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Revista Dr Plinio 328

Julho 2025

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Publicação Mensal

Vol. XXVIII - Nº 328 Julho de 2025

A Santa Igreja, Mãe e

Mestra da Civilização Cristã


Flávio Lourenço

Santo Elias no carro de

fogo - Catedral de São João

Batista, Perpignan, França

Cultivar o bom espírito,

acima de tudo

Elias tinha um espírito, isto é, uma graça sobrenatural, mas possuía também uma mentalidade

e um bom espírito que era fruto da correspondência à graça que ele comunicou

ao seu discípulo Eliseu no momento de subir até o lugar onde ele espera a hora do cumprimento

de sua missão histórica.

Em geral, há um empobrecimento ao se dar uma transmissão. O mestre dá, o aluno recebe,

depois transmite para outro e, à medida que se transmite, o que é transmitido vai se adelgaçando.

Entre Elias e Eliseu, pelo contrário, tão sobrenatural era o fato, que Eliseu recebeu duas vezes

o espírito do mestre.

Portanto, era um dom vindo de Deus, concedido na previsão dos méritos de Nosso Senhor Jesus

Cristo e das orações de Nossa Senhora.

Eis o que nós devemos cultivar mais do que tudo: o bom espírito, a união desse espírito católico,

mariano, contrarrevolucionário, que faz exatamente a nossa coesão em todos os outros campos.

(Extraído de conferência de 20/7/1965)


Sumário

Publicação Mensal

Vol. XXVIII - Nº 328 Julho de 2025

Vol. XXVIII - Nº 328 Julho de 2025

A Santa Igreja, Mãe e

Mestra da Civilização Cristã

Na capa,

Coroação de Carlos Magno

Maximilianeum, Munique

Foto: Friedrich Kaulbach(CC3.0)

As matérias extraídas

de exposições verbais de Dr. Plinio

— designadas por “conferências” —

são adaptadas para a linguagem

escrita, sem revisão do autor

Dr. Plinio

Revista mensal de cultura católica, de

propriedade da Editora Retornarei Ltda.

ISSN - 2595-1599

CNPJ - 02.389.379/0001-07

INSC. - 115.227.674.110

Diretor:

Roberto Kasuo Takayanagi

Conselho Consultivo:

Jorge Eduardo G. Koury

Roberto Kasuo Takayanag

Vicente de Paula Torres Nunes

Redação e Administração:

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - sala 1 - Tremembé

02372-020 São Paulo - SP

Impressão e acabamento:

Pigma Gráfica e Editora Ltda.

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Preços da

assinatura anual

Comum............ R$ 300,00

Colaborador ........ R$ 400,00

Benfeitor........... R$ 500,00

Grande benfeitor.... R$ 800,00

Exemplar avulso..... R$ 25,00

Serviço de Atendimento

ao Assinante

revistadrplinioassinatura@gmail.com

Segunda página

2 Cultivar o bom espírito,

acima de tudo

Editorial

4 O segredo da vitória

Piedade pliniana

5 Oração do discípulo fiel

Dona Lucilia

6 Lumen vivificante e restaurador

De Maria nunquam satis

8 A Mãe e Senhora, esplendor do Carmelo,

e sua ação sobre a humanidade pecadora

A sociedade analisada por Dr. Plinio

14 O verdadeiro jeitinho

brasileiro - I

Hagiografia

18 São Tomé e as santas

alegrias da contrição

Questionando a Revolução Industrial

22 O costume, genial planejador

Apóstolo do pulchrum

29 Beleza com virtude

Última página

36 Mãe do Carmelo e Rainha dos Profetas

3


Editorial

O segredo da vitória

A

conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou

no próprio âmago de sua alma e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus

Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A Igreja estendeu sobre toda

a Europa sua contextura hierárquica e, desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio, foram florindo os

mosteiros, as igrejas, as catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno deles, o rebanho de Cristo.

Essa florescência religiosa projetou-se sobre a sociedade civil. O príncipe, o artesão, o filósofo, o guerreiro, o menestrel

não era cristão apenas dentro do templo, no momento da oração. Ele reinava, produzia, pensava, guerreava

e cantava como cristão. Toda a vida civil, organizada com fundamento na Lei divina, ordenou-se segundo a vontade

de Deus e a ordem natural por Ele estabelecida na Criação. Formou-se, assim, uma sociedade temporal constituída

sob o signo de Cristo, segundo a Lei de Cristo e conforme à natureza própria de cada criatura.

Os Mandamentos são a expressão da vontade divina para os homens. Infinitamente sábio e bom, Deus não poderia

querer que agíssemos em sentido diverso ou contrário da natureza que Ele nos deu. Portanto, os Mandamentos

nos ensinam a proceder segundo nossa própria natureza e contêm as regras fundamentais a serem observadas para

se conseguir a grandeza da sociedade civil.

A glória e o bem-estar temporal são o prêmio natural da sociedade civil. Mas ela tem, mesmo neste mundo, um

prêmio mais alto, pois Deus auxilia a grandeza dos povos fiéis, não só pelo jogo natural das causas segundas, mas

por uma multidão de graças especiais.

Isso explica porque, sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo

lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade, cuja beleza, de início indecisa

e sutil, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”.

Nasceram, por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses

e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.

A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais,

encontrou plena e ordenada expansão dentro da Civilização Cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo

e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações

da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar. A mentalidade nacional inspira a formação

de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses

símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação.

O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade.

A Cristandade só pode ser admirada e vivida pelas almas que, dentro da Igreja, vivem do Catolicismo. Ela é incompreensível,

cheia de tédio, até odiosa em sua superioridade solar, para as almas que começam a abandonar a Igreja ou blasfemam

contra ela. A Civilização Cristã só viveu plenamente enquanto foi sincera e profundamente católica a Europa.

É inútil querer fazer sem ou contra a Igreja a obra de Deus. “Enquanto o Senhor não edificar a cidade, trabalharão

em vão os que construírem. Enquanto Ele não a proteger, lutarão em vão os que a guarnecerem” (cf. Sl 126, 1).

O mundo não pode ser salvo por formas diluídas de Cristianismo ou por sistemas que representem uma etapa comodista

ou preguiçosa nas sendas da restauração da Cristandade. Nosso leitmotiv deve ser: para a ordem temporal

do Ocidente, fora da Igreja não há salvação. A falência dos ideais políticos, sociais ou culturais intermediários está

patente.

O segredo da vitória da Igreja consiste precisamente nisto: renunciarmos aos ideais intermediários e, ligados a

todos os que nos ofereçam sua cooperação, vencer a hidra revolucionária com a única arma que a esmagará: a Cruz,

que representa a Igreja de Deus e as mais antigas e legítimas tradições da Civilização Cristã.

“In hoc signo vinces”, foi a inscrição vista por Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas.

É esta a mesma mensagem para o mundo hodierno.*

* Cf. Legionário n. 666, 13/5/1945.

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.

4


Piedade pliniana

Elias chama o Profeta

Eliseu - Mosteiro do Centro

Espiritual Monte Carmelo,

Niagara Falls, Canadá

Flávio Lourenço

Oração do

discípulo fiel

Óminha Senhora e minha Mãe, a Vós que nos chamastes para ser em relação ao

nosso Fundador o que Eliseu foi para Elias, pedimos que nos deis toda a fidelidade

para com ele.

Que nossas orações Vos sejam apresentadas em união com ele e que o espírito dele

habite em nós, assim como o espírito de Elias habitou em Eliseu, de maneira a sermos

um só com ele na união das cogitações e das vias, para a vida e para a morte.

Assim seja.

(Composta em 30/1/1991)

5


Arquivo Revista

Dona Lucilia

Dona Jesuína Ribeiro dos Santos,

avó paterna de Dona Lucilia

Os desígnios da Providência

sobre certas famílias parecem ser

transmitidos por um lumen de

geração em geração. No caso de

Dona Lucilia, ela soube dar novo

alento ao que recebeu e, com graças

especiais que lhe foram concedidas

pela Providência, irradiou a

outros, fora do âmbito familiar.

No fim da vida de Dona Lucilia,

o João e, em alguma

medida, outros que o

acompanhavam num convívio maior

com mamãe, começaram a entrever

quem ela era.

O lumen das dinastias

Quando eles me faziam alguma

referência a ela ou eu via que lhe

levavam flores, agradavam-na etc.,

eu ficava contente, mas pensava:

“Ou algo de novo aconteceu na história

do espírito humano ou isso é

fogo de palha. Porque, em relação

a ela, os olhos estão totalmente fechados”.

Estou certo de que todos a consideraram

uma senhora muito respeitável,

dentro dos padrões convencionais.

Mas, não se tratava disso e sim

de terem percebido o lumen da alma

dela, o que é uma coisa inteiramente

diferente.

Há famílias de várias categorias

sociais que conservam um certo

lumen, mesmo quando os membros

não são bons. Se caem no pecado,

esse lumen ainda persiste neles,

e acho que só desaparece quando

morrem. As dinastias são isso de

modo eminente.

Há uma espécie de depósito acumulado

de todas as virtudes de alguns

parentes anteriores, como também

de desígnios da Providência aos

quais alguns, não extraordinariamente,

mas comumente virtuosos,

corresponderam. De maneira que há

algo que se acumula sobre um membro

da dinastia, e ele tem uma noção

disso apenas confusa.

Um lumen sobrenatural

Eu tenho uma série de pequenos

indícios de que, por razões que ignoro

do modo mais completo, na família

de mamãe entrou um certo veio, um

lumen sobrenatural, por meio de sua

avó paterna. É, de longe, a pessoa menos

decorativa do conjunto, 1 mas era a

melhor em relação a todas as outras.

Ela traz no olhar uma seriedade, uma

resolução que é um pouquinho do que

tinham meu avô e mamãe. E esses

predicados não estão ligados necessariamente

ao nome de família.

Em meu avô, vê-se que algo havia

em continuidade da mãe dele, donde

o mito que Dona Lucilia fez do

pai, o qual era necessário para que

ela mesma desenvolvesse em si aquilo

que tinha recebido.

6


De maneira que, se eu tivesse começado

a demolir o mito quando ela

era moça, eu lhe teria feito mal. Eu

talvez tenha começado a fazê-lo na

hora certa.

É certo que o espírito nela renasceu

e que é uma velha tradição de família

haurida, com certeza, do ambiente

português – eu não tenho outro

sangue, talvez um pouquinho de

espanhol – e que se enredou e se

constituiu dessa forma, provavelmente

várias gerações antes.

Uma ponte vivificante

e restauradora

Vê-se que é uma tradição à qual

coube a mamãe dar novo alento,

com graças especiais que ela recebeu

e depois transmitiu. Aliás, um dos

traços mais bonitos de toda a nossa

obra é ser uma continuação disso.

Mas Dona Lucilia não foi apenas

uma ponte, ela foi mais do que isso:

uma ponte vivificante, altamente restauradora

desse lumen. Porque o ponto

a que isso tinha caído é inenarrável.

Entretanto, em mamãe havia a

concepção, nessa tradição, de um

feitio individual, de uma família

e da vida de família, bem como

a noção de que o mundo vai

mal, por onde a necessidade

da ruptura com ele. Mas a

ideia de reformar o mundo

não estava presente. Ficava

numa tal fímbria, que estava

contida em todas as premissas,

mas não era em nada

uma conclusão explícita.

Nela notava-se muito a

união do espiritual com o

temporal. Sem nada de freira,

era uma senhora da sociedade

temporal.

Essa tradição que mamãe tinha

em si, naquela fotografia dela

em Paris está de um modo que, por

assim dizer, é preciso pôr óculos escuros

para ver, tão clara e esplendorosa

é; essa tradição se desenvolveu fora do

âmbito da família, contra a família e

não mais em benefício desta.

Traços da alma de

Dona Lucilia

Nessa fotografia nota-se, por

exemplo, a decisão, sem nada de

nervosismo nem ansiedade. Severidade

e decisão, ao lado de uma doçura

insondável. Ademais, é uma

pessoa que vive muito mais para o

mundo interno do que para o externo,

acompanhando o externo apenas

na medida do indispensável.

Aliás, totalmente uma brasileira.

Se uma atriz tivesse que representar

um papel de moça brasileira desse

tempo, poderia tirar alguns traços dessa

fotografia para se apresentar, porque

mamãe está brasileiríssima ali.

Dir-se-ia serem as sobrancelhas

fortes demais para uma senhora. Entretanto,

isso nem passa pela cabeça,

de tal maneira é pura a expressão do

Dona Lucilia em Paris

olhar. Nota-se muita pureza e candura.

É propriamente uma moça de família.

Um comentário filial

Faço um comentário que só se

compreende quando feito por um filho

e por conveniência de apostolado.

Poder-se-ia imaginá-la de cabelo

curto? Jamais, não poderia ser. Ela

perderia qualquer coisa que não sei

como definir. Se essa pergunta não

fosse levantada por mim, nem seria

respeitoso fazê-la. Mas estou dizendo

isso para se compreender como o

cabelo cortado desdoura.

Depois, o penteado está feito com

muito cuidado, é um cabelo equilibrado

na cabeça, muito direito. Notem

que naquele tempo não havia

salões, era a própria pessoa que

se cuidava, fazia o penteado. Como

era um cabelo muito abundante, fazia

quase o papel de um chapéu, porém,

sem faceirice como quem dissesse:

“O que vocês estão pensando

de mim?” Nada disso.

Não é nem um pouco petulante,

mas ela sabe quem ela é e não permitiria

que se lhe faltassem com o

respeito. Não toleraria que viessem

com atitudes de igualitarismo

para com ela, porque mamãe,

com jeito, poria o pingo

em cima do “i”.

Ela não faz a menor questão

de ser mais, não pensa

em promoção social nem

nada disso. O que ela é, é.

Arquivo Revista

Por outro lado, quem

não a conheceu não pode

imaginar o que era o convívio

com ela, a ação de presença,

a afabilidade, com

uma inocência completa. Não

se pode ter ideia! v

(Extraído de conferência de

21/4/1979)

1) Dr. Plinio se refere aos quadros com

retratos de familiares que possuía em

seu apartamento.

7


De Maria nunquam satis

A Mãe e Senhora, esplendor

do Carmelo, e sua ação sobre

a humanidade pecadora

A lacrimação de Nossa Senhora em Nova Orleans

é o eco dolorido do aviso dado por Ela na Cova

da Iria em 1917. O que espera o mundo de hoje,

que não se emenda de seus pecados?

Há um pequeno fato da vida

corrente, muitas vezes

notado e que parece sem

maior significação: conversa-se com

uma pessoa e, de repente, falta a ela

o termo adequado para exprimir seu

pensamento. Ela tartamudeia, hesita

e alguém que está ao lado lhe propõe

a palavra. A pessoa tem um alívio,

toma a palavra com certa ênfase,

veemência e continua.

Para ela o pensamento estava encalhado

na mente, não se definia,

não se exprimia enquanto aquele vocábulo

não aparecia, e a ejeção brilhante

do pensamento que encontra

a expressão adequada é como que

uma respiração para a alma que estava

em suspenso em todo o seu funcionamento.

Arquivo Revista

As saudades que

gemem na alma dos

contrarrevolucionários

Ora, para o homem de hoje em

dia acontece isso. Há em sua alma

um contrarrevolucionário que dor-

Dr. Plinio rezando diante da Sagrada Imagem em julho de 1974

8


Chairman (CC3.0)

Trooping the Colour de 2019 - Londres

me – às vezes de um sono profundo,

terrível, mas real –, que teria vontade

de objetar algo à Revolução que

fala, que estadeia as suas pompas, se

afirma, proclama; contudo, diante

dela ele não sabe o que dizer… Faltam-lhe

não só as palavras que proclamem

a verdade, mas os símbolos,

as cerimônias, os ritos que a representem.

Não só isso – oh, quanta dor! –

faltam, no seu integral esplendor, na

sua incondicional ortodoxia, os ritos

da Santa Igreja Católica Apostólica

Romana. Essa é a falta suprema, irremediável

enquanto eles não forem

restaurados!

Mas também à vida civil, reduzida

a uma tediosa banalidade e a uma

trivial vulgaridade, faltam-lhe as cerimônias,

os estilos, aqueles reluzimentos

das pompas de outrora, nas

quais os grandes encontravam a expressão

de sua grandeza e os pequenos

a grandeza da nação. Isso tudo

desapareceu quase completamente.

Há, pois, na alma do homem contemporâneo

algo que geme à procura

de expressão. É o contrarrevolucionário

que gostaria de se manifestar.

Prova disso – e quão eloquente –

tivemos com o casamento do Príncipe

Charles. 1 Calcularam-se em dezenas

de milhões de pessoas do mundo

inteiro que acordaram ou se mantiveram

despertas em horas incômodas,

para assistir à cerimônia do início

ao fim.

Por que um cerimonial na longínqua

Inglaterra – respeitável enquanto

escrínio de tradições – atraiu os

olhos do mundo inteiro? É única e

exclusivamente porque o mundo tinha

saudades deles.

Tinham saudades os homens de

idade madura que ouviram falar delas

como algo que ainda palpitava nas

recordações de há pouco, mas que

não chegaram a vê-la; tinham saudades

os jovens, para os quais elas

faziam parte de uma mitologia. Todos

queriam contemplar alguém que

andasse numa carruagem dourada,

com pajens, com lacaios; desejavam

ver corcéis magníficos que cavalgam,

queriam os desdobramentos de pompas

de outrora porque algo lhes dizia:

“Temos saudades do cerimonial!”

Quanto é verdade que essas saudades

são mais intensas, não na alma do

homem comum que anda pela rua, no

qual dorme um contrarrevolucionário,

mas na alma do contrarrevolucionário

que tem saudades das pompas

nas quais ele se exprimia inteiramente.

Saudades de um passado que lhe

falava de sobrenatural, de fé, de grandeza,

de combatividade, de harmonia,

de arte, de bom gosto, de desfiles que

davam a impressão de fabulosos exércitos

que andavam nas nuvens. Disso

tem saudades, no fundo de sua alma,

o contrarrevolucionário, porque tem

vontade de exprimir aquilo que deseja,

mas que não encontra as formas externas

que deem respiração e expressão

ao que está em seu interior.

Nossa Senhora, a profética

beleza do gênero humano

Essa foi a alegria que experimentamos

nesta cerimônia 2 em que festejamos

Nossa Senhora do Carmo, a

título especial Rainha dos Profetas,

Mãe e esplendor do Carmelo – Mater

et decor Carmeli.

9


De Maria nunquam satis

Divulgação (CC3.0)

Imagem de Nossa Senhora de Fátima que verteu lágrimas em Nova Orleans, em 1972

Do alto do Monte Carmelo, a

montanha profética por excelência,

Nossa Senhora reina e sorri para o

universo, governa a História e infunde

terror aos demônios.

Ela é a Mãe, porque protege todos

aqueles que lutam sob seu estandarte.

E o melhor da proteção é acalentar

a alma deles com a esperança

da vitória.

O que significa decor? No português

corrente diz-se de algo que

mantém ou ressalta, viola, transgride

ou comprime o decoro. O que é

o decoro? É propriamente a beleza

da dignidade. É o pulcro majestoso,

distinto e diferenciador da grandeza,

que na medida em que se ergue e se

manifesta superior, rejeita a banalidade

e atrai a si as almas verdadeiramente

capazes de compreendê-lo.

Essa é a velha acepção do vocábulo.

Do cimo do Carmelo Nossa Senhora

reina maternal, mas decorosamente.

Ela é a profética beleza do

gênero humano.

Embora voltar-se para o passado

seja uma das atitudes nobres da alma

humana – feita de riquezas que

não se esgotam nessa atitude –, ela

pede algo a mais, pois tem vontade

de produzir o futuro. O bem-estar da

alma existe quando o homem nota

uma continuidade entre o passado e

o futuro. O sentido do presente é de

ser um hífen e não uma gota sem nexo

atirada à margem do tempo.

Nesta cerimônia não houve apenas

a rememoração saudosa do passado,

mas uma afirmação de que esse

passado, no que ele tem de perene,

quer e vai renascer. Muito mais

que um pressentimento, ela foi a prelibação

do Reino de Maria que nasce,

porque, neste presente de ruína e de

miséria, o que há de mais verdadeiro

é que Maria vencerá! Eis a promessa

de vitória e de êxito que paira sobre o

pantanal do mundo moderno.

As lágrimas de Nossa

Senhora em Granada

Neste ano, a festa de Nossa Senhora

do Carmo coincide com o décimo

aniversário da lacrimação da

Sagrada Imagem em Nova Orleans. 3

E ao cabo desses dez anos, Nossa Senhora

chorou sangue, em Granada. 4

Qual é a relação entre um pranto

de lágrimas e um pranto de sangue?

Os símbolos falam por si. Lágrimas,

chora a mãe quando chega ao extremo

de sua dor. Durante vinte séculos

a Igreja venerou Nossa Senhora

lacrimosa aos pés da Cruz, donde

esta frase de um belíssimo cântico:

“Stabat Mater dolorosa, iuxta crucem

lacrimosa – Junto à Cruz, cheia

de dor, estava a Mãe lacrimejando”.

A piedade comum imaginou Nossa

Senhora no auge da dor, vertendo

lágrimas indizivelmente preciosas

que lhe ensopam a túnica e o manto

sagrado… Também escorre o Sangue

infinitamente precioso de Nosso

Senhor Jesus Cristo, misturando-

-se, quiçá, com essas lágrimas, como

a primeira água a misturar-se com o

vinho para a primeira Missa.

O amor materno é tão nobre, venerável

e sensível, que facilmente

10


atinge o extremo da dor, pelo sofrimento

causado pelo mau filho. Entretanto,

não se ousa afirmar que

uma mãe chegou a chorar sangue.

Consideremos uma mãe muito infeliz

que diz: “Passei a noite chorando”,

dir-se-á: “Coitada!”, olha-se para

ela com compaixão. Mas se ela

disser: “Eu chorei sangue”, pensa-

-se: “Que impostora!”, porque mesmo

as maiores aflições do amor materno

não levam correntemente a

chorar sangue.

Isso é tão incomum na História,

que o homem tem arrepio quando

imagina que um sofrimento moral

levou alguém a esse extremo.

Nossa Senhora, em Granada, chora

sangue para dizer que a dor que

durante tantos anos A entristeceu –

dez anos –, foi aumentando; o castigo

que Ela receia para os homens foi

aumentando também, e não há palavras

que exprimam a punição que se

aproxima…

Nós vivemos no século do dinheiro,

portanto, na era dos juros. Não

nos damos conta de que nos “bancos”

de Deus o castigo dá juros tremendos.

E quando um homem que

tem espírito de fé vê impune o pecado,

o que ele deve pensar é: “Pobre

miserável… que juros tremendos estão

se acumulando sobre ele!”

Quando ouvimos falar de uma cidade

qualquer sobre a qual em certo

momento tenha baixado a punição

de Deus, se nos dissessem que um

ano antes do castigo seus habitantes

tinham sido avisados por sinais,

nós diríamos: “Que terrível! Quanto

mais antiga a ameaça, mais dá mostras

de quão irado está Aquele que

vai castigar!”

Como será um castigo que fez

chorar Nossa Senhora há dez anos?

Que terror, que portento, que tormentos!

Mas se fossem apenas dez

anos! A lacrimação de Nova Orleans

é o eco dolorido do aviso dado por

Ela na Cova da Iria em 1917. Mais

ainda: o aviso feito por Nossa Senhora

de Fátima é, ele mesmo, eco daqueles

dados por Ela no século anterior

em La Salette, ou quando apareceu

a Santa Catarina Labouré. Na

Rue du Bac Ela previu as devastações

da Comuna em Paris. Ela alertou

em 1830, e em 1870 caiu o terrível

castigo, como quem diz: “Eu aviso

uma vez e logo se cumpre o que

eu disse”.

E, apesar do afeto e da veneração

que tenho pela França, é preciso dizer:

depois que ela foi invadida pelos

prussianos, 5 ela nunca mais foi a mesma.

Ela se recompôs em parte, mas

nela algo ficou como uma vergastada

na face. Nem sequer os louros da

guerra que ela ganhou com o apoio

de quase todas as nações da Terra recompuseram

as tristezas desse gilvaz

que no rosto lhe ficou marcado.

Se por pecados tão menores o terrível

precônio se cumpriu, o que espera

o mundo de hoje que não se

emenda de pecados universais imen-

Samuel Holanda

O mundo contemporâneo

impenitente provoca

a ira de Deus

Nossa Senhora das Dores - Semana Santa em Sevilha

11


De Maria nunquam satis

samente mais graves, repetidos em

condições históricas mais impressionantes?

Oh, que castigo!

Nós, e sobretudo aqueles que estão

sob a ameaça do castigo deveriam

chorar sangue para se penitenciar,

porque quando se provocam lágrimas

de sangue à própria Mãe, o

único modo proporcionado de pedir

perdão é chorar lágrimas semelhantes

às d’Ela. Sangue com sangue

se paga. E como está longe disso o

mundo contemporâneo!

Cantaremos eternamente

as misericórdias de

Nossa Senhora

Arquivo Revista

Mas, vede como é Nossa Senhora:

Misericordia Domini in æternum

cantabo 6 – do mesmo modo nós cantaremos

eternamente as

misericórdias d’Ela, porque

irada assim e manifestando

aos homens essas

ameaças, Ela quer dar

graças especialíssimas a

alguns, atraí-los de modo

particular e dizer-lhes:

“Vós, filhos do meu

amor materno, do vínculo

com o gênero humano

que não se rompeu inteiramente;

vós sois aqueles

sobre os quais a misericórdia

incidirá antes mesmo

dos terríveis castigos

da justiça. Eu vos escolhi

do meio de tantas nações,

de diversas partes

do corpo social, de diferentes

idades e de tantas

condições, Eu vos escolhi

e vos reuni para serdes o

ponto luminoso que deve

brilhar nas trevas deste

mundo, para glorificar

o passado que, se morre,

deve morrer com honra

e prenunciar um futuro

que, se nasce, deve nascer

pequeno e desprezado

para depois prostrar por terra os

grandes homens que disseram a esse

pugilo: ‘Tu não gerarás o futuro!’”

Na sua misericórdia imensa, no seu

poder ilimitado, Nossa Senhora dispõe

as coisas de maneira a ter em vários

lugares quem A ame na fidelidade

ao passado e na esperança do futuro.

Esses são a continuidade histórica

disposta por Ela. Entre esses, estamos

nós e, por isso, podemos dizer:

“Ó Mãe e Senhora, esplendor do

Carmelo, na vossa sabedoria profética

Vós previstes o futuro da Igreja,

que resultaria de vossas preces e

lágrimas unidas ao sacrifício infinitamente

precioso de vosso Filho. Em

determinado momento de vossa previsão,

foi-Vos revelado que nós existiríamos.

E Vós, para quem o futuro

não tinha véus, pois sois a Rainha

Dr. Plinio em julho de 1982

dos Profetas, Mãe do único Profeta

por excelência, Nosso Senhor Jesus

Cristo, quando pensastes nesta

cerimônia realizada em vossa honra,

Vós sorristes e dissestes: ‘Eis meu

desígnio que continua’”.

Permiti que a seriedade me sugira

uma reflexão: será só o sorriso de

Nossa Senhora que encontraríamos

se Ela olhasse para nós?

Necessidade de um Confiteor

Adentremos no interior de nossas

almas e analisemos até que ponto estamos

contentes conosco, até que ponto

damos a Nossa Senhora toda glória

correspondente ao convite incomparável

que recebemos. Se formos sinceros,

devemos nos lembrar daquelas palavras

do Salmo: “Si iniquitates observaveris,

Domine, Domine quis sustinebit? –

Se observardes as iniquidades,

Senhor, Senhor, quem

se sustentará em vossa presença?”

(Sl 129, 3).

Há apenas uma voz

que pode responder afirmativamente

a essa pergunta.

Essa voz enche

a História: a da Virgem

Mãe. Ela não teve uma

falta sequer, nunca deixou

de corresponder perfeitissimamente

às graças mais

superlativas e sofreu dores

como não estamos em

condições de imaginar.

Nós pensamos que, imaginando-A

chorando sangue,

concebemos tudo;

mas não compreendemos

o que é a alma d’Aquela

que é filha do Padre Eterno,

Mãe do Verbo Encarnado,

Esposa do Divino

Espírito Santo e que vê

morrer o seu próprio Filho

que é Deus.

Se a natureza toda entrou

em convulsões com a

morte do Homem-Deus,

muito mais sensível que

12


as montanhas que estremeceram e

do que o céu que se toldou era o Coração

transpassado d’Aquela que conhecia

tudo, media tudo e amava a

Deus como Ele merece ser amado.

Então, para nós é necessário também

um Confiteor. Não creio que haja

festa, comemoração ou alegria católica

que, na seriedade da alma,

possa ser desacompanhada de um

Confiteor, porque o homem deve estar

sempre à procura de uma oblação

mais completa, de uma pureza

maior, mais íntegra e mais intransigente.

Assim deve ser a alma verdadeiramente

católica.

Tenhamos isto em vista: quando

Nossa Senhora chora sangue por filhos

que lhe foram indiferentes, que

A ultrajaram e perseguiram, filhos

que A esbofetearam com as mãos

nas quais reluz a unção sagrada, para

consolá-La é imprescindível chorarmos

as nossas próprias faltas!

Luis C.R. Abreu

“Sede amigos da minha

dor, do meu pranto, da

minha seriedade”

Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima

Nessa festa de Maria, Mater et decor

Carmeli, foram oferecidos a Ela

o ouro, simbolizado pelo esplendor

desta cerimônia; o incenso, das preces

e louvores que subiam dos corações;

e eu venho com o terceiro presente:

a mirra amarga, mas preciosa,

da seriedade e da severidade. Nisso

o meu coração fala por inteiro.

Com as lágrimas de sangue vertidas

em Granada, Nossa Senhora parece

querer nos dizer: “Sede amigos

da minha dor, do meu pranto, da minha

seriedade, da minha severidade”.

Essas são lágrimas de severidade,

da Mãe que quer converter os filhos,

mas é solidária com o castigo que

vem. Ela quer que a punição se afaste,

desde que os homens se convertam.

Nossa Senhora não pede: “Senhor,

afastai o castigo”; Ela diz: “Senhor,

dai-me meios de fazer com que

eles fujam do castigo, fugindo da culpa.

Se eles ficarem abraçados à culpa

eu choro sangue, mas não tenho o

que fazer”. Deus põe uma condição:

caso se arrependam, o castigo será

afastado; do contrário ele virá.

Nesta quadra da História em que

estamos, onde vivemos uma espécie

de segunda Paixão de Nosso Senhor

Jesus Cristo que está sendo crucificado

no seu Corpo Místico, a Santa

Igreja Católica Apostólica Romana,

amemos, portanto, a seriedade,

amemos a severidade, amemos a

contrição, amemos a dor. v

(Extraído de conferência de

16/7/1982)

1) Celebrado em 29/7/1981.

2) Cerimônia em louvor a

Nossa Senhora do Carmo,

após a qual Dr. Plinio

pronunciou as palavras

aqui transcritas.

3) Em julho de 1972, na cidade

de Nova Orleans, EUA, uma

imagem peregrina de Nossa

Senhora de Fátima verteu

lágrimas humanas por 14 vezes.

4) Em 1982, na Basílica San Juan de

Dios, em Granada.

5) Guerra Franco-Prussiana

(1870-1871).

6) Do latim: Cantarei eternamente a misericórdia

do Senhor.

13


A sociedade analisada por Dr. Plinio

Ccarelo (CC3.0)

O verdadeiro jeitinho

brasileiro - I

“Jeitinho”, o que faz esta palavra adquirir seu verdadeiro

valor estando no diminutivo? O jeitinho deve ter êxito, do

contrário ele não é jeitinho, e deve ser feito de tal maneira

que chame pouca atenção. Toda a riqueza dessa arte consiste

em perceber, com grande gênio, pequeníssimos problemas,

na realidade importantes, e arranjar-lhes soluções que

exigiriam quase que um microscópio para encontrá-las.

Como definir o jeitinho? Consideremos

a descrição feita

por um diplomata que exerceu

o cargo de embaixador no Brasil.

1

Uma das mais especiais

vivências da alma brasileira

Existe um outro estranho matiz da

alma brasileira que só se pode nomear

com a intraduzível palavra “jeito”.

Não sei de algum sociólogo que tenha

feito um tratado – que bem o mereceria

– dessa peculiar atitude anímica.

Como definição provisória, diria

que o jeito é a benévola solução inesperada

com que se enfrenta a dificuldade

das coisas. É uma ordem emocional

que pretende resolver aquilo

que numa estrita lógica pareceria

cruel e implacável. Tem alguma coisa

da “coracionada” espanhola e do

Divulgação (CC3.0)

“palpito” de que falam os argentinos;

mas, vai mais longe dessa iluminação

repentina da realidade. Participa daquele

espírito de fineza de que falava

Mariano Federico Picón Salas

Pascal; mas não é só “a compreensão

das razões que a razão não compreende”;

porque deseja também atuar e

ajudar. A pessoa submersa num conflito

não deseja apenas que lhe compreendamos,

mas também que lhe

prestemos auxílio. Então, aparece essa

região um pouco mágica, na qual

o “jeito” está acima. E a lei e a rotina

determinaram tais e tais procedimentos;

mas, bem pode acontecer que

surja uma situação tão estranha que

precise ser resolvida por outro método.

Quiçá o rei Salomão, ante a briga

das duas mulheres que reclamavam a

mesma criança, tenha sido um longínquo

precursor do jeito. Comportou-se

Salomão como o mais flexível

dos cariocas.

Para se conseguir um bom jeito são

necessárias duas virtudes que nem

sempre são compatíveis: imaginação

rápida e benevolência. Na primeira

14


Samuel Holanda

parte do processo, o jeito consiste em

compreender o anômalo e extraordinário

da situação, pois em tal caso

não adianta ver o código, já que muitas

poucas vezes os códigos falam das

exceções da regra. E na segunda parte,

a flexível fantasia daquele que vai outorgá-lo,

inventará uma fórmula que

não pareça ilícita.

A pessoa que dá um jeito cruza durante

uns segundos o perigosíssimo

caminho que separa o que é habitual

e legal do que é inusual. Deve-se mexer

com cuidado para não cair no que

é reprovável. Porém nunca o jeito –

criação de um povo bondoso e imaginativo

– se dá por interesse, mas por

generosidade estética. É uma abundância

do coração. Se se inventa o jeito

como uma criação da imaginação,

meio fábula e meio poesia, outorga-se

como um final de magnanimidade. E

quão poucos brasileiros podem resistir

quando se apela a seus bons sentimentos

sob o nome imponderável de

Salomão - El Escorial, Espanha

“jeito”. Porque uma grande parte da

virtude que se atribui ao homem é precisamente

essa virtude de serviço e obséquio.

Quem dá o jeito se sente o árbitro

da situação, pois prova ao mesmo

tempo sua generosidade e seu poder. É

preferível pecar de generoso que de demasiado

estrito. Estamos muito longe

do puritanismo estreito e da hipocrisia

do fariseu, pois neste caso se deseja

compreender as razões da vida que

nem sempre ficam abarcadas na lei e

na norma abstrata; o jeito, como toda

coisa humana, pode ser pecaminoso

se não se distingue entre o autenticamente

lícito e o culpável. E é uma

das mais especiais vivências da alma

brasileira. 2

Aspectos do jeitinho, mas

não a sua totalidade

As notas desse embaixador são

bem inteligentes e, na maior parte,

pegam aspectos do jeitinho, mas não

a sua totalidade. Vê-se que ele observou

uma série de situações concretas.

Ele ficou como embaixador

até 1959; portanto, na época em que

a capital federal era no Rio de Janeiro

e, por causa disso, as observações

dele sobre o jeitinho são, sobretudo,

do carioca.

Como o carioca é muito amável,

tem gosto em ser gentil, encontra

uma espécie de delícia, de satisfação

em deixar as pessoas contentes

e fica contemplando alegremente

o contentamento que o outro está

gozando.

Ele define o jeito – eu não sei se

ele se dá bem conta disso – como

uma forma muito sutil e quase indefinível

de assistência, de ajuda

ao outro; um particular modo de

ser bom e de gostar de agradar. Ele

diz que é uma atitude do coração,

mas com isso ele confunde uma das

atitudes do jeitinho – a atitude assistencial,

de ajudar, de prestar caridade

–, com o que é o jeitinho em

si.

O jeitinho é uma coisa diferente.

Pode ter jeitinho um político, e pode

ser que em certos Estados do Brasil

com a política mais desenvolvida que

em outros, o jeitinho seja muito mais

desenvolvido também.

Ora, política não é a arte de ser

caridoso, não é a arte de alegrar os

outros; é uma coisa bem diferente.

Entretanto, nenhum brasileiro diria

que político não precisa de jeitinho.

A afirmação até causaria surpresa:

“Como assim? A política é uma atividade

na qual, com frequência, é

preciso recorrer ao jeitinho. Ele fica

amputado de algum dos seus principais

aspectos se dissermos que ele

não tem lugar na política”.

Esse diplomata não viu os cem jeitinhos

do Itamaraty? O período mais

brilhante do Itamaraty, em que ele

era a glória e o orgulho dos brasileiros

por causa do jeitinho, foi a fase

dele no Rio de Janeiro.

15


A sociedade analisada por Dr. Plinio

IMS (CC3.0)

Então para contrabalançar a opinião

que ele tem a respeito do jeitinho

é preciso começar por dizer que

isso é apenas uma das aplicações do

jeitinho.

Por que jeitinho não é

o mesmo que jeito?

Uma pessoa jeitosa, uma resposta

jeitosa, uma saída jeitosa, uma defesa

jeitosa de alguém a quem queremos

bem, ou uma acusação jeitosa

a uma pessoa que deve ser denunciada…

Em primeiro lugar, o que é o jeito?

É algo praticado por alguém que

se encontra em dificuldades e surpreendentemente,

inesperadamente

– alguma coisa do surpreendente

e do inesperado, está nas palavras do

embaixador – encontra um jeito para

resolvê-las.

É uma saída inesperada quando,

na aparência, a saída não existe. É

preciso ter muita finura de visão para

perceber que ela existe e, depois

de tê-la descoberto, executar o que

se descobriu de tal maneira que de

fato a coisa fique inteiramente feita,

sem encrenca.

Palácio Itamaraty no final do século XIX

A palavra jeito ele diz que é intraduzível.

Eu nunca em minha vida

pensei em traduzi-la, mas creio

que, por exemplo, no francês as palavras

façon e manière dão um pouco

da ideia do que é jeito. A pessoa

que tem de bonne façon de faire

quelque chose, ou de bonne manière

pour obtenir quelque chose, teria jeito,

mas isso não é o jeitinho.

Por que o jeitinho é pequenininho?

Por que nós nunca julgaríamos

correto chamar de jeito o que queremos

dar a entender por jeitinho? O

que faz o diminutivo necessário e indispensável

para que essa palavra tenha

o seu verdadeiro valor?

Em matéria de linguagem, o jeitinho

é um substantivo. Um conceito

que, entretanto, não empregado no

diminutivo significa outra coisa. O

que faz o diminutivo? Qual é a alteração

que ele introduz na palavra e

que faz com que o jeitinho não seja

o jeito?

O que é o jeitinho?

Tome-se em consideração uma

agulha comum, com aquele buraco

por onde se passa uma linha; o fazer

passar esse fio pela agulha, por ser o

orifício muito estreito, supõe alguma

habilidade e um certo jeito, não

propriamente jeitinho. Mas, se o fio

é de uma natureza que o torna difícil

de passar pelo orifício, por exemplo,

por estar um pouco encerado, e uma

pessoa, percebendo isso, passa-o pelo

fogo sem queimá-lo, rapidamente,

para gotejar um pouquinho a gordura

que haja nele, a fim de que depois,

sem dificuldade, ele possa passar

pela agulha, esta pequena coisinha

é tipicamente o jeitinho.

O jeitinho deve ter êxito, do contrário

ele não é jeitinho, e deve ser

feito de tal maneira que chame pouca

atenção. Por isso é que ele é jeitinho:

ele é rápido, ele é pequenininho,

ele triunfa num movimento de

dedos, num golpe de olhar, no canto

de um sorriso ou na gravidade de

um cumprimento, desde que seja um

gesto pequeno, que em pouco tempo

resolve uma questão, sem barulho

nem encrenca.

Se fosse fazer uma regra de jeitinhos,

bastava alguém decorá-la para

ficar completamente desajeitado. É

preciso não ter regras e saber improvisar.

Toda a riqueza dessa arte consiste

em perceber, com grande gênio,

pequeníssimos problemas, na realidade

importantes, e arranjar-lhes soluções

que exigiriam quase que um microscópio

para encontrá-las.

Esta seria, a meu ver, a definição

do jeitinho.

Um exemplo de jeitinho

Eu vi um francês elogiar o jeitinho.

Confesso que fiquei pasmo, eu

já tinha uns quarenta anos naquele

tempo e nunca tinha atentado para

isso. Ele me disse que estava encantado

como um chauffeur que fazia

um serviço de lotação no Rio de Janeiro.

Lotação é um carro que leva

vários passageiros, cada um paga a

sua passagem e ele faz determinado

percurso deixando-os pelo caminho.

E esse senhor francês disse que

estava encantado pelo seguinte: na

parte da frente da lotação, além do

16


Arquivo Nacional (CC3.0)

gar tantas notas entre os dedos e não

deixá-las cair; jeitinho para usar desses

sinais que os motoristas fazem

com a mão para fora da janela e não

perder nada… Ele não ficava nervoso

e, às vezes, até assobiava para se

divertir.

O rapaz francês ficou

pasmo e me descreveu mais

ou menos tudo isso que estou

dizendo.

Isso são pequenos gestos,

pequenas concessões,

pequenos apertões, pequenas

soluções para resolver

problemas quase insolúveis.

É possível que filhos

de outros povos muito bem

dotados de inteligência não

tenham essa agilidade do

chauffeur, por onde ele percebia

que naquela hora podia

fazer um gesto com a

mão carregada de dinheiro,

intuindo que o homem

que vinha atrás não lhe arrancaria

as notas que trazia

entre os dedos. Ele intuía

que, num certo movimento,

o indivíduo que estava ao

seu lado não iria aplastá-lo

mais ainda… É um mundo

de pequenas intuições, de pequenas

soluções para cada caso, e soluções

mais ou menos originais conforme

a circunstância. Quer dizer, não

era calculado: “Sempre que precisar

pôr a mão fora para dar um sinal, tire

todas as notas, porque é perigoso

perder o dinheiro, alguém dá um

solavanco e leva tudo, se não levar a

mão…”

v

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de

19/10/1994)

Rua Visconde do Rio Branco, em 1956 - Rio de Janeiro

chauffeur, iam mais dois passageiros,

por isso os movimentos do motorista

ficavam um pouco tolhidos. Ademais,

um deles era especialmente

gordo, de maneira que o chauffeur ia

ainda mais comprimido.

O chauffeur tinha também que dar

o troco para os fregueses que desciam

e, uma vez que ele ganhava tanto

mais dinheiro quanto mais rápido fazia

o circuito, ele tinha pressa em seguir

em frente.

Para agilizar o troco, ele colocava

nos intervalos dos dedos notas de diferentes

valores, mas já classificadas.

Quando o automóvel parava, o passageiro

entregava-lhe uma quantia e

ele, com toda rapidez, tirava o troco,

devolvia e arrancava o carro. O trânsito

era muito irregular, as ruas eram

apertadas e numa hora em que todo

mundo estava deixando o centro da

cidade para ir almoçar e voltar a trabalhar;

com isso ele era obrigado a

esgueirar-se muito.

Ele tinha que fazer ao mesmo

tempo um colosso de jeitinhos: jeitinho

para não se enganar na nota e

não ter prejuízo; jeitinho para não

dar uma trombada e, apesar de estar

com poucos movimentos, saber

fazer a manobra; jeitinho para carre-

1) Mariano Federico Picón Salas (*1901

- †1965), escritor e diplomata venezuelano,

embaixador no Brasil de

1958 a 1959.

2) PICÓN SALAS, Mariano Federico.

Viajes y estudios latinoamericanos. Paginas

de Chile y Peru. Gusto de México.

Imagenes y Retratos. Biblioteca Mariano

Picón Salas. Vol. IV. Caracas:

Monte Avila Latinoamericana, 1991.

p. 158, 159.

Dr. Plinio em março de 1971

Arquivo Revista

17


Hagiografia

São Tomé e as santas

alegrias da contrição

O Apóstolo São Tomé é um exemplo perfeito de como unir

a alegria à tristeza na contrição. Ele pregou o Evangelho

aos povos do Oriente, demonstrando como o verdadeiro

arrependimento traz consigo uma execração do próprio

pecado e uma admiração pela virtude alheia.

Flávio Lourenço

Por que Nosso Senhor disse

que seus discípulos praticariam

milagres ainda maiores

do que os d’Ele? Qual é o princípio

a que isso obedece?

Farão milagres

ainda maiores

A dúvida de São Tomé - Igreja do Salvador, Ejea de los Caballeros, Espanha

Não é fácil responder a essa pergunta,

mas me parece que entre as

múltiplas respostas que podem concorrer

para a explicação do caso, há

uma digna de nota. Quem viu Nosso

Senhor, quem da divina boca d’Ele

ouviu a sua doutrina, esse já tinha uma

espécie de milagre evidente diante dos

olhos. Era algo tão sobrenatural, tão

divino, tão fora de qualquer proporção

humana, que para um homem de

fé já não seria necessária outra coisa.

Por essa razão também, Nosso Senhor

censurou aqueles que Lhe pediam

milagres. “Essa geração malvada

e ingrata, só crê por causa dos

milagres” (cf. Mt 12, 38-39). Há uma

bem-aventurança, portanto, em crer

sem os milagres. E a São Tomé Ele

fez uma crítica análoga: “Tomé, tu

creste porque viste; bem-aventurados

18


os que não viram, mas creram” (Jo

20, 29). Era natural que quem tivesse

contato com os Apóstolos, que continuavam

a obra de Nosso Senhor, mas

que não tinham – porque ninguém

pode ter – a irradiação d’Ele, que esses

fizessem milagres maiores.

Flávio Lourenço

Psicologia dos que necessitam

de milagres para crer

São Tomé recebe o cinto da Santíssima Virgem - Museu de Belas Artes de Bilbao, Espanha

São Tomé fez milagres espantosos.

Um milagre se somava a outro. A cada

vez o rei dizia: “Se vier mais um milagre,

então eu crerei. São Tomé fazia

um milagre talvez maior do que o anterior

e o rei não acreditava. Por fim, o

rei acabou expulsando-o do reino. 1

É interessante fazer o estudo da

psicologia dos que insaciavelmente

necessitam de milagres para crer.

De fato, estes não têm vontade de

crer. E, por causa disso, um ou dois

milagres que lhes poderiam bastar,

para eles são insuficientes. Querem

uma série de milagres. E quando estes

os acachapam, matam ou expulsam

quem fez o milagre! É a prova

de que e para quem não quer, não há

milagre que baste.

O homem pode sempre recusar o

seu assentimento, e uma espécie de

apetência de milagre, de fome de milagres,

de evidência, denuncia, no

fundo da alma, uma espécie de recusa

preguiçosa da graça, como quem diz:

“Eu não estou disposto a pensar, a

me esforçar, a abrir a minha alma. Se

vós arrombardes a minha alma à força

de milagres, então eu atenderei e

crerei. Sem isto eu não crerei”. É um

misto de preguiça, de alma estreita,

fechada sobre si mesma, de recusa da

graça. Por maiores que sejam os milagres,

essas almas, muitas vezes – não

digo sempre – acabam a cada milagre

se tornando mais duras, recusando

mais essa graça e acabam odiando

aquele que praticou os milagres.

Há, portanto, algo que devemos

considerar e que é a maldade humana:

como o homem, viciado pelo pecado

original e pelos consentimentos

sucessivos que deu aos pecados atuais,

pode ter a sua alma fechada para

a graça de Deus; e como nada, a não

ser certas graças fulminantes, e que

às vezes não passam através dos milagres,

pode abrir uma alma para as

grandes transformações.

Eu tenho a impressão de que, por

causa disso, certos povos ou certas

pessoas muito supersticiosas são difíceis

de converter, por precisarem

da ação palpável do preternatural

sobre o natural para crer, não tendo

a alma tão elevada, tão aberta, quanto

a daqueles bem-aventurados que

não viram, mas creram.

São Tomé, alma ávida de

execrar a própria falta

É interessante notarmos, por fim,

a atitude de São Tomé. Ele andou

mal. Ele duvidou da Ressurreição

de Nosso Senhor Jesus Cristo e foi

o único que não estava presente na

19


Hagiografia

Assunção de Nossa Senhora.

Entretanto, ele foi objeto

do maravilhoso carinho

de Nossa Senhora.

Quando Maria Santíssima

ia subindo ao Céu, Ela

desatou a correia que Lhe

servia de cinto e jogou do

alto para ele, sendo o único

que recebeu d’Ela um dom

que valia quase mais do que

ter presenciado a sua dormição.

Assim são os castigos

de Nossa Senhora: severos,

enérgicos, maravilhosamente

doces depois. De

tal maneira enérgicos e de

tal maneira doces, que não

se sabe que mais admirar,

se a energia ou a doçura. E

propriamente o que extasia

é a coincidência de tanta

energia da doçura e de tanta

doçura na energia. Não

se compreende como numa

alma podem caber coisas antitéticas

em tal grau e completando-se de um

modo tão magnífico.

São Tomé, convertido por essa

doçura e, ao mesmo tempo, por essa

severidade de Nosso Senhor, corroborado

na graça por essa doçura e

por essa severidade de Nossa Senhora,

tornou-se uma alma verdadeiramente

penitente.

Arquivo Revista

Uma alma penitente odeia

o pecado que cometeu

O que é uma alma verdadeiramente

penitente? É aquela que, quando

faz o mal, com vergonha e com tristeza,

conta o mal que fez e gosta de

repetir que o fez. Aproveita as ocasiões

que com naturalidade e compostura

se lhe apresentam, para insistir

em que fez mal. Faz uma espécie de

flagelação de si próprio aos olhos dos

outros e diz: “Em tal lance de minha

vida, é bom que vocês saibam, eu andei

mal. Aquele foi o mal que eu fiz;

e eu o odeio tanto e me odeio a mim

Dr. Plinio em 1968

enquanto tendo feito aquele mal, que

eu gosto de contar para os outros, para

que me execrem por causa daquilo,

porque eu me execro e sou faminto

da execração dos outros”.

Tal é a alma verdadeiramente penitente:

aquela que mesmo depois

de se ter arrependido, de ter expiado,

de ter praticado anos de virtude,

ainda tem, diante de si, aquele pensamento

de Davi num dos salmos

penitenciais: “Peccatum meum contra

me est semper. Tibi soli peccavi, et

malum coram te feci – Eu pequei só

na tua presença, ó meu Deus, e meu

pecado está o tempo inteiro de pé

diante de mim” (cf. Sl 50). Ou seja,

eu estou o tempo inteiro de pé diante

do meu pecado e o meu ódio contra

ele só se extinguirá com minha vida.

Sempre que eu possa falar mal

dele e possa conclamar todos os povos

a falarem mal dele e me ajudarem

a execrá-lo, eu não deixarei de o

fazer, porque eu odeio o meu pecado.

E é só com isso que minha alma

se aquieta.

Quem não gosta de ser

repreendido, e quando é

admoestado ouve com uma

certa impaciência a repreensão,

tendo alívio quando

se muda de assunto, esse

não tem o arrependimento

verdadeiro dos seus pecados.

O verdadeiro arrependimento

é ter um ódio crescente

ao próprio pecado.

Quanto mais passa o tempo,

tanto mais se compreende

o mal feito e se o odeia, e

tanto mais se tem um pesar

daquilo e um desejo de ultrajar

o mal feito.

Pontos para exame

de consciência

São Tomé ia por toda parte

evangelizar e não receava

contar o pecado que cometera

àqueles a quem queria

atrair para a verdadeira Fé. Ele não

teria receio de escandalizar? De causar

má impressão? Não. A verdadeira

penitência eleva, ajuda os outros a

também se arrependerem, a até odiarem

o seu próprio pecado. Isto é o

que faz a verdadeira penitência.

Se nos voltarmos, nesse momento,

para um exame de consciência sobre

nós mesmos e nos perguntarmos a respeito

de nossos pecados, qual é a nossa

atitude? Quando há propósito, gostamos

de contar os nossos pecados para

pessoas que depois vão esgravatar

aquilo e nos mostrar, ponto por

ponto, as agravantes do que fizemos?

Gostamos do contato das pessoas que

nos punem pelos pecados que cometemos?

Gostamos de nos lembrar do

mal que fizemos e de fazer o papel de

advogados contra nós mesmos, aduzindo,

um por um, os elementos agravantes

que possam nos ocorrer?

O fato de termos vivido longe

da Igreja Católica, da influência de

Nossa Senhora, de termos sido espíritos

mundanos, orgulhosos, ego-

20


ístas, sensuais, tudo quanto fizemos

antes de nossa conversão, nós temos

bem presente? Falamos mal disso?

Censuramos? Gostaríamos que alguém

nos censurasse?

Hoje em dia, em relação à tibieza,

à mania de brinca-brinca, às faltas

de correspondência à graça, à ingratidão

em relação à graça, à vulgaridade

de espírito, a quantas outras coisas

desse gênero, gostamos de que falem

mal de nós a esse respeito? Temos sofreguidão

ou somos lânguidos e indiferentes?

Ou nós rugimos de raiva

quando nos chamam a atenção?

Implacáveis conosco no

julgamento de

nossos próprios

defeitos

Para concluir, devemos

nos dirigir, neste

ato, a todos os santos

penitentes que há

no Céu. Quantas almas

foram penitentes nesta

Terra? E no Purgatório?

Devemos pedir

que elas tenham pena

de nós, façam com que

compreendamos o mal

que fizemos, caiamos

em nós e tenhamos as

santas alegrias da contrição,

a santa e jubilosa

tristeza da contrição,

aquele ódio ao mal, ao

mal em nós, que é um

dos pontos de partida

do espírito contrarrevolucionário.

Que tenhamos probidade

de nos considerarmos

a nós mesmos, que

sejamos implacáveis conosco

no julgamento de

nossos próprios defeitos.

É isso que devemos

pedir com toda a alma a

esses santos, junto com

o amor e a admiração pela virtude.

Uma admiração enlevada, trazida

pela virtude; a alegria de que outros

foram inocentes, não praticaram o

mal que nós praticamos; que os outros

praticam um bem que não praticamos;

a satisfação de nos sentirmos

pequenos diante de nossos irmãos.

Excelente meio de

reparação: alegria pela

virtude dos outros

Devemos lembrar que a inveja da

graça fraterna é um pecado contra o

Espírito Santo. Quando vemos que

um irmão é mais do que nós na ordem

da graça e o invejamos, isso constitui

São Tomé Apóstolo - Igreja de São Tomé, Valência, Espanha

Flávio Lourenço

um pecado. O contrário, a alegria pelo

dom fraterno, dá glória ao Espírito

Santo. E se nós queremos reparar

os nossos pecados, um dos melhores

meios de reparação é termos alegria

pela virtude dos outros.

Pensarmos em tanta virtude de

pessoas que nós conhecemos, em tanta

virtude maior do que a nossa, nesse,

naquele ponto... como são superiores

a mim! “Meu Deus, eu Vos dou

graças, eu Vos dou graças por vossa

grande glória que brilha na pessoa

deste, daquele ou daquele outro”.

Almas sem inveja, alegres da virtude

dos outros, tristes pelo seu próprio

pecado, estas são as almas nas

quais Nossa Senhora entra e sobre as

quais domina – Ela que

é o templo do Espírito

Santo – trazendo consigo

o Espírito Santo; Ela

que é Mãe de Deus Filho,

trazendo consigo

Nosso Senhor; Ela que

é Filha do Padre Eterno,

trazendo consigo o

Padre Eterno.

Que Nossa Senhora

faça germinar em

nós o amor da Santíssima

Trindade, nos dê esse

espírito de contrição,

Ela que é a Virgem das

virgens, inocentíssima,

mas pela qual passaram

todas as graças de arrependimento,

de atrição

e de contrição, que encheram

e encherão até

o fim do mundo a face

da Terra. v

(Extraído de conferência

de 21/12/1968)

1) Dr. Plinio faz alusão à

ficha hagiográfica lida por

ele nessa ocasião, mas que

não consta da transcrição

desta conferência.

21


Questionando a Revolução Industrial

O costume, genial

planejador

A eclosão da Revolução Industrial foi preparada

com muita antecedência por meio da dissolução

dos costumes que modelaram e mantinham viva a

civilização católica ocidental. Sem essa preparação, tal

Revolução teria encontrado a repulsa de varões e damas

temperantes, e a História teria seguido outro rumo.

Certa ocasião, li um trecho das

memórias de uma grã-duquesa

russa que narra fatos

do período entre a queda do czar e

a implantação do comunismo. Ela

estava em Moscou e foi à Ópera

daquela cidade. No tempo da monarquia,

ela ocupava uma das frisas

douradas, em cima; com a Revolução,

ela perdeu esse privilégio

e passou a assistir aos espetáculos

embaixo. E ela conta o interesse

que sentiu em assistir à peça misturada

com o povo.

As Revoluções são

preparadas com antecedência

Outra atitude característica desse

estado de espírito lê-se nas memórias

de Eduardo VIII. 1 Quando ele

foi coroado Príncipe de Gales, ves-

Theefer (CC3.0)

Interior do Teatro Bolshoi, Moscou

22


Arthur Stockdale Cope (CC3.0)

Rei Eduardo VIII em 1912

tiu-se com aquelas roupas arcaicas

e teve vergonha perante toda a geração

dele.

No meu tempo, que é mais ou menos

o dele, os que não eram príncipes

achavam delicioso fazer papel de nobre.

Mesmo os mais republicanos, se

dessem a eles manto e coroa para serem

coroados Príncipe de Gales, aceitariam

na certa. Entretanto, os príncipes

de sangue tinham vergonha.

Compulsando memórias do Ancien

Régime percebe-se como, por

um estado de espírito análogo, a

Revolução Industrial foi preparada

com muita antecedência.

Com efeito, as pessoas que foram

enganchadas pela Revolução Industrial

tinham passado por uma transformação

preparatória, de maneira a

estarem, em relação a essa Revolução,

como fugitivos num cais à espera

de um navio que iria levá-los embora.

Assim o mundo pré-industrial estava

enfarado do que a situação anterior

lhe dava e já desejava loucamente

o que o mundo da máquina

vinha lhe dar.

Indícios da Revolução

Industrial e falta

de almas que lhe

coarctassem o caminho

Para compreendermos o problema

a fundo, seria preciso perguntar

quais as razões desse enfaramento e

o que foi feito para produzi-lo. Porque

se a Revolução Industrial tivesse

encontrado varões e damas normais,

temperantes, verdadeiros católicos,

ela não poderia ter vindo como

uma torrente e teria sido retorcida

em muitos aspectos pela recusa geral,

e esse retorcimento sadio indicaria

para a posteridade o que era preciso

fazer para alterá-la.

Entretanto, houve uma revolução

preparatória que se exprime bem

num trechinho que li em uma das

cartas da Marquesa de Maintenon 2

para a Princesa des Ursins. 3

A Madame de Maintenon era esposa

morganática de Luís XIV, e a

Madame des Ursins era uma figura

muito singular, porque era uma senhora

de uma grande nobreza francesa.

Quando os Bourbons foram

governar a Espanha, ela se transformou

em camareira-mor da Rainha.

Ela dominava completamente a família

real.

Essas duas damas viveram cerca

de cem anos antes da Revolução

Francesa. Suas cartas foram escritas,

portanto, em fins do século XVII,

começo do século XVIII.

A Madame de Maintenon escrevia

à Madame des Ursins comentado

a respeito do pedido que esta lhe

havia feito sobre o envio de moças,

sensatas e piedosas, para se casarem

com nobres espanhóis. A Madame

de Maintenon dizia não poder atender

ao pedido, porque essas moças

não existiam mais na França, somente

em Saint-Cyr. 4

Saint-Cyr era o colégio dirigido

por Madame Maintenon, no qual ela

recolhia moças da nobreza pobre e

as formava, realizando depois casamentos

com fidalgos ricos do interior

que queriam tomar ares da corte.

Era um grande estabelecimento

de ensino.

Na carta, Madame de Maintenon

dizia que os homens eram os

culpados pela perversão das mulheres,

porque as obrigavam a se habituarem

às piores coisas: fumar, usar

rapé, tomar café – na época era reputado

excitantíssimo –, beber vinho

a ponto de se embriagarem e portarem-se

não mais com o ar correto da

antiga corte.

Esse é um fenômeno que eclode

muito antes de Maria Antonieta, antes

do reinado de Luís XV, que era

menino de colo quando isso se deu.

Apetência pela

Revolução Industrial

Eu vejo nesse fenômeno, que se

estendeu até certo ponto pela antiga

corte, uma apetência pela Revolução

Industrial que, se tivesse se iniciado

Princesa des Ursins

René-Antoine Houasse (CC3.0)

23


Questionando a Revolução Industrial

naquela ocasião, as pessoas

teriam corrido para ela com

sofreguidão, porque todas as

composturas, as lentidões, as

solenidades, as tranquilidades

e o espírito culto e leve da antiga

corte, os maridos obrigavam

as mulheres a perder.

Parece forçado afirmar

ter se criado aí, com cem

anos de antecedência, a apetência

de um filão da sociedade

europeia pela Revolução

Industrial. É preciso não

esquecer que foi por esses e

por muitos outros fenômenos

congêneres e contemporâneos

que se preparou, cem

anos antes, a apetência pela

Revolução Francesa, irmã

da Revolução Industrial. De

maneira que se poderia levantar

a pergunta: quais foram

outros fenômenos congêneres

que levaram a essa

apetência?

É evidente que tal fenômeno não

se deveu apenas a esse grupinho, o

qual era uma chaga resultante de um

estado geral e que encontrou condições

especiais para explodir na corte

de Luís XIV.

Há aqui todo um capítulo da História

por desvendar. Remonta até

onde? Também não sei. Entretanto,

antes de se fazer a história da apetência,

nós não podemos imaginar

sequer que a Revolução Industrial

chegasse ao ponto em que chegou,

se tivesse encontrado uma repulsa

enorme do homem que a teria transformado

pelo costume. A História

teria seguido outro rumo.

Imaginem todo um continente indignado

que remexe todas essas tendências

com inteligência e eficácia,

porque os costumes têm um poder

de modificação, de rejeição, de assinalação

magnífico que nenhum planejador

tem. É o gênio de um povo,

é a genialidade do costume que

obteria isso. Não adianta combater

Pierre Mignard (CC3.0)

Marquesa de Maintenon

com um plano. Ou há uma nação inteira

que modela isso ou não sai. O

costume é muito mais genial do que

qualquer gênio.

A força do costume

Após essa longa digressão, chegamos

ao ponto: essa reação precisa

ser feita pelo costume. Isso nos coloca

diante de uma tese que me é muito

cara e que é, realmente, a genialidade

do costume. As coisas da Idade

Média nasceram, em geral, do costume.

Ninguém as planejou. Por exemplo,

o feudalismo.

O costume é o grande planejador

que falta em nosso século. A máquina

dirigida pelo técnico eliminou o

costume.

A Revolução Industrial arrasou

com o que dava origem aos costumes

porque ela não encontrou diante de

si um costume que se opusesse a ela.

Foi-lhe possível arrasá-lo porque este

era como uma árvore serrada em

quase toda a sua circunferência, que

se mantinha de pé à espera

de um vento.

Há um certo momento na

História do mundo, e isso

se deu no Ocidente, em que

o costume começa a decair.

Ele morrendo, morre a civilização.

E o resultado está no

que estamos vendo em nossos

dias.

Lendo a correspondência

da Madame de Maintenon,

em que se vê bem a genialidade

do costume e o quanto

ele é insubstituível, consegui

explicitá-lo, bem como o seu

papel.

A força do costume na

civilização ocidental católica

é muito maior do que

na oriental, porque aquela

equilibra, com a continuidade

do costume, um caminhar

sem estagnação, que nós notamos

ao longo de toda a

Idade Média, nos melhores

séculos dela.

É preciso notar que, apesar disso,

as civilizações pagãs, elas mesmas,

tinham uma força de costume

enorme; dentro delas se notam aberrações

não pouco numerosas e muitas

gravíssimas, é verdade, mas, apesar

disso, muito sábias, boas, com

uma estabilidade extraordinária. E

a Revolução, destruindo os costumes,

destruiu também essas nações.

Não há mais uma Pérsia, uma Índia,

uma Indochina, uma China, um Japão,

como outrora, porque os costumes

foram destruídos.

Foi destruída essa capacidade

de gerar costume, genial, magnífica,

misteriosa – às vezes, malfazeja –

que é a própria vida de uma nação.

Papel da extinção de

um costume no processo

revolucionário

Quanto mais glorioso e maior foi

um costume, tanto mais a erradica-

24


ção dele produz problemas de toda ordem.

Depois de ele ter sido uma ajuda,

passa a ser uma ameaça. Mais ou

menos como quando se arrancam as

raízes de uma árvore: saem bichos de

toda espécie, pois há, por baixo de sua

raiz, uma vida que não imaginamos.

Do mesmo modo, por baixo de

um costume que resolve mil coisas,

há um formigamento de fatores que

entrariam em desordem se ele cessasse.

Para a descrição do processo revolucionário,

seria importantíssimo

saber quando a Revolução quer

promover a extinção de um costume,

que gênero de costumes ela ataca

de preferência, que relação há entre

a situação do costume e o método

de ataque inaugurado por ela,

que modos de defesa têm os que

querem manter os costumes, até que

ponto essa defesa supõe uma reação

ou uma adaptação e até que ponto

o costume, recebendo adaptação, se

deteriora ou não.

Há mil problemas interessantíssimos

ligados a isso

que não são diretamente

questões de opinião pública,

mas com uma influência

evidentíssima sobre ela, por

meio de hábitos, móveis, etiquetas,

situações físicas.

Haveria tanta coisa extraordinária,

bonita, útil, fecunda

para estudar dentro disso!

O que é o costume?

Como ele se estagna

e é eliminado?

O que se pode entender

como costume?

Há o costume da vida social.

Por exemplo, um que

houve aqui em São Paulo –

não o conheci, acho que foi

em todo o Brasil, talvez na

América Latina – que consistia

nisso: jantava-se por

volta das sete horas e, antes

Sir John Willes, usando o tradicional traje de juíz no

século XV - Galeria Nacional de Retratos, Londres

de dormir, servia-se uma espécie de

lanche da noite, com comidas mais

leves, com ambiente próprio, diferente

do almoço e do jantar.

Foi um costume que se prolongou,

creio, durante uns cem anos. Quando

eu me dei conta de mim, ainda havia

uma ou outra casa onde esse costume

persistia. Chás para dormir: então,

camomila, pãezinhos, cuja receita

nacional era preciso conhecer para

perceber como eles, ao mesmo tempo,

apaziguavam a fome e não provocavam

polvorosas digestivas.

Outro costume interessante a ser

estudado: Quando apareceu a calça

no gênero humano e que efeito ela

teve? O que houve na transição da

túnica para o culotte usado no fim da

Idade Média e que avançou Ancien

Régime adentro? É um costume que

dura séculos.

Que sintomas na psicologia humana

isso significa? O que mudou?

Por que mudou a tal ponto que os últimos

redutos caíram e se suprimiram

a saia da mulher, a batina do padre,

a toga dos professores? A que

corresponde, nos interesses da Revolução,

essa eliminação?

Outra modalidade é a eliminação

dos trajes distintivos de uma profissão.

A farda, a batina, a toga do juiz,

do professor, a cabeleira dos magistrados

ingleses; quantas vezes teriam

acabado com isso aqui entre nós se

tivesse havido... Por que todas essas

coisas vão desaparecendo? Os trajes

de cerimônia, inclusive.

A nota dominante da explicação é

o igualitarismo. Mas, como o costume

foi se estagnando, foi perdendo

a raiz para ser extirpável? Esse é o

ponto. Além disso, como já estavam

prontos outros costumes, que foram

entrando de tal maneira que quando

se introduziram pareciam a solução

natural para a época e nem se cogitou

em outro?

Thomas Hudson (CC3.0)

Profundidade

dos costumes

Em matéria de costumes,

quando se analisa bem, tudo

tem profundidade. Até os costumes

mais superficiais ligam-

-se a realidades profundas.

Eu alcancei o tempo das

chupetas de cor escura, natural

da borracha, feitas com

celuloide branco. Em certo

momento, passaram a ter

um celuloide um pouco mais

colorido, depois inteiramente

colorido, com a borracha

colorida também, e cores

festivas.

Ora, a mudança da cor da

chupeta, que parece ser algo

sem nenhuma profundidade,

no fundo, prende-se ao

seguinte: a entrada do conceito

de vida puramente alegre

e a eliminação do conceito

de vida sério, que cercava

até a criança, o qual é

25


Questionando a Revolução Industrial

Katemil94 (CC3.0)

anterior a essa mudança na fabricação

das chupetas.

Uma criança que só teve chupetas

de cores que fazem sorrir, colocada

num contexto onde tudo deleita, cercada

somente pelo sorriso, é envolta

pela ilusão de encontrar uma vida

onde tudo é inebriantemente gostoso.

Porque todo gostoso parece ter

acesso fácil ao inebriante.

Mas é preciso haver um equilíbrio

pelo qual a criança tenha o agradável

misturado com algo de sério. Ela deve

compreender que a vida apresenta

as duas coisas e é para ser tomada no

bloco: o gostoso e o ruim juntos.

Uma estampa num

quarto de brinquedos

Lembro-me do meu quarto de

brinquedos, onde havia uma estampa

com dois cachorros da raça Dackel.

É um cão marrom, lustroso,

com pelo naturalmente curto que

não precisa ser cortado, com orelhas

enormes pendentes e um grande focinho.

Na estampa, um deles estava deitado

e outro sentado de cócoras com

as duas patas para a frente. Mas as

Cachorro da raça Dackel

relações entre eles não eram muito

boas, estavam ligeiramente tensas.

Ambos, em relação ao ambiente,

também se mantinham numa posição

um pouco “bismarckiana”.

Aquilo fora ideia da governanta.

Com certeza, ela pediu a mamãe

uma quantia pequena a fim de comprar

a estampa, mandou enquadrá-

-la de modo decente e prendeu-a no

quarto de brinquedos.

Quantas vezes analisei esses Dackels!

E um número enorme de vezes,

subconscientemente, comparei

aquela cena com a vida e as relações

entre os homens...

Não haveria perigo de pôr esses

Dackels num quarto de brinquedos

de uma criança de hoje. Entretanto,

preferem-se gatinhos fazendo voltinhas,

bebendo leite ou fazendo coisas

graciosas, que têm seu papel necessário,

mas não único.

Costumes nas

diferentes épocas

Os costumes dos quais nos damos

conta são aqueles que vimos morrer.

Porque enquanto está vivo, o costume

se encontra de tal maneira entranhado

no homem que se torna uma

segunda natureza.

Inúmeros costumes que constituíam

os restos da seriedade, da gala, inclusive

festiva, e da autoridade presentes

nas manifestações da vida foram

morrendo, não propriamente pela

extinção, mas por uma modificação.

De maneira que os mesmos costumes

passaram a não ter mais essa

marca para, depois, desaparecerem.

Ainda em pequeno, com a idade

de oito anos, presenciei os costumes

da Belle Époque, pois a Europa tinha

entrado em guerra e a evolução

da moda se tornou muito mais lenta.

E até o fim da guerra a nota dominante

ainda era plutôt Belle Époque;

lentamente os costumes se transformaram

naquilo que seriam depois,

quando o verdadeiro élan foi a imagem

de uma Europa democratizada,

com os três grandes Impérios lançados

ao chão, restando apenas as monarquias

secundárias, a ruína das

aristocracias e das Casas Reais.

Nessa época, contrataram professores

leigos para São Paulo. Professores

de curso secundário de uma cidade

pequena como Itu eram caracteristicamente

assim: bigode franzido

à kaiser, chapéu-coco, colarinho

alto, gravatas com nó grande, em geral

anelzinho ordinário na mão, de

bengala, com um ar de certa gala,

certa autoridade. Um homem respeitável,

que respeitava a si próprio

e se fazia respeitar pelos alunos.

Os professores secundários do

meu tempo eram bem inferiores:

americanizados, chapéu mole, gravata

com laço e paletó mais ou menos

como os modernos. A bengala

sumiu, o colarinho amoleceu, o ar do

professor se tornou jovial, e ele passou

do homem imponente ao conquistador

de simpatias. E que, portanto,

começa a mendigar do aluno

um pouco de disciplina, porque não

quer um mundo regido pela disciplina,

pela seriedade. Então, o aluno

travesso é prestigiado, é favoreci-

26


Flávio Lourenço

Recepção em um Palácio no século XIX - Museu do Banco Central de Reservas, Lima

do. O aluno sério é tido como uma

criança banal.

Esse espírito alcança até mesmo

um Chefe de Estado, um presidente

da República, os quais também perdem

muito da pompa que os cercava

antes da guerra.

Novos costumes nos trajes

Os trajes das senhoras passam a

ser vagamente como o masculino; começam

a aparecer senhoras – aliás, já

antes da guerra – usando palheta como

os homens. Ainda não era a calça

como o homem, mas para andar de

bicicleta prendiam embaixo as saias,

em dois gomos. Era um vago desenho

da calça que ia entrando. Viam-se

também senhoras andando a cavalo

pela rua, não mais de amazonas, mas

cavalgando à maneira dos homens.

Lembro-me, quando pequeno,

das senhoras usando uma imensidade

de fitas, laçarotes, chapéus grandes,

enfeites...Tudo foi se simplificando.

Aparecem as joias falsas e

elas começam a usá-las. Cortam o

cabelo, algumas começam a fumar, a

tratar os homens com ar de camarada;

o “você” se generaliza entre rapazes

e moças, criando muito mais

intimidade. Antigamente tratavam-

-se como senhor, senhora.

Um ambiente de riso e gargalhadas

inunda inclusive a vida cotidiana.

Se nas refeições de uma família

não se ri sempre, ela facilmente adquire

a fama de fracassada e frustrada.

Conversa séria, nunca! A discussão

tipo parlamentar, como eu assisti

em casa de minha avó, sobre ateísmo,

monarquia, sobre diversos outros

assuntos, vai sendo substituída

por comentários sobre teatro, fita de

cinema, política local, e ainda sobre

o que dizem os outros...

O respeito desaparece. Os homens

com mais de trinta anos empurram

para um plano secundário os veneráveis

patriarcas do seu tempo, de sessenta

e setenta anos. Os patriarcas

fazem menos uso da palavra e aqueles

a utilizam mais, os jovens, de vinte

ou trinta anos, se impõem sobre os

que têm trinta para quarenta, porque

a era é da juventude, e quanto mais

moços, mais autoridade para se pronunciar

e se impor possuíam.

Novos estados de espírito

As velocidades ficaram cada vez

maiores. Antigamente o chauffeur,

para fazer andar o automóvel, precisava

abri-lo, tirar de dentro a manivela

e tocar com ela o motor, do contrário

este morria.

Em geral, chauffeur era um homem

sério e para ser apreciado devia

dar ideia de responsabilidade. As

fotografias desse tempo não mostram

nenhum chauffeur rindo enquanto

guia, porque assim ele transmitia

segurança. Ao contrário, sempre

teso, ainda que todos dentro estivessem

rindo.

Com o tempo, os chauffeurs mudaram

de fisionomia. Eles não se

misturavam na conversa da família,

27


Questionando a Revolução Industrial

mas iam tomando um estado de espírito

superficial. Assim, durante décadas

conseguiu-se conciliar esta realidade:

homens superficiais executando

bem serviços sérios.

A estrutura de funcionalismo seja

do banco, seja das repartições burocráticas,

em todos os lugares, era

a invasão do riso e da brincadeira na

hora do trabalho. A chamada “antiga

tradição”, entretanto, vigorava e

as coisas ainda funcionavam primorosamente...

E isso parecia um desmentido

aos espíritos animados de

certo sopro profético e que previam

o resultado de tudo.

Costume para

diminuir o chefe

O automóvel do chauffeur ligado

à manivela era forçado a velocidades

vertiginosas, mas ainda pequenas

para contentar a apetências.

A cada lançamento de automóvel, a

parte em que o homem se senta estava

sempre mais baixa, o automóvel

mais comprido, mais achatado

e mais veloz. E a desculpa para isso

era a necessidade de oferecer menos

superfície ao vento... E, na realidade,

o automóvel se transformava

de objeto de aparato,

em mero objeto de transporte.

Depois da Segunda Guerra,

um outro aspecto de “progresso”:

o automóvel passa a

ser sobretudo transportador

de gente, sem aparato, e somente

para vencer as distâncias.

Antes, ele funcionava

também como um pedestal,

ou uma vitrine onde se apresentava

o casal. Depois das

mudanças, o dono é encaixado

ali como mercadoria.

Outro ponto interessante:

começa a aparecer a parte

de trás do automóvel, onde

vão as mercadorias em

penca. E a linha do automóvel

passa a ser uma linha que se

calcula do espelho de trás com o da

frente. E a “caixa” onde estão os donos

ocupando um papel ótico, cada

vez menor.

Além do mais, começam-se a fabricar

automóveis cuja parte mais

importante é a da frente, porque desaparecem

os chauffeurs e os donos

passam a dirigir. Atrás vão as crianças.

Há, então, um achatamento

contínuo do proprietário e da proprietária.

Mais ainda do proprietário,

porque muitas vezes é a mulher

quem guia. E, ao lado, ele, que não

faz nada. E ela não só dirige, mas vai

guiando também a família, o interior

da casa, e às vezes até os negócios.

Portanto, a diminuição do antigo

chefe está se acentuando e ninguém

percebe, apesar de ser evidente.

Havia um automóvel chamado

“baratinha”, 5 no qual eu andei muito.

Eu não guiava, porque nunca tive

jeito para isso e não tinha automóvel,

mas viajei muito na parte de trás

dele. Era um estilo esportivo que

eu detestava. Para subir na “baratinha”,

a pessoa precisava pisar num

lugar estreitamente calculado para

não estragar a pintura e, por fim,

Dr. Plinio em um automóvel “baratinha”

pôr-se dentro daquilo sem cair como

um saco, a fim de não quebrar a mola.

Para entrar nele, eu era obrigado

a uma ginástica horrível, mas, não tinha

remédio, porque sendo dos mais

moços de minha roda era sempre

mandado para trás...

Muitas coisas mudaram ao mesmo

tempo e eu descrevi não só a

morte de um costume, mas de certo

conjunto de costumes ligados a

um mesmo princípio e hábito mental

que desapareceram. v

(Extraído de conferências

de 27 e 28/8/1986)

1) Eduardo Alberto Cristiano Jorge André

Patrício Davi (*1894 - †1972), Rei

do Reino Unido e dos Domínios Britânicos

e Imperador da Índia de 20 de

janeiro de 1936 até a abdicação em

dezembro do mesmo ano.

2) Françoise d’Aubigné (*1635 - †1719).

3) Marie-Anne de La Trémoille (*1642

- †1722).

4) Maison Royale de Saint-Louis. Internato

para meninas nobres empobrecidas,

fundado em 1686, na região francesa

de Saint-Cyr.

5) Carro Ford, versão Roadster.

Arquivo Revista

28


Apóstolo do pulchrum

Beleza com virtude

Vinicius T. D.

Deus quis que os homens se preparassem para

o Céu admirando as belezas criadas por Ele. Por

isso a alma que quer amá-Lo deve ter o espírito

sensível à beleza, rejeitando o materialismo,

que faz com que a pessoa não saiba explicitar

o significado espiritual das coisas.

Se perguntarmos a qualquer pessoa que passa pela

rua qual é a razão de ser do traje que porta, eu

não sei se me engano considerando que a grande

maioria das pessoas não saberá responder com precisão.

Ficará meio espantada com a pergunta, hesitará e dará

uma resposta mais ou menos vaga, imprecisa.

A civilização materialista diminui o

conhecimento das realidades espirituais

Em matéria de traje, nós estamos neste paradoxo: se

pergunto a uma pessoa qualquer da rua para que serve

um microfone, ela diz imediatamente: “Para ampliação

do som, para uma eventual gravação”. Se perguntar

qual a razão de ser de uma cadeira, a pessoa responderá:

“Serve para sentar”. Ou qual a razão de ser de um

automóvel: “É óbvio, é um meio de transporte”. Contudo,

quando se trata de perguntar sobre a razão de ser do

traje, há uma hesitação. O indivíduo tem a sensação de

que não está respondendo por completo, não consegue se

dar conta exatamente de tudo; de onde, então, vem uma

certa vacilação.

Como se explica esse fenômeno?

Se formos examinar a fundo, encontramos a causa

disso no seguinte. Sempre que o homem contemporâneo

é convidado a dar a razão de ser de algo dotado de uma

utilidade evidente, com facilidade ele explica pelo prisma

de sua utilidade: serve para tal coisa, é útil para tal

outra.

Quando se trata de algo que não possui propriamente

o que se pode chamar uma utilidade material, mas sim

espiritual, o homem de nossos dias, por causa de um defeito

que analisaremos daqui a pouco, não sabe explicar.

Se perguntarmos a um homem moderno para que serve

um garfo, ele dirá que é para comer e até ficará agastado

com essa pergunta tão estúpida. Se lhe questionarmos

sobre a razão de ser de um quadro colocado, por

exemplo, numa casa de comércio ou num restaurante de

luxo, ele responderá: “É para atrair os fregueses”. Porque

o lado utilitário do quadro ele compreende, mas não

entende a finalidade superior daquele objeto.

Por quê? Porque o quadro tem uma finalidade espiritual,

uma utilidade para a alma humana; e o homem

de hoje, ainda quando acredite na existência de uma alma

imortal, ainda quando creia em Deus, está encharcado

de materialismo e só sabe explicar as coisas pela sua

utilidade material, prescindindo de seu significado espiritual.

Donde nós vemos que a civilização materialista diminui,

apequena os horizontes e tira aos homens o conhecimento

de uma série de realidades importantes do lado

espiritual.

29


Apóstolo do pulchrum

Repouso do espírito

Vamos dizer, por exemplo, um quadro que represente

o Pão de Açúcar numa perspectiva bonita, na qual a forma,

ao mesmo tempo grandiosa e graciosa, se torne bem

evidente e, por outro lado, a beleza do reflexo do enorme

rochedo sobre a água possa ser vista adequadamente.

Qual é a razão de ser desse quadro?

Alguém dirá: “Eu não vejo razão... é só para descansar

o espírito, para distrair”.

Se fosse só para descansar o espírito já teria muita

razão de ser. Porque se uma cama tem razão de ser porque

descansa o corpo, dado que o espírito vale mais do

que o corpo, aquilo que descansa o espírito deve valer

mais do que aquilo que descansa o corpo. Logo, um quadro

é mais altamente necessário do que uma cama.

Se ninguém negaria a necessidade de uma cama numa

casa, como negar a utilidade da existência de um

quadro? É o repouso do espírito, e mais do que isso, ele

existe para ser visto só porque é bonito.

não poderia ter criado o universo apenas útil, prático e

sem beleza alguma? Por que Ele criou criaturas tão numerosas

e belas que muitas vezes os homens ficam extasiados

com elas?

Uma borboleta, por exemplo. É possível que um indivíduo

especializado em história natural nos afirme

que ela possui uma série de utilidades. O fato concreto

é que se as borboletas deixassem de existir não acabaria

o mundo. Por que Deus as criou? Foi somente por causa

de uma eventual utilidade material ou por sua beleza?

Imaginem uma borboleta com asas azul-esverdeadas,

como as existentes nas florestas brasileiras, e que vem

com aquele esvoaçar bonito e caprichoso, mudando de

rumo, passa por debaixo de uma árvore, brinca sob um

raio de sol, depois some, passa pelo sol de novo e brilha

como uma joia e depois vai embora, leve, delicada. Por

que Deus fez isso?

Na Terra preparamo-nos para

conviver com Deus no Céu

Deus criou uma quantidade enorme de seres porque

são bonitos e existem para serem assim. Por que Deus os

criou? A pergunta última é: qual é a razão de ser da beleza

do universo? Por que Deus criou coisas bonitas? Deus

Donatas Dabravolskas(CC3.0)

Divulgação (CC3.0)

Praia Vermelha, tendo ao fundo o Pão de Açúcar

30


A Doutrina Católica tem uma resposta para esse ponto:

Deus quis que nós preparássemos nossas almas para

o Céu – no qual O vamos contemplar por toda a eternidade

–, conhecendo e amando na Terra seres que remetem

a Ele. Assim nos preparamos para tratar com Ele.

Imaginem que um de nós deva ser apresentado daqui

a dois dias para um rei imponentíssimo, homem inteligentíssimo,

capacíssimo, educadíssimo; mas é de repente.

Não gostaríamos de passar esses dois dias olhando

para um manequim que representasse o rei e assim nos

preparássemos para esse encontro?

Ora, não há rei na Terra que, nem de longe, seja igual

a Deus. Ele é infinito, perfeitíssimo. Olhá-Lo face a face

supõe uma preparação, a qual se adquire, em grande

parte, considerando na Terra as coisas boas, virtuosas

ou então as coisas belas.

Conhecendo pessoas virtuosas, preparamos nossas

almas para amar a Deus quando O virmos face a face,

porque Ele é um abismo de virtudes, é a própria Virtude.

Como todas as coisas belas são reflexos de Deus, conhecendo-as,

preparamo-nos para conhecer e amar a

Deus que é infinitamente belo. Para isso existem as coisas

belas na Terra.

Razão de ser da beleza

O belo que não tem uma utilidade para o corpo – não

mata a fome, não ajuda a proteger contra tempestade,

não aquece... – Deus o criou para a vida da alma. Como

a alma vale mais do que o corpo, o belo é até mais útil

do que as coisas cuja utilidade se restringe à matéria.

Em uma cidade sem pão todos morrem, mas num mundo

sem beleza, do que adianta querer viver?

Quando houve a revolta dos Macabeus contra a dominação

estrangeira e pagã que se exercia sobre a pátria

deles, o primeiro dos Macabeus iniciou-a com este

brado: “É melhor morrer a viver numa terra devastada

e sem honra” (cf. 1Mac 3, 59). Nós poderíamos dizer:

“Mais vale a pena morrer do que viver numa terra devastada

e sem beleza”. A beleza das criaturas é uma das

razões para as quais elas existem e tornam a vida digna

de ser vivida.

Por causa disso, o homem que quer amar a Deus deve

ter o espírito sensível à beleza. Normalmente, um homem

insensível à arte – haverá exceções – é insensível a

Deus. E nas civilizações católicas se cultiva a arte tanto

quanto possível.

É por isso que toda igreja é bela, ou ao menos tem a

intenção de o ser. Até nas catacumbas, nas entranhas da

terra, se formos ver, as capelas eram pintadas e decoradas

pelos primitivos católicos – entre duas perseguições,

entre o perigo de hoje e o de amanhã – exprimindo essa

ideia de que o belo aproxima de Deus e que o culto divino

Catedral de Notre-Dame de Reims, França

deve realizar-se em circunstâncias belas para que, por

ele, a alma seja verdadeiramente conduzida a Deus. Eis

a razão de ser da beleza.

Supressão da beleza nas igrejas

com a Revolução Protestante

Passemos dessa consideração geral à análise da relação

entre a beleza, a Revolução e a Contra-Revolução.

Posto que como tudo quanto é belo conduz a Deus,

desde que não seja o belo imoral, que é um abuso da beleza

a serviço da imoralidade – mas disso nem falemos,

pois é claro que afasta de Deus, não por ser belo, mas

por ser imoral –, é natural que a Revolução queira diminuir

até eliminar o belo do mundo, e que ela proceda

aos poucos, por meio de um processo como descrevi na

RCR, ou seja, primeira Revolução: Protestantismo, Humanismo

e Renascença; segunda: Revolução Francesa;

terceira: Revolução Comunista; e a quarta, da qual eu

não tratei nesse meu livro porque o escrevi antes de ela

explodir, e que é a Revolução hyppie, estruturalista.

Flávio Lourenço

31


Apóstolo do pulchrum

Gabriel K.

Alguém objetará:

— Mas, Dr. Plinio, a Catedral de Westminster não é

protestante?

— Sim, é protestante.

— E ela não é linda?

— Lindíssima! Ela foi construída no tempo em que a

Inglaterra era católica. Dentro dela, tudo quanto se pôs

no tempo de protestantismo é medonho.

E assim nós poderíamos multiplicar os exemplos.

Quer dizer, a primeira Revolução trouxe uma diminuição

na beleza.

A Revolução Francesa aboliu a

beleza no trato e nos trajes

Abadia de Westminster, Londres

Em cada uma dessas Revoluções,

notamos que a beleza da arte vai diminuindo,

vai se perdendo. Não há

quem não tenha notado a diferença

de beleza entre uma igreja católica

e um templo protestante. As igrejas

católicas tradicionais são ornadas,

pintadas, têm mármores, esculturas,

pinturas, bonitos móveis, tudo

é lindo, pois não há o que baste para

a glória de Deus.

Os templos protestantes são frios,

secos, tristonhos, melancólicos e sem

beleza. Na primeira Revolução, sob

o pretexto de combater o luxo, o esbanjamento

do dinheiro, a complicação

da vida, em favor de uma vida

barata, simples e igualitária, os

protestantes suprimiram o luxo das

igrejas. Resultado: eles tiraram do

culto, do rito, da religiosidade, a beleza

que havia nos antigos tempos.

A tragédia da Revolução Francesa de 1789 arrebentou

como um trovão em céu sereno. Terá ela trazido uma diminuição

de beleza também? Trouxe, em todos os aspectos

da vida.

Qualquer pessoa que não tenha um espírito faccioso

levado até ao delírio, reconhece que as maneiras, os palácios,

os objetos de arte, todas as coisas de antes da Revolução

Francesa eram muito mais bonitas do que depois.

As carruagens... Que carruagens lindas, que liteiras

maravilhosas! As maneiras! Não há quem não pense que

o auge das belas maneiras, da arte no trato, se definiu na

Europa do século XVIII, especialmente com os três dons

que o francês, mais do que ninguém, sabia cultivar e que

exprimia da seguinte maneira: savoir dire, savoir faire, sa-

Flávio Lourenço

32


Divulgação (CC3.0)

voir plaire: saber dizer, saber fazer, saber agradar. Que

bonito!

Os trajes anteriores à Revolução Francesa eram lindíssimos,

com sedas maravilhosas, veludos magníficos,

joias esplêndidas, belíssimos desenhos das formas.

Antes de desaparecer, o traje amolece

Luís XIV - Galeria do Palácio de Versailles

Cem anos depois dessa Revolução, portanto em 1889,

quando a Monarquia foi abolida no Brasil, tudo era

mais feio. Para não falar senão do traje masculino, que é

mais especialmente objeto das presentes considerações,

comparemos a indumentária dos estadistas, dos homens

públicos do Império brasileiro ou do começo da República

– de D. Pedro II ou do Presidente Prudente de Morais,

por exemplo –, com a dos homens de cem anos antes, e

notaremos como a diferença é fantástica.

Para não alongar muito a descrição, eu me refiro apenas

ao chapéu. Antes da Revolução Francesa usava-se

um chapéu de três bicos, com a aba levantada dos três

lados, com plumas bonitas colocadas entre a aba e a copa

do chapéu, às vezes com bordados e até com pedras

preciosas. Comparemos isso com os chapéus do tempo

de D. Pedro II ou da época do Presidente Prudente de

Morais: a cartola.

Como era a cartola? Hoje ela parece uma cobertura

de luxo para a cabeça, mas, afinal de contas, é um tubo

preto, um pedaço de chaminé. Não tem dúvida, feito

muitas vezes com uma matéria-prima muito lustrosa.

Entretanto, comparada com o chapéu de três bicos, não

dá sequer para um agente funerário.

A veste que acompanhava a cartola era a camisa de

peito duro com um colarinho também duro e aberto e

uma gravata com uma pérola, além do tubo em cima da

cabeça... assim o homem estava vestido. Sem dúvida,

houve uma diminuição de beleza.

A Primeira Guerra Mundial arrebentou em 1914, e

o Tratado de Versailles, que consagrou o fim da guerra,

se fez em 1918. Naquele ano houve uma mudança enorme

nas modas e tudo amoleceu. Primeiro, a cartola praticamente

desapareceu, ficou sendo usada apenas para

as grandes cerimônias. Antigamente era uma cobertura

diária para a cabeça, mas foi substituída por esse chapéu

mole, não de seda, mas de um feltro qualquer, com

o qual me veem muitas vezes. O chapéu de feltro é muito

inferior à cartola. Ele é baixo, tira algo da imponência

do homem. E, sobretudo, mole como ele é, a sua beleza

está em ser amassado.

Há um dado curioso na história da arte: antes de um

traje desaparecer, ele amolece. Dir-se-ia que é um processo

mortal ao qual está sujeito.

René-Antoine Houasse (CC3.0)

33


Apóstolo do pulchrum

Joaquim José Insley Pacheco (CC3.0)

D. Pedro II

As camisas deixaram de ser engomadas e passaram a

ser essas comuns que vemos por aí. Depois, o colarinho

deixou de ser alto – o que obrigava a cabeça a permanecer

numa posição de sobranceria – para ser o colarinho

dobrado usado atualmente.

O paletó deixou de ter aquela distinção preta de outrora,

para ter uma cor qualquer, sem distinção nenhuma,

como cor de papel de embrulho. Não há, por exemplo,

cor de traje em relação ao qual eu tenha mais objeções

do que esse cinzento com o qual eu estou vestido.

Qualquer papel de embrulho, qualquer pano de lavar

chão pode ter essa cor. Comparem isso com a roupa

de um varão de antes da Revolução de 1789; nem o criado

dele se vestia como um de nós se veste, de tal maneira

houve decadência.

Próximo passo da Revolução: o nudismo

A Revolução é terrível, não para um momento. Depois

desse traje que eu uso ter ficado comum até para os moços,

ela começou a exigir novas modificações, como o uso

de uns paletozinhos muito cortadinhos, muito apertadinhos.

Em seguida, suprimiu o paletó, o qual se usa menos

hoje, ficando-se apenas em manga de camisa. Também

o tecido das camisas começou a ficar tão leve que,

às vezes, se a pessoa tem na pele uma cicatriz, uma pinta,

ou qualquer coisa assim, olha-se e através do pano se

percebe aquilo. Portanto, a camisa cobre mal o indivíduo.

O tecido não é feito para ocultar o corpo, mas quase

para deixar transparecer algo dele.

É claro que o próximo passo tem que ser o nudismo.

O mesmo se diria das calças. No meu tempo de moço,

elas encolheram muito. O cano da calça na extremidade

inferior era tão apertado que não era muito fácil de passar

o pé através dele. Depois alargaram muito e se usaram

umas calças “boca de sino”. Anos mais tarde, estreitaram

de novo. De tanto mexer, elas começaram a se encolher.

E após a Segunda Guerra Mundial, começou o

uso das bermudas.

Primeiro, havia apenas o uso militar de bermudas na

África quentíssima. Posteriormente começou-se a usar

para esportes também. E não está muito longe de se usar

para todos os dias. É claro que no dia em que o homem

não usar camisa, a calça vai ser tão estreita que vai ser

uma tanga. E haverá um momento em que o homem não

usará mais nem sequer a calça. Quer dizer, nós caminhamos

de todos os modos para o nudismo.

Os agentes da Revolução acham que aí o homem será

feliz. Eles se reputam ultramodernos porque querem

voltar para a época da pedra lascada, e reputam-

-nos muito anacrônicos porque queremos voltar para

a Idade Média, como se a época da pedra lascada não

fosse incomparavelmente mais velha do que a Idade

Média.

O traje, velando o corpo, realça-lhe a beleza

O nudismo para o qual a Revolução caminha é

ruim, evidentemente, porque convida a um atentado

contra o pudor, mas também por outra razão: o homem

foi feito para ser considerado na sua beleza.

Deus deu à criatura humana – homem ou mulher –

uma grande beleza. E esta deve ser ocultada no que

ela tem de contrário ao pudor, mas deve ser realçada

no que tem de espiritual.

Por exemplo, uma senhora que tenha traços fisionômicos

muito bonitos, muito distinta, deve cuidar-se, deve

arranjar-se para se apresentar de maneira a realçar a

beleza de seu rosto. Entretanto, ela deve atrair para o lado

espiritual e não para a concupiscência. Há rostos que

são tão ordinários que despertam a concupiscência; isso

é mau. Há rostos que são tão espirituais que não despertam

para a concupiscência, mas para a virtude.

Para dar dois casos extremos, ninguém houve na Terra

tão belo como Nosso Senhor Jesus Cristo e logo abaixo

d’Ele, Nossa Senhora; ambos concebidos sem pecado

original, lindíssimos, perfeitíssimos. Mas a consideração

d’Eles não despertava sensualidade. Vendo Nosso

Senhor, nenhuma mulher era tentada e, vendo Nossa Se-

34


Arquivo Revista

nhora, nenhum homem era tentado, porque eram tão

puros que a beleza do rosto era reflexo dessa pureza.

A compostura dos trajes era muito grande e servia

para realçar a beleza da alma. E o traje era, portanto,

um modo de apresentar a beleza do espírito, como

também de velar o corpo, mas lhe realçar a beleza.

E, por essa forma, o traje é um instrumento de santificação.

É claro que a Revolução, odiando toda forma de beleza

e desfigurando cada vez mais a vida dos homens

– porque a beleza é um reflexo de Deus –, a Revolução

não podia deixar de querer o nudismo, porque é um

modo de eliminar as manifestações da beleza da criatura

humana.

Então, são essas as razões pelas quais a Revolução

quer o nudismo. Razões pelas quais também é preciso,

de nossa parte, lutar. E é por causa disso, por exemplo,

que a Sede do Reino de Maria é conservada em toda a

sua beleza, para despertar o gosto estético, artístico, para

fazer compreender o que é uma vida dentro da beleza

com virtude, com seriedade, com compenetração, com

dignidade.

v

(Extraído de conferência de 9/8/1975)

Arquivo Revista

35


Flávio Lourenço

Virgem do Carmo

Igreja dos Santos

Anjos, Sevilha

Mãe do Carmelo e Rainha dos Profetas

Nossa Senhora de Fátima agiu como profetisa em dois sentidos: previu o futuro e indicou

o caminho para o povo de Deus. Donde podemos deduzir a especial nobreza do título

de Rainha do Profetas, porque é a realeza das realezas, enquanto dando impulso

a todo o acontecer da História.

Em Fátima, a Mãe de Deus apareceu também sob a invocação de Mater et decor Carmeli –

Mãe e esplendor do Carmelo. O Carmelo é a montanha de Elias, do alto da qual ele viu profeticamente

a nuvenzinha que simbolizava a Santíssima Virgem. É a montanha da devoção a

Nossa Senhora enquanto presidindo o filão eliático da História, das almas sempre fiéis e especialmente

devotas d’Ela.

(Extraído de conferências de 14/5/1973, 17/10/1980 e 12/4/1985)

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