrado<br />

foi essencial.<br />

Eu dizia às pessoas que sempre estava<br />

contra as estatísticas. O câncer de<br />

mama tinha 95% de chances de cura,<br />

mas caí nos outros 5%. Fui um raro<br />

caso de pessoa jovem a ter o câncer<br />

metastático que tive. Outra estatística<br />

em que apareço do lado mais improvável,<br />

desta vez com um resultado<br />

positivo: a maioria dos companheiros<br />

abandona a mulher que recebe diagnóstico<br />

de doença grave. É muito comum<br />

ver histórias tristes como essa.<br />

Eu disse ao Rodrigo que a gente poderia<br />

se separar para ele viver tudo o<br />

que sempre tinha sonhado. Mas ele se<br />

manteve ao meu lado. Há muito amor,<br />

companheirismo e cuidado. Ele é psicólogo<br />

e também meu cuidador.<br />

Tento viver com a doença da melhor<br />

maneira possível. De certa forma,<br />

sempre tive sorte, pois conto com<br />

muito apoio do marido e da minha família<br />

e tenho acesso a tratamento e<br />

cuidados. Mas já precisei abrir mão de<br />

algumas coisas. Eu trabalhava como<br />

professora em uma faculdade, mas<br />

tive que parar quando o câncer no<br />

cérebro começou a me atrapalhar. Já<br />

perdi o movimento da mão direita e,<br />

sendo destra, precisei me adaptar.<br />

Quando descobri meu diagnóstico,<br />

não encontrei uma pessoa que enfrentava<br />

a mesma situação para ouvir um<br />

conselho, trocar dicas, então decidi<br />

ser essa pessoa para os outros. Criei<br />

em 2016 o perfil Lenço do Dia no Instagram,<br />

abrindo um espaço de escuta<br />

e aconselhamento a outras mulheres.<br />

Falo sobre o câncer, medicamentos e<br />

novidades científicas, conto que amo<br />

beber vinho, viajar, pintar o cabelo,<br />

brincar com meus sobrinhos, e ajudo<br />

juridicamente outras mulheres.<br />

Quando a gente descobre um câncer,<br />

precisa lidar com um novo mundo de<br />

informações, burocracias e legislação.<br />

O mais comum são pessoas que precisam<br />

brigar com planos de saúde ou<br />

enfrentar as burocracias do sistema<br />

previdenciário. Como a maioria das<br />

minhas clientes é de mulheres pobres,<br />

cobro pouco pelo trabalho, um salário<br />

mínimo ou até menos. Recebo mais de<br />

20 mensagens por dia, e já ajudei mais<br />

de 500 mulheres. É muito gratificante<br />

quando sai uma decisão favorável à<br />

paciente.<br />

Além da Lenço do Dia e do meu trabalho<br />

como advogada, atuo no Instituto<br />

Ana Michele Soares, entidade criada<br />

em maio de 2023 para levar adiante<br />

o legado dessa amiga querida, ativista<br />

de cuidados paliativos que morreu em<br />

janeiro de 2023. O trabalho dela era<br />

essencial, e agora continuamos esse<br />

serviço, oferecendo apoio semanal<br />

aos pacientes e informações de especialistas.<br />

Também estou sempre educando sobre<br />

como não ser capacitista com<br />

quem tem um câncer grave. Muita<br />

gente trata a pessoa doente com dó,<br />

mas ela precisa ser e se sentir inserida.<br />

E chamo a atenção: nunca diga<br />

coisas como ‘Pelo menos tá viva’ ou<br />

‘Você vai vencer essa’, nem recorra<br />

a metáforas bélicas, sobre enfrentar<br />

uma guerra, uma batalha, ser guerreiro.<br />

Por causa desses trabalhos, recebi o<br />

Prêmio Inspiradoras 2023, do Universa<br />

UOL, na categoria Atenção ao<br />

Câncer de Mama. Quando descobri a<br />

doença, eu só pensava em luto, não<br />

imaginava que um dia seria a inspiração<br />

de alguém.<br />

Não faço planos de longo prazo, mas<br />

faço planos. Após oito anos do diagnóstico<br />

da metástase, vivi muita coisa.<br />

Percebi que minha vida não tinha<br />

parado ali, só seria diferente. Quero<br />

escrever um livro contando minha<br />

história e tentar ajudar pacientes<br />

com doenças graves e seus familiares.<br />

Também pretendo continuar<br />

brincando com meus sobrinhos e fazendo<br />

as coisas de que gosto: viajar,<br />

beber vinho, ir à missa e ser feliz. E<br />

quero que a Lenço do Dia atinja mais<br />

pessoas, para ajudá-las a assumir as<br />

rédeas da própria vida. Quero que a<br />

gente tenha o sonho de envelhecer<br />

e que a gente queira envelhecer, não<br />

abreviar nossa vida.”<br />

Depoimento dado a Guilherme Dearo<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 23<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 22


[GUARDE ESTE NOME]<br />

Rhayann Vasconcelos<br />

O jovem empreendedor do cursinho pré-vestibular<br />

Por Guilherme Dearo<br />

Foto: divulgação<br />

Filho de funcionários públicos concursados,<br />

o recifense Rhayann Vasconcelos,<br />

de 26 anos, aprendeu desde<br />

cedo que a educação é a base para conquistar<br />

sucesso na vida. Sem berço de<br />

ouro nem ter enfrentado dificuldades<br />

financeiras, Rhayann nunca sentiu que<br />

lhe faltaram oportunidades ao crescer.<br />

Contudo, ele sabia que o futuro não estava<br />

ganho e demandava dedicação.<br />

Frequentou escolas privadas, mas estudou<br />

em escola pública quando a família<br />

precisou apertar o cinto <strong>–</strong> já naquela<br />

época, a mudança gerou preocupação<br />

no adolescente, acostumado a ouvir sobre<br />

a falta de perspectiva para alunos<br />

da rede pública. “Algumas pessoas têm<br />

o privilégio de não se importar se vão<br />

para a faculdade ou não. Para outras, o<br />

futuro depende disso”, diz.<br />

Os pais sonhavam com o filho se tornando<br />

funcionário público, o que lhe<br />

garantiria carreira e estabilidade. Aos<br />

18 anos, Rhayann estudou para um<br />

concurso público, passou, mas, quando<br />

foi convocado, recusou a vaga <strong>–</strong> a ideia<br />

de fazer a mesma coisa por décadas<br />

não lhe agradava. “Meus pais achavam<br />

que eu estava maluco de perder uma<br />

oportunidade como aquela, mas não<br />

era meu interesse. Só quis mostrar a<br />

eles que eu era dedicado e conseguia<br />

passar. Mas meu sonho era outro”, conta<br />

Rhayann.<br />

No começo da vida adulta, a vontade<br />

de fazer algo de impacto já existia,<br />

embora Rhayann ainda não soubesse<br />

exatamente o quê. Aos 19 anos, em<br />

2016, conseguiu uma vaga no governo<br />

de Pernambuco como responsável por<br />

cuidar de políticas públicas para a juventude.<br />

“Nessa época, achei que meu<br />

futuro seria a política. Não como político,<br />

que nunca desejei, mas seguindo<br />

uma carreira de gestão.”<br />

Em 2019, embarcou na vida de empreendedor<br />

ao criar a Acelere Educação,<br />

que passou a promover eventos com jovens<br />

para debater empreendedorismo<br />

e o sonho do primeiro negócio. A ótima<br />

ideia encontrou uma barreira: com a<br />

pandemia de Covid-19, veio a proibição<br />

de eventos presenciais. Mas Rhayann<br />

rapidamente mudou de rumo. “Quando<br />

comecei a ver as notícias de jovens<br />

prejudicados, sem estudo de qualidade<br />

e com o Enem cancelado naquele ano,<br />

vi que precisava fazer alguma coisa.”<br />

Sozinho e sem recursos financeiros, ele<br />

fundou a Acelere no Enem visando a<br />

criação de cursos gratuitos voltados a<br />

jovens com o sonho de prestar a prova<br />

e entrar na universidade. Gravou uma<br />

aula em um estúdio emprestado e começou<br />

a correr atrás do primeiro parceiro.<br />

Naquela época, dividia seu tempo<br />

entre a nova empresa e a faculdade de<br />

publicidade.<br />

Diante da resposta positiva de alguns<br />

alunos, Rhayann seguiu adiante. Em<br />

poucos meses, a equipe já somava quatro<br />

pessoas, mas com professores ainda<br />

trabalhando como voluntários. Hoje,<br />

são 26 profissionais, e com professores<br />

pagos para criar as aulas. Todo o conteúdo<br />

<strong>–</strong> de aulas ao vivo e gravadas e<br />

simulados a mentorias e acompanhamento<br />

pedagógico <strong>–</strong> é fornecido gratuitamente,<br />

e a empresa fatura com<br />

publicidade, tendo parceiros como Bic,<br />

Senai, Estácio e TikTok.<br />

O número de alunos também cresceu<br />

exponencialmente. No primeiro ano,<br />

foram 84 mil inscritos nas aulas. Em<br />

2021, 489 mil estudantes foram atendidos.<br />

Em 2022, 519 mil. O faturamento<br />

também cresceu, saltando de 27 mil<br />

reais em 2020 para 3 milhões de reais<br />

em 2023. Entre os estudantes que<br />

responderam aos questionários após<br />

passagem pela Acelere no Enem, 20<br />

mil entraram em alguma universidade<br />

graças ao sucesso na prova do Enem.<br />

O contato com tantos alunos também<br />

mostrou a complexa realidade do Brasil<br />

a Rhayann. “A gente lembra que há<br />

muita desigualdade. Tem gente que<br />

não tem internet em casa, outros só<br />

têm um único celular no lar, o da mãe<br />

ou do pai, e precisam esperar que eles<br />

voltem do trabalho para assistirem às<br />

aulas do curso. Então a gente pensa<br />

sempre em tecnologias e soluções para<br />

facilitar a vida deles.”<br />

Rhayann sabe que o impacto na vida<br />

dos estudantes é um pequeno grande<br />

passo rumo a um país com mais educação<br />

de qualidade. “Os governos mudam,<br />

todos falam da importância da<br />

educação em campanhas, mas depois a<br />

conversa some. É preciso colocar a educação<br />

como prioridade do orçamento, e<br />

o país precisa adotar uma agenda que<br />

será seguida por todas as gestões, com<br />

continuidade”, analisa.<br />

A Acelere no Enem e seu fundador<br />

ganharam reconhecimento com premiações<br />

no Brasil e no exterior. Em<br />

2021, a empresa foi eleita uma das 30<br />

melhores iniciativas do país pela Brazil<br />

Conference Harvard & MIT, maior<br />

conferência organizada por estudantes<br />

em Boston, nos Estados Unidos. No<br />

ano seguinte, ficou entre as dez maiores<br />

iniciativas na mesma conferência<br />

e foi escolhida entre as cinco melhores<br />

do Brasil na categoria educação básica<br />

no Prêmio do Movimento LED <strong>–</strong> Luz na<br />

Educação, oferecido pela TV Globo e<br />

pela Fundação Roberto Marinho. Também<br />

em 2022, Rhayann foi eleito um<br />

dos jovens mais promissores na lista<br />

Forbes Under 30, pela Forbes Brasil.<br />

Após tantas conquistas, Rhayann Vasconcelos<br />

sonha em aumentar sua marca,<br />

ampliando o escopo da empresa.<br />

Para <strong>2024</strong>, a ideia é lançar três novas<br />

frentes da Acelere: uma para cursos<br />

técnicos; outra com cursos extras para<br />

universitários; e uma terceira para capacitar<br />

professores que desejam produzir<br />

conteúdo para a internet.<br />

“Quero ajudar muito mais pessoas. E<br />

quero inspirar mais gente. O Enem não<br />

é o fim, é apenas o começo. Gosto de<br />

falar aos jovens que se esforcem, estudem<br />

e se dediquem, e não desistam na<br />

primeira barreira, porque a vida nem<br />

sempre é justa. A educação realmente<br />

transforma vidas. E o mais importante<br />

é dar orgulho a quem você ama”, diz.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 25<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 24


Nome: Rebeca Rodrigues de Andrade<br />

Idade: 24 anos<br />

Profissão: ginasta<br />

Cidade onde nasceu: Guarulhos/SP<br />

A menina que<br />

aprendeu<br />

a voar<br />

Por Heloísa Noronha<br />

A ginasta Rebeca Andrade superou<br />

dificuldades financeiras, infância<br />

longe da família e lesões antes de se<br />

tornar o maior nome da história da<br />

ginástica artística brasileira<br />

Foto: Miriam Jeske/COB<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 27<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 26


Estrelas na sala<br />

Rebeca Rodrigues de Andrade nasceu<br />

em Guarulhos, na Grande São Paulo,<br />

no dia 8 de maio de 1999. Era a caçula<br />

do primeiro casamento de Rosa Santos,<br />

que se separou do marido quando<br />

Rebeca ainda era pequena e criou os<br />

filhos trabalhando como empregada<br />

doméstica. Ao lado dos sete irmãos <strong>–</strong><br />

além dos quatro mais velhos, ela tem<br />

outros três do segundo casamento<br />

de Rosa <strong>–</strong>, Rebeca teve uma infância<br />

humilde, mas bastante ativa. Assim<br />

que aprendeu a engatinhar, inventou<br />

de escalar os móveis da casa.<br />

Mal começou a andar, passava o dia<br />

virando estrela e fazendo estripulias<br />

pela sala. “Eu sempre fui muito feliz.<br />

Tudo o que importava na época era<br />

o amor, o carinho e o apoio da minha<br />

família, desde sempre, para tudo o<br />

que eu quisesse fazer. E isso continua<br />

importante para mim”, diz Rebeca. “O<br />

maior desafio para que eu pudesse me<br />

tornar uma grande atleta foi a parte<br />

financeira. A gente teve muita dificuldade<br />

nessa área.”<br />

A tia de Rebeca trabalhava no Ginásio<br />

Bonifácio Cardoso, em Guarulhos,<br />

e levou os filhos para um teste<br />

na ginástica artística do projeto social<br />

da cidade. Acompanhando os primos,<br />

Rebeca impressionou os professores.<br />

Mônica dos Anjos, a primeira treinadora,<br />

afirma que a menina tinha o<br />

biotipo ideal para o esporte: ombros<br />

largos, quadril estreito, magra e com<br />

a musculatura definida. A mãe fez<br />

tudo o que estava ao alcance para<br />

impulsionar a carreira da filha. Chegou<br />

a acumular três empregos para<br />

ter condições de custear o treinamento,<br />

enquanto o irmão mais velho<br />

de Rebeca ficava encarregado de levar<br />

de ônibus a menina aos treinos. No<br />

período em que faltou dinheiro para<br />

o transporte, os irmãos faziam o percurso<br />

de quase duas horas a pé, até o<br />

rapaz conseguir comprar uma bicicleta.<br />

“As pessoas sempre me ajudaram<br />

muito, de coração mesmo, sem<br />

pedir nada em troca. Dessa parte eu<br />

não tenho do que reclamar”, afirma.<br />

“O maior desafio para que eu pudesse me tornar uma<br />

grande atleta foi a parte financeira. A gente teve muita<br />

dificuldade nessa área”<br />

Aos 15 anos (à esq.), com uma amiga | Foto: reprodução Instagram<br />

Foto: Miriam Jeske/COB<br />

E<br />

nquanto ela corre para saltar sobre uma mesa, abre um espacate aéreo na<br />

trave de equilíbrio ou rodopia no ar ao som de Baile de Favela, a respiração<br />

de milhões de compatriotas fica suspensa, à espera da aterrissagem cravada.<br />

Com apenas 1,51 metro de altura, Rebeca Andrade é um gigantesco motivo de orgulho<br />

para os brasileiros. A atleta que conquistou de vez a torcida ao levar o funk para<br />

os ginásios mundo afora começou a gravar seu nome na história da ginástica artística<br />

em 2021, quando se tornou a primeira brasileira a subir duas vezes no pódio em<br />

uma mesma Olimpíada, em Tóquio.<br />

Desde então, acumulou uma série de medalhas de peso, as mais recentes obtidas<br />

nos Jogos Pan-Americanos de Santiago 2023, em outubro. Era sua primeira participação<br />

no evento, e ela voltou do Chile com duas medalhas de ouro e duas de prata<br />

na bagagem, ajudando a colocar o Brasil no disputado segundo lugar do quadro de<br />

medalhas do torneio, atrás apenas da potência Estados Unidos.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 29<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 28


No topo do ranking<br />

Daianinha de Guarulhos<br />

Rebeca pisou pela primeira vez num<br />

centro de treinamento em 2005. Um<br />

ano antes, Daiane dos Santos havia<br />

brilhado nos Jogos Olímpicos de Atenas,<br />

na Grécia, ao conquistar o inédito<br />

quinto lugar na final do solo, e dois<br />

anos antes a gaúcha obteve o histórico<br />

ouro no solo do Campeonato Mundial,<br />

apresentando ao mundo seu duplo<br />

twist carpado. A trajetória da menina<br />

negra que se destacou num esporte<br />

em que até então predominavam<br />

pessoas brancas se tornou a principal<br />

inspiração para a carreira de Rebeca.<br />

A admiração ganhou um novo significado<br />

quando, aos 10 anos, teve a chance<br />

de treinar ao lado da ídola. Na ocasião,<br />

o Pinheiros, clube da ex-ginasta<br />

e comentarista, estava em reforma, e<br />

Daiane passou um período treinando<br />

em Guarulhos. Não à toa, Rebeca recebeu<br />

o apelido de “Daianinha de Guarulhos”<br />

logo que chegou ao Ginásio<br />

Bonifácio Cardoso. Hoje, a admiração<br />

entre elas é mútua.<br />

Alexandre Loureiro/COB<br />

A paixão pela ginástica artística despontou<br />

nas primeiras piruetas e não<br />

parou mais de crescer. Ela foi morar<br />

com os treinadores em Curitiba antes<br />

de completar 11 anos de idade para<br />

conseguir melhores condições para<br />

treinar. A mãe foi muito criticada por<br />

permitir que uma criança tão pequena<br />

se lançasse ao mundo para viver<br />

longe da família, mas era a única maneira<br />

de Rosa ver a filha evoluir no esporte<br />

e realizar um sonho. As portas<br />

de casa, conforme disse em diversas<br />

entrevistas, estariam sempre abertas<br />

para recebê-la de volta, em qualquer<br />

circunstância.<br />

Em 2011, Rebeca mudou-se para o Rio<br />

de Janeiro para se tornar atleta do Clube<br />

de Regatas do Flamengo, seu atual<br />

clube. Hoje, a ginasta conta com uma<br />

estrutura que nem de longe se parece<br />

com a que ela teve no início da carreira:<br />

ela mora na Barra da Tijuca, pertinho<br />

do Centro de Treinamento do Time<br />

Brasil, e dá conta da rotina intensa de<br />

programação de treinos sem percorrer<br />

os longos trajetos da infância.<br />

“Foi maravilhoso<br />

mostrar um pouco<br />

do Brasil, da<br />

cultura brasileira,<br />

no outro lado do<br />

mundo”<br />

Em 29 de julho de 2021, Rebeca<br />

Andrade, então com 22 anos, conquistou<br />

a primeira medalha olímpica<br />

feminina da ginástica do Brasil ao<br />

ganhar a prata no individual geral,<br />

prova que reúne os quatro aparelhos<br />

da modalidade: trave, barras assimétricas,<br />

salto e solo. Ainda na Tóquio<br />

2020, a jovem ocupou o lugar mais<br />

alto do pódio na prova de salto, estreando<br />

o ouro da modalidade entre as<br />

mulheres brasileiras. Poucos meses<br />

depois, em outubro, no Mundial disputado<br />

em Kitakyushu, também no<br />

Japão, ela voltou a conquistar duas<br />

medalhas: ouro no salto e prata nas<br />

barras assimétricas. A sequência<br />

de quatro medalhas colocou Rebeca<br />

Andrade no posto de maior ginasta<br />

feminina da história do país, superando<br />

em termos de resultados outros<br />

grandes nomes da modalidade, como<br />

Daiane dos Santos, Daniele Hypólito e<br />

Jade Barbosa.<br />

Icônica, a série de Rebeca Andrade<br />

no solo naquele ano ficou guardada<br />

na memória dos brasileiros. O mix<br />

do funk Baile de Favela, de MC João,<br />

com o órgão de tubo de Tocata e Fuga,<br />

do compositor alemão Johann Sebastian<br />

Bach, embalou os movimentos<br />

e saltos da ginasta e emocionou a<br />

torcida. “Baile de Favela me marcou<br />

muito. Fiz apresentações com a trilha<br />

antes da Olimpíada, mas ela estourou<br />

mesmo depois dos Jogos e eu tenho<br />

um carinho enorme por essa música.<br />

Foi maravilhoso mostrar um pouco<br />

do Brasil, da cultura brasileira, no<br />

outro lado do mundo”, diz Rebeca.<br />

“Eu escuto e gosto muito da batida<br />

do funk. Acho que anima as pessoas,<br />

que chama o público e todo mundo<br />

gosta. Eu me sinto muito honrada<br />

de as pessoas se lembrarem de mim<br />

quando ouvem a batida de Baile de<br />

Favela, tanto que eu trouxe um pedacinho<br />

da música para o final da série<br />

do meu solo do Pan, que começa com<br />

Beyoncé e Anitta”, explica a ginasta.<br />

Após a apresentação viral e o excelente<br />

desempenho em Tóquio, Rebeca<br />

apareceu carregando a bandeira do<br />

Brasil à frente da delegação brasileira<br />

na cerimônia de encerramento<br />

dos Jogos Olímpicos. A partir daí,<br />

passou a colecionar títulos: foi eleita<br />

a melhor atleta da ginástica artística<br />

e melhor atleta do ano no Prêmio<br />

Brasil Olímpico pelo Comitê Olímpico<br />

do Brasil (COB) em 2021, 2022 e<br />

2023, nomeada embaixadora da ONU<br />

Mulher e duas vezes escolhida como<br />

atleta do ano pela Associação dos<br />

Cronistas Esportivos do Estado de<br />

São Paulo (Aceesp). Em meio a tantas<br />

conquistas, se tornou uma celebridade<br />

nacional e passou a ser convidada<br />

para participar de programas<br />

de televisão fora do mundo esportivo,<br />

como Altas Horas, da Rede Globo, e<br />

Saia Justa, do GNT, e estampar capas<br />

de revista, a exemplo da <strong>edição</strong> de<br />

outubro de 2021 da Vogue.<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 31<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 30


Prêmio Brasil Olímpico 2023 | foto: Alexandre Loureiro/COB<br />

Conquistas dos sonhos<br />

Em 2023, além do sucesso no Pan do<br />

Chile, Rebeca também saiu consagrada<br />

do Campeonato Mundial de Ginástica<br />

Artística, que aconteceu na Antuérpia,<br />

na Bélgica. Com cinco pódios, ela<br />

se tornou a maior medalhista brasileira<br />

em um único Mundial, igualando o feito<br />

do nadador César Cielo, e ajudou o<br />

Brasil a quebrar o recorde em número<br />

de medalhas (seis) numa mesma <strong>edição</strong><br />

da importante competição mundial<br />

de ginástica artística, superando as<br />

três de Liverpool, em 2022. De quebra,<br />

Rebeca ainda se sagrou campeã na<br />

prova do salto, ofuscando o favoritismo<br />

da americana Simone Biles, fenômeno<br />

do esporte.<br />

“Na minha infância, eu queria muito<br />

ser uma medalhista olímpica, uma<br />

medalhista mundial e conquistar várias<br />

coisas”, diz. Será que a realidade<br />

Dor e medo<br />

Ao longo dos anos, Rebeca enfrentou<br />

uma série de lesões no joelho que quase<br />

interromperam a carreira. “Após a<br />

última lesão, não consegui arrumar<br />

forças como treinador para pedir que<br />

ela continuasse. As recuperações anteriores<br />

foram difíceis, então eu não<br />

tinha argumentos para fazê-la passar<br />

por tudo aquilo novamente”, conta<br />

ele, revelando que chorava em casa<br />

por causa da situação da atleta. “Não<br />

era o treinador dela chorando, e sim<br />

a pessoa que a viu crescer e ter mais<br />

uma vez seu sonho interrompido. Foi<br />

então que ela me ligou e disse que eu<br />

poderia ficar tranquilo, que ela não iria<br />

desistir sem tentar. Desde aquele momento,<br />

não passei um dia sem pensar<br />

no melhor de mim que ela poderia ter”,<br />

diz Chico.<br />

Durante os preparativos para os Jogos<br />

Pan-Americanos de Toronto, no Canadá,<br />

Rebeca rompeu o ligamento cruzado<br />

anterior do joelho direito. A lesão<br />

correspondeu às expectativas? “Posso<br />

dizer que está sendo melhor do que eu<br />

esperava, melhor do que eu sonhava. E<br />

eu fico muito, muito feliz com isso, porque<br />

trabalhei duro para chegar até aqui<br />

junto com toda a minha equipe, tendo<br />

a minha fé e acreditando que coisas<br />

novas viriam no futuro, mesmo com os<br />

imprevistos que aconteceram durante<br />

a minha carreira. Então, termino 2023<br />

com muita felicidade.”<br />

“Na minha infância, eu queria muito ser uma<br />

medalhista olímpica, uma medalhista mundial<br />

e conquistar várias coisas”<br />

Francisco Porath é o técnico com perfil<br />

de paizão nos bastidores do sucesso da<br />

ginasta de Guarulhos. E Chico, como é<br />

mais conhecido, faz questão de endossar<br />

a luta e a garra da pupila: “Acompanhei<br />

todo o crescimento da Rebeca,<br />

e desde o início vi todo o seu potencial.<br />

Quando a Rosa, mãe dela, permitiu que<br />

ela fosse morar com a gente em Curitiresultou<br />

em duas cirurgias, uma em<br />

2015 e outra em 2017. Os procedimentos<br />

cirúrgicos se somaram ao anterior,<br />

feito em 20<strong>14</strong>, quando ela passou por<br />

uma cirurgia no pé e ficou de fora das<br />

Olimpíadas da Juventude de Nanquim,<br />

na China. Em 2019, às vésperas do Pan<br />

de Lima, no Peru, uma nova cirurgia no<br />

joelho tirou a ginasta da competição.<br />

“Foram momentos muito complicados”,<br />

admite Rebeca. “Para um atleta de alto<br />

rendimento, é difícil ficar muito tempo<br />

longe da quadra. Em 2015, quando<br />

aconteceu a primeira vez, senti muita<br />

dor e medo. Nunca tinha passado por<br />

uma cirurgia tão grande, tão complexa.<br />

Nas três vezes, confesso que pensei<br />

em desistir. Na última, liguei para minha<br />

mãe e pedi que viesse até o Rio me<br />

buscar, porque não queria mais fazer<br />

ginástica”, relata.<br />

Rebeca não sente constrangimento em<br />

admitir vulnerabilidade, pois entende<br />

ba, eu tive um insight. Não foi uma decisão<br />

fácil para todos os envolvidos, porém<br />

o desejo da Rebeca com tão pouca<br />

idade e o incentivo da mãe me fizeram<br />

acreditar que não haveria obstáculos<br />

suficientes para impedi-la de alcançar<br />

seus sonhos”.<br />

Rebeca e Chico não estão sozinhos nas<br />

conquistas da atleta. A primeira medalha<br />

olímpica no individual geral, em<br />

Tóquio, premiou um esforço coletivo.<br />

“O Brasil já vinha havia muitas gerações<br />

em busca disso, e naquele dia,<br />

aparelho por aparelho, vi isso sendo<br />

construído. Quando saiu a última nota,<br />

tirei a bandeira do Brasil da mochila e<br />

enrolei na Rebeca. Ali realizamos não<br />

só os nossos sonhos, mas os de um<br />

país inteiro! Foi incrível mesmo”, lembra<br />

Chico, emocionado.<br />

que estava sensível e enfrentava uma<br />

situação delicada. “Não me sinto mal<br />

por ter pensado em desistir. Me sinto<br />

muito grata e feliz por ter continuado”,<br />

diz. Enquanto se recuperava, chorava<br />

de saudade dos treinos. Queria voltar<br />

logo a competir. “Minha mãe percebeu<br />

que o que eu sentia era medo de voltar<br />

para o treino e não conseguir ser a<br />

atleta que era antes. Então, ela me falou:<br />

‘Olha, filha, a mãe não vai deixar<br />

você parar de treinar sem você tentar.<br />

Se você tentar e não conseguir, aí tudo<br />

bem, você tem sua família, todo mundo<br />

vai te receber de braços abertos porque<br />

a gente te ama, e vamos seguir a<br />

vida. Mas você precisa tentar’.” Rebeca<br />

se diz muito grata à mãe por sua postura<br />

firme, de não passar a mão na cabeça<br />

da filha no primeiro momento de<br />

fragilidade, mas também ter oferecido<br />

acolhimento e respeito. “Felizmente,<br />

tenho uma rede de apoio muito grande”,<br />

conta a atleta.<br />

Pensamento positivo<br />

A positividade que Rebeca Andrade<br />

aprendeu a desenvolver no decorrer da<br />

carreira também teve <strong>–</strong> e ainda tem <strong>–</strong><br />

papel fundamental no retorno aos ginásios<br />

e nos resultados que vem apresentando<br />

desde então. “Estou sempre<br />

pensando em coisas boas, desejando<br />

o melhor para mim e para a minha<br />

equipe. Antes de fazer os movimentos,<br />

peço proteção a Deus. Na minha cabeça,<br />

eu digo: ‘Você não vai fazer nada de<br />

diferente do que já fez no treino, então<br />

vai firme e consciente’”, revela a atleta.<br />

“Às vezes, quando a câmera foca<br />

no meu rosto, dá até para ver a minha<br />

boca mexendo. É o momento em que<br />

estou me dando confiança, me deixando<br />

mais centrada e concentrada para<br />

poder fazer os meus movimentos.”<br />

A ginasta trabalhou com uma psicóloga<br />

esportiva por iniciativa do Comitê<br />

Olímpico Brasileiro, e a terapia foi um<br />

incentivo para Rebeca se matricular na<br />

faculdade de psicologia. Atualmente,<br />

ela concilia as aulas do quarto semestre<br />

do curso com sua rotina esportiva <strong>–</strong> e é<br />

tão boa aluna quanto ginasta. Treinos,<br />

terapia e fisioterapia tomam boa parte<br />

do seu tempo. “Quando não estou treinando<br />

ou competindo, gosto muito de<br />

dormir”, diz, aos risos. “Também gosto<br />

de ir à praia e ficar tranquila, pegando<br />

sol, curtindo o mar. Ainda adoro ouvir<br />

música, principalmente de cantoras<br />

como Beyoncé, Rihanna, Jessie J, Ariana<br />

Grande, Ludmilla e Anitta”, completa<br />

a atleta, que namora o fisiculturista<br />

Luiz Cleiton, de 28 anos.<br />

Logo após o Pan de Santiago, Rebeca<br />

tirou merecidas férias e compartilhou<br />

com seus seguidores <strong>–</strong> ela soma<br />

mais de 6 milhões no Instagram e no<br />

TikTok <strong>–</strong> momentos do descanso em<br />

Angra dos Reis, no Rio, e na Europa,<br />

enquanto visitava cidades como Amsterdã<br />

e Madri. A atleta começa <strong>2024</strong><br />

concentrando esforços e intensificando<br />

treinos para os Jogos Olímpicos.<br />

“A futura campeã olímpica de Paris”,<br />

segundo um internauta. “Bom, espero<br />

que em <strong>2024</strong> eu esteja feliz e saudável<br />

para que possa fazer meu melhor<br />

nas Olimpíadas.” O Brasil estará com<br />

a respiração suspensa, torcendo pelos<br />

saltos perfeitos.<br />

Que conselho daria<br />

à jovem Rebeca?<br />

“Você sabe que é<br />

capaz, não desista<br />

dos seus sonhos. Vai<br />

firme, mantendo a sua<br />

fé e tendo sua família<br />

sempre por perto.<br />

Você consegue”<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 33<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 32


Nome: José Laurentino Gomes<br />

Idade: 67 anos<br />

Profissão: jornalista e escritor<br />

Cidade onde nasceu: Maringá/PR<br />

O contador<br />

da história<br />

Por Simone Costa<br />

Dono de oito Prêmios Jabuti, o jornalista e escritor<br />

Laurentino Gomes já vendeu mais de 3 milhões<br />

de livros narrando, de forma envolvente, eventos<br />

importantes em séculos de história do Brasil<br />

Foto: divulgação<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 35<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 34


“Receber o Jabuti<br />

é uma grande<br />

honra porque<br />

ele valida o<br />

escritor de várias<br />

maneiras. E a<br />

gente precisa ficar<br />

contente com o<br />

trabalho que fez”<br />

O<br />

agricultor João Ignácio era um leitor voraz. Era começo dos anos 1960, não<br />

havia nenhuma livraria ou biblioteca no pequeno distrito de Água Boa, no<br />

interior do Paraná, então ele pegava livros emprestados de um padre da região.<br />

Adorava ler sobre eventos importantes do passado, como a história da Igreja<br />

Católica ou do Império Romano. Passava o dia na roça, e, quando o filho aparecia<br />

com a marmita, contava ao menino as narrativas do livro da vez. “Essa é a memória<br />

mais antiga que eu tenho de livros e leitura. Eram coisas fascinantes, muito interessantes”,<br />

diz o jornalista e escritor Laurentino Gomes, o menino que ouvia atento as<br />

histórias que o pai narrava na plantação de café enquanto almoçava. “Isso despertou<br />

em mim esse fascínio pelo passado e me deixou a ideia de que a história vale a<br />

pena ser estudada e contada.”<br />

A sementinha plantada no filho por João Ignácio <strong>–</strong> e também por Maria Ascenção,<br />

mãe de Laurentino, que sempre o estimulou a ler e estudar <strong>–</strong> deu frutos. E prêmios.<br />

O escritor já ganhou oito vezes o Jabuti, premiação mais importante da literatura<br />

brasileira. Seu mais recente livro, o terceiro volume de Escravidão, figurou entre os<br />

finalistas na categoria Biografia e Reportagem em 2023, vencida por Fabio Victor<br />

com a obra Poder Camuflado: Os Militares e a Política, do Fim da Ditadura à Aliança com<br />

Bolsonaro. Do volume 1, que começa no primeiro leilão de africanos escravizados em<br />

Portugal, ao terceiro volume, que vai até a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a<br />

trilogia Escravidão cobre um período de 444 anos da história.<br />

Resultado de seis anos de pesquisas, que incluíram viagens por 12 países e três<br />

continentes, além da leitura de mais de 300 livros, a trilogia publicada pela Editora<br />

Globo já passou das 600 mil cópias vendidas e levou dois Jabutis, em 2020 e 2022.<br />

“Receber o Jabuti é uma grande honra porque ele valida o escritor de várias maneiras.<br />

E a gente precisa ficar contente com o trabalho que fez”, diz Laurentino em<br />

entrevista à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, de sua casa em Viana do Castelo, no norte de Portugal. Ele<br />

aproveita para fazer uma autocrítica: “Sempre penso que meus livros poderiam ter<br />

ficado um pouquinho melhor aqui e ali, mas gostei do resultado do que me propus<br />

a fazer. Tem ainda a reação do público e a acolhida da crítica, o que fecha o ciclo de<br />

uma premiação”.<br />

João Ignácio e Maria Ascenção, pais de Laurentino | foto: arquivo pessoal<br />

Laurentino (ao centro) com os irmãos Sérgio e Jaime<br />

foto: arquivo pessoal<br />

A vida na roça<br />

A família do escritor chegou ao Paraná<br />

numa época em que o estado era desbravado<br />

como fronteira agrícola. O pai<br />

era descendente de portugueses que<br />

haviam se estabelecido em Minas Gerais,<br />

mas rumaram para o sul em busca<br />

de terras mais baratas. Já Maria Ascenção<br />

era descendente de imigrantes italianos<br />

que vieram para o Brasil no fim<br />

do século XIX para substituir a mão de<br />

obra escravizada nas lavouras de café<br />

no interior de São Paulo. Também chegaram<br />

à região de Maringá em busca<br />

de terras que pudessem comprar.<br />

O sítio onde a família de Laurentino<br />

vivia parecia ter parado na era pré-industrial.<br />

Eles tinham que produzir tudo<br />

em casa. “Comprávamos tecido para<br />

fazer roupas e querosene para acender<br />

a lamparina à noite”, conta. A vida não<br />

era fácil, e os quatro filhos tinham que<br />

ajudar nas tarefas do dia a dia.<br />

Tanto João Ignácio quanto Maria Ascenção<br />

haviam abandonado a escola<br />

precocemente para trabalhar, mas o<br />

casal se empenhava para que todos os<br />

filhos estudassem porque acreditava<br />

que a educação era a única maneira<br />

de ascensão social naquela sociedade.<br />

“E eles conseguiram, com muita dificuldade,<br />

trabalhando na roça o tempo<br />

todo, que os quatro filhos concluíssem<br />

a faculdade”, conta Laurentino. Ele se<br />

formou em jornalismo, dois irmãos, em<br />

engenharia, e o outro, em direito.<br />

Um mau padre<br />

Uma tradição familiar, do lado paterno, quase mudou o rumo da vida de Laurentino:<br />

o primogênito tinha que se tornar padre. Com 11 anos, Laurentino fez as malas e<br />

partiu rumo ao seminário da Pia Sociedade de São Paulo, na divisa entre a capital<br />

paulista e Osasco. “Os paulinos são uma congregação voltada para a comunicação<br />

social. Lá, tive o primeiro contato com o mundo das comunicações. Trabalhei em<br />

uma gráfica, aprendi um pouco de latim, de francês e comecei a ler. Aí nasceu, realmente,<br />

um leitor. Quando voltei para casa, estava pronto para seguir a vida que tive<br />

depois”, afirma.<br />

Os pais ficaram surpresos quando, um dia de manhã, o jovem Laurentino, então<br />

com <strong>14</strong> anos, apareceu em casa de mala e cuia. “Saí do seminário porque lá, com as<br />

leituras, descobri um mundo fascinante que queria conhecer e o ambiente religioso,<br />

de certa forma, me restringia. E acho que eu teria sido um mau padre”, diverte-se.<br />

Aos 17 anos, o adolescente deixou novamente a casa dos pais para cursar jornalismo<br />

na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Um ano depois, já estava<br />

trabalhando no novo jornal da cidade, chamado Correio de Notícias. Mas o emprego<br />

não durou muito. O “foca”, jargão do jornalismo para se referir aos iniciantes<br />

na profissão, escreveu uma matéria em que criticava a nomeação do governador<br />

pelo governo militar. No dia seguinte, ao abrir o jornal, deparou-se com um texto<br />

totalmente diferente, sem as críticas e com elogios. O dono do jornal, que era da<br />

Arena <strong>–</strong> partido de sustentação da ditadura militar <strong>–</strong>, não gostou da reportagem e<br />

a reescreveu inteira. “Fiz um manifesto contra o dono do jornal, colei no mural da<br />

redação e fui embora. Foi demissão por justa causa e achei que minha carreira tinha<br />

acabado ali”, lembra.<br />

“Trabalhei em<br />

uma gráfica,<br />

aprendi um<br />

pouco de latim, de<br />

francês e comecei<br />

a ler. Aí nasceu,<br />

realmente, um<br />

leitor”<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 37<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 36


Baile de Carnaval de 1983, entrevistando o então prefeito de Curitiba, Jaime Lerner | foto: arquivo pessoal<br />

Da gaveta para<br />

as livrarias<br />

A paixão pelo estudo da história do<br />

Brasil, que brotou lá na roça de café da<br />

família, foi ganhando força enquanto<br />

Laurentino trabalhava como jornalista.<br />

Em 1997 <strong>–</strong> uma década antes de publicar<br />

seu primeiro livro <strong>–</strong>, o jornalista<br />

ficou bastante empolgado com a ideia<br />

de produzir edições especiais sobre<br />

acontecimentos históricos do país, que<br />

seriam enviadas aos novos assinantes<br />

da revista Veja como brinde. Era uma<br />

estratégia de marketing para enfrentar<br />

o lançamento da revista Época, outra<br />

publicação semanal, mas o plano não<br />

foi adiante.<br />

Quando a direção da editora mudou de<br />

estratégia e cancelou o projeto, Laurentino,<br />

encarregado de coordenar a equipe<br />

que produziria o material, já havia<br />

sido fisgado pelo tema. “Eu me senti<br />

frustrado com o cancelamento porque<br />

estava absolutamente fascinado com o<br />

que tinha lido sobre dom João VI no Rio<br />

de Janeiro. Um dos exemplares da série<br />

de especiais seria sobre a vinda da corte<br />

para o Brasil. Decidi continuar a pesquisar<br />

o tema, mas sem plano algum de<br />

transformar em um livro”, garante.<br />

A queda na receita de publicidade e<br />

de assinaturas, além da diminuição da<br />

venda em banca, afetou o jornalismo<br />

impresso em meados dos anos 2000, e<br />

na Editora Abril não foi diferente. Ocupando<br />

um cargo executivo, Laurentino<br />

se viu no papel de anunciar a demissão<br />

a diversos profissionais. “Tive que demitir<br />

dezenas de colegas. Creio que foi a<br />

passagem mais dolorosa da minha vida.<br />

A situação fez crescer em mim a ideia<br />

de procurar uma alternativa”, diz. E foi<br />

assim que a extensa pesquisa sobre a<br />

fuga da corte de dom João VI de Portugal<br />

para o Brasil, para a qual o jornalista<br />

havia se dedicado naqueles anos, saiu<br />

da gaveta e se transformou em livro.<br />

A trama da “rainha louca, do príncipe<br />

medroso e da corte corrupta que enganou<br />

Napoleão e mudou a história de<br />

Portugal e do Brasil” não era nenhum<br />

enredo inédito, mas Laurentino aplicou<br />

técnicas jornalísticas para construir<br />

os capítulos, tratar os personagens<br />

e elaborar as legendas <strong>–</strong> ele até<br />

insistiu com a editora para que a fonte<br />

fosse grande <strong>–</strong>, tudo para tornar a leitura<br />

mais agradável.<br />

Outro fator que impulsionou o sucesso<br />

de 1808 e dos demais títulos lançados<br />

pelo autor foi o interesse crescente dos<br />

brasileiros pela história do país depois<br />

da redemocratização, em 1985. “Percebo<br />

que os leitores reagem ao meu trabalho<br />

como se tivessem sido vítimas de<br />

um processo de sonegação da história<br />

durante muito tempo. Eles querem entender<br />

o Brasil”, diz.<br />

Depois de 1808, os leitores estavam<br />

ávidos para ler a continuação, que<br />

culmina com a independência do país,<br />

e pediam ao autor para escrever um<br />

novo volume. “Confesso que isso me<br />

assustou um pouco porque a independência<br />

é um assunto muito sério, e eu<br />

não me sentia tão à altura para tratar<br />

dele. Mas, como eu já estava na chuva<br />

[risos], pedi demissão oito meses depois<br />

de publicar o primeiro livro e fiz 1822”,<br />

conta. Em 2013, completou a trilogia o<br />

livro 1889, ano em que o Brasil se tornou<br />

uma república. E, com esses dois<br />

títulos, vieram mais quatro Jabutis, de<br />

melhor livro-reportagem e de melhor<br />

livro de não ficção do ano.<br />

Autor de best-seller<br />

A carreira não só seguiu como prosperou.<br />

Laurentino trabalhou como correspondente<br />

de publicações paulistas<br />

no Paraná, foi chefe de sucursais em<br />

diferentes cidades e chegou a editor da<br />

Veja, então a revista mais vendida do<br />

país. Em 2007, aos 51 anos, Laurentino<br />

tocava uma bem-sucedida carreira<br />

como jornalista e ocupava um cargo<br />

executivo na área de negócios da prestigiada<br />

Editora Abril quando publicou<br />

seu primeiro livro, sem a pretensão de<br />

se tornar escritor.<br />

O autor estreante teve a dimensão do<br />

sucesso de 1808, que narra a vinda da<br />

família real portuguesa para o Brasil,<br />

quando chegou à Bienal do Livro<br />

do Rio de Janeiro. “Meu editor Pascoal<br />

Soto [da editora Planeta, que lançou o livro,<br />

relançado pela Globo mais tarde] me<br />

chamou para ver o estande da maior<br />

livraria daquela época. Ele mostrou as<br />

pilhas com 1808, a fila de pessoas pegando<br />

um exemplar e comentou: ‘Você<br />

acaba de se tornar um best-seller’”,<br />

recorda Laurentino.<br />

Em 2008, o livro recebeu três prêmios:<br />

o de melhor ensaio da Academia Brasileira<br />

de Letras (ABL) e dois Jabutis, o<br />

de melhor livro-reportagem e o de livro<br />

de não ficção do ano. “O primeiro Jabuti<br />

foi realmente uma grande emoção.<br />

Quando fui indicado como finalista, fiz<br />

uma pesquisa na internet para ver os<br />

nomes que já tinham sido premiados.<br />

Entre eles estavam Jorge Amado e Carlos<br />

Drummond de Andrade. Aquilo me<br />

deu um frio na barriga! Eu não sabia se<br />

estava à altura daquela turma.”<br />

Com quase 2 milhões de cópias vendidas,<br />

1808 é realmente um best-seller. E<br />

o fenômeno inesperado acabou levando<br />

o escritor para o divã. “Fiz terapia<br />

durante muitos anos para aprender a<br />

conviver com a minha nova persona.<br />

Criou-se muita expectativa por parte<br />

dos leitores, editores, críticos literários,<br />

historiadores. Isso virou um peso num<br />

primeiro momento, tive que me libertar<br />

como escritor”, revela.<br />

Em sessão de autógrafo de lançamento do livro 1889 | foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 39<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 38


Lugar de fala<br />

A escravidão foi um tema recorrente<br />

durante a produção da trilogia 1808,<br />

1822 e 1889. No entanto, a decisão de<br />

transformar o tema em nova trilogia<br />

trazia um receio. “Eu sabia que era algo<br />

complexo e, principalmente, delicado,<br />

inclusive do ponto de vista acadêmico.<br />

Esse é o assunto mais estudado hoje<br />

não só no Brasil como também em países<br />

como Estados Unidos e França. Eu<br />

não podia errar, nem podia fazer uma<br />

coisa banal”, conta Laurentino.<br />

Antes de mergulhar no projeto, o autor<br />

chegou a se perguntar se tinha a prerrogativa<br />

de falar sobre a escravidão à<br />

qual os africanos foram submetidos,<br />

em especial no Brasil <strong>–</strong> 5 milhões dos<br />

12,5 milhões de pessoas trazidas à força<br />

da África para a América Latina ao<br />

longo de três séculos e meio vieram<br />

para o Brasil, que foi o último país a<br />

abolir a escravidão. “Sou um homem<br />

branco, descendente de colonizadores<br />

europeus. Foi um grande desafio vencer<br />

o medo de como seria a reação das<br />

diversas partes interessadas se eu tocasse<br />

nesse assunto.”<br />

Pesquisas aprofundadas, muita leitura<br />

e uma série de viagens, entre<br />

elas a oito países africanos, deram<br />

segurança ao autor. Na costa atlântica<br />

da África, por exemplo, ele visitou<br />

porões de castelos onde as<br />

pessoas ficavam aprisionadas, acorrentadas<br />

durante semanas ou meses,<br />

à espera da chegada dos navios<br />

que as levariam como mercadorias.<br />

“Num deles, muito úmido e escuro,<br />

ficavam mulheres. Quando elas estavam<br />

grávidas, tinham seus filhos<br />

ali mesmo, e muitas dessas crianças<br />

morriam antes da chegada dos navios.<br />

Isso foi bastante chocante para<br />

mim”, emociona-se.<br />

Laurentino deparou-se ainda com<br />

questões semânticas relacionadas<br />

ao tema, como a preferência de representantes<br />

do movimento negro<br />

pela expressão “pessoa escravizada”<br />

no lugar da palavra “escravo”, que<br />

denotaria algo intrínseco aos africanos.<br />

“Não consegui resolver esses<br />

dilemas que a sociedade enfrenta<br />

hoje na questão semântica, mas fui<br />

transparente e coloquei nos livros<br />

que ela existia.” A acolhida da trilogia<br />

por pessoas negras deu ao escritor<br />

a tranquilidade de saber que seu<br />

cuidado foi percebido pelos leitores.<br />

“No começo, creio que as pessoas ficaram<br />

atentas, pensando ‘O que esse<br />

homem branco tem a dizer sobre escravidão?’”<br />

Depois, segundo ele, o ceticismo<br />

deu lugar a reações emotivas.<br />

“Houve leitores que vieram me dizer<br />

que eu os havia ajudado a entender<br />

suas origens”, relata.<br />

Ao longo dos seis anos em que se dedicou<br />

a estudar o período da escravidão,<br />

Laurentino deixou para trás a<br />

ideia que carregava do Brasil como<br />

uma democracia racial e passou a<br />

aceitar, cada vez mais, a existência<br />

de um genocídio negro no país.<br />

“Existem agravos profundos, históricos,<br />

seculares e mal resolvidos que só<br />

conseguimos compreender se prestarmos<br />

atenção ao que a população<br />

negra está dizendo e entendermos<br />

por que está dizendo”, afirma.<br />

Com o poeta Ferreira Gullar na entrega do 53° Prêmio Jabuti, que ganhou pelo livro 1822 | foto: arquivo pessoal<br />

No lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão | foto: arquivo pessoal<br />

Aval acadêmico<br />

Enquanto ajudam professores de história<br />

a estimular o interesse dos alunos<br />

pelo passado do país, as obras de<br />

Laurentino não são unanimidade no<br />

meio acadêmico. Quando o escritor se<br />

preparava para lançar uma versão em<br />

inglês, em volume único, de Escravidão<br />

nos Estados Unidos, sentiu o tamanho<br />

do problema. O autor já tinha editora,<br />

contrato assinado e o material traduzido,<br />

mas precisava que um historiador<br />

acadêmico, brasileiro ou americano,<br />

desse uma espécie de aval ao livro.<br />

Laurentino não conseguiu o parecer,<br />

e o contrato foi cancelado. “Meu livro<br />

foi boicotado, censurado por um grupo<br />

de historiadores que não topou se<br />

associar ao meu trabalho. Só precisava<br />

que alguém dissesse que o livro<br />

fez sucesso no Brasil ao popularizar a<br />

história do país a partir de uma visão<br />

jornalística. Não consegui”, lamenta. E<br />

desabafa: “É a defesa de território por<br />

eu ser jornalista, e não historiador.<br />

Não importam os prêmios, o tamanho<br />

da pesquisa. Se eu tivesse feito um<br />

curso de graduação em história, em<br />

qualquer faculdade sem relevância,<br />

pronto, eu estaria credenciado”.<br />

Com ou sem aval, Laurentino tem dedicado<br />

seu tempo de leitura à relação<br />

da Igreja Católica com a escravização<br />

de africanos. “A Igreja foi proprietária<br />

de grande número de pessoas escravizadas,<br />

mas há uma contradição<br />

insolúvel, que é com o evangelho da<br />

misericórdia, do perdão, do acolhimento,<br />

do amor”, conta. O interesse<br />

do escritor reside em personagens<br />

jesuítas que criaram certa ideologia<br />

da escravidão durante o período colonial.<br />

“Essa ideologia defendia o direito<br />

de Portugal de escravizar as pessoas,<br />

mas também pregava pelos direitos<br />

de quem era escravizado. Estou lendo<br />

muito sobre isso, mas confesso que<br />

não sei se vai dar livro.” Será que padre<br />

Laurentino aprovaria essa ideia?<br />

Que conselho<br />

daria ao jovem<br />

Laurentino?<br />

“‘Persista na carreira<br />

de leitor’. Ninguém<br />

me falou isso lá atrás,<br />

mas acho que o<br />

Laurentino de 11 anos<br />

seguiu esse caminho”<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 41<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 40


Nome: Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu<br />

Idade: 62 anos<br />

Profissão: cantora e compositora<br />

Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />

Suingue<br />

sangue<br />

bom<br />

Por Daniela Macedo<br />

Ela conquistou o Brasil com o rock da Blitz,<br />

inovou a dance music brasileira e apresentou<br />

o funk carioca ao resto do país. Aos 62<br />

anos, Fernanda Abreu amadurece a ideia de<br />

lançar um disco de samba<br />

Foto: Foto: Murilo Murilo Alvesso Alvesso<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 43<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 42


A dois passos do paraíso<br />

“Eu produzia<br />

minhas fitas<br />

cassete de disco<br />

music e levava<br />

para as festas. Ia<br />

sozinha pra pista<br />

de dança e, como<br />

dançava bem,<br />

virei a atração das<br />

festas”<br />

A<br />

Em ensaio com grupo de dança, em 1980 | foto: reprodução Facebook<br />

adolescência de Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu começou como muitas<br />

outras: magrinha e sem os contornos femininos já evidentes no corpo das<br />

amigas, sentia-se o patinho feio da turma. Apesar de ter a mesma idade, parecia<br />

uma criança entre as meninas de <strong>14</strong> anos, embora pudesse contar com o talento<br />

da mãe para se vestir com estilo <strong>–</strong> apaixonada por moda, a biblioteconomista Vera<br />

Abreu desenhava as roupas que via nas vitrines das lojas descoladas do Rio e encomendava<br />

os modelos a uma costureira. Nas festinhas, ninguém tirava Fernanda<br />

para dançar, mas foi naqueles eventos juvenis dos anos 1970 que ela começou a se<br />

destacar. “Eu produzia minhas fitas cassete de disco music e levava para as festas. Ia<br />

sozinha pra pista de dança e, como dançava bem, virei a atração das festas”, conta.<br />

Não era à toa que Fernanda chamava a atenção nas pistas de dança. Aos 9 anos, por<br />

sugestão de um ortopedista para corrigir um problema nos joelhos, começou a frequentar<br />

aulas de balé. A professora era a bailarina francesa de origem russa Tatiana<br />

Leskova, que ajudou a escrever a história da dança clássica no Brasil. Fora da escola<br />

de balé, Fernanda suingava em frente ao espelho ouvindo black music. No aniversário<br />

de 10 anos, vestindo um macacão de veludo molhado verde que dona Vera mandou<br />

fazer, impressionou os convidados com passos de James Brown e Michael Jackson,<br />

caçula do Jackson 5 à época. “A black music foi importante na minha formação<br />

como pessoa, como mulher. Mesmo que eu seja branca e não tenha o lugar de fala<br />

do negro, essas músicas foram como uma terapia pra mim, me fizeram desabrochar<br />

pro resto do mundo. Elas me ajudaram muito a me incluir na sociedade”, diz.<br />

O desabrochar de Fernanda Abreu, que começou entre amigos e parentes, culminou<br />

em uma carreira musical que já soma quatro décadas e inclui o sucesso com a<br />

bem-humorada Blitz, a alcunha de “Mãe do Pop Brasileiro” e o pioneirismo de levar<br />

o funk do morro para as rádios do país inteiro. Fernanda é a garota carioca sangue<br />

bom que apelidou o Rio de purgatório da beleza e do caos.<br />

Ela estava a um plié de se tornar bailarina<br />

profissional quando a década de<br />

1980 deu as caras. O balé disputava<br />

espaço em sua rotina com a faculdade<br />

de sociologia, dois grupos de dança<br />

contemporânea, um grupo de coral e os<br />

encontros com os amigos que sonhavam<br />

enveredar pela carreira musical.<br />

Fernanda começou a sua ao lado de<br />

Leo Jaime na banda Nota Vermelha,<br />

com a qual se apresentou algumas vezes<br />

em um bar de Botafogo chamado<br />

Emoções Baratas <strong>–</strong> que, ironicamente,<br />

parece nome de álbum da Blitz.<br />

Certa noite, a vizinha e amiga Márcia<br />

Bulcão levou dois integrantes da banda<br />

em que atuava como backing vocal ao<br />

Emoções Baratas. Eles estavam procurando<br />

uma segunda cantora para a<br />

tal banda e convidaram Fernanda para<br />

participar de um ensaio. “Foi amor à<br />

primeira vista. No primeiro ensaio, eu<br />

já senti uma identificação grande com<br />

ela. E, por ela ser bailarina e ter uma<br />

disponibilidade corporal maravilhosa,<br />

eu sabia que embarcaria nas propostas<br />

teatrais que eu propunha”, diz o cantor,<br />

compositor e ator Evandro Mesquita.<br />

E deu match. “Eu adorei as músicas!<br />

Achei tudo incrível!”, diz ela. A Blitz<br />

ganhou uma segunda backing vocal e<br />

Fernanda, uma nova banda para chamar<br />

de sua.<br />

A Blitz seguia uma carreira discreta,<br />

até que um show no Circo Voador, em<br />

Banda Blitz | foto: divulgação<br />

fevereiro de 1982, mudou tudo. Evandro<br />

Mesquita decidiu que, depois de<br />

um ano de anonimato, a banda faria<br />

um último show. Levou ao Circo Voador<br />

um representante de uma gravadora<br />

e da então nova Rádio Cidade,<br />

e, se não desse em nada, cada um seguiria<br />

seu caminho. “Foi um estouro”,<br />

lembra a cantora. A Blitz gravou Você<br />

Não Soube Me Amar em estúdio e, assim<br />

como Fernanda em seu primeiro ensaio,<br />

o Brasil também adorou. O compacto<br />

vendeu mais de 1 milhão de cópias.<br />

“Ninguém esperava; nem a gente,<br />

nem o cara da gravadora, nem o cara<br />

da rádio. Foi uma loucura. A gente tocava<br />

praticamente pros amigos, e, de<br />

repente, a música começou a tocar em<br />

todos os cantos do país e todo mundo<br />

sabia quem a gente era”, diz Fernanda.<br />

Virar uma celebridade da noite para o<br />

dia pode mexer com a cabeça de uma<br />

jovem de 21 anos, mas Fernanda acredita<br />

que manteve os pés no chão graças<br />

à rigidez e à disciplina do balé clássico,<br />

em que “o movimento nunca está<br />

perfeito, pode sempre melhorar”, diz.<br />

“Desde o primeiro dia, eu tinha consciência<br />

de que estava ali para aprender.<br />

Eu sabia que o Evandro era muito mais<br />

experiente que eu, tinha passado pelo<br />

Asdrúbal [Trouxe o Trombone, grupo teatral<br />

dos anos 1970], que foi impressionante,<br />

um marco do teatro do Rio. Então eu<br />

entrei pensando ‘Mesmo que não dê<br />

em nada, vou aprender muito aqui’. E<br />

aproveitei ao máximo, aprendi muito.”<br />

O furacão Blitz interrompeu a faculdade<br />

de sociologia e colocou um ponto-final<br />

na carreira como bailarina profissional,<br />

mas rendeu um casamento<br />

de quase três décadas com o designer<br />

Luiz Stein, que cuidava da parte visual<br />

da banda <strong>–</strong> eles se casaram em 1983 e<br />

tiveram duas filhas, Sofia, neurologista,<br />

e Alice, estilista <strong>–</strong>, e uma amizade<br />

duradoura com Evandro Mesquita.<br />

“Volta e meia a gente se encontra. Ele<br />

é um dos caras mais criativos que conheço,<br />

muito inteligente, sagaz, bem-<br />

-humorado, com enorme repertório.”<br />

O amigo devolve os elogios: “Ela tem<br />

um olhar feminino, doce e forte pra<br />

encarar as roubadas. Seu sorriso, seu<br />

humor e seu profissionalismo me inspiraram<br />

e me fortaleciam nos momentos<br />

bons e ruins daquele casamento a<br />

sete”, diz Mesquita.<br />

A primeira fase da Blitz, com a voz de<br />

Fernanda Abreu em hits como Você<br />

Não Soube Me Amar, A Dois Passos do<br />

Paraíso, Betty Frígida e Mais uma de<br />

Amor (Geme-Geme), acabou em 1986.<br />

A banda se separou quando Evandro<br />

Mesquita foi convidado para participar<br />

de um comercial com a cantora<br />

Tina Turner nos Estados Unidos. O<br />

convite deixou alguns integrantes enciumados,<br />

e o grupo decidiu se separar<br />

no auge do sucesso.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 45<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 44


Paixão pela música<br />

Fernanda não é filha de músicos profissionais, mas cresceu em um ambiente musical.<br />

Armando Abreu, arquiteto português, e a esposa, Vera, se reuniam todos os<br />

fins de semana na casa de um casal amigo da família em Teresópolis para tocar<br />

samba. O grupo amador se autointitulava A Patota <strong>–</strong> Armando tocava cuíca e Vera<br />

cantava e tocava ganzá, um instrumento de percussão do samba. Mas os Abreu<br />

não eram só sambistas. Na casa da família, no Jardim Botânico, zona sul do Rio, havia<br />

sempre um disco na vitrola alternando estilos musicais. “Meus pais compravam<br />

todos os LPs que eram lançados. Saía LP de Elis e Tom, eles compravam. Saía o<br />

primeiro disco da Simone, eles compravam. Disco do Clube da Esquina, Tropicália,<br />

Chico, Gil, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Fagner,<br />

Secos & Molhados. Compravam assim que saía.” Os acordes vinham também<br />

da TV da sala. Quando era pequena, Fernanda acompanhava atenta os festivais de<br />

música organizados pela TV Record. “Tive a sorte de ser criada numa casa com<br />

uma variedade incrível de repertório. Isso é raro fora do meio musical.” A paixão<br />

do arquiteto e da biblioteconomista pela música teve forte influência na carreira<br />

dos filhos <strong>–</strong> Felipe, único irmão da cantora e compositora, é professor de canto e<br />

preparador vocal.<br />

Esse histórico de repertório tão vasto ajuda a explicar o hiato de quatro anos entre<br />

o fim da Blitz e o lançamento do primeiro disco na carreira solo, SLA Radical Dance<br />

Disco Club. Assim que o septeto se separou, começaram a chover convites das gravadoras<br />

para lançar Fernanda como uma cantora de pop-rock. Parecia o caminho<br />

natural, afinal o Brasil inteiro já sabia quem era Fernanda Abreu e gostava do estilo<br />

musical do grupo. “O Evandro era muito generoso. Colocou a gente [as backing<br />

vocals] com bastante destaque na banda. Eu só fazia ‘uuuu aaaa’, gente!”, brinca.<br />

Disposta a descobrir seu próprio caminho, Fernanda recusou todos os convites e<br />

foi estudar. “Esperar tanto tempo seria como começar tudo de novo, mas eu queria<br />

descolar minha imagem da Blitz. Foi uma decisão difícil na época, e depois vi que<br />

foi a escolha certa.”<br />

Nesse período, ela estudou guitarra e canto e voltou para a dança contemporânea.<br />

“Tudo isso para me preparar para fazer as perguntas que precisavam ser feitas:<br />

Quem sou eu? Do que eu gosto? O que eu quero?” Encontrou a resposta nas memórias,<br />

na Fernanda que desabrochou nas pistas de dança. “Participei da Blitz,<br />

que era uma banda de rock, mas eu não ouvia rock quando era adolescente. Ouvia<br />

black music, soul, dance. Aí falei: ‘É dessa água que vou beber’.”<br />

“Esperar tanto<br />

tempo seria como<br />

começar tudo<br />

de novo, mas eu<br />

queria descolar<br />

minha imagem<br />

da Blitz. Foi uma<br />

decisão difícil na<br />

época, e depois vi<br />

que foi a escolha<br />

certa”<br />

Anos 80 com Márcia Bulcão e Leo Jaime | foto: arquivo pessoal<br />

Com os pais e o irmão | foto: reprodução Facebook<br />

Sampleando tudo<br />

O retorno aos palcos depois do fatídico<br />

comercial americano veio de um convite<br />

para participar de uma jam session<br />

no AeroAnta, antiga casa noturna de<br />

São Paulo. Inspirada pelos cassetes<br />

que levava para as festas na adolescência,<br />

montou um show com covers de<br />

disco music. “Fez um sucesso enorme.<br />

Fui chamada para fazer outros shows<br />

em São Paulo e no Rio e, quando vi<br />

que o negócio estava indo muito longe,<br />

parei. Não queria virar uma cantora de<br />

covers”, explica.<br />

O amigo e cantor Herbert Vianna ajudou<br />

a produzir uma fita demo com<br />

quatro canções autorais, entre elas<br />

Kamikazes do Amor, a primeira composição<br />

de Fernanda Abreu. Em 1990, ela<br />

bateu na porta da EMI, gravadora da<br />

Blitz, e deixou o material inédito. Uma<br />

semana depois, foi chamada para uma<br />

conversa. A novidade, que em nada se<br />

assemelhava aos hits do septeto, pegou<br />

a gravadora de surpresa: “Fernanda, eu<br />

não sei que som é esse, não temos esse<br />

mercado”, disseram. Ela pediu um estúdio<br />

para gravar um disco, nada mais.<br />

Nos dois meses seguintes, sem que<br />

um único representante da EMI<br />

aparecesse para palpitar ou vetar,<br />

foi produzido SLA Radical Dance Disco<br />

Club. Quando o álbum de estreia<br />

estava praticamente pronto, o produtor<br />

musical Liminha chegou com um<br />

sampler. O equipamento eletrônico<br />

começava a ser usado por artistas no<br />

exterior para inserir trechos de outras<br />

canções e vozes de outros artistas em<br />

suas músicas. “A gente sampleou tudo!<br />

Voz da Madonna, do Prince, Caetano,<br />

Gil, Novos Baianos, tudo, e botamos no<br />

disco. Fiquei superfeliz com o resultado<br />

porque tinha as minhas referências ali.”<br />

O trabalho quase foi em vão, porque o<br />

departamento jurídico da gravadora<br />

quis barrar o projeto. Não havia ainda<br />

nenhuma legislação sobre direitos<br />

autorais e samples, mas o advogado da<br />

gravadora era cauteloso. Por sorte, ele<br />

era também vascaíno, como Fernanda.<br />

O carisma da garota sangue bom e a<br />

cumplicidade cruz-maltina falaram<br />

mais alto. “O SLA Radical Dance Disco<br />

Club é uma colcha de retalhos com<br />

tudo de dance music que eu gostava. A<br />

gravadora achou o disco uma loucura,<br />

não sabia nem o que fazer com ele.”<br />

O público soube: a faixa Você pra Mim<br />

invadiu as rádios, enquanto A Noite<br />

botava todo mundo para dançar nas<br />

pistas do país.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 47<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 46


Samba-funk da lata<br />

No final dos anos 1980, o antropólogo<br />

Hermano Vianna estudava um movimento<br />

que surgia nos morros cariocas<br />

e levou a amiga Fernanda Abreu para<br />

conhecer um ícone dessa nova manifestação<br />

cultural: o baile funk. “Eu<br />

fiquei doida, nunca tinha visto nada<br />

parecido. Um equipamento de som gigantesco,<br />

3 mil pessoas dançando ao<br />

som do DJ Marlboro. O Afrika Bambaataa<br />

[conhecido como o pai do eletrofunk]<br />

tinha lançado um disco e uma das músicas,<br />

Planet Rock, tocava sem parar,<br />

mas com batidas diferentes”, lembra a<br />

cantora. Foi o começo de uma bem-sucedida<br />

história de amor entre Fernanda<br />

Abreu e o funk carioca.<br />

O samba-funk ganhou mais destaque<br />

no segundo álbum, SLA 2 Be Sample,<br />

lançado em 1992. O hit Rio 40 Graus<br />

levou o ritmo do morro para as rádios<br />

brasileiras, não sem antes enfrentar<br />

novamente a resistência da gravadora.<br />

“Eles reclamaram que a música tinha<br />

cinco minutos, que era ‘um blá-blá-blá<br />

insuportável’, que nenhuma rádio ia<br />

tocar”, diz. “Eles querem seguir um padrão<br />

que funciona, até alguém aparecer<br />

com algo novo e chacoalhar tudo.”<br />

Três anos depois, Da Lata consolidou o<br />

samba-funk como sua assinatura. Com<br />

a foto de Fernanda nua na contracapa,<br />

o terceiro dos dez discos da carreira<br />

solo <strong>–</strong> entre produções inéditas e coletâneas<br />

<strong>–</strong> foi escolhido o melhor álbum<br />

latino daquele ano pela revista americana<br />

Billboard. Na década de 1990, o<br />

gênero que ela trazia do morro ainda<br />

não era alvo de discriminação por se<br />

tratar de uma grande novidade. De lá<br />

para cá, o ritmo sofre um processo de<br />

estigmatização e criminalização. “O<br />

preconceito contra o funk vem do fato<br />

de ele ser uma música de preto, pobre e<br />

favelado, e o racismo estrutural é muito<br />

forte no Brasil”, diz Fernanda. Ela é<br />

uma das convidadas do documentário<br />

Do Samba ao Funk em 100 Anos, recente<br />

produção da Bossa.etc sobre a voz do<br />

morro, em que fala abertamente sobre<br />

o assunto.<br />

“Eles reclamaram<br />

que a música tinha<br />

cinco minutos, que<br />

era ‘um blá-blá-blá<br />

insuportável’, que<br />

nenhuma rádio ia<br />

tocar”<br />

Foto: Murilo Alvesso<br />

Com as filhas, de férias em Portugal | foto: reprodução Instagram<br />

A Patota<br />

A cantora está casada há 12 anos com<br />

o baterista paulista Tuto Ferraz. Ele<br />

vive em São Paulo; Fernanda, no Rio.<br />

Ele adora praia, é surfista e participa<br />

de quatro grupos de frescobol no<br />

WhatsApp; a garota carioca, que nem<br />

sabe andar de bicicleta, pratica exercícios<br />

indoor (balé, pilates e método<br />

gyrotonic). “A gente adora ter uma<br />

base lá e uma base aqui”, afirma. A<br />

maturidade, que ela encara sem neuras,<br />

ajuda a manter o relacionamento<br />

a distância. “Não tenho o menor problema<br />

com idade. Pra mim é muito claro<br />

que vou envelhecer e vou ficando<br />

mais flácida e com mais rugas no processo.”<br />

Os exercícios físicos ajudam<br />

a prevenir problemas de articulação,<br />

principalmente depois que a chikungunya<br />

(“A doença mais medonha que<br />

já tive em 62 anos de vida”) a deixou<br />

uma semana hospitalizada, em março<br />

de 2019, e com dores nas articulações<br />

até hoje. “Meu maior medo é depender<br />

de alguém. Não quero dar trabalho pra<br />

ninguém quando ficar velhinha. Quero<br />

ter minha independência”, diz.<br />

Independente, talentosa, carismática,<br />

exigente <strong>–</strong> ela sabe tocar violão, guitarra<br />

e bateria, “mas jamais iria para<br />

o palco tocar esses instrumentos” por<br />

não ter se aprofundado nos estudos <strong>–</strong>,<br />

focada e organizada, Fernanda planeja<br />

os próximos passos na carreira. Estuda<br />

a possibilidade de produzir um<br />

disco com músicas inéditas de sua<br />

autoria. Também quer gravar um álbum<br />

com músicas inéditas de outros<br />

compositores. Mas tem ainda um terceiro<br />

projeto em mente, algo bastante<br />

pessoal e afetivo. “Tenho vontade<br />

de fazer um disco de samba, que vai<br />

se chamar A Patota, o nome do grupo<br />

dos meus pais. Quero sentar com meu<br />

irmão, que viveu aquela história comigo,<br />

e escolher as músicas do repertório<br />

daquela época linda”, diz. Enquanto<br />

decide o que vem por aí, planeja um<br />

novo show. “Não consigo ficar muito<br />

tempo longe dos palcos”, diz a eterna<br />

aniversariante de macacão de veludo<br />

verde, que sabe como ninguém animar<br />

uma festa.<br />

Que conselho daria<br />

à jovem Fernanda?<br />

“Aprenda a tocar<br />

muito bem um<br />

instrumento musical.<br />

Mete a cara, vai ser<br />

musicista, além de<br />

cantora, compositora e<br />

bailarina”<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 49<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 48


Nome: Thiago Soares Pinto<br />

Idade: 42 anos<br />

Profissão: bailarino, coreógrafo e produtor cultural<br />

Cidade onde nasceu: São Gonçalo/RJ<br />

Disciplina<br />

e rigor<br />

Por Mariane Morisawa<br />

A origem humilde no subúrbio do Rio de Janeiro e<br />

o ingresso tardio no balé clássico não impediram<br />

Thiago Soares de se tornar a estrela do Royal Ballet<br />

de Londres. Aos 42 anos, um dos maiores bailarinos<br />

do mundo se prepara para seu segundo ato<br />

No teatro | foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 51<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 50


N<br />

o espetáculo Último Ato, que estreou em Lisboa em abril<br />

de 2023, Thiago Soares não esconde os cabelos brancos<br />

nem a respiração ofegante, abafada pelo som dos aplausos<br />

ao fim de cada número de dança. Aos 42 anos, o artista<br />

fluminense reconhece que o físico já não é o mesmo do auge<br />

como primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Mas, ao<br />

contrário do que faz supor o título do espetáculo, ele está longe<br />

de se afastar da dança. “Quis concluir esse capítulo de uma<br />

forma linda para poder recomeçar com força também”, diz.<br />

Último Ato é a despedida de Thiago como protagonista em<br />

turnês internacionais, que fizeram parte de sua vida durante<br />

mais de duas décadas. Segundo ele, o espetáculo levanta uma<br />

pergunta: quando uma luz se apaga, será que outra se acende?<br />

O artista brasileiro sobe ao palco em busca do futuro, de<br />

uma nova identidade <strong>–</strong> afinal, quando o primeiro bailarino do<br />

Royal Ballet sai de cena, quem é Thiago Soares?<br />

Durante muitos anos, ele foi uma espécie de príncipe do balé<br />

real. “Passei minha carreira inteira interpretando papéis de<br />

indivíduos intocáveis, daquele mundo mágico e de perfeição<br />

do balé clássico”, diz o bailarino. “Mas eu queria fazer algo<br />

em que pudesse ter mais intimidade com o público.” Ao longo<br />

do show, que já passou por Rio e São Paulo, Thiago conversa<br />

com a plateia, atua, canta, toca violão e, claro, dança, impecavelmente,<br />

do balé clássico ao hip hop e o samba. “Hoje as<br />

pessoas podem até se encantar pela perfeição, mas também<br />

estão interessadas em como alguém chegou lá, quais foram<br />

as quedas que o fizeram ficar em pé.”<br />

“Passei minha carreira<br />

inteira interpretando papéis<br />

de indivíduos intocáveis,<br />

daquele mundo mágico e de<br />

perfeição do balé clássico”<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

“Muito chão”<br />

O percurso entre os primeiros passos<br />

de dança até o palco do Royal Ballet não<br />

foi fácil. Em primeiro lugar, é preciso<br />

reconhecer que o balé clássico não é<br />

uma arte acessível à maior parte dos<br />

brasileiros. Se ser bailarina é um sonho<br />

de criança que raramente se concretiza,<br />

para os meninos seria como<br />

ganhar seguidas vezes na loteria. Ainda<br />

mais para meninos como Thiago,<br />

nascido em uma família com poucos<br />

recursos financeiros em São Gonçalo,<br />

região metropolitana do Rio de Janeiro,<br />

e criado em Vila Isabel. “Quando analiso<br />

minha história, percebo que vivi<br />

algo único. Agradeço muito. Óbvio que<br />

teve muito suor, muita dedicação, mas<br />

é surreal sair de um viaduto em Madureira<br />

para o Teatro alla Scala de Milão.<br />

É muito chão.”<br />

Ele era ainda criança quando viu um<br />

grupo de street dance chamado Jazz<br />

de Rua se apresentar em uma festa<br />

de bairro na zona norte do Rio de<br />

Janeiro. Ficou fascinado com a atenção<br />

que eles recebiam das pessoas, e logo<br />

passou a dançar com o grupo. Seu<br />

início, portanto, foi na dança de rua, no<br />

hip hop. Pouco depois, recomendado<br />

pelo coreógrafo do Jazz de Rua para<br />

aperfeiçoar sua performance na street<br />

dance, Thiago ganhou uma bolsa de<br />

estudo do Centro de Dança Rio, no<br />

bairro do Méier. Foi só ali, aos 15 anos,<br />

uma idade um tanto tardia, que teve seu<br />

primeiro contato com o balé clássico.<br />

“A dança me ofereceu acolhimento. Eu<br />

nunca fui especial em nada. Não era<br />

nem o filho favorito”, brinca.<br />

Na época em que Thiago encontrou<br />

a dança, sua família enfrentava um<br />

momento difícil. O casamento de seus<br />

pais não estava bem, e o casal viria a<br />

se separar, motivando muitas idas e<br />

vindas entre casas diferentes. O irmão<br />

mais velho, que dançava como hobby<br />

e depois virou desenhista, já não vivia<br />

com a família. Em meio à crise familiar,<br />

Thiago, até então um ótimo aluno,<br />

perdeu o interesse pelos livros e cadernos.<br />

“Não queria sentar, ler, escrever,<br />

queria saltar e dar pirueta.” A dança<br />

foi tomando o lugar da educação formal,<br />

embora, por pressão do pai, tenha<br />

terminado o ensino médio <strong>–</strong> anos mais<br />

tarde, Thiago retomou os estudos no<br />

Kings College, em Londres, com um<br />

programa para prepará-lo para ser diretor<br />

e produtor artístico.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 53<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 52


“Não era<br />

‘Vamos ver se<br />

emplaca’. Tinha<br />

que emplacar.<br />

Precisava ganhar<br />

dinheiro com<br />

isso, viver disso.<br />

Tinha essa coisa<br />

da urgência, da<br />

sobrevivência”<br />

Resiliência e bom humor<br />

Ao longo de sua trajetória, dentro e<br />

fora do Brasil, Thiago teve que lidar<br />

com preconceito. Ouviu, por exemplo,<br />

que seu nariz era “de africano”, e<br />

que por isso jamais poderia interpretar<br />

um príncipe. “É uma parada forte,<br />

sim, mas houve pessoas que me deram<br />

muita força para seguir, que acreditaram”,<br />

diz. Com o tempo, aprendeu a<br />

lidar, com bom humor, com pessoas<br />

que não enxergavam seu talento. “Eu<br />

tinha uma atitude assim: ‘Que legal que<br />

te surpreendi, que você achou que eu<br />

não ia chegar lá e eu, com meu nariz de<br />

batata, provei o contrário e virei o príncipe<br />

do DVD. Vamos assistir juntos’.”<br />

Thiago esbarrou ainda em obstáculos<br />

impostos pela origem humilde. Quando<br />

começou a viajar para o exterior, não<br />

sabia falar inglês. “Eu mal sabia falar<br />

português”, diz. “Eu venho da dificuldade.<br />

E nesse meio convivia com pessoas<br />

muito ricas.” Não tinha os privilégios<br />

garantidos a pessoas de outros<br />

países, classes sociais, origens. Para<br />

ele, não havia plano B. “Não era ‘Vamos<br />

ver se emplaca’. Tinha que emplacar.<br />

Precisava ganhar dinheiro com isso,<br />

viver disso. Tinha essa coisa da urgência,<br />

da sobrevivência”, diz. “Você vir de<br />

uma família pobre, de uma área pobre e<br />

ir lá na terra do colonizador estabelecer<br />

uma identidade é difícil.”<br />

Ele sempre precisou se virar sozinho.<br />

Não podia ligar para casa e pedir dinheiro<br />

quando não havia na mala que<br />

veio do Rio de Janeiro roupa suficiente<br />

para enfrentar o inverno europeu, por<br />

exemplo. “Acontecia o contrário: eu ligava<br />

e ouvia que não sei quem estava<br />

doente, que estava difícil. Automaticamente,<br />

fui me transformando em provedor.<br />

Sabia que tinha que ser forte.<br />

Era como se tivesse uma faca no pescoço.<br />

Acredito que tenha me afetado de<br />

alguma forma, sim.”<br />

Com Marianela Núñez no espetáculo O Lago dos Cisnes | foto: divulgação<br />

Estrela da família<br />

A ascensão no balé clássico foi rápida. Cerca de dois anos<br />

depois de calçar as primeiras sapatilhas, Thiago ganhou a<br />

medalha de prata no Concurso Internacional de Dança de Paris.<br />

“Minha vida mudou”, diz o bailarino, que morava de favor<br />

na casa de uma tia à época. Com o prêmio, que incluía certa<br />

quantia em dinheiro, veio uma entrevista para a TV Globo e<br />

algumas propostas de trabalho. “Pensei: ‘Cara, não é só minha<br />

escola no Méier ou meus amigos do bairro dizendo que sou<br />

incrível’. Ali ficou documentado que eu era um jovem talentoso”,<br />

lembra. Ele passou a integrar o corpo de baile do Theatro<br />

Municipal do Rio de Janeiro e, com o primeiro salário, comprou<br />

seu primeiro carro.<br />

Até então, cada pequeno incentivo era um impulso isolado<br />

que o movia para a frente. Thiago nem sempre teve o apoio de<br />

quem estava mais próximo, inclusive pela falta de perspectiva<br />

que a dança representava. “As pessoas não acreditam, não<br />

conseguem ter a visão ou a fé, nem sentir o que você sente.<br />

E aí é preciso continuar lutando”, diz. A medalha em Paris e a<br />

aparição na maior emissora do país viraram o jogo e transformaram<br />

Thiago na estrela da família. E ainda era só o começo.<br />

Em 2001, ele ganhou a medalha de ouro no Concurso<br />

Internacional de Balé do Teatro Bolshoi, disputada por<br />

mais de 270 candidatos. Foi uma premiação inédita para<br />

um brasileiro, e Thiago passou um ano na Rússia. No ano<br />

seguinte, já estava no Royal Ballet, assumindo o posto de<br />

primeiro bailarino em 2006. Lá, dançou os papéis principais<br />

das produções de Onegin, A Bela Adormecida, La Bayadère,<br />

O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes, Copélia, Romeu e Julieta,<br />

Mayerling, Sonhos de Inverno e Las Hermanas, entre outros, ao<br />

lado de grandes estrelas, como Svetlana Zakharova, Sylvie<br />

Guillem e a argentina Marianela Núñez, primeira bailarina do<br />

Royal Ballet, com quem foi casado de 2011 a 2015.<br />

Thiago apresentou-se nos maiores teatros do mundo. Brilhou<br />

nos palcos do Teatro alla Scala de Milão, da Ópera de Roma,<br />

da Metropolitan Opera House em Nova York, entre muitos<br />

outros. “Eu não planejei rodar o mundo dançando, foi acontecendo<br />

para mim. Fui conhecendo pessoas que acreditaram<br />

em mim e fui indo”, diz, citando mentores como o coreógrafo<br />

Ugo Alexandre, do Jazz de Rua, e a bailarina e professora<br />

brasileira Débora Bastos.<br />

“As pessoas não acreditam, não conseguem ter a<br />

visão ou a fé, nem sentir o que você sente. E aí é<br />

preciso continuar lutando”<br />

Em ensaio de criação do espetáculo Último Ato | foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 55<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 54


De olho no futuro<br />

Ele sempre soube que havia escolhido uma carreira de vida curta. Depois dos 30<br />

anos, passou a produzir pequenos espetáculos, promover workshops e assumir outras<br />

responsabilidades. Trouxe bailarinos para dançar no Brasil e foi se exercitando<br />

como curador de seus futuros projetos. “Ali pelos 34, 35 anos, comecei a pensar<br />

fora da caixinha”, conta. “Quando você está em uma companhia, é como se fosse<br />

operário de uma empresa. Se eu torcer o pé, o público vai ter saudade de mim, mas<br />

a companhia vai colocar outro bailarino lá no meu lugar.”<br />

Hoje há pessoas com mais de 40 anos dançando repertório de balé clássico. “É muito<br />

bonito o prolongar dessa jornada, não há nada de errado com isso”, diz Thiago. Mas<br />

não era o que ele desejava. “Uma vez que você teve oportunidade de chegar ao seu<br />

máximo, visitou aquilo algumas vezes, fazendo muito bem, por que não descobrir<br />

quem mais você pode ser? Será que você não está tão viciado em sua versão jovem<br />

que fica só querendo replicá-la?”<br />

Thiago viveu tudo o que um bailarino poderia sonhar. Foi primeiro bailarino do<br />

Royal Ballet de Londres por mais de uma década, dançou nos maiores teatros, recebeu<br />

prêmios importantes. “Vivi aquilo tudo intensamente e de uma maneira digna,<br />

mas em determinado ponto achei que havia um risco muito grande de eu ficar me<br />

repetindo.” Ou pior, de “virar uma caricatura de mim mesmo”. Antes de chegar a<br />

esse ponto, Thiago quis descobrir o que mais ele podia fazer.<br />

Em 2019, aos 38 anos, decidiu deixar o posto de primeiro bailarino do Royal Ballet.<br />

Ainda voltou como convidado para fazer Onegin, em 2020, em suas últimas apresentações<br />

com a companhia. Não treina mais as oito horas por dia de antes, mas<br />

continua em forma graças a uma rotina diária de exercícios pesados. “Ainda estou<br />

bem, não deixei ficar um caco para tentar me reinventar. A estratégia foi fazer amizade<br />

com essa minha jornada e embarcar nesse novo momento com diversão, virtuosismo<br />

e técnica. Em um lugar onde o segundo ato é bacana, e não melancólico.”<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

O segundo ato<br />

Não que tenha sido fácil deixar o posto de primeiro bailarino para trás <strong>–</strong> ele até já<br />

se referiu à despedida como “uma morte”. Thiago sente saudade, sim, e evita ouvir<br />

músicas que despertam grandes recordações. “Foi um embate. Nunca foi ‘Ai, que<br />

maravilha, vou deixar de fazer alguns papéis que mudaram a minha vida, que grande<br />

festa’”, conta. “Mas, se hoje falo com alegria disso, é porque genuinamente ainda<br />

posso fazer. Se me convidarem amanhã para dançar Giselle, tenho físico para fazer.<br />

Assim acho que foi uma transição mais saudável.”<br />

Despedida do Royal Ballet | foto: arquivo pessoal<br />

Thiago Soares abriu uma produtora e<br />

montou um estúdio de dança no Rio<br />

de Janeiro, cidade onde moram seus<br />

pais e a namorada, para ajudar jovens<br />

talentos, criar seus projetos, dar aulas.<br />

“Meu dia a dia é ali. É onde treino, faço<br />

reuniões. Fiz tudo, tijolo por tijolo, com<br />

minha namorada. Achei que era importante<br />

criar um mundo de novo, de<br />

fora para dentro. Uma produtora, um<br />

estúdio para onde vou depois de acordar<br />

e tomar café. Reconstruí o Thiago<br />

de fora para dentro.”<br />

No decorrer dos anos em que viveu<br />

fora do Brasil, voltar para casa, para<br />

sua terra natal, sempre foi um desejo.<br />

Durante três anos, ele foi diretor artístico<br />

do Ballet de Monterrey, no México.<br />

Mas deixou o cargo porque o trabalho<br />

o impedia de tocar outros projetos.<br />

Hoje, atua como coreógrafo convidado.<br />

“Fiquei 20 anos no Royal Ballet,<br />

viajando o mundo. E aí passaria outros<br />

tantos fazendo o mesmo. O tempo vai<br />

diminuindo para realizar meus pequenos<br />

sonhos”, explica. Thiago não pôde<br />

apreciar atividades típicas de jovens da<br />

sua idade. “É como a vida de um atleta.<br />

Você tem de se dedicar. Não dá para beber,<br />

ir a festas. Precisa ter muito amor.<br />

Muitos se perdem na carreira porque<br />

querem praia, querem viver. Mas, se<br />

você quer realmente ser bailarino, não<br />

tem como, é disciplina e rigor.”<br />

Hoje, produz os próprios espetáculos,<br />

que têm a sua voz, expressam sua vontade<br />

naquele momento. Além de produtor<br />

cultural, é professor e coreógrafo<br />

e dirigiu seu primeiro curta, Vermelho<br />

Quimera, lançado em 2022. “Gosto de<br />

criar trabalhos do zero”, diz. “Gosto<br />

do processo. É uma herança do balé,<br />

porque lá você vai de novo, de novo, de<br />

novo porque gosta do processo. Não<br />

importa se vai ganhar 1 milhão de dólares<br />

ou 500.”<br />

O balé também ensinou Thiago a administrar<br />

o tempo, a ter rigor e disciplina,<br />

duas de suas palavras favoritas. “Às<br />

vezes estou fazendo um treinamento<br />

pesado e me pego pensando: ‘Por que<br />

estou fazendo isso?’ Porque, no palco,<br />

tenho que mostrar o corpo, tenho que<br />

saltar. O balé faz você se levantar todo<br />

dia para tentar ser melhor.”<br />

O balé não fez surgir, apenas aprimorou<br />

um lado disciplinado que sempre existiu.<br />

“Sempre ajudei minha mãe a limpar<br />

a casa, organizava meus brinquedos. O<br />

balé caiu como uma luva.” No grupo<br />

de dança de rua, ele repetia inúmeras<br />

vezes a coreografia. “Eu levava mais a<br />

sério do que os outros, então já tinha o<br />

desejo de ter domínio sobre aquilo.”<br />

Ao analisar sua carreira, diz ter medo<br />

de parecer arrogante e soberbo. Mas<br />

percebe que ajudou a abrir espaço para<br />

bailarinos brasileiros no Royal Ballet e<br />

no mundo da dança. “Percebi que vivi<br />

algo meio único, vindo da Vila Isabel,<br />

do hip hop, do Passinho do Charme no<br />

viaduto de Madureira, até primeiro bailarino<br />

do Royal Ballet. É meio surreal.<br />

Não vai voltar a acontecer provavelmente<br />

nos próximos 50 anos porque é<br />

uma mistura de oportunidade e acaso,<br />

estar no lugar certo na hora certa. O<br />

que vivi foi uma parada bem única.”<br />

Tão única que vai virar filme. Depois do<br />

documentário Primeiro Bailarino (2017),<br />

de Felipe Braga, vem aí o longa-metragem<br />

Um Lobo entre os Cisnes, dirigido<br />

por Marcos Schechtman e Helena<br />

Varvaki. Thiago resume, em poucas e<br />

certeiras palavras, a cinebiografia: “É<br />

sobre acreditar em seus sonhos”.<br />

Que conselho daria<br />

ao jovem Thiago?<br />

“Vai com tudo porque<br />

há possibilidade de que<br />

tudo dê certo. Siga em<br />

frente”<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 57<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 56


Um cartum<br />

Cobell Energy (2023) | foto: divulgação<br />

Uma tendência<br />

Streaming nas<br />

redes sociais<br />

Enquanto os grandes estúdios de<br />

Hollywood investiam em filmes cada<br />

vez mais longos (RIP, longa-metragem<br />

de 90 minutos) e as séries ganhavam<br />

episódios de uma hora de duração, a<br />

geração Z percorria as redes sociais<br />

em busca de entretenimento, transformando<br />

YouTube, TikTok e os Reels<br />

do Instagram nas TVs do século XXI.<br />

Agora, um novo movimento pretende<br />

levar a montanha até Maomé.<br />

Da produtora independente do cineasta<br />

Adam McKay, diretor de A Grande<br />

Aposta e Não Olhe para Cima, a série<br />

satírica Cobell Energy acompanha a<br />

história de uma família dona de uma<br />

empresa petroleira que luta contra ativistas<br />

e inovações sustentáveis. Mas a<br />

sitcom não entrou no catálogo das plataformas<br />

de streaming. Cobell Energy foi<br />

pensada e montada para ser assistida<br />

na telinha dos telefones, dentro do ambiente<br />

familiar da geração Z: os episódios<br />

têm curta duração e são filmados<br />

na vertical.<br />

No ano passado, o TikTok ultrapassou<br />

a Netflix como serviço de vídeo mais<br />

popular entre as pessoas com menos<br />

de 35 anos nos Estados Unidos. Mas,<br />

apesar do terreno fértil e promissor<br />

das redes sociais, as produtoras e os<br />

estúdios precisarão correr para acompanhar<br />

as rápidas mudanças nos<br />

hábitos dos usuários e nos critérios<br />

dos algoritmos e descobrir como monetizar<br />

suas produções. Só o tempo<br />

dirá o que é preciso para conquistar<br />

um público que não pensa duas vezes<br />

antes de arrastar para cima e partir<br />

para a próxima.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 59<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 58


Um sabor<br />

Uma palavra<br />

Eu dirigia sem parar. Era bom. Era boa a sensação<br />

de estar em movimento. Sem saber para onde estava<br />

indo. Apenas dirigia. O tédio havia se apoderado<br />

de mim, logo de mim, que nunca me deixei afetar<br />

por ele. Nada que me passasse pela cabeça me animava.<br />

Por isso decidi fazer alguma coisa. Entrei no<br />

carro e fui para onde ele me levasse, se no caminho<br />

houvesse uma curva à esquerda ou à direita, eu virava<br />

à direita, e se, no cruzamento seguinte, pudesse<br />

virar à direita ou à esquerda, eu virava à esquerda.<br />

E continuei dirigindo assim. Acabei enveredando<br />

por uma estrada no meio da floresta, e os sulcos no<br />

chão foram se aprofundando até que senti o carro<br />

patinar. Segui em frente, até o carro finalmente empacar.<br />

Ensaiei dar uma ré mas não consegui, então<br />

estanquei de vez. Desliguei o motor. Fiquei sentado<br />

no carro. Pois bem, cá estou eu agora, cá estou eu<br />

agora sentado, pensei, e me senti vazio, como se o<br />

tédio tivesse se transformado num vazio. Ou, melhor<br />

dizendo, numa espécie de agonia, porque senti<br />

um medo em mim enquanto estava ali com o olhar<br />

fixo adiante, fitando o vazio, como estivesse diante<br />

do vácuo. Do nada. Que conversa é essa, pensei.<br />

Diante de mim está a floresta, só a floresta, pensei.<br />

Então foi até a floresta que esse ímpeto de dirigir me<br />

trouxe. Poderia dizer de outra maneira, que alguma<br />

coisa, não sei bem o quê, me conduziu a alguma outra<br />

coisa, fosse lá o que fosse, a uma coisa distinta.<br />

Contemplei a floresta à minha frente. A floresta.<br />

Sim, árvores próximas umas das outras, pinheiros,<br />

um pinhal. E entre as árvores o solo marrom, ressequido.<br />

Eu me senti vazio.<br />

Jon Fosse<br />

Trecho de Brancura<br />

Tradução de Leonardo Pinto Silva<br />

Editora Fósforo<br />

Sim, a cerveja gelada tem cadeira cativa nos finais de tarde quentes do <strong>verão</strong>, mas os drinques podem dar um toque de sofisticação<br />

à happy hour. Para quem é fã de café, o bartender Frederico Viana, do Celeste, no centro do Rio, criou o The Gabinete. O coquetel<br />

é inspirado no tradicional britânico espresso martini, mas a versão brasuca é para os fortes. Leva uma potente base alcoólica<br />

de rum envelhecido com a doçura do licor de café e a pungência única do gengibre. Já o paulistano Pappa Bar, do chef Pedro<br />

Mattos, sugere o La Dolce Vita. A clássica mistura de gim com aperol ganha a companhia dos refrescantes limão-taiti e melancia.<br />

O espumante traz borbulhas e realça o sabor dos ingredientes.<br />

The Gabinete, Celeste | foto: Bruno Machado<br />

THE GABINETE<br />

INGREDIENTES<br />

• 50 ml de rum envelhecido<br />

• 30 ml de licor Tia Maria cold brew<br />

• 5 ml de xarope de gengibre<br />

MODO DE PREPARO<br />

Em um mixing glass, adicione todos os ingredientes e, com uma colher<br />

bailarina, mexa suavemente até misturar. Sirva em uma taça Nick &<br />

Nora. A finalização com espuma de café (café solúvel, água morna e<br />

açúcar batidos com um mixer) é opcional, mas faz toda a diferença<br />

no aroma e na aparência do coquetel.<br />

LA DOLCE VITA<br />

INGREDIENTES<br />

• 40 ml de gim<br />

• 20 ml de aperol<br />

• 20 ml de shrub de melancia<br />

• 10 ml de suco de limão-taiti<br />

• 40 ml de espumante<br />

• 20 ml de água filtrada<br />

MODO DE PREPARO<br />

La Dolce Vita, Pappa Bar | foto: Ricardo D. Angelo<br />

Para fazer o shrub, macere ½ xícara de melancia sem sementes e<br />

misture com ¼ de xícara de açúcar. Deixe a mistura descansando<br />

na geladeira por, ao menos, um dia. Depois, adicione ¼ de xícara de<br />

vinagre branco. Nesse estágio, o shrub já está pronto para consumo,<br />

mas é possível dar mais intensidade aos sabores deixando-o apurar<br />

por mais alguns dias (o vinagre e a geladeira evitam que o shrub se<br />

deteriore).<br />

A montagem é feita no próprio copo, um modelo long drink. Basta<br />

misturar os ingredientes no copo e adicionar gelo picado a gosto.<br />

Uma fatia de melancia deixa o drinque muito mais convidativo.<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 61<br />

VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 60


Uma imagem<br />

Complexo do Alemão | foto: Dede Fedrizzi<br />

O fotógrafo e diretor de arte Dede Fedrizzi mergulhou<br />

em uma jornada por formas, texturas e cores em busca<br />

da expressão visual que representa a musicalidade nas<br />

comunidades do Rio. Encontrou ritmo e movimento na irregularidade<br />

arquitetônica do berço do samba e do funk,<br />

dois gêneros que deram voz aos moradores dos morros<br />

cariocas ao longo do último século. Seu olhar promove um<br />

diálogo entre som e espaço e exalta os becos das favelas<br />

onde nasceram (e cresceram) a malemolência do samba e<br />

a batida do funk.<br />

A imagem da arte urbana que observa o movimento nas<br />

vielas apertadas do Complexo do Alemão, zona norte do<br />

Rio, faz parte da exposição Do Samba ao Funk em 100 Anos,<br />

que homenageia a expressão autêntica e a criatividade que<br />

se recusa a seguir padrões preestabelecidos. A mostra fica<br />

em cartaz até 9 de fevereiro na Unibes Cultural, no bairro<br />

do Sumaré, em São Paulo, e antecede o lançamento do<br />

documentário homônimo produzido pela Bossa.etc <strong>–</strong> com<br />

estreia prevista para o primeiro semestre de <strong>2024</strong>, o documentário<br />

Do Samba ao Funk em 100 Anos joga luz sobre<br />

temas como criminalidade, machismo e desigualdade social<br />

por meio de uma série de entrevistas com sambistas e<br />

funkeiros que falam sobre história, influências e exportação<br />

da cultura do morro para o mundo.<br />

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