Revista Afirmativa edição 02
Lançada em novembro de 2014, a segunda edição da Afirmativa foi pras ruas mesmo sem recursos objetivos para isso. A luta foi muito grande, mas não desistimos do sonho de contar a verdadeira história sobre nós e nossos ancestrais. O sucesso foi garantido com ampliação da equipe, linha editorial e quantidade de páginas. Nesta edição, a Afirmativa apresentou a história do povo Tupinambá no Sul da Bahia, a crise no sistema carcerário, o impacto dos megaeventos esportivos no Brasil. E na reportagem de capa, uma chamada importante para a reflexão sobre o racismo religioso. Além disso, inauguramos nossa sessão literária.
Lançada em novembro de 2014, a segunda edição da Afirmativa foi pras ruas mesmo sem recursos objetivos para isso. A luta foi muito grande, mas não desistimos do sonho de contar a verdadeira história sobre nós e nossos ancestrais. O sucesso foi garantido com ampliação da equipe, linha editorial e quantidade de páginas.
Nesta edição, a Afirmativa apresentou a história do povo Tupinambá no Sul da Bahia, a crise no sistema carcerário, o impacto dos megaeventos esportivos no Brasil. E na reportagem de capa, uma chamada importante para a reflexão sobre o racismo religioso. Além disso, inauguramos nossa sessão literária.
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afirmativa
Nº 02 | Agosto de 2014 | www.revistaafirmativa.com
02
[
SUPER NEGÕES
Mitos e verdades sobre o
corpo negro no esporte
(Página 06)
O MEDO DO OUTRO
Entrevista com a professora
Angela Figueiredo
(Página 12)
O CANDIDATO
Conto inédito escrito por
Lande Onawale (Página 24)
[
O VEXAME DE
TANTAS MARIAS
O retrato de um cotidiano
desumano e cruel
(Página 20)
O BRASIL CONTRA
OS TUPINAMBÁ
Uma guerra em curso
(Página 08)
Racismo
RELIGIOSO
“Caça às bruxas” no Brasil contemporâneo
1
Contato: lazumvi@hotmail.com | Facebook: Zumvi Arquivo Fotográfico
2 www.revistaafirmativa.com
h Índice
14
FOTO MORGANA DAMÁSIO
08
ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF
18
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE DE MAIO
FOTO ANA REIS
20
12
ENTREVISTA
Angela Figueiredo fala
sobre políticas afirmativas.
06
14
RACISMO RELIGIOSO
A caça às bruxas no Brasil
contemporâneo.
12
18
FORÇA BLACK
Cuidar dos crespos é
bonito e barato.
05
COLUNA SUELI CARNEIRO
O sangue negro que paga a
Copa do Mundo.
20
REVISTA VEXATÓRIA
O vexame de tantas Marias
nos presídios brasileiros.
06
SUPER NEGÕES
Mitos e verdades sobre o
corpo negro no esporte.
24
O CANDIDATO
Conto escrito pelo poeta
Lande M. Onawale.
08
BRASIL X TUPINAMBÁ
A luta secular de um povo
pelo direito de existir.
26
DENEGRIR A
UNIVERSIDADE
No sentido literal.
3
h Editorial
O segundo passo
Eis a segunda Afirmativa.
Foram três meses de produção
e nesse meio tempo
ampliamos a equipe, a
linha editorial e a quantidade de páginas.
Se alguém avisasse que daria
ainda mais trabalho que a primeira,
duvidaríamos certamente. Mas valeu.
Tá pronta e na sua mão!
Extravasamos os muros. Política
afirmativa se faz também fora da
universidade. Saudando os donos da
terra, esta edição traz a história do
povo Tupinambá no Sul da Bahia.
Também narramos aqui o cotidiano
violento e invasivo de tantas Marias
em presídios brasileiros.
Na reportagem de capa, o Brasil
contemporâneo se confunde com a
Idade Média, o povo de santo sofre
na fogueira da inquisição moderna.
Uma senhora é perseguida e criminalizada
em sua vizinhança. O
motivo? Sua fé. A capa ainda traz
a belíssima ilustração de nosso
parceiro Pedro Magalhães, artista
responsável pela página no facebook
Pendurado no firmamento.
E a Copa foi pra quem? Na coluna
Sueli Carneiro a historiadora Mayara
Pláscido fala das exigências da FIFA
que não vieram no contrato: sangue
negro e higienização social pagam o
evento. Acabou a Copa, 2016 é ano
de olimpíada, e lançamos a pergunta,
quem poderá competir com os poderosos
super-negões?
Inauguramos nesta edição a sessão literária.
Conto de Lande Onawale traz
uma reflexão sobre o negro na disputa
eleitoral. E por fim, a força que vem
das raízes. Estética negra, identidade
e autoestima frente ao padrão branco
imposto pela sociedade e reproduzido
pela mídia.
Para lançar a primeira edição alçamos
voos pela Bahia, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São
Paulo, Sergipe e Brasília. Nesta segunda,
o céu é o limite.
Conheça a arte
mixuruca do
artista Pedro
Magalhães
(responsável
pela capa
desta 2 a edição)
em sua página
no Facebook,
Pendurado no Firmamento.
» www.facebook.com/
penduradonofirmamento
QUEM FAZ A REVISTA
afirmativa
Editora-Chefe
Morgana Damásio
morganadamasio@gmail.com
Repórteres
Alane Reis
Aline Lima
Amanda Dias
Edimilton Santos
Jonas Pinheiro
Morgana Damásio
Rose Cerqueira
Revisão
Alane Reis
Jonas Pinheiro
Rose Cerqueira
Editora Executiva
Alane Reis
alane.t.reis@gmail.com
Diagramador
Rafael Bacellar
ra.bacellar@gmail.com
Colaboradores: Alexandre de Maio, Angela Figueiredo, Carlos Latuff, Denise Ribeiro, David Aynan, Lande
Onawale, Mayara Pláscido, Pedro Magalhães (Pendurado no Firmamento), Samuel Vida.
Apoio: Coordenadoria de Políticas Afirmativas (CPA/PROPAAE/UFRB)
4 www.revistaafirmativa.com
Coluna
SUELI CARNEIRO
O sangue negro que
paga a Copa
t Mayara Pláscido*
África do Sul, Copa do
Mundo da Fifa 2010.
Notícias veiculadas
por jornais da mídia
mundial, como o Le Monde Diplomatique
e Pambazuka News, informavam a
expulsão de famílias sul-africanas de
suas casas para dar lugar à construção
do estádio Green Point, na Cidade do
Cabo. Imagem contraposta às notícias
veiculadas nas mídias televisivas e
virtuais, sobre o apoio da população
sul-africana às obras de infraestrutura
para o Mundial.
A visibilidade das práticas de desapropriação
por toda África do Sul vem
sendo pautada, desde 2005, por um
movimento organizado por moradores
de favelas locais, o Abahlali Basemjondolo.
Durante a Copa 2010, o grupo
conseguiu publicizar suas demandas
com a construção de ambientes de
mobilização e disputa. Entre as ações
estavam a realização de manifestações
com o uso de barricadas em
rodovias e passeatas, para denunciar
a estrutura precária de suas comunidades,
bem como reivindicar a construção
de espaços educativos para os
moradores locais.
As atuais favelas sul-africanas
representam a continuidade das
políticas de segregação entre negros
e brancos, estabelecidas durante as
décadas do Apartheid (1948-1994).
Estas comunidades são herdeiras dos
Bantustões ou Homelands (espaços de
moradia precária, miserável e distante
dos locais onde os sul-africanos pretos
trabalhavam) destinados à população
negra durante os anos em que a
segregação naquele país encontrava
apoio constitucional.
O governo sul-africano empreendeu
uma política sistemática de evacuação/expulsão/retirada
de famílias
moradoras das áreas centrais de
cidades da África do Sul, para a
construção de estádios e infraestrutura
específica para a realização do
evento esportivo. Profundas marcas
do sistema de segregação racial
vigorado durante o Apartheid, com
reelaborações de práticas racistas
gestadas desde os primeiros anos de
colonização holandesa e inglesa, nos
século XVI e XIX, respectivamente.
Brasil, Copa do Mundo da Fifa 2014.
Segundo uma projeção feita pela BDO,
empresa internacional de auditoria e
consultoria especializada em análises
econômicas, financeiras e mercadológicas,
a construção da infraestrutura
para o evento futebolístico gerou um
lucro de R$10 bilhões para a entidade
organizadora. Mais de 170 mil famílias
foram expulsas de suas casas,
por vezes, avisadas com um dia de
antecedência. Registraram-se desapropriações
no Rio, em São Paulo, Cuiabá,
Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Essas centenas de milhares de famílias
sem casa, sem terra, sem dignidade,
fazem parte da população inadequada
deste país. Os “desapropriados”,
pretos e pobres, moradores de favelas,
ocupações e bairros não-planejados,
são incômodos aos holofotes internacionais
que aqui estiveram ávidos de
imagens felizes, harmônicas e brancas
(com exceção da mulata, que esteve
sim, alegrando as mentalidades estrangeiras
- nem as baianas de acarajé
eram aprazíveis). Dessa forma, reafirmaram-se
os interesses da elite nacional
tradicional para a manutenção do
processo de exploração, marginalização
e, no limite, silenciamento/morte da
população preta pobre do Brasil.
A disputa por moradia e terra sempre
foi a tônica da localização social/
racial desde que isso aqui nem era Brasil.
Restringir o acesso a terra, restringe,
por consequência, o acesso a moradia
e possibilidades de subsistência.
África do Sul e Brasil. Dois territórios
que vivenciaram práticas de colonização
europeia estruturadas a partir
de uma lógica de segregação racial –
Apartheid para a primeira, Escravidão
para o segundo. Que relação isso tem
com as Copas do Mundo de Futebol
sediadas nestes países, ou melhor, com
a política sistemática de expulsão e
posterior invisibilização dos negros e
pobres nos dois países? Nos meses de
junho e julho de 2014 a imprensa televisiva
disputou as mentes e os corações
da população brasileira, apaixonada
por futebol, inclusive daqueles que,
expulsos de suas casas ou não, não
foram aos estádios torcer pela seleção
por não poderem pagar os caríssimos
ingressos.
* Graduada e mestre em História pela UEFS, Doutoranda em História Social pela UFBA e professora adjunta do IFBA.
5
h Ciência
SUPER NEGÕES
O esporte sempre se reivindicou como um espaço
livre, mas reflete conflitos raciais existentes na
sociedade, onde o negro ainda é tratado como um
corpo selvagem e primitivo.
t Amanda Dias
No atletismo, dos últimos 38 recordistas mundiais
nos 100 metros rasos, 28 são negros. O jamaicano
Usain Bolt, em 2009, alcançou nesta prova o tempo
recorde de 9,58 segundos. A marca está abaixo do
limite definido pelo pesquisador e fundador do Centro Olímpico
de Treinamentos Gideon Ariel, que acreditava ser humanamente
impossível bater esse tempo sem romper os tendões e
quebrar os ossos.
Os cientistas Adrian Bejan, Edward C. Jones e Jordan D.
Charles realizaram estudos para descobrir as razões pelas
quais os negros foram mais rápidos. O título “A Evolução da
velocidade no atletismo: Porque os corredores mais rápidos
são o negros e os nadadores são brancos”, publicado em 2010,
gerou polêmica ao concluir que os negros possuíam membros
inferiores maiores e os indivíduos brancos troncos mais desenvolvidos.
Isso teria relação direta no desempenho em seus
esportes de dominância.
A relação entre o posicionamento do centro de gravidade (localizado,
em média, nos negros 3% acima do que em indivíduos
brancos) daria uma vantagem de 1,5% no tempo total para os
negros em provas de velocidade do atletismo, e os mesmos 1,5%
de vantagem para os brancos nas provas rápidas de natação.
Entre esportistas predomina a visão que pessoas negras se
desempenham melhor nos esportes porque são biologicamente
mais fortes, resistentes e explosivas. Discurso notoriamente
influenciado pelo suposto caráter cientifico da afirmação.
O professor de educação física Bruno José de Queiroz
afirma que os africanos apresentam maior força muscular,
resistência e velocidade. A ex pivô da seleção sub 18 de futsal
de Valença, região do Baixo Sul da Bahia, Érica Fonseca,
acredita que a força física é um diferencial das meninas negras,
apesar de não influenciar tanto no futsal. “Eu acho que
questões técnicas influenciam mais do que exatamente de ser
negro ou branco”.
Os posicionamentos sobre o tema são divergentes, argumentos
utilizados por profissionais e especialistas mostram que nada
é determinante. De acordo com a mestra em biologia, Diane
Silva, a hipertrofia - aumento do volume muscular - “acontece
em decorrência da atividade física e é uma espécie de resposta
do organismo ao estímulo”. Quanto à probabilidade de ocorrer
na população negra algum fator genético que torne o ganho de
“Acreditamos que
negros são mais
fortes e resistentes,
porém são menos
técnicos, porque nos
ensinaram assim.”
OSMUNDO PINHO
6 www.revistaafirmativa.com
massa muscular mais ‘fácil’, Diane discorda
dos estudos citados no inicio do texto.
“Os genes podem existir, mas a expressão
destes genes vai estar diretamente ligada
a dieta e atividade física”, diz a mestre.
A lutadora de Artes Marciais Mescladas
(MMA), Marília Santos, discorda da maioria
dos atletas. “O que acontece é que por
ser negro e por causa do preconceito a
gente acha que tem que ser melhor e se
destacar mais”, afirmou Marília.
Para Natale Pacheco, estudante de educação
física da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e atleta amadora de futsal,
os negros são mais “raçudos” por terem
que enfrentar o preconceito todos os dias,
dentro e fora do campo ou da quadra.
“Dar um ‘gás’ maior no esporte é uma
luta diária contra todo e qualquer tipo de
preconceito”, afirma.
O esporte, portanto, é também um espaço
de conflito racial e a ciência é mais
uma esfera utilizada para justificar a segregação
em determinadas modalidades.
É o que defende o judoca e estudante de
Ciências Sociais Paulo Roberto Silva. “A
ciência, com o seu discurso de verdade,
traz a ideia de que alguns esportes não
podem ser para negros. Por trás deste discurso
de ‘biologização exacerbada’ existe
uma lógica racista, que blinda algumas
modalidades da presença negra”.
Superando a pobreza e a marginalização
geográfica, fora do circuito Sudeste
de Natação, o baiano Edvaldo Valério
conseguiu chegar à elite mundial do
esporte e foi diversas vezes campeão
brasileiro de natação nas provas de 50,
100 e 200m nado livre. Além disso, conquistou
a medalha de bronze no revezamento
4x100 metros livres nos Jogos
Olímpicos de Sydney, em 2000. Apesar
de ter garantido a medalha para o Brasil,
no ano seguinte, Edvaldo perdeu metade
dos patrocínios tendo de se mudar para
o sudeste para se manter no esporte. A
mudança não trouxe as oportunidades
esperadas, a falta de reconhecimento fez
com que o atleta baiano nadasse por
mais nove anos sem apoio. Em 2009, ele
voltou à Salvador decidido a parar por
falta de patrocínio.
Outro exemplo de que o esporte é influenciado
por questões sociais e políticas
é o caso do ex-velocista Thomas Smith,
que tornou-se mundialmente famoso por
sua vitória nos 200 metros rasos nos
Jogos Olímpicos do México, em 1968.
Durante a cerimônia do pódio ele e seu
compatriota John Carlos, ergueram os
punhos direitos fechados, uma saudação
do Partido dos Panteras Negras, marco
na história das lutas pelos direitos
civis dos afro-americanos. Após o ato,
os corredores foram banidos dos jogos
pelo Comitê Olímpico Internacional e
a Federação de Atletismo dos Estados
Unidos jamais colocou o nome deles no
hall da fama do atletismo.
O doutor em ciências sociais, Osmundo
Pinho, explica que no esporte
é atribuído ao corpo uma qualidade
natural e espontânea, isso faz com
que não acreditemos que ele possa
ser mediado ou regulado pela cultura.
Porém, o corpo é produto da história
e só ganha sentido em determinado
contexto. “Acreditamos que negros são
mais fortes e resistentes, porém são
menos técnicos, porque nos ensinaram
assim. Esses ensinamentos têm historia
e refletem as condições de vida,
passadas e presentes, da maioria das
pessoas de pele escura no Ocidente
moderno”. Ainda segundo Osmundo,
o racismo influencia e permeia toda a
experiência do corpo negro na diáspora
moderna, não sendo natural ou
fruto da biologia, mas sim resultado e
“arena da própria história”.
FOTO DIVULGAÇÃO
O medalhista
jamaicano Usain
Bolt posando para
a foto da vitória
nas Olimpíadas de
2012, em Londres
7
h Organização e luta
BRASIL
contra os
tupinambá
A luta secular
de um povo pelo
direito de existir
t
f
Alane Reis e Rose Cerqueira
David Aynan
ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF
NEm março de 2014, cerca de
400 pessoas, representando
42 entidades do movimento
social do Brasil, América
Latina e Europa, estiveram presentes na
“Marcha dos Povos da Cabruca e da Mata
Atlântica: Em defesa das terras sagradas
Tupinambá”. O destino foi à Aldeia
Tupinambá da Serra do Padeiro, município
de Buerarema, região Sul da Bahia. A
intenção dos 18 km de caminhada serra
a cima era demonstrar apoio ao povo
Tupinambá em luta por seu território
e, consequentemente, pela sobrevivência.
A recepção do Estado brasileiro
aos andantes não poderia ter sido mais
representativa. Um helicóptero de guerra
da Marinha do Brasil sobrevoou por três
vezes a aldeia em voos rasantes. Para entender
melhor os motivos da Marcha e da
bélica recepção do Estado, é importante
resgatar alguns capítulos dessa história.
Entre o final do século 19 e início do
século 20, o cultivo do cacau fez da
região, a mais importante fronteira agrícola
do estado. Neste período, inicia-se
um processo intenso de inserção de não
índios no território tradicionalmente
ocupado por Tupinambá, através dos
casamentos inter-raciais com mulheres
indígenas, e da violenta apropriação
das terras por grileiros.
Nas primeiras décadas do século 20, os
índios que não migraram para as zonas
urbanas tiveram que se manter em
pequenos pedaços de terras ou trabalhar
nas lavouras de cacau, em condições
análogas a escravidão. Fontes etnológicas
já davam os Tupinambá como extintos
desde o século 18. A paz foi forjada em
sangue indígena. Os fazendeiros dormiam
tranquilos com a certeza da posse
das terras que não lhes pertencem. “Os
sobrenomes dos supostos proprietários
de fazendas são os mesmos dos coronéis
dos anos 30. No sul da Bahia até
hoje tem coronel”, explica a jornalista,
antropóloga e pesquisadora na questão
Tupinambá, Daniela Alarcon.
Os Tupinambá, enquanto estiveram “invisíveis”,
não possuíam mais suas próprias
8 www.revistaafirmativa.com
casas, não lhes restavam os meios de
subsistência ancestrais, os cemitérios
dos mortos, os umbigos enterrados dos
nascidos, os assentamentos religiosos
de seus Encantados e a dignidade. Tudo
se perde com a terra. Para os povos
tradicionais a própria terra é manifestação
do sagrado. “A gente só faz o que
os Encantados mandam. Um dia eles
disseram: vocês têm uma semana pra
tomar nossas terras de volta. Foi assim
que começamos e retomamos as terras”.
Desabafa Rosivaldo Ferreira da Silva,
o cacique Babau, liderança na Aldeia
Tupinambá da Serra do Padeiro.
O conflito volta a se intensificar no
início dos anos 2000, quando os Tupinambá
passaram a imprimir ações
intituladas “retomadas de terras”, com
intuito de pressionar o Estado a cumprir
a lei e remarcar as terras onde
tradicionalmente vivem. Em maio de
2002, o Brasil reconhece oficialmente
a existência do povo Tupinambá. Em
2004, a Fundação Nacional do Índio
(Funai) iniciou o procedimento de
identificação e delimitação da Terra
Indígena (TI) Tupinambá de Olivença.
Na condução do processo demarcatório,
todos os prazos estabelecidos pelo
Decreto nº1.775/1996, que regulamenta
e fornece etapas às demarcações de
terra indígena, foram violados.
Em 2009, a Funai delimitou a TI em
47 mil hectares, compreendidos nos
municípios de Buerarema, Ilhéus e
Una, onde vivem cerca de 4.700 índios
e 1200 famílias, em 21 aldeias, de
acordo com dados da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa - 2009). Em
março de 2012, o órgão indigenista encaminhou
o processo dos Tupinambá
ao Ministério da Justiça (MJ). Em abril
do mesmo ano, a consultoria jurídica
do ministério manifestou-se pela aprovação
dos estudos elaborados.
Diversas contestações à demarcação
foram indeferidas e não restam dúvidas
sobre a tradicionalidade da ocupação
indígena. Ainda assim, o processo está
parado. Para dar seguimento, o Ministro
1
da Justiça, José Eduardo Cardozo (PT),
precisa assinar a portaria declaratória
da TI para posteriormente encaminhar
às etapas finais, incluindo o pagamento
das indenizações aos ocupantes não
indígenas e o reassentamento daqueles
que têm perfil de cliente da reforma
agrária. A equipe de reportagem entrou
em contato com o MJ para maiores esclarecimentos
sobre a questão indígena,
mas até o fechamento desta edição não
obtivemos retorno.
No lugar de assinar a portaria, o ministro
Cardozo, em setembro de 2013,
instalou uma “mesa de diálogo” - fórum
interinstitucional para tratar do caso
Tupinambá. A reunião contou com a
forte presença das forças militares, o
governador do estado da Bahia Jaques
Wagner (PT), lideranças indígenas e
pretensos proprietários rurais. O movimento
indígena há anos vem denunciando
que estes fóruns, adotados pelo
governo em regiões apropriadas pelo
agronegócio, são parte da estratégia de
atrasar a demarcação das TIs. O Ministério
Público Federal (MPF) já propôs
três ações civis públicas (em 2007, 2012
e 2013) responsabilizando o Estado
por não cumprir a atribuição legal de
proteger os direitos territoriais indígenas.
rurais. O movimento indígena há anos
vem denunciando que estes fóruns,
adotados pelo governo em regiões onde
há forte presença do agronegócio, são
parte da estratégia de atrasar a demarcação
das TIs. O Ministério Público
Federal (MPF) já propôs três ações
civis públicas (em 2007, 2012 e 2013)
responsabilizando o Estado por não
cumprir a atribuição legal de proteger
os direitos territoriais indígenas, conforme
determinam a Constituição Federal
de 1988 e os tratados internacionais de
que Brasil é signatário.
DE TERRAS SAGRADAS A
TERRITÓRIO DE GUERRA
Alvos de emboscadas realizadas por
ocupantes não indígenas, os Tupinambá
têm sido vítimas também de recorrente
violência policial. Em junho de 2009, du-
1. Família indígena junto aos militantes da marcha em espaço de socialização das
lutas. 2. Helicóptero de guerra da marinha sobrevoando a aldeia. 3. Momento da
caminhada de 18 km subindo a Serra do Padeiro
3
2
9
h Organização e luta
“Pra tirar nós daqui,
rante tentativa de reintegração de posse,
agentes da Polícia Federal (PF) submeteram
cinco índios a chutes, socos e
choques elétricos, confirmados por laudo
do Instituto Médico Legal (IML).
A pedido do governador Wagner e por
determinação do ministro Cardozo, o território
indígena Tupinambá de Olivença
encontra-se militarizado desde agosto de
2013. Entre os dias 28 de janeiro e 4 de
fevereiro deste ano, agentes da Força Nacional
de Segurança Pública, em conjunto
com a PF, realizaram ações violentas de
reintegração de posse em quatro fazendas
retomadas pelos Tupinambá da Serra
do Padeiro. Em três delas, os Tupinambá
impediram a reintegração. Na quarta, na
fazenda Sempre Viva, foi instalada uma
base policial, dando início à ocupação
militar permanente do território.
O governo do estado da Bahia e o
Ministério da Justiça asseguram que a
presença das tropas evitaria conflitos
entre indígenas e não indígenas contrários
à demarcação. Entretanto, no mesmo
agosto da ocupação militar, um caminhão
que transportava estudantes da Escola
Estadual Indígena Tupinambá Serra do
Padeiro sofreu uma emboscada e foi alvejado.
Estilhaços feriram dois jovens indígenas,
no rosto e no peito. Dias depois em
Buerarema, grupos contrários à demarcação
realizaram uma série de protestos
violentos. Apesar da Força Nacional de
Segurança ter sido deslocada para a área,
os ataques persistiram. Veículos de órgãos
públicos foram retidos e incendiados
por manifestantes. Indígenas que vivem
na zona urbana de Buerarema tiveram
suas casas e bens pessoais incendiados.
No dia 8 de novembro de 2013, três
indígenas foram assassinados em uma
emboscada quando retornavam da coleta
de piaçaba. Conforme depoimentos, as vítimas:
Aurino Santos Calazans, 31, Agenor
Monteiro de Souza, 30, e Ademilson Vieira
dos Santos, 36, foram atacados a tiros e
golpes de facão por quatro homens em
duas motocicletas. Um dos indígenas foi
encontrado quase decepado, apresentando
marcas de tortura e ferimentos
provocados por facão e chicote.
Intimidações e saques na produção
agrícola passaram a fazer parte do
cotidiano dos Tupinambá. Por razões de
segurança eles evitam sair da aldeia, o
que impede o acesso a serviços de saúde
e acarreta significativos prejuízos econômicos
ao impossibilitar a comercialização
da produção. “Não podemos ir à cidade.
Por causa da violência contra a gente
tem oito meses que eu não vou. O povo lá
impede que nós vá vender o que produzimos.
Junta maloqueiro contratado pelos
fazendeiros e toma a farinha, o cacau e
a banana que a gente vai vender. Eles
batem até em mulheres e crianças indígenas”.
Revelou Dona Ailza, 54, Tupinambá
da Aldeia Serra do Padeiro.
“A ocupação militar tem por objetivo
reprimir os indígenas e evitar a realização
de novas retomadas de terra. A única
forma de se pacificar a região e garantir
os direitos de todos, é a demarcação. Os
fazendeiros, que por décadas se mantiveram
invasores do território, receberão
indenizações por realizarem ‘benfeitorias
de boa fé’. Os pequenos agricultores,
que têm o perfil de clientes da reforma
agrária, serão devidamente reassentados”.
Explica a pesquisadora Daniela Alarcon.
O Procurador da República em Ilhéus,
Ovídio Augusto Amoedo Machado, também
deu declarações afirmando que “a
conclusão do processo demarcatório é
essencial para a pacificação da região,
pois trará segurança jurídica para ambas
as partes”.
AGRONEGÓCIO, O HERDEIRO DIRETO
DO CORONELISMO
O principal argumento anti-demarcação
é que os Tupinambá de Olivença não são
verdadeiros índios. “Por não possuírem
o fenótipo arquétipo do que as pessoas
imaginam que seria um índio, eles são
acusados de se apropriarem da identidade,
para usufruírem de direitos indígenas”.
Explica a professora, antropóloga
e pesquisadora na questão Tupinambá,
Patrícia Navarro. Segundo a convenção
169 da Organização Internacional do
Trabalho, da qual o Brasil é signatário, o
critério para que se reconheça alguém
como indígena é a auto identificação
respaldada pelo grupo.
“Ninguém é exatamente igual aos seus
antepassados. Esse índio do livro didático
não existe mais. Eles participam da
politica, da economia, vão à Universidade,
e não deixam de serem índios por isso.
A identidade independe das mudanças,
a cultura muda o tempo todo”. Explica
Patrícia Navarro. Para Daniela Alarcon, a
argumentação anti-indígena é tão perversa
que se adapta a qualquer situação.
“Se os índios estão prósperos, produzindo
e cultivando a terra em grande escala,
dizem logo que não são mais índios. Se
pelo contrário, estão produzindo pouco,
vão chamá-los de preguiçosos, e por isso
não precisam da terra”.
Não por acaso, a descaracterização da
identidade indígena tem sido reforçada
sistematicamente por séculos. “É um pensamento
criado pelas grandes oligarquias
e mantido pelo herdeiro direto, o agronegócio.
É o mito da democracia racial, que
extingue os povos existentes no Brasil
para se criar o povo brasileiro”. Comenta
a também professora, antropóloga e pesquisadora
na questão, Jurema Machado.
Enquanto o Ministério da Justiça se
10 www.revistaafirmativa.com
só matando.”
CACIQUE BABAU
mantém paralitico no seguimento do
processo demarcatório, “a omissão dos
órgãos responsáveis (Funai e Incra), cria
terreno fértil para que os fazendeiros estimulem
nos posseiros o ódio e o medo aos
indígenas”, garante a professora Patrícia
Navarro. “A Funai deveria estar constantemente
dentro das áreas que estão
sendo demarcadas, promovendo junto aos
pequenos agricultores, o entendimento do
processo de demarcação e como e onde
eles serão reassentados. Isso já evitaria
inúmeros conflitos no território”, explica.
Paralela à morosidade do processo
que já se arrasta por mais de 10 anos,
estratégias são usadas para minar a organização
indígena. Lideranças têm sido
ilegalmente presas, e criminalizadas pela
imprensa local, que apresenta os Tupinambá
como “criminosos que se dizem
índios”. Cacique Babau, referência na luta
de seu povo, é acusado de envolvimento
no assassinato do pequeno agricultor,
Juracy José dos Santos, morto em fevereiro
deste ano, no distrito de Vila Brasil,
município de Una.
No dia 20 de fevereiro, Babau teve
sua prisão temporária decretada
pelo juiz Maurício Alvares Barra, da
Vara Criminal da Comarca de Una. O
inquérito policial correu em segredo
de justiça. O mandado de prisão foi
expedido dez dias após o homicídio.
A duração das investigações chama
atenção, quando se sabe que a Polícia
Civil em Una dispõe de um contingente
de apenas dois policiais. Apenas
testemunhas de acusação foram
ouvidas. A polícia alegou à Justiça não
ter conseguido encontrar o cacique
para que ele prestasse depoimento.
Entretanto, sabe-se que o cacique
Babau é assistido, desde 2010, pelo
Programa de Proteção aos Defensores
de Direitos Humanos, em razão
das numerosas ameaças
de morte que
recebe desde
que se iniciou
o processo de
recuperação
territorial.
Além disso,
como já foi
dito, Babau
vive em um
território ocupado
por forças
militares e é cotidianamente
vigiado.
Entre as pesquisadoras Daniela, Jurema
e Patrícia, uma opinião é unânime:
“todos os processos de demarcação de
terras estão parados no Brasil porque
qualquer situação que venha colidir
com o interesse dos ruralistas, o
governo não tem cumprido seu papel”.
A professora Jurema segue explicando
que a situação no Sul da Bahia
está longe de ser um caso isolado. “O
governo não demarca a terra Tupinambá,
do mesmo jeito que não faz no
Mato Grosso do Sul, com os Guarani;
no Oeste do Pará, com os Mundurucú;
com o Quilombo Rio dos Macacos, em
Simões Filho (Ba). Povos tradicionais
no Brasil inteiro vivem situações de
violências semelhantes”.
“A explicação para tanta violência,
é que as terras de uso comum saem
do mercado e não podem mais ser
comercializadas. Isso gera pânico em
gente muito poderosa. No caso de terras
indígenas, ainda mais, por se tratar
de direito originário, não se indeniza
integralmente o fazendeiro. Ele recebe
apenas pela benfeitoria de ter passado
a terra”. Explica Patrícia Navarro.
Acima, Cacique Babau
em conversa com
militantes durante a
marcha em defesa das
terras sagradas Tupinambá.
Ao lado, homenagem do artista
Leonardo Pessoa ao líder.
DIREITO ANCESTRAL NÃO
SE NEGOCIA
O povo Tupinambá, quase extinto para
a construção do Brasil e do tortuoso
ideal de povo brasileiro, mantém com
glória, como faz questão de garantir
o Cacique Babau, a honra de seus
Encantados. Essas 1200 famílias que
vivem na TI de Olivença seguem na
luta cotidiana, pelo direito originário de
seu povo se manter na terra que foi de
seus ancestrais, historicamente guerreiros,
primeira etnia a ter contato com
os portugueses na costa, que posteriormente
veio a se chamar Brasil.
A fala firme do Cacique Babau mostra
a coragem de um povo, disposto a
ir até as ultimas consequências pela
garantia de suas terras. “A luta indígena
caminha para uma guerra nacional. Os
opressores que roubaram nossas terras
e mataram nossos parentes estão cada
dia mais fortes. Eles estão se organizando
através das leis para roubarem de
novo nosso território, e é claro que ninguém
vai tomar nossas terras de volta.
Pra tirar nós daqui só matando”.
11
h Entrevista
O MEDO
DO OUTRO
t
Edimilton Santos
Foram mais de duas horas de
bate-papo franco, direto e aberto
com a professora e coordenadora
do Programa de Pós-
-graduação em Ciências Sociais, Cultura,
Desigualdades e Desenvolvimento, da
Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia, Angela Figueiredo, onde conversamos
sobre políticas afirmativas, mobilidade
social e universidade.
“As pessoas estão sempre
acostumadas a perceber o
outro como aquele que serve
o café e não o que discute no
mesmo patamar.”
Pós-doutora pelo Carter
Woodson Institute nos
EUA, Angela Figueiredo
diz que não existe
conhecimento neutro
12 www.revistaafirmativa.com
Angela, por que as cotas na universidade
é um projeto que deu certo?
O projeto de ações afirmativas na universidade
deu certo porque vem propor pela
primeira vez uma medida para desestruturar
e reestruturar a desigualdade racial
no Brasil. A proposta de ações afirmativas
vem quebrar um ciclo de reprodução
da desigualdade que estava nos cursos
do ensino superior durante muitos anos, e
o ingresso de estudantes negros, indígenas
e de classes populares na universidade
cumpre esse papel. As cotas possibilitam
o acesso ao ensino superior, que é
um mecanismo clássico de mobilidade
social no Brasil, passando a ser uma
política de combate à desigualdade, mas
certamente não se encerra aí.
Avança para a discussão de cotas no
serviço público?
O Brasil não vai reestruturar a sociedade
se depois que você se formar não existir
cotas no emprego. Se você se forma, vai
ficar desempregado, porque no Brasil
ainda funciona pelo mecanismo de
quem indica. E os empregos públicos,
reduzidos cada vez mais por conta de
um projeto de neoliberalismo e de privatização
das empresas estatais, tem um
impacto na classe média brasileira em
geral, e particularmente na classe média
negra. O emprego público sempre foi
um canal de mobilidade.
E como é que a universidade tem reagido
a essa mudança?
A universidade tem refletido pouco sobre
o necessário aprendizado que a gente
precisa ter pra lidar com os alunos cotistas,
sobretudo aqueles de comunidades
tradicionais. O conhecimento ainda é
produzido de uma forma vertical. Com
o privilégio, obviamente, de um tipo de
conhecimento em detrimento de outro. A
universidade vive hoje, um momento muito
especial com limites claros. Os planos
de curso ainda são muito conservadores
para a universidade que desejamos. Nós
montamos o programa ainda agendado
para uma universidade conservadora.
Outro modelo de universidade se faz urgente.
Os cursos e as próprias disciplinas
têm que ser transformados, do contrário
corremos o risco de termos alunos
desrespeitados em frente a determinados
professores e colegas, que relutam em entender
a dimensão da posição do sujeito
na produção do conhecimento.
Na academia tem sido comum o embate
entre produção acadêmica e militância.
Por que isso tem acontecido?
O embate entre a militância e a reprodução
acadêmica, na verdade, é o resquício
de uma crença em uma ciência neutra.
Anteriormente, todo interesse no instrumento
de raça tinha uma agenda e não
era neutra. Trazer o argumento de que
a produção acadêmica negra é simples
ativismos é um modo raso de desqualificação
do olhar do negro sobre os objetos
de produção do conhecimento. Temos
exemplos importantes que surgem da
relação Ativismo e Academia. O feminismo
é uma dessas experiências. O sujeito
que produz o conhecimento é um sujeito
que tem identidade com o sujeito da sua
investigação. Esse é o foco do embate.
Todo conhecimento é posicionado. Mesmo
os europeus estavam olhando o mundo a
partir de uma localização.
Você acha que as cotas na pós-graduação
pedem urgência?
Conforme dados do Censo 2010, 80% dos
residentes no Brasil que possuem um título
de mestre ou doutor são brancos, embora
a população branca some 47,7% da
população brasileira. A população autoclassificada
como parda, correspondente
a 43,4% da população total brasileira, tem
participação de 15,7% entre os mestres
e 12,2% entre doutores. Já a população
preta, correspondente a 7,5% da população
total, está sub-representada entre os
detentores de título de mestres e doutores,
sendo 3,1% e 2,3%, respectivamente.
Observe: o professor para orientar deve
ter alguma experiência na área. Então, se
o corpo de professores na pós é majoritariamente
branco, que não tem experiência
em algumas temáticas, e não entende
algumas temáticas, esses professores
podem simplesmente não aceitar os
trabalhos por falta de experiência. E se
não tem orientador, como é que esses
estudantes podem ser aprovados? Esse
pode ser o mecanismo, digamos, mais
clássico. Outros mecanismos podem estar
relacionados ao modo como o racismo
opera no Brasil.
Os argumentos contrários às cotas na
pós-graduação se diferem dos argumentos
do início do processo nos anos 2000?
Os mesmos argumentos da meritocracia,
os mesmos argumentos do medo. Quando
se fala de transformação as pessoas
logo apresentam o medo da mudança.
E, na verdade, é uma argumentação que
não está respaldada nos dados. Os dados
mostram o contrário. São outros mecanismo
que estão operando na hora da
seleção. O que a gente tem que ter é a honestidade
de olhar de frente o problema.
São argumentos muito próximos àqueles
de 2002, 2003, 2004, o mesmo medo da
desqualificação da educação no Brasil,
o medo da incompetência dos alunos
oriundos de escolas públicas, o medo de
alunos negros, sempre o medo como uma
falta de abertura e de capacidade de pensar
o quanto esses alunos vão contribuir,
e o quanto os professores podem contribuir
para a formação desses alunos. É
desafiador mesmo! A tarefa de orientação
é desafiadora para todo mundo.
E como está esse debate na UFRB?
Não tem ido a diante por diversos fatores.
No Fórum Internacional da Consciência
Negra da UFRB tiveram algumas
fala, mas ainda não temos um corpo de
professores, um conjunto de professores
levando essa tarefa a cabo. Eu acho que
deveria ter um chamado (aqui é uma
provocação à Pró reitoria de Graduação
e Pesquisa, inclusive vou telefonar pra lá
(risos)). E eu acho que acima de tudo deve-se
colocar os professores não-negros
dentro desse processo. Os professores
não negros delegam a gente uma tarefa
que é do coletivo de professores. Precisamos
romper com o medo que impede a
mudança de perceber o outro.
13
h Capa
Caça às
Bruxas
No Brasil do século XXI, o fundamentalismo religioso
apresenta-se cada vez mais ameaçador, relembrando o
período da Santa Inquisição
t Jonas Pinheiro
f
Morgana Damásio
Feira de Santana, sertão da Bahia,
ano de 1960. Acusada pelos
vizinhos de ser “mãe de santo”,
a comerciante Maria Eulália* é
detida pelo delegado de polícia da cidade.
Em seu pedido de Habeas Corpus, o
advogado alega que a ré não teve direito
a defesa. Não foi a primeira vez que a
comerciante foi presa pelo mesmo motivo.
O parecer do Juiz ao processo considera
que há exagero e informações insuficientes
no pedido de soltura. O Código Penal
vigente no período tratava como crime
ritos de curandeirismo, associados geralmente
às práticas das religiões de matriz
africana. O caso descrito encontra-se no
Centro de Estudo e Documentação e Pesquisa
– CEDOC da Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS).
Passados mais de 50 anos da prisão
de Maria Eulália, a liberdade de culto
religioso é legalmente amparada na
atual Constituição do Estado brasileiro.
Na mesma Feira de Santana, a senhora
Antonia Barbosa de Souza, moradora do
bairro Tomba, no dia 14 de maio de 2014
vai a mais uma audiência de conciliação
14 www.revistaafirmativa.com
*Para preservar a fonte, o nome utilizado é fictício
no Fórum Filinto Bastos. O fato tem
se tornado corriqueiro nos últimos 5
anos, quando passou a ser perseguida
por vizinhos membros da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD),
por ser adepta do Candomblé.
Dona Antonia tem 67 anos, negra, é
aposentada e viúva. Analfabeta, ganhou
a vida como empregada doméstica
e vendendo lanches. Mora sozinha
desde 2009, quando sua filha saiu de
casa para estudar fora, época em que
as perseguições começam. Até aquele
ano a convivência na vizinhança era
amigável. A relação muda depois de
um episódio em que uma oferenda
religiosa é depositada na porta de
sua casa. Dona Antonia diz não saber
quem a colocou, mas o ocorrido foi
suficiente para o início da perseguição
travada pelos vizinhos evangélicos.
Desde então, as ofensas, agressões e
até ameaças de morte não pararam e
o caso foi parar na justiça. Seus vizinhos
a acusaram de tê-los chamados
de “crentes descarados”. Tendo em vista
as acusações, Dona Antonia também
procurou a polícia. Os processos já se
arrastam por 5 anos, sem nenhuma
solução. De acordo com ela, a violência
varia de gritos de “feiticeira” às tentativas
de agressões físicas. “Ainda assim
continuarei da macumba, não vou deixar
minha religião que eu gosto por falta de
respeito dos outros”, diz a filha de santo.
O caso é tratado pela justiça como um
simples conflito entre vizinhos. Diversas
audiências de conciliação já foram realizadas
e na maioria das vezes, por não
ter condições de contratar um profissional,
Dona Antonia compareceu sem
a companhia de um advogado, o que
facilitou pareceres desfavoráveis a ela.
Os vizinhos autores das violências
quando procurados pela equipe de
reportagem disseram que por orientação
do advogado, não comentariam
o caso. Segundo a assessoria de
comunicação da Igreja Universal “não
há por parte da religião a incitação a
nenhum tipo de intolerância religiosa.
A liberdade de pensamento, crença
e culto, garantida na Constituição
Federal é defendida de modo intransigente
pelos fiéis da Universal”. Ainda
segundo a assessoria, “a maioria das
vítimas de intolerância religiosa no
Brasil atualmente são evangélicas”.
Não é a primeira vez que a Universal é
acusada de crime de ódio religioso. Em
1999 o jornal Folha Universal publicou
a reportagem “Macumbeiros Charlatões
lesam o bolso e a vida dos clientes”.
Estampava a ilustração da matéria a
foto de Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda.
Após a publicação, a Mãe de Santo da
Casa Axé Abassá de Ogum, no bairro de
Itapuã, em Salvador, entrou em depressão
e passou a ter seu terreiro invadido
por fiéis de igrejas neopentecostais.
“Minha mãe entrou em processo de
depressão. Outros segmentos de neopentecostais
passaram a perseguí-la,
ameaças e invasões ao terreiro eram
constantes. Certa vez arremessaram
uma bíblia na cabeça dela dizendo que
iriam exorcizá-la”, conta Jaciara Ribeiro,
filha biológica de Mãe Gilda, e atual
Yalorixá do Ilê Axé. Mãe Gilda morreu
de infarto em 21 de janeiro de 2000, um
ano após começarem as perseguições.
Jaciara e seus familiares processaram
então a Igreja Universal, conseguindo
decisão favorável apenas em 2008,
através do Superior Tribunal Federal
(STF), com um valor bem menor do
que o pedido pela família. A data de
sua morte, desde 2007, se tornou por
meio de lei federal o Dia Nacional de
Combate à Intolerância Religiosa.
Povo de santo de Salvador protestou no dia 21 de maio contra a decisão do juiz Eugênio Rosa de Araújo que, em uma sentença, não considerou os
cultos afro-brasileiros como religiões.
15
h Capa
RACISMO RELIGIOSO FAZ
VITIMAS EM TODO O PAÍS
Quinze pais e mães de santo assassinados
em nove anos. Os crimes poderiam
ter acontecido durante a Idade Média, na
“Santa” Inquisição ou no Brasil escravocrata,
mas os números são recentes e
o cenário é o estado do Amazonas. Os
dados, com base em números de entidades
ligadas a Articulação Amazônica
do Povo Tradicional de Matriz Africana
(Aratrama), fizeram com que o Ministério
Público Federal recomendasse ações
de combate à perseguição do povo de
santo à Secretaria de Segurança Pública
do estado. Em Caxias, no Rio de Janeiro,
o terreiro Kwe Cejá Gbé foi incendiado, e
os 40 filhos de santos membros da casa
perderam suas roupas e objetos sagrados.
Não foi a primeira vez que a casa
de candomblé foi vitima de perseguição
religiosa, o centro tem sofrido há seis
anos com diversos atentados.
A situação vivida por Dona Antonia e
os crimes no Amazonas e em Caxias (RJ)
não são casos isolados. Também no Rio
de Janeiro, o juiz da 17ª Vara de Fazenda
Federal no estado, Eugênio Rosa de Araújo,
em sentença judicial no dia 28 de abril
de 2014, afirmou que os cultos afro-brasileiros
não contêm traços necessários para
serem considerados religião. Isso por não
terem um livro base, como é o caso do
Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, além
de não ter um único deus a ser venerado.
“Para que nós queremos bíblia, se temos
em nossas cabeças os nossos ancestrais?”
O desabafo é da Yalorixá Beatriz Moreira
Costa, a Mãe Beata de Iemanjá, referência
na luta social em defesa dos povos negros
e de terreiro e autoridade religiosa do
terreiro Ilê Omi Oju Aro, no Rio de Janeiro.
A decisão do juiz foi em resposta a uma
ação do babalorixá e advogado, Márcio de
Jagum, no Ministério Público Federal, que
pedia a retirada de 15 vídeos da internet
ofensivos às religiões de matriz africana,
postados pela Igreja Universal. Após
pressão dos movimentos sociais negros e
da mídia, o juiz voltou atrás e modificou
Movimentos sociais
promovem atividade em
apoio a Dona Antonia*
Movimentos sociais negros, lideranças
religiosas, movimentos hip
hop e estudantil se reuniram em
defesa de Dona Antônia em frente
a sua casa no dia 25 de maio deste
ano. A atividade intitulada “Microfone
aberto contra o racismo
religioso” trouxe depoimentos,
rap, grafite, exibição de filme e um
forte desabafo contra o racismo
e a demonização das religiões de
matriz africana.
Durante o evento, mesmo com a
presença de cerca de 70 pessoas,
o texto, mas não alterou a sentença. O parecer
judicial pela não retirada dos vídeos
ofensivos da internet permaneceu. O caso
motivou a criação da Frente Parlamentar
em Defesa dos Povos Tradicionais de Terreiro,
oficializada na Câmara dos Deputados,
em Brasília, no dia 27 de maio.
Em resposta a decisão do juiz carioca
e às constantes perseguições sofridas, as
Casas de Santo mais antigas e tradicionais
do Brasil também se organizaram
em um evento, no dia 11 de junho deste
ano, intitulado “Povo de Santo ocupa Brasília”,
que ocupou a Praça dos Três Poderes
para reivindicar a retirada da internet
dos vídeos produzidos pela Universal e o
fim da perseguição religiosa. Na ocasião,
25 fiéis do Candomblé e da Umbanda
foram recebidos pelo ministro da Justiça,
José Eduardo Cardoso, que anunciou a
criação de um grupo de trabalho para
discutir ações de combate à intolerância
religiosa. Os reflexos da luta não demoraram
a aparecer, e no dia 13 de junho
o desembargador Roy Reis Friede, da
2ª Região do Tribunal Regional Federal,
decidiu em caráter liminar pela retirada
dos 15 vídeos da internet.
“Estamos nacionalizando as nossas
demandas que ficavam restritas nos
em solidariedade à vitima, mais um
episódio de perseguição acontece.
Um carro de som passa propagando
pela rua o bravejo de um
declarado fiel neopentecostal que
gritava ao microfone e convocava
o “povo de Deus” para queimar o
“mal”. O mal para eles possui várias
formas, e uma delas é Dona Antônia.
Por conta da perseguição que sofre
de seus vizinhos e com medo de
agressões, Dona Antônia deixou de
realizar algumas práticas comuns
de sua religião, como a defumação
da casa, a oferenda anual de caruru
no aniversário da filha e a distribuição
de pipoca para São Roque.
As organizações participantes do
estados. Nossos problemas acontecem em
todos os estados brasileiros e é por isso
que precisamos exigir do Governo Federal
que aplique a lei”, afirma o Ogan Marcos
Rezende, professor de história e membro
do Coletivo de Entidades Negras (CEN).
A omissão do governo é uma das maiores
denuncias destes grupos religiosos.
Para o Ogan Marcos, essa omissão está
relacionada à conjuntura política do país,
sobretudo a força política que assumem
os partidos evangélicos. “O governo não
faz o papel devido, não dá respostas à
altura do problema, e como no processo
tem alguns partidos evangélicos que se
posicionam com pautas retrógradas e posicionamentos
atrasados, as respostas não
agradam quando o tema é a intolerância
religiosa”, completa Marcos.
No ano passado, o vereador da câmara
municipal de Salvador, Marcell Moraes
(PV), criou um projeto de lei que tentava
proibir “o sacrifício e/ou mutilação de
animais na prática de qualquer atividade
religiosa”. Devido a protestos e pressão
de entidades ligadas ao Candomblé e
a Umbanda, o projeto foi considerado
inconstitucional e barrado. Caso semelhante
aconteceu no estado de São Paulo,
em 2011, quando o deputado, também
16 www.revistaafirmativa.com
evento construíram uma rede com
representantes responsáveis para
acompanhar o caso e ajudarem com
assessoria jurídica. Estiveram presentes
na atividade representantes da
Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB), Federação Nacional
do Culto Afro-brasileiro (Fenacab),
Partido Socialismo e Liberdade (Psol),
Núcleo Akofena, Núcleo de Estudantes
Negras e Negros da Universidade
Estadual de Feira de Santana
(Nennuefs), Cini Guarany, Movimento
Negro Unificado (MNU – Feira de
Santana) e a Frente Negra de Feira de
Santana (Frenefe).
*Texto: Edimilton Santos
do PV, Feliciano Filho, tentou proibir a
prática no estado.
“O motivo fundamental da continuidade
das perseguições aos cultos afro-
-brasileiros é a tenacidade do racismo
no Brasil”, é o que afirma o antropólogo
Ordep Serra. Para ele, essa mistura entre
racismo e religião é perigosa. “O racismo
envenena as religiões que lhe cedem espaço
e assim engendra fanatismo, o que
leva a crimes”.
A historiadora Michelle Dantas, especialista
em história da Bahia, chama a
atenção para o fato das práticas atuais
serem reflexos do processo histórico de
inferiorização que os povos africanos sofreram
dos portugueses. “Desde o início
da exploração do continente africano e o
comércio de escravos, os europeus contribuíram
para a construção e difusão de
uma visão depreciativa que inferiorizava
os povos da África. Portanto, sua cultura
e religiosidade eram desqualificadas”,
afirma. O caso descrito no inicio do
texto foi um dos processos crimes
analisados por Michelle em seu Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC), que
discute a perseguição às religiões de
matrizes africanas entre 1947 e 1960,
em Feira de Santana.
FOTO EDIMILTON SANTOS
Dona Antonia, 67, perseguida
por vizinhos neopentecostais
desde 2009 por exercer sua
liberdade religiosa
A “BATALHA ESPIRITUAL” DOS
NEOPENTECOSTAIS
Entre as principais características da
prática de religiões neopentecostais
está a presença da “batalha espiritual”
entre os representantes do bem e do
mal na terra. Os fiéis são soldados de
uma “guerra santa” em cruzada contra
as religiões de matriz africana no Brasil,
eleitas por eles como a representação
do mal. Além da Universal, nesse
grupo se destacam as igrejas Mundial,
Renascer em Cristo e Internacional da
Graça de Deus.
Para Ordep Serra, o envolvimento dos
neopentecostais nessa perseguição tem
caráter mercadológico. “Novas igrejas
neopentecostais de missão, desejosas
de ampliar o contingente de fiéis de
quem capitalizam as contribuições,
fazem uma campanha proselitista”. O
intuito seria, portanto, converter os
praticantes das religiões demonizadas
para tornar o ‘negócio’ ainda mais lucrativo.
A capitalização das instituições
religiosas é mais uma das características
dos neopentecostais.
Ironicamente, ou não, os mesmos
grupos que hoje perseguem os cultos
de matriz africana se apropriam de
costumes destas religiões. Sessões
de descarrego, cerimônias de expulsões
de espíritos “malignos”, banhos
de purificação com o uso de ervas e
óleos e a presença de instrumentos
musicais percussivos nos cultos religiosos
são alguns exemplos. Na opinião
de Ordep, essa apropriação é um
grande exemplo de má fé dos líderes
religiosos cristãos “Essas novas igrejas
parasitam o acervo litúrgico dos cultos
afro-brasileiros ao tempo em que
os condenam. É um sinal perverso de
má fé”. Em 2012, a justiça proibiu que
o acarajé fosse vendido por evangélicos
sob o nome de “bolinhos de jesus”.
O quitute faz parte da cultura culinária
do candomblé.
Apesar de serem os principais responsáveis
atualmente pela perseguição, os
neopentecostais não são pioneiros nessa
“campanha de demonização” dos cultos
de matriz africana. “A Igreja Católica, por
exemplo, foi responsável pela difusão
de muitos preconceitos e fomentou com
suas prédicas a perseguição ao povo
de santo. É verdade que mudou consideravelmente
de atitude, mas tem uma
responsabilidade histórica na estigmatização
dos referidos cultos”, conta Ordep.
Para Mãe Beata, as violências sofridas
pelo povo de santo não se tratam
de intolerância religiosa. “Não gosto
desse termo, para mim é falta de
respeito religioso, e não só dos evangélicos”.
A Mãe de Santo acredita que casos
como o de Dona Antonia, do inicio
do texto, e tantos outros vivenciados no
país é só mais uma face do genocídio
do povo negro no Brasil. “É racismo
sim, e muita gente não acredita”.
No dia seguinte a nossa entrevista,
Mãe Beata viajou para participar do
ato “Povo de Santo ocupa Brasília”. A
força em suas palavras não denunciam
seus 83 anos, e em meio a tantas coisas
ditas, uma de suas últimas frases
reflete a luta do povo de santo em todo
país. “Para defender minhas raízes eu
sempre estarei de pé”.
17
h Autoafirmação
o poder nas raizes ´
Assumir cabelos crespos
não é só uma tendência, mas
uma maneira de reconstruir a
identidade e a autoestima
violentadas pelos padrões
estéticos racistas.
t
Alane Reis e Aline Lima
18 www.revistaafirmativa.com
‘‘Me diz que sou ridículo, me
diz que sou ridículo”. No
carnaval de 1974 saía do
bairro do Curuzu, em Salvador,
em direção ao Campo Grande, o
bloco Afro Ilê Ayê. Cerca de 100 foliões,
todos negros, desfilavam com fantasias
exuberantes e coloridas. Nas cabeças,
os penteados valorizavam a beleza dos
cabelos crespos, sejam os Black Powers,
tranças ou turbantes. Sob vaias e acusações
midiáticas de “racismo às avessas”,
o Mundo Negro desfilava pela primeira
vez para entrar para a história como
um dos principais símbolos contemporâneos
de resistência negra no Brasil.
Mas se o Ilê e os bairros da Liberdade
e Curuzu consagraram-se como o
mundo negro, e se lá, reis e rainhas ostentam
suas coroas, este mundo é uma
ilha excluída pelo padrão de beleza
branco, imposto pela sociedade e reproduzido
pela mídia. Casos de racismo e
imposições sociais a padrões estéticos
eurocêntricos ainda são recorrentes.
Em maio deste ano, a estudante de
História da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), Nelma De
Jesus, foi mais uma vítima de racismo.
O médico Jaime Soares, da Santa casa
de Misericórdia de São Félix (Recôncavo
da Bahia), recusou-se a fazer um
procedimento cirúrgico na estudante
por causa do seu cabelo dreadlock. Ela
conta que se preparava para fazer uma
cirurgia de hérnia. No consultório, o
médico disse que ela precisaria cortar
o cabelo para seguir com o tratamento.
“Eu disse a ele que não fazia sentido ter
que cortar o cabelo, se a cirurgia era no
umbigo. Perguntei se eu tivesse o cabelo
igual a da sua assistente (negra, de
cabelos alisados) se eu precisaria cortar,
ele foi taxativo: ‘claro que não’”. Nelma
conta que prestou queixa na delegacia
de São Félix e o caso já foi encaminhado
à promotoria. A equipe tentou entrar
em contato por telefone com o hospital,
mas não obteve êxito.
Em Sienna, na Itália, também em
maio, outra estudante da UFRB, Débora
Reis, participante do Programa Ciência
Sem Fronteiras, foi vítima de racismo.
Ela teve sua foto comparada à de um
macaco em uma rede social. “Quando
aconteceu, a primeira coisa que tive
vontade de fazer foi voltar pra casa,
mas percebi que não valia à pena deixar
meu intercâmbio por causa disso”. A
autora da montagem racista ainda enviou
mensagens de ameaças a Débora:
“vou arrancar seus cabelos duros com as
minhas mãos”. A estudante procurou
a delegacia da cidade para fazer um
boletim de ocorrência, mas foi informada
que não poderia registrar como
crime de racismo. A denúncia foi feita
posteriormente quando a agressora
expôs informações da vida pessoal
da estudante em uma rede social. O
processo foi aberto por crime de invasão
à privacidade.
Assumir cabelos crespos, mesmo
numa época em que a estética negra
figura o cenário da mídia e da indústria
da moda, ainda é um passo de muita
coragem. Libertar-se dos padrões
ainda é muito complicado, é o que
conta a estudante Lara Amorim,
20 anos, que passou muitos anos
alisando os cabelos com cosméticos
a base de guanidina e amônia e no
ano passado decidiu mudar. A estudante
conta que alisava apenas por
sentir-se pressionada. “Eu não era
feliz com minha imagem quando alisava.
Era uma forma de negar a mim
mesma. Um dia resolvi começar o
processo de transição. Percebi como
é bonito expressar minha identidade.
Deixei de me incomodar com que
os outros pensam e passei a amar o
meu cabelo.”
Cuidar dos crespos é
bonito e barato
Ultimamente a quantidade de produtos voltados
para cabelos crespos vem crescendo no
mercado, mas a maioria tem preços elevados
fazendo com que as mulheres optem por métodos
caseiros, é o que conta a estudante de
História da Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS) Mônica Cerqueira. “As hidratações
caseiras são a forma mais barata e eficaz de
cuidar dos fios crespos, principalmente à base
de amido de milho, abacate, banana ou hidratações
industrializadas que potencializamos com
produtos como óleos naturais de coco, mamona,
amêndoas, com azeites, açúcar, mel, leite.”
Mônica ensina uma receita caseira à base de
abacate, ela garante que é muito eficaz. Misture
no liquidificador:
» 1 abacate;
» 2 colheres de mel;
» 2 colheres de um óleo extra virgem de sua
preferência (mamona, coco, oliva);
» Um pouco de qualquer hidratação de sua
preferência (as mais baratas de mercado já
servem).
Lave seu cabelo como de costume, aplique a
mistura mecha a mecha e deixe agir por 30 min.
Enxágue e aplique o condicionador. Evite shampoos
que tenham sódio em sua composição.
19
h Direitos Humanos
O vexame de tantas
MARIAS
“– Assim? – Não. Assim não tá dando pra ver lá dentro. Abre
a vagina com a mão para que eu possa enxergar direito e
tosse 3 vezes fazendo força como se fosse na hora do parto.”
t Morgana Damásio
Domingo é o dia da semana
mais esperado por ela.
Somam-se quase dois
anos que neste dia ela
cumpre o ritual de levantar às quatro
e meia da manhã para se aprontar
para o momento aguardado. Café coado,
ela segue pelas ruas do bairro da
periferia onde mora, junto ao sol ainda
tímido, em direção ao ponto de ônibus.
Horas depois, já no fim de tarde, nos
conhecemos. Aqui ela vai se chamar
Maria. O cenário é a porta do Presidio
Lemos Brito, maior unidade prisional
da Bahia, localizado no bairro da Mata
Escura, em Salvador.
Pergunto a Maria como se dá o
processo de revista para os visitantes.
“No modulo que eu vou, se tiver de
calça só faz baixar a calça e depois
suspende. Agora, se a agente (penitenciaria)
tiver suspeita de alguma coisa,
aí ela manda tirar. Pede a roupa pra
olhar. Olha a roupa toda, a calça, a
blusa, tudo. Agacha três vezes e você
tem que fazer força, né? Pra ver tudo.
E não importa nada, nem se a mulher
tá menstruada. A gente fica constrangida,
ainda mais quando tá menstruada.
Tem que tirar o absorvente e ela
fica olhando tudo ali. É horrível”, relata.
Maria conta que em função da revista
seu filho a pediu, algumas vezes, que
deixasse de fazer a visita. “Prefiro me
submeter a essas humilhações do que
deixar de ver meu menino”, ela segue
falando. Os depoimentos surpreendem,
assustam. “Tem uns dois meses que
uma amiga minha perdeu a criança,
tava grávida de três meses e mandaram
a menina agachar, sabendo que
ela tava gravida. Ela (a agente penitenciaria)
mandava fazer tanta força, que
depois ela perdeu o bebê”.
Segundo a Rede Justiça Criminal,
composta por oito organizações que
lutam em conjunto por bandeiras
relacionadas à melhoria do sistema
de justiça criminal, a prática descrita
por Maria acontece toda semana com
mais de meio milhão de mulheres, homens,
idosos e crianças. A justificativa
utilizada é o impedimento da entrada de
armas, drogas, celulares e outros objetos
proibidos dentro das unidades prisionais.
Acontece que, segundo estudo
divulgado pela Rede, a quantidade de
objetos encontrados durante a revista
é “ínfima se comparada às apreensões
realizadas dentro das unidades”, e que
“a maioria dos objetos ilícitos encontrados
com os presos não entra com
familiares”. Uma importante pista que
pode confirmar essa hipótese são os
dados da Secretaria de Administração
Penitenciária de São Paulo, que
informam que a cada 10 mil revistas
realizadas nos presídios do estado, em
apenas três foram encontrados objetos
considerados ilegais na prisão.
AS REVISTAS SÃO
INCONSTITUCIONAIS
Para o professor e advogado Samuel
Vida “não há respaldo constitucional
algum” no processo de revistas
intimas. Ele integra o Aganju, Afro-
-Gabinete de Articulação Institucio-
20 www.revistaafirmativa.com
A “Maria” acima ilustra também a campanha
da Rede Justiça Criminal pelo fim da revista
vexatória. Acesse o site e saiba mais:
» www.fimdarevistavexatoria.org.br
nal e Jurídica, organização que se
debruça no eixo Direito e Relações
Sociais. A Constituição Federal
da Republica do Brasil, de 1988,
assegura no seu primeiro artigo o
principio da dignidade da pessoa
humana. Mais a frente, o artigo
quinto, dispõe sobre os direitos e
garantias fundamentais e prevê
que ninguém pode ser submetido
a tratamento desumano ou
degradante, e que a intimidade é
inviolável. Ainda no mesmo artigo,
é definido que a pena não passará
da pessoa do condenado – não
pode, dessa forma, ser estendida
aos familiares.
Além dos itens previstos na
constituição existe também uma
resolução de 12 de junho de 2006,
do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, que
recomenda a utilização de equipamentos
eletrônicos de revista em
presídios e a preservação da honra
e da dignidade da pessoa durante
os processos manuais de revista.
A revista intima também foi
condenada pelo Subcomitê de
Prevenção à Tortura da ONU,
em 2012, e pela Convenção
Americana sobre Direitos Humanos,
de 1969.
“Mesmo um preso, mesmo um
condenado ou aquele que está sob
custódia do estado aguardando
julgamento, tem pela constituição
assegurada a sua dignidade. Além
de uma série de direitos, inclusive,
de não ser exposto a nenhum
tipo de tratamento constrangedor,
cruel, degradante, desumano. A
forma assumida pela revista intima,
no contexto prisional brasileiro é
reveladora de todos esses defeitos.
Portanto, é uma pratica totalmente
descabida. Seria descabida para um
apenado, ainda mais para um cidadão
que tá em pleno gozo de todos
os seus direitos, que não cometeu
nenhuma infração, que vai até a
unidade penal realizar uma atividade
que é absolutamente lícita, direito
seu e do preso”, explica Samuel.
Para o advogado, existe um silenciamento
por parte do estado e da
sociedade que veem o preso, e por
extensão, seus parentes, como pessoas
não merecedoras de direitos.
“A violação não é praticada por um
ato isolado de um agente penitenciário
que burla o ordenamento.
Ela é feita com o consentimento do
Estado, que tem ciência dos abusos,
não oferece deliberadamente
alternativas e meios técnicos que
poderiam suprimir por completo
a revista vexatória, e acaba transformando
esse procedimento num
segundo procedimento punitivo,
que se estende, inclusive, a família
do apenado”, diz.
A visão do advogado é compartilhada
pela Associação de
Familiares e Amigos de Prisioneiros
e Prisioneiras do Estado da
Bahia (Asfap). A Associação, que
foi criada em 2005, por conta das
condições as quais os presos são
submetidos, prestou denuncia ao
Ministério Público, em junho deste
ano, a respeito do caráter das revistas
realizadas nos presídios da
Bahia. “A Asfap vêm batendo de
frente com essa situação. A revista
vexatória vai de encontro
com a nossa Constituição.
Ela expõe todo e
qualquer familiar
dos prisioneiros
e prisioneiras,
tornando
21
h Direitos Humanos
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE DE MAIO
a situação humilhante, torturadora, vexatória” afirma a
coordenadora da Asfap, Elaine Bispo, que ressalta que os
visitantes não aceitarão mais esse tipo de conduta.
Segundo a coordenadora, os relatos de visitantes que se
sentem coagidos por parte dos agentes são episódios corriqueiros.
Além da revista manual em partes do corpo como
vagina e anus, Elaine também sinalizou as más condições
de higiene dos espaços utilizados para as revistas e a presença
de crianças presenciando o procedimento.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de
Administração Penitenciária e Ressocialização (SEAP), mas
até o fechamento da edição não obteve retorno. O órgão, na
Bahia, é responsável por “promover a melhoria continua do
sistema prisional com ênfase na racionalização da gestão
das práticas operacionais, no aprimoramento das condições
de segurança e na garantia da humanização do sistema”.
PL PRETENDE PROIBIR REVISTAS VEXATÓRIAS
Apresentado pela Senadora Ana Rita (PT/ES), o Projeto de
Lei (PL) 480 / 2013 determina que a revista pessoal deva
ser realizada com respeito à dignidade humana, “sendo
vedada qualquer forma de desnudamento, tratamento desumano
ou degradante”. O PL prevê também que, prioritariamente,
a revista deve ser feita por meio de equipamentos
eletrônicos detectores de metais. A revista manual ficaria
portanto restrita apenas em situações onde, por motivo
de saúde, o visitante não possa passar por equipamentos
eletrônicos ou quando, finalizado o procedimento, persistir a
suspeita de porte de objetos proibidos. Nesta ultima ocasião,
objetivando manter a integridade física, psicológica e moral
do revistado, o projeto define que a revista se dê de forma
individual, vetando toda e qualquer forma de desnudamento,
o uso de espelhos, esforços físicos repetitivos e a introdução
de qualquer objeto nas cavidades corporais do visitante.
O Projeto de Lei, aprovado em junho pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do senado, caso não haja
recurso, seguirá para votação na Câmara. Samuel Vida
acredita que a aprovação do PL é importante porque uma
vez transformado em lei, a partir de um debate institucionalizado,
é evidenciada a necessidade de se adotar outro
padrão, porém ressalva, que independe de lei, a revista
intima é ilegal, inconstitucional, e deveria ser imediatamente
banida por ser violadora dos direitos fundamentais. “A
hipótese da legislação tem uma utilidade tática no processo
de enfrentamento politico porque ela possibilita um
debate que a sociedade registra em fazer. O estado finge
não ter responsabilidade, mas a rigor caberia ao Ministério
Publico uma ação imediata de interdição desse tipo de pratica
e caberia eventualmente as entidades que lutam pelos
direitos humanos ingressar com medidas, formular ostensivamente
a denuncia, pra que esse procedimento possa
cessar imediatamente, ou seja, não é o caso de algo legal
que precisa ser objeto de uma nova legislação pra deixar
de ocorrer”, afirma.
22 www.revistaafirmativa.com
BRASIL: CAMPEÃO NA VIOLAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS
A revista vexatória está longe de ser a
única violação encontrada dentro dos
presídios brasileiros. Manchetes sobre a
preparação da copa no Brasil ofuscaram
uma noticia que deveria ter chamado
à atenção dos brasileiros: conforme os
dados do Centro Internacional de Estudos
Prisionais (ICPS), do King’s College,
de Londres, temos a terceira maior
população carcerária do planeta terra.
São 715.655 presos, segundo o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ).
Na Bahia , segundo dados divulgados
no Portal da SEAP, em Abril, dos nove
presídios localizados na capital do estado,
cinco se encontravam com a capacidade
excedente. Já no interior dentre os quatorzes,
treze deles apresentavam superlotação.
Entre os números de destaque estava
o Conjunto Penal de Itabuna, com 738
presos a mais que sua capacidade, que é
de 478.
O presidio apresentava número excedente
de presos mesmo com a rebelião,
provocada por briga de grupos rivais, no
dia 23 de maio. O saldo do episodio são
dois mortos e quinze feridos.
A Bahia também leva a medalha de
bronze no ranking de maiores percentuais
de presos na fila de espera do julgamento
com 64% da população carcerária
baiana em condição provisória. Para
Samuel Vida o modelo de “superencarceramento”
presente no país está ligando
intimamente com o modelo de hierarquia
social e racial, engendrado historicamente,
que tem a função de legitimação da desigualdade.
Por isso ele seria articulado em
sintonia com o modelo de opressão sócio
racial mantido no Brasil.
“O preso é fundamentalmente o negro,
o pobre, que já é estigmatizado como indesejável.
É alvo de discriminações varias,
inclusive vive de uma maior vigilância
policial, o que faz com que seja cliente
previamente escolhido pelo estado e
conduzido pra lógica de encarceramento.
Isso põe inclusive a nu a falsa ideia
vendida pela mídia conservadora e pelos
partidos políticos, em geral, inclusive,
até de partidos de esquerda, de que há
uma impunidade no país em relação aos
delitos comuns ou de que há um sistema
repressor falho. Na verdade o sistema repressor
brasileiro é extremamente eficaz
na repressão daqueles setores vulneráveis
e certamente eleitos como clientela do
sistema prisional”, afirma.
Na mesma medida em que o Brasil tem
vivido nas últimas décadas uma ascensão
dos números de encarceradvação
dos assassinatos de jovens negros.
FOTO MAURÍCIO PAVAN E ALBERTO MURAYAMA
“A política de repressão opera em
dupla mão. É revelador o fato de que
nos últimos dez anos quando o estado
brasileiro mais adotou políticas de
inclusão, PROUNI, bolsas, cotas nas
universidades, tenha sido também o
período de maior intensificação de
assassinatos de jovens negros, o que
mostra, que a inclusão quando é feita
sem mexer na política de segurança
pública, é uma inclusão incompleta.
Ela inclui uma parcela e elimina a
outra. Só pra se ter uma ideia, nos
últimos dez anos o risco de um jovem
negro ser assassinato aumentou, e o
risco de um jovem branco, reduziu
em aproximadamente 30%,”, afirma
Samuel.
- O sistema carcerário é um fracasso?,
pergunto.
- “Eu não diria que é um fracasso,
eu diria que é um sucesso, pois ele
foi montado pra isso. Todo sistema
penal baseado no conceito de defesa
social, é estruturado para legitimar
as opressões seculares de raça, de
Foto da operação pente fino, veiculada originalmente no Diário do Grande ABC, recebeu o prêmio
Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em 1988
gênero de classes, que reproduzem
singularmente numa dada sociedade.
Então não podemos falar no fracasso,
há um grande sucesso e é um sistema
penal exitoso porque é motivado
para perpetuar esses absurdos, violar
o direito desse segmento, para criminalizar,
e ao mesmo tempo, alimentar
toda uma indústria conservadora de
segurança pública, baseada na repressão”,
finaliza.
23
h Especial
O
CANDI
-DATO
Por Lande M. Onawale* (para Josafá Mota)
Não consegue dormir. A
cama parece mais estreita
e ele esbarra algumas
vezes na mulher, que ressona
profundamente. Como pode?! A
insônia dele o faz rolar até a infância,
trazendo o mesmo frio na barriga - o
temor de não ter seu desespero acolhido
por alguém que é acordado no meio
da noite. Fingia um sono agitado, mas
era, na verdade, um pedido de ajuda.
Pensa na reunião que ocorrera na
sede do partido, mais cedo. Tensa.
Ele praticamente só, se debatendo
em argumentos contra a sua própria
corrente política. A namorada também
fuzilava a resistência dele, seu
titubear. No carro, se disse nervoso
com a proximidade da Convenção. O
que era parte da verdade, pois embora
fosse um dos melhores quadros do
partido, um discurso naquela linha
nem de longe lhe acenava com um
começo. Certa da vitória, a mulher
lhe compreendeu e beijou sua face.
E é nos braços dessa certeza que ela
agora dorme o sono dos exaustos. Ele,
ao contrário, não está em paz com
a decisão do grupo, que lhe toca tão
intimamente, e no fundo ainda não é
sua. Com mais uma ou duas cutucadas,
acorda a mulher, que senta na
cama com um esforço sonolento. A
fala pausadamente irritada.
- O quê foi, Guilherme?
- Nada...
Deduzindo o que seria, a companheira
suspira e cruza os braços com
irritação. Ele tem o olhar preso no teto
e, constrangido, vacila:
- Sabe, amor... você tem certeza?
Com a impaciência, o cabelo da
mulher escorre das orelhas várias
vezes, e ela os recoloca rapidamente
no mesmo lugar, num gesto peculiar
de nervosismo. Busca os olhos dele, e
diz duramente:
- Guilherme, hoje conseguimos,
enfim, fechar uma posição quase unânime
em torno dessa proposta. Foram
horas, Guilherme, horas. Não há mais
o que discutir quanto a isso. Você é
negro, sim!
Não sabia como refutar os argu-
24 www.revistaafirmativa.com
mentos sem parecer racista, e nem
como fazer aquela idéia habitar nele
com naturalidade. O candidato negro
do partido. Nunca havia pensado
nisso – e como se espantou ao saber
que os companheiros pensavam! A
pele clara e o cabelo que raramente
deixava ganhar altura, se não escondiam
de si mesmo alguma origem
negra, igualmente não faziam dessa
origem uma questão. Não tinha este
pertencimento, essa identidade. Era
na Europa, no pensamento ocidental
onde sugava seus conhecimentos. E
havia os embates contra o Movimento
Negro e sua cantilena de racismo,
racismo... Ora, o racismo será vencido
pelo socialismo! Como outros membros
do partido, não via substância
ou fundamentação teórica na militância
negra, embora reconhecessem
que a questão racial se tornou pauta
no discurso político nacional. Mais à
custa de tambores e lágrimas que de
argumentos, ironizava.
Agora o partido precisava de um
nome que pudesse transformar em
votos este apelo dos negros, sem
perder de vista que a questão racial é,
no fundo, social e econômica. Era ele
esse nome. Mesmo tomado por um
conflito que, naquela intimidade, sua
nudez não fazia questão de ocultar.
- Não é preciso a gente se fazer passar
por um deles, para os representar...
- Guilherme, você é um deles!
- Eu não me sinto.
- Mas é.
- Me sinto um impostor...
O desamparo da declaração evoca
na mulher uma ternura.
- Querido... Depois da convenção
se sentirá melhor, legitimado.
E ela afaga seu cabelo, que tentava
convencê-lo a deixar crescer. Até avó
negra você teve...
– Bisavó...
- Que fosse tataravó! Você pode
falar em nome dela, que podia ser até
do candomblé.
- Logo vai querer que use colar de
orixá... Algo incompatível com minhas
convicções.
- E por que não? Lembre da tese do
velho professor: Karl Marx não era ateu!
- O que nosso ensaio monográfico
contestou veementemente. Esqueceu?
- Porque éramos imaturos política
e teoricamente, Guilherme. A crença
em Marx era mesmo seu maior atestado
revolucionário. E que generosidade!
O homem a olha incrédulo, mas
de novo reflexivo. Admirava nela uma
chama de convicção e loucura que, nele,
via acomodar-se com os anos. Foram
colegas na faculdade, seguiram companheiros
de partido e, há alguns meses,
namoravam.
Ela vai ao banheiro, enquanto ele rememora
conflitos entre o partido e a militância
negra. Como na plenária sobre a
vinda do recém liberto Nelson Mandela,
em que defendeu a participação dos
partidos de esquerda no palanque para
dar um tom político ao ato. Um membro
do Movimento União Negra, último
inscrito, o fustigou. Nosso ato não precisa
da esquerda branca para ter sentido
político. Ao contrário, a presença desses
partidos será a negação da essência
política do nosso ato. Seguiu-se uma
balbúrdia memorável, que saiu porta
afora do local da plenária. Afirmações
absurdas como essa nunca foram (nem
seriam!) compreendidas por ele. Ainda
bem que, se a voz dos tambores cresceu,
desapareceram os fóruns e organizações
que davam palco para essa militância
que racha a unidade do proletariado.
De volta ao abrigo do lençol, a mulher
comenta:
- Até parece que é a primeira vez que
você disputa uma vaga no partido...
- Das outras vezes você foi contra.
Você e o Agapito...
- Ciúmes uma hora dessas, Gui. Era
outra conjuntura. Você era melhor, mas
não o mais viável. É preciso dar qualidade
ao debate racial nas próximas
eleições. Corremos o risco de ver eleitos
gente que ponga no partido, mas sai
por aí dizendo que entre Esquerda
e Direita continua preto! É isso que
você quer pro seu povo, Guilherme?
Esse fisiologismo contraditório de
batinha africana?
O namorado balança a cabeça negativamente.
Calado, mas já demonstrando
certa autoconfiança, levanta e
dá uma volta cautelosa pelo quarto,
como se pisasse em delicados planos.
Agacha-se em frente à mulher, e tem
os olhos úmidos.
- Então, querido... Você é a nossa
vez! Se eu fosse preta cê ia ver. Eu
não ia dar vez a nenhuma ‘candidatura
trancinha’, de aparência, e nem a
essa falácia de irmandade negra. Mas
não sou negra, não tive essa sorte,
Gui. É você que tem o pé na senzala,
brinca com sorriso triunfante.
Ele sente a face aquecer ao ouvir
isso, mas algo fresco já desembaça a
paisagem que aos poucos consegue
vislumbrar. Nem houve mesmo tempo
para seu novo otimismo estremecer,
pois ela acolheu o rosto dele com as
mãos e o levou até o colo do peito. A
alça do baby doll desliza, revelando o
seio um pouco flácido, mas com um
volume e uma atitude que exige ser
mordido outra vez. E ele o faz.
*Lande M. Onawale é escritor e poeta.
Colaborou em antologias como Cadernos
Negros, e nos documentários “Makota
Valdina – um jeito negro de ser e viver” e
“Lápis de Cor”. Tem três livros publicados,
incluindo “Kalunga” e “Sete: diásporas
íntimas”, ilustrados acima.
25
h Reparação
Denegrir a
UNIVERSIDADE
Denegrir: significa obscurecer; fazer ficar mais negro ou
escuro. Aqui empregado em seu sentido literal.
t Rose Cerqueira
f Jheffeson Jheksom
Nos últimos 10 anos, o público
universitário mudou
significativamente com a
implantação das Políticas
de Ações Afirmativas, hoje legitimadas
constitucionalmente. As universidades
brasileiras têm se deparado com o
desafio de pensar o ensino, a pesquisa e
a extensão a partir das novas realidades
trazidas por outro perfil de estudante
que agora adentra no ensino superior.
Como exemplo dessa mudança de
público tem a Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), como a
primeira do país a ter uma Pró-reitoria
destinada a pensar e promover as políticas
afirmativas. A UFRB possui 84,3% de
negros, frente a 40,8% da média nacional,
segundo dado do Fonaprace/ANDFES.
Além disso, hoje 50% das vagas destinadas
para cotas, 76,67% delas são reservadas
à população negra.
Fruto dessa mudança e se vendo
com maioria numérica, alunos negros
tomaram a iniciativa de discutir a
UFRB e o modelo de educação superior
no Brasil. Contaram com o apoio
da Coordenação de Políticas Afirmativa
(CPA/UFRB) e construíram
o I Encontro de Estudantes Negros,
Negras, Indígenas, Cotistas e Quilombolas
(ENICQ). O objetivo foi avaliar
as políticas já implementadas e as
perspectivas de um modelo educacional
contemplador.
“O ENICQ já se justifica pelo fato
de termos os negros como maioria
dos estudantes. E, mais do que isso, o
encontro atualiza e recoloca as pautas
dos cotistas para a UFRB e para
fora dela. Precisamos mais que uma
universidade com um monte de preto.
recisamos de mudanças reais na
forma de construção do conhecimento
e que contemple nosso olhar para
o mundo”, afirmou Augusto Oliveira,
estudante cotista, um dos organizadores
do encontro.
26 www.revistaafirmativa.com
Chegou a revista
afirmativa
Somos nós, falando de nós, para todo mundo.
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