11.09.2024 Views

Revista Afirmativa edição 02

Lançada em novembro de 2014, a segunda edição da Afirmativa foi pras ruas mesmo sem recursos objetivos para isso. A luta foi muito grande, mas não desistimos do sonho de contar a verdadeira história sobre nós e nossos ancestrais. O sucesso foi garantido com ampliação da equipe, linha editorial e quantidade de páginas. Nesta edição, a Afirmativa apresentou a história do povo Tupinambá no Sul da Bahia, a crise no sistema carcerário, o impacto dos megaeventos esportivos no Brasil. E na reportagem de capa, uma chamada importante para a reflexão sobre o racismo religioso. Além disso, inauguramos nossa sessão literária.

Lançada em novembro de 2014, a segunda edição da Afirmativa foi pras ruas mesmo sem recursos objetivos para isso. A luta foi muito grande, mas não desistimos do sonho de contar a verdadeira história sobre nós e nossos ancestrais. O sucesso foi garantido com ampliação da equipe, linha editorial e quantidade de páginas.

Nesta edição, a Afirmativa apresentou a história do povo Tupinambá no Sul da Bahia, a crise no sistema carcerário, o impacto dos megaeventos esportivos no Brasil. E na reportagem de capa, uma chamada importante para a reflexão sobre o racismo religioso. Além disso, inauguramos nossa sessão literária.

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

mentos sem parecer racista, e nem

como fazer aquela idéia habitar nele

com naturalidade. O candidato negro

do partido. Nunca havia pensado

nisso – e como se espantou ao saber

que os companheiros pensavam! A

pele clara e o cabelo que raramente

deixava ganhar altura, se não escondiam

de si mesmo alguma origem

negra, igualmente não faziam dessa

origem uma questão. Não tinha este

pertencimento, essa identidade. Era

na Europa, no pensamento ocidental

onde sugava seus conhecimentos. E

havia os embates contra o Movimento

Negro e sua cantilena de racismo,

racismo... Ora, o racismo será vencido

pelo socialismo! Como outros membros

do partido, não via substância

ou fundamentação teórica na militância

negra, embora reconhecessem

que a questão racial se tornou pauta

no discurso político nacional. Mais à

custa de tambores e lágrimas que de

argumentos, ironizava.

Agora o partido precisava de um

nome que pudesse transformar em

votos este apelo dos negros, sem

perder de vista que a questão racial é,

no fundo, social e econômica. Era ele

esse nome. Mesmo tomado por um

conflito que, naquela intimidade, sua

nudez não fazia questão de ocultar.

- Não é preciso a gente se fazer passar

por um deles, para os representar...

- Guilherme, você é um deles!

- Eu não me sinto.

- Mas é.

- Me sinto um impostor...

O desamparo da declaração evoca

na mulher uma ternura.

- Querido... Depois da convenção

se sentirá melhor, legitimado.

E ela afaga seu cabelo, que tentava

convencê-lo a deixar crescer. Até avó

negra você teve...

– Bisavó...

- Que fosse tataravó! Você pode

falar em nome dela, que podia ser até

do candomblé.

- Logo vai querer que use colar de

orixá... Algo incompatível com minhas

convicções.

- E por que não? Lembre da tese do

velho professor: Karl Marx não era ateu!

- O que nosso ensaio monográfico

contestou veementemente. Esqueceu?

- Porque éramos imaturos política

e teoricamente, Guilherme. A crença

em Marx era mesmo seu maior atestado

revolucionário. E que generosidade!

O homem a olha incrédulo, mas

de novo reflexivo. Admirava nela uma

chama de convicção e loucura que, nele,

via acomodar-se com os anos. Foram

colegas na faculdade, seguiram companheiros

de partido e, há alguns meses,

namoravam.

Ela vai ao banheiro, enquanto ele rememora

conflitos entre o partido e a militância

negra. Como na plenária sobre a

vinda do recém liberto Nelson Mandela,

em que defendeu a participação dos

partidos de esquerda no palanque para

dar um tom político ao ato. Um membro

do Movimento União Negra, último

inscrito, o fustigou. Nosso ato não precisa

da esquerda branca para ter sentido

político. Ao contrário, a presença desses

partidos será a negação da essência

política do nosso ato. Seguiu-se uma

balbúrdia memorável, que saiu porta

afora do local da plenária. Afirmações

absurdas como essa nunca foram (nem

seriam!) compreendidas por ele. Ainda

bem que, se a voz dos tambores cresceu,

desapareceram os fóruns e organizações

que davam palco para essa militância

que racha a unidade do proletariado.

De volta ao abrigo do lençol, a mulher

comenta:

- Até parece que é a primeira vez que

você disputa uma vaga no partido...

- Das outras vezes você foi contra.

Você e o Agapito...

- Ciúmes uma hora dessas, Gui. Era

outra conjuntura. Você era melhor, mas

não o mais viável. É preciso dar qualidade

ao debate racial nas próximas

eleições. Corremos o risco de ver eleitos

gente que ponga no partido, mas sai

por aí dizendo que entre Esquerda

e Direita continua preto! É isso que

você quer pro seu povo, Guilherme?

Esse fisiologismo contraditório de

batinha africana?

O namorado balança a cabeça negativamente.

Calado, mas já demonstrando

certa autoconfiança, levanta e

dá uma volta cautelosa pelo quarto,

como se pisasse em delicados planos.

Agacha-se em frente à mulher, e tem

os olhos úmidos.

- Então, querido... Você é a nossa

vez! Se eu fosse preta cê ia ver. Eu

não ia dar vez a nenhuma ‘candidatura

trancinha’, de aparência, e nem a

essa falácia de irmandade negra. Mas

não sou negra, não tive essa sorte,

Gui. É você que tem o pé na senzala,

brinca com sorriso triunfante.

Ele sente a face aquecer ao ouvir

isso, mas algo fresco já desembaça a

paisagem que aos poucos consegue

vislumbrar. Nem houve mesmo tempo

para seu novo otimismo estremecer,

pois ela acolheu o rosto dele com as

mãos e o levou até o colo do peito. A

alça do baby doll desliza, revelando o

seio um pouco flácido, mas com um

volume e uma atitude que exige ser

mordido outra vez. E ele o faz.

*Lande M. Onawale é escritor e poeta.

Colaborou em antologias como Cadernos

Negros, e nos documentários “Makota

Valdina – um jeito negro de ser e viver” e

“Lápis de Cor”. Tem três livros publicados,

incluindo “Kalunga” e “Sete: diásporas

íntimas”, ilustrados acima.

25

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!