Et cetera – edição 14 – verão 2024
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Verão <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong><br />
<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong><br />
Gente com Bossa<br />
A filosofia lunar de Luiz Felipe Pondé<br />
Maria Paula Bandeira, a defensora das pacientes com câncer<br />
O talento empreendedor do jovem Rhayann Vasconcelos<br />
Laurentino Gomes, o escritor que coleciona Jabutis<br />
O suingue no DNA da garota carioca Fernanda Abreu<br />
Thiago Soares: a reinvenção do maior bailarino brasileiro<br />
E a força do pensamento positivo de Rebeca Andrade:<br />
“Estou sempre pensando em coisas boas, desejando<br />
o melhor para mim e para a minha equipe”<br />
Distribuição gratuita
Foto: Unsplash<br />
Expediente<br />
Direção-Geral e Projeto Gráfico: Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo,<br />
Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Heloísa Noronha, Marco Aurélio Gois, Mariane Morisawa e Simone Costa<br />
Arte e Diagramação: Lucas Trentin Ribeiro | Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
<strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Rebeca Andrade<br />
Foto: Rafael Bello/COB<br />
06 Roteiro<br />
Uma seleção de filmes, séries, documentários,<br />
exposições, livros, discos<br />
e outras ideias de lazer e cultura para<br />
o <strong>verão</strong><br />
20<br />
Q&A <strong>Et</strong>c.<br />
Esta <strong>edição</strong> traz um papo filosófico com Luiz<br />
Felipe Pondé sobre seu mais recente livro,<br />
Diálogos sobre a Natureza Humana <strong>–</strong> Perfectibilidade<br />
e Imperfectibilidade<br />
10<br />
22<br />
O X da Bossa<br />
Alessandra Lotufo, nova autora da coluna, investiga<br />
os ruídos modernos que invadem o silêncio<br />
introspectivo e impedem o cultivo do verdadeiro<br />
autoconhecimento<br />
Com a Palavra…<br />
Diagnosticada com um câncer metastático,<br />
a advogada Maria Paula Bandeira passou a<br />
ajudar outras mulheres a enfrentar os entraves<br />
jurídicos do tratamento<br />
18<br />
24<br />
Gente com Bossa<br />
A disciplina que parece limitar a liberdade quando<br />
manda seguir regras e obedecer à hierarquia<br />
tem outras faces, como a dedicação para estudar,<br />
praticar e se aperfeiçoar<br />
Guarde Este Nome<br />
Durante a pandemia, Rhayann Vasconcelos<br />
criou sozinho um cursinho online gratuito<br />
para jovens que iriam prestar o Enem.<br />
Hoje, sua equipe apoia 500 mil estudantes<br />
Foto: divulgação<br />
Foto: divulgação<br />
Foto: Murilo Alvesso<br />
Foto: divulgação<br />
26<br />
Rebeca Andrade<br />
A atleta Rebeca Andrade foi morar longe da<br />
família aos 10 anos e encarou uma série de<br />
cirurgias antes de se tornar o maior nome da<br />
ginástica artística brasileira<br />
34<br />
Laurentino Gomes<br />
O escritor e jornalista Laurentino Gomes, que se<br />
interessou pela leitura quando era seminarista,<br />
já vendeu mais de 3 milhões de livros e soma oito<br />
Prêmios Jabuti<br />
42<br />
Fernanda Abreu<br />
A carioca Fernanda Abreu imitava os passos de<br />
Michael Jackson quando era criança, estourou<br />
com a Blitz e gravou seu nome na história da<br />
dance music brasileira<br />
50<br />
Thiago Soares<br />
Nascido em São Gonçalo e criado no subúrbio<br />
do Rio, Thiago Soares superou todas as dificuldades<br />
e chegou ao posto de primeiro bailarino<br />
do Royal Ballet de Londres<br />
58<br />
Um Cartum<br />
Espelho, espelho meu, existe cartunista mais<br />
sagaz e antenado que Jean Galvão?<br />
59<br />
Uma Tendência<br />
A ficção via streaming extrapola as fronteiras<br />
das plataformas tradicionais e desembarca nas<br />
redes sociais<br />
60<br />
Uma Palavra<br />
Um trecho de Brancura, o novo livro do escritor<br />
norueguês Jon Fosse, Prêmio Nobel de Literatura<br />
em 2023<br />
A revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong> tem uma versão<br />
pocket: o <strong>Et</strong>c Pop-up! Para receber<br />
semanalmente um boletim com<br />
notícias interessantes, fatos curiosos<br />
e dicas culturais no seu WhatsApp,<br />
cadastre-se pelo QR Code:<br />
61<br />
Um Sabor<br />
Na happy hour da <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, a cerveja dá<br />
lugar a dois drinques: um para fãs de café e<br />
outro com a cara do <strong>verão</strong><br />
62<br />
Uma Imagem<br />
As cores do morro pelo olhar do fotógrafo<br />
Dede Fedrizzi na exposição Do Samba ao Funk,<br />
da Bossa.etc
[ R O T E I R O ]<br />
[ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
Maestro<br />
Duração: 129 min<br />
Onde ver: Netflix<br />
Regendo a vida<br />
Bradley Cooper definitivamente gosta<br />
de música. Seu segundo trabalho como<br />
diretor, depois de Nasce uma Estrela,<br />
também traz a música como elemento<br />
condutor do filme. Maestro aborda<br />
a vida do regente Leonard Bernstein.<br />
Genial e genioso, Bernstein era um ás<br />
à frente da Orquestra Filarmônica de<br />
Nova York, mas tinha uma vida pessoal<br />
bastante complicada. Casado com<br />
Felicia Montealegre (Carey Mulligan)<br />
durante anos, eles tiveram três filhos e<br />
muitos problemas conjugais. A prótese<br />
no nariz usada por Cooper deu o que<br />
falar, e o ator foi acusado até de antissemitismo.<br />
Porém, uma declaração da família<br />
de Bernstein acalmou os ânimos<br />
dos haters. “É verdade que papai tinha<br />
um nariz bonito e proeminente. Temos<br />
certeza de que ele não teria problema<br />
com isso”, escreveram seus filhos.<br />
John Lennon: Assassinato<br />
sem Julgamento<br />
Duração: 3 episódios<br />
Onde ver: AppleTV+<br />
A confissão<br />
Repleto de entrevistas inéditas, o documentário<br />
da AppleTV+ joga uma nova<br />
(e perturbadora) luz sobre o assassinato<br />
do ex-Beatle John Lennon, um dos<br />
maiores ícones culturais do século XX.<br />
Revelada logo nos primeiros materiais<br />
de divulgação, a confissão de Mark David<br />
Chapman, assassino de Lennon,<br />
choca pela frieza e pela aparente ausência<br />
de arrependimento. Na produ-<br />
ção, Chapman conta como ele matou<br />
Lennon enquanto uma voz em sua cabeça<br />
dizia “Faça isso! Faça isso!” Atrás<br />
das grades desde o dia do crime, 8 de<br />
dezembro de 1980, o assassino foi sentenciado<br />
à prisão perpétua e está atualmente<br />
com 68 anos. A produção tem<br />
um trabalho investigativo caprichado, e<br />
apresenta entrevistas exclusivas com<br />
testemunhas oculares e fotos inéditas<br />
da cena do crime.<br />
Assassinato no Fim do Mundo<br />
<strong>–</strong> 1ª Temporada<br />
Duração: 7 episódios<br />
Onde ver: Star+<br />
Mistério no retiro<br />
A detetive amadora Darby Hart (Emma<br />
Corrin) ganha uma fama súbita ao desvendar<br />
a identidade de um serial killer<br />
com suas habilidades em computação,<br />
com a ajuda de IA e análise de bancos<br />
de dados. O ricaço Andy (Clive Owen<br />
emulando Elon Musk), um empreendedor<br />
exótico da área de tecnologia,<br />
convida Hart e mais oito pessoas para<br />
passar uma breve temporada num retiro<br />
de inverno idílico. Tudo muda quando<br />
um dos hóspedes aparece morto. A<br />
descoberta do corpo motiva a detetive<br />
Hart a descobrir quem é o assassino<br />
antes que ele cometa o próximo crime.<br />
Claramente inspirado nos livros<br />
de Agatha Christie, a série acerta ao<br />
transpor o clima de whodunnit para a<br />
geração Z. A produção também tem<br />
a brasileira Alice Braga no elenco, fazendo<br />
uma astronauta que pesquisa a<br />
colonização da Lua.<br />
Para visitar<br />
Eixos — Jarbas Lopes<br />
Estação Pinacoteca<br />
Ingresso: R$ 30<br />
Arte elástica<br />
Tome uma curta distância, dê passos<br />
rápidos e se jogue de lado ou de costas<br />
contra uma tela com uma trama elástica<br />
apoiada na parede. Essas são as<br />
instruções da obra Shock Pintura, um<br />
dos quadros elásticos do artista carioca<br />
Jarbas Lopes, 59 anos. A tensão<br />
dos fios amortece o impacto e projeta<br />
a pessoa para fora da tela. Essa e outras<br />
obras interativas estão em Eixos,<br />
retrospectiva de 30 anos de carreira do<br />
artista em São Paulo. A extensa exposição<br />
também traz instalações, desenhos,<br />
pinturas e fotografias. A obra instalada<br />
no pátio da Estação Pinacoteca, O Bem<br />
e Mal Entendido, traz dois Fuscas, um<br />
preto e um branco, encaixados como<br />
se formassem o símbolo taoísta do yin-<br />
-yang, que representa a dualidade das<br />
forças e da vida. Uma curiosidade: o artista<br />
dirigiu o Fusca branco de Maricá<br />
(RJ), onde mora, até o museu. Até 31 de<br />
março.<br />
Os Delinquentes<br />
Duração: 183 min<br />
Onde ver: Mubi<br />
O argentino do Oscar<br />
Na atual Argentina em grave crise financeira,<br />
o bancário Morán (Daniel Elías)<br />
elabora um plano para roubar seu próprio<br />
local de trabalho e, assim, se aposentar.<br />
Para isso, ele coopta e chantageia<br />
Román (Esteban Bigliardi), seu colega<br />
de trabalho, obrigando-o a participar da<br />
empreitada. Como num clássico filme de<br />
roubo, tudo funciona bem até que as coisas<br />
começam a sair do controle. Apesar<br />
de ser um filme de gênero, os acertos es-<br />
tão justamente na fuga dos clichês que<br />
marcam tais obras. É um filme de roubo,<br />
sim, mas muito original e surpreendentemente<br />
humano. A obra está na disputa<br />
para representar a Argentina no Oscar.<br />
Dinâmico e engraçado, mesmo com<br />
mais de três horas de duração, o filme<br />
não deixa o espectador entediado.<br />
Ònà Irin: Caminho de Ferro<br />
Museu de Arte do Rio<br />
Entrada gratuita<br />
A ferro e fogo<br />
A artista baiana Nádia Taquary inaugura<br />
sua primeira exposição individual<br />
com a mostra Ònà Irin: Caminho de Ferro.<br />
Ela começou a se aventurar pela joalheria<br />
ainda jovem, fazendo brincos e colares<br />
para si própria com as técnicas que<br />
aprendia com o pai em sua oficina nos<br />
fundos da casa, em Valença, na Bahia.<br />
Hoje ela cria joias de ferro, com cordas,<br />
pedras, búzios e outros elementos que<br />
remetem à ancestralidade africana.<br />
Por causa do tamanho das peças, suas<br />
joias se confundem com esculturas. A<br />
exposição apresenta ainda instalações<br />
e videoinstalações que exploram as<br />
joias de tradições nagô e iorubá, além<br />
de outros elementos afro-brasileiros.<br />
Nádia já exibiu suas obras em diversas<br />
exposições coletivas nacionais e<br />
internacionais, inclusive no prestigiado<br />
Museum of Arts and Design de Nova<br />
York. Até 27 de fevereiro.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 7<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 6
[ R O T E I R O ]<br />
[ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
Siron Franco na Coleção de Justo Werlang<br />
255 páginas<br />
Editora Cosac Edições<br />
R$ <strong>14</strong>0<br />
Obra (livro) de arte<br />
Oito anos depois de fechar as portas, a<br />
editora que subiu o sarrafo do mercado<br />
brasileiro de livros está de volta. A primeira<br />
publicação da nova fase da Cosac<br />
reúne obras do artista goiano Siron<br />
Franco presentes na coleção de Justo<br />
Werlang. Bem ao estilo de criar livros<br />
que são objetos de desejo, o tomo tem<br />
um acabamento primoroso, capa dura,<br />
formato grande, texto bilíngue e centenas<br />
de fotos. Com obras abrangendo<br />
cinco décadas da trajetória do artista,<br />
a <strong>edição</strong> mostra o desenvolvimento<br />
pictórico de Siron: suas inúmeras e conhecidas<br />
“séries”, seus vários suportes<br />
e suas experimentações com materiais<br />
<strong>–</strong> ele criou obras com resina, cimento,<br />
terra e até enxadas. O texto é do crítico<br />
de arte Gabriel Perez-Barreiro, que comenta<br />
a obra do artista e entrevista o<br />
colecionador Justo Werlang.<br />
Para ouvir<br />
Bossa sempre Nova<br />
Somente um músico da envergadura<br />
de Carlos Lyra seria capaz de reunir<br />
num só disco nomes como João Donato,<br />
Marcos Valle, Mart’nália, Gilberto<br />
Gil, Ivan Lins, Caetano Veloso, Lulu<br />
Santos, Djavan, Fernanda Abreu, Leila<br />
Pinheiro, Ney Matogrosso, Paula Morelenbaum,<br />
Roberto Menescal, Edu Lobo,<br />
Mônica Salmaso, dentre outros. Pouco<br />
antes de falecer, em dezembro de<br />
2023, Lyra ganhou uma linda homenagem<br />
para celebrar seus 90 anos: uma<br />
releitura de algumas de suas músicas<br />
em disco carinhoso como um abraço<br />
entre amigos. Há frescor nas <strong>14</strong> faixas.<br />
Como o diálogo entre o piano de Marcos<br />
Valle e a guitarra de Lulu Santos,<br />
intérpretes de Maria Ninguém (1959),<br />
e o samba Ciúme (1960), cantado com<br />
graça por Caetano Veloso. Nada sobra<br />
e nada falta neste álbum gigantesco.<br />
Afeto<br />
Onde ouvir: Spotify,<br />
Deezer, Apple Music e Tidal<br />
Coleção Todos os Livros de Machado de Assis<br />
26 obras<br />
Editora Todavia<br />
R$ 1.599,90<br />
Caixa do Machado<br />
O projeto é grandioso: uma única caixa<br />
com toda a obra de Machado de Assis.<br />
O pacote reúne 26 volumes, contendo<br />
poesia, teatro, conto e romance. Fruto<br />
de uma parceria entre a editora Todavia<br />
e o Itaú Cultural, os textos foram<br />
estabelecidos a partir de edições revistas<br />
pelo autor, com apresentações inéditas<br />
para cada livro e projeto gráfico<br />
que recupera a tipografia das edições<br />
originais. Entre sua estreia, em 1861,<br />
com a peça teatral Desencantos, até seu<br />
último livro, o romance Memorial de<br />
Aires, de 1908, Machado produziu algumas<br />
das obras mais importantes da língua<br />
portuguesa, como Dom Casmurro e<br />
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Neste<br />
combo, há ainda um volume extra com<br />
o testemunho pessoal do autor sobre<br />
seu trabalho como servidor público no<br />
final do Império e início da República.<br />
London calling<br />
Com apenas três anos de existência, os<br />
londrinos do bar italia (assim mesmo,<br />
em minúsculas) lançam seu quarto álbum.<br />
Formada por Nina Cristante, Sam<br />
Fenton e Jezmi Fehmi, a banda de rock<br />
indie tem uma sonoridade com uma<br />
pegada bastante anos 1990, remetendo,<br />
em alguns momentos, ao Sonic Youth<br />
e, em outros, ao Pavement. A alternância<br />
de vozes masculina e feminina, com<br />
Cristante e Fehmi dividindo os vocais,<br />
dá um charme extra e leveza às músicas.<br />
A mistura cool entre guitarras<br />
do fim do século XX com vocais sexy<br />
e boas harmonias funciona. A faixa<br />
Worlds Greatest Emoter tem uma linha<br />
de baixo animada e é grande candidata<br />
a hit do disco. Já Jelsy tem uma levada<br />
de violão bastante agradável e poderia<br />
ser uma dessas músicas que animam<br />
um luau na praia.<br />
The Twits<br />
Onde ouvir: Spotify,<br />
Deezer, Apple Music e Tidal<br />
Especulações Cinematográficas<br />
422 páginas<br />
Editora Intrínseca<br />
Para Dylan, com amor<br />
R$ 89,90 ou R$ 56,90 (e-book)<br />
Cinema, por Tarantino<br />
Desde o estouro com Pulp Fiction (1994),<br />
seu segundo filme, até Era uma Vez em<br />
Hollywood (2019), as obras de Quentin<br />
Tarantino sempre são cercadas de<br />
grandes expectativas — e não decepcionam.<br />
Cinéfilo de carteirinha, Tarantino<br />
lança seu segundo livro, um ensaio<br />
sobre a magia que o cinema exerce sobre<br />
as pessoas. Misturando histórias<br />
pessoais, rigor intelectual e entretenimento,<br />
o diretor analisa muitas obras<br />
que o influenciaram, sobretudo filmes<br />
da década de 1970, época em que era<br />
um jovem e assíduo frequentador de<br />
cinemas. Na medida em que escreve<br />
sobre os filmes, analisando aspectos<br />
da produção, da direção e até das<br />
atuações, vai compartilhando sua visão<br />
sobre cinema, uma forma de arte<br />
e comunicação poderosíssima, capaz<br />
de produzir beleza, encantamento e<br />
diversão.<br />
Uma das principais vozes da música<br />
alternativa dos anos 2000, Cat Power<br />
até ameaçou fazer parte do mainstream,<br />
principalmente depois de ter uma<br />
música na trilha sonora do filme Juno<br />
(2007) e de ter feito uma campanha da<br />
marca Chanel. Preferiu dar um passo<br />
atrás e manter-se fiel ao seu público<br />
e ao seu intimismo sincero. Seu 12º<br />
álbum é uma aposta arriscada e bem<br />
pessoal. Ela decidiu recriar o histórico<br />
show de Bob Dylan no Royal Albert<br />
Hall, em 1966, em Londres. Foi o show<br />
que marcou a transição de Dylan do<br />
folk acústico e engajado para abraçar<br />
a guitarra elétrica e o rock. No registro,<br />
é possível ouvir Dylan discutindo com<br />
pessoas da plateia que criticavam a<br />
mudança. Gravado ao vivo e no mesmo<br />
local, o disco de Power limpa a tensão<br />
anárquica do show original com<br />
versões luminosas e inspiradas.<br />
Cat Power Sings Dylan<br />
Onde ouvir: Spotify,<br />
Deezer, Apple Music e Tidal<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 9<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
O silêncio<br />
que fala<br />
e a beleza<br />
que cala<br />
Por Alessandra Lotufo <strong>–</strong> Chief Innovation and<br />
Communication Officer <strong>–</strong> House of Brains<br />
Os ruídos <strong>–</strong> urbanos, intelectuais e emocionais <strong>–</strong><br />
decorrentes das revoluções industrial e digital ocuparam<br />
o silêncio da introspecção e da reflexão sobre quem<br />
somos. Mas o autoconhecimento que se busca hoje<br />
promove, de fato, um mergulho em si mesmo?<br />
Foto: Getty Image<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 11<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 10
O silêncio que expande<br />
A<br />
exploração da natureza do autoconhecimento revela uma verdade desconcertante:<br />
o mergulho nas profundezas de nossa própria psique não é uma<br />
jornada prazerosa. O silêncio nos força a confrontar nossos abismos internos,<br />
habilmente mascarados pelo ruído externo da agitação do dia a dia.<br />
Nesse silêncio, não encontramos o conforto, mas as dissonâncias do nosso ego.<br />
É aqui que a modernidade e o autoconhecimento colidem. A sociedade contemporânea<br />
nos vende a ideia de que devemos estar constantemente presentes, respondendo<br />
e reagindo. O silêncio é visto como uma lacuna improdutiva, um vácuo que deve ser<br />
preenchido com mais ruído, mais ação, mais conteúdo, mais produtividade. No entanto,<br />
esse preenchimento ininterrupto nos afasta da compreensão íntima de nossa<br />
própria vida.<br />
O filósofo coreano Byung-Chul Han captura em sua obra a essência do desconforto<br />
que o silêncio traz à alma moderna. Ele não descreve apenas o mundo como é, mas<br />
também como o sentimos <strong>–</strong> um lugar onde o silêncio se tornou um vazio ruidoso.<br />
Em vez de conduzir à paz, a ausência de barulho exterior promove uma espécie de<br />
cacofonia interior, em que cada pensamento e cada sentimento não expressos gritam<br />
por atenção.<br />
Diante disso, devemos nos perguntar: seria o autoconhecimento uma mercadoria<br />
desvalorizada na prateleira da existência contemporânea? A busca pelo silêncio interior<br />
e o enfrentamento do ego ruidoso podem parecer obsoletos, mas talvez sejam<br />
o antídoto de que precisamos contra o esvaziamento de nossa experiência humana.<br />
Nesse contexto, a desaceleração pode ser vista como uma oportunidade <strong>–</strong> um convite<br />
para abraçar o silêncio e enfrentar o desconforto do autoconhecimento. Talvez o verdadeiro<br />
crescimento e a realização passem por aceitar o silêncio e aprender com ele.<br />
A reflexão que se impõe é complexa e multifacetada: como podemos reequilibrar a<br />
relação com o nosso eu interior em um mundo que teme o silêncio? Como podemos<br />
redescobrir o valor do autoconhecimento em uma sociedade que parece funcionar no<br />
piloto automático do ruído constante?<br />
A obra do astrônomo americano Carl Sagan propõe uma<br />
perspectiva que transcende o cotidiano: na contemplação do<br />
Cosmos, o silêncio é uma reverência diante da imensidão do<br />
Universo. Em sua poética exploração do espaço, Sagan sugere<br />
que a beleza celeste provoca um tipo de silêncio saturado<br />
de admiração e humildade.<br />
O silêncio cósmico de Sagan, povoado por estrelas e planetas,<br />
é um convite a uma introspecção inerentemente pacífica,<br />
ao contrário do silêncio interno ruidoso descrito por<br />
Byung-Chul Han. Não se trata de um silêncio que se origina<br />
do autoesquecimento. Ele vem da autoexpansão <strong>–</strong> um alargamento<br />
do self para incluir o vasto, o eterno, o infinito.<br />
Pelas lentes de Sagan, o silêncio torna-se um espaço para a<br />
maravilha e o aprendizado, não um poço de confronto interior.<br />
Quando olhamos para as estrelas, não é a ausência de<br />
palavras que nos emudece, é a constatação de que elas são<br />
inúteis diante de tal grandeza. A beleza astronômica nos<br />
obriga a reconhecer nossa pequenez, e, quando isso acontece,<br />
encontramos uma espécie de silêncio que é preenchido com o<br />
sussurro do Universo.<br />
Refletir sobre o pensamento de Sagan nos leva a uma apreciação<br />
profunda de como a beleza e a imensidão do Cosmos<br />
podem impactar nosso senso de identidade e lugar no mundo.<br />
Talvez o silêncio provocado pela beleza seja uma forma de<br />
autoconhecimento que, em vez de olhar para dentro, expande<br />
nossa consciência além dos limites do ego e do indivíduo,<br />
rumo a uma compreensão mais holística da nossa existência.<br />
Nesse silêncio estelar, encontramos uma pausa no constante<br />
diálogo interno, uma oportunidade para simplesmente “ser”.<br />
E, assim, talvez possamos encontrar as respostas que as perguntas<br />
ruidosas do dia a dia não conseguem fornecer. Afinal,<br />
no grande esquema do Cosmos, somos todos feitos das mesmas<br />
estrelas, e o silêncio que o Universo oferece é um lembrete<br />
da nossa unidade fundamental com tudo o que existe.<br />
Na cacofonia incessante de uma era que glorifica a visibilidade,<br />
em que cada momento é capturado, compartilhado e monetizado,<br />
existe uma beleza subversiva no silêncio da existência<br />
pura. Essa é a beleza que não grita por atenção, mas<br />
que atrai os olhos pela sua plácida confiança e autenticidade.<br />
O marketing pessoal tornou-se quase um mandamento da<br />
modernidade, uma obrigação implícita de cada indivíduo que<br />
busca seu lugar ao sol em um mundo superpovoado de estímulos.<br />
No entanto, a quietude de “ser” <strong>–</strong> não o ato frenético<br />
de “se tornar” <strong>–</strong> carrega consigo um magnetismo próprio. Na<br />
serenidade de quem não busca aplausos, há um eco de auten-<br />
ticidade que transcende a necessidade de aprovação externa.<br />
O indivíduo desapegado da necessidade de se vender ou provar<br />
seu valor se torna um farol para quem está cansado do<br />
ruído incessante do automarketing. É um lembrete silencioso<br />
de que a plenitude e a autoestima não requerem validação<br />
constante. Em um mar de autopromoção, a escolha de apenas<br />
“ser” pode ser o ato mais radical e notável.<br />
A escolha de viver no silêncio da própria existência, desvinculada<br />
do imperativo de se apresentar ao mundo, pode ser<br />
entendida como um ato de autoesquecimento deliberado. O<br />
autoesquecimento, uma noção filosófica refinada, não é a negação<br />
do self, mas um desvio do foco egoísta que domina a<br />
consciência moderna. No contexto do autoesquecimento, a<br />
pessoa que se recusa a participar do jogo do automarketing<br />
adota uma forma de ser que transcende o ego ruidoso.<br />
Em vez de ocupar a mente com preocupações sobre como se<br />
é percebido ou como se deve aparecer, o autoesquecimento<br />
permite a existência em um estado de consciência mais elevado,<br />
em que o ser interior prevalece sobre as expectativas e<br />
as exigências externas. Esse estado de ser não é uma abdicação<br />
da identidade ou das responsabilidades, mas uma escolha<br />
consciente de valorizar a experiência pessoal acima da percepção<br />
pública.<br />
Esse retorno ao essencial, à essência do que realmente somos,<br />
é um convite para reconhecer a plenitude e a satisfação<br />
que vêm de dentro. É um reconhecimento de que o barulho<br />
incessante do “eu” pode ser silenciado para dar espaço a uma<br />
experiência mais rica e profundamente conectada com o<br />
mundo e com os outros.<br />
A beleza desse silêncio está no fato de que ele não é um vazio,<br />
ele é um espaço cheio de potencial. No autoesquecimento, há<br />
um eco de liberdade <strong>–</strong> a liberdade do jugo do constante autoescrutínio<br />
e da necessidade de validação. Isso não é uma<br />
retração da vida, mas sim uma imersão mais profunda nela.<br />
Em vez de medida pelo reconhecimento externo, a satisfação<br />
vem da paz interior.<br />
Em um mundo onde o marketing de si mesmo é muitas vezes<br />
uma compulsão, escolher o autoesquecimento é optar por<br />
uma forma de resistência, uma afirmação de que somos mais<br />
do que nossas imagens projetadas. Aqueles que encontram<br />
beleza no silêncio do autoesquecimento muitas vezes descobrem<br />
que, paradoxalmente, esse silêncio ressoa mais alto e<br />
atrai mais atenção do que qualquer campanha de marketing<br />
pessoal. É um testemunho poderoso da plenitude de estar<br />
confortável e completo na própria pele.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 13<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 12
Simplesmente ser,<br />
como os animais<br />
Em Cachorros de Palha: Reflexões sobre<br />
Humanos e Outros Animais, o filósofo<br />
britânico John Gray nos convida a<br />
contemplar a quietude dos animais,<br />
uma existência vivida sem o constante<br />
diálogo interno que caracteriza<br />
a consciência humana. Para Gray,<br />
a vida animal é vivida diretamente,<br />
sem a intermediação do autoconhecimento,<br />
ou autoconsciência, que tanto<br />
preocupa a humanidade.<br />
Conectar esse pensamento ao conceito<br />
de autoesquecimento e à escolha de<br />
uma existência silenciosa e autêntica<br />
revela uma dimensão fascinante do<br />
ser. Enquanto a sociedade moderna<br />
nos pressiona a constantemente nos<br />
expressar e nos promover, há uma sa-<br />
bedoria a ser encontrada na simplicidade<br />
da vida animal, que não necessita<br />
de autoafirmação por meio da linguagem<br />
ou do pensamento simbólico.<br />
Os animais, segundo Gray, não estão<br />
perdidos em reflexões sobre si mesmos;<br />
eles simplesmente são. Essa forma<br />
de ser sem o ruído constante do ego<br />
sugere que a plenitude talvez não seja<br />
encontrada no acúmulo de realizações<br />
ou na construção de uma identidade,<br />
mas sim no silêncio que aceita a vida<br />
como ela é. Nesse silêncio, não há necessidade<br />
de provar nada a ninguém<br />
nem a si mesmo. A vida é vivida com<br />
um tipo de presença e imediatismo que<br />
os humanos muitas vezes anseiam.<br />
O som urbano e o ruído digital<br />
Foto: Getty Image<br />
Quem nasceu no século XX viveu em uma era dominada pela condição urbana e<br />
industrial, que significava estar imerso em um mundo onde o barulho era predominantemente<br />
físico e tangível. As cidades pulsavam com o som das máquinas, o<br />
apito das fábricas, o tráfego incessante de veículos e as multidões em movimento.<br />
O barulho era um reflexo da atividade humana e do progresso tecnológico. Uma<br />
poluição sonora que, embora muitas vezes esmagadora, era unidimensional em seu<br />
impacto <strong>–</strong> um ruído com fonte visível e concreta.<br />
Contraste isso com o mundo contemporâneo, onde a poluição sonora é complementada<br />
pelo barulho incessante do mundo digital. Agora, além dos sons da cidade, somos<br />
bombardeados por um fluxo constante de informação e comunicação. Um ruído<br />
mais abstrato e onipresente, que não se limita a um local físico; segue-nos em nossa<br />
casa, nosso local de trabalho e até mesmo em nossos espaços pessoais de quietude.<br />
A poluição sonora do mundo digital é composta de milhões de vozes. E cada voz<br />
busca por atenção, validação ou simplesmente espaço para ser ouvida. Esse é<br />
um ruído que não podemos evitar; ele permeia nossa vida digital, exigindo engajamento<br />
constante.<br />
Essa transição do barulho físico e localizado para o ruído digital e onipresente reflete<br />
uma mudança significativa na experiência humana. Enquanto o barulho da era<br />
industrial era um sinal de progresso e atividade externa, o barulho “digital” representa<br />
sobrecarga de informação <strong>–</strong> e cansaço. O desafio agora não é apenas encontrar<br />
refúgio do barulho físico, mas também navegar e gerenciar o ruído constante<br />
da era da informação <strong>–</strong> um mundo onde o silêncio se tornou um bem ainda mais<br />
precioso e difícil de alcançar.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 15<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. <strong>14</strong>
Charlie Chaplin em cena do filme Tempos Modernos | Foto: reprodução<br />
Desumanização e individualidade<br />
É também no século XX que experimentamos uma preocupação<br />
central em torno da desumanização, que estava ligada<br />
à representação do trabalhador como uma mera engrenagem<br />
na linha de montagem industrial, vividamente ilustrada em<br />
Tempos Modernos, de Charlie Chaplin. Essa preocupação refletia<br />
o medo de que a industrialização e a mecanização levassem<br />
à perda da individualidade e da humanidade. Ironicamente,<br />
enquanto o século XX avançava e entrávamos no<br />
século XXI, a desumanização assumiu uma forma diferente,<br />
menos tangível, mas igualmente perturbadora: em um mundo<br />
saturado de ruídos digitais, há uma tendência à redução<br />
das pessoas a meros consumidores ou produtores de informação.<br />
A individualidade e a profundidade do ser humano<br />
são frequentemente subjugadas sob o peso de uma cultura<br />
que valoriza a velocidade, a novidade e a visibilidade.<br />
Assim como o personagem de Chaplin luta para manter sua<br />
humanidade em meio às demandas da linha de montagem,<br />
o indivíduo contemporâneo luta para preservar sua identidade<br />
e sanidade em um ambiente digital que muitas vezes<br />
parece indiferente às necessidades humanas de quietude,<br />
reflexão e conexão genuína. A desumanização, tanto no contexto<br />
industrial quanto no digital, emerge da mesma raiz:<br />
um sistema que prioriza a eficiência e a produtividade sobre<br />
a experiência humana autêntica.<br />
A introspecção no progresso<br />
De volta à filosofia, John Gray aborda frequentemente em<br />
suas obras a relação do progresso com o conceito de silêncio,<br />
sem recorrer à saída simplista de apresentar o primeiro<br />
como antítese do segundo. Em vez disso, Gray oferece uma<br />
perspectiva mais matizada, argumentando que as noções<br />
contemporâneas de progresso muitas vezes falham em considerar<br />
aspectos fundamentais da condição humana, como a<br />
necessidade de silêncio, reflexão e conexão com a natureza.<br />
Para o filósofo, o progresso <strong>–</strong> apresentado em termos de<br />
avanço tecnológico, crescimento econômico e aumento do<br />
consumo <strong>–</strong> tende a afastar as pessoas de uma compreensão<br />
mais profunda de sua vida e do mundo ao seu redor. Em sua<br />
visão, a constante busca pelo progresso material pode levar a<br />
uma desvalorização do silêncio e da introspecção, na medida<br />
em que promove um estilo de vida centrado na ação, na eficiência<br />
e na constante estimulação, em detrimento da quietude,<br />
do contemplativo e do introspectivo.<br />
Gray frequentemente critica a ideia de que a humanidade<br />
está em um caminho linear de melhoria e progresso, sugerindo<br />
que essa crença pode levar ao descaso com valores essenciais<br />
que não estão alinhados com a aceleração e a eficiência.<br />
Outro produto artístico do século XX, a ópera-rock The Wall,<br />
de Pink Floyd, se concentra em temas de alienação, isolamento<br />
e construção de barreiras mentais. A narrativa de The Wall<br />
gira em torno da construção de um muro metafórico que isola<br />
o protagonista do mundo externo, formando uma barreira<br />
contra as experiências dolorosas da vida e o isolamento<br />
emocional. Analogamente, as pessoas na era moderna muitas<br />
vezes constroem muros psicológicos como defesa contra<br />
o ruído incessante da comunicação digital.<br />
No contexto urbano e industrial, o barulho físico e tangível<br />
se aliava à opressão social e criava um desejo de isolamento,<br />
um impulso de construir um muro entre si e o mundo externo.<br />
Da mesma forma, no mundo digital, o fluxo interminável<br />
de vozes e informações pode levar a um estado de sobrecarga<br />
sensorial, incentivando uma desconexão semelhante e a<br />
construção de barreiras emocionais e mentais.<br />
The Wall também explora como o isolamento pode ser autoimposto,<br />
um reflexo de nossos medos, traumas e desejos de proteção.<br />
Isso espelha como, na realidade moderna, muitas vezes<br />
nos isolamos não apenas fisicamente, mas emocional e digitalmente,<br />
criando nossos próprios muros em uma tentativa<br />
de filtrar o ruído e gerenciar o estresse da hiperconectividade.<br />
Em suas obras, ele explora como a modernidade e o progresso<br />
podem levar a um empobrecimento da experiência humana,<br />
ao invés de seu enriquecimento.<br />
Portanto, a relação que Gray estabelece entre progresso e<br />
silêncio não é simplesmente de oposição direta, mas sim de<br />
uma crítica à tendência da modernidade de menosprezar o<br />
valor do silêncio, da contemplação e da conexão mais profunda<br />
com o mundo natural e com nosso ser interior.<br />
Diferentemente das previsões de que máquinas e linhas de<br />
montagem nos reduziriam a componentes de um sistema impessoal,<br />
a realidade se mostrou mais complexa. As pressões<br />
da vida moderna, agora intensificadas pela constante conectividade<br />
digital e pela sobrecarga de informação, conduziram<br />
a uma crise de saúde mental e a um embotamento emocional.<br />
A ironia é marcante: enquanto temíamos a desumanização<br />
pelas máquinas, acabamos enfrentando um tipo de desumanização<br />
que vem de dentro, uma perda de contato com nossas<br />
emoções. A tecnologia, que prometia conectar-nos, em muitos<br />
casos, nos isolou ainda mais, levando a um sentimento de<br />
alienação e desconexão.<br />
Um ato de resistência<br />
No caldeirão da modernidade, fervilha<br />
um paradoxo peculiar: a busca incessante<br />
pelo autoconhecimento em meio<br />
a um mundo ruidosamente vazio. Esta<br />
era, marcada por uma cacofonia digital<br />
e urbana, parece lançar o autoconhecimento<br />
<strong>–</strong> aquele profundo e genuíno<br />
<strong>–</strong> para a prateleira do esquecimento,<br />
substituindo-o por um simulacro<br />
mais frívolo e acessível. Mas o que se<br />
perde quando o silêncio é substituído<br />
pelo barulho e a introspecção dá lugar<br />
à autopromoção?<br />
Na era do barulho constante, em que<br />
o zumbido das cidades e o clamor das<br />
redes sociais formam um coro ininterrupto,<br />
o autoconhecimento parece ter<br />
se transformado. Deixou de ser a busca<br />
silenciosa por entendimento interno<br />
para se tornar uma mercadoria, algo a<br />
ser exibido nas vitrines virtuais para<br />
admiração e validação social. Essa versão<br />
diluída de autoconhecimento despreza<br />
o mergulho profundo na psique<br />
para se alimentar de reflexões superficiais<br />
que se adequam mais a uma postagem<br />
do que a um diário íntimo.<br />
Assim, a busca pelo autoconhecimento<br />
na era moderna se torna uma jornada<br />
paradoxal. Por um lado, somos encorajados<br />
a nos conhecer melhor, a mergulhar<br />
em nosso íntimo. Por outro, o<br />
mundo em que vivemos <strong>–</strong> ruidoso, acelerado<br />
e superficial <strong>–</strong> desfavorece essa<br />
busca interior.<br />
O anseio pelo silêncio e pela introspecção<br />
na era moderna surge como um<br />
antídoto para a sensação de vazio que<br />
acompanha o autoconhecimento frívolo.<br />
A prática de se afastar do ruído<br />
constante não é uma mera fuga, mas<br />
sim um movimento em direção a um<br />
tipo mais autêntico de autoconhecimento,<br />
que ressoa com a verdade pessoal<br />
em vez de ecoar as vozes do mundo<br />
externo.<br />
Esse movimento em direção ao silêncio<br />
é, em si, um ato de resistência. É<br />
uma recusa em se conformar com o<br />
ruído incessante que caracteriza tanto<br />
a vida urbana quanto a digital. Nesse<br />
silêncio, encontramos um espaço para<br />
reflexão e para o cultivo de um autoconhecimento<br />
que é mais profundo e<br />
verdadeiro. Mais que uma atividade<br />
passiva, a introspecção se apresenta<br />
como uma exploração ativa do eu,<br />
livre das distrações e das exigências<br />
do mundo exterior.<br />
A arte e a filosofia nos mostram que há<br />
beleza e profundidade nesse silêncio. O<br />
silêncio que fala e a beleza que cala são<br />
presenças cheias de potencial e significado.<br />
Podemos encontrar no silêncio<br />
um caminho para uma compreensão<br />
mais profunda de nós mesmos e do<br />
mundo ao nosso redor e ver a beleza e<br />
a profundidade na quietude de nossa<br />
própria existência.<br />
E, assim, o autoconhecimento deixa<br />
de ser um produto de prateleira, pronto<br />
para consumo, e se torna uma jornada<br />
pessoal e íntima. É um processo<br />
que requer tempo, paciência e, acima<br />
de tudo, disposição para se afastar do<br />
ruído e se voltar para dentro. Assim,<br />
podemos descobrir que as respostas<br />
que buscamos não estão nos barulhos<br />
externos, estão nos sussurros silenciosos<br />
da alma.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 17<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 16
[GENTE COM BOSSA]<br />
Sangue, suor<br />
e sorriso<br />
A disciplina se manifesta em múltiplas faces. Ora aparece em<br />
formato de respeito incontestável às regras, rigor com o cumprimento<br />
das normas, obediência à hierarquia. Ora desponta<br />
como determinação e dedicação para alcançar um objetivo,<br />
uma conquista, um sonho. A primeira, isolada, tem o intuito<br />
de cortar asas. A segunda, temperada com uma boa dose de<br />
paixão, ensina a voar. Foi o que aconteceu com a ginasta paulista<br />
Rebeca Andrade. A menina que mal aprendeu a andar<br />
e já queria ver o mundo de cabeça para baixo entregou-se à<br />
disciplina do esporte aos 6 anos de idade. Caminhava quase<br />
duas horas para chegar ao ginásio. Aos 10, despediu-se da<br />
família para morar com os treinadores em outro estado. Encarou<br />
a dolorosa recuperação de quatro cirurgias com determinação<br />
para competir, vencer e gravar seu nome na história<br />
da ginástica artística.<br />
A disciplina para sentar e escrever, mesmo nos dias em que<br />
os problemas ocupam a mente e bloqueiam a inspiração, é a<br />
lição número 1 que os autores aprendem na carreira. Que o<br />
diga o jornalista e escritor Laurentino Gomes, dono de oito<br />
troféus do Prêmio Jabuti, o mais prestigiado da literatura brasileira.<br />
Antes de sentar e escrever as 1.600 páginas da trilogia<br />
Escravidão, o paranaense que se encantava com as histórias<br />
que o pai contava na roça leu mais de 300 livros ao longo de<br />
seis anos de pesquisa, que incluiu viagem a 12 países em três<br />
continentes diferentes.<br />
Também tem muita disciplina na história da “Mãe do Pop<br />
Foto: Nathan Dumlao/Unsplash<br />
Brasileiro”. A dança entrou na vida de Fernanda Abreu quando<br />
ela tinha 9 anos e não saiu mais, tanto que a cantora e<br />
compositora quase se tornou bailarina profissional antes de<br />
levar seu suingue sangue bom para os palcos. A ex-backing<br />
vocal da Blitz conta que, quando a banda estourou e seus integrantes<br />
viraram celebridades do dia para a noite, manteve<br />
os pés no chão graças à rigidez e à disciplina do balé clássico,<br />
em que “o movimento nunca está perfeito, pode sempre melhorar”,<br />
disse, em entrevista à revista <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>.<br />
Com talento e oito horas de treino diárias, Thiago Soares deixou<br />
o subúrbio do Rio de Janeiro e alcançou o cobiçado posto<br />
de primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Aos 42 anos,<br />
ele se dedica a um novo ato: a reinvenção da carreira. A história<br />
de Thiago, assim como a de atletas, artistas, escritores,<br />
médicos, engenheiros e muitos outros profissionais brasileiros,<br />
mostra que a disciplina pode dar asas e ensinar a voar.<br />
Esta <strong>edição</strong> <strong>14</strong> traz ainda a história do pernambucano<br />
Rhayann Vasconcelos, empreendedor prodígio da educação<br />
que, aos 23 anos, criou um cursinho online gratuito para<br />
preparar estudantes para o vestibular, o emocionante depoimento<br />
de Maria Paula Bandeira, uma advogada que passou<br />
a dar apoio jurídico e emocional a mulheres com câncer<br />
enquanto ela própria trata um câncer metastático, e um bate-papo<br />
filosófico com Luiz Felipe Pondé sobre a evolução<br />
(ou não) da humanidade.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 19<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 18
[Q&A ETC.]<br />
O filósofo lunar<br />
Durante um debate sobre ética, um jornalista introduziu da seguinte maneira uma pergunta ao escritor e professor Luiz Felipe<br />
Pondé, tido por muitos como pessimista: “Pondé, você que gosta do sofrimento...” O filósofo interrompeu: “Ninguém gosta de<br />
sofrimento! Você não precisa gostar, ele te acha”. Em seu livro mais recente, Diálogos sobre a Natureza Humana <strong>–</strong> Perfectibilidade<br />
e Imperfectibilidade, transcrição de uma série de aulas dadas em 2022, Pondé vai de Santo Agostinho ao Instagram para tentar<br />
descobrir se a humanidade está ou não melhorando. Nesta entrevista à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, o filósofo fala sobre seu ponto de vista sombrio<br />
(que ele chama de “lunar”) e dá informações em primeira mão sobre seu próximo livro.<br />
O que é a perfectibilidade, conceito central no seu mais recente livro?<br />
Foto: divulgação<br />
A perfectibilidade é um conceito em filosofia que afirma que o ser humano pode se aperfeiçoar moralmente, politicamente. Que<br />
nós temos todos os elementos necessários e suficientes para nos tornar cada vez melhores, e que a história seria uma comprovação<br />
disso. A imperfectibilidade é a afirmação de que nós não melhoramos. A gente melhora, depois piora. Avança aqui, cai ali.<br />
A história não caminha no sentido da melhora do ser humano.<br />
Então a história caminha em<br />
que sentido?<br />
Nenhum. Um conceito que eu acho<br />
muito elegante é o de “conglomerado<br />
herdado”, que o [intelectual britânico]<br />
Gilbert Murray, e depois o aluno<br />
dele E.R. Dodds, usa para explicar a<br />
religião na Grécia antiga. Esse conceito<br />
descreve um processo não linear, não<br />
racional, não organizado, sem nenhuma<br />
liderança, que vai acontecendo ao<br />
longo do tempo. Isso está presente em<br />
todas as culturas. A modernidade é<br />
uma grande declaração de guerra ao<br />
conglomerado herdado ocidental. É<br />
uma crença de que agora nós vamos<br />
inventar o que é melhor. Apenas esse<br />
conglomerado herdado absolutamente<br />
ancestral, confuso e contraditório nos<br />
organiza. Quando esse conglomerado<br />
vai ruindo, a gente não sabe o que fazer.<br />
Cada vez mais, ninguém sabe coisa<br />
nenhuma, não se tem vínculo com coisa<br />
nenhuma. Estamos à deriva.<br />
Essa noção de imperfectibilidade<br />
não soa a conservadorismo?<br />
Não dei muita atenção a esse assunto<br />
no livro porque sei como ele rapidamente<br />
destrói a discussão e reduz tudo<br />
a baixarias de polarização. Mas desde o<br />
século XVIII, quando a política moderna<br />
começa mais ou menos a se arrumar, as<br />
posições céticas em relação à natureza<br />
humana, que duvidam da perfectibilidade,<br />
das engenharias sociais e políticas,<br />
são conservadoras em política. No<br />
sentido de que é melhor a gente ir com<br />
calma, porque o ser humano é meio<br />
louco, mais irracional do que racional.<br />
Não significa que você não possa fazer<br />
ajustes de curso, mas você nunca deve<br />
fazê-los a partir de uma ideia abstrata<br />
de ser humano, e sim a partir de problemas<br />
concretos. Mudança só no varejo,<br />
nunca no atacado.<br />
Por que esse tema é importante<br />
agora? A noção da perfectibilidade<br />
está mais presente hoje, com a<br />
evolução tecnológica?<br />
Primeiro porque a modernidade <strong>–</strong> vinculada<br />
como é à Revolução Industrial,<br />
ao avanço técnico-científico, ao surgimento<br />
das democracias modernas<br />
<strong>–</strong> tem uma autopercepção fetichizada<br />
de que ela é um motor de aperfeiçoamento<br />
contínuo. O homem moderno<br />
tem certeza de que as coisas estão<br />
melhorando: se ainda não está bom é<br />
porque a gente ainda não descobriu<br />
como deixar bom. Por outro lado, o<br />
marketing transformou a concepção<br />
de perfectibilidade numa espécie de<br />
coaching barato, universalizante. Então<br />
as pessoas acreditam que podem<br />
se reinventar, que é só uma questão de<br />
ler o livro de autoajuda certo, de fazer o<br />
workshop motivacional certo. O século<br />
XXI, pelo menos até agora, parece que<br />
vai ser mais estúpido do que o século<br />
XX. Eu acho mais sábio viver com a imperfectibilidade.<br />
Mas, se o ser humano não melhora,<br />
para que serve a filosofia?<br />
Para nada. Por isso ela é livre. Platão e<br />
Sócrates seguramente concordariam<br />
com essa ideia de que a filosofia nasceu<br />
para melhorar a vida. Mas a filosofia<br />
não é homogênea. Ainda na antiguidade<br />
greco-romana havia filosofias<br />
como o epicurismo e o estoicismo, que<br />
pensavam mais num modo de você sobreviver<br />
no mundo difícil como ele é.<br />
Quando “se casa” com o cristianismo,<br />
a filosofia começa a trabalhar com a<br />
ideia de Deus, transformação moral.<br />
Mas continuam a existir correntes filosóficas<br />
e autores que formam o que<br />
eu chamo de “filosofia lunar”, que olha<br />
a dimensão sombria do ser humano. É<br />
um contraponto à ideia de filosofia solar,<br />
da razão, do aperfeiçoamento, do<br />
avanço. Para mim, quem inaugurou<br />
essa tradição lunar foi [o filósofo alemão]<br />
Arthur Schopenhauer. Ele rompe com<br />
a ideia de que a história vai em direção<br />
ao aperfeiçoamento humano, ou que<br />
existe uma ordem harmônica na natureza.<br />
Não! A natureza é louca, violenta.<br />
O Universo, ainda que belo e sublime, é<br />
indiferente a nós.<br />
Você se encaixa nessa escola da<br />
filosofia lunar?<br />
Sim, e isso vai virar livro. Por enquanto<br />
estou chamando de Ensaio de Filosofia<br />
Lunar. Vou trabalhar a seguinte hipótese:<br />
nós sobrevivemos até hoje porque<br />
não conseguimos dominar o meio<br />
ambiente, por fraqueza cognitiva e<br />
dificuldade técnica. Aí vêm a Revolução<br />
Industrial, o capitalismo, enfim, a<br />
modernidade, que é um surto de uma<br />
espécie que sempre teve a vocação<br />
para surtar <strong>–</strong> por isso ela delira com<br />
vida após a morte, Deus, essas coisas.<br />
Eu suspeito que a situação do Homo<br />
sapiens é a de uma espécie louca. A<br />
modernidade nos jogou no ar. Não sabemos<br />
absolutamente nada sobre o que<br />
é certo ou errado. E não é que soubéssemos<br />
no passado: só não tínhamos<br />
muita opção, então vivia-se de acordo<br />
com o que estava estabelecido. Agora,<br />
não! Agora, a gente acha que pode inventar<br />
uma humanidade nova a partir<br />
da aula de filosofia. “Olha, eu sei como<br />
fazer uma humanidade nova, basta ler<br />
esse livro.” Entendeu o surto?<br />
Se a humanidade não evolui,<br />
se a vida não melhora, por que<br />
continuar? O que te move?<br />
Porque gostar da vida não tem nada a<br />
ver com achar que ela está melhorando.<br />
Você gosta da vida porque gosta de<br />
comer, de transar... De amar, se tiver<br />
sorte. Estou falando do que, em filosofia,<br />
a gente chama de vida estética, que<br />
não tem nada a ver com arte, mas sim<br />
com gosto, sensações. Você perde muito<br />
tempo se batendo porque não consegue<br />
ser feliz. Achando que “ser feliz”<br />
é uma definição que se pode comprar.<br />
A gente quase não sabe o que é felicidade.<br />
Essa é uma palavra nova. Nós<br />
somos adaptados a uma vida infeliz<br />
a maior parte do tempo. Muito difícil,<br />
muito. [O criador da psicanálise] Sigmund<br />
Freud disse que “aparentemente,<br />
a felicidade do homem não faz parte<br />
dos planos da Criação”. Freud e Schopenhauer<br />
perceberam que nós somos<br />
seres dominados por uma vontade louca,<br />
incontrolável, cega, irascível, insatisfeita,<br />
que arrasta nossa razão. E do<br />
outro lado está a contingência, o fato de<br />
estarmos o tempo todo submetidos a<br />
elementos que não controlamos. Às vezes,<br />
conseguimos vencer a luta contra<br />
a contingência, depois perdemos, como<br />
indivíduos ou em grupo. Eu acho isso<br />
uma grande ópera: você sabe que vai<br />
perder, mas continua vivendo.<br />
Entrevista concedida a Marco Aurélio Gois<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 21<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 20
[COM A PALAVRA…]<br />
Maria Paula Bandeira<br />
Ela descobriu um câncer de mama aos 24 anos e um câncer metastático aos 29.<br />
Quando a esperança ameaçava esmorecer, a advogada pernambucana Maria Paula<br />
Bandeira decidiu criar um perfil no Instagram para acolher mulheres na mesma<br />
situação. Hoje, faz quimioterapia e ajuda outras pacientes a enfrentar o emaranhado<br />
jurídico e emocional dessa jornada<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
“Cresci em uma casa repleta de amor.<br />
Sou a mais velha de quatro irmãos,<br />
com pais casados há quatro décadas.<br />
Fiz faculdade de direito, e passei a<br />
prestar concurso porque tinha o sonho<br />
de ser defensora pública, trabalhar<br />
com algo que fizesse diferença na<br />
sociedade.<br />
Conheci o Rodrigo na universidade, e<br />
nos casamos em 2010. Seis meses depois,<br />
aos 24 anos, recebi um diagnóstico<br />
de câncer de mama. Foi um choque.<br />
Após a cirurgia, vivia uma rotina<br />
de radioterapia, quimioterapia e reposição<br />
hormonal, enquanto via minhas<br />
amigas passando em concurso, engravidando.<br />
Mas segui adiante e, ao fim<br />
do tratamento, acreditei estar curada.<br />
Cinco anos depois, porém, já trabalhando<br />
como advogada em direito eleitoral,<br />
fiz alguns exames porque meu<br />
marido e eu queríamos engravidar.<br />
Novamente, recebi um diagnóstico<br />
inesperado: câncer no ovário. Retirei<br />
os dois ovários, mas os exames revelaram<br />
tratar-se de um câncer metastático<br />
da mama que estava em várias<br />
outras partes do corpo, como fígado,<br />
pulmão, ossos e pleura. Faço quimioterapia<br />
periodicamente desde janeiro<br />
de 2016. Hoje, o intervalo é de 21 dias,<br />
mas já passei por uma fase com três<br />
sessões semanais.<br />
A perspectiva de ter uma doença<br />
grave e sobrevida curta pega qualquer<br />
pessoa de surpresa. Além de encarar<br />
a realidade de não poder ser mãe biológica,<br />
passei a viver um grande luto<br />
ao pensar que meu sobrinho de 1 ano<br />
não teria lembranças minhas, ou que<br />
não estaria presente no casamento<br />
da minha irmã. Apesar do choque, vi<br />
que precisaria extrair o maior bem<br />
do maior mal que me aconteceu. Tirei<br />
muita força da minha religião, o catolicismo.<br />
Para mim, esse lado sagrado<br />
foi essencial.<br />
Eu dizia às pessoas que sempre estava<br />
contra as estatísticas. O câncer de<br />
mama tinha 95% de chances de cura,<br />
mas caí nos outros 5%. Fui um raro<br />
caso de pessoa jovem a ter o câncer<br />
metastático que tive. Outra estatística<br />
em que apareço do lado mais improvável,<br />
desta vez com um resultado<br />
positivo: a maioria dos companheiros<br />
abandona a mulher que recebe diagnóstico<br />
de doença grave. É muito comum<br />
ver histórias tristes como essa.<br />
Eu disse ao Rodrigo que a gente poderia<br />
se separar para ele viver tudo o<br />
que sempre tinha sonhado. Mas ele se<br />
manteve ao meu lado. Há muito amor,<br />
companheirismo e cuidado. Ele é psicólogo<br />
e também meu cuidador.<br />
Tento viver com a doença da melhor<br />
maneira possível. De certa forma,<br />
sempre tive sorte, pois conto com<br />
muito apoio do marido e da minha família<br />
e tenho acesso a tratamento e<br />
cuidados. Mas já precisei abrir mão de<br />
algumas coisas. Eu trabalhava como<br />
professora em uma faculdade, mas<br />
tive que parar quando o câncer no<br />
cérebro começou a me atrapalhar. Já<br />
perdi o movimento da mão direita e,<br />
sendo destra, precisei me adaptar.<br />
Quando descobri meu diagnóstico,<br />
não encontrei uma pessoa que enfrentava<br />
a mesma situação para ouvir um<br />
conselho, trocar dicas, então decidi<br />
ser essa pessoa para os outros. Criei<br />
em 2016 o perfil Lenço do Dia no Instagram,<br />
abrindo um espaço de escuta<br />
e aconselhamento a outras mulheres.<br />
Falo sobre o câncer, medicamentos e<br />
novidades científicas, conto que amo<br />
beber vinho, viajar, pintar o cabelo,<br />
brincar com meus sobrinhos, e ajudo<br />
juridicamente outras mulheres.<br />
Quando a gente descobre um câncer,<br />
precisa lidar com um novo mundo de<br />
informações, burocracias e legislação.<br />
O mais comum são pessoas que precisam<br />
brigar com planos de saúde ou<br />
enfrentar as burocracias do sistema<br />
previdenciário. Como a maioria das<br />
minhas clientes é de mulheres pobres,<br />
cobro pouco pelo trabalho, um salário<br />
mínimo ou até menos. Recebo mais de<br />
20 mensagens por dia, e já ajudei mais<br />
de 500 mulheres. É muito gratificante<br />
quando sai uma decisão favorável à<br />
paciente.<br />
Além da Lenço do Dia e do meu trabalho<br />
como advogada, atuo no Instituto<br />
Ana Michele Soares, entidade criada<br />
em maio de 2023 para levar adiante<br />
o legado dessa amiga querida, ativista<br />
de cuidados paliativos que morreu em<br />
janeiro de 2023. O trabalho dela era<br />
essencial, e agora continuamos esse<br />
serviço, oferecendo apoio semanal<br />
aos pacientes e informações de especialistas.<br />
Também estou sempre educando sobre<br />
como não ser capacitista com<br />
quem tem um câncer grave. Muita<br />
gente trata a pessoa doente com dó,<br />
mas ela precisa ser e se sentir inserida.<br />
E chamo a atenção: nunca diga<br />
coisas como ‘Pelo menos tá viva’ ou<br />
‘Você vai vencer essa’, nem recorra<br />
a metáforas bélicas, sobre enfrentar<br />
uma guerra, uma batalha, ser guerreiro.<br />
Por causa desses trabalhos, recebi o<br />
Prêmio Inspiradoras 2023, do Universa<br />
UOL, na categoria Atenção ao<br />
Câncer de Mama. Quando descobri a<br />
doença, eu só pensava em luto, não<br />
imaginava que um dia seria a inspiração<br />
de alguém.<br />
Não faço planos de longo prazo, mas<br />
faço planos. Após oito anos do diagnóstico<br />
da metástase, vivi muita coisa.<br />
Percebi que minha vida não tinha<br />
parado ali, só seria diferente. Quero<br />
escrever um livro contando minha<br />
história e tentar ajudar pacientes<br />
com doenças graves e seus familiares.<br />
Também pretendo continuar<br />
brincando com meus sobrinhos e fazendo<br />
as coisas de que gosto: viajar,<br />
beber vinho, ir à missa e ser feliz. E<br />
quero que a Lenço do Dia atinja mais<br />
pessoas, para ajudá-las a assumir as<br />
rédeas da própria vida. Quero que a<br />
gente tenha o sonho de envelhecer<br />
e que a gente queira envelhecer, não<br />
abreviar nossa vida.”<br />
Depoimento dado a Guilherme Dearo<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 23<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 22
[GUARDE ESTE NOME]<br />
Rhayann Vasconcelos<br />
O jovem empreendedor do cursinho pré-vestibular<br />
Por Guilherme Dearo<br />
Foto: divulgação<br />
Filho de funcionários públicos concursados,<br />
o recifense Rhayann Vasconcelos,<br />
de 26 anos, aprendeu desde<br />
cedo que a educação é a base para conquistar<br />
sucesso na vida. Sem berço de<br />
ouro nem ter enfrentado dificuldades<br />
financeiras, Rhayann nunca sentiu que<br />
lhe faltaram oportunidades ao crescer.<br />
Contudo, ele sabia que o futuro não estava<br />
ganho e demandava dedicação.<br />
Frequentou escolas privadas, mas estudou<br />
em escola pública quando a família<br />
precisou apertar o cinto <strong>–</strong> já naquela<br />
época, a mudança gerou preocupação<br />
no adolescente, acostumado a ouvir sobre<br />
a falta de perspectiva para alunos<br />
da rede pública. “Algumas pessoas têm<br />
o privilégio de não se importar se vão<br />
para a faculdade ou não. Para outras, o<br />
futuro depende disso”, diz.<br />
Os pais sonhavam com o filho se tornando<br />
funcionário público, o que lhe<br />
garantiria carreira e estabilidade. Aos<br />
18 anos, Rhayann estudou para um<br />
concurso público, passou, mas, quando<br />
foi convocado, recusou a vaga <strong>–</strong> a ideia<br />
de fazer a mesma coisa por décadas<br />
não lhe agradava. “Meus pais achavam<br />
que eu estava maluco de perder uma<br />
oportunidade como aquela, mas não<br />
era meu interesse. Só quis mostrar a<br />
eles que eu era dedicado e conseguia<br />
passar. Mas meu sonho era outro”, conta<br />
Rhayann.<br />
No começo da vida adulta, a vontade<br />
de fazer algo de impacto já existia,<br />
embora Rhayann ainda não soubesse<br />
exatamente o quê. Aos 19 anos, em<br />
2016, conseguiu uma vaga no governo<br />
de Pernambuco como responsável por<br />
cuidar de políticas públicas para a juventude.<br />
“Nessa época, achei que meu<br />
futuro seria a política. Não como político,<br />
que nunca desejei, mas seguindo<br />
uma carreira de gestão.”<br />
Em 2019, embarcou na vida de empreendedor<br />
ao criar a Acelere Educação,<br />
que passou a promover eventos com jovens<br />
para debater empreendedorismo<br />
e o sonho do primeiro negócio. A ótima<br />
ideia encontrou uma barreira: com a<br />
pandemia de Covid-19, veio a proibição<br />
de eventos presenciais. Mas Rhayann<br />
rapidamente mudou de rumo. “Quando<br />
comecei a ver as notícias de jovens<br />
prejudicados, sem estudo de qualidade<br />
e com o Enem cancelado naquele ano,<br />
vi que precisava fazer alguma coisa.”<br />
Sozinho e sem recursos financeiros, ele<br />
fundou a Acelere no Enem visando a<br />
criação de cursos gratuitos voltados a<br />
jovens com o sonho de prestar a prova<br />
e entrar na universidade. Gravou uma<br />
aula em um estúdio emprestado e começou<br />
a correr atrás do primeiro parceiro.<br />
Naquela época, dividia seu tempo<br />
entre a nova empresa e a faculdade de<br />
publicidade.<br />
Diante da resposta positiva de alguns<br />
alunos, Rhayann seguiu adiante. Em<br />
poucos meses, a equipe já somava quatro<br />
pessoas, mas com professores ainda<br />
trabalhando como voluntários. Hoje,<br />
são 26 profissionais, e com professores<br />
pagos para criar as aulas. Todo o conteúdo<br />
<strong>–</strong> de aulas ao vivo e gravadas e<br />
simulados a mentorias e acompanhamento<br />
pedagógico <strong>–</strong> é fornecido gratuitamente,<br />
e a empresa fatura com<br />
publicidade, tendo parceiros como Bic,<br />
Senai, Estácio e TikTok.<br />
O número de alunos também cresceu<br />
exponencialmente. No primeiro ano,<br />
foram 84 mil inscritos nas aulas. Em<br />
2021, 489 mil estudantes foram atendidos.<br />
Em 2022, 519 mil. O faturamento<br />
também cresceu, saltando de 27 mil<br />
reais em 2020 para 3 milhões de reais<br />
em 2023. Entre os estudantes que<br />
responderam aos questionários após<br />
passagem pela Acelere no Enem, 20<br />
mil entraram em alguma universidade<br />
graças ao sucesso na prova do Enem.<br />
O contato com tantos alunos também<br />
mostrou a complexa realidade do Brasil<br />
a Rhayann. “A gente lembra que há<br />
muita desigualdade. Tem gente que<br />
não tem internet em casa, outros só<br />
têm um único celular no lar, o da mãe<br />
ou do pai, e precisam esperar que eles<br />
voltem do trabalho para assistirem às<br />
aulas do curso. Então a gente pensa<br />
sempre em tecnologias e soluções para<br />
facilitar a vida deles.”<br />
Rhayann sabe que o impacto na vida<br />
dos estudantes é um pequeno grande<br />
passo rumo a um país com mais educação<br />
de qualidade. “Os governos mudam,<br />
todos falam da importância da<br />
educação em campanhas, mas depois a<br />
conversa some. É preciso colocar a educação<br />
como prioridade do orçamento, e<br />
o país precisa adotar uma agenda que<br />
será seguida por todas as gestões, com<br />
continuidade”, analisa.<br />
A Acelere no Enem e seu fundador<br />
ganharam reconhecimento com premiações<br />
no Brasil e no exterior. Em<br />
2021, a empresa foi eleita uma das 30<br />
melhores iniciativas do país pela Brazil<br />
Conference Harvard & MIT, maior<br />
conferência organizada por estudantes<br />
em Boston, nos Estados Unidos. No<br />
ano seguinte, ficou entre as dez maiores<br />
iniciativas na mesma conferência<br />
e foi escolhida entre as cinco melhores<br />
do Brasil na categoria educação básica<br />
no Prêmio do Movimento LED <strong>–</strong> Luz na<br />
Educação, oferecido pela TV Globo e<br />
pela Fundação Roberto Marinho. Também<br />
em 2022, Rhayann foi eleito um<br />
dos jovens mais promissores na lista<br />
Forbes Under 30, pela Forbes Brasil.<br />
Após tantas conquistas, Rhayann Vasconcelos<br />
sonha em aumentar sua marca,<br />
ampliando o escopo da empresa.<br />
Para <strong>2024</strong>, a ideia é lançar três novas<br />
frentes da Acelere: uma para cursos<br />
técnicos; outra com cursos extras para<br />
universitários; e uma terceira para capacitar<br />
professores que desejam produzir<br />
conteúdo para a internet.<br />
“Quero ajudar muito mais pessoas. E<br />
quero inspirar mais gente. O Enem não<br />
é o fim, é apenas o começo. Gosto de<br />
falar aos jovens que se esforcem, estudem<br />
e se dediquem, e não desistam na<br />
primeira barreira, porque a vida nem<br />
sempre é justa. A educação realmente<br />
transforma vidas. E o mais importante<br />
é dar orgulho a quem você ama”, diz.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 25<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 24
Nome: Rebeca Rodrigues de Andrade<br />
Idade: 24 anos<br />
Profissão: ginasta<br />
Cidade onde nasceu: Guarulhos/SP<br />
A menina que<br />
aprendeu<br />
a voar<br />
Por Heloísa Noronha<br />
A ginasta Rebeca Andrade superou<br />
dificuldades financeiras, infância<br />
longe da família e lesões antes de se<br />
tornar o maior nome da história da<br />
ginástica artística brasileira<br />
Foto: Miriam Jeske/COB<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 27<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 26
Estrelas na sala<br />
Rebeca Rodrigues de Andrade nasceu<br />
em Guarulhos, na Grande São Paulo,<br />
no dia 8 de maio de 1999. Era a caçula<br />
do primeiro casamento de Rosa Santos,<br />
que se separou do marido quando<br />
Rebeca ainda era pequena e criou os<br />
filhos trabalhando como empregada<br />
doméstica. Ao lado dos sete irmãos <strong>–</strong><br />
além dos quatro mais velhos, ela tem<br />
outros três do segundo casamento<br />
de Rosa <strong>–</strong>, Rebeca teve uma infância<br />
humilde, mas bastante ativa. Assim<br />
que aprendeu a engatinhar, inventou<br />
de escalar os móveis da casa.<br />
Mal começou a andar, passava o dia<br />
virando estrela e fazendo estripulias<br />
pela sala. “Eu sempre fui muito feliz.<br />
Tudo o que importava na época era<br />
o amor, o carinho e o apoio da minha<br />
família, desde sempre, para tudo o<br />
que eu quisesse fazer. E isso continua<br />
importante para mim”, diz Rebeca. “O<br />
maior desafio para que eu pudesse me<br />
tornar uma grande atleta foi a parte<br />
financeira. A gente teve muita dificuldade<br />
nessa área.”<br />
A tia de Rebeca trabalhava no Ginásio<br />
Bonifácio Cardoso, em Guarulhos,<br />
e levou os filhos para um teste<br />
na ginástica artística do projeto social<br />
da cidade. Acompanhando os primos,<br />
Rebeca impressionou os professores.<br />
Mônica dos Anjos, a primeira treinadora,<br />
afirma que a menina tinha o<br />
biotipo ideal para o esporte: ombros<br />
largos, quadril estreito, magra e com<br />
a musculatura definida. A mãe fez<br />
tudo o que estava ao alcance para<br />
impulsionar a carreira da filha. Chegou<br />
a acumular três empregos para<br />
ter condições de custear o treinamento,<br />
enquanto o irmão mais velho<br />
de Rebeca ficava encarregado de levar<br />
de ônibus a menina aos treinos. No<br />
período em que faltou dinheiro para<br />
o transporte, os irmãos faziam o percurso<br />
de quase duas horas a pé, até o<br />
rapaz conseguir comprar uma bicicleta.<br />
“As pessoas sempre me ajudaram<br />
muito, de coração mesmo, sem<br />
pedir nada em troca. Dessa parte eu<br />
não tenho do que reclamar”, afirma.<br />
“O maior desafio para que eu pudesse me tornar uma<br />
grande atleta foi a parte financeira. A gente teve muita<br />
dificuldade nessa área”<br />
Aos 15 anos (à esq.), com uma amiga | Foto: reprodução Instagram<br />
Foto: Miriam Jeske/COB<br />
E<br />
nquanto ela corre para saltar sobre uma mesa, abre um espacate aéreo na<br />
trave de equilíbrio ou rodopia no ar ao som de Baile de Favela, a respiração<br />
de milhões de compatriotas fica suspensa, à espera da aterrissagem cravada.<br />
Com apenas 1,51 metro de altura, Rebeca Andrade é um gigantesco motivo de orgulho<br />
para os brasileiros. A atleta que conquistou de vez a torcida ao levar o funk para<br />
os ginásios mundo afora começou a gravar seu nome na história da ginástica artística<br />
em 2021, quando se tornou a primeira brasileira a subir duas vezes no pódio em<br />
uma mesma Olimpíada, em Tóquio.<br />
Desde então, acumulou uma série de medalhas de peso, as mais recentes obtidas<br />
nos Jogos Pan-Americanos de Santiago 2023, em outubro. Era sua primeira participação<br />
no evento, e ela voltou do Chile com duas medalhas de ouro e duas de prata<br />
na bagagem, ajudando a colocar o Brasil no disputado segundo lugar do quadro de<br />
medalhas do torneio, atrás apenas da potência Estados Unidos.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 29<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 28
No topo do ranking<br />
Daianinha de Guarulhos<br />
Rebeca pisou pela primeira vez num<br />
centro de treinamento em 2005. Um<br />
ano antes, Daiane dos Santos havia<br />
brilhado nos Jogos Olímpicos de Atenas,<br />
na Grécia, ao conquistar o inédito<br />
quinto lugar na final do solo, e dois<br />
anos antes a gaúcha obteve o histórico<br />
ouro no solo do Campeonato Mundial,<br />
apresentando ao mundo seu duplo<br />
twist carpado. A trajetória da menina<br />
negra que se destacou num esporte<br />
em que até então predominavam<br />
pessoas brancas se tornou a principal<br />
inspiração para a carreira de Rebeca.<br />
A admiração ganhou um novo significado<br />
quando, aos 10 anos, teve a chance<br />
de treinar ao lado da ídola. Na ocasião,<br />
o Pinheiros, clube da ex-ginasta<br />
e comentarista, estava em reforma, e<br />
Daiane passou um período treinando<br />
em Guarulhos. Não à toa, Rebeca recebeu<br />
o apelido de “Daianinha de Guarulhos”<br />
logo que chegou ao Ginásio<br />
Bonifácio Cardoso. Hoje, a admiração<br />
entre elas é mútua.<br />
Alexandre Loureiro/COB<br />
A paixão pela ginástica artística despontou<br />
nas primeiras piruetas e não<br />
parou mais de crescer. Ela foi morar<br />
com os treinadores em Curitiba antes<br />
de completar 11 anos de idade para<br />
conseguir melhores condições para<br />
treinar. A mãe foi muito criticada por<br />
permitir que uma criança tão pequena<br />
se lançasse ao mundo para viver<br />
longe da família, mas era a única maneira<br />
de Rosa ver a filha evoluir no esporte<br />
e realizar um sonho. As portas<br />
de casa, conforme disse em diversas<br />
entrevistas, estariam sempre abertas<br />
para recebê-la de volta, em qualquer<br />
circunstância.<br />
Em 2011, Rebeca mudou-se para o Rio<br />
de Janeiro para se tornar atleta do Clube<br />
de Regatas do Flamengo, seu atual<br />
clube. Hoje, a ginasta conta com uma<br />
estrutura que nem de longe se parece<br />
com a que ela teve no início da carreira:<br />
ela mora na Barra da Tijuca, pertinho<br />
do Centro de Treinamento do Time<br />
Brasil, e dá conta da rotina intensa de<br />
programação de treinos sem percorrer<br />
os longos trajetos da infância.<br />
“Foi maravilhoso<br />
mostrar um pouco<br />
do Brasil, da<br />
cultura brasileira,<br />
no outro lado do<br />
mundo”<br />
Em 29 de julho de 2021, Rebeca<br />
Andrade, então com 22 anos, conquistou<br />
a primeira medalha olímpica<br />
feminina da ginástica do Brasil ao<br />
ganhar a prata no individual geral,<br />
prova que reúne os quatro aparelhos<br />
da modalidade: trave, barras assimétricas,<br />
salto e solo. Ainda na Tóquio<br />
2020, a jovem ocupou o lugar mais<br />
alto do pódio na prova de salto, estreando<br />
o ouro da modalidade entre as<br />
mulheres brasileiras. Poucos meses<br />
depois, em outubro, no Mundial disputado<br />
em Kitakyushu, também no<br />
Japão, ela voltou a conquistar duas<br />
medalhas: ouro no salto e prata nas<br />
barras assimétricas. A sequência<br />
de quatro medalhas colocou Rebeca<br />
Andrade no posto de maior ginasta<br />
feminina da história do país, superando<br />
em termos de resultados outros<br />
grandes nomes da modalidade, como<br />
Daiane dos Santos, Daniele Hypólito e<br />
Jade Barbosa.<br />
Icônica, a série de Rebeca Andrade<br />
no solo naquele ano ficou guardada<br />
na memória dos brasileiros. O mix<br />
do funk Baile de Favela, de MC João,<br />
com o órgão de tubo de Tocata e Fuga,<br />
do compositor alemão Johann Sebastian<br />
Bach, embalou os movimentos<br />
e saltos da ginasta e emocionou a<br />
torcida. “Baile de Favela me marcou<br />
muito. Fiz apresentações com a trilha<br />
antes da Olimpíada, mas ela estourou<br />
mesmo depois dos Jogos e eu tenho<br />
um carinho enorme por essa música.<br />
Foi maravilhoso mostrar um pouco<br />
do Brasil, da cultura brasileira, no<br />
outro lado do mundo”, diz Rebeca.<br />
“Eu escuto e gosto muito da batida<br />
do funk. Acho que anima as pessoas,<br />
que chama o público e todo mundo<br />
gosta. Eu me sinto muito honrada<br />
de as pessoas se lembrarem de mim<br />
quando ouvem a batida de Baile de<br />
Favela, tanto que eu trouxe um pedacinho<br />
da música para o final da série<br />
do meu solo do Pan, que começa com<br />
Beyoncé e Anitta”, explica a ginasta.<br />
Após a apresentação viral e o excelente<br />
desempenho em Tóquio, Rebeca<br />
apareceu carregando a bandeira do<br />
Brasil à frente da delegação brasileira<br />
na cerimônia de encerramento<br />
dos Jogos Olímpicos. A partir daí,<br />
passou a colecionar títulos: foi eleita<br />
a melhor atleta da ginástica artística<br />
e melhor atleta do ano no Prêmio<br />
Brasil Olímpico pelo Comitê Olímpico<br />
do Brasil (COB) em 2021, 2022 e<br />
2023, nomeada embaixadora da ONU<br />
Mulher e duas vezes escolhida como<br />
atleta do ano pela Associação dos<br />
Cronistas Esportivos do Estado de<br />
São Paulo (Aceesp). Em meio a tantas<br />
conquistas, se tornou uma celebridade<br />
nacional e passou a ser convidada<br />
para participar de programas<br />
de televisão fora do mundo esportivo,<br />
como Altas Horas, da Rede Globo, e<br />
Saia Justa, do GNT, e estampar capas<br />
de revista, a exemplo da <strong>edição</strong> de<br />
outubro de 2021 da Vogue.<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 31<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 30
Prêmio Brasil Olímpico 2023 | foto: Alexandre Loureiro/COB<br />
Conquistas dos sonhos<br />
Em 2023, além do sucesso no Pan do<br />
Chile, Rebeca também saiu consagrada<br />
do Campeonato Mundial de Ginástica<br />
Artística, que aconteceu na Antuérpia,<br />
na Bélgica. Com cinco pódios, ela<br />
se tornou a maior medalhista brasileira<br />
em um único Mundial, igualando o feito<br />
do nadador César Cielo, e ajudou o<br />
Brasil a quebrar o recorde em número<br />
de medalhas (seis) numa mesma <strong>edição</strong><br />
da importante competição mundial<br />
de ginástica artística, superando as<br />
três de Liverpool, em 2022. De quebra,<br />
Rebeca ainda se sagrou campeã na<br />
prova do salto, ofuscando o favoritismo<br />
da americana Simone Biles, fenômeno<br />
do esporte.<br />
“Na minha infância, eu queria muito<br />
ser uma medalhista olímpica, uma<br />
medalhista mundial e conquistar várias<br />
coisas”, diz. Será que a realidade<br />
Dor e medo<br />
Ao longo dos anos, Rebeca enfrentou<br />
uma série de lesões no joelho que quase<br />
interromperam a carreira. “Após a<br />
última lesão, não consegui arrumar<br />
forças como treinador para pedir que<br />
ela continuasse. As recuperações anteriores<br />
foram difíceis, então eu não<br />
tinha argumentos para fazê-la passar<br />
por tudo aquilo novamente”, conta<br />
ele, revelando que chorava em casa<br />
por causa da situação da atleta. “Não<br />
era o treinador dela chorando, e sim<br />
a pessoa que a viu crescer e ter mais<br />
uma vez seu sonho interrompido. Foi<br />
então que ela me ligou e disse que eu<br />
poderia ficar tranquilo, que ela não iria<br />
desistir sem tentar. Desde aquele momento,<br />
não passei um dia sem pensar<br />
no melhor de mim que ela poderia ter”,<br />
diz Chico.<br />
Durante os preparativos para os Jogos<br />
Pan-Americanos de Toronto, no Canadá,<br />
Rebeca rompeu o ligamento cruzado<br />
anterior do joelho direito. A lesão<br />
correspondeu às expectativas? “Posso<br />
dizer que está sendo melhor do que eu<br />
esperava, melhor do que eu sonhava. E<br />
eu fico muito, muito feliz com isso, porque<br />
trabalhei duro para chegar até aqui<br />
junto com toda a minha equipe, tendo<br />
a minha fé e acreditando que coisas<br />
novas viriam no futuro, mesmo com os<br />
imprevistos que aconteceram durante<br />
a minha carreira. Então, termino 2023<br />
com muita felicidade.”<br />
“Na minha infância, eu queria muito ser uma<br />
medalhista olímpica, uma medalhista mundial<br />
e conquistar várias coisas”<br />
Francisco Porath é o técnico com perfil<br />
de paizão nos bastidores do sucesso da<br />
ginasta de Guarulhos. E Chico, como é<br />
mais conhecido, faz questão de endossar<br />
a luta e a garra da pupila: “Acompanhei<br />
todo o crescimento da Rebeca,<br />
e desde o início vi todo o seu potencial.<br />
Quando a Rosa, mãe dela, permitiu que<br />
ela fosse morar com a gente em Curitiresultou<br />
em duas cirurgias, uma em<br />
2015 e outra em 2017. Os procedimentos<br />
cirúrgicos se somaram ao anterior,<br />
feito em 20<strong>14</strong>, quando ela passou por<br />
uma cirurgia no pé e ficou de fora das<br />
Olimpíadas da Juventude de Nanquim,<br />
na China. Em 2019, às vésperas do Pan<br />
de Lima, no Peru, uma nova cirurgia no<br />
joelho tirou a ginasta da competição.<br />
“Foram momentos muito complicados”,<br />
admite Rebeca. “Para um atleta de alto<br />
rendimento, é difícil ficar muito tempo<br />
longe da quadra. Em 2015, quando<br />
aconteceu a primeira vez, senti muita<br />
dor e medo. Nunca tinha passado por<br />
uma cirurgia tão grande, tão complexa.<br />
Nas três vezes, confesso que pensei<br />
em desistir. Na última, liguei para minha<br />
mãe e pedi que viesse até o Rio me<br />
buscar, porque não queria mais fazer<br />
ginástica”, relata.<br />
Rebeca não sente constrangimento em<br />
admitir vulnerabilidade, pois entende<br />
ba, eu tive um insight. Não foi uma decisão<br />
fácil para todos os envolvidos, porém<br />
o desejo da Rebeca com tão pouca<br />
idade e o incentivo da mãe me fizeram<br />
acreditar que não haveria obstáculos<br />
suficientes para impedi-la de alcançar<br />
seus sonhos”.<br />
Rebeca e Chico não estão sozinhos nas<br />
conquistas da atleta. A primeira medalha<br />
olímpica no individual geral, em<br />
Tóquio, premiou um esforço coletivo.<br />
“O Brasil já vinha havia muitas gerações<br />
em busca disso, e naquele dia,<br />
aparelho por aparelho, vi isso sendo<br />
construído. Quando saiu a última nota,<br />
tirei a bandeira do Brasil da mochila e<br />
enrolei na Rebeca. Ali realizamos não<br />
só os nossos sonhos, mas os de um<br />
país inteiro! Foi incrível mesmo”, lembra<br />
Chico, emocionado.<br />
que estava sensível e enfrentava uma<br />
situação delicada. “Não me sinto mal<br />
por ter pensado em desistir. Me sinto<br />
muito grata e feliz por ter continuado”,<br />
diz. Enquanto se recuperava, chorava<br />
de saudade dos treinos. Queria voltar<br />
logo a competir. “Minha mãe percebeu<br />
que o que eu sentia era medo de voltar<br />
para o treino e não conseguir ser a<br />
atleta que era antes. Então, ela me falou:<br />
‘Olha, filha, a mãe não vai deixar<br />
você parar de treinar sem você tentar.<br />
Se você tentar e não conseguir, aí tudo<br />
bem, você tem sua família, todo mundo<br />
vai te receber de braços abertos porque<br />
a gente te ama, e vamos seguir a<br />
vida. Mas você precisa tentar’.” Rebeca<br />
se diz muito grata à mãe por sua postura<br />
firme, de não passar a mão na cabeça<br />
da filha no primeiro momento de<br />
fragilidade, mas também ter oferecido<br />
acolhimento e respeito. “Felizmente,<br />
tenho uma rede de apoio muito grande”,<br />
conta a atleta.<br />
Pensamento positivo<br />
A positividade que Rebeca Andrade<br />
aprendeu a desenvolver no decorrer da<br />
carreira também teve <strong>–</strong> e ainda tem <strong>–</strong><br />
papel fundamental no retorno aos ginásios<br />
e nos resultados que vem apresentando<br />
desde então. “Estou sempre<br />
pensando em coisas boas, desejando<br />
o melhor para mim e para a minha<br />
equipe. Antes de fazer os movimentos,<br />
peço proteção a Deus. Na minha cabeça,<br />
eu digo: ‘Você não vai fazer nada de<br />
diferente do que já fez no treino, então<br />
vai firme e consciente’”, revela a atleta.<br />
“Às vezes, quando a câmera foca<br />
no meu rosto, dá até para ver a minha<br />
boca mexendo. É o momento em que<br />
estou me dando confiança, me deixando<br />
mais centrada e concentrada para<br />
poder fazer os meus movimentos.”<br />
A ginasta trabalhou com uma psicóloga<br />
esportiva por iniciativa do Comitê<br />
Olímpico Brasileiro, e a terapia foi um<br />
incentivo para Rebeca se matricular na<br />
faculdade de psicologia. Atualmente,<br />
ela concilia as aulas do quarto semestre<br />
do curso com sua rotina esportiva <strong>–</strong> e é<br />
tão boa aluna quanto ginasta. Treinos,<br />
terapia e fisioterapia tomam boa parte<br />
do seu tempo. “Quando não estou treinando<br />
ou competindo, gosto muito de<br />
dormir”, diz, aos risos. “Também gosto<br />
de ir à praia e ficar tranquila, pegando<br />
sol, curtindo o mar. Ainda adoro ouvir<br />
música, principalmente de cantoras<br />
como Beyoncé, Rihanna, Jessie J, Ariana<br />
Grande, Ludmilla e Anitta”, completa<br />
a atleta, que namora o fisiculturista<br />
Luiz Cleiton, de 28 anos.<br />
Logo após o Pan de Santiago, Rebeca<br />
tirou merecidas férias e compartilhou<br />
com seus seguidores <strong>–</strong> ela soma<br />
mais de 6 milhões no Instagram e no<br />
TikTok <strong>–</strong> momentos do descanso em<br />
Angra dos Reis, no Rio, e na Europa,<br />
enquanto visitava cidades como Amsterdã<br />
e Madri. A atleta começa <strong>2024</strong><br />
concentrando esforços e intensificando<br />
treinos para os Jogos Olímpicos.<br />
“A futura campeã olímpica de Paris”,<br />
segundo um internauta. “Bom, espero<br />
que em <strong>2024</strong> eu esteja feliz e saudável<br />
para que possa fazer meu melhor<br />
nas Olimpíadas.” O Brasil estará com<br />
a respiração suspensa, torcendo pelos<br />
saltos perfeitos.<br />
Que conselho daria<br />
à jovem Rebeca?<br />
“Você sabe que é<br />
capaz, não desista<br />
dos seus sonhos. Vai<br />
firme, mantendo a sua<br />
fé e tendo sua família<br />
sempre por perto.<br />
Você consegue”<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 33<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 32
Nome: José Laurentino Gomes<br />
Idade: 67 anos<br />
Profissão: jornalista e escritor<br />
Cidade onde nasceu: Maringá/PR<br />
O contador<br />
da história<br />
Por Simone Costa<br />
Dono de oito Prêmios Jabuti, o jornalista e escritor<br />
Laurentino Gomes já vendeu mais de 3 milhões<br />
de livros narrando, de forma envolvente, eventos<br />
importantes em séculos de história do Brasil<br />
Foto: divulgação<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 35<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 34
“Receber o Jabuti<br />
é uma grande<br />
honra porque<br />
ele valida o<br />
escritor de várias<br />
maneiras. E a<br />
gente precisa ficar<br />
contente com o<br />
trabalho que fez”<br />
O<br />
agricultor João Ignácio era um leitor voraz. Era começo dos anos 1960, não<br />
havia nenhuma livraria ou biblioteca no pequeno distrito de Água Boa, no<br />
interior do Paraná, então ele pegava livros emprestados de um padre da região.<br />
Adorava ler sobre eventos importantes do passado, como a história da Igreja<br />
Católica ou do Império Romano. Passava o dia na roça, e, quando o filho aparecia<br />
com a marmita, contava ao menino as narrativas do livro da vez. “Essa é a memória<br />
mais antiga que eu tenho de livros e leitura. Eram coisas fascinantes, muito interessantes”,<br />
diz o jornalista e escritor Laurentino Gomes, o menino que ouvia atento as<br />
histórias que o pai narrava na plantação de café enquanto almoçava. “Isso despertou<br />
em mim esse fascínio pelo passado e me deixou a ideia de que a história vale a<br />
pena ser estudada e contada.”<br />
A sementinha plantada no filho por João Ignácio <strong>–</strong> e também por Maria Ascenção,<br />
mãe de Laurentino, que sempre o estimulou a ler e estudar <strong>–</strong> deu frutos. E prêmios.<br />
O escritor já ganhou oito vezes o Jabuti, premiação mais importante da literatura<br />
brasileira. Seu mais recente livro, o terceiro volume de Escravidão, figurou entre os<br />
finalistas na categoria Biografia e Reportagem em 2023, vencida por Fabio Victor<br />
com a obra Poder Camuflado: Os Militares e a Política, do Fim da Ditadura à Aliança com<br />
Bolsonaro. Do volume 1, que começa no primeiro leilão de africanos escravizados em<br />
Portugal, ao terceiro volume, que vai até a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a<br />
trilogia Escravidão cobre um período de 444 anos da história.<br />
Resultado de seis anos de pesquisas, que incluíram viagens por 12 países e três<br />
continentes, além da leitura de mais de 300 livros, a trilogia publicada pela Editora<br />
Globo já passou das 600 mil cópias vendidas e levou dois Jabutis, em 2020 e 2022.<br />
“Receber o Jabuti é uma grande honra porque ele valida o escritor de várias maneiras.<br />
E a gente precisa ficar contente com o trabalho que fez”, diz Laurentino em<br />
entrevista à <strong>Et</strong> <strong>cetera</strong>, de sua casa em Viana do Castelo, no norte de Portugal. Ele<br />
aproveita para fazer uma autocrítica: “Sempre penso que meus livros poderiam ter<br />
ficado um pouquinho melhor aqui e ali, mas gostei do resultado do que me propus<br />
a fazer. Tem ainda a reação do público e a acolhida da crítica, o que fecha o ciclo de<br />
uma premiação”.<br />
João Ignácio e Maria Ascenção, pais de Laurentino | foto: arquivo pessoal<br />
Laurentino (ao centro) com os irmãos Sérgio e Jaime<br />
foto: arquivo pessoal<br />
A vida na roça<br />
A família do escritor chegou ao Paraná<br />
numa época em que o estado era desbravado<br />
como fronteira agrícola. O pai<br />
era descendente de portugueses que<br />
haviam se estabelecido em Minas Gerais,<br />
mas rumaram para o sul em busca<br />
de terras mais baratas. Já Maria Ascenção<br />
era descendente de imigrantes italianos<br />
que vieram para o Brasil no fim<br />
do século XIX para substituir a mão de<br />
obra escravizada nas lavouras de café<br />
no interior de São Paulo. Também chegaram<br />
à região de Maringá em busca<br />
de terras que pudessem comprar.<br />
O sítio onde a família de Laurentino<br />
vivia parecia ter parado na era pré-industrial.<br />
Eles tinham que produzir tudo<br />
em casa. “Comprávamos tecido para<br />
fazer roupas e querosene para acender<br />
a lamparina à noite”, conta. A vida não<br />
era fácil, e os quatro filhos tinham que<br />
ajudar nas tarefas do dia a dia.<br />
Tanto João Ignácio quanto Maria Ascenção<br />
haviam abandonado a escola<br />
precocemente para trabalhar, mas o<br />
casal se empenhava para que todos os<br />
filhos estudassem porque acreditava<br />
que a educação era a única maneira<br />
de ascensão social naquela sociedade.<br />
“E eles conseguiram, com muita dificuldade,<br />
trabalhando na roça o tempo<br />
todo, que os quatro filhos concluíssem<br />
a faculdade”, conta Laurentino. Ele se<br />
formou em jornalismo, dois irmãos, em<br />
engenharia, e o outro, em direito.<br />
Um mau padre<br />
Uma tradição familiar, do lado paterno, quase mudou o rumo da vida de Laurentino:<br />
o primogênito tinha que se tornar padre. Com 11 anos, Laurentino fez as malas e<br />
partiu rumo ao seminário da Pia Sociedade de São Paulo, na divisa entre a capital<br />
paulista e Osasco. “Os paulinos são uma congregação voltada para a comunicação<br />
social. Lá, tive o primeiro contato com o mundo das comunicações. Trabalhei em<br />
uma gráfica, aprendi um pouco de latim, de francês e comecei a ler. Aí nasceu, realmente,<br />
um leitor. Quando voltei para casa, estava pronto para seguir a vida que tive<br />
depois”, afirma.<br />
Os pais ficaram surpresos quando, um dia de manhã, o jovem Laurentino, então<br />
com <strong>14</strong> anos, apareceu em casa de mala e cuia. “Saí do seminário porque lá, com as<br />
leituras, descobri um mundo fascinante que queria conhecer e o ambiente religioso,<br />
de certa forma, me restringia. E acho que eu teria sido um mau padre”, diverte-se.<br />
Aos 17 anos, o adolescente deixou novamente a casa dos pais para cursar jornalismo<br />
na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Um ano depois, já estava<br />
trabalhando no novo jornal da cidade, chamado Correio de Notícias. Mas o emprego<br />
não durou muito. O “foca”, jargão do jornalismo para se referir aos iniciantes<br />
na profissão, escreveu uma matéria em que criticava a nomeação do governador<br />
pelo governo militar. No dia seguinte, ao abrir o jornal, deparou-se com um texto<br />
totalmente diferente, sem as críticas e com elogios. O dono do jornal, que era da<br />
Arena <strong>–</strong> partido de sustentação da ditadura militar <strong>–</strong>, não gostou da reportagem e<br />
a reescreveu inteira. “Fiz um manifesto contra o dono do jornal, colei no mural da<br />
redação e fui embora. Foi demissão por justa causa e achei que minha carreira tinha<br />
acabado ali”, lembra.<br />
“Trabalhei em<br />
uma gráfica,<br />
aprendi um<br />
pouco de latim, de<br />
francês e comecei<br />
a ler. Aí nasceu,<br />
realmente, um<br />
leitor”<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 37<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 36
Baile de Carnaval de 1983, entrevistando o então prefeito de Curitiba, Jaime Lerner | foto: arquivo pessoal<br />
Da gaveta para<br />
as livrarias<br />
A paixão pelo estudo da história do<br />
Brasil, que brotou lá na roça de café da<br />
família, foi ganhando força enquanto<br />
Laurentino trabalhava como jornalista.<br />
Em 1997 <strong>–</strong> uma década antes de publicar<br />
seu primeiro livro <strong>–</strong>, o jornalista<br />
ficou bastante empolgado com a ideia<br />
de produzir edições especiais sobre<br />
acontecimentos históricos do país, que<br />
seriam enviadas aos novos assinantes<br />
da revista Veja como brinde. Era uma<br />
estratégia de marketing para enfrentar<br />
o lançamento da revista Época, outra<br />
publicação semanal, mas o plano não<br />
foi adiante.<br />
Quando a direção da editora mudou de<br />
estratégia e cancelou o projeto, Laurentino,<br />
encarregado de coordenar a equipe<br />
que produziria o material, já havia<br />
sido fisgado pelo tema. “Eu me senti<br />
frustrado com o cancelamento porque<br />
estava absolutamente fascinado com o<br />
que tinha lido sobre dom João VI no Rio<br />
de Janeiro. Um dos exemplares da série<br />
de especiais seria sobre a vinda da corte<br />
para o Brasil. Decidi continuar a pesquisar<br />
o tema, mas sem plano algum de<br />
transformar em um livro”, garante.<br />
A queda na receita de publicidade e<br />
de assinaturas, além da diminuição da<br />
venda em banca, afetou o jornalismo<br />
impresso em meados dos anos 2000, e<br />
na Editora Abril não foi diferente. Ocupando<br />
um cargo executivo, Laurentino<br />
se viu no papel de anunciar a demissão<br />
a diversos profissionais. “Tive que demitir<br />
dezenas de colegas. Creio que foi a<br />
passagem mais dolorosa da minha vida.<br />
A situação fez crescer em mim a ideia<br />
de procurar uma alternativa”, diz. E foi<br />
assim que a extensa pesquisa sobre a<br />
fuga da corte de dom João VI de Portugal<br />
para o Brasil, para a qual o jornalista<br />
havia se dedicado naqueles anos, saiu<br />
da gaveta e se transformou em livro.<br />
A trama da “rainha louca, do príncipe<br />
medroso e da corte corrupta que enganou<br />
Napoleão e mudou a história de<br />
Portugal e do Brasil” não era nenhum<br />
enredo inédito, mas Laurentino aplicou<br />
técnicas jornalísticas para construir<br />
os capítulos, tratar os personagens<br />
e elaborar as legendas <strong>–</strong> ele até<br />
insistiu com a editora para que a fonte<br />
fosse grande <strong>–</strong>, tudo para tornar a leitura<br />
mais agradável.<br />
Outro fator que impulsionou o sucesso<br />
de 1808 e dos demais títulos lançados<br />
pelo autor foi o interesse crescente dos<br />
brasileiros pela história do país depois<br />
da redemocratização, em 1985. “Percebo<br />
que os leitores reagem ao meu trabalho<br />
como se tivessem sido vítimas de<br />
um processo de sonegação da história<br />
durante muito tempo. Eles querem entender<br />
o Brasil”, diz.<br />
Depois de 1808, os leitores estavam<br />
ávidos para ler a continuação, que<br />
culmina com a independência do país,<br />
e pediam ao autor para escrever um<br />
novo volume. “Confesso que isso me<br />
assustou um pouco porque a independência<br />
é um assunto muito sério, e eu<br />
não me sentia tão à altura para tratar<br />
dele. Mas, como eu já estava na chuva<br />
[risos], pedi demissão oito meses depois<br />
de publicar o primeiro livro e fiz 1822”,<br />
conta. Em 2013, completou a trilogia o<br />
livro 1889, ano em que o Brasil se tornou<br />
uma república. E, com esses dois<br />
títulos, vieram mais quatro Jabutis, de<br />
melhor livro-reportagem e de melhor<br />
livro de não ficção do ano.<br />
Autor de best-seller<br />
A carreira não só seguiu como prosperou.<br />
Laurentino trabalhou como correspondente<br />
de publicações paulistas<br />
no Paraná, foi chefe de sucursais em<br />
diferentes cidades e chegou a editor da<br />
Veja, então a revista mais vendida do<br />
país. Em 2007, aos 51 anos, Laurentino<br />
tocava uma bem-sucedida carreira<br />
como jornalista e ocupava um cargo<br />
executivo na área de negócios da prestigiada<br />
Editora Abril quando publicou<br />
seu primeiro livro, sem a pretensão de<br />
se tornar escritor.<br />
O autor estreante teve a dimensão do<br />
sucesso de 1808, que narra a vinda da<br />
família real portuguesa para o Brasil,<br />
quando chegou à Bienal do Livro<br />
do Rio de Janeiro. “Meu editor Pascoal<br />
Soto [da editora Planeta, que lançou o livro,<br />
relançado pela Globo mais tarde] me<br />
chamou para ver o estande da maior<br />
livraria daquela época. Ele mostrou as<br />
pilhas com 1808, a fila de pessoas pegando<br />
um exemplar e comentou: ‘Você<br />
acaba de se tornar um best-seller’”,<br />
recorda Laurentino.<br />
Em 2008, o livro recebeu três prêmios:<br />
o de melhor ensaio da Academia Brasileira<br />
de Letras (ABL) e dois Jabutis, o<br />
de melhor livro-reportagem e o de livro<br />
de não ficção do ano. “O primeiro Jabuti<br />
foi realmente uma grande emoção.<br />
Quando fui indicado como finalista, fiz<br />
uma pesquisa na internet para ver os<br />
nomes que já tinham sido premiados.<br />
Entre eles estavam Jorge Amado e Carlos<br />
Drummond de Andrade. Aquilo me<br />
deu um frio na barriga! Eu não sabia se<br />
estava à altura daquela turma.”<br />
Com quase 2 milhões de cópias vendidas,<br />
1808 é realmente um best-seller. E<br />
o fenômeno inesperado acabou levando<br />
o escritor para o divã. “Fiz terapia<br />
durante muitos anos para aprender a<br />
conviver com a minha nova persona.<br />
Criou-se muita expectativa por parte<br />
dos leitores, editores, críticos literários,<br />
historiadores. Isso virou um peso num<br />
primeiro momento, tive que me libertar<br />
como escritor”, revela.<br />
Em sessão de autógrafo de lançamento do livro 1889 | foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 39<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 38
Lugar de fala<br />
A escravidão foi um tema recorrente<br />
durante a produção da trilogia 1808,<br />
1822 e 1889. No entanto, a decisão de<br />
transformar o tema em nova trilogia<br />
trazia um receio. “Eu sabia que era algo<br />
complexo e, principalmente, delicado,<br />
inclusive do ponto de vista acadêmico.<br />
Esse é o assunto mais estudado hoje<br />
não só no Brasil como também em países<br />
como Estados Unidos e França. Eu<br />
não podia errar, nem podia fazer uma<br />
coisa banal”, conta Laurentino.<br />
Antes de mergulhar no projeto, o autor<br />
chegou a se perguntar se tinha a prerrogativa<br />
de falar sobre a escravidão à<br />
qual os africanos foram submetidos,<br />
em especial no Brasil <strong>–</strong> 5 milhões dos<br />
12,5 milhões de pessoas trazidas à força<br />
da África para a América Latina ao<br />
longo de três séculos e meio vieram<br />
para o Brasil, que foi o último país a<br />
abolir a escravidão. “Sou um homem<br />
branco, descendente de colonizadores<br />
europeus. Foi um grande desafio vencer<br />
o medo de como seria a reação das<br />
diversas partes interessadas se eu tocasse<br />
nesse assunto.”<br />
Pesquisas aprofundadas, muita leitura<br />
e uma série de viagens, entre<br />
elas a oito países africanos, deram<br />
segurança ao autor. Na costa atlântica<br />
da África, por exemplo, ele visitou<br />
porões de castelos onde as<br />
pessoas ficavam aprisionadas, acorrentadas<br />
durante semanas ou meses,<br />
à espera da chegada dos navios<br />
que as levariam como mercadorias.<br />
“Num deles, muito úmido e escuro,<br />
ficavam mulheres. Quando elas estavam<br />
grávidas, tinham seus filhos<br />
ali mesmo, e muitas dessas crianças<br />
morriam antes da chegada dos navios.<br />
Isso foi bastante chocante para<br />
mim”, emociona-se.<br />
Laurentino deparou-se ainda com<br />
questões semânticas relacionadas<br />
ao tema, como a preferência de representantes<br />
do movimento negro<br />
pela expressão “pessoa escravizada”<br />
no lugar da palavra “escravo”, que<br />
denotaria algo intrínseco aos africanos.<br />
“Não consegui resolver esses<br />
dilemas que a sociedade enfrenta<br />
hoje na questão semântica, mas fui<br />
transparente e coloquei nos livros<br />
que ela existia.” A acolhida da trilogia<br />
por pessoas negras deu ao escritor<br />
a tranquilidade de saber que seu<br />
cuidado foi percebido pelos leitores.<br />
“No começo, creio que as pessoas ficaram<br />
atentas, pensando ‘O que esse<br />
homem branco tem a dizer sobre escravidão?’”<br />
Depois, segundo ele, o ceticismo<br />
deu lugar a reações emotivas.<br />
“Houve leitores que vieram me dizer<br />
que eu os havia ajudado a entender<br />
suas origens”, relata.<br />
Ao longo dos seis anos em que se dedicou<br />
a estudar o período da escravidão,<br />
Laurentino deixou para trás a<br />
ideia que carregava do Brasil como<br />
uma democracia racial e passou a<br />
aceitar, cada vez mais, a existência<br />
de um genocídio negro no país.<br />
“Existem agravos profundos, históricos,<br />
seculares e mal resolvidos que só<br />
conseguimos compreender se prestarmos<br />
atenção ao que a população<br />
negra está dizendo e entendermos<br />
por que está dizendo”, afirma.<br />
Com o poeta Ferreira Gullar na entrega do 53° Prêmio Jabuti, que ganhou pelo livro 1822 | foto: arquivo pessoal<br />
No lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão | foto: arquivo pessoal<br />
Aval acadêmico<br />
Enquanto ajudam professores de história<br />
a estimular o interesse dos alunos<br />
pelo passado do país, as obras de<br />
Laurentino não são unanimidade no<br />
meio acadêmico. Quando o escritor se<br />
preparava para lançar uma versão em<br />
inglês, em volume único, de Escravidão<br />
nos Estados Unidos, sentiu o tamanho<br />
do problema. O autor já tinha editora,<br />
contrato assinado e o material traduzido,<br />
mas precisava que um historiador<br />
acadêmico, brasileiro ou americano,<br />
desse uma espécie de aval ao livro.<br />
Laurentino não conseguiu o parecer,<br />
e o contrato foi cancelado. “Meu livro<br />
foi boicotado, censurado por um grupo<br />
de historiadores que não topou se<br />
associar ao meu trabalho. Só precisava<br />
que alguém dissesse que o livro<br />
fez sucesso no Brasil ao popularizar a<br />
história do país a partir de uma visão<br />
jornalística. Não consegui”, lamenta. E<br />
desabafa: “É a defesa de território por<br />
eu ser jornalista, e não historiador.<br />
Não importam os prêmios, o tamanho<br />
da pesquisa. Se eu tivesse feito um<br />
curso de graduação em história, em<br />
qualquer faculdade sem relevância,<br />
pronto, eu estaria credenciado”.<br />
Com ou sem aval, Laurentino tem dedicado<br />
seu tempo de leitura à relação<br />
da Igreja Católica com a escravização<br />
de africanos. “A Igreja foi proprietária<br />
de grande número de pessoas escravizadas,<br />
mas há uma contradição<br />
insolúvel, que é com o evangelho da<br />
misericórdia, do perdão, do acolhimento,<br />
do amor”, conta. O interesse<br />
do escritor reside em personagens<br />
jesuítas que criaram certa ideologia<br />
da escravidão durante o período colonial.<br />
“Essa ideologia defendia o direito<br />
de Portugal de escravizar as pessoas,<br />
mas também pregava pelos direitos<br />
de quem era escravizado. Estou lendo<br />
muito sobre isso, mas confesso que<br />
não sei se vai dar livro.” Será que padre<br />
Laurentino aprovaria essa ideia?<br />
Que conselho<br />
daria ao jovem<br />
Laurentino?<br />
“‘Persista na carreira<br />
de leitor’. Ninguém<br />
me falou isso lá atrás,<br />
mas acho que o<br />
Laurentino de 11 anos<br />
seguiu esse caminho”<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 41<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 40
Nome: Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu<br />
Idade: 62 anos<br />
Profissão: cantora e compositora<br />
Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />
Suingue<br />
sangue<br />
bom<br />
Por Daniela Macedo<br />
Ela conquistou o Brasil com o rock da Blitz,<br />
inovou a dance music brasileira e apresentou<br />
o funk carioca ao resto do país. Aos 62<br />
anos, Fernanda Abreu amadurece a ideia de<br />
lançar um disco de samba<br />
Foto: Foto: Murilo Murilo Alvesso Alvesso<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 43<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 42
A dois passos do paraíso<br />
“Eu produzia<br />
minhas fitas<br />
cassete de disco<br />
music e levava<br />
para as festas. Ia<br />
sozinha pra pista<br />
de dança e, como<br />
dançava bem,<br />
virei a atração das<br />
festas”<br />
A<br />
Em ensaio com grupo de dança, em 1980 | foto: reprodução Facebook<br />
adolescência de Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu começou como muitas<br />
outras: magrinha e sem os contornos femininos já evidentes no corpo das<br />
amigas, sentia-se o patinho feio da turma. Apesar de ter a mesma idade, parecia<br />
uma criança entre as meninas de <strong>14</strong> anos, embora pudesse contar com o talento<br />
da mãe para se vestir com estilo <strong>–</strong> apaixonada por moda, a biblioteconomista Vera<br />
Abreu desenhava as roupas que via nas vitrines das lojas descoladas do Rio e encomendava<br />
os modelos a uma costureira. Nas festinhas, ninguém tirava Fernanda<br />
para dançar, mas foi naqueles eventos juvenis dos anos 1970 que ela começou a se<br />
destacar. “Eu produzia minhas fitas cassete de disco music e levava para as festas. Ia<br />
sozinha pra pista de dança e, como dançava bem, virei a atração das festas”, conta.<br />
Não era à toa que Fernanda chamava a atenção nas pistas de dança. Aos 9 anos, por<br />
sugestão de um ortopedista para corrigir um problema nos joelhos, começou a frequentar<br />
aulas de balé. A professora era a bailarina francesa de origem russa Tatiana<br />
Leskova, que ajudou a escrever a história da dança clássica no Brasil. Fora da escola<br />
de balé, Fernanda suingava em frente ao espelho ouvindo black music. No aniversário<br />
de 10 anos, vestindo um macacão de veludo molhado verde que dona Vera mandou<br />
fazer, impressionou os convidados com passos de James Brown e Michael Jackson,<br />
caçula do Jackson 5 à época. “A black music foi importante na minha formação<br />
como pessoa, como mulher. Mesmo que eu seja branca e não tenha o lugar de fala<br />
do negro, essas músicas foram como uma terapia pra mim, me fizeram desabrochar<br />
pro resto do mundo. Elas me ajudaram muito a me incluir na sociedade”, diz.<br />
O desabrochar de Fernanda Abreu, que começou entre amigos e parentes, culminou<br />
em uma carreira musical que já soma quatro décadas e inclui o sucesso com a<br />
bem-humorada Blitz, a alcunha de “Mãe do Pop Brasileiro” e o pioneirismo de levar<br />
o funk do morro para as rádios do país inteiro. Fernanda é a garota carioca sangue<br />
bom que apelidou o Rio de purgatório da beleza e do caos.<br />
Ela estava a um plié de se tornar bailarina<br />
profissional quando a década de<br />
1980 deu as caras. O balé disputava<br />
espaço em sua rotina com a faculdade<br />
de sociologia, dois grupos de dança<br />
contemporânea, um grupo de coral e os<br />
encontros com os amigos que sonhavam<br />
enveredar pela carreira musical.<br />
Fernanda começou a sua ao lado de<br />
Leo Jaime na banda Nota Vermelha,<br />
com a qual se apresentou algumas vezes<br />
em um bar de Botafogo chamado<br />
Emoções Baratas <strong>–</strong> que, ironicamente,<br />
parece nome de álbum da Blitz.<br />
Certa noite, a vizinha e amiga Márcia<br />
Bulcão levou dois integrantes da banda<br />
em que atuava como backing vocal ao<br />
Emoções Baratas. Eles estavam procurando<br />
uma segunda cantora para a<br />
tal banda e convidaram Fernanda para<br />
participar de um ensaio. “Foi amor à<br />
primeira vista. No primeiro ensaio, eu<br />
já senti uma identificação grande com<br />
ela. E, por ela ser bailarina e ter uma<br />
disponibilidade corporal maravilhosa,<br />
eu sabia que embarcaria nas propostas<br />
teatrais que eu propunha”, diz o cantor,<br />
compositor e ator Evandro Mesquita.<br />
E deu match. “Eu adorei as músicas!<br />
Achei tudo incrível!”, diz ela. A Blitz<br />
ganhou uma segunda backing vocal e<br />
Fernanda, uma nova banda para chamar<br />
de sua.<br />
A Blitz seguia uma carreira discreta,<br />
até que um show no Circo Voador, em<br />
Banda Blitz | foto: divulgação<br />
fevereiro de 1982, mudou tudo. Evandro<br />
Mesquita decidiu que, depois de<br />
um ano de anonimato, a banda faria<br />
um último show. Levou ao Circo Voador<br />
um representante de uma gravadora<br />
e da então nova Rádio Cidade,<br />
e, se não desse em nada, cada um seguiria<br />
seu caminho. “Foi um estouro”,<br />
lembra a cantora. A Blitz gravou Você<br />
Não Soube Me Amar em estúdio e, assim<br />
como Fernanda em seu primeiro ensaio,<br />
o Brasil também adorou. O compacto<br />
vendeu mais de 1 milhão de cópias.<br />
“Ninguém esperava; nem a gente,<br />
nem o cara da gravadora, nem o cara<br />
da rádio. Foi uma loucura. A gente tocava<br />
praticamente pros amigos, e, de<br />
repente, a música começou a tocar em<br />
todos os cantos do país e todo mundo<br />
sabia quem a gente era”, diz Fernanda.<br />
Virar uma celebridade da noite para o<br />
dia pode mexer com a cabeça de uma<br />
jovem de 21 anos, mas Fernanda acredita<br />
que manteve os pés no chão graças<br />
à rigidez e à disciplina do balé clássico,<br />
em que “o movimento nunca está<br />
perfeito, pode sempre melhorar”, diz.<br />
“Desde o primeiro dia, eu tinha consciência<br />
de que estava ali para aprender.<br />
Eu sabia que o Evandro era muito mais<br />
experiente que eu, tinha passado pelo<br />
Asdrúbal [Trouxe o Trombone, grupo teatral<br />
dos anos 1970], que foi impressionante,<br />
um marco do teatro do Rio. Então eu<br />
entrei pensando ‘Mesmo que não dê<br />
em nada, vou aprender muito aqui’. E<br />
aproveitei ao máximo, aprendi muito.”<br />
O furacão Blitz interrompeu a faculdade<br />
de sociologia e colocou um ponto-final<br />
na carreira como bailarina profissional,<br />
mas rendeu um casamento<br />
de quase três décadas com o designer<br />
Luiz Stein, que cuidava da parte visual<br />
da banda <strong>–</strong> eles se casaram em 1983 e<br />
tiveram duas filhas, Sofia, neurologista,<br />
e Alice, estilista <strong>–</strong>, e uma amizade<br />
duradoura com Evandro Mesquita.<br />
“Volta e meia a gente se encontra. Ele<br />
é um dos caras mais criativos que conheço,<br />
muito inteligente, sagaz, bem-<br />
-humorado, com enorme repertório.”<br />
O amigo devolve os elogios: “Ela tem<br />
um olhar feminino, doce e forte pra<br />
encarar as roubadas. Seu sorriso, seu<br />
humor e seu profissionalismo me inspiraram<br />
e me fortaleciam nos momentos<br />
bons e ruins daquele casamento a<br />
sete”, diz Mesquita.<br />
A primeira fase da Blitz, com a voz de<br />
Fernanda Abreu em hits como Você<br />
Não Soube Me Amar, A Dois Passos do<br />
Paraíso, Betty Frígida e Mais uma de<br />
Amor (Geme-Geme), acabou em 1986.<br />
A banda se separou quando Evandro<br />
Mesquita foi convidado para participar<br />
de um comercial com a cantora<br />
Tina Turner nos Estados Unidos. O<br />
convite deixou alguns integrantes enciumados,<br />
e o grupo decidiu se separar<br />
no auge do sucesso.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 45<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 44
Paixão pela música<br />
Fernanda não é filha de músicos profissionais, mas cresceu em um ambiente musical.<br />
Armando Abreu, arquiteto português, e a esposa, Vera, se reuniam todos os<br />
fins de semana na casa de um casal amigo da família em Teresópolis para tocar<br />
samba. O grupo amador se autointitulava A Patota <strong>–</strong> Armando tocava cuíca e Vera<br />
cantava e tocava ganzá, um instrumento de percussão do samba. Mas os Abreu<br />
não eram só sambistas. Na casa da família, no Jardim Botânico, zona sul do Rio, havia<br />
sempre um disco na vitrola alternando estilos musicais. “Meus pais compravam<br />
todos os LPs que eram lançados. Saía LP de Elis e Tom, eles compravam. Saía o<br />
primeiro disco da Simone, eles compravam. Disco do Clube da Esquina, Tropicália,<br />
Chico, Gil, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Fagner,<br />
Secos & Molhados. Compravam assim que saía.” Os acordes vinham também<br />
da TV da sala. Quando era pequena, Fernanda acompanhava atenta os festivais de<br />
música organizados pela TV Record. “Tive a sorte de ser criada numa casa com<br />
uma variedade incrível de repertório. Isso é raro fora do meio musical.” A paixão<br />
do arquiteto e da biblioteconomista pela música teve forte influência na carreira<br />
dos filhos <strong>–</strong> Felipe, único irmão da cantora e compositora, é professor de canto e<br />
preparador vocal.<br />
Esse histórico de repertório tão vasto ajuda a explicar o hiato de quatro anos entre<br />
o fim da Blitz e o lançamento do primeiro disco na carreira solo, SLA Radical Dance<br />
Disco Club. Assim que o septeto se separou, começaram a chover convites das gravadoras<br />
para lançar Fernanda como uma cantora de pop-rock. Parecia o caminho<br />
natural, afinal o Brasil inteiro já sabia quem era Fernanda Abreu e gostava do estilo<br />
musical do grupo. “O Evandro era muito generoso. Colocou a gente [as backing<br />
vocals] com bastante destaque na banda. Eu só fazia ‘uuuu aaaa’, gente!”, brinca.<br />
Disposta a descobrir seu próprio caminho, Fernanda recusou todos os convites e<br />
foi estudar. “Esperar tanto tempo seria como começar tudo de novo, mas eu queria<br />
descolar minha imagem da Blitz. Foi uma decisão difícil na época, e depois vi que<br />
foi a escolha certa.”<br />
Nesse período, ela estudou guitarra e canto e voltou para a dança contemporânea.<br />
“Tudo isso para me preparar para fazer as perguntas que precisavam ser feitas:<br />
Quem sou eu? Do que eu gosto? O que eu quero?” Encontrou a resposta nas memórias,<br />
na Fernanda que desabrochou nas pistas de dança. “Participei da Blitz,<br />
que era uma banda de rock, mas eu não ouvia rock quando era adolescente. Ouvia<br />
black music, soul, dance. Aí falei: ‘É dessa água que vou beber’.”<br />
“Esperar tanto<br />
tempo seria como<br />
começar tudo<br />
de novo, mas eu<br />
queria descolar<br />
minha imagem<br />
da Blitz. Foi uma<br />
decisão difícil na<br />
época, e depois vi<br />
que foi a escolha<br />
certa”<br />
Anos 80 com Márcia Bulcão e Leo Jaime | foto: arquivo pessoal<br />
Com os pais e o irmão | foto: reprodução Facebook<br />
Sampleando tudo<br />
O retorno aos palcos depois do fatídico<br />
comercial americano veio de um convite<br />
para participar de uma jam session<br />
no AeroAnta, antiga casa noturna de<br />
São Paulo. Inspirada pelos cassetes<br />
que levava para as festas na adolescência,<br />
montou um show com covers de<br />
disco music. “Fez um sucesso enorme.<br />
Fui chamada para fazer outros shows<br />
em São Paulo e no Rio e, quando vi<br />
que o negócio estava indo muito longe,<br />
parei. Não queria virar uma cantora de<br />
covers”, explica.<br />
O amigo e cantor Herbert Vianna ajudou<br />
a produzir uma fita demo com<br />
quatro canções autorais, entre elas<br />
Kamikazes do Amor, a primeira composição<br />
de Fernanda Abreu. Em 1990, ela<br />
bateu na porta da EMI, gravadora da<br />
Blitz, e deixou o material inédito. Uma<br />
semana depois, foi chamada para uma<br />
conversa. A novidade, que em nada se<br />
assemelhava aos hits do septeto, pegou<br />
a gravadora de surpresa: “Fernanda, eu<br />
não sei que som é esse, não temos esse<br />
mercado”, disseram. Ela pediu um estúdio<br />
para gravar um disco, nada mais.<br />
Nos dois meses seguintes, sem que<br />
um único representante da EMI<br />
aparecesse para palpitar ou vetar,<br />
foi produzido SLA Radical Dance Disco<br />
Club. Quando o álbum de estreia<br />
estava praticamente pronto, o produtor<br />
musical Liminha chegou com um<br />
sampler. O equipamento eletrônico<br />
começava a ser usado por artistas no<br />
exterior para inserir trechos de outras<br />
canções e vozes de outros artistas em<br />
suas músicas. “A gente sampleou tudo!<br />
Voz da Madonna, do Prince, Caetano,<br />
Gil, Novos Baianos, tudo, e botamos no<br />
disco. Fiquei superfeliz com o resultado<br />
porque tinha as minhas referências ali.”<br />
O trabalho quase foi em vão, porque o<br />
departamento jurídico da gravadora<br />
quis barrar o projeto. Não havia ainda<br />
nenhuma legislação sobre direitos<br />
autorais e samples, mas o advogado da<br />
gravadora era cauteloso. Por sorte, ele<br />
era também vascaíno, como Fernanda.<br />
O carisma da garota sangue bom e a<br />
cumplicidade cruz-maltina falaram<br />
mais alto. “O SLA Radical Dance Disco<br />
Club é uma colcha de retalhos com<br />
tudo de dance music que eu gostava. A<br />
gravadora achou o disco uma loucura,<br />
não sabia nem o que fazer com ele.”<br />
O público soube: a faixa Você pra Mim<br />
invadiu as rádios, enquanto A Noite<br />
botava todo mundo para dançar nas<br />
pistas do país.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 47<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 46
Samba-funk da lata<br />
No final dos anos 1980, o antropólogo<br />
Hermano Vianna estudava um movimento<br />
que surgia nos morros cariocas<br />
e levou a amiga Fernanda Abreu para<br />
conhecer um ícone dessa nova manifestação<br />
cultural: o baile funk. “Eu<br />
fiquei doida, nunca tinha visto nada<br />
parecido. Um equipamento de som gigantesco,<br />
3 mil pessoas dançando ao<br />
som do DJ Marlboro. O Afrika Bambaataa<br />
[conhecido como o pai do eletrofunk]<br />
tinha lançado um disco e uma das músicas,<br />
Planet Rock, tocava sem parar,<br />
mas com batidas diferentes”, lembra a<br />
cantora. Foi o começo de uma bem-sucedida<br />
história de amor entre Fernanda<br />
Abreu e o funk carioca.<br />
O samba-funk ganhou mais destaque<br />
no segundo álbum, SLA 2 Be Sample,<br />
lançado em 1992. O hit Rio 40 Graus<br />
levou o ritmo do morro para as rádios<br />
brasileiras, não sem antes enfrentar<br />
novamente a resistência da gravadora.<br />
“Eles reclamaram que a música tinha<br />
cinco minutos, que era ‘um blá-blá-blá<br />
insuportável’, que nenhuma rádio ia<br />
tocar”, diz. “Eles querem seguir um padrão<br />
que funciona, até alguém aparecer<br />
com algo novo e chacoalhar tudo.”<br />
Três anos depois, Da Lata consolidou o<br />
samba-funk como sua assinatura. Com<br />
a foto de Fernanda nua na contracapa,<br />
o terceiro dos dez discos da carreira<br />
solo <strong>–</strong> entre produções inéditas e coletâneas<br />
<strong>–</strong> foi escolhido o melhor álbum<br />
latino daquele ano pela revista americana<br />
Billboard. Na década de 1990, o<br />
gênero que ela trazia do morro ainda<br />
não era alvo de discriminação por se<br />
tratar de uma grande novidade. De lá<br />
para cá, o ritmo sofre um processo de<br />
estigmatização e criminalização. “O<br />
preconceito contra o funk vem do fato<br />
de ele ser uma música de preto, pobre e<br />
favelado, e o racismo estrutural é muito<br />
forte no Brasil”, diz Fernanda. Ela é<br />
uma das convidadas do documentário<br />
Do Samba ao Funk em 100 Anos, recente<br />
produção da Bossa.etc sobre a voz do<br />
morro, em que fala abertamente sobre<br />
o assunto.<br />
“Eles reclamaram<br />
que a música tinha<br />
cinco minutos, que<br />
era ‘um blá-blá-blá<br />
insuportável’, que<br />
nenhuma rádio ia<br />
tocar”<br />
Foto: Murilo Alvesso<br />
Com as filhas, de férias em Portugal | foto: reprodução Instagram<br />
A Patota<br />
A cantora está casada há 12 anos com<br />
o baterista paulista Tuto Ferraz. Ele<br />
vive em São Paulo; Fernanda, no Rio.<br />
Ele adora praia, é surfista e participa<br />
de quatro grupos de frescobol no<br />
WhatsApp; a garota carioca, que nem<br />
sabe andar de bicicleta, pratica exercícios<br />
indoor (balé, pilates e método<br />
gyrotonic). “A gente adora ter uma<br />
base lá e uma base aqui”, afirma. A<br />
maturidade, que ela encara sem neuras,<br />
ajuda a manter o relacionamento<br />
a distância. “Não tenho o menor problema<br />
com idade. Pra mim é muito claro<br />
que vou envelhecer e vou ficando<br />
mais flácida e com mais rugas no processo.”<br />
Os exercícios físicos ajudam<br />
a prevenir problemas de articulação,<br />
principalmente depois que a chikungunya<br />
(“A doença mais medonha que<br />
já tive em 62 anos de vida”) a deixou<br />
uma semana hospitalizada, em março<br />
de 2019, e com dores nas articulações<br />
até hoje. “Meu maior medo é depender<br />
de alguém. Não quero dar trabalho pra<br />
ninguém quando ficar velhinha. Quero<br />
ter minha independência”, diz.<br />
Independente, talentosa, carismática,<br />
exigente <strong>–</strong> ela sabe tocar violão, guitarra<br />
e bateria, “mas jamais iria para<br />
o palco tocar esses instrumentos” por<br />
não ter se aprofundado nos estudos <strong>–</strong>,<br />
focada e organizada, Fernanda planeja<br />
os próximos passos na carreira. Estuda<br />
a possibilidade de produzir um<br />
disco com músicas inéditas de sua<br />
autoria. Também quer gravar um álbum<br />
com músicas inéditas de outros<br />
compositores. Mas tem ainda um terceiro<br />
projeto em mente, algo bastante<br />
pessoal e afetivo. “Tenho vontade<br />
de fazer um disco de samba, que vai<br />
se chamar A Patota, o nome do grupo<br />
dos meus pais. Quero sentar com meu<br />
irmão, que viveu aquela história comigo,<br />
e escolher as músicas do repertório<br />
daquela época linda”, diz. Enquanto<br />
decide o que vem por aí, planeja um<br />
novo show. “Não consigo ficar muito<br />
tempo longe dos palcos”, diz a eterna<br />
aniversariante de macacão de veludo<br />
verde, que sabe como ninguém animar<br />
uma festa.<br />
Que conselho daria<br />
à jovem Fernanda?<br />
“Aprenda a tocar<br />
muito bem um<br />
instrumento musical.<br />
Mete a cara, vai ser<br />
musicista, além de<br />
cantora, compositora e<br />
bailarina”<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 49<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 48
Nome: Thiago Soares Pinto<br />
Idade: 42 anos<br />
Profissão: bailarino, coreógrafo e produtor cultural<br />
Cidade onde nasceu: São Gonçalo/RJ<br />
Disciplina<br />
e rigor<br />
Por Mariane Morisawa<br />
A origem humilde no subúrbio do Rio de Janeiro e<br />
o ingresso tardio no balé clássico não impediram<br />
Thiago Soares de se tornar a estrela do Royal Ballet<br />
de Londres. Aos 42 anos, um dos maiores bailarinos<br />
do mundo se prepara para seu segundo ato<br />
No teatro | foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 51<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 50
N<br />
o espetáculo Último Ato, que estreou em Lisboa em abril<br />
de 2023, Thiago Soares não esconde os cabelos brancos<br />
nem a respiração ofegante, abafada pelo som dos aplausos<br />
ao fim de cada número de dança. Aos 42 anos, o artista<br />
fluminense reconhece que o físico já não é o mesmo do auge<br />
como primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Mas, ao<br />
contrário do que faz supor o título do espetáculo, ele está longe<br />
de se afastar da dança. “Quis concluir esse capítulo de uma<br />
forma linda para poder recomeçar com força também”, diz.<br />
Último Ato é a despedida de Thiago como protagonista em<br />
turnês internacionais, que fizeram parte de sua vida durante<br />
mais de duas décadas. Segundo ele, o espetáculo levanta uma<br />
pergunta: quando uma luz se apaga, será que outra se acende?<br />
O artista brasileiro sobe ao palco em busca do futuro, de<br />
uma nova identidade <strong>–</strong> afinal, quando o primeiro bailarino do<br />
Royal Ballet sai de cena, quem é Thiago Soares?<br />
Durante muitos anos, ele foi uma espécie de príncipe do balé<br />
real. “Passei minha carreira inteira interpretando papéis de<br />
indivíduos intocáveis, daquele mundo mágico e de perfeição<br />
do balé clássico”, diz o bailarino. “Mas eu queria fazer algo<br />
em que pudesse ter mais intimidade com o público.” Ao longo<br />
do show, que já passou por Rio e São Paulo, Thiago conversa<br />
com a plateia, atua, canta, toca violão e, claro, dança, impecavelmente,<br />
do balé clássico ao hip hop e o samba. “Hoje as<br />
pessoas podem até se encantar pela perfeição, mas também<br />
estão interessadas em como alguém chegou lá, quais foram<br />
as quedas que o fizeram ficar em pé.”<br />
“Passei minha carreira<br />
inteira interpretando papéis<br />
de indivíduos intocáveis,<br />
daquele mundo mágico e de<br />
perfeição do balé clássico”<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
“Muito chão”<br />
O percurso entre os primeiros passos<br />
de dança até o palco do Royal Ballet não<br />
foi fácil. Em primeiro lugar, é preciso<br />
reconhecer que o balé clássico não é<br />
uma arte acessível à maior parte dos<br />
brasileiros. Se ser bailarina é um sonho<br />
de criança que raramente se concretiza,<br />
para os meninos seria como<br />
ganhar seguidas vezes na loteria. Ainda<br />
mais para meninos como Thiago,<br />
nascido em uma família com poucos<br />
recursos financeiros em São Gonçalo,<br />
região metropolitana do Rio de Janeiro,<br />
e criado em Vila Isabel. “Quando analiso<br />
minha história, percebo que vivi<br />
algo único. Agradeço muito. Óbvio que<br />
teve muito suor, muita dedicação, mas<br />
é surreal sair de um viaduto em Madureira<br />
para o Teatro alla Scala de Milão.<br />
É muito chão.”<br />
Ele era ainda criança quando viu um<br />
grupo de street dance chamado Jazz<br />
de Rua se apresentar em uma festa<br />
de bairro na zona norte do Rio de<br />
Janeiro. Ficou fascinado com a atenção<br />
que eles recebiam das pessoas, e logo<br />
passou a dançar com o grupo. Seu<br />
início, portanto, foi na dança de rua, no<br />
hip hop. Pouco depois, recomendado<br />
pelo coreógrafo do Jazz de Rua para<br />
aperfeiçoar sua performance na street<br />
dance, Thiago ganhou uma bolsa de<br />
estudo do Centro de Dança Rio, no<br />
bairro do Méier. Foi só ali, aos 15 anos,<br />
uma idade um tanto tardia, que teve seu<br />
primeiro contato com o balé clássico.<br />
“A dança me ofereceu acolhimento. Eu<br />
nunca fui especial em nada. Não era<br />
nem o filho favorito”, brinca.<br />
Na época em que Thiago encontrou<br />
a dança, sua família enfrentava um<br />
momento difícil. O casamento de seus<br />
pais não estava bem, e o casal viria a<br />
se separar, motivando muitas idas e<br />
vindas entre casas diferentes. O irmão<br />
mais velho, que dançava como hobby<br />
e depois virou desenhista, já não vivia<br />
com a família. Em meio à crise familiar,<br />
Thiago, até então um ótimo aluno,<br />
perdeu o interesse pelos livros e cadernos.<br />
“Não queria sentar, ler, escrever,<br />
queria saltar e dar pirueta.” A dança<br />
foi tomando o lugar da educação formal,<br />
embora, por pressão do pai, tenha<br />
terminado o ensino médio <strong>–</strong> anos mais<br />
tarde, Thiago retomou os estudos no<br />
Kings College, em Londres, com um<br />
programa para prepará-lo para ser diretor<br />
e produtor artístico.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 53<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 52
“Não era<br />
‘Vamos ver se<br />
emplaca’. Tinha<br />
que emplacar.<br />
Precisava ganhar<br />
dinheiro com<br />
isso, viver disso.<br />
Tinha essa coisa<br />
da urgência, da<br />
sobrevivência”<br />
Resiliência e bom humor<br />
Ao longo de sua trajetória, dentro e<br />
fora do Brasil, Thiago teve que lidar<br />
com preconceito. Ouviu, por exemplo,<br />
que seu nariz era “de africano”, e<br />
que por isso jamais poderia interpretar<br />
um príncipe. “É uma parada forte,<br />
sim, mas houve pessoas que me deram<br />
muita força para seguir, que acreditaram”,<br />
diz. Com o tempo, aprendeu a<br />
lidar, com bom humor, com pessoas<br />
que não enxergavam seu talento. “Eu<br />
tinha uma atitude assim: ‘Que legal que<br />
te surpreendi, que você achou que eu<br />
não ia chegar lá e eu, com meu nariz de<br />
batata, provei o contrário e virei o príncipe<br />
do DVD. Vamos assistir juntos’.”<br />
Thiago esbarrou ainda em obstáculos<br />
impostos pela origem humilde. Quando<br />
começou a viajar para o exterior, não<br />
sabia falar inglês. “Eu mal sabia falar<br />
português”, diz. “Eu venho da dificuldade.<br />
E nesse meio convivia com pessoas<br />
muito ricas.” Não tinha os privilégios<br />
garantidos a pessoas de outros<br />
países, classes sociais, origens. Para<br />
ele, não havia plano B. “Não era ‘Vamos<br />
ver se emplaca’. Tinha que emplacar.<br />
Precisava ganhar dinheiro com isso,<br />
viver disso. Tinha essa coisa da urgência,<br />
da sobrevivência”, diz. “Você vir de<br />
uma família pobre, de uma área pobre e<br />
ir lá na terra do colonizador estabelecer<br />
uma identidade é difícil.”<br />
Ele sempre precisou se virar sozinho.<br />
Não podia ligar para casa e pedir dinheiro<br />
quando não havia na mala que<br />
veio do Rio de Janeiro roupa suficiente<br />
para enfrentar o inverno europeu, por<br />
exemplo. “Acontecia o contrário: eu ligava<br />
e ouvia que não sei quem estava<br />
doente, que estava difícil. Automaticamente,<br />
fui me transformando em provedor.<br />
Sabia que tinha que ser forte.<br />
Era como se tivesse uma faca no pescoço.<br />
Acredito que tenha me afetado de<br />
alguma forma, sim.”<br />
Com Marianela Núñez no espetáculo O Lago dos Cisnes | foto: divulgação<br />
Estrela da família<br />
A ascensão no balé clássico foi rápida. Cerca de dois anos<br />
depois de calçar as primeiras sapatilhas, Thiago ganhou a<br />
medalha de prata no Concurso Internacional de Dança de Paris.<br />
“Minha vida mudou”, diz o bailarino, que morava de favor<br />
na casa de uma tia à época. Com o prêmio, que incluía certa<br />
quantia em dinheiro, veio uma entrevista para a TV Globo e<br />
algumas propostas de trabalho. “Pensei: ‘Cara, não é só minha<br />
escola no Méier ou meus amigos do bairro dizendo que sou<br />
incrível’. Ali ficou documentado que eu era um jovem talentoso”,<br />
lembra. Ele passou a integrar o corpo de baile do Theatro<br />
Municipal do Rio de Janeiro e, com o primeiro salário, comprou<br />
seu primeiro carro.<br />
Até então, cada pequeno incentivo era um impulso isolado<br />
que o movia para a frente. Thiago nem sempre teve o apoio de<br />
quem estava mais próximo, inclusive pela falta de perspectiva<br />
que a dança representava. “As pessoas não acreditam, não<br />
conseguem ter a visão ou a fé, nem sentir o que você sente.<br />
E aí é preciso continuar lutando”, diz. A medalha em Paris e a<br />
aparição na maior emissora do país viraram o jogo e transformaram<br />
Thiago na estrela da família. E ainda era só o começo.<br />
Em 2001, ele ganhou a medalha de ouro no Concurso<br />
Internacional de Balé do Teatro Bolshoi, disputada por<br />
mais de 270 candidatos. Foi uma premiação inédita para<br />
um brasileiro, e Thiago passou um ano na Rússia. No ano<br />
seguinte, já estava no Royal Ballet, assumindo o posto de<br />
primeiro bailarino em 2006. Lá, dançou os papéis principais<br />
das produções de Onegin, A Bela Adormecida, La Bayadère,<br />
O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes, Copélia, Romeu e Julieta,<br />
Mayerling, Sonhos de Inverno e Las Hermanas, entre outros, ao<br />
lado de grandes estrelas, como Svetlana Zakharova, Sylvie<br />
Guillem e a argentina Marianela Núñez, primeira bailarina do<br />
Royal Ballet, com quem foi casado de 2011 a 2015.<br />
Thiago apresentou-se nos maiores teatros do mundo. Brilhou<br />
nos palcos do Teatro alla Scala de Milão, da Ópera de Roma,<br />
da Metropolitan Opera House em Nova York, entre muitos<br />
outros. “Eu não planejei rodar o mundo dançando, foi acontecendo<br />
para mim. Fui conhecendo pessoas que acreditaram<br />
em mim e fui indo”, diz, citando mentores como o coreógrafo<br />
Ugo Alexandre, do Jazz de Rua, e a bailarina e professora<br />
brasileira Débora Bastos.<br />
“As pessoas não acreditam, não conseguem ter a<br />
visão ou a fé, nem sentir o que você sente. E aí é<br />
preciso continuar lutando”<br />
Em ensaio de criação do espetáculo Último Ato | foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 55<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 54
De olho no futuro<br />
Ele sempre soube que havia escolhido uma carreira de vida curta. Depois dos 30<br />
anos, passou a produzir pequenos espetáculos, promover workshops e assumir outras<br />
responsabilidades. Trouxe bailarinos para dançar no Brasil e foi se exercitando<br />
como curador de seus futuros projetos. “Ali pelos 34, 35 anos, comecei a pensar<br />
fora da caixinha”, conta. “Quando você está em uma companhia, é como se fosse<br />
operário de uma empresa. Se eu torcer o pé, o público vai ter saudade de mim, mas<br />
a companhia vai colocar outro bailarino lá no meu lugar.”<br />
Hoje há pessoas com mais de 40 anos dançando repertório de balé clássico. “É muito<br />
bonito o prolongar dessa jornada, não há nada de errado com isso”, diz Thiago. Mas<br />
não era o que ele desejava. “Uma vez que você teve oportunidade de chegar ao seu<br />
máximo, visitou aquilo algumas vezes, fazendo muito bem, por que não descobrir<br />
quem mais você pode ser? Será que você não está tão viciado em sua versão jovem<br />
que fica só querendo replicá-la?”<br />
Thiago viveu tudo o que um bailarino poderia sonhar. Foi primeiro bailarino do<br />
Royal Ballet de Londres por mais de uma década, dançou nos maiores teatros, recebeu<br />
prêmios importantes. “Vivi aquilo tudo intensamente e de uma maneira digna,<br />
mas em determinado ponto achei que havia um risco muito grande de eu ficar me<br />
repetindo.” Ou pior, de “virar uma caricatura de mim mesmo”. Antes de chegar a<br />
esse ponto, Thiago quis descobrir o que mais ele podia fazer.<br />
Em 2019, aos 38 anos, decidiu deixar o posto de primeiro bailarino do Royal Ballet.<br />
Ainda voltou como convidado para fazer Onegin, em 2020, em suas últimas apresentações<br />
com a companhia. Não treina mais as oito horas por dia de antes, mas<br />
continua em forma graças a uma rotina diária de exercícios pesados. “Ainda estou<br />
bem, não deixei ficar um caco para tentar me reinventar. A estratégia foi fazer amizade<br />
com essa minha jornada e embarcar nesse novo momento com diversão, virtuosismo<br />
e técnica. Em um lugar onde o segundo ato é bacana, e não melancólico.”<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
O segundo ato<br />
Não que tenha sido fácil deixar o posto de primeiro bailarino para trás <strong>–</strong> ele até já<br />
se referiu à despedida como “uma morte”. Thiago sente saudade, sim, e evita ouvir<br />
músicas que despertam grandes recordações. “Foi um embate. Nunca foi ‘Ai, que<br />
maravilha, vou deixar de fazer alguns papéis que mudaram a minha vida, que grande<br />
festa’”, conta. “Mas, se hoje falo com alegria disso, é porque genuinamente ainda<br />
posso fazer. Se me convidarem amanhã para dançar Giselle, tenho físico para fazer.<br />
Assim acho que foi uma transição mais saudável.”<br />
Despedida do Royal Ballet | foto: arquivo pessoal<br />
Thiago Soares abriu uma produtora e<br />
montou um estúdio de dança no Rio<br />
de Janeiro, cidade onde moram seus<br />
pais e a namorada, para ajudar jovens<br />
talentos, criar seus projetos, dar aulas.<br />
“Meu dia a dia é ali. É onde treino, faço<br />
reuniões. Fiz tudo, tijolo por tijolo, com<br />
minha namorada. Achei que era importante<br />
criar um mundo de novo, de<br />
fora para dentro. Uma produtora, um<br />
estúdio para onde vou depois de acordar<br />
e tomar café. Reconstruí o Thiago<br />
de fora para dentro.”<br />
No decorrer dos anos em que viveu<br />
fora do Brasil, voltar para casa, para<br />
sua terra natal, sempre foi um desejo.<br />
Durante três anos, ele foi diretor artístico<br />
do Ballet de Monterrey, no México.<br />
Mas deixou o cargo porque o trabalho<br />
o impedia de tocar outros projetos.<br />
Hoje, atua como coreógrafo convidado.<br />
“Fiquei 20 anos no Royal Ballet,<br />
viajando o mundo. E aí passaria outros<br />
tantos fazendo o mesmo. O tempo vai<br />
diminuindo para realizar meus pequenos<br />
sonhos”, explica. Thiago não pôde<br />
apreciar atividades típicas de jovens da<br />
sua idade. “É como a vida de um atleta.<br />
Você tem de se dedicar. Não dá para beber,<br />
ir a festas. Precisa ter muito amor.<br />
Muitos se perdem na carreira porque<br />
querem praia, querem viver. Mas, se<br />
você quer realmente ser bailarino, não<br />
tem como, é disciplina e rigor.”<br />
Hoje, produz os próprios espetáculos,<br />
que têm a sua voz, expressam sua vontade<br />
naquele momento. Além de produtor<br />
cultural, é professor e coreógrafo<br />
e dirigiu seu primeiro curta, Vermelho<br />
Quimera, lançado em 2022. “Gosto de<br />
criar trabalhos do zero”, diz. “Gosto<br />
do processo. É uma herança do balé,<br />
porque lá você vai de novo, de novo, de<br />
novo porque gosta do processo. Não<br />
importa se vai ganhar 1 milhão de dólares<br />
ou 500.”<br />
O balé também ensinou Thiago a administrar<br />
o tempo, a ter rigor e disciplina,<br />
duas de suas palavras favoritas. “Às<br />
vezes estou fazendo um treinamento<br />
pesado e me pego pensando: ‘Por que<br />
estou fazendo isso?’ Porque, no palco,<br />
tenho que mostrar o corpo, tenho que<br />
saltar. O balé faz você se levantar todo<br />
dia para tentar ser melhor.”<br />
O balé não fez surgir, apenas aprimorou<br />
um lado disciplinado que sempre existiu.<br />
“Sempre ajudei minha mãe a limpar<br />
a casa, organizava meus brinquedos. O<br />
balé caiu como uma luva.” No grupo<br />
de dança de rua, ele repetia inúmeras<br />
vezes a coreografia. “Eu levava mais a<br />
sério do que os outros, então já tinha o<br />
desejo de ter domínio sobre aquilo.”<br />
Ao analisar sua carreira, diz ter medo<br />
de parecer arrogante e soberbo. Mas<br />
percebe que ajudou a abrir espaço para<br />
bailarinos brasileiros no Royal Ballet e<br />
no mundo da dança. “Percebi que vivi<br />
algo meio único, vindo da Vila Isabel,<br />
do hip hop, do Passinho do Charme no<br />
viaduto de Madureira, até primeiro bailarino<br />
do Royal Ballet. É meio surreal.<br />
Não vai voltar a acontecer provavelmente<br />
nos próximos 50 anos porque é<br />
uma mistura de oportunidade e acaso,<br />
estar no lugar certo na hora certa. O<br />
que vivi foi uma parada bem única.”<br />
Tão única que vai virar filme. Depois do<br />
documentário Primeiro Bailarino (2017),<br />
de Felipe Braga, vem aí o longa-metragem<br />
Um Lobo entre os Cisnes, dirigido<br />
por Marcos Schechtman e Helena<br />
Varvaki. Thiago resume, em poucas e<br />
certeiras palavras, a cinebiografia: “É<br />
sobre acreditar em seus sonhos”.<br />
Que conselho daria<br />
ao jovem Thiago?<br />
“Vai com tudo porque<br />
há possibilidade de que<br />
tudo dê certo. Siga em<br />
frente”<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 57<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 56
Um cartum<br />
Cobell Energy (2023) | foto: divulgação<br />
Uma tendência<br />
Streaming nas<br />
redes sociais<br />
Enquanto os grandes estúdios de<br />
Hollywood investiam em filmes cada<br />
vez mais longos (RIP, longa-metragem<br />
de 90 minutos) e as séries ganhavam<br />
episódios de uma hora de duração, a<br />
geração Z percorria as redes sociais<br />
em busca de entretenimento, transformando<br />
YouTube, TikTok e os Reels<br />
do Instagram nas TVs do século XXI.<br />
Agora, um novo movimento pretende<br />
levar a montanha até Maomé.<br />
Da produtora independente do cineasta<br />
Adam McKay, diretor de A Grande<br />
Aposta e Não Olhe para Cima, a série<br />
satírica Cobell Energy acompanha a<br />
história de uma família dona de uma<br />
empresa petroleira que luta contra ativistas<br />
e inovações sustentáveis. Mas a<br />
sitcom não entrou no catálogo das plataformas<br />
de streaming. Cobell Energy foi<br />
pensada e montada para ser assistida<br />
na telinha dos telefones, dentro do ambiente<br />
familiar da geração Z: os episódios<br />
têm curta duração e são filmados<br />
na vertical.<br />
No ano passado, o TikTok ultrapassou<br />
a Netflix como serviço de vídeo mais<br />
popular entre as pessoas com menos<br />
de 35 anos nos Estados Unidos. Mas,<br />
apesar do terreno fértil e promissor<br />
das redes sociais, as produtoras e os<br />
estúdios precisarão correr para acompanhar<br />
as rápidas mudanças nos<br />
hábitos dos usuários e nos critérios<br />
dos algoritmos e descobrir como monetizar<br />
suas produções. Só o tempo<br />
dirá o que é preciso para conquistar<br />
um público que não pensa duas vezes<br />
antes de arrastar para cima e partir<br />
para a próxima.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 59<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 58
Um sabor<br />
Uma palavra<br />
Eu dirigia sem parar. Era bom. Era boa a sensação<br />
de estar em movimento. Sem saber para onde estava<br />
indo. Apenas dirigia. O tédio havia se apoderado<br />
de mim, logo de mim, que nunca me deixei afetar<br />
por ele. Nada que me passasse pela cabeça me animava.<br />
Por isso decidi fazer alguma coisa. Entrei no<br />
carro e fui para onde ele me levasse, se no caminho<br />
houvesse uma curva à esquerda ou à direita, eu virava<br />
à direita, e se, no cruzamento seguinte, pudesse<br />
virar à direita ou à esquerda, eu virava à esquerda.<br />
E continuei dirigindo assim. Acabei enveredando<br />
por uma estrada no meio da floresta, e os sulcos no<br />
chão foram se aprofundando até que senti o carro<br />
patinar. Segui em frente, até o carro finalmente empacar.<br />
Ensaiei dar uma ré mas não consegui, então<br />
estanquei de vez. Desliguei o motor. Fiquei sentado<br />
no carro. Pois bem, cá estou eu agora, cá estou eu<br />
agora sentado, pensei, e me senti vazio, como se o<br />
tédio tivesse se transformado num vazio. Ou, melhor<br />
dizendo, numa espécie de agonia, porque senti<br />
um medo em mim enquanto estava ali com o olhar<br />
fixo adiante, fitando o vazio, como estivesse diante<br />
do vácuo. Do nada. Que conversa é essa, pensei.<br />
Diante de mim está a floresta, só a floresta, pensei.<br />
Então foi até a floresta que esse ímpeto de dirigir me<br />
trouxe. Poderia dizer de outra maneira, que alguma<br />
coisa, não sei bem o quê, me conduziu a alguma outra<br />
coisa, fosse lá o que fosse, a uma coisa distinta.<br />
Contemplei a floresta à minha frente. A floresta.<br />
Sim, árvores próximas umas das outras, pinheiros,<br />
um pinhal. E entre as árvores o solo marrom, ressequido.<br />
Eu me senti vazio.<br />
Jon Fosse<br />
Trecho de Brancura<br />
Tradução de Leonardo Pinto Silva<br />
Editora Fósforo<br />
Sim, a cerveja gelada tem cadeira cativa nos finais de tarde quentes do <strong>verão</strong>, mas os drinques podem dar um toque de sofisticação<br />
à happy hour. Para quem é fã de café, o bartender Frederico Viana, do Celeste, no centro do Rio, criou o The Gabinete. O coquetel<br />
é inspirado no tradicional britânico espresso martini, mas a versão brasuca é para os fortes. Leva uma potente base alcoólica<br />
de rum envelhecido com a doçura do licor de café e a pungência única do gengibre. Já o paulistano Pappa Bar, do chef Pedro<br />
Mattos, sugere o La Dolce Vita. A clássica mistura de gim com aperol ganha a companhia dos refrescantes limão-taiti e melancia.<br />
O espumante traz borbulhas e realça o sabor dos ingredientes.<br />
The Gabinete, Celeste | foto: Bruno Machado<br />
THE GABINETE<br />
INGREDIENTES<br />
• 50 ml de rum envelhecido<br />
• 30 ml de licor Tia Maria cold brew<br />
• 5 ml de xarope de gengibre<br />
MODO DE PREPARO<br />
Em um mixing glass, adicione todos os ingredientes e, com uma colher<br />
bailarina, mexa suavemente até misturar. Sirva em uma taça Nick &<br />
Nora. A finalização com espuma de café (café solúvel, água morna e<br />
açúcar batidos com um mixer) é opcional, mas faz toda a diferença<br />
no aroma e na aparência do coquetel.<br />
LA DOLCE VITA<br />
INGREDIENTES<br />
• 40 ml de gim<br />
• 20 ml de aperol<br />
• 20 ml de shrub de melancia<br />
• 10 ml de suco de limão-taiti<br />
• 40 ml de espumante<br />
• 20 ml de água filtrada<br />
MODO DE PREPARO<br />
La Dolce Vita, Pappa Bar | foto: Ricardo D. Angelo<br />
Para fazer o shrub, macere ½ xícara de melancia sem sementes e<br />
misture com ¼ de xícara de açúcar. Deixe a mistura descansando<br />
na geladeira por, ao menos, um dia. Depois, adicione ¼ de xícara de<br />
vinagre branco. Nesse estágio, o shrub já está pronto para consumo,<br />
mas é possível dar mais intensidade aos sabores deixando-o apurar<br />
por mais alguns dias (o vinagre e a geladeira evitam que o shrub se<br />
deteriore).<br />
A montagem é feita no próprio copo, um modelo long drink. Basta<br />
misturar os ingredientes no copo e adicionar gelo picado a gosto.<br />
Uma fatia de melancia deixa o drinque muito mais convidativo.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 61<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 60
Uma imagem<br />
Complexo do Alemão | foto: Dede Fedrizzi<br />
O fotógrafo e diretor de arte Dede Fedrizzi mergulhou<br />
em uma jornada por formas, texturas e cores em busca<br />
da expressão visual que representa a musicalidade nas<br />
comunidades do Rio. Encontrou ritmo e movimento na irregularidade<br />
arquitetônica do berço do samba e do funk,<br />
dois gêneros que deram voz aos moradores dos morros<br />
cariocas ao longo do último século. Seu olhar promove um<br />
diálogo entre som e espaço e exalta os becos das favelas<br />
onde nasceram (e cresceram) a malemolência do samba e<br />
a batida do funk.<br />
A imagem da arte urbana que observa o movimento nas<br />
vielas apertadas do Complexo do Alemão, zona norte do<br />
Rio, faz parte da exposição Do Samba ao Funk em 100 Anos,<br />
que homenageia a expressão autêntica e a criatividade que<br />
se recusa a seguir padrões preestabelecidos. A mostra fica<br />
em cartaz até 9 de fevereiro na Unibes Cultural, no bairro<br />
do Sumaré, em São Paulo, e antecede o lançamento do<br />
documentário homônimo produzido pela Bossa.etc <strong>–</strong> com<br />
estreia prevista para o primeiro semestre de <strong>2024</strong>, o documentário<br />
Do Samba ao Funk em 100 Anos joga luz sobre<br />
temas como criminalidade, machismo e desigualdade social<br />
por meio de uma série de entrevistas com sambistas e<br />
funkeiros que falam sobre história, influências e exportação<br />
da cultura do morro para o mundo.<br />
VERÃO <strong>2024</strong> | EDIÇÃO <strong>14</strong> • PÁG. 62