Revista Dr Plinio 317

Agosto de 2024 Agosto de 2024

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>317</strong> Agosto de 2024<br />

Nas sendas da confiança,<br />

fidelidade à vocação


Delicada missão<br />

J.P. Ramos<br />

Designado, por um honroso mandato do povo paulista, para representar o pensamento<br />

católico na Constituinte da segunda República, desde logo se apresentaram<br />

ao meu espírito os traços mais salientes da minha delicada missão.<br />

Deputado católico, incumbia-me envidar o melhor dos meus esforços em prol dos direitos<br />

espirituais do povo brasileiro. Diante de meus olhos, estava uma nação precocemente conturbada<br />

por todos os gérmens de dissolução que abalam o velho continente europeu. Organismo<br />

sadio, dotado pela Providência de uma pujança quase inexaurível, o Brasil se via, no entanto,<br />

minado por uma série de crises convergentes, direta ou indiretamente provocadas pela<br />

agonia em que hoje o mundo se debate, e singularmente agravadas por circunstâncias locais.<br />

E eu sentia vibrar em mim a persuasão absoluta de todo o laicato católico, de que somente<br />

em uma restauração de suas tradições religiosas poderia o Brasil encontrar remédio para<br />

seus numerosos males. Esta restauração, porém, não deveria ser de forma nenhuma o regresso<br />

puro e simples do passado, mas a readaptação de nossa vida pública e particular aos valores<br />

espirituais eternos e, portanto, de uma perene atualidade, que refulgem nas tradições de<br />

nossa História.<br />

(Extraído de O Estado de São Paulo, 6/10/1934)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>317</strong> Agosto de 2024<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>317</strong> Agosto de 2024<br />

Nas sendas da confiança,<br />

fidelidade à vocação<br />

Na capa,<br />

Nossa Senhora do<br />

Bom Conselho<br />

Igreja de Santo Agostinho,<br />

Cádis, Espanha.<br />

Foto: Flávio Lourenço<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

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ao Assinante<br />

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Segunda página<br />

2 Delicada missão<br />

Editorial<br />

4 Fidelidade à missão<br />

Piedade pliniana<br />

5 Ânimo e confiança de<br />

filhos autênticos<br />

Liga Eleitoral Católica<br />

6 V - As primeiras perplexidades<br />

de um batalhador<br />

Liga Eleitoral Católica<br />

16 VI - Diante das incertezas,<br />

confiança posta em<br />

Nossa Senhora das Vitórias<br />

Liga Eleitoral Católica<br />

22 VII - Heroica luta interior em<br />

meio às glórias do prestígio<br />

Calendário dos Santos<br />

26 Santos de Agosto<br />

Liga Eleitoral Católica<br />

28 VIII - Fidelidade<br />

incólume ao ideal<br />

Última página<br />

36 Regime de governo marial<br />

3


Editorial<br />

Fidelidade à missão<br />

A<br />

lide empreendida por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> como deputado – cuja narração se encerra nesta edição 1 – transcendia quase ao infinito<br />

a mera atuação política, pois, sendo ele fundamentalmente um líder católico, não visava sua realização em uma brilhante<br />

profissão, mas no cumprimento de uma missão. Por isso, não hesitou em sacrificar a carreira para ser fiel à missão.<br />

Tendo o espírito imbuído dos princípios expostos a seguir 2 , seu intuito era levar o Brasil à grandeza espiritual e, em consequên<br />

cia, material, para a qual Deus o destinou.<br />

Segundo a doutrina tradicional da Igreja, o Catolicismo é compatível com todas as formas de governo, sejam elas monárquicas,<br />

aristocráticas ou democráticas.<br />

Não têm faltado, no entanto, católicos desorientados que sustentam que apenas a monarquia é compatível com o Catolicismo.<br />

E, por outro lado, já houve quem afirmasse que somente a democracia se poderia enquadrar dentro dos legítimos<br />

princípios católicos.<br />

Com essas duas doutrinas errôneas, a Igreja seria arrancada ao excelso trono de sua missão sobrenatural, para ser arrastada<br />

às lutas políticas em que se digladiam apenas interesses humanos.<br />

Como se não bastasse tal situação, apareceram adversários da Igreja que, acusando-a de mero instrumento político nas<br />

mãos das classes chamadas reacionárias, consideravam-na incompatível, quer nos seus princípios, quer na sua ação concreta,<br />

com o genuíno regime republicano.<br />

Quando irrompeu na Europa católica do século XVI o sinistro tufão do protestantismo, a organização política de todos<br />

os povos era, em seus traços gerais, modelada segundo os princípios cristãos.<br />

Formas de governo, havia-as de toda sorte, apresentando mesmo uma diversidade muito maior do que em nossos dias,<br />

o que atesta o gênio político dos estadistas medievais.<br />

Havia, na Idade Média, tanto monarquias hereditárias como eletivas, ao lado das quais coexistiam repúblicas que se governavam<br />

de acordo com os princípios democráticos. E, estabelecendo ligação entre formas tão diversas, uma única característica<br />

constante se notava no direito público da época: a pretensão oficial de respeitar – ao menos em tese – os princípios<br />

cristãos de organização político-social.<br />

Todas as formas de governo viviam, portanto, à sombra da Igreja, aprovadas por ela e, com frequência, formadas ao sopro<br />

vivificador das próprias autoridades eclesiásticas.<br />

Justificando com a doutrina esta situação de fato, São Tomás de Aquino, o representante mais autorizado do pensamento<br />

medieval, nos legou os seguintes princípios, até hoje desposados pela Igreja.<br />

O homem, sociável por natureza, foi criado por Deus com qualidades tais, que sua vida em sociedade só se torna possível<br />

mediante a existência de um poder público que governe e coordene para o bem comum as atividades individuais.<br />

Decorre daí que a autoridade existe no Estado por disposição da vontade divina e que obedecer à autoridade pública<br />

é obedecer indiretamente ao próprio Deus. Portanto, o caráter divino da autoridade reside nela própria, independente<br />

de seu modo de transmissão e de exercício. Em uma palavra, é divina a autoridade monárquica, como a democrática ou<br />

a aristocrática.<br />

Contudo, no sentir de São Tomás de Aquino 3 , a democracia é em si uma forma de governo legítima, mas inferior às demais.<br />

Tal inferioridade só encontra paliativo em uma aplicação muito mais profunda dos princípios católicos.<br />

A democracia coloca nas mãos do povo o poder público. Assim, pois, exige de todos os cidadãos, além das virtudes individuais<br />

e privadas, grande soma de virtudes políticas. Ora, é incontestável que a mais segura garantia da moralidade se encontra<br />

na formação religiosa séria da nação.<br />

Assim, como conceber uma república sem instrução religiosa sólida e profunda? Como conceber uma república que<br />

não oficialize o culto de seus cidadãos, para dar mais influência e prestígio às forças morais de que ela precisa para viver<br />

sem descambar na demagogia?<br />

Se a República brasileira não quiser decair para a demagogia – perigo mais próximo do que supomos – comprometendo<br />

o futuro da Pátria, deverá adotar uma política largamente católica, abandonando de vez o laicismo tremendo que até<br />

hoje nos tem infelicitado.<br />

1) Conferências utilizadas para a composição dos artigos do presente número: 22/6/1973, 23/6/1973, 6/12/1978, 4/10/1983,<br />

16/11/1986, 30/4/1988, 3/9/1988, 7/9/1988, 10/9/1988, 17/9/1988, 14/1/1989, 28/1/1989, 11/2/1989, 16/12/1989, 11/2/1990,<br />

14/9/1991, 25/4/1992, 7/8/1993.<br />

2) Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, <strong>Plinio</strong>. A Igreja e a República. In A Ordem n. 25, março de 1932.<br />

3) Suma Teológica I, q. 103, a. 3 e De Regimine Principum 1, 2, 3, 5.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

A Virgem com o Menino<br />

Museu Bode, Berlim<br />

Fra Angelico (CC3.0)<br />

Ânimo e confiança de<br />

filhos autênticos<br />

Ó<br />

Mãe do Bom Conselho, ajudai-me a tirar da alma o estado de espírito naturalista<br />

e neopagão, segundo o qual a vida terrena é regularmente feliz e as provações,<br />

os contratempos e as dificuldades são acontecimentos que escapam à normalidade,<br />

desconcertam e abatem.<br />

Fazei-me compreender que o mundo, o demônio e a carne estão sempre conjurados para<br />

constituir ciladas e desfechar violências contra os que trabalham por Vós, de sorte que essa vida<br />

é um vale de lágrimas e um campo de batalha para vossos filhos autênticos.<br />

Dai-me o espírito sobrenatural pelo qual confie, em meio aos revezes e às aflições mais angustiantes;<br />

continue sempre na luta, implorando vosso auxílio; jamais sinta abatimento e, pelo<br />

contrário, cresça em ânimo e confiança segundo os vossos desígnios, para assim ser levado à vitória<br />

final e à implantação de vosso Reino. Amém.<br />

(Composta em 30/7/1972)<br />

5


Liga Eleitoral Católica<br />

V<br />

As primeiras perplexidades<br />

de um batalhador<br />

P.P.Pyres(CC3.0)<br />

Se precoce havia sido a eleição de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> como deputado, com um<br />

excepcional número de votos, prematuro<br />

também haveria de ser o vagalhão das<br />

provações e contradições com as quais<br />

a Providência haveria de temperar a<br />

sua alma. Embora coartado na ação,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi notável na dedicação.<br />

National Photo Company Collection(CC3.0)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, deputado<br />

federal, em 1934<br />

Quando fui ao Rio de Janeiro<br />

para exercer o meu mandato,<br />

parti despreocupado.<br />

Eu sabia que tinha a dura tarefa<br />

diante de mim de representar a Liga<br />

Eleitoral Católica de São Paulo nos<br />

debates da Constituinte, onde deveria<br />

obter resultados muito importantes<br />

para a Religião. Eu tinha passado<br />

algum tempo de estudo, a fim de me<br />

preparar para os discursos e para as<br />

atitudes que deveria tomar.<br />

Apesar de ser muito novo, caminhava<br />

para os debates com tranquilidade,<br />

porque percebia que a minha<br />

eleição, tão precoce em relação<br />

à idade que se costuma ser eleito,<br />

representava um caminho da Provi-<br />

6<br />

Centro do Rio de Janeiro na<br />

primeira metade do século XX


dência, e eu haveria de me<br />

sair bem daquilo que Ela<br />

queria de mim. Eu metia o<br />

peito por ter essa certeza e<br />

confiava, porque Deus não<br />

traça uma via para o homem<br />

sem apoiá-lo. Ele não<br />

abandona ninguém e, portanto,<br />

eu tinha certeza de<br />

que, ainda que passasse uns<br />

quartos de hora amargos, o<br />

seriam apenas na superfície,<br />

porque, no fundo, meu<br />

coração confiava.<br />

Com efeito, quando cheguei<br />

ao Rio de Janeiro, as<br />

más notícias começaram a<br />

se acumular.<br />

Sem bancada<br />

católica, sem líder,<br />

sem orador...<br />

Próximo ao Palácio Tiradentes,<br />

havia um prédio<br />

que, não sei como, ficou<br />

propriedade da Cúria do<br />

Rio naquela época. Dois ou<br />

três andares tinham sido destinados<br />

pelo Cardeal D. Leme para o funcionamento<br />

de uma organização chamada<br />

Coligação Católica, da qual o<br />

Alceu de Amoroso Lima era o presidente.<br />

Ele era o líder católico máximo<br />

do Brasil, homem de confiança<br />

do Cardeal Leme.<br />

Todos os deputados da Liga Eleitoral<br />

Católica deveríamos comparecer<br />

a este edifício para a primeira seção<br />

comum. Fui lá, sentei-me entre<br />

os outros deputados eleitos pela Liga<br />

dos vários Estados. Dentre todos,<br />

certamente o mais conhecido como<br />

católico era eu. Por outro lado, dentre<br />

todos, era o mais considerado como<br />

bom orador. Portanto, o natural<br />

seria me designarem para líder da<br />

bancada católica.<br />

Ora, o Tristão tomou a presidência<br />

e comunicou as diretrizes de D.<br />

Leme. Primeiramente, não haveria<br />

uma bancada católica, cada qual<br />

Cardeal D. Sebastião Leme<br />

deveria estar disperso nas bancadas<br />

dos respectivos Estados; não haveria<br />

líder dentre os deputados católicos<br />

na Constituinte, mas seria ele,<br />

por fora da Câmara, que daria a conhecer<br />

a quem quisesse, a palavra de<br />

ordem de D. Leme para os católicos;<br />

para isso se deveria comparecer todos<br />

os dias à reunião da Coligação<br />

Católica.<br />

Isso dava a entender que não se<br />

podia sequer ter contato com D. Leme,<br />

uma vez que havia um representante<br />

dele ali. No fundo, era o Tristão<br />

de Ataíde que tomava as rédeas<br />

do assunto. Foi a primeira coisa que<br />

me estranhou.<br />

Desconcertante e funesta<br />

ordem: manter o silêncio<br />

O Tristão prosseguiu: “O Cardeal<br />

Leme manifesta o firme desejo de que<br />

vocês não façam nenhum discurso católico,<br />

porque, por detrás dos<br />

bastidores, já está tudo combinado<br />

com o Presidente da<br />

República, o Getúlio Vargas,<br />

e ele assegura que, se<br />

não houver discursos e debates,<br />

ele mandará todos aprovarem<br />

os pontos que a Liga<br />

Eleitoral Católica reivindica<br />

que sejam inscritos na Constituição.<br />

Como já está tudo<br />

combinado, e é certo que nós<br />

vamos ganhar, não há razão<br />

para discursos, os quais só<br />

poderão prestar-se a discussões<br />

inúteis.<br />

“Se desejarem fazer discursos<br />

para provar que possuem<br />

dons oratórios, é muito<br />

simples, falem sobre outros<br />

temas, como política<br />

exterior, finanças ou agricultura,<br />

mas sobre as reivindicações<br />

não digam uma<br />

palavra! A colaboração que<br />

D. Leme lhes pede é simples:<br />

fiquem quietos! Discurso<br />

será apenas para os<br />

deputados ambiciosos, que queiram<br />

se fazer reeleger. Mantenham silêncio.<br />

O Cardeal espera isso da dedicação<br />

dos senhores.”<br />

Como viram o poder colossal da<br />

Igreja, trataram de se comprometer<br />

com o que ela queria, contanto que<br />

não se pedisse mais do que as reivindicações<br />

mínimas. E, de fato, acabou<br />

saindo tudo como eles combinaram.<br />

Era um choque, porque toda a<br />

nossa autonomia desaparecia. Não<br />

havia remédio, o Cardeal Arcebispo<br />

D. Leme era quem mandava, a nós<br />

competia obedecer. Eu fiquei desconcertado…<br />

Por fim, continuou o Tristão:<br />

“Aqui vocês poderão fazer uso da palavra<br />

quanto queiram, mas entre essas<br />

quatro paredes, sem jornal nem<br />

nada. D. Leme depois se entende<br />

com a maioria da Câmara, que é governista,<br />

e passará o que for necessário.”<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

7


Liga Eleitoral Católica<br />

Um guerreiro tolhido<br />

em sua ação<br />

Eu era obrigado a comparecer todos<br />

os dias à reunião da Coligação<br />

Católica presidida pelo Tristão de<br />

Ataíde, perder ali umas duas horas<br />

ouvindo inutilidades e receber por<br />

fim as diretrizes que vinham de D.<br />

Leme. Depois ia ao hotel para jantar.<br />

Era um tormento!<br />

Eu julgava que a Providência quisesse<br />

que eu aproveitasse a minha<br />

facilidade para falar em público, na<br />

Assembleia Constituinte. Nós estávamos<br />

eleitos para isso! Nossa eleição<br />

significava isso! Ora, nessas condições,<br />

não havia mais discussões,<br />

não havia debates em nome da Causa<br />

Católica. Era fazer o papel de burro<br />

diante do povo. Uma coisa horrível!<br />

Eu tinha me equipado para defender<br />

a Causa Católica. Os discursos<br />

com que eu sonhava, as invectivas<br />

contra os adversários, os brados,<br />

as batalhas... Nada!<br />

A não fazer discursos sobre isso,<br />

fazer discursos sobre o quê? As fronteiras<br />

entre São Paulo e Paraná? Entre<br />

São Paulo e Minas? O que interessa<br />

isso? A um deputado católico<br />

pouco importa. A respeito dos privilégios<br />

das Polícias Militares em comparação<br />

com o Exército? Não são temas<br />

que falam às nossas almas de católicos.<br />

Para isso há especialistas que<br />

discursam sobre o tema.<br />

Em quase todos os Estados foram<br />

eleitos deputados católicos, e<br />

bons católicos. Se os bispos tivessem<br />

me consultado, eu proporia: “Aproveitem<br />

a ocasião! Peguem esse conjunto<br />

de deputados e vamos meter o<br />

peito para frente! Vamos fazer coisas<br />

que nunca se imaginou! Por exemplo:<br />

uma visita coletiva dos membros<br />

da Constituinte ao Cristo Redentor<br />

e, no alto do Corcovado, oferecer a<br />

Ele a Constituição, uma vez promulgada.<br />

Não deixemos escapar uma<br />

ocasião incomparável como esta!”<br />

Entre duas situações<br />

inconvenientes<br />

Palácio Tiradentes<br />

Ora, a situação era adversa. Pelas<br />

diretrizes dadas por D. Leme, eu<br />

me dava conta de que eu não podia<br />

falar sobre os temas que reuniam o<br />

eleitorado que me tinha escolhido.<br />

E tomei aquilo como uma porretada<br />

na cabeça… Era uma proibição<br />

a nos movermos. Resultado: minha<br />

presença na Constituinte ficou meio<br />

inútil, e o interesse de toda a nossa<br />

ação baixou muito.<br />

E me dei conta do seguinte: quando<br />

se trata de fazer uma Constituinte<br />

e organizar um país, entram evidentemente<br />

assuntos que interessam<br />

aos católicos, mas uma também porção<br />

de outros que não interessam.<br />

Por exemplo, como organizar o Poder<br />

Judiciário? Os Estados devem<br />

ter um Tribunal de Justiça, com juízes<br />

próprios, nomeados pelo governador<br />

do Estado, ou toda a Justiça<br />

deve estar na mão da União Federal?<br />

Como organizar as Forças Armadas?<br />

Como dispor sobre as finanças?<br />

É melhor que a Constituição favoreça<br />

a feitura de estradas de rodagem<br />

ou que a Constituição – de modo<br />

indireto, porque não é matéria<br />

constitucional – favoreça o aproveitamento<br />

das vias fluviais como meio<br />

de comunicação interna no Brasil?<br />

Eu compreendo que um católico<br />

seja a favor das rodovias e outro seja<br />

a favor das vias fluviais, porque é<br />

um ponto técnico e econômico, nada<br />

tem a ver com a Doutrina Católica.<br />

É legítimo que os católicos tenham<br />

opiniões diferentes, porque a<br />

Igreja não tem pronunciamento sobre<br />

tais assuntos.<br />

Eu, toda a vida, tive uma predileção<br />

enorme pelas vias fluviais. Mas,<br />

se eu fizesse, por exemplo, um discurso<br />

a favor disso, eu perderia na<br />

próxima eleição o voto dos que tinham<br />

votado por mim, mas que<br />

eram a favor das rodovias. Diriam:<br />

“Nunca pensei que esse homem fosse<br />

se meter nisso!”<br />

Portanto, eu diminuiria minha posição<br />

falando, porque dividiria; e diminuía<br />

a minha posição não falando,<br />

porque diriam que eu não era um<br />

deputado eficaz, porque esperavam<br />

de mim que eu discursasse.<br />

O público de São Paulo se dividia<br />

em dois a meu respeito: muitos<br />

tinham me ouvido falar em público<br />

José Reynaldo da Fonseca (CC3.0)<br />

8


e julgavam que eu falava razoavelmente,<br />

o que lhes facilitou a acreditar<br />

que um rapazinho de 24 anos podia<br />

ser um deputado corajoso, com<br />

argumentos. No entanto, havia uma<br />

boa proporção do público paulista<br />

que nunca me ouvira falar – é preciso<br />

notar que eu ainda não era professor<br />

universitário, comecei a lecionar<br />

só depois do mandato – e julgavam<br />

uma temeridade de D. Duarte<br />

ter mandado um rapaz dessa idade<br />

fazer uso da palavra em ambientes,<br />

que naquele tempo, eram tão cultivados.<br />

Estes estavam atentos para<br />

ver se eu faria e como faria uso da<br />

palavra.<br />

A situação criava, em concreto<br />

para mim, uma dificuldade insolúvel.<br />

Eu tinha que justificar esta coisa<br />

incompreensível: eu, eleito para fazer<br />

passar as emendas católicas, não<br />

podia fazer discurso sobre assuntos<br />

católicos! Como ficava o eleitorado<br />

que se unia em torno de mim<br />

por uma razão religiosa? Eu não podia<br />

contar em público que eu estava<br />

proibido por D. Leme de falar. Isso<br />

teria sido tomado, aliás, a justo título,<br />

como uma traição, porque era<br />

uma confidência que ele nos fazia.<br />

E, portanto, eu não podia revelar,<br />

porque sairia a difamação por cima<br />

de D. Leme e me queimava com ele,<br />

e isso não podia acontecer.<br />

Resultado: eu caminhava para um<br />

fracasso eleitoral forçoso, aquilo minava<br />

a minha reeleição, porque, pela<br />

natureza do meu eleitorado, era<br />

obrigado a discursar.<br />

E percebi que a situação era muito<br />

difícil; eu tinha que escolher, das<br />

duas situações, a menos inconveniente.<br />

E aí os reveses começaram…<br />

Orador gago, tímido<br />

e medroso?<br />

Demóstenes - Palácio da Justiça em Bruxelas<br />

Jean Housen (CC3.0)<br />

Recebo a notícia de que em São<br />

Paulo estava começando a correr<br />

uma calúnia estranha, à maneira de<br />

boato organizado, dentro dos próprios<br />

meios católicos e fora deles, de<br />

que eu não estava fazendo discursos<br />

porque era muito jovem e tímido.<br />

Ora, contra mim podem se fazer<br />

muitas acusações, a de que eu sou tímido,<br />

não! Meu natural é ser muito<br />

desembaraçado, eu digo o que eu tenho<br />

que dizer logo. Talvez meu sangue<br />

nordestino ajude para isso.<br />

E mais: diziam que eu não estava<br />

falando e quase não ia à tribuna,<br />

porque tinha medo de falar em público.<br />

Houve até quem afirmasse que<br />

eu era gago! Eu posso ter muitos outros<br />

defeitos, mas este não tenho!<br />

Quem fala comigo três minutos percebe<br />

que eu não sou gago, e nunca o<br />

fui em minha vida. Ainda que tivesse<br />

sido, isso não me diminuiria! Demóstenes<br />

foi gago e era um grande<br />

orador; Moisés era gago. Mas, enfim,<br />

eu não era.<br />

Aí eu percebi bem a má-fé, porque<br />

eu tinha feito discursos em São<br />

Paulo a mais não poder. Eu tinha falado<br />

em público em quase todas as<br />

grandes igrejas, durante o período<br />

eleitoral. E falava abundantemente.<br />

Discursos de 45 minutos, uma hora,<br />

que pesaram muito para a minha<br />

eleição. Eu tinha falado em muitos<br />

lugares do interior até o limite do<br />

Estado do Rio, era muito conhecido<br />

como orador.<br />

Como poderia circular que eu era<br />

gago e não era apto a fazer uso da<br />

palavra no parlamento? Era a maldade<br />

humana! O demônio mente<br />

e tem organizações que espalham<br />

a mentira dele para todos os lados.<br />

Acreditava quem tivesse vontade.<br />

Mas eu percebia que era um cerco<br />

que se fazia para eu não ser reeleito.<br />

Foi a primeira vez que eu percebi<br />

haver um trabalho organizado, uma<br />

vindita contra mim, porque as pessoas<br />

que diziam isso eram, em geral,<br />

aquelas com simpatias pelo nazismo<br />

e pelo fascismo, que tinham entre si<br />

uma ligação política. E eu atacava<br />

tais partidos no Legionário.<br />

Impossibilitado de<br />

romper o cerco fechado<br />

Eu achei que era uma situação<br />

sem saída. Telefonei para o secretário<br />

de D. Leme, pedi uma audiência.<br />

D. Leme imediatamente mandou<br />

convidar-me para almoçar com<br />

ele naquele dia. Ele era um homem<br />

muito ocupado, mas bastava eu pedir<br />

uma audiência, ele me convidava.<br />

Durante todo o tempo em que D.<br />

Leme viveu, foi muito amável comigo.<br />

O que precisava dizer a ele, eu<br />

dizia; e não falaria com ele a não ser<br />

o estritamente indispensável. Ele era<br />

9


Liga Eleitoral Católica<br />

muito gentil, mas estava entendido<br />

que eu só poderia ir lá num número<br />

limitado de vezes, senão me transformaria<br />

num comensal dele. Havia<br />

uns cento e cinquenta, duzentos deputados<br />

católicos. Se todos fossem<br />

conversar com ele sempre, ele estava<br />

perdido.<br />

Depois do almoço, ele passava para<br />

um salão onde falávamos sozinhos<br />

o que eu precisasse tratar. Naquela<br />

ocasião, levei outros temas para tratar,<br />

para ver se encontrava oportunidade<br />

de entrar no assunto sobre não nos<br />

pronunciarmos no plenário. Mas senti<br />

que não havia meio, eram favas contadas.<br />

Resultado: eu não pude sair desse<br />

cerco, era um cerco fechado.<br />

Eu começava a sentir algo de desapontamento,<br />

como se a Providência<br />

não fosse cumprir as perspectivas<br />

que Ela mesma tinha aberto diante<br />

de mim.<br />

A única coisa que eu podia fazer<br />

era tomar atitude de quem não percebia<br />

nada. O meu grupo era ainda muito<br />

pequeno, de gente muito moça, que<br />

não tinha relações suficientes para fazer<br />

uma “contramáfia”, e, ademais,<br />

não estava em nosso sistema agir assim.<br />

O nosso modo de agir era publicar<br />

pelo jornal. Se não há o que publicar,<br />

não diga nada, aguente firme!<br />

Escavando situações<br />

com destreza<br />

Ora, eu senti que precisava arranjar<br />

algum pretexto, aproveitar algumas<br />

ocasiões que se me apresentassem<br />

para fazer discursos sobre temas<br />

que não desunissem o meu eleitorado,<br />

ou seja, que fosse matéria<br />

religiosa alheia às emendas da Liga<br />

Eleitoral Católica. Assim quebraria<br />

a “máfia” em São Paulo.<br />

Por ocasião do centenário do Pe.<br />

José de Anchieta, jesuíta, fundador<br />

da cidade de São Paulo, eu procurei<br />

o presidente da Câmara e disse:<br />

— <strong>Dr</strong>. Antônio Carlos…<br />

E ele, sempre com uma ventarola<br />

se abanando, estendeu sua fisionomia<br />

de marfim para mim e disse:<br />

— O que é, meu amigo?<br />

— Eu queria ter um lugar no expediente<br />

para fazer um discurso sobre<br />

Anchieta.<br />

— Ah, pois não! Está garantido!<br />

Pegou-me pelas duas mãos e felicitou-me.<br />

Passados dois ou três dias, falei<br />

sobre Anchieta e fui o orador oficial<br />

do centenário dele na Constituinte.<br />

Graças a Deus, o discurso foi muito<br />

bem acolhido, mas era apenas um<br />

discursinho de uns dez minutos, porque<br />

fazia parte da sessão da ordem<br />

do dia, e deveria ser rápido, o deputado<br />

deveria falar pouco. Era uma<br />

matéria totalmente alheia às leis que<br />

estavam sendo votadas.<br />

Todos os jornais de São Paulo publicaram<br />

bastante e parece que impressionou<br />

bem, concorrendo para<br />

baixar um pouco as calúnias que,<br />

afinal, ainda corriam moderadamente.<br />

Assim foram algumas ocasiões<br />

nas quais eu, a bem dizer, desencavei<br />

para conseguir falar. Fiz uns três<br />

ou quatro discursos na Constituinte,<br />

que eram de pouco remédio para o<br />

caso, para quem esperava uma atuação<br />

parlamentar brilhante de minha<br />

parte, sobretudo por achar que eu<br />

falava muito e falava bem...<br />

Marc Ferrez (CC3.0)<br />

Palácio São Joaquim (residência oficial do Arcebispo do Rio de Janeiro), na primeira metade do século XX<br />

10


A Gazeta de 20 de março de 1934 noticiando o discurso de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na Constituinte, sobre o Venerável José de Anchieta<br />

Tonitruante aparte,<br />

forçoso recuo<br />

Eu estava esperando uma outra<br />

oportunidade para fazer algo sensacional.<br />

Com efeito, essa ocasião se<br />

apresentou.<br />

Havia na bancada paulista um deputado<br />

que era uma ovelha negra do<br />

rebanho – cada Estado tinha a sua –,<br />

chamado Zoroastro Gouveia, eleito<br />

fora de nossa bancada, por uma chapa<br />

minoritária comunista. Era um negregado,<br />

com o qual ninguém conversava<br />

nem cumprimentava, e que, de<br />

vez em quando, fazia discursos.<br />

Ele era um homem sem fogo; já<br />

caminhava para os cinquenta anos.<br />

Era o oposto do que se poderia imaginar<br />

para um agitador de grande<br />

classe; era um minúsculo burguês,<br />

encantado de ser deputado.<br />

Certa vez ele foi à tribuna e estava<br />

pronunciando um discurso muito cacete,<br />

longo, sem convicção, apenas para<br />

constar às bases que ele havia feito.<br />

Ninguém prestava atenção, e eu pensei:<br />

“Uns debates com deputados comunistas<br />

bem poderiam ser interessantes…<br />

Não seria matéria religiosa.”<br />

Tomei um ar bonachão, sentado em<br />

minha cadeira próxima à dele, olhando<br />

para outros lados, como quem não<br />

prestava atenção, mas ouvindo o discurso<br />

para ver se eu fazia algum aparte.<br />

Em determinado momento, ele fez<br />

uma afirmação que podia ser interpretada<br />

como um ataque à honra dos deputados<br />

católicos: disse que, enquanto<br />

católicos, não éramos bons patriotas,<br />

não tínhamos ideal de pátria, porque<br />

recebíamos as diretrizes de um governo<br />

estrangeiro, o Vaticano, obedecendo ao<br />

Papa e não ao Presidente da República.<br />

Eu me levantei, dei um murro na<br />

mesa, intervim tonitruante:<br />

— Eu protesto! E protesto com<br />

todo calor! Isto é uma calúnia! Vossa<br />

Excelência está intimado, prove o<br />

que está dizendo!<br />

E passei uma respeitosa catilinária<br />

em termos tão indignados e inflamados,<br />

que ele tomou um susto, ficou pálido.<br />

Eu o desafiei, afirmando não haver<br />

dissociação entre a Religião e a pátria,<br />

e que eu tomava aquilo como uma<br />

injúria a mim, colega dele, a quem ele<br />

deveria respeito, bem como a todos os<br />

deputados católicos da Assembleia e a<br />

todo o povo brasileiro, cuja maioria era<br />

católica. Desmenti com base na própria<br />

história do Brasil, durante a qual a Igreja<br />

tinha sido sempre benfazeja.<br />

Ele quis interromper-me, mas a<br />

minha voz, naturalmente alta, cobria<br />

a dele por completo. Eu bradei:<br />

— Eu exijo em nome da Pátria!<br />

— Não! Engana-se o ilustre Deputado<br />

<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira; eu<br />

não quis dizer bem isso. O senhor interpretou<br />

mal minhas palavras.<br />

— Não, senhor, foi isso mesmo!<br />

Os anais taquigráficos desta casa devem<br />

registrar o fato.<br />

Nesse momento, alguns deputados<br />

católicos se levantaram de seus<br />

lugares e foram para junto de mim,<br />

para dar solidariedade. O Zoroastro<br />

recuou, percebeu que não tinha<br />

o que dizer, não respondeu nada e<br />

se retirou espantado. Eu não queria<br />

promover um vexame contra ele<br />

e deixei a coisa morrer.<br />

No dia seguinte, a imprensa deu<br />

uma notícia minúscula, porque estava<br />

sempre abafando tudo quanto eu<br />

fazia. E eu nunca soube qual foi o resultado<br />

desse episódio.<br />

Apóstrofe único na<br />

Câmara dos Deputados<br />

Eu saí da política, o Rio de Janeiro<br />

deixou de ser a capital, a Câmara<br />

dos Deputados, com todos os seus<br />

arquivos, foi transladada para Brasília.<br />

Deputado Zoroastro Gouveia<br />

nos tempos de seu mandato<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

11


Liga Eleitoral Católica<br />

Arquivo Nacional (CC3.0)<br />

O tempo havia transcorrido, eu tinha<br />

mudado muito. Mas ele se lembrou<br />

e disse:<br />

— <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira?<br />

— Sim, senhor, sou eu!<br />

Ele afirmou:<br />

— O senhor não está me reconhecendo,<br />

mas naquele tempo eu era<br />

funcionário na Câmara dos Deputados,<br />

na Constituinte do Rio de Janeiro,<br />

quando o senhor teve a coragem<br />

de fazer aquela célebre interpelação<br />

ao deputado comunista Zoroastro<br />

Gouveia.<br />

Eu dei risada e respondi:<br />

— Ah, é? O senhor se lembra ainda<br />

daquilo?<br />

— Oh! Mas me lembro muito<br />

bem! Foi um trovão na Câmara!<br />

Apóstrofe como aquele, eu ainda<br />

não vi na Câmara dos Deputados.<br />

Até hoje, os que assistimos a essa cena<br />

nos lembramos dela!<br />

Integridade e firmeza à<br />

margem da dissolução<br />

Brasília nos anos de 1960.<br />

Em destaque, Paschoal Ranieri Mazzilli<br />

Uns trinta anos depois, um belo<br />

dia, fui levar ao <strong>Dr</strong>. Ranieri Mazzilli<br />

1 , Presidente da Câmara dos<br />

Deputados do Brasil, o livro Reforma<br />

Agrária Questão de Consciência<br />

2 , junto com um abaixo-assinado<br />

de fazendeiros contrários à Reforma<br />

Agrária. Ele era paulista e, aliás,<br />

nos recebeu muito bem, convidou-<br />

-nos para jantar em sua casa, o que<br />

não pudemos aceitar devido à pressa.<br />

Muito amavelmente nos pediu o<br />

favor de que levássemos à secretaria<br />

o material.<br />

Fomos até lá, e o diretor, um velhote,<br />

em dado momento, olhou para<br />

mim e disse:<br />

— O senhor já foi deputado, não?<br />

— Fui sim.<br />

— Vou lembrar-me de seu nome.<br />

O senhor não é…<br />

Por detrás de certas dificuldades<br />

que eu tinha com os deputados, havia<br />

uma que era central: a minha integridade.<br />

O Rio de Janeiro era considerado<br />

naquele tempo quase exclusivamente<br />

um lugar de prazer, de<br />

recordações históricas, de turismo e<br />

de governo. Era uma cidade para onde<br />

afluíam duas categorias de brasileiros<br />

em grande quantidade: os<br />

paulistas ricos e os ricaços de outros<br />

Estados, e os políticos de toda parte,<br />

que iam fazer carreira política.<br />

Não havia ainda as indústrias nem<br />

o comércio atuais. O Rio era um porto<br />

importante onde se realizava alguma<br />

exportação e importação, mas<br />

que pouco interferia aos que vinham<br />

de fora, para os quais estavam reservados<br />

os hotéis Palace, Copacabana e<br />

Glória, incluída toda a vida de prazeres,<br />

os lugares de diversão noturnos.<br />

Ora, acontecia que, quando um político<br />

era ricaço, mais levava a vida de<br />

prazer do que de política.<br />

E eu notava que os meus colegas<br />

da tradicional bancada paulista<br />

da Câmara dos Deputados, em sua<br />

maioria, se esparramavam por esses<br />

ambientes. E a incógnita era: “O<br />

<strong>Plinio</strong>, deputado católico, entretanto<br />

tão moço, o que fará? Ele não vai se<br />

meter nas boates, nos lugares de diversão<br />

escusos e abandonar a vida de<br />

congregado mariano? Ou, pelo contrário,<br />

ele romperá com o hábito comum<br />

de todo deputado e se porá numa<br />

vida ‘monacal’?” E eu tinha escolhido<br />

a vida “monacal”.<br />

Eu me lembro de que, no centro<br />

da cidade, em frente à galeria Cruzeiro,<br />

havia um foco de concentração<br />

de deputados ricos, muitos dos quais<br />

paulistas: o bar. Um lugar de piadas,<br />

12


incadeiras, promiscuidades, de onde<br />

depois saíam para as diversões.<br />

Certa vez precisei procurar um deputado<br />

que se encontrava num bar<br />

para resolver um assunto urgente da<br />

Causa Católica. Como não era um lugar<br />

imoral – era uma antecâmara da<br />

imoralidade –, dirigi-me até lá. Quando<br />

cheguei ao hall do hotel que dava<br />

para o bar, havia personagens conhecidos<br />

que me encontraram:<br />

— Oh, <strong>Plinio</strong>! Como vai você?<br />

Percebi que eles julgavam que eu<br />

entraria ali, e logo respondi:<br />

— Estou procurando Fulano. Ele<br />

está aí?<br />

— Está no bar, venha cá, vou mostrar<br />

onde é.<br />

Um deles me conduziu, mas não<br />

entrei. Chamei-o, conversei rápido<br />

com ele e saí.<br />

Percebi em alguns a cara aborrecida<br />

e emburrada: “Esse homem não<br />

adere…” Era a diferença que marcava<br />

muito.<br />

Cordial amizade entre<br />

componentes da Constituinte<br />

Com o mal é preciso ter uma intransigência<br />

absoluta! Com o que<br />

não é mal, é preciso ter várias formas<br />

de condescendências, de gentilezas,<br />

de modos de ser.<br />

Estando minhas relações com a<br />

bancada paulista muito boas, restava<br />

estabelecer relações com as outras<br />

bancadas, para conversar com os católicos<br />

sobre o Movimento Mariano<br />

de São Paulo, favorecer a causa com<br />

líderes católicos de outros Estados e,<br />

desta maneira, criar uma certa influência.<br />

Meti-me então no meio deles, comecei<br />

a cumprimentá-los, a ir ao café,<br />

conversávamos muito. Relacionei-me<br />

bastante com eles na Constituinte.<br />

Meus queridos conterrâneos paulistas<br />

eram muito “fechadões”, de trato<br />

cerimonioso. Eles eram os mais ricos,<br />

os mais bem vestidos dentro da<br />

Assembleia; ocupavam as duas primeiras<br />

fileiras à direita do presidente,<br />

enquanto os outros eram mais alegres,<br />

bonachões. Agradavam-me pessoas<br />

cerimoniosas, por natureza o sou,<br />

mas embora os de outros Estados fossem<br />

mais ou menos cerimoniosos, ou<br />

mais ou menos desconfiados, fiz com<br />

eles uma amizade cordial.<br />

Os meus amigos cariocas eram finos,<br />

educados, mas muito alegres,<br />

brincalhões, não gostavam muito de<br />

cerimônia. Ao tratar com eles, eu<br />

sentia um certo ranger, porque não<br />

gosto que se brinque comigo e usem<br />

de intimidades.<br />

Os pernambucanos eram, a seu<br />

modo, dados ao cerimonioso, muito<br />

inteligentes, e logo me procuraram<br />

para perguntar se eu sabia ser parente<br />

do Conselheiro João Alfredo Corrêa<br />

de Oliveira, que assinou a lei de<br />

libertação dos escravos no tempo do<br />

Império. Evidentemente sabia, ele<br />

era meu tio-avô, tio de meu pai.<br />

Peculiaridades do Brasil<br />

em cada bancada<br />

Menos cerimoniosos, embora distintos,<br />

eram os baianos. Tinham um<br />

modo de ser diferente, com o qual tive<br />

contato num pequeno incidente.<br />

A Assembleia oferecia uma confortável<br />

instalação, cada deputado<br />

tinha sua escrivaninha e uma poltrona<br />

de couro muito boa e giratória, de<br />

maneira a poder voltar-se para trás a<br />

fim de conversar com os demais.<br />

Por um movimento natural e distraído,<br />

eu às vezes estendia o braço<br />

e apoiava a mão na mesa de um dos<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Aspecto de uma reunião da Assembleia Constituinte, em 1934<br />

13


Liga Eleitoral Católica<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

deputados de trás. Em certa ocasião,<br />

enquanto assistíamos àquela sensaboria<br />

toda, creio que o deputado<br />

precisou levantar a tampa da mesa,<br />

ou algo do gênero; ele quis que eu<br />

desocupasse a sua mesa. De repente,<br />

sinto uma mão gorducha, mole e<br />

quente colocar-se sobre a minha.<br />

Ele tinha percebido como eu era e<br />

estava se divertindo de antemão com<br />

o caso que estava criando, e percebi<br />

que seria uma verdadeira estupidez<br />

zangar-me.<br />

Depois soube que era um deputado<br />

da bancada baiana. Aliás, encantadora!<br />

Ele dizia coisas, brincava,<br />

era o contrário daquela rigidez paulista.<br />

Mais do que mexer na carteira,<br />

ele queria prosear comigo: “Eu conheci<br />

muito o seu tio João Alfredo!”<br />

E começou a falar sobre pequenas<br />

banalidades com uma inteligência,<br />

com uma graça, e eu pensei: “Essa<br />

é a famosa Bahia! Numa palavra, é<br />

a Bahia do charme, a Bahia<br />

da graça!” Eu percebi que<br />

não podia bancar o paulista<br />

solene. Achei graça e comecei<br />

a conversar: “Oh, mas<br />

então, como vai o senhor?”<br />

Fingi que o conhecia e ficamos<br />

amicíssimos.<br />

Muito diferentes eram<br />

os deputados gaúchos. Tom<br />

solene, quase todos com voz<br />

forte muito boa. Não sei se<br />

eles combinaram – porque<br />

eram políticos muito espertos<br />

–, ou se foi coincidência,<br />

mas sendo o Rio Grande do<br />

Sul um Estado importante<br />

como é, em vez de ocuparem<br />

as primeiras fileiras,<br />

eles figuravam no fundo da<br />

sala. E quando algum deles<br />

tinha um aparte a dar, tonitruava<br />

de lá: “Senhor Presidente,<br />

não posso estar de<br />

acordo…” Iam à frente e<br />

discursavam.<br />

Os baianos também faziam<br />

discursos, mas amáveis<br />

e floridos. Os rio-grandenses faziam<br />

chamejantes, com desafios e de<br />

mãos levantadas. Era muito interessante<br />

e pitoresco.<br />

Eu não poderia deixar de mencionar<br />

a mais silenciosa de todas as<br />

bancadas, a de Minas Gerais, falando<br />

baixinho, cochichando uns com<br />

os outros, uma bancada onde formei<br />

muito bons amigos. E assim, cada<br />

Estado do Brasil tinha suas peculiaridades,<br />

e acabei por me relacionar<br />

com a Constituinte inteira, o que era<br />

meu objetivo.<br />

Figura hierática e<br />

sobressaliente<br />

Mas a figura mais simbólica e<br />

mais representativa era a de um ex-<br />

-governador de Minas Gerais: o deputado<br />

Antônio Carlos Ribeiro de<br />

Andrada 3 , descendente de um dos<br />

três Andradas 4 .<br />

Deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada<br />

ao lado de Getúlio Vargas<br />

Era um homem, naquele tempo,<br />

de uns 64 anos de idade. Fino, de<br />

muito boa família, subtil. Era esguio,<br />

tinha uma pele branquíssima, dando<br />

a impressão de ser esculpido em<br />

marfim, uma figura hierática. Cabelo<br />

de um branco prateado, cabeça<br />

mais bem pequena, lábios finos, os<br />

quais quase não movia para falar, e o<br />

riso malicioso. As orelhas pareciam<br />

folhas de papel, finíssimas, ligeiramente<br />

de abano, apesar de ser um<br />

homem muito inteligente, vivo, um<br />

político de primeira. Dizem que isso<br />

não caracteriza a inteligência, mas<br />

era uma contradição da natureza.<br />

Os olhos eram escuros, bem grandes,<br />

escancarados, bonitos. Tinham<br />

um coruscar de quem analisava, num<br />

simples golpe de vista, os últimos pormenores<br />

daquilo que ele estava olhando.<br />

As sobrancelhas finas, brancas<br />

também! Ele, por assim dizer, conversava<br />

com os olhos: cumprimentava,<br />

sorria, fazia carranca. Ele<br />

fazia daqueles olhos toda espécie<br />

de uso, mas muito pitoresco<br />

e com muita educação.<br />

Um pouquinho irônico,<br />

se dirigia a todos com uma<br />

superioridade, uma elegância,<br />

uma nobreza de gestos,<br />

que me fizeram ver logo nele<br />

uma das poucas figuras verdadeiramente<br />

interessantes<br />

da Constituinte.<br />

Ele tinha boas relações<br />

comigo e eu percebia que<br />

ele prestava muita atenção<br />

em mim. Certo domingo,<br />

fui à Missa, numa igreja<br />

próxima, quando o vejo<br />

numa espécie de tribuna.<br />

Em dado momento, percebi<br />

que ele me observava rezar<br />

e pensava consigo: “No que<br />

dará este ‘pintainho’ que está<br />

aí…?”<br />

A família dele tinha parentes<br />

em São Paulo muito<br />

relacionados com a minha.<br />

Isto formava certo laço de<br />

14


simpatia. Aliás, tive um importante<br />

papel para libertá-<br />

-lo de uma encrenca.<br />

Presteza e agilidade<br />

nas encrencas da<br />

Constituinte<br />

Um dia, bem tarde da noite,<br />

recebo um telefonema:<br />

— Aqui fala o Antônio de<br />

Alcântara Machado 5 .<br />

Era um escritor paulista<br />

muito conhecido, bem moço<br />

ainda, filho do líder <strong>Dr</strong>. Alcântara<br />

Machado.<br />

— Meu pai manda pedir<br />

que venha aqui à casa o<br />

quanto antes. Há uma crise<br />

gravíssima ameaçando fechar<br />

a Constituinte.<br />

Vesti-me depressa, tomei<br />

o automóvel. Cheguei lá e<br />

deparei-me com <strong>Dr</strong>. Alcântara<br />

sentado, com a fisionomia<br />

abatida. Ele contou-me que<br />

tinha havido uma discussão<br />

dele e do <strong>Dr</strong>. Antônio Carlos<br />

Andrada com o deputado por<br />

Pernambuco, chamado João<br />

Alberto Lins de Barros 6 , numa das salas<br />

de comissão da Constituinte. Este<br />

último, enquanto tenente do Exército,<br />

declarara que fecharia a Constituinte,<br />

com seus oficiais nordestinos.<br />

<strong>Dr</strong>. Alcântara me disse:<br />

— É uma situação muito perigosa.<br />

Eu queria que o senhor visitasse<br />

o maior número possível de deputados<br />

não paulistas, para conseguir colocá-los<br />

do lado de nossa bancada e<br />

assim compensarmos a situação.<br />

Dispus-me a fazer o serviço de<br />

muito boa vontade. Da própria casa<br />

do <strong>Dr</strong>. Alcântara, telefonei para<br />

alguns colegas avisando que iria visitá-los<br />

naquela noite. Executei toda<br />

a parte da tarefa que me tinha sido<br />

dada.<br />

Na reunião do dia seguinte, vi o<br />

<strong>Dr</strong>. Antônio Carlos em verdadeiro<br />

apuro. Era dos dias quentes no Rio<br />

Tenente João Alberto Lins de Barros<br />

de Janeiro, ele era muito calorento<br />

e usava um leque para se abanar.<br />

Não conheci homem que fizesse uso<br />

desse objeto destinado às senhoras.<br />

Mas ele era tão varão e senhor de si,<br />

que nele não ficava ridículo. Ele se<br />

abanava frequente e freneticamente,<br />

sobretudo, quando estava nervoso.<br />

Ele estava mais pálido e mais de<br />

marfim que de costume, e percorria<br />

com seus olhos grandes a assembleia,<br />

com a preocupação de, a qualquer<br />

momento, haver uma encrenca.<br />

E o <strong>Dr</strong>. João Alberto Lins de Barros<br />

ali presente.<br />

Ora, o ambiente estava tranquilo,<br />

mostrando ter-se conseguido aplacar<br />

a situação. Não havia sinal algum de<br />

intervenção militar. Eu tinha feito<br />

parte do trabalho de bastidores para<br />

sossegar o João Alberto e fazê-lo<br />

compreender que, se ele interviesse,<br />

não teria o apoio<br />

da Câmara. Afinal a sessão<br />

terminou sem nenhum incidente.<br />

O <strong>Dr</strong>. Antônio Carlos<br />

se levantou trêmulo, desceu<br />

quase apoiado e sumiu pela<br />

Câmara.<br />

Perguntei ao <strong>Dr</strong>. Alcântara<br />

Machado as novidades e<br />

ele me respondeu com muita<br />

amabilidade:<br />

— Muito obrigado pelo<br />

que o senhor fez. Foi possível,<br />

com a sua intervenção e<br />

a de outros, acalmar os ânimos.<br />

Sou-lhe muito grato!<br />

Tempos depois, o <strong>Dr</strong>. Alcântara<br />

escreveu um livro<br />

sobre os trabalhos da Constituinte,<br />

e pôs como dedicatória:<br />

“A <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira,<br />

cujo trabalho na Constituinte,<br />

reservado na aparência,<br />

foi notável na realidade.<br />

Alcântara Machado.”<br />

Ele dizia: “Reservado na<br />

aparência” porque, de fato,<br />

D. Leme tinha tolhido nossa<br />

ação, proibindo os deputados<br />

católicos de fazerem discursos. v<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

1) Paschoal Ranieri Mazzilli (*1910 -<br />

†1975). Advogado, jornalista e político<br />

brasileiro; por dois curtos períodos<br />

assumiu a presidência do Brasil. Entre<br />

1959 e 1965 assumiu a presidência<br />

da Câmara dos Deputados.<br />

2) Livro com aspectos doutrinários, morais<br />

e técnicos sobre o problema da<br />

reforma agrária no Brasil, do qual <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> foi co-autor.<br />

3) Antônio Carlos Ribeiro de Andrada<br />

(*1870 - †1946).<br />

4) José Bonifácio de Andrada e Silva,<br />

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e<br />

Silva, e Martim Francisco Ribeiro de<br />

Andrada, três irmãos que tiveram um<br />

importante papel no período da Independência<br />

do Brasil.<br />

5) Antônio Castilho de Alcântara Machado<br />

d’Oliveira (*1901 - †1935).<br />

6) Militar e político (*1897 - †1955).<br />

15


Liga Eleitoral Católica<br />

Tomas T.<br />

VI<br />

Diante das incertezas,<br />

confiança posta em<br />

Nossa Senhora das Vitórias<br />

No desenrolar da Constituinte, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sentiu o pesado<br />

fardo da vida: de um lado, mal-estar físico; de outro,<br />

grande preocupação com o comprometimento de seu<br />

apostolado e de sua atuação como líder católico. O cerco<br />

e a conspiração não pouparam o jovem deputado.<br />

Em pouco tempo, fui ameaçado<br />

de agressão física se<br />

eu continuasse a lutar pela<br />

Religião Católica Apostólica Romana,<br />

pela Civilização Cristã, pelo Reino<br />

de Maria; não liguei, e a agressão<br />

não veio.<br />

Recebi ameaças de ultraje, de difamação,<br />

de calúnia, de ser posto de<br />

lado e jogado ao chão do panorama<br />

de onde eu estava tão alto, que a nação<br />

inteira olhava para mim. E aos<br />

poucos fui notando que o vazio ao<br />

meu redor aumentava cada vez mais.<br />

Incógnita com relação à LEC<br />

À medida que iam sendo votadas<br />

as emendas da Constituição, a Assembleia<br />

Constituinte ia chegando<br />

ao seu fim. Fora aprovado um artigo<br />

segundo o qual, seis meses depois<br />

de votada a Constituição, ela se dissolveria.<br />

Começaram então uma série<br />

de trabalhos e manobras em torno<br />

de mim, e o problema foi ficando<br />

cada vez mais agudo debaixo de dois<br />

pontos de vista.<br />

Primeiro, do ponto de vista da Causa<br />

Católica. Eu notava um silêncio a<br />

respeito do que seria da Liga Eleitoral<br />

Católica. Seriam eleitos outros deputados<br />

católicos ou se fecharia a Liga,<br />

voltando tudo ao que era antes?<br />

Segundo: qual seria o meu futuro?<br />

Se houvesse eleição para deputados<br />

católicos, meu nome estaria incluído<br />

nessa lista? Quais seriam as<br />

possibilidades para me candidatar<br />

como deputado?<br />

Se eu não estivesse incluído, seria<br />

para mim uma diminuição de prestígio<br />

muito grande, o que significaria a<br />

miséria e, com esta, a perda do prestígio<br />

entre os congregados marianos.<br />

De maneira que ficava comprometido<br />

todo o impulso que eu vinha dando<br />

ao Movimento Católico no sentido<br />

de torná-lo contrarrevolucionário<br />

e de eu realizar os ideais que tinha a<br />

favor da Igreja. Eram meu apostolado<br />

e a possibilidade de eu sobreviver<br />

que ficavam comprometidos.<br />

Ninguém me dizia uma palavra.<br />

Eu ia almoçar com D. Leme, silêncio.<br />

Conversava com Mons. Gastão<br />

Pinto, silêncio. Visitava D. Duarte,<br />

silêncio. Com o Tristão de Ataíde,<br />

silêncio completo também. Não<br />

ficava bem eu perguntar algo sobre<br />

o assunto, porque daria a impressão<br />

de um tipo oportunista, louco atrás<br />

de cargos. Eu ficava sem saber como<br />

me mover.<br />

Situação econômica precária<br />

A questão financeira se tornava<br />

para mim particularmente aguda<br />

por uma razão: minha avó materna<br />

possuía um bom patrimônio do<br />

16


qual minha mãe herdaria uma parte,<br />

o que a deixaria muito amparada<br />

contra qualquer preocupação material.<br />

Entretanto, parentes meus fizeram<br />

maus negócios com este patrimônio,<br />

e minha avó perdeu a fortuna;<br />

ela faleceu durante o meu mandato.<br />

Assim, tudo dependia de eu<br />

conseguir um emprego e fazer-me<br />

reeleger deputado. Se eu não tivesse<br />

as duas coisas, ficaríamos reduzidos<br />

à miséria. Ora, o vazio feito em torno<br />

de mim me provava que eu não<br />

conseguiria cargo nenhum.<br />

Durante o meu período como deputado,<br />

tinha conseguido do Governador<br />

Armando de Salles Oliveira<br />

duas cátedras como professor de<br />

História da Civilização, num curso<br />

preparatório no Colégio Universitário<br />

da Faculdade de Direito de<br />

São Paulo. Era um cargo muito bom,<br />

honroso, microrrendoso naquele<br />

tempo, que me deveria ser concedido<br />

porque eu era deputado católico,<br />

conhecido como tendo cultura.<br />

Com isto eu conseguia um pouco<br />

de dinheiro para não morrer de fome.<br />

Ora, eu tinha em mãos apenas<br />

um decreto me nomeando; não sabia<br />

se, de fato, me entregariam o cargo.<br />

Acontecendo qualquer imprevisto,<br />

eu estava na penúria. E, portanto,<br />

para mim era: ou ficar deputado ou<br />

cair num risco de miséria próxima.<br />

Eu sempre numa luta medonha<br />

para sobrenadar.<br />

Ao mesmo tempo em que isso se<br />

dava, eu começava a perceber na Assembleia<br />

Constituinte manejos para<br />

reduzir nosso mandato de deputado<br />

de quatro anos, como era normal,<br />

para um só. Portanto, aquele espaço<br />

cômodo em que eu teria um ordenado<br />

bom, garantido, para procurar<br />

um emprego ou então subir a um<br />

posto mais alto na política, isso, de<br />

repente se cortava! Eu comecei a ter<br />

preocupações, porque não via saída<br />

para essa situação. Por outro lado,<br />

percebia ser uma coincidência permitida<br />

e querida pela Providência.<br />

Meticulosa e árdua batalha<br />

para manter o desapego<br />

Deus exigia de mim um desapego<br />

duríssimo. Não era a situação de<br />

um homem que tem o chão firme debaixo<br />

dos pés e desiste de uma coisa<br />

melhor. Era aceitar, se fosse preciso,<br />

a vergonha de deixar de ser deputado<br />

e rumar para um fracasso, para<br />

uma catástrofe, passar ao grau zero.<br />

Eu percebia bem a dificuldade da<br />

minha situação.<br />

Porque para eu ser advogado, advogaria<br />

de acordo com a Doutrina<br />

Católica e teria muito poucos clientes.<br />

Ora, não sendo advogado, o que<br />

eu seria? Uma situação dificílima.<br />

Pois bem, eu sustentava ainda<br />

uma batalha interior que não era<br />

tanto contra um rugido da vaidade,<br />

mas era uma luta meticulosa, de todos<br />

os momentos, contra uma pluralidade<br />

de formas de vaidade que tentavam<br />

pegar-me a todo instante. Um<br />

pouco que cedesse, entraria em minha<br />

alma o apego, e dificilmente eu<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Acima,<br />

Governador<br />

Armando de<br />

Salles Oliveira.<br />

À esquerda,<br />

prédio da<br />

Faculdade<br />

de Direito de<br />

São Paulo<br />

17


Liga Eleitoral Católica<br />

Flávio Lourenço<br />

teria forças necessárias para enfrentar<br />

a hipótese de uma miséria.<br />

Ora, eu percebia que, a qualquer<br />

momento, poderia acontecer alguma<br />

crise política, uma revolução, por onde,<br />

de repente, meu mandato cessasse.<br />

Poderia receber um ultimato: “Ou<br />

você se vende ao adversário, ou nas<br />

próximas eleições não será reeleito.”<br />

A pergunta aguda era esta: “Você<br />

terá ou não coragem de aceitar tudo<br />

e não ficar um homem que abandone<br />

a Causa Católica para ser um mero<br />

político?” Era a alternativa.<br />

Eu deveria tomar uma firme resolução.<br />

Aliás, o grosso de minha preparação<br />

para deputado foi esta batalha<br />

para conservar o desapego interior,<br />

o qual começou a ser posto à<br />

prova logo que eu cheguei ao Rio de<br />

Janeiro.<br />

Pavorosa e inexplicável<br />

nevralgia<br />

Um pormenor prosaico e concreto<br />

veio amargurar-me ainda mais nesse<br />

período de dissabores e preocupações,<br />

de cercos de toda ordem.<br />

Como eu era pessoa muito saudável,<br />

tinha um sono regular; era só<br />

deitar-me que dormia, e com abundância,<br />

a noite inteira e pela manhã<br />

adentro, o quanto eu quisesse. Isso<br />

me ajudava a repousar e a carregar o<br />

fardo da vida.<br />

Ora, começou-me a atacar uma série<br />

de nevralgias horríveis, durante a<br />

noite, do lado direito do rosto; começava<br />

pelos dentes e se tornava aguda<br />

quando se fixava à maneira de um<br />

prego metido dentro do osso da articulação.<br />

Eu acordava, sentava-me na<br />

cama, punha dois travesseiros para<br />

aguentarem o peso de minha cabeça,<br />

e ficava horas debruçado sobre eles,<br />

ou andando de um lado para outro,<br />

sem conseguir dormir.<br />

Fui ao dentista, não era nada. Fui a<br />

médicos, suspeitas: “Câncer no cérebro.”<br />

Não era brincadeira essa perspectiva.<br />

Recomendaram-me que tirasse<br />

radiografias do crânio. Graças a<br />

Deus, estava tudo perfeito, não tinha<br />

Jó escarnecido por sua família - Museu Federic Marés, Barcelona<br />

nada. Ninguém sabia o que era, mas<br />

eu sabia que doía barbaramente.<br />

Não havia analgésicos bons como<br />

hoje; eu tomava uma homeopatia,<br />

cujo formato era de uma bola vermelha,<br />

chamada Paullinia sorbilis, a<br />

qual não me fazia efeito algum.<br />

O tempo passava, até que o Sol esfuziante<br />

do Rio de Janeiro começava<br />

a entrar pelas frestas da veneziana; a<br />

rua se movia, o dia para todo mundo<br />

nascia e eu ali, naquela dor, e ao mesmo<br />

tempo, naquela preocupação. Os<br />

problemas eram um cravo no espírito;<br />

aquela dor, um cravo na carne.<br />

No final adormecia um pouco, tinha<br />

umas duas horas para dormir e<br />

sair correndo para o encontro com<br />

os deputados, no qual se preparava<br />

a reunião da tarde. Eu não dormia<br />

quase nada.<br />

Era tudo que caía por cima de<br />

mim. Uma indisposição física violenta,<br />

sobre os incômodos morais gravíssimos<br />

como eram aqueles nos quais<br />

eu me encontrava e que me tornavam<br />

a vida difícil, uma coisa tremenda!<br />

Dissolução da Liga<br />

Eleitoral Católica<br />

Ora, o cerco se definiu ainda mais.<br />

Um dia eu estava no meu hotel<br />

no Rio de Janeiro, era um domingo<br />

e não me lembro por que não tinha<br />

ido a São Paulo. Tocou o telefone interno<br />

e disseram-me que o Sr. Wagner<br />

Dutra, secretário do Alceu, estava<br />

ali e queria falar comigo.<br />

Eu desci, entramos numa das saletas<br />

do hotel, começamos a conversar.<br />

Pensei que ele fosse transmitir<br />

algum recado do Tristão, mas a conversa<br />

foi se espichando, num regime<br />

de certa liberdade, entre vários assuntos.<br />

Eu percebi que ele queria que eu<br />

tratasse a respeito de algo, mas eu<br />

não tinha o que tratar com ele; não<br />

tinha confiança nele. Em certo momento,<br />

ele me olhou bem de frente,<br />

dentro dos olhos, e me disse:<br />

18


— <strong>Plinio</strong> – ele era um<br />

homem mais ou menos<br />

de minha idade – qual vai<br />

ser seu futuro?<br />

— O futuro de qualquer<br />

filho de Deus. Eu<br />

pretendo viver.<br />

— Você não tem planos?<br />

O que você pretende<br />

fazer de sua vida, depois<br />

que deixar de ser deputado?<br />

Ora, isso é uma conversa<br />

que se faz entre amigos.<br />

Mas entre pessoas que se<br />

conhecem por alto, perguntar<br />

quais são os planos<br />

econômicos de futuro, logo<br />

de uma vez, era uma<br />

pergunta muito esquisita,<br />

que não se fazia. Eu dei<br />

uma resposta evasiva, dando<br />

a impressão de um homem<br />

despreocupado do<br />

ponto de vista econômico.<br />

O que não era verdade, eu<br />

estava preocupadíssimo.<br />

Ele me disse:<br />

— Você sabe que a<br />

LEC não vai se reconstituir?<br />

Era o primeiro ruído que me chegava<br />

aos ouvidos. Eu disse:<br />

— Ah, sim?<br />

— Para as próximas eleições acabou-se<br />

a Liga Eleitoral Católica.<br />

O Episcopado está satisfeito com<br />

o serviço que ela prestou; isso já ficou<br />

para o passado. Agora o regime<br />

é dos partidos políticos, a Igreja<br />

não tem mais nada a querer da política.<br />

Quem quiser ser deputado deve<br />

se incorporar a um partido político,<br />

não há outra saída.<br />

Quando saiu esta resposta, vi que<br />

ele tinha tratado do ponto que o levara<br />

lá. Por iniciativa própria? Por ordem<br />

de terceiro? Eu nunca o soube.<br />

Fingi a maior indiferença. Ele levantou-se,<br />

dali a pouco, despediu-se:<br />

— Bom, vou deixá-lo em paz. Até<br />

logo!<br />

Igreja de Santo Inácio<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Fui amável, acompanhei-o até a<br />

porta do hotel, nos despedimos e<br />

nunca mais conversamos sobre isso.<br />

E assim começava a se avolumar<br />

em torno de mim o zum-zum de que<br />

não haveria candidatos da LEC nas<br />

próximas eleições, pois ela não mais<br />

atuaria. Eu percebi logo que era a<br />

degola, porque de duas, uma: ou eu<br />

deixava de ser um líder católico para<br />

ser um líder político – o que nas circunstâncias<br />

específicas daquele tempo<br />

equivaleria a perder a confiança<br />

dos verdadeiros católicos – ou tinha<br />

que cair fora da política.<br />

E assim as circunstâncias se deram,<br />

um pouco à Jó. Prejuízos financeiros,<br />

perda de cargos, fiquei ameaçado<br />

por um fio de ficar sem ter com<br />

o que viver. Continuei para a frente<br />

sem, em nenhum momento, arrepender-me<br />

ou achar a vida<br />

triste, vazia. Por quê?<br />

Porque eu tinha diante<br />

dos olhos o meu futuro: o<br />

Reino de Maria e depois<br />

o Céu!<br />

Nossa Senhora<br />

das Vitórias<br />

Eu ia com frequência<br />

rezar à noite na Igreja<br />

de Santo Inácio, que ficava<br />

aberta por uma entrada<br />

que dava para o Colégio.<br />

Havia, num altar lateral,<br />

se não me engano do<br />

lado direito, uma bonita<br />

imagem de Nossa Senhora<br />

das Vitórias. Eu recebi<br />

muitas graças ali, voltando-me<br />

para aquela imagem;<br />

rezava muito diante<br />

dela.<br />

Eu estava num período<br />

muito atormentado,<br />

vendo a minha liquidação.<br />

Coisas cheirando a<br />

recado e conspiração em<br />

torno de mim. Depois de<br />

uma avenida aberta, eu<br />

estava vendo um funil, e eu me atormentava<br />

muito com isso. No entanto,<br />

acendiam-se minhas esperanças,<br />

ficava alentado rezando a Nossa Senhora<br />

das Vitórias.<br />

Nesta encruzilhada, o que<br />

pedir e como confiar?<br />

Toda a minha situação começou<br />

a degringolar e não dependia da minha<br />

vontade. Eram coisas que outros<br />

faziam às minhas costas, sem<br />

meu conhecimento, e que ocasionavam<br />

prejuízos, conspirações contra<br />

mim. Eu tinha certeza de que Nossa<br />

Senhora queria que as minhas obras<br />

fossem bem-sucedidas. No entanto,<br />

por mais que aplicasse força de vontade,<br />

não havia meio de vencer, porque<br />

tudo me escapava das mãos!<br />

19


Liga Eleitoral Católica<br />

Eram dias de muita aflição. E eu<br />

estava muito perplexo e preocupado,<br />

porque não era só este ou aquele caso,<br />

mas era toda uma atitude perante<br />

a vida que estava posta em dúvida:<br />

“Como é? O que mais é preciso fazer<br />

para ter resultado nesta coisa tão<br />

complicada que se chama vida?!”<br />

Por vezes eu pensava: “Devo confiar<br />

em Nossa Senhora.” Mas vinha-<br />

-me uma dúvida: eu já havia pedido<br />

a Ela graças espirituais, sendo atendido<br />

com uma bondade sem nome.<br />

Graças materiais nunca havia pedido,<br />

porque até então não precisava:<br />

tinha uma saúde de ferro, uma<br />

situação econômica despreocupada.<br />

É verdade que pedia para passar<br />

nos meus exames e, graças a Ela, eu<br />

passava. Mas eu me preparava muito<br />

bem, estudava e ia armado até os<br />

dentes, de modo a ser algo natural<br />

que eu fosse aprovado. Tive uma vida<br />

de estudante muito normal.<br />

Mas, quando me vi necessitado<br />

de coisas práticas e concretas, não<br />

concernentes à vida espiritual, me<br />

veio esta dúvida: “Devo pedir coisas<br />

materiais das quais estou precisando…?<br />

A santificação eu sei que<br />

Ela deseja me conceder. Ela é minha<br />

Mãe, sabe que eu quero, Ela<br />

quer que eu queira; eu peço, logo,<br />

Ela dará. É compreensível, vou confiar<br />

n’Ela.”<br />

Ora, eu me perguntava: “Quem<br />

sabe se Nossa Senhora não quer me<br />

sujeitar à pobreza, como fez com<br />

tantos Santos? Ou quer que eu sofra<br />

nevralgias até o fim de minha vida?<br />

Quem sabe se Ela quer que eu leve<br />

a vida de um mendigo? Está no seu<br />

direito permitir. Eu estou no direito<br />

de pedir? Se eu pedir sujeitando-me<br />

ao que seja de acordo com o que Ela<br />

queira e não de acordo com minha<br />

vontade, será uma oração perfeita,<br />

devo fazê-la. Mas, como eu não sei o<br />

que Ela quer, acabo por não saber se<br />

receberei o que peço.”<br />

Eu estava numa encruzilhada de<br />

meus caminhos.<br />

Numa compra fortuita,<br />

um livro providencial<br />

Havia, próxima ao Hotel Glória<br />

onde eu estava hospedado nesse<br />

tempo no Rio de Janeiro, uma igreja<br />

dedicada ao Sagrado Coração de Jesus,<br />

na qual comungava todos os dias<br />

pela manhã. O vigário que tomava<br />

conta da igreja era amabilíssimo, um<br />

bom sacerdote, do clero ainda pré-<br />

-conciliar, correto, amável, distinto,<br />

puro.<br />

Devido ao tormento das nevralgias<br />

às noites, eu tinha dificuldade<br />

em acordar tão cedo quanto me seria<br />

necessário para alcançar o horário<br />

das Missas. Assim que podia, tomava<br />

o táxi, descia correndo à igreja<br />

e ainda alcançava esse sacerdote,<br />

o qual, parece-me, ficava à minha espera.<br />

As Missas já tinham sido rezadas<br />

e o movimento da igreja diminuído;<br />

era um bairro de gente idosa<br />

que comungava bem cedinho e voltava<br />

para casa.<br />

Quando o padre me via chegar,<br />

vinha logo e me ministrava a Comunhão.<br />

Eu era muito grato a ele, nos<br />

Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />

saudávamos sempre de modo muito<br />

amável e ele não levava a mal que<br />

eu não me detivesse para conversar<br />

com ele, porque sabia que eu tinha<br />

reunião de deputados da bancada<br />

paulista logo em seguida.<br />

Um dia, cheguei à igreja e esse sacerdote<br />

estava à minha espera, na<br />

entrada; aproximou-se de mim e disse<br />

com amabilidade: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, nós<br />

estamos organizando uma feira beneficente<br />

de livros piedosos aqui na<br />

sacristia. Se o senhor quiser examinar<br />

a exposição, é uma boa ocasião<br />

para comprar algum bom livro católico<br />

que lhe agrade.”<br />

Era um conselho de um bom padre<br />

para um fiel, uma “boa ocasião<br />

para comprar um bom livro católico.”<br />

Mas era também um pedido, o<br />

que equivalia a dizer: “Nós temos<br />

sido tão amigos do senhor, seja um<br />

pouco amigo nosso; o senhor não<br />

quer ajudar nossa Paróquia comprando<br />

alguns livros?”<br />

Ele supunha que eu fosse um homem<br />

rico, sendo natural que eu ajudasse<br />

bem. Mas eu estava já com os<br />

bolsos vazios… Esses livros eram<br />

Tomas T.<br />

20


Rafael S.<br />

vendidos em benefício da Paróquia,<br />

e entendi que eu, comungando sempre<br />

lá, devendo tantos favores, não<br />

podia recusar e nem queria, porque<br />

desejava realmente colaborar com<br />

essa forma de bem; era um modo de<br />

retribuir a gentileza.<br />

Comunguei. Terminada a ação de<br />

graças, fui correndo à sacristia; lembro-me<br />

ainda dela, com vários livros<br />

expostos. Não encontrei nenhum<br />

que me interessasse, mas eu estava<br />

disposto a pegar dois ou três livros<br />

a esmo. Deparei-me com um chamado<br />

O Livro da Confiança. Olhei<br />

um pouco, hesitei muito e pensei:<br />

“A confiança! O que é? Não sei bem.<br />

Como vou pegar coisas de piedade<br />

como esta, meio indefinidas, que<br />

não são como as que eu gosto, raciocinadas,<br />

lógicas e sólidas, mas algo<br />

sentimental? A capa me dava essa<br />

impressão... Preciso contentar o bom<br />

padre, eu vou comprá-lo.”<br />

Eu queria escolher pelo menos<br />

dois livros. Peguei este livro da Confiança<br />

e, por uma coincidência, era<br />

mais barato do que os demais, e um<br />

outro do qual já não me lembro. Paguei<br />

às pressas, meti-me no automóvel<br />

e fui correndo para o prédio<br />

da bancada paulista, com os livros<br />

na mão. Assisti à reunião e, à noite,<br />

chegando ao hotel para descansar,<br />

deixei-os sobre um móvel de meu<br />

quarto e toquei a vida.<br />

O bálsamo da confiança<br />

Certo dia, cheguei ao hotel em<br />

meio à amargura das múltiplas provações<br />

que eu enfrentava naquele<br />

tempo, atormentado por preocupações<br />

e mal-estar físico, amargurado,<br />

desorientado e cheio de dúvidas,<br />

sem saber a via que Nossa Senhora<br />

queria de mim. Resolvi abrir O Livro<br />

da Confiança, comecei a lê-lo.<br />

Com letras grandes, de uma leitura<br />

muito fácil, li as primeiras palavras:<br />

“Voz de Cristo, voz misteriosa<br />

da graça que ressoais no silêncio<br />

dos corações, vós murmurais no fundo<br />

das nossas consciências palavras<br />

de doçura e de paz.”<br />

Já naquelas primeiras magníficas<br />

palavras, das quais tenho lembrança<br />

como se eu as tivesse lido hoje cedo,<br />

senti no interior de minha alma<br />

uma tranquilidade, algo que baixava<br />

sobre mim à maneira de um lenitivo,<br />

que me sossegava. É impróprio dizer<br />

que anestesiava, mas fazia cessar as<br />

dores, trazendo um benefício enorme<br />

à alma.<br />

Era uma graça, que me dava a impressão<br />

curiosa como se uma atmosfera<br />

dulcíssima, cheia de afeto penetrasse<br />

em mim e me dissesse: “‘Voz<br />

de Cristo, voz misteriosa da graça…’<br />

Repita, meu filho: ...vós murmurais<br />

em minha alma palavras de doçura e<br />

de paz.” E aquilo tudo me dava muita<br />

esperança de que aqueles fantasmas<br />

de perspectivas e de preocupações<br />

futuras iriam desaparecer. Nosso<br />

Senhor e Nossa Senhora me ajudariam,<br />

resolveriam bem os problemas<br />

que tanto me amarguravam. Foi<br />

um conforto para mim extraordinário,<br />

que me distendeu de um modo<br />

maravilhoso e dulcíssimo.<br />

E compreendi com perfeição que<br />

aquele livro me faria muito bem.<br />

Ora, causou-me uma impressão singular<br />

este fato concreto: nunca, mas<br />

absolutamente nunca, ninguém me<br />

havia falado sobre a confiança como<br />

sendo uma virtude que o católico deve<br />

praticar. Nunca! Não tinha ideia<br />

disso, embora entendesse que confiar<br />

em Deus fosse uma coisa boa.<br />

Lembro-me de que o coro da Paróquia<br />

de Santa Cecília, da qual fui<br />

congregado mariano, cantava em latim<br />

uma canção, cujo início era: “Beatus<br />

homo qui confidunt in Domino<br />

– Bem-aventurado o homem que<br />

confia no Senhor.” Eu acompanhava<br />

com gosto, porque me dizia algo à<br />

alma, mas nunca me tinha aprofundado.<br />

Lendo o livro, entendi a doutrina<br />

completa a respeito da confiança.<br />

Eu li esse livro não sei quantas vezes!<br />

Naquele tempo em que eu viajava<br />

muito entre Rio e São Paulo, eu<br />

o levava sempre em minha mala, de<br />

maneira que, estando em um lugar<br />

ou noutro, sempre o tinha a meu alcance,<br />

e fiz muito uso dele. v<br />

21


Liga Eleitoral Católica<br />

VII<br />

Heroica luta interior<br />

em meio às<br />

glórias do prestígio<br />

Para quem confia em Nossa Senhora, não há inimigo que não<br />

possa ser vencido. Com o socorro d’Ela, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> haveria de<br />

atravessar incólume a decisiva luta contra o amor-próprio. Encerrada<br />

a Constituinte, uma nova fase se abria na vida de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Afinal, houve a promulgação<br />

da nova Constituição.<br />

Todos deveríamos comparecer<br />

ao encerramento da Constituinte,<br />

para assinar a Carta Magna.<br />

Honras militares,<br />

entusiasmo e luta<br />

Saí do meu hotel de fraque e cartola,<br />

segundo as exigências da bancada<br />

paulista; tomei um táxi e rumei<br />

ao Palácio Tiradentes. Quando o automóvel<br />

virou da Avenida Rio Branco<br />

para a Rua da Assembleia, vi com<br />

encanto tropas de soldados armados,<br />

Guilherme Santos(CC3.0)<br />

Tropas em frente ao Palácio Tiradentes durante a Constituinte de 1934<br />

22


Cartaz com os Constituintes. Em destaque, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

impecavelmente dispostos em fileiras,<br />

para prestar honras ao Presidente<br />

da República, aos ministros e aos<br />

deputados. Ocupavam uma longa<br />

extensão de quatro quarteirões.<br />

Reconheceram-me – não sei como,<br />

porque deputado não usava insígnia,<br />

a única que eu tinha era o distintivo<br />

de congregado mariano – e o<br />

oficial comandante bradou à tropa:<br />

“Apresentar armas!” Todos os soldados<br />

apresentaram os fuzis em minha<br />

homenagem. Era a primeira vez na<br />

vida que eu recebia honras militares!<br />

Meu chauffeur estava inebriado<br />

com a cena. Eu, por temperamento<br />

e feitio, fui sempre muito militarista,<br />

ultrassensível à pompa militar<br />

– abaixo da eclesiástica – por ser das<br />

honras que mais fazem sentir ao homem<br />

sua grandeza; é a última forma<br />

da glória. Eu achei aquilo uma verdadeira<br />

beleza!<br />

Mas foi o primeiro choque. Confesso<br />

ter sido essa a maior tentação<br />

de orgulho e vaidade que senti na vida.<br />

Era por inteiro a taça do prestígio<br />

que se me apresentava mais uma<br />

vez, à maneira de tentação, para me<br />

embriagar com aquilo: “Não há profissão<br />

à qual se prestem tantas honras<br />

militares como a de político, eis<br />

a vantagem de ser deputado! Consagrarei<br />

minha vida à política.”<br />

Era uma tentação de amor-próprio<br />

muito violenta, à qual tive que<br />

resistir com firmeza. A par disso,<br />

veio-me a seguinte ideia, soprada pelo<br />

demônio: “Isto que é tão gostoso,<br />

poderei ter à minha disposição a vida<br />

inteira se eu for apenas um deputado<br />

federal, várias vezes seguidas, e<br />

assim alegrar-me e fruir a satisfação<br />

de uma carreira dessas. Agarrar-me-<br />

-ei a este cargo de todos os modos,<br />

sem abandonar o serviço da Igreja, e<br />

terei esta gostosura da vida, que afinal<br />

de contas, é legítima. Ficarei deputado!”<br />

O meu automóvel fluía devagar<br />

diante daquela tropa em continência,<br />

e eu, por gentileza, via-me obrigado<br />

a dar alguma resposta, levantando<br />

um pouquinho a cartola, ao<br />

longo do trajeto, até chegar ao Palácio<br />

Tiradentes.<br />

Quando me subia aquele aroma<br />

de importância ao espírito, lembrei-<br />

-me de D. Chautard. Foi o meu Anjo<br />

da Guarda que me fez recordar:<br />

“Não! Tenho de fazer o contrário! Se<br />

for preciso sacrificar minha vida política<br />

a qualquer momento, eu a sacrificarei<br />

para viver pela Igreja Católica!”<br />

E uma luta travava-se em meu interior:<br />

“Se você optar por esta carreira,<br />

perderá sua alma e se tornará<br />

um apóstolo comediante e bobo.<br />

Um homem que se pretende apóstolo<br />

e se deixa dominar pela vaidade, é<br />

um apóstolo nulo!”<br />

Para não me deixar arrastar, desviei<br />

o olhar daquela tropa armada,<br />

pedi o auxílio de Nossa Senhora, fiz<br />

o propósito de renunciar a tudo, desde<br />

que não fosse necessário para a<br />

Causa Católica. Eu pensava: “Desapegar-me,<br />

desapegar-me, desapegar-me<br />

de tudo!”<br />

Era preciso ter equilíbrio de alma.<br />

Eu reputaria um defeito moral ainda<br />

mais grave ser insensível às honras<br />

militares, belas em si. Era preciso<br />

apreciar a cena e dizer: “Esta taça<br />

é ótima, porém não para os meus lábios,<br />

porque eu renunciei a ela! Percorrerei<br />

a fileira de ponta a ponta<br />

admirando o pulchrum, mas fazendo<br />

abstração de que é para mim, e<br />

quando eu descer ao Palácio Tiradentes,<br />

não pensarei mais na cena.”<br />

Graças a Nossa Senhora, dominei-me<br />

e não dei nenhum consentimento.<br />

Quando meu automóvel chegou<br />

à Constituinte, a batalha estava<br />

ganha!<br />

Nunca ceder à vaidade<br />

Com efeito, apenas tenho relembrado<br />

o episódio uma ou outra<br />

vez, na necessidade de contá-lo para<br />

compreenderem o quanto se deve<br />

ser meticuloso na luta e nunca consentir<br />

num movimento de vaidade.<br />

Nunca! Por menor que seja: “Não,<br />

não e não!”<br />

Nas ocasiões mais inebriantes de<br />

orgulho, trata-se de conservar um<br />

ponto átono, de maneira a poder<br />

sair de uma conferência com cinco<br />

mil pessoas para a cama, por exemplo,<br />

e dormir tranquilo, sem a menor<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

23


Liga Eleitoral Católica<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

febricitação. Elogiem quanto queiram,<br />

batam as palmas que entenderem,<br />

não se deve pensar naquilo, como<br />

não se pensa num tema contra a<br />

castidade!<br />

Ora, se eu não tivesse lido com<br />

seriedade o livro de D. Chautard,<br />

A alma de todo apostolado, eu estaria<br />

num grave risco e provavelmente<br />

não resistiria àquelas tentações, porque<br />

não compreenderia a doutrina<br />

do verdadeiro apóstolo. Eu estaria<br />

pronto para todas as concessões em<br />

matéria de orgulho e não sei que resistência<br />

teria oposto aos convites de<br />

pertencer a partidos políticos. Como<br />

eu me teria aviltado! Esta é a importância<br />

de uma boa leitura espiritual.<br />

Nossa Senhora quis servir-Se desse<br />

livro para defender-me contra as<br />

jogadas que o demônio preparava no<br />

meu caminho, com uma série de oferecimentos<br />

que me teriam talvez arrastado,<br />

se eu tivesse fraquejado naquele<br />

momento. Para ser desapegado,<br />

tinha que começar ali, naquela<br />

hora, e ser irredutível até o fim. Uma<br />

pequena concessão me teria levado<br />

pelo despenhadeiro abaixo e eu não<br />

teria tido coragem de fazer renúncias<br />

e aceitar os desprestígios que<br />

me aguardavam ao longo de minha<br />

caminhada. Tratava-se de não conceder<br />

nada ou perder a própria alma.<br />

No reverso da medalha, eu pensava<br />

com os meus botões: “Individualmente,<br />

para mim, <strong>Plinio</strong> Corrêa de<br />

Oliveira, que abacaxi esta vida! A toda<br />

hora me vem aos lábios um licor<br />

que, como todo homem, tenho vontade<br />

de bebê-lo, e em todas as ocasiões<br />

devo recusá-lo porque para minha<br />

alma é um veneno. Não seria<br />

melhor acabar com isso?” Debaixo<br />

deste ponto de vista, eu tive alívio<br />

quando deixei de ser deputado,<br />

porque ao menos era uma provação<br />

constante que se afastava de mim.<br />

Isso é uma noção de como foi essa<br />

temporada de dentro de mim mesmo,<br />

como a situação foi vivida por<br />

mim. Essa foi minha luta contra o<br />

orgulho, Nossa Senhora me deu a<br />

graça e eu não cedi. Era o fim da batalha<br />

do prestígio nesse período de<br />

minha vida.<br />

Pompa e solenidade no<br />

encerramento da Constituinte<br />

O Palácio Tiradentes estava todo<br />

enfeitado com flores, festões; havia<br />

uma banda que executou o Hino Nacional,<br />

o corpo diplomático presente,<br />

Deputados assinando<br />

a Carta Magna<br />

altas autoridades, aquele pessoal todo<br />

alinhado, teso, com a cartola. Era<br />

o símbolo da antiga ordem de coisas.<br />

O carrilhão da vizinha Igreja São José<br />

tocava, bem como o carrilhão da Catedral.<br />

Em certo momento, no meio<br />

daquela escuridão, iluminada apenas<br />

por holofotes que percorriam aspectos<br />

da Câmara, entrou o Getúlio, pequenininho,<br />

vestido de fraque. Assumiu<br />

o lugar na mesa da presidência<br />

para assinar a Constituição; tomou<br />

poses para tirar fotografias a fim de<br />

serem divulgadas pelos meios de comunicação<br />

de então.<br />

A nossa bancada – constituída<br />

quase só por membros de São Paulo<br />

antigo – era oficialmente antigetulista<br />

até o fundo da alma. Havia alguns<br />

deputados da oposição, entre<br />

os quais o Zoroastro Gouveia e um<br />

deputado, pastor protestante, ex-salesiano,<br />

chamado Guaracy da Silveira:<br />

mole, untuoso, filaucioso e antipático<br />

quanto se possa ser. Todo o<br />

resto da Constituinte era getulista.<br />

Os deputados assinaram a Constituição,<br />

alguns tinham canetas históricas,<br />

do avô que tinha assinado não<br />

sei que documento, ou do pai que tinha<br />

feito o uso para outra situação<br />

importante.<br />

24


O Getúlio fez um discurso para<br />

encerrar a Constituinte; estava com<br />

uma fisionomia cínica e displicente<br />

dentro da cerimônia, como quem<br />

diz: “Dentro em pouco violarei essa<br />

Constituição…” De fato, ela durou<br />

apenas três anos.<br />

Nesse dia, eu recebi um telegrama<br />

de D. Duarte e de todos os Bispos da<br />

Província Eclesiástica de São Paulo<br />

agradecendo-me, em termos calorosos,<br />

pelo excelente serviço prestado<br />

na Constituinte. Eu julguei que seria<br />

mais perfeito, do ponto de vista da<br />

vida espiritual, não os publicar, mas<br />

guardá-los, porque poderiam incentivar<br />

algum orgulho, embora tivesse<br />

sido utilíssimo para a nossa causa<br />

que eu os tornasse público.<br />

Carta Magna assinada<br />

em 1934. Em destaque,<br />

assinatura de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Antes de a cerimônia chegar ao<br />

seu fim, retirei-me, guardei meu fraque<br />

e minha cartola, embarquei para<br />

São Paulo naquela mesma noite.<br />

Para mim, a Constituinte estava acabada,<br />

era um caroço que não tinha<br />

mais significado.<br />

De volta a São Paulo,<br />

reencontro com Dona Lucilia<br />

Durante todo o período de deputado,<br />

eu passava a semana no Rio de Janeiro,<br />

tomava o trem sexta-feira à noite<br />

– não havia aviões circulando naquele<br />

tempo – e chegava a São Paulo<br />

sábado cedo. Comungava e ia para casa,<br />

a fim de passar um exíguo tempo<br />

com minha mãe, até domingo à noite.<br />

Terminado meu mandato, enviei logo<br />

a quase totalidade de meus pertences<br />

a São Paulo, pela Central do Brasil,<br />

dois ou três dias antes de minha partida.<br />

Eu queria ver sair do Rio todos os<br />

caixotes com os objetos que eu não podia<br />

perder, livros, papéis, roupas. Deixei<br />

comigo apenas o necessário.<br />

De retorno a São Paulo, encontrei-me<br />

com Dona Lucilia já instalada<br />

numa casa na Rua Marquês<br />

de Itu, no Bairro de Higienópolis.<br />

Sempre que eu chegava de viagem,<br />

tinha uma espécie de sofreguidão<br />

por encontrá-la e sentir o eflúvio<br />

de sua companhia, porque para<br />

mim São Paulo era mamãe. Encontrar-me<br />

com ela, estar com ela, ver<br />

como estava, e – por que não? – fazer-me<br />

visto por ela. Eu gostava de<br />

ver o olhar dela me querendo bem.<br />

Ela me fez muita festa, demonstrando<br />

todas as formas de agrado<br />

possíveis. Em dado momento, ela me<br />

contou: “Filhão, eu fiquei tão contente<br />

com os primeiros caixotes que chegaram,<br />

que eu, já idosa como estou –<br />

ela estava próxima aos sessenta anos<br />

– fiz uma infantilidade: quando a empresa<br />

de transportes trouxe-os e deixou-os<br />

no meio da casa, eu, não tendo<br />

força para removê-los, beijei cada<br />

um de contentamento, porque percebi<br />

que era você que estava começando<br />

a voltar!”<br />

Foi então que eu percebi, pela<br />

alegria dela, o isolamento no qual<br />

se encontrava.<br />

Começava para mim uma outra<br />

fase. A Constituinte havia se encerrado<br />

em condições desfavoráveis<br />

para mim, pois todos os deputados<br />

getulistas votaram a favor de<br />

sua dissolução em seis meses de<br />

existência. Restaram-me apenas<br />

alguns meses de mandato parlamentar,<br />

e eu precisava cuidar de<br />

minha vida, instalar minha casa,<br />

arranjar minhas coisas, até começar<br />

as negociações para a eleição<br />

de uma Câmara Federal, no Senado<br />

Federal.<br />

v<br />

25


Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />

bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />

Santos Domingos Nguyên Van Hanh<br />

(Diêu) e Bernardo Vu Van Duê,<br />

presbíteros e mártires (†1838). No<br />

tempo do imperador Minh Mang, foram<br />

decapitados por sua fé em Cristo,<br />

em Nam Dinh, Tonquim, Vietnã.<br />

2. Santa Centola, mártir (†data<br />

inc.). Venerada em Burgos, Espanha.<br />

São Justino Maria Russolíllo,<br />

presbítero (†1955). Em 1920, fundou<br />

a Sociedade das Divinas Vocações,<br />

comumente chamados Padres<br />

Vocacionistas, em Pianura, Nápoles,<br />

na Itália.<br />

3. Beato Francisco Bandrés Sánchez,<br />

presbítero e mártir (†1936). Sacerdote<br />

salesiano. Durante a perseguição<br />

religiosa desencadeada na<br />

Guerra Civil Espanhola, foi assassinado<br />

no sótão do Hotel Colón.<br />

4. XVIII Domingo do Tempo Comum.<br />

São João Maria Vianney, presbítero<br />

(†1859).<br />

5. Dedicação da Basílica de Santa<br />

Maria Maior.<br />

Santa Centola<br />

dos Santos – ––––––<br />

Santa Nona, mãe de família<br />

(†374). Mãe de São Gregório Nazianzeno.<br />

Teve a honra de converter o marido,<br />

São Gregório o Velho, ao cristianismo.<br />

6. Transfiguração do Senhor.<br />

Santos Justo e Pastor, mártires<br />

(†304). Eram irmãos; ainda crianças,<br />

por serem cristãos, foram degolados<br />

em Alcalá de Henares, Espanha.<br />

7. São Miguel de la Mora, presbítero<br />

e mártir (†1927). Durante a perseguição<br />

religiosa no México, por sua<br />

condição sacerdotal, foi coroado com<br />

o martírio, em Colima.<br />

Beato Vicente, religioso (†1504).<br />

Pertencente à Ordem dos Menores,<br />

tornou-se insigne pela sua humildade<br />

e espírito de profecia.<br />

8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />

(†1221). Fundador da Ordem<br />

dos Pregadores.<br />

Santo Altmano, bispo (†1091). Governou<br />

a diocese de Passau, na Alemanha.<br />

Fundou numerosas comunidades<br />

de clérigos com a regra de Santo Agostinho;<br />

restaurou a disciplina do clero e,<br />

por defender a liberdade da Igreja, foi<br />

expulso da sua sede pelo imperador<br />

Henrique IV, e morreu no exílio.<br />

9. São Bandarido, bispo e abade<br />

(†566). Foi bispo de Soissons, França,<br />

exilado por Clotário I.<br />

10. São Lourenço, diácono e mártir<br />

(†258).<br />

São Blano, bispo (†s. VI). Discípulo<br />

de São Congal, na Irlanda.<br />

11. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Clara de Assis, virgem e fundadora<br />

(†1253).<br />

12. Santa Joana Francisca Frémyot<br />

de Chantal, religiosa (†1641). Depois<br />

da morte do esposo, sob a direção de<br />

São Francisco de Sales, fundou a Ordem<br />

da Visitação de Santa Maria, a<br />

qual dirigiu com sabedoria.<br />

13. Beata Gertrudes de Altenberg,<br />

abadessa (†1297). Ainda criança, foi<br />

oferecida a Deus no mosteiro premonstratense<br />

de Altenberg, no território<br />

de Wetzlar, na Alemanha, por sua<br />

mãe, Santa Isabel, rainha da Hungria.<br />

14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />

presbítero e mártir (†1941).<br />

Santo Antônio Primaldo, mártir<br />

(†1480). Tecelão idoso e intrépido,<br />

exortou a perseverar na fé cerca de<br />

oitocentos católicos que estavam sendo<br />

constrangidos a renegar a verdadeira<br />

religião durante uma incursão<br />

dos soldados otomanos em Otranto,<br />

na Itália meridional. Por terem perseverado,<br />

foram decapitados.<br />

15. Beata Juliana de Busto Arsízio,<br />

virgem (†1501). Proibida de seguir a<br />

via religiosa, viu-se na contingência<br />

de fugir de casa e passou a viver com<br />

a eremita Beata Catarina de Pallanza;<br />

mais tarde ingressou no mosteiro<br />

do Sacro Monte di Varese como irmã<br />

conversa.<br />

16. Beato Simão Bokusai Kyota, catequista<br />

e mártir (†1620). Foi martirizado<br />

de cabeça para baixo, por ordem<br />

do governador Yetsundo, por ódio ao<br />

nome de Cristo, em Kokura, no Japão,<br />

junto com sua esposa Madalena Bokusai<br />

Kyota e outro casal, Tomé Gengoro<br />

e Maria, além do filho Tiago.<br />

São Roque de Montpellier, peregrino<br />

(†c. 1379).<br />

17. Santa Joana Delanoue, virgem<br />

(†1736). Fundadora do Instituto das<br />

Irmãs de Santa Ana da Providência.<br />

18. Solenidade da Assunção de<br />

Nossa Senhora (no Brasil, transferida<br />

do dia 15).<br />

Santo Agapito, mártir (†data inc.).<br />

Martirizado em Palestrina, no Lácio,<br />

região da Itália.<br />

26


––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />

Flávio Lourenço<br />

Martírio de Santo Alexandre de Bérgamo<br />

19. São João Eudes, presbítero<br />

(†1680).<br />

São Bertolfo, abade (†639). Sucessor<br />

de Santo Atala no cenóbio de<br />

Bóbbio, na Ligúria.<br />

20. São Bernardo de Claraval, abade<br />

e Doutor da Igreja (†1153).<br />

Beatos Luís Francisco Le Brun e<br />

Gervásio Brunel, presbíteros e mártires<br />

(†1794). O primeiro foi monge da Congregação<br />

Beneditina de Santo Amaro;<br />

o segundo, prior da Abadia Cisterciense<br />

da Trapa; ambos foram detidos em<br />

condições desumanas durante a Revolução<br />

Francesa, num barco-prisão ancorado<br />

no largo de Rochefort.<br />

21. São Pio X, Papa (†1914).<br />

22. Nossa Senhora Rainha.<br />

São João Wall, presbítero e mártir<br />

(†1679). Pertencia à Ordem dos Frades<br />

Menores; no reinado de Carlos II<br />

da Inglaterra, foi suspenso na forca e<br />

depois esquartejado.<br />

23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />

(†1617).<br />

São Flaviano, bispo (†s. VI). Governou<br />

a diocese de Autun, França.<br />

24. São Bartolomeu, Apóstolo (†s. I).<br />

Beato José Polo Benito, presbítero<br />

e mártir (†1936). Assassinado em<br />

ódio à Igreja, durante a Guerra Civil<br />

Espanhola.<br />

25. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Gregório de Utrecht, abade<br />

(†775). Ainda adolescente, ao conhecer<br />

São Bonifácio, tornou-se seu discípulo<br />

e companheiro nas viagens evangelizadoras<br />

para a conversão da Turíngia<br />

e de Hessen; mais tarde, tornou-se<br />

abade do mosteiro de São Martinho<br />

e formou muitos missionários, como<br />

São Ludgero, o qual escreveria sua vida.<br />

Após o martírio de seu mestre, dirigiu<br />

a missão frísia durante vinte anos<br />

e serviu de administrador da Igreja de<br />

Utrecht, nos Países Baixos.<br />

26. Santo Alexandre de Bérgamo,<br />

mártir (†s. III/IV). Centurião da legião<br />

tebana.<br />

Santa Maria de Jesus Crucificado<br />

(Mariam Baouardy), religiosa († 1878).<br />

Nasceu na Galileia, de pais greco-católicos,<br />

tornando-se órfã muito cedo.<br />

Educada por um tio, aos doze anos foge<br />

para não contrair o matrimônio que lhe<br />

propunham. Por defender a Fé católica,<br />

tem sua garganta cortada por um muçulmano<br />

enfurecido, mas é milagrosamente<br />

curada. Ingressou na Ordem do<br />

Carmo, onde teve uma vida de intensas<br />

graças místicas. Fundou os Carmelos de<br />

Belém e de Nazaré.<br />

27. Santa Mônica, mãe de família<br />

(†387). Por sua fé, lágrimas e orações,<br />

alcançou de Deus a conversão de seu<br />

filho, Santo Agostinho.<br />

São Rufo, mártir (†s. III/IV). Venerado<br />

em Cápua, na Campânia, região<br />

da Itália.<br />

28. Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†430).<br />

Santa Zélia Maria Guerin, mãe de<br />

família (†1877). Mãe de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus.<br />

29. Martírio de São João Batista.<br />

São Sébio, rei e monge (†c. 693).<br />

Rei dos Saxões Orientais. Após trinta<br />

anos de reinado, pressentindo que<br />

a morte se aproximava, abdicou e tomou<br />

o hábito monástico em Londres,<br />

morrendo pouco depois.<br />

30. São Pamáquio, senador (†410).<br />

Procedente da nobre família romana<br />

dos Camilos, devotou grande amizade<br />

a São Jerônimo. Seguindo a carreira<br />

política, ocupou importantes cargos<br />

públicos, tornou-se insigne por sua<br />

generosidade e zelo pela pureza da fé.<br />

Erigiu no Monte Célio a Basílica de<br />

São João e Paulo, dedicada aos dois<br />

soldados romanos martirizados na<br />

perseguição de Juliano, o Apóstata.<br />

Beato Estêvão Nehmé (José Nehmé),<br />

religioso (†1938). Pertencia à<br />

Ordem Maronita Libanesa.<br />

31. Beato André de Borgo Sansepolcro,<br />

presbítero (†1315). Da Ordem<br />

dos Servos de Maria, preclaro por sua<br />

austeridade e vida contemplativa.<br />

São João Eudes<br />

Gabriel K.<br />

27


Liga Eleitoral Católica<br />

VIII<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Fidelidade incólume<br />

ao ideal<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> preferiu sofrer uma derrocada<br />

em sua carreira a deixar de ter uma<br />

dedicação e um compromisso exclusivos<br />

para com a Igreja e a Civilização Cristã.<br />

Muitos convites foram recebidos por ele,<br />

mas com honra soube menosprezá-los.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

De acordo com o mecanismo<br />

da organização democrático-representativa<br />

e federal no Brasil, terminada<br />

a Constituinte, o eleitorado deveria<br />

ser convocado para a eleição de uma<br />

Câmara Federal e outra Estadual.<br />

Os políticos se empenharam nisso.<br />

Restava-me a dúvida: do ponto de<br />

vista do apostolado e para o bem da<br />

Causa Católica, seria mais útil minha<br />

liderança no Movimento Católico ou<br />

a continuação de minha carreira política?<br />

Optando por esta última, eu<br />

poderia chegar a ser senador e participar<br />

de vários atos do Governo, nos<br />

quais a Igreja teria interesse. De outro<br />

lado, conquistando esses cargos,<br />

poderia consolidar minha liderança,<br />

da qual desejava fazer uma obra<br />

que se espraiasse pelo Brasil e influísse<br />

nos acontecimentos; algo do gênero<br />

da TFP, que ainda não existia e<br />

a qual eu nem saberia explicitar naquele<br />

tempo.<br />

Ora, Nossa Senhora havia disposto<br />

que sofrimentos colaterais muito<br />

pungentes chovessem sobre mim<br />

nesse período.<br />

Propostas do Arcebispo<br />

Certo dia, D. Duarte chamou-me<br />

e disse:<br />

— Tenho a dar-lhe um duplo aviso:<br />

estou muito contente com seu excelente<br />

serviço, mas devo dizer-lhe<br />

que a Liga Eleitoral Católica não<br />

atuará mais, porque já obteve tudo<br />

quanto dela se esperava, e, portanto,<br />

não apresentará candidatos para as<br />

próximas eleições. Proponho a vossemecê<br />

alistar-se em algum dos dois<br />

grandes partidos de São Paulo, com<br />

o qual mais simpatize.<br />

Um era o Partido Constitucionalista,<br />

de tendência centro-esquerda. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1934<br />

28


O outro, o Partido Republicano<br />

Paulista, de tendência centro-direita.<br />

Eu sabia que ele tinha simpatias<br />

por este último; eu não tinha<br />

por nenhum.<br />

Ele continuou:<br />

— Eu preciso arranjar para<br />

vossemecê uma candidatura<br />

a deputado em qualquer partido<br />

onde vossemecê queira entrar.<br />

Com a votação enorme que<br />

eu tinha tido, os dois partidos me<br />

queriam ter em sua chapa, porque<br />

eu levaria comigo milhares de<br />

votos, que beneficiariam todos os<br />

candidatos e o próprio partido.<br />

Eu disse:<br />

— Sr. Arcebispo, Vossa Excelência<br />

sabe que sou monarquista<br />

e não me sentiria bem alistando-<br />

-me em partido republicano.<br />

— Mas, se quiser o Constitucionalista,<br />

eu arranjo também.<br />

— Como membro de um desses<br />

partidos eu me sentiria mal.<br />

Com a LEC era diferente, não<br />

era nem pró nem contra a república<br />

ou a monarquia. Sobretudo,<br />

eu quero continuar como líder<br />

católico, e como católico praticante.<br />

Talvez me apresente como<br />

candidato avulso.<br />

— Como avulso vossemecê não<br />

será eleito.<br />

Isso equivalia a dizer: apoio<br />

oficial católico não terá nenhum.<br />

A condição implícita era: aceitar<br />

integrar-me a algum partido,<br />

ou não ser eleito. Vacilava, portanto,<br />

entre a miséria ou a reeleição. E optei<br />

pela primeira:<br />

— Sr. Arcebispo, agradeço a Vossa<br />

Excelência. Verei o que posso fazer,<br />

mas não entrarei em nenhum<br />

partido político.<br />

— Então grave bem em sua memória<br />

que eu fiz o possível para vossemecê<br />

continuar sua carreira política<br />

e, se não continuou, foi porque<br />

não quis. Não quero que se possa dizer<br />

que, tendo-o feito entrar na política,<br />

o tivesse abandonado depois.<br />

ACMSP (CX-06-18)<br />

D. Duarte Leopoldo e Silva<br />

Naquele tempo, entrar para um<br />

partido político era renunciar à posição<br />

de líder católico. Ora, eu, que<br />

era por natureza e por vocação líder<br />

católico, receber do meu Arcebispo<br />

o convite para deixar de sê-<br />

-lo? Ele parecia inteiramente indiferente<br />

a que eu continuasse como<br />

católico militante ou não. Foi para<br />

mim uma dor muito pungente,<br />

amarga como tudo, ademais de ver<br />

a Liga Eleitoral Católica ser desfeita<br />

por resolução conjunta do episcopado.<br />

Candidatura a deputado<br />

estadual extrapartidário<br />

Eu estava resolvido a não me<br />

fazer eleger por um partido, pois<br />

equivaleria a entrar para uma categoria<br />

de gente sem popularidade<br />

verdadeira, que maneja máquinas<br />

eleitorais, faz-se eleger<br />

por elas, mas não tem consideração<br />

do público. Havia um desprestígio<br />

profundo, uma suspeita<br />

do povo em relação à classe política.<br />

Eu perderia parte dos meus<br />

aderentes e a consideração de jovem<br />

católico, de costumes impolutos,<br />

de dedicação e compromisso<br />

exclusivos para com a Igreja e<br />

a Civilização Cristã. E, com isso,<br />

a minha figura de líder católico<br />

ficaria grave e irremediavelmente<br />

embaçada.<br />

Um líder com compromissos<br />

com partidos não seria um homem<br />

que se deu com incondicionalidade<br />

à Igreja, para vida ou<br />

para a morte, mas conservou seus<br />

interesses. Não era esse o íntimo<br />

da minha alma e não era essa a<br />

figura que eu deveria apresentar<br />

para exercer a liderança que eu<br />

julgava necessária para a Igreja.<br />

Ora, em dado momento, comecei<br />

a receber pressão de vários<br />

católicos: “Por que você não<br />

se candidata?” Fui procurado<br />

por um bom número de congregados<br />

marianos, alguns dos quais de<br />

prestígio e importância, que me diziam<br />

não se consolarem com a ideia<br />

de que eu não fosse candidato. Compreendi<br />

que um bom filão de católicos<br />

ainda votaria em mim, dando-me<br />

a possibilidade de me eleger.<br />

Naquele tempo, além dos candidatos<br />

que a lei eleitoral permitia que<br />

fossem eleitos por partidos, havia a<br />

possibilidade de uma pessoa se apresentar<br />

como candidato avulso. Não<br />

entrava nas chapas de nenhum partido,<br />

e votava nele quem quisesse. Se<br />

29


Liga Eleitoral Católica<br />

eu tivesse suficiente prestígio pessoal<br />

para ter o número satisfatório<br />

de votos, estava feita a minha eleição.<br />

Se não tivesse, ficava derrotado.<br />

Para animar os meus amigos congregados<br />

marianos, manifestei-lhes<br />

a possibilidade de eu me apresentar<br />

como candidato avulso, e eles se<br />

entusiasmaram com a ideia. Havia a<br />

vantagem de que eu não me comprometeria<br />

com ninguém e conservaria<br />

a fisionomia moral e de homem público,<br />

como minha vocação pedia.<br />

Eu deveria levar em consideração<br />

que não me convinha ser deputado<br />

federal, pois, para exercer o mandato,<br />

deveria voltar ao Rio de Janeiro.<br />

Ora, o meio católico do Rio demonstrava-se<br />

fechado a mim. De outro<br />

lado, se eu continuasse lá durante<br />

quatro ou cinco anos estando em<br />

São Paulo apenas sábado e domingo,<br />

os contatos com São Paulo ficavam<br />

liquidados, eu perderia minha<br />

liderança no Movimento Católico de<br />

São Paulo e nosso “Grupinho” nascente<br />

se desarticularia.<br />

Do ponto de vista pessoal, eu poderia<br />

transferir minha mãe para o<br />

Rio e morar com ela lá. Porém, isso<br />

não resolvia o meu caso.<br />

Logo, a primeira resolução era<br />

a de não me fazer eleger deputado<br />

federal, mas estadual, com vantagem<br />

de atuar residindo aqui em São<br />

Paulo, facilitando-me intervir muito<br />

mais no Movimento Católico, o<br />

qual eu já sentia minado por laivos<br />

de progressismo.<br />

Mais de vinte candidatos concorriam<br />

para deputado federal, enquanto<br />

três ou quatro para deputado estadual.<br />

Assim sendo, eu tinha boas<br />

possibilidades de ser eleito. Entretanto,<br />

sem ser apresentado pela<br />

LEC de modo oficial, é claro que<br />

não teria a votação atingida na primeira<br />

eleição.<br />

Negociações político-partidárias<br />

me eram feitas, convites taxativos e<br />

positivos que concorreram para eu<br />

reforçar minha candidatura como<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

deputado avulso. Era o que eu desejava.<br />

Instado a pertencer aos<br />

partidos políticos<br />

Houve uma ocasião em que recebi<br />

um telefonema do Partido Republicano<br />

Paulista: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, queremos<br />

convidá-lo para deputado estadual<br />

e gostaríamos que o senhor nos<br />

marcasse uma hora.”<br />

<strong>Dr</strong>. Antônio Cintra Gordinho<br />

Eu marquei um encontro em minha<br />

própria casa. Esteve lá um deputado,<br />

cujo nome me esqueço, conversamos<br />

cordialmente. Por fim, ele<br />

convidou-me com muita insistência<br />

a ser deputado estadual pelo Partido<br />

Republicano Paulista: “Venha.<br />

Vamos fazer uma convenção na qual<br />

você será aclamado. Não precisa deitar<br />

o menor esforço para ser eleito,<br />

porque a diretoria do partido apresentará<br />

o seu nome dentro da chapa.<br />

Cuide apenas de sua eleição fora,<br />

com seus próprios quadros eleitorais.<br />

O senhor não perderá tempo<br />

nem despesa conosco.”<br />

São os eternos paradoxos que eu<br />

conto para se compreender como é difícil<br />

a vida de quem serve a Nossa Senhora,<br />

cheia de aparentes contradições.<br />

Essa não era uma contradição<br />

pungente, mas muitas vezes elas o são.<br />

Eu agradeci e por cortesia disse<br />

que ia pensar. Passados alguns dias,<br />

telefonei para avisar: “Eu sou muito<br />

agradecido; mas, não contem comigo<br />

para entrar no partido.”<br />

Dias depois, o Partido Constitucionalista<br />

fez-me uma insistência desabotoada,<br />

oferecendo-me uma situação<br />

política melhor: deputado federal.<br />

Foi visitar-me o <strong>Dr</strong>. Antônio Cintra<br />

Gordinho 1 , então presidente da Associação<br />

Comercial de São Paulo, homem<br />

muito rico, influente, de um trato,<br />

aliás, muito simpático. Ele veio em<br />

casa e houve uma longa insistência para<br />

eu entrar para o Partido Constitucionalista,<br />

ao qual ele pertencia.<br />

— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o Partido está reunido<br />

em assembleia plenária, estão<br />

todos fazendo discursos para entreter<br />

os convencionais, e falta só a sua<br />

palavra para ficarem constituídos<br />

em definitivo os membros da chapa.<br />

Estão esperando o seu “sim” ou<br />

“não”. Se o senhor aceitar, telefono<br />

daqui mesmo para eles dando a notícia<br />

e, dentro de meia hora, a chapa<br />

estará aprovada com seu nome. O<br />

senhor vai comigo de automóvel para<br />

a convenção e será aclamado can-<br />

30


didato. Se o senhor não aceitar, será<br />

uma tristeza.<br />

Eu respondi:<br />

— <strong>Dr</strong>. Gordinho, transmita meus<br />

agradecimentos aos outros membros<br />

da mesa do Partido Constitucionalista.<br />

No entanto, eu estou firmemente<br />

resolvido a não entrar em nenhum<br />

partido político. O convite me honra<br />

muito, mas não são essas as minhas<br />

conveniências.<br />

Ele se despediu afinal, e foi comunicar<br />

que eu não aceitara.<br />

O Armando Salles 2 também me<br />

convidou para pertencer ao Partido<br />

Constitucionalista. Estava a convenção<br />

reunida e mandaram o Piza Sobrinho<br />

3 me procurar em casa, dizendo<br />

que esperavam uma resposta minha.<br />

O Laerte Assumpção 4 presidia<br />

a sessão e mandara me dizer que até<br />

o último momento me guardava uma<br />

cadeira de deputado estadual.<br />

O integralismo também me convidou<br />

insistentemente. Recusei a todos,<br />

afirmando que me apresentaria<br />

como candidato independente.<br />

Começaram, então, as articulações<br />

com os políticos, que insistiam em me<br />

convidar, e com os congregados marianos,<br />

para organizar um comitê de<br />

propaganda eleitoral em todo o Estado<br />

de São Paulo. Eu dava a eles jornal<br />

falado todos os dias sobre as negociações,<br />

porque julgava oportuno<br />

eles tomarem conhecimento de que<br />

os grandes partidos me convidavam<br />

e que eu recusava. Ficava constando<br />

que tinha as portas abertas e que não<br />

havia aderido porque não queria.<br />

Nesse período, continuou a pesar<br />

sobre mim aquele conjunto de nevralgias<br />

que eu tivera no Rio de Janeiro.<br />

Certa ocasião, senti tanta, tanta<br />

dor, que comecei a andar no quarto<br />

de um lado para outro. No fim,<br />

quando a nevralgia passou, percebi<br />

que estava sentado embaixo de uma<br />

mesa de trabalho que havia no meu<br />

quarto de dormir. Ao raiar da aurora,<br />

a dor começava a melhorar e eu,<br />

afinal, podia dormir.<br />

Dona Lucilia<br />

Mas já cedinho começavam a telefonar-me,<br />

perguntando como proceder<br />

na campanha eleitoral que devíamos<br />

levar adiante.<br />

Incondicional generosidade<br />

de Dona Lucilia<br />

Foi então que mamãe interveio<br />

com muita generosidade. Uma tia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

dela, solteira, fizera um negócio<br />

bem-sucedido. Ela procurou as três<br />

sobrinhas dela, uma das quais era<br />

Dona Lucilia, e deu a cada qual uma<br />

quantia como um presente. Era um<br />

razoável valor, dava quase um ano<br />

de ordenado meu.<br />

Mamãe contou-me o fato:<br />

— Meu filho, recebi este dinheiro.<br />

Qual a aplicação que você quer dar a<br />

ele? Eu confio inteiramente em você.<br />

Se quiser, ele poderia ser destinado<br />

a mobiliar nossa casa – era uma<br />

casa muito insatisfatória, e o interior<br />

ficaria organizado –, mas você deve<br />

estar necessitado de dinheiro para<br />

a sua candidatura. Por isso entrego-o<br />

aqui para você fazer dele o uso<br />

que quiser.<br />

Eu disse:<br />

— Mãezinha, eu vou pensar um<br />

pouco… Vamos ver como correm as<br />

coisas.<br />

De fato, eu queria ver como corria<br />

a política, porque fiquei de início<br />

muito duvidoso de me candidatar.<br />

Ora, se eu nem sequer me apresentasse<br />

a candidato, seria uma forma<br />

de fraqueza que aceleraria ainda<br />

mais meu desmoronamento e meu<br />

desprestígio em São Paulo.<br />

Fiz o orçamento de quanto custaria<br />

a campanha eleitoral e era o valor<br />

exato que minha mãe tinha recebido<br />

de sua tia. Medi bem as possibilidades:<br />

“Para a Causa Católica, é<br />

melhor fazer esse sacrifício, tentar a<br />

propaganda e jogarmo-nos na campanha<br />

eleitoral, custe o que custar.”<br />

Continuaríamos vivendo em condições<br />

precárias, sem sequer poder<br />

decorar nossa casa, ficaria tudo desarranjado.<br />

Minha mãe tinha bons<br />

móveis herdados, mas não formavam<br />

uma mobília completa. Não tinha<br />

tapetes nem cortinas, não eram<br />

condições boas para ela viver.<br />

Procurei por mamãe e disse:<br />

— Mãezinha, para mim o melhor<br />

seria não me candidatar, assumir a<br />

minha cátedra na Faculdade de Direito<br />

e, com nossa casa razoavelmen-<br />

31


Divulgação (CC3.0)<br />

Liga Eleitoral Católica<br />

D. Epaminondas Nunes de Ávila e Silva<br />

te arranjada, tocarmos a vida com o<br />

que eu receber como professor. Sou<br />

advogado formado, trato de abrir<br />

um escritório de advocacia, de conseguir<br />

clientes e está tudo resolvido.<br />

Mas, a vantagem para a Causa Católica<br />

consiste em que eu me candidate<br />

como deputado avulso.<br />

Expliquei a ela no que consistia e<br />

prossegui:<br />

— Nessas condições, peço à senhora<br />

para, de fato, lançar mão de<br />

todo o seu dinheiro para fazer minha<br />

campanha eleitoral.<br />

Mamãe foi modelar, aceitou com<br />

toda a naturalidade, deu-me o rolo<br />

de dinheiro no mesmo momento:<br />

— Filhão, o que você quer você<br />

tem. Todo o meu dinheiro, tudo<br />

quanto é meu, disponha como quiser!<br />

Ela nunca mais tocou no assunto.<br />

Aceitei e joguei-me na campanha<br />

eleitoral com todo o fogo.<br />

Incansável<br />

campanha<br />

eleitoral<br />

Comecei a trabalhar.<br />

Montamos um<br />

escritório de propaganda<br />

eleitoral na<br />

sala de um prédio<br />

da Cruz Vermelha,<br />

no centro da cidade,<br />

na rua Libero Badaró,<br />

quase esquina da<br />

Avenida São João.<br />

Constituímos um<br />

grupo de pessoas,<br />

várias das quais tinham<br />

pedido férias<br />

de seus respectivos<br />

empregos a fim de<br />

poderem trabalhar<br />

para minha eleição,<br />

gratuitamente. Era<br />

um serviço desinteressado<br />

de bons<br />

congregados marianos,<br />

o qual eu procurava<br />

compensar<br />

rezando por eles e lhes dispensando<br />

toda a minha amizade. Era só o que<br />

eu tinha.<br />

Fiz várias circulares com um programa,<br />

uma das quais para todo o<br />

clero do Estado de São Paulo; enviei<br />

cartas em quantidade para os padres<br />

do interior, para os congregados marianos,<br />

para listas de amigos, de fichários<br />

de que eu dispunha. Organizei<br />

caravanas de rapazes, congregados<br />

marianos e membros do grupo<br />

do Legionário, que iam pelas paróquias<br />

distribuindo, por toda parte,<br />

cédulas que eu tinha mandado imprimir<br />

às centenas de milhares. Nelas<br />

constava: “<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira,<br />

para deputado estadual.”<br />

O consumo de cédulas foi fantástico.<br />

Mandei imprimir cartazes que<br />

foram colocados em vários lugares<br />

de São Paulo. Publiquei um manifesto<br />

anunciando minha candidatura; o<br />

escol da mocidade católica mariana<br />

de São Paulo me apoiou assinando-<br />

-o, prestigiando minha candidatura.<br />

Lembro-me que quando foi encerrada<br />

a campanha eleitoral, daí a<br />

alguns dias, todos os meus colaboradores<br />

afluíam para o escritório eleitoral<br />

central, já tarde da noite, para<br />

comentar as disposições do eleitorado.<br />

Eu precisava de cinco mil votos<br />

para ser eleito, enquanto para deputado<br />

federal eram necessários doze<br />

mil.<br />

Eu disse a eles:<br />

— Joguei tudo pelo tudo, minhas<br />

últimas economias. Se papai ou mamãe<br />

adoecerem, não terei com que<br />

pagar o tratamento. Eu tenho a séria<br />

esperança de ser eleito! Mas, se eu<br />

for derrotado, minha carreira política<br />

eleitoral está quebrada e, na política,<br />

estou liquidado. A nossa vitória<br />

na Constituinte fechou o meu caminho;<br />

se a Igreja ainda estivesse precisando,<br />

Ela me elegeria; mas deram-nos<br />

bilhete azul na dissolução<br />

da LEC, o que, debaixo de um certo<br />

ponto de vista, é compreensível. Vamos<br />

ver no que as coisas vão dar.<br />

O problema das urnas<br />

Havíamos feito uma campanha<br />

muito ativa, na qual tinha sido aplicado<br />

todo o dinheiro dado por mamãe.<br />

Tudo indicava que a eleição<br />

correria bem. Mas, circunstâncias<br />

imprevistas vieram a prejudicá-la.<br />

Mandei pedir ao Tristão uma carta<br />

a respeito de meu trabalho na<br />

Constituinte para apresentar ao público<br />

como modo de prestigiar a candidatura.<br />

Ele mandou a carta mais<br />

fria, desaforada e sabotante que se<br />

possa imaginar. D. Duarte fez sentir<br />

que não me combateria nem me<br />

apoiaria. Outros elementos eclesiásticos<br />

com os quais eu contava se desinteressaram,<br />

inclusive os bispos do<br />

interior, excetuando D. Epaminondas<br />

5 , de Taubaté.<br />

Nessas condições foram realizadas<br />

as eleições; dias depois começou<br />

a apuração dos votos e os resultados<br />

32


foram diferentes do que todos imaginavam.<br />

Era esperada a vitória do<br />

Partido Republicano Paulista, mas<br />

ele recebeu votações muito menores<br />

nos lugares onde tinha os melhores<br />

motivos para esperar grande vitória.<br />

De outro lado, começou um zum-<br />

-zum de que tinha havido fraude nas<br />

eleições; correram boatos de que<br />

as urnas tinham sido forçadas. E eu<br />

comecei a ficar muito preocupado.<br />

“Como? O que vai acontecer?” Tratei<br />

de investigar o que era feito das<br />

urnas nas eleições. E soube do seguinte:<br />

todas as urnas eram seladas<br />

pelos presidentes das sessões eleitorais<br />

e levadas para um ponto do Parque<br />

D. Pedro II, em uma repartição<br />

pública, cujas salas de andar térreo<br />

eram acessíveis ao público, defendidas<br />

apenas por grades e pela luz<br />

acessa que dava um certo controle.<br />

De lá, as urnas deveriam ser transferidas<br />

para o Tribunal Eleitoral, que<br />

faria a apuração dos votos.<br />

A minha preocupação era se alguém<br />

mexeria nas urnas. Nenhum<br />

partido político mandava fiscais e ficaria<br />

esquisitíssimo se eu mandasse<br />

fiscais examiná-las, para as controlar.<br />

Sairia toda a espécie de detrações<br />

pelos jornais e se levantaria<br />

contra mim uma série de oposições,<br />

que não evitariam grande coisa, porque,<br />

na hora da contagem, eles poderiam<br />

contar os votos totais que<br />

quisessem.<br />

Assim, não havia controle possível.<br />

Eu me perguntava onde ficariam<br />

as cédulas do resultado das eleições.<br />

Porque todos votavam, eu votei. Eu<br />

só podia me confiar a Nossa Senhora,<br />

mais nada.<br />

Sabotagem durante<br />

a apuração<br />

Ocorreu uma série de episódios;<br />

por exemplo, um deputado oposicionista,<br />

inimigo do governo, deu uma<br />

declaração pela rádio de que as urnas<br />

onde estavam guardados os votos<br />

podiam ser abertas por qualquer<br />

um. Ele fez a demonstração de abrir<br />

uma delas com uma chave de papel<br />

feita por ele mesmo diante de todo<br />

mundo no Tribunal Eleitoral, e abriu<br />

sem violar um só dos selos.<br />

Telefonaram do Tribunal Eleitoral<br />

para A Gazeta, que era naquele tempo<br />

o jornal audacioso de São Paulo.<br />

A sereia da Gazeta só tocava ao<br />

meio-dia e às seis da tarde, mas nesse<br />

dia tocou às dez da manhã. A cidade<br />

inteira ficou em polvorosa: “As<br />

urnas foram abertas, as eleições estão<br />

fraudadas…” Deveriam ter anulado<br />

as eleições, não o fizeram.<br />

Antes de arrebentar esse escândalo,<br />

no começo da apuração, precisei<br />

tratar de um problema com o Presidente<br />

do Tribunal Eleitoral, Sylvio<br />

Portugal 6 , a respeito de meu título<br />

eleitoral. Entrei numa sala cheia de<br />

gente e notei na fisionomia dele uma<br />

angústia ao me ver. Não dei a menor<br />

importância.<br />

Depois tive todas as razões para<br />

suspeitar que meus votos tinham sido<br />

tirados das urnas em quantidade, pelo<br />

fato indiscutível de que havia pessoas<br />

que tinham votado em mim, mas<br />

cujos votos não constavam na apuração.<br />

Um destes casos<br />

foi o de um padre,<br />

que eu ainda<br />

não conhecia, chamado<br />

Antônio de<br />

Castro Mayer, da<br />

Freguesia do Ó, seminarista<br />

naquele<br />

tempo. Era uma<br />

fraude da qual eu<br />

não tinha a necessária<br />

documentação,<br />

ficando sem<br />

meios de prová-la.<br />

Qual era o resultado?<br />

Estava claro<br />

que tinham tirado<br />

votos meus das<br />

urnas e que eu poderia<br />

ter ganhado.<br />

Perdi.<br />

Candidatos independentes havia<br />

cinco ou seis, talvez um pouco mais.<br />

Mas, homens conhecidos pelo público,<br />

éramos dois: Marrey Junior 7 ,<br />

longinquamente parente meu, e eu.<br />

Dentre os candidatos não partidários<br />

ao menos fui o mais votado; tive<br />

a metade dos votos que me eram<br />

necessários. Não fui eleito, mas ficou<br />

uma situação digna de um homem<br />

que tem um bom peso eleitoral. O<br />

deputado avulso mais votado e que<br />

quase se fez eleger fui eu, apesar de<br />

todas essas circunstâncias contrárias.<br />

O que significava que, havendo<br />

condições favoráveis, eu teria vencido.<br />

Em termos mais claros, diretos,<br />

eu estava derrotado; minha carreira<br />

política estava cortada. Notem o mecanismo<br />

deste corte: uma punhalada<br />

nas costas.<br />

Algumas outras circunstâncias tinham<br />

pesado contra a minha eleição,<br />

duas mais notadamente.<br />

Uma circular adversa<br />

disseminada pela<br />

Arquidiocese<br />

Um dia, apareceu em minha casa<br />

o vigário da Igreja de Santa Cecília,<br />

Modelo de urna usada em 1934<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

33


Liga Eleitoral Católica<br />

ACMSP (PF-03-02-21)<br />

Pe. Paulo de Tarso Campos 8 , mais<br />

tarde nomeado Bispo de Santos. Ele<br />

tinha tomado contato com um grupo<br />

de sacerdotes e estava indignado<br />

com o que se tinha passado.<br />

D. Duarte declarara se desinteressar<br />

pela minha eleição. Assim, o<br />

Vigário Geral tinha passado uma circular<br />

a todos os padres de São Paulo,<br />

pedindo para votar no Partido<br />

Republicano Paulista, onde o irmão<br />

do Arcebispo, Tarcísio 9 , era candidato.<br />

Dizia que era desprestígio para o<br />

Arcebispo seu irmão não ser eleito,<br />

pelo que ele pedia – a título individual<br />

– que todos votassem nele.<br />

Não ser eleito o líder católico<br />

mais conhecido em São Paulo era<br />

Pe. Paulo de Tarso Campos<br />

um desprestígio para a Igreja, e isso<br />

não tinha importância; mas, o que<br />

não se podia aceitar era o desprestígio<br />

para o Arcebispo!<br />

O Pe. Paulo de Tarso Campos<br />

mostrou-me a carta para eu ver, dizendo-me<br />

vibrante de indignação:<br />

— Se você quiser, nós vamos<br />

constituir uma comissão de sacerdotes<br />

para fazer um protesto a D. Duarte.<br />

E vamos juntos, com você, fazer<br />

esse protesto.<br />

Eu tinha um grande respeito pessoal<br />

a D. Duarte. Além do mais, era o<br />

meu Arcebispo e eu não queria fazer<br />

nenhuma pressão sobre ele. Eu preferia<br />

uma derrocada na minha posição<br />

a apertar, com a ponta do dedo<br />

que fosse, a pessoa sagrada<br />

de meu Arcebispo.<br />

Transmiti ao<br />

Pe. Paulo que se eles<br />

quisessem fazer esse<br />

protesto, eu lhes agradeceria,<br />

mas não me<br />

associaria. E a coisa se<br />

desfez como espuma.<br />

Eu não quero crer<br />

que a jogada tenha sido<br />

da parte de D. Duarte.<br />

Mas o Vigário<br />

Geral, velho e doente,<br />

muito amigo de D.<br />

Duarte, teve uma fraqueza<br />

e passou a circular:<br />

“Afaste o <strong>Plinio</strong><br />

e ponha o irmão dele.”<br />

O irmão foi eleito,<br />

e com muito boa votação.<br />

As ameaças se<br />

cumpriram, mas<br />

nada abalou<br />

a fidelidade<br />

O Estado de São<br />

Paulo, jornal laico, tinha<br />

uma seção religiosa,<br />

denominada “Movimento<br />

Católico”, dirigida<br />

por um velho senhor chamado<br />

Júlio Rodrigues; aí constavam notícias<br />

religiosas como numa espécie de lixo,<br />

como informações de segunda classe.<br />

Mas essa seção era muito lida pelo<br />

público católico, porque pensavam<br />

ser algo oficial da Cúria. Não era, ele<br />

escrevia de iniciativa própria. Mas, como<br />

era um católico militante, o público<br />

tinha a impressão de que aquilo era<br />

da Cúria.<br />

Pouco antes das eleições, saiu um<br />

artigo dele censurando os candidatos<br />

avulsos, dizendo que a Doutrina Católica<br />

era contra os candidatos avulsos.<br />

Com que fundamento? Nenhum!<br />

E recomendava que se votasse apenas<br />

em candidatos de partidos políticos.<br />

Eu, como sabia que essa seção era<br />

escrita por um particular, que não<br />

exprimia a voz da Cúria em nada,<br />

não dei atenção. E saí para o meu<br />

trabalho eleitoral.<br />

Pouco depois recebi telefonema de<br />

minha irmã, indignada com o que tinha<br />

acontecido. Que explicação isso<br />

tinha? Ela entendia ser um ataque<br />

direto de D. Duarte contra mim. Expliquei<br />

bem a coisa concluindo: “Faço<br />

questão que nesta casa, daqui por<br />

diante, seja livre falar sobre D. Duarte.<br />

Mas falar contra ele, eu não permito!<br />

Porque ele é meu Arcebispo e não<br />

posso suportar que se fale contra ele.”<br />

Orientação ou prescrição que foi<br />

seguida na perfeição. Na realidade,<br />

prejudicou-me e não pouco. A minha<br />

carreira política estava liquidada.<br />

Aquelas ameaças recebidas tinham<br />

se realizado ponto por ponto.<br />

Eu não tinha cedido, fui esmagado.<br />

Como se manobrou para chegar<br />

até isso? Quais foram as pessoas<br />

que conscientemente trabalharam<br />

para isso? Quais as que se deixaram<br />

envolver e manobrar? No Juízo<br />

de Deus se saberá. Não acusarei<br />

ninguém. Pode ter havido muitos<br />

que se deixaram iludir ou intimidar.<br />

Pode ter havido inúmeros outros que<br />

sabiam o que estavam fazendo. Não<br />

sei, deixo no ar.<br />

34


Eu não tinha pedido nada a Nossa<br />

Senhora, eu me deixei levar até lá<br />

e não pedi nada, nem sequer fiz uma<br />

jaculatória. E assim foi minha vida,<br />

com altos e baixos até hoje.<br />

“Lutarei até o fim!”<br />

Eu via o vagalhão que vinha destruir<br />

tudo quanto eu havia esperado!<br />

Parecia que as estrelas do céu se<br />

jogavam sobre mim como se fossem<br />

pedras, e eu dizia: “Não entendo nada.<br />

Não tenho força, relações nem<br />

meios para fazer face a esta horda<br />

de inimigos que avança com a intenção<br />

de esmagar a obra que eu estava<br />

construindo. Já prevejo a derrota<br />

e o esmagamento, mas lutarei até o<br />

fim!” Toda a esperança que eu tivera<br />

de constituir uma Contra-Revolução<br />

para esmagar a Revolução dava<br />

no contrário. A Revolução se voltava<br />

contra mim, parecendo esmagar-me.<br />

Compreende-se como era sombria<br />

a perspectiva. E eu pensava: “Como<br />

sairei disso? Qual o sentido de minha<br />

vida? Terei cometido algum pecado<br />

que ignoro? Existirão talvez em<br />

mim resíduos de amor-próprio, de orgulho,<br />

de algo que não noto, mas que<br />

pesa contra mim na balança de Deus?<br />

Nossa Senhora me deu tanta devoção<br />

a Ela! Entretanto, parece que está<br />

muda diante de mim. Se eu fosse<br />

dizer que os meus inimigos me assaltam,<br />

não seria nada! A minha Mãe<br />

celeste me ignora…!”<br />

Era o quadro de um cerco completo,<br />

uma tragédia aos 24 anos!<br />

A doença e o infortúnio abatiam-se<br />

sobre mim, e eu pensava: “Talvez deva<br />

oferecer minha vida a Deus como<br />

vítima expiatória, a fim de que<br />

outras almas façam, na Terra, o que<br />

não fui capaz de fazer.”<br />

Uma conclusão muito triste, mas<br />

algo me dizia no interior: “Você não<br />

tem o direito de pensar assim! Tem a<br />

obrigação de esperar que outra coisa<br />

aconteça e que as velhas esperanças<br />

dos seus primeiros anos se realizarão!”<br />

Nossa Senhora tinha dado a entender<br />

que Ela queria que eu formasse<br />

uma Ordem de Cavalaria.<br />

Portanto, eu deveria crer que, apesar<br />

de todos os obstáculos e trambolhões,<br />

eu teria de fato os recursos necessários<br />

para essa fundação.<br />

Desde que eu fosse fiel, vivesse no<br />

estado de graça e fosse progredindo<br />

na virtude, Nossa Senhora faria por<br />

meu intermédio aquilo que eu percebia<br />

ser a determinação d’Ela.<br />

Então eu compreendi a confiança:<br />

saber interpretar os sinais e as<br />

manifestações da vontade d’Ela e<br />

confiar numa coisa razoável. O Livro<br />

da Confiança tomou para mim todo<br />

o seu sentido. A Providência parecia<br />

querer que eu sobrevivesse e realizasse<br />

essa obra.<br />

Tempos depois, começou a nascer,<br />

na Congregação Mariana de Santa Cecília,<br />

um núcleo sobre o qual pairava<br />

um desígnio. Era uma primeira renovação<br />

das minhas antigas esperanças que<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em meados de 1935<br />

renascia da árvore que eu plantara e<br />

que o sopro da heresia jogara ao chão.<br />

Umas frutas caíram, deitaram na terra<br />

algumas sementes e uma outra obra<br />

nascia; minha alma se voltava a ela. Era<br />

a minha Ordem de Cavalaria! v<br />

1) Empresário, natural de Limeira, interior<br />

de São Paulo (*1893 - †1966).<br />

2) Armando de Salles Oliveira, engenheiro<br />

e político (*1887 - †1945).<br />

3) Luís de Toledo Piza Sobrinho, político<br />

(*1888 - †1983).<br />

4) Laerte Teixeira de Assumpção, político<br />

(*1880 - †1950).<br />

5) D. Epaminondas Nunes de Ávila e Silva<br />

, Bispo de Taubaté (*1869 - †1935).<br />

6) Exerceu a presidência do Tribunal<br />

Regional Eleitoral de São Paulo de<br />

1934 a 1935 (*1890 - †1945).<br />

7) José Adriano Marrey Júnior (*1885 -<br />

†1965).<br />

8) Natural de Jaú (*1895 - †1970).<br />

9) Tarcísio Leopoldo e Silva (*1888 -<br />

†1962).<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

35


Fra Angelico (CC3.0)<br />

Virgem da<br />

Humildade<br />

Museu Nacional<br />

de Arte da<br />

Catalunha,<br />

Barcelona<br />

Regime de governo marial<br />

Amediação de Maria deve ser vista não apenas enquanto a intercessão d’Aquela que reza por todos,<br />

mas como sendo Ela a Rainha do universo.<br />

Nosso Senhor deu à Santíssima Virgem, que é Mãe e não tem papel de juiz, uma realeza com<br />

todas as indulgências, todos os extremos de misericórdia de mãe que a autoridade paterna de si não<br />

comporta. Ele A coloca como Rainha, a fim de governar tudo assim.<br />

Há, portanto, um regime marial de governo do universo. E, mais do que Medianeira onipotente e suplicante,<br />

Ela é a Rainha que conduz os acontecimentos e dirige a História.<br />

Quando a Igreja canta a respeito da Mãe de Deus “Tu só exterminaste todas as heresias”, afirma que<br />

o papel d’Ela nesse extermínio foi único. Quem promove a eliminação das heresias dirige os triunfos da<br />

ortodoxia, e quem rege uma coisa e outra dirige a História.<br />

Essa noção a respeito da realeza de Nossa Senhora ligada à mediação universal explica bem como a<br />

devoção a Ela está absolutamente na raiz de todas as vitórias da Contra-Revolução.<br />

(Extraído de conferência de 11/7/1967)

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