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Revista Dr Plinio 329

Agosto de 2025

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Apóstolo da Cruz


Uma data

Flávio Lourenço

linda para

nascer!

O

dia 15 de agosto vai

passando, é a festa da

Assunção de Nossa Senhora.

Que data linda para nascer!

Que magnífico nascer no dia

da Assunção de Nossa Senhora!

Maria Santíssima que vai subindo

ao Céu diante dos Apóstolos

entusiasmados.

Quanta coisa entre nós tem subido

pela colaboração desse filho

nascido na data da Assunção!

(Extraído de conferência de

15/8/1981)

Assunção de Nossa

Senhora - Museu Cristão

de Esztergom, Hungria

Arquivo Revista

Dr. Plinio com o Sr. João Clá,

em abril de 1990


Sumário

Vol. XXVIII - Nº 329 Agosto de 2025

Apóstolo da Cruz

Na capa,

Dr. Plinio, acompanhado

do Sr. João Clá,

em dezembro de 1991.

Foto: Arquivo Revista

As matérias extraídas

de exposições verbais de Dr. Plinio

— designadas por “conferências” —

são adaptadas para a linguagem

escrita, sem revisão do autor

Dr. Plinio

Revista mensal de cultura católica, de

propriedade da Editora Retornarei Ltda.

ISSN - 2595-1599

CNPJ - 02.389.379/0001-07

INSC. - 115.227.674.110

Diretor:

Roberto Kasuo Takayanagi

Conselho Consultivo:

Jorge Eduardo G. Koury

Roberto Kasuo Takayanag

Vicente de Paula Torres Nunes

Redação e Administração:

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - sala 1 - Tremembé

02372-020 São Paulo - SP

Impressão e acabamento:

Pigma Gráfica e Editora Ltda.

Av. Henry Ford, 2320

São Paulo – SP, CEP: 03109-001

Segunda página

2 Uma data linda

para nascer!

Editorial

4 “Quanto mais uma pessoa sofre,

tanto mais é digna de amor”

Piedade pliniana

5 Dai-me, Senhor, a vossa força!

Dona Lucilia

6 Afeto e conformidade

diante da cruz

De Maria nunquam satis

8 Na Assunção, ensinamentos

de Contra-Revolução

A sociedade analisada por Dr. Plinio

11 O verdadeiro jeitinho

brasileiro - II

O pensamento filosófico de Dr. Plinio

16 Rumo ao píncaro da dor,

pelas sendas do heroísmo

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ao Assinante

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Reflexões teológicas

22 Confiança heroica nas

horas trágicas

Denúncia profética

28 O papel regenerador

do sofrimento

Dr. Plinio comenta...

32 Grandeza e sofrimento

Última página

36 A realeza das realezas

3


Editorial

“Quanto mais uma pessoa sofre,

tanto mais é digna de amor”

Para Dr. Plinio, o dia 15 de agosto revestia-se de especial significado, antes de tudo por ser festa da gloriosa Assunção

da Rainha do Céu e da Terra ao trono a Ela destinado; mas também por se comemorar o aniversário natalício

do mais eminente de seus filhos, suscitado para ser, segundo as próprias palavras de Dr. Plinio, seu “alter ego”,

cuja assombrosa fecundidade do apostolado deveu-se à aceitação incondicional das grandes e sucessivas cruzes a ele impostas

pela Providência.

A Cruz!… considerada uma ignomínia na Antiguidade, foi, entretanto, o instrumento escolhido e sublimado por Nosso

Senhor Jesus Cristo para operar a Redenção, indicando-a, até, como verdadeiro caminho a ser palmilhado por aqueles

que querem ser verdadeiramente seus discípulos (cf. Lc 14, 27).

Viver à sombra desse Lábaro, aceitar com a alma transida de amor e o espírito decidido de um guerreiro todos os sofrimentos

enviados por Deus, foi para Dr. Plinio uma regra de vida. “Ser católico e ter medo de sofrer por Deus é fazer deste um mero banqueiro

que nos fornece prazer ao sabor de nossos caprichos, ou lacaio a quem se encomenda felicidade, como se lhe pede um copo

de água. É amizade o ter medo de sofrer por um amigo? Não. Logo, não é Cristianismo o ter medo de nos sacrificar por Jesus,

nosso maior amigo. Não cometamos a atrocidade de abandonar Jesus no Calvário”. 1

É por isso que a descrição paradigmática da vida de Jó sempre o encantou, pois nela ele via não apenas a prefiguração

dos sofrimentos que o Padre Eterno havia reservado para seu próprio Filho, o Homem-Deus, como também uma parábola

do modo como a Providência trata aqueles filhos aos quais Ela ama com especial predileção e a quem reserva a altíssima

missão de “fazer recuar ou avançar o plano de Deus na História”. 2

O ano de 1995, o último da vida de Dr. Plinio, foi para ele particularmente repleto de sofrimentos. E a Providência pediu-lhe,

ademais, que carregasse as cruzes que Ela lhe enviava sem que pudesse ter junto a si aquele que sempre fora seu

Cireneu… Acometido por grave doença, a sarcoidose, ficou o Sr. João Clá obrigado a convalescer longe de seu pai espiritual

por longos meses. Esse distanciamento favoreceu uma correspondência assídua e deixou registrados para a História

os sublimes motivos que aumentaram ainda mais o grande amor que Dr. Plinio devotava a seu discípulo fiel:

“João meu, meu filho diletíssimo…

“Um dos ensinamentos que com maior continuidade me deu NOSSA mãe 3 consistiu em que, quanto mais uma pessoa

sofre, tanto mais é digna de amor.

“Diante de tantos e tantíssimos de seus feitos, eu me perguntei mais de uma vez: restará ainda alguma coisa para o João

fazer por nossa Causa e por mim, de modo que eu o queira ainda mais? A resposta tendia a ser pela negativa: na pluralidade

estonteante de vias e de feitos que se abrem ante nós para servir à Santa Igreja, tanta coisa já está feita… e tantas – das

que restam por fazer – prometem ser apenas magníficos desdobramentos do já feito, que eu me sentia perplexo. Porém,

vendo-o sofrer tanto e tanto, sem desfalecimento, sem inconformidade, sem torcidas frenéticas e coisas do gênero, ainda o

quis mais! Quão menos bem eu teria querido mamãe se não a tivesse visto sofrer tanto!

“Foram esses os pensamentos que me subiram à tona d’alma, ao ler seu último e magnífico ‘tubonema’. 4

“Peço à Virgem Imaculada que, sendo Ela nossa legítima Soberana, a um título incomparavelmente mais forte e excelso

do que qualquer outro na Terra, continue a difundir sobre você, sobre todos nós e especialmente sobre os que Ela mais

ama, graças impressionantes, que nos preparem para o grande dia d’Ela.

“Peço a Ela igualmente que conceda a você, e a todos nós, as graças necessárias para uma resistência arqui-heroica no

grande dia d’Ela. E, em particular, para você, meu querido João, os mil favores inerentes à cura urgente, brilhante e decisiva

que tanto lhe desejamos”. 5

Na presente edição, o leitor poderá contemplar mais alguns dos belíssimos ensinamentos de Dr. Plinio e constatar o

quanto foi ele um verdadeiro apóstolo da Cruz.

1) Discurso pronunciado na Academia Jackson de Figueiredo, em 11/1/1931.

2) Conferência de 30/4/1995.

3) Dr. Plinio se refere a Dona Lucilia.

4) Termo jocoso utilizado por Dr. Plinio, no âmbito interno do Grupo, para se referir ao fax, o qual se lhe afigurava como uma mensagem

transmitida por meio de um tubo.

5) Correspondência de 13/3/1995.

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.

4


Piedade pliniana

Agonia no Horto

Igreja de São Rafael,

Córdoba, Espanha

Flávio Lourenço

Dai-me, Senhor,

a vossa força!

Senhor, lembrai-vos! Quando chegou a vossa hora de sofrer, Vós que sois perfeito no

sentido mais exato da palavra, na vossa humanidade santíssima produziu-se um suor

de sangue, devido ao terror diante do que havia de acontecer. E pedistes que aquilo

não sucedesse (cf. Lc 22, 43).

Senhor, quem sou eu em comparação convosco? São Luís Grignion de Montfort definiu

tão bem: “Un petit vermisseau et misérable pécheur – um vermezinho e miserável pecador”.

Este sou eu. Como posso ter coragem para o meu grande sacrifício?

Vós me pedis esse sacrifício em troca do qual me dais tanto, que dizeis até que sereis Vós

mesmo a minha recompensa demasiadamente grande. Esta frase é como uma música para

meus ouvidos! Sereis Vós mesmo, Senhor, a minha recompensa demasiadamente grande. Ó

maravilha! Como eu me encanto!

Mas, Senhor, tivestes medo e quisestes precisar do auxílio de um Anjo. Eu aceito o que

Vós quiserdes mandar, mas dai-me a vossa força! Sem isso, sinto em mim que não conseguiria.

Por isso, São Paulo disse: “Tudo posso n’Aquele que me dá forças!” (Fl 4, 13).

(Composta em 16/7/1983)

5


Dona Lucilia

Tomas J.R.

Ao longo de sua vida, Dona Lucilia

padeceu pela falta de reciprocidade

da maioria daqueles que foram objeto

de sua bondade e afeto. Entretanto,

ela tudo sofreu de forma harmoniosa,

a ponto de o sofrimento tornar-se

um dos ornatos de sua alma.

Dona Lucilia sofria muito,

mas compreendia bem

toda a elevação que o sofrimento

dá e, quando bem aceito,

toda a oportunidade de união que

ele proporciona com o Coração sofredor

de Jesus e Maria.

Beleza de uma alma

que aceita sofrer

Via-se que o sofrimento a fazia

sofrer de fato, mas ela entendia ser

isso a missão de sua vida e carregava

a cruz com muita conformidade,

muito afeto, muita dor.

Nunca a vi, por exemplo, ter a menor

inconformidade, revolta ou queixa.

Sempre com a alma muito harmoniosa,

muito grave, muito cândida.

É uma grande lição para compreendermos

como podemos vencer na

vida lutando, sofrendo. O sofrimento

é, nesse ponto, de uma importância

fundamental.

Uma pergunta que eu me fazia a

respeito de mamãe era a seguinte: se

do ponto de vista humano, terreno,

ela se tornasse de repente muito feliz,

a alma dela não perderia alguma

coisa do lastro? Porque uma das belezas

da alma dela era a tristeza.

Ademais, para que o pensamento

humano tenha não só substância,

mas suficiente vagar para poder se

aprofundar, ele precisa ter um fundo

de tristeza. Porque sem ele o homem

não se aprofundaria, por uma razão

muito simples: é que o homem segue

habitualmente a lei do menor esforço

e, quando ele está feliz, não pensa

nas dificuldades.

É preciso uma pessoa ter problemas

que a façam sofrer para ter

aquela vontade de resolver os problemas

e ser bastante ativa para resolvê-los

de fato.

Falta de reciprocidade

na sua dileção

Com Dona Lucilia há uma diferença

entre a dor sofrida por ela no

período da velhice e no período anterior.

Em parte, tenho a impressão

de que essa diferença vem do modo

de considerar o casamento.

Em certa fase de sua existência,

a pessoa calcula que obter reciprocidade

é uma alegria, uma felicidade.

Depois de um certo período

compreende que essa reciprocidade,

quando existe – e é uma coisa rara –,

é de um conteúdo diferente do que

imaginava na mocidade.

Quando minha mãe se casou, tinha

muita abertura para o sentimento.

Ela continuou assim até o fim da

vida, mas compreendendo que se deve

contar muito menos com a reciprocidade

do que ela contou no começo

de sua vida.

Por outro lado, ela procurava amparar

as pessoas em suas fraquezas e

o fazia de um modo magnífico, porém

com muito pouco êxito, porque

o homem contemporâneo tem a alma

fechada para essas coisas.

Não tenhamos ilusão: diante das

formas delicadas de bondade de alma,

de concessão, de apoio, de auxí-

6


Arquivo Revista

lio, de misericórdia, o homem contemporâneo

é duro e ruim. Ele pergunta:

“Que dinheiro você tem para

me dar? Que poder você tem que me

dar? Que vantagens você me dá? Se

você não me der essa vantagem, todo

esse seu agrado não adianta nada.

Diga logo!” É assim.

E mamãe não tinha. Ela estava

como os Apóstolos a quem o mendigo

pediu dinheiro e São Pedro disse:

“Não tenho nem ouro nem prata,

mas o que tenho, eu te dou: em nome

de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te

e anda!” (At 3, 6).

Ela podia dizer isto à pessoa: “Se

você se abrir à minha dileção, sua alma

poderá andar”.

Mas esta é a resposta do homem

contemporâneo: “O que é alma? Eu

quero o automóvel novo de tal marca,

aquele que eu cobicei enquanto

andava na rua, vendo-o passar na

praça atrás de mim! Não me tome

tempo com essa sua alma, porque eu

não me incomodo com alma”.

Fotografia do passaporte de Dona Lucilia

De maneira que houve muito

pouca gente sensível ao atrativo, à

bondade dela.

Isso não nos deve espantar, porque

à bondade infinitamente maior

de Nosso Senhor Jesus Cristo, qual

foi a resposta dos homens? E inclusive

dos Apóstolos?... Quer dizer,

o homem é ruim e nós não devemos

pensar tolamente que, à força

de sermos bons, nós arrastamos

os outros. Isso não é verdade. Nós

devemos ser bons não pelo cálculo

de arrastar, mas porque Deus, nosso

Pai Celeste, é bom; porque Nossa

Senhora, nossa Mãe Celeste, é

boa.

Quanto à retribuição, esperemos:

é uma bofetada ou uma traição. É isso,

não tem conversa. Então, devemos

fazer o bem já contando que isso

virá. Porque, mais cedo ou mais

tarde, vem.

Catadupas de bondade

Em sua vida, Dona Lucilia colheu

isso e colheu fartamente, sem amargura

e com essa bondade que está

no “Quadrinho”. 1

Mas não tenhamos ilusão: quando

fizermos um benefício a alguém,

digamos: “Esta é a véspera da ingratidão”.

Porque ela vem. Não será

sempre a traição, mas é o esquecer,

pouco se incomodar, retribuir com

uma grosseria, com uma indiferença,

com displicência, aquilo

que foi feito às catadupas de

bondade. Esta é a vida, e foi o

que Dona Lucilia colheu.

No fim da vida, ela teve contato

com o João e com os “enjolras”.

2 Então começou algo

que se prolongaria depois de

sua morte. Mesmo assim, entre

aqueles que vão ao túmulo dela,

há os que, de repente, deixam de

ir e até somem do Grupo. Até que

ponto guardam a recordação dela?

Não sei.

Eu a vi passar por inúmeras circunstâncias

dessas e presenciei, uma

São Pedro curando o paralítico

Museu Metropolitano de Nova Iorque

ou outra vez, a reação dela. Porque,

em geral, ela ficava quietinha. Mas

uma ou outra vez a reação dela era

um suspiro e dizer: “Coitado – ou

coitada – vai ter que sofrer muito”.

Mais nada. Eu já tenho visto gente

assim sofrer de se fritar. Claro!

Quem semeia vento, colhe tempestade.

v

(Extraído de conferências de

22/4/1986 e 5/1/1994)

1) Quadro a óleo que muito agradou a

Dr. Plinio, pintado por um de seus

discípulos com base nas últimas fotografias

de Dona Lucilia. Cf. Dr. Plinio

n. 119, p. 6-9.

2) Palavra afetuosa utilizada por

Dr. Plinio para designar seus discípulos

mais jovens, os quais surgiram

aproximadamente a partir de 1970.

Havia neles acentuado grau de debilidade,

se comparados com aqueles

que os antecederam, os da “geração

nova” (cf. Dr. Plinio n. 81, p. 17). Entretanto,

a Providência concedeu aos

“enjolras” uma maior capacidade de

se entusiasmar pelo aspecto simbólico

das coisas.

Gabriel K.

7


De Maria nunquam satis

Assunção de Nossa

Senhora - Galeria

Nacional do Canadá

Gabriel K.

Na Assunção, ensinamentos

de Contra-Revolução

Através de pequenos pormenores extraídos das visões de Anna

Catarina Emmerich sobre a Assunção de Maria Santíssima,

pode-se compreender como a Contra-Revolução, para ser

plena e vencer, precisa ser animada por uma ordenação de

ideias e princípios esquecidos pelo mundo hodierno.

8


Vamos considerar uma ficha

sobre a Assunção de

Nossa Senhora, retirada

de Catarina Emmerich. 1

A Assunção de Maria segundo

Anna Catarina Emmerich

Na noite da sepultura de Nossa Senhora,

sucedeu a Assunção da Virgem

ao Céu com seu corpo. Eu vi vários

Apóstolos e mulheres nessa noite

rezando ante a gruta ou, antes, no jardinzinho

que estava diante da gruta.

Eu vi baixar do Céu um facho luminoso

e três coros de Anjos rodeando a

alma de Maria, que vinha resplandecente

pousar sobre a sepultura.

Nossa Senhora esteve algumas

horas com a alma separada do corpo.

Sua alma santíssima baixou junto

ao corpo precedida por um cortejo

de Anjos.

Diante da alma vinha Jesus com

suas chagas luminosas. E na parte interior

da glória onde estava a alma de

Maria, viam-se três coros de Anjos.

Naturalmente, os coros mais nobres,

mais próximos; e, em periferias

sucessivas, os outros coros,

todos formando um facho de

luz enorme que continha, no

centro, a alma santíssima de

Nossa Senhora.

O mais interior parecia de fisionomias

angélicas de meninos,

a segunda fileira era constituída

por semblantes de criaturas

de seis a oito anos e a

mais exterior era de jovens. Só

se distinguiam bem os rostos, o

resto do corpo era como uma

coluna luminosa algo indeterminada.

Isso indicava os graus sucessivos

de espiritualidade:

a criança é símbolo da pureza.

A visão dos Anjos por

essa forma, porque eles não

têm corpos, simboliza uma

elevação espiritual mais nobre,

mais excelente.

Em torno de Maria havia uma coroa

de Anjos. Não saberia dizer o que

viam os presentes; eu só via que olhavam

para o alto, cheios de admiração e

emoção. Às vezes, maravilhados, prostravam-se

com o rosto no chão. Quando

essa aparição se tornou mais clara

e pousou sobre o sepulcro, abriu-se um

facho de luz desde ali até a celeste Jerusalém.

A alma de Maria, passando

diante de Jesus, penetrou através da pedra

no sepulcro, logo alçou-se dali com

seu corpo resplandecente de luz e se dirigiu

triunfante, com o angélico acompanhamento,

à Jerusalém Celeste.

Quando, dias depois, estavam os

Apóstolos rezando em coro, chegou

o Apostolo Tomé com dois acompanhantes.

Um era o discípulo Jonatan

Eleazar, e outro era um criado do país

dos Reis Magos. Tomé e Eleazar rezaram

diante do sepulcro. João abriu os

três parafusos que fechavam o caixão,

deixaram a tampa de lado e viram,

com grande maravilha, o sepulcro vazio.

Só estavam ali os lençóis e tecidos

com os quais haviam envolvido os sagrados

restos. Tudo estava em ordem

perfeita. O lençol estava tirado na parte

Assunção de Nossa Senhora - Museu de Santa Cruz, Toledo

do rosto e aberto na parte do peito; as

ataduras dos braços e das mãos apareciam

abertas e postas em boa ordem.

Os Apóstolos alçaram as mãos em sinal

de grande admiração e João gritou:

— Ela não está mais aqui!

Solidariedade entre ordem

e Contra-Revolução;

desordem e Revolução

É interessante notarmos a boa ordem

em que estavam os panos. Qual

é o alcance desse pormenor? Deus,

de tal maneira ama o bem, ama o

mundo, que Ele quer a boa ordem

para todas as coisas do universo que

criou. E, por causa disso, tudo quanto

é feito por Ele ou sob o influxo da

graça se põe em ordem, se dispõe de

um modo correto e conveniente. É

uma espécie de aliança do metafísico

com o sobrenatural. O sobrenatural

ruma para aquilo que está metafisicamente

bem arranjado, bem posto,

e é esta a razão pela qual todas as manifestações

da graça produzem a ordem

na natureza.

É o contrário das manifestações

do demônio. Sempre quando

lhe é permitido aparecer

ou influenciar as almas,

a sua ação se caracteriza por

perturbações tremendas,

por convulsões. Se ele infesta

uma pessoa, resulta em

gestos agitados; se ele infesta

uma casa, mexe nos móveis

para colocá-los em desordem.

Compreende-se, então,

até que ponto todos os domínios

da ordem e todos

os aspectos dela são solidários

entre si. Mas, também

quanto a todos os domínios

e aspectos da desordem,

eles são igualmente solidários.

Nisso compreende-se

a unidade da Revolução e

a unidade da Contra-Revolução,

como a Revolução

Flávio Lourenço

9


De Maria nunquam satis

não pode ser considerada apenas um

movimento político, religioso ou cultural,

mas é a tendência à subversão

e à desordem em tudo.

E como a Contra-Revolução, portanto,

não pode igualmente ser apenas

um movimento político, religioso ou

cultural, mas para ser plena, precisa

ter um espírito e ser animada por uma

graça que visa pôr tudo em ordem.

Através desse pequeno pormenor,

tem-se ocasião de meditar sobre a

solidariedade de todas as formas de

ordem e de desordem.

A nobilíssima noção de

fidelidade esquecida

Flávio Lourenço

Continua o texto.

Os demais se aproximavam, olhavam,

choravam de alegria

e admiração. Oravam

com os braços levantados

e os olhos no alto e se

prosternavam pensando

na luz que tinham visto na

noite anterior. Logo tomaram

consigo todos os lençóis

e o caixão, como relíquias,

e levaram tudo até

a casa, orando e cantando

salmos em ação de graças.

Quando chegaram à casa,

João pôs as telas dobradas

diante do altar. São Tomé

e os demais rezavam. Pedro

se afastou um tanto,

preparando-se para celebrar.

É o príncipe dos Apóstolos!

É evidente que a

primeira Missa da Assunção

devia ser rezada por

ele.

Logo o vi celebrar a

Missa diante do crucifixo

de Maria...

Era o crucifixo diante

do qual Nossa Senhora

rezava.

...e os demais Apóstolos

por detrás dele, em ordem,

rezando e cantando. As mulheres

estavam junto à porta e perto da lareira.

O criado de Tomé tinha aspecto de

estrangeiro: olhos pequenos, ossos das

maçãs do rosto saltados, fronte e nariz

achatados, e cor morena. Ele já estava

batizado e era simples no seu modo se

ser, muito serviçal e humilde. Fazia tudo

o que se lhe ordenava: ficava de pé

ou se sentava conforme lhe diziam. Virava

os olhos para onde se lhe indicavam;

ia e vinha segundo se lhe mandavam

e sorria para tudo. Quando viu

que Tomé chorava, chorou também.

Foi inseparável companheiro e ajudante

de São Tomé, e o vi levantar pedras

muito grandes quando Tomé queria

edificar alguma capela.

É uma muito boa manifestação

de fidelidade de um servo, fazendo

Assunção de Nossa Senhora - Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

tudo quanto seu amo lhe mandava

fazer e sentindo tudo como seu amo

sentia, fazendo-se um só com ele. É

uma ideia que o mundo hodierno

perdeu completamente, essa nobre

noção da fidelidade pela qual duas

pessoas de categorias diferentes,

em vez de se odiarem, se estimam.

E não apenas se estimam, mas se

fundem, constituindo como que um

só todo, quase um não se podendo

conceber sem o outro, como a relação

do escudeiro e do cavaleiro na

Idade Média.

Há inúmeros exemplos de situações

como essa, porém, a mais bela

de todas foi a dos mártires São

Lourenço e São Sisto. Quando o Papa

São Sisto foi levado para o martírio,

o diácono habitual dele, São

Lourenço, aproximou-se

e disse: “Santo Padre, como

ides para o martírio

e me deixais? Vós que

sempre celebrastes o sacrifício

comigo me abandonareis

na hora de vosso

último sacrifício?” E

ambos foram martirizados

sob o mesmo perseguidor.

Que beleza e nobreza

de ideias há nisso!

Como a fidelidade pode

chegar a uma verdadeira

participação na mesma

glória, e como o mundo

de hoje está esquecido

disso…

Estas são somente duas

meditações a respeito

da Assunção de Nossa

Senhora. v

(Extraído de conferência

de 14/8/1968)

1) Cf. BEATA ANNA CA-

TARINA EMMERICH.

Visiones y Revelaciones

Completas. Buenos Aires:

Guadalupe, 1952, L. II, tomo

IV, p. 278-279.

10


A sociedade analisada por Dr. Plinio

ZankaM(CC3.0)

O verdadeiro

jeitinho

brasileiro - II

Uma das qualidades do jeitinho é saber irradiá-lo no momento

certo e de acordo com o que pedem as circunstâncias.

Ele, à maneira do beija-flor, pode mudar de repente, ora

será um ato de carinho e de bondade, ora poderá parecer

um passo de capoeira ou de caratê, ora uma driblada,

mas sempre trará consigo uma nota de tranquilidade.

No início do Grupo, quando

fizemos uma Semana

de Estudos e participaram

pessoas de vários Estados,

um bom número era de novatos que

nunca tinham estado conosco. Havia

uma sala na Sede da Rua Vieira de

Carvalho que servia de biblioteca e

na qual eu atendia aqueles que queriam

falar comigo em particular.

Uma atitude da qual o

jeitinho esteve ausente

Certa ocasião entrou um jovem de

quem me lembro até agora: bem magro,

uma estatura entre média e pequena,

muito moreno, os cabelos bem

escassos, mas que ele encheu com um

cosmético qualquer e parecia um espelho

reluzente. Ele todo pouco banhado.

Olhos pequenos, pretos e que

se deslocavam de um lado para outro

sem que ele movesse a cabeça, percebendo

tudo, espertíssimo!

Ele sentou-se e me disse mais ou

menos isto:

— O senhor quereria me expor o

que tem a dizer a meu respeito?

— Você diga o que quer dizer-me.

— Não, eu preferia que o senhor

dissesse…

Era a primeira vez que eu o estava

vendo e não sabia bem como resolver

o caso…

Olhei para ele e disse:

— Olhe, você tem tais qualidades

e tais defeitos. Este é você. Dr. Plinio em 1964

Arquivo Revista

11


A sociedade analisada por Dr. Plinio

Julguei que ele ficasse satisfeito,

mas verifiquei que, de fato, ele não

queria que eu dissesse a verdade a

seu respeito. Ele esperava de minha

parte um diagnóstico errado que lhe

desse a alegria de me ter driblado.

Como ele viu que eu disse exatamente

o que ele era, não fez outra coisa

senão levantar-se, estender-me a

mão e dizer:

— Dr. Plinio, até logo.

— Mas, você não continua essa

conversa?

— Não, senhor.

— Mas por quê?

— Porque não tem propósito o senhor

me dizer o que disse…

— Por quê? Eu errei?

— Não, porque o senhor acertou.

Se o senhor é capaz de ver tão bem o

que se passa em mim, eu prefiro não

ter trato com o senhor.

É um horror! A atitude dele é um

gênero de coisa em que o

jeitinho está ausente. Esse

não compreendeu o jeitinho.

Os jeitinhos como são?

Há tantos, a todo o momento

nós os vemos, e são

tantas aplicações diferentes,

que nem sei o que dizer…

Os jeitinhos de

Dona Lucilia...

Arquivo Revista

Eu, por exemplo, tinha

Dona Lucilia na consideração

de muito jeitosa. Analisando-a

bem, via que ela

o era sobretudo num ponto:

consolar as pessoas que

estavam sofrendo. A esse

respeito não havia igual a

ela. Desde aqueles que padeciam

fisicamente até os

que sofriam moralmente.

Um sobrinho de mamãe

– portanto, primo-

-irmão meu – fez sair das

brumas de minha memória

um fato do qual eu me lembrava

muito confusamente.

A mãe de Dona Lucilia era a dona

da casa onde nós morávamos; ela

era uma senhora já idosa, mas muito

bonita, dominadora e imponente.

Com o olhar subjugava as coisas, não

tinha conversa.

Um dos meus tios viajou com a esposa

para o Rio de Janeiro e deixou

os filhos hospedados com ela. Vovó,

naturalmente, aceitou e mandou instalar

as crianças. Certo dia o mais velho

dos três quis dar umas voltas de

bicicleta; chegou a hora do almoço e,

ou ele não quis voltar porque estava

gostando do passeio e perdeu a hora,

ou ele se esqueceu e não chegou

pontualmente à refeição. A matriarca

estava sentada, como é natural, na

ponta da mesa. O almoço transcorria,

quando em certo momento minha

avó disse:

Dona Gabriela, mãe de Dona Lucilia

— Por que X não está presente?

Só aí me dei conta que ele não estava…

E perguntou a mamãe:

— Lucilia, X não está presente?

— A senhora está vendo, ele não

está…

— Espere ele chegar que vai ver o

que lhe custa isso.

Algum tempo depois chega o menino.

Antes de ele se sentar minha

avó disse:

— Fulano, onde é que você andou?

— Eu fui dar um passeio de bicicleta.

— Mas você foi aonde com essa

bicicleta?

— Eu estive em tais ruas – ele de

pé esperando licença para sentar.

— Mas você se dá conta de que

você está em casa de sua avó, um lugar

de sumo respeito e que você não

tem o direito de chegar

atrasado?

Ele ficou esmagado e

respondeu:

— A senhora me desculpe.

— Não, senhor, não se

trata de desculpa! É como

dizer que eu fique quieta

porque você já pediu desculpa.

Não, esse negócio

não acabou! Vai ter uma

punição e depois do almoço

você verá o que é. Agora

sente-se e coma depressa

sem conversar, para não

atrasar o serviço da mesa.

O rapaz saiu chorando.

Era um menino de uns

doze anos.

Isso produziu na mesa

em geral um certo movimento

brasileiro de compaixão.

Mas a dona da casa

estava vigiando os olhares

e todos ficaram quietos.

Olhei para mamãe: ela

estava inteiramente tran-

12


quila. Era o modo de ser dela. O normal

é que ela estivesse com muita pena

do rapaz, sobrinho dela, mas não

disse nada. Tomou um ar o mais

neutro possível e, quando a conversa

já tinha mudado de rumo,

ela disse:

— Com licença, eu vou

entrar um pouco.

Levantou-se e eu percebi

que ela tinha saído

para o corredor contíguo

à sala de jantar para

consolar o rapazinho que

chorava debandadamente.

Ela disse a ele uma série

de coisas:

— Você não se incomode,

sua avó é assim, todos

nós sabemos. Ela é uma senhora

muito boa…

Ela era, por exemplo, muito

esmoler e tinha muita pena

dos pobres, mas os netos, não estavam

nessa lista. Diga-se entre parênteses

que às vezes minha irmã e eu

enfrentávamos discussões tempestuosas

com vovó. Conosco a coisa não

ia no choro, ia no duelo.

Esse meu primo, pouco tempo

atrás, conversando com alguém que

se interessava pela vida de mamãe,

disse o seguinte:

— Se eu me lembro de tia Lucilia?

Tia Lucilia era uma santa! O calor

de um afeto assim eu nunca mais

senti na minha vida e até hoje eu me

lembro disso.

O fato é o seguinte: ele parou de

chorar, entrou com ela na sala de

jantar, sentou-se e começou a comer

ativamente sem falar, o ambiente

da mesa se recompôs, minha

avó tinha-se acalmado, o jeitinho

de Dona Lucilia tinha resolvido

tudo.

...irradiados na tranquilidade

e no momento certo

No que consistiu o jeitinho dela

neste caso?

Dona Lucilia

Foi em compreender que não

adiantava dizer nada a vovó naquela

ocasião, mas que também não

adiantava consolar o sobrinho diante

de todos, porque minha avó não

permitiria. Ele estava sendo castigado

e não podia ter consolo. Então o

que ela fez? Ela se conservou numa

neutralidade tranquila, que irradiava

tranquilidade em torno de si.

Um lado do jeitinho é ter essa

tranquilidade e saber irradiá-la no

momento certo. Outro lado é que ela

percebeu qual era a ocasião em que

podia levantar-se para atender o menino.

Logo que houve ocasião, ela levantou-se

tão calma, tão tranquila,

dizendo “Eu preciso ir ver uma coisa

lá dentro” – o que não era mentira,

ela tinha que ver esse menino –, que

todo mundo tomou como natural. Eu

acho que nem se lembraram que ela

ia tranquilizar o menino.

Ela fez isso de modo muito rápido,

sem ficar muito tempo do lado

de fora da sala a fim de não dar

desconfiança em minha avó de

que ela andava acalmando o

rapaz. Depois voltou com ele

para a mesa, mas já prestando

a atenção no que se conversava

a fim de evitar que

os olhos se voltassem novamente

para ele. É uma

série de jeitinhos para resolver

uma situação.

Arquivo Revista

Um famoso

jeitinho político

Há outros jeitinhos, há

outros modos de fazer as

coisas que não são carinho

nem bondade. O embaixador

venezuelano parece ter concentrado

a sua atenção nesses

dois aspectos; mas existem rasteiras

políticas.

Um, por exemplo, de que eu me

lembro aqui: o Barão do Rio Branco

foi o maior Ministro do Exterior que

teve o Brasil. Ele conhecia a geografia

da América do Sul como talvez

ninguém de seu tempo. Por outro lado,

ele sabia dos tratados entre a Espanha

e Portugal sobre as fronteiras

que as colônias de ambos os reinos

tinham na América do Sul, os tratados

para retificar bem as fronteiras

que os países independentes fizeram

com o Brasil quando este também se

tornou independente.

Ele possuía uma mapoteca – quer

dizer, uma coleção de mapas – extraordinária;

tinha uma memória admirável

e, sobretudo, tinha um jeitinho

incomparável.

Ele era alto, de rosto cheio, um

grande bigode branco, porque ele já

estava velho nessa ocasião, abdômen

proeminente, usava colete de casimira,

colarinho duro e, como se usava

naquele tempo, o colete tinha um

bolso de cada lado. Num dos bolsos

ia um relógio de ouro, com uma cor-

13


A sociedade analisada por Dr. Plinio

Arquivo Nacional (CC3.0)

Barão do Rio Branco

rente também de ouro que abotoava

no penúltimo botão do colete. No

outro bolso havia uma malha de ouro

para pôr moedas. Ele era um gastrônomo

único, comia como poucos

e entendia de comida muito bem.

Ele foi quem negociou todas as

fronteiras do Brasil, desde a Guiana,

passando pelos Andes, até chegar ao

extremo sul da nossa linha continental,

e teve êxitos diplomáticos brilhantes.

Por causa disso ele era famoso

em todo o continente sul-americano.

Estava habituado, portanto,

a ser tratado por todos na palma da

mão, porque o Brasil tinha um entusiasmo

emocionado para com ele.

Para tudo ele dava jeitos. Um caso

que pode parecer sem graça, mas onde

o jeitinho é evidente, foi este: ele

chamava-se José Maria da Silva Paranhos

Júnior. Rio Branco era o nome

do pai dele como visconde. Como

os títulos nobiliárquicos do Império

não eram hereditários, ele não

podia usá-lo, mas ele não queria deixar

de ter um título como o pai. Então,

antes de se fazer a República, o

pai e ele conseguiram que o imperador

lhe outorgasse o título de Barão

do Rio Branco, não por hereditariedade,

mas por méritos de sua carreira.

Ele era mocinho ainda, não tinha

obtido esses êxitos todos, mas como

o pai era quem era, conseguiu-lhe isso.

Proclamou-se a República e, muitos

anos depois, ele já homem feito,

com toda a sua cultura armazenada

e ordenada, começava a ser consultado

largamente pelo Itamaraty. O

Presidente da República estava satisfeito

com o trabalho dele, mas lhe

disse:

— Vossa Excelência não pode assinar

com este título porque a República

não reconhece barões. De maneira

que nos decretos que assinar

tem que ser como José Maria da Silva

Paranhos.

— Senhor Presidente, nesse caso

eu renuncio ao meu cargo de ministro,

porque a República não foi bastante

flexível para aceitar um título

que lhe dê fronteiras maiores para o

Brasil...

É tal o jeitinho dele, que até parece

um passo de capoeira ou de caratê.

— Mas, Vossa Excelência não

oferece uma solução?

— Vossa Excelência acaba de dizer

que a República não reconhece

o título de barão. Então eu assino

só Rio Branco. Este era o nome

do meu pai e é o meu também. Vossa

Excelência finge que não percebe

que a República não o aceita porque

é nome de nobre; Vossa Excelência

fica contente e eu também.

O Presidente deu risada e disse:

— Assine aqui seu primeiro decreto

e coloque barão – passou…

Certo tempo depois, houve um

congresso de Direito Internacional

na cidade de Haia, na Holanda, e foram

convidadas todas as nações do

mundo. Como era sobre Direito e

não geografia ou fronteiras, o governo

brasileiro convidou o Ruy Barbosa

– conhecido como muito grande

orador –, para representar o Brasil.

Os jornais tinham verdadeira idolatria

por ele e publicaram que ele havia

feito um sucesso prodigioso e que

na Europa, quando se falava dele, chamavam-no

“Águia de Haia”, porque

havia voado nos céus culturais de Haia

como uma águia no céu azul. Quando

o Ruy Barbosa retornou ao Brasil,

prepararam manifestações colossais.

O Presidente, sabendo como o Rio

Branco era cheio de caprichos e voluntarioso,

chamou-o e disse:

— Senhor ministro, eu devo dizer

que Vossa Excelência amanhã deve

ir representar o meu governo na casa

do Sr. Ruy Barbosa.

Assim as pessoas se tratavam naquele

tempo.

— A tal hora chega o navio, e os

amigos dele devem recebê-lo em casa

dele. Eu sei que Vossa Excelência

não vai querer estar presente, por-

Ruy Barbosa

Arquivo Nacional (CC3.0)

14


Mdf (CC3.0)

É um jeitinho, uma driblada… O

outro, brasileiro também, achava graça,

e como ele precisava do Rio Branco

– e a lei da necessidade é uma lei

brutal – o fato passou.

São exemplos de jeitinho.

Uma imagem do

pensamento brasileiro

que conheço sua animadversão em

relação ao Ruy Barbosa, mas eu quero

que esteja presente como Ministro

do Exterior.

— Senhor Presidente, deixe por

minha conta que eu resolvo tudo.

O Presidente ficou desconfiado

que ia entrar um jeitinho,

mas deixou, porque não

podia perder aquele ministro.

É um desses casos em que o

ministro manda mais do que o

Presidente.

Quando chegou a hora, o

Rio Branco se informou; a casa

do Ruy Barbosa estava bastante

cheia, e até num pequeno

jardim em frente havia convidados

esperando que saíssem

uns para outros poderem

entrar. O Rio Branco foi até

lá e ficou horas nesse jardim,

em pé e conversando com os

que entravam e saíam. Não foi

cumprimentar o Ruy Barbosa

e quando quis, saiu sem ter falado

com ele.

Quando o Presidente o interpelou:

— Vossa Excelência me

prometeu que estaria em casa

do Conselheiro Ruy Barbosa,

e não foi?

— Senhor Presidente, eu fui à casa

dele.

— Mas como foi?

— Fiquei o tempo inteiro no jardim.

Ele faz parte da residência; logo,

eu fui à casa dele.

Dr. Plinio em outubro de 1994

Arquivo Revista

Quando vemos o bater de asas do

colibri, quase não conseguimos fixar

com o olhar o momento em que as

asas dele passam de um ponto a outro.

Ele fica parado no ar com o bico

dentro de uma flor, como se fosse

um gancho para mantê-lo suspenso;

mas, na realidade, é pelo movimento

das asas que ele se mantém nessa

posição. E quando ele acaba de sugar,

de repente voa para outro lugar.

Em geral é para uma direção que

não imaginamos…

Já tem acontecido de eu ficar

olhando o beija-flor e me perguntar:

“Para onde ele vai?”, com

a evidente vontade de pegá-lo,

mas não pegando, pois é impossível;

basta nos movermos

que ele já intui.

Ele para de repente, não

tem momento em que ele

diminui um pouco a sucção.

Quando ele está sugando

aquele néctar da flor com

mais afinco e temos a impressão

de que ele está gostando

especialmente, de repente ele

vai para um lado que ninguém

imagina, a toda a pressa e sem

nenhuma dúvida.

O beija-flor parece ser o

símbolo do pensamento brasileiro.

Muda de repente, voa

de um lado para outro, arranja

uma rasteira, dá um jeito

ou então um jeitinho, e daqui

a pouco ele está pensando em

outra coisa.

v

(Extraído de conferência de

19/10/1994)

15


O pensamento filosófico de Dr. Plinio

Rumo ao

píncaro da dor,

Flávio Lourenço

pelas sendas

do heroísmo

Agonia no Horto - Pinacoteca

Nacional de Ferrara, Itália

Desde tempos imemoriais, o homem vem indagando como

tornar praticável a vida de sofrimento. Bons e maus, seja

qual for a situação, enfrentam a dor, mas poucos sabem

encontrar seu sentido na vida. Para Dr. Plinio, a verdadeira

fórmula de viver é posicionar-se com resolução diante

do infortúnio e enfrentá-lo com ânimo de herói.

Uma das grandes mentiras

da ambientação moderna

é a ideia de que a

pessoa pode pular fora do sofrimento

a qualquer momento, sendo isso o

normal da vida. Então o indivíduo fica

estudando o “pulo do gato” pelo

qual, em seu caso concreto, possa escapar

da dor. É toda uma problemática

falsa que o leva a pensar: “Devo

definir o que me faz sofrer, depois

estudar o que me apetece e me daria

prazer; devo eliminar o que me faz

sofrer e obter às torrentes o que me

dá prazer. Assim, resolvo meu problema

na vida”.

Navegador ousado ou

medíocre burguês…

A única forma de tornar a vida

possível é ter a posição de alma dos

portugueses quando partiam para a

Ásia, mais do que quando vinham ao

Brasil, segundo as narrações de Elaine

Sanceau. 1 Eles abriam peito largo

para o infortúnio que poderia acontecer,

mas abriam com alegria! Faltava-lhes

um tanto a fé e a esperança,

mas tinham esse estado de espírito,

o equilíbrio emocional, a resolução

diante da dor do navegante que

parte resolvido, com o coração grande,

aberto! É normal que aconteçam

desventuras, como também é possível

que se tenha um resultado muito

bom, donde a deliberação: “Eu farei!

Se acontecer tudo ao revés, não

serei um desgraçado, não tocarei

uma música de Chopin 2 … É o natural,

a vida é isso!”

A mentalidade do navegador, gênero

Elaine Sanceau, é a fórmula de

viver. Razões sobrenaturais explicam

que a vida seja assim, e esta é

a única posição do homem diante do

sofrimento; e deste modo o mito da

alma irmã e indecências de toda ordem

desaparecem! Porque fora disso

16


não se verifica o conceito de varão.

Isso é ser varão!

O burguês “nhonhô”, 3 o securitário

de hoje em dia, de nenhum modo

estão abertos a esse estado de espírito,

e são a negação completa dele.

Ora, conforme as diferentes idades,

nós fomos educados na atmosfera

do varão securitário; refiro-me

não só à questão de segurança, mas

também à de riqueza. Resultado, eu

já vi gente muito rica, com posse de

sete ou oito fazendas enormes, que,

de repente, lhe apareceu um processo

pelo qual lhe demandaram uma

quina de fazenda.

Lembro-me de ter visto literalmente

uma senhora chorar por causa

disso, e lhe perguntei:

— Mas a senhora chora por quê?

Eu tenho tão menos, eu deveria desmaiar

quando vejo minhas posses.

Ora, eu não desmaio. Por que a senhora

chora?

Ela respondeu:

— Ah! Você já pensou se eu perder

todo o resto? Eu poderia ao menos

ter a quina que esse homem me

está tirando, entende? A vida escapa

tanto, que não sei se vou perder algo

de essencial… posso perder essa quina

sobre a qual esses juízes bandidos

estão discutindo…!

Ela, ainda que ganhasse esse processo

e tivesse mais sete fazendas

enormes, ela perdeu as condições de

viver bem. Embora exagerasse o perigo,

ela tinha, em rigor, razão, poderia

perder tudo. Mas, diante disso, é preciso

ter a mentalidade do navegador

português. E não estranhem o que eu

digo: creio que alguns livros de Elaine

Sanceau, vistos nessa perspectiva,

são lição de vida espiritual! E lamento

que esse aspecto não seja posto

em realce quando se escreve as vidas

dos Santos, porque, por exemplo,

quem agiu inteiramente desse modo

foi Santo Inácio de Loyola.

O gosto pela aventura deve

fazer parte da formação

Para um homem com esse estado

de espírito, mesmo o chorar não é um

choro “chopiniano”… Há certas pessoas

que julgam o pranto como a falência

da alma. Chorou, a alma está

ameaçada a ir água abaixo… Não!

Chorou? Chore, enxugue as lágrimas

e vá embora! Por isso Deus faz as lágrimas.

Havia uma espécie de proverbiozinho

em meu tempo de pequeno:

“Escorrega e cai, levanta e sai!” Pronto!

Está acabado! Qual o problema?

O século de Chopin, século XIX,

nutria-se de ouvir as músicas dele,

e isso constituía um vício; no século

XX, o vício é ser securitário. Uns

arranjaram um jeito gostoso de chorar,

outros procuraram um modo de

não ter que chorar. Estes perderam

completamente a contextura de alma

que deveriam ter. E por isso a

admiração e o gosto pela aventura

devem fazer parte de toda formação.

Há uma frase na Escritura que

diz: “Os pais comeram uvas verdes,

mas são os dentes dos filhos que ficam

embotados” (Ez 18, 2). Ou seja,

muitos dos homens “desalveolados”,

fugiram do “alvéolo”, porque sentiram

em si o que os pais experimentaram

e não quiseram reconhecer: é o

Henryk Siemiradzki (CC3.0)

Chopin tocando suas obras para a família aristocrática polonesa Radziwiłłs, em 1829

17


O pensamento filosófico de Dr. Plinio

Divulgação (CC3.0)

À esquerda, Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen,

à direita, Oskar Robert Arthur Bülow

peso do “alvéolo”. Esta é a questão,

e dá em infelicidades ocultas.

Consideremos, por exemplo, os

quadros a óleo do século XIX que

representam a felicidade em família.

No sofá está o homem rentiez, 4 que

passou a viver das rendas, corpulento.

Ao lado dele está a esposa com os

filhinhos todos… Ora, não nos damos

conta de que eles venderam a

alma para conseguir aquela estabilidade,

mas têm, no fundo, um secreto

desejo de escapar daquilo para dentro

da extravagância, onde veem a

grande solução. Depois constatarão

que esta também não resolve.

Dando longamente a volta, chega-se

à conclusão de que, ou o indivíduo

se “desalveola” pela aventura,

ou ele, no “alvéolo”, sofre mais do

que fora dele.

Há este bonito aspecto: no tempo

antigo se “desalveolava” para dentro

da aventura com um equilíbrio

muito grande no seguinte; o indivíduo

mantinha uma attache, 5 uma ligação

muito grande ao antigo castelo

ou à velha aldeia ancestral. Em

qualquer lugar do mundo em que ele

estivesse, na pior aventura, fazia-lhe

bem saber que aquela aldeia estava

de pé e que alguns ali continuavam

a levar a vida da qual ele tinha saído.

De maneira tal que, se recebesse

a notícia de que uma bomba atômica

– não as havia naquele tempo –

tinha destruído o seu “alvéolo”, ele

ali, no extremo de Cochim, poderia

se desintegrar.

Porque para ele constituía um

ponto de equilíbrio saber que, em

algum lugar do mundo, sua colmeia

estava íntegra. Bastava isso, ele não

precisava viver dentro dela.

Ora, o “alvéolo” de hoje não tem

essa ligação com nada. Exemplo: os

que vivem mudando de casa, tendem

para um certo nomadismo. E não só

de casa, mudam de cidade, de lugar,

de emprego, de vida; de esposo e de

esposa também… Esses não sentem

necessidade dessa attache, não compreendem

nada.

O espírito aventureiro:

uma reação equilibrada

face ao sofrimento

Georg Brokesch (CC3.0)

O point d’attache, o ponto de referência,

é que dá o verdadeiro equilíbrio

do espírito de aventura. Lendo

as memórias do Bülow, 6 por exemplo,

de Bismarck, 7 vejo que, durante

toda a vida, eles tinham a ideia

de suas terrinhas na Pomerânia, onde

cultivavam, mandavam plantar;

o Bismarck era muito mais aventureiro

que o Bülow, mas este teve

também suas aventuras. De vez em

quando iam passar férias lá, faziam

suas estadias frequentes.

Mas creio que isso representa, no

equilíbrio mental deles, o elemento

fundamental. E quando o indivíduo

é plebeu, tem também um point d’attache

plebeu, ao qual se liga. Esse é

um dado muito importante, ele não

precisa ser nobre.

Mas o point d’attache deve ser tal

que, para a maior parte dos que dele

se beneficiam, se transforma num

cativeiro se o indivíduo não puder

escapar para a aventura. De maneira

tal que o point d’attache deve transmitir

ao indivíduo o seguinte: “Uma

vez que isto me está inteiramente garantido,

sobram em mim energias

não inquietas, energias tranquilas

que pedem aventuras”.

E temos um dos maiores elementos

de propulsão do progresso na

Europa, que eram os cadets, 8 os filhos

destinados à pobreza e à mediocridade

quase sórdida porque a família

não tinha dinheiro para mantê-

-los. Para não caírem na sordície, tinham

que se jogar na aventura. E se

lançavam, porque o point d’attache

estava sólido!

Vou imaginar algo inteiramente

anacrônico: por exemplo, que Afonso

de Albuquerque tivesse a irmã,

com quem fora educado, morando

em Nova York como uma dessas

repetidoras que fazem tradução ao

longo das conferências na ONU; que

a mãe dele fosse uma pequena funcionária

pública numa aldeia de Portugal,

completamente diferente do

lugar onde nasceram; e que um irmão

fosse embaixador na Suécia. E

a aldeia dele, o castelico tivessem si-

18


do destruídos… Teria acabado tudo

para ele… Por quê? Porque o point

d’attache, na fecundidade da aventura

do homem, era um elemento capital.

O aventureiro que não sai

do “alvéolo” e o impuro

sem espírito aventureiro

Acho isso muito importante. Chegamos,

assim, à verdadeira fisionomia

do sofrimento. O erro está em

apresentá-lo apenas como tal; é um

modo um pouco “chopinesco”, se

preferirem “bethoveniano”, de ver o

sofrimento. O sofrimento é a aventura

com point d’attache do homem

que sabe se jogar, como viver e como

fazer.

Alguém me dirá: “Mas o homem

que permanece no ‘alvéolo’ está alforriado

da aventura?” Não! Ele vive

da aventura de todos os que

partem, porque vive da proteção

de todos os aventureiros.

Ele vive da gestão de um

bem comum, a caixa de todas

as aventuras, a qual é sempre

precária, por mais que ele seja

rico, porque não há o que

baste para os gastos disso, e

ele está sempre nas pontas dos

pés. É assim a aventura dele.

O que não é possível é uma

coisa parecida com um auditório

impecável, sem aventura

nenhuma… Ali a pessoa

começa por sentir bem-estar,

depois sono e passa a sentir

as apetências das aventuras

da lubricidade… Haveria

todo um assunto a tratar sobre

aventura e lubricidade…

O homem que ficou privado

completamente de aventura

encontra na lubricidade a saída

para sua aventura.

Aqui está dada a visão de

conjunto da praticabilidade

da vida de sofrimento. Ela só

é praticável assim.

A aventura do holocausto

Certa vez, um enfermeiro contou-

-me um fato. Havia um rapaz que sofrera

uma fratura tão alta na espinha,

que ficara privado de todos os

movimentos. A família o levara ao

hospital, no qual o internaram. No

primeiro período, ia toda a “familiagem”

aos sábados e domingos visitá-

-lo. Mesmo parentes remotos faziam

algazarra no quarto comum onde ele

se encontrava; não podia ser transportado

a outro lugar.

Aos poucos os familiares foram

desaparecendo, começaram a ir aos

sábados, havia domingos nos quais

não podiam ir. Quando amanhecia,

o enfermeiro o colocava de bruços,

posição em que permanecia durante

o dia para poder dormir de costas

à noite, do contrário o colchão fazia-

-lhe feridas. Colocado de bruços, o

enfermeiro, de pena dele, colocava-

Afonso de Albuquerque conquistando

Malaca - Museu Militar de Lisboa

-lhe um cigarro na boca, e ia tirando,

para ele fumar, de bruços, olhando

para o chão, não podia nem sequer

olhar para cima.

Alguém diria: “Esse, o que tem?”

Ele tem a formidável aventura da vida

espiritual de oferecer aquilo a

Nossa Senhora; vêm as tentações, os

problemas, tudo o mais, e ele aceita…

Ele é um veleiro num mar terrível,

desde que faça em espírito de holocausto.

Ele terá a aventura do holocausto,

é uma outra coisa.

E vem a pergunta: “A Sanceau representou

bem a aventura, mas não

será que, de vez em quando, na alma

de um Afonso de Albuquerque

entrava a ideia de holocausto, como

entrou em Santa Teresinha do Menino

Jesus? Ela o apresenta apenas de

um lado bom, mas sempre sem crise

nem problema axiológico. De vez em

quando, não entraria isso?”

Eu digo: se a alma dele tivesse

subido a uma boa elevação,

mas ainda não perfeita

nesse sentido, ele não teria

tido problema axiológico.

Se ela se alcandorou de verdade,

o problema axiológico se

precipitaria sobre ele. Então

ele teve mais do que a Elaine

Sanceau apresenta. É preciso

não perder isso de vista; é

por aí que ele começa a se parecer

mesmo com Nosso Senhor

Jesus Cristo. O errado seria

pensar que assim ele perderia

o espírito de Afonso de Albuquerque.

Não é verdade. As

duas realidades se completam.

Aqui está o ponto.

Ernesto Ferreira Condeixa (CC3.0)

Na incógnita, a aceitação

da própria Cruz

Tenho a impressão de que o

estado de aridez, de dépouillement

9 final, se divide em dois.

No primeiro, toda a forma de

consolação ou de gáudio fica

insensível, mas continua a exis-

19


O pensamento filosófico de Dr. Plinio

J.P. Castro

tir. E às vezes, por vislumbres, pode-

-se percebê-la.

Ao passarmos por lugares nos quais

sofremos muito, quando aquilo está incorporado

ao passado, vemos e ficamos

com saudades da época em que tivemos

tal sofrimento. O que revela, no

subconsciente, ter havido ali um gáudio,

do qual só nos conscientizamos

posteriormente, mas de fato havia.

Ora, há momentos, creio que transitórios,

em que nem isso se dá, e em

que a convicção no seco domina a alma,

e ela tem de fazer o ato de fidelidade

no dépouillement completo.

A ser isto verdade, tenho a impressão

de que Nosso Senhor, quando exclamou:

“Eli, Eli, lamma sabacthani

– Meu Deus, meu Deus, por que

Sagrada Família - Museu Nacional de Arte da Cidade do México

me abandonaste?” (Mt 27, 46) estava

nesse caso. Tudo tinha cessado.

É possível, até estremeço diante

da hipótese, que a própria presença

de Nossa Senhora tenha sido para

Ele insensível. O fato é que, nessa

aridez total, Ele propriamente teria

passado por uma primeira morte psicológica

completa, e sua vida atingido

o termo. “Efflavit spiritum” (Jo

19, 30). Ele inclinou a cabeça e entregou

o espírito.

Creio haver, portanto, situações

como essas na vida, que são o cume

insondável…

Uma pergunta não nos devemos

fazer: “Quando chegar minha hora,

como vou carregar essa dor?” Nosso

Senhor aconselhou a não pensar nisso,

porque há qualquer coisa de imprevisto

nos supremos lances, por onde,

na hora, Ele dará as graças necessárias.

Não devemos nos preocupar.

O alto da Cruz é o caminho de cada

um. Mas é uma incógnita, e é bonito

que os extremos do futuro sejam

desconhecidos. A Providência prepara

a alma segundo desígnios próprios.

Conforme seja, a alma será mais chamada

ou menos a pensar nos sofrimentos

muito tempo antes ou não.

Por exemplo, há uma série de representações

da iconografia mostrando o

Menino Jesus antevendo a Cruz. E isso

é muito razoável.

No Horto das Oliveiras, Ele poderia

não ter previsto, não ter considerado

o que aconteceria, e ir aguentando

passo a passo. Existe até um

conselho d’Ele que parece contradizer

essa atitude durante a Paixão:

“Não vos preocupeis com o dia de

amanhã. A cada dia basta o seu cuidado”

(Mt 6, 34).

Ora, quando chegou a sua hora,

Ele fez algo que, à primeira vista, um

olhar superficial diria ser o contrário:

Ele previu tudo, bebeu gota a gota do

que se sucederia e aceitou. Ele previu

as dores físicas, o que Lhe ocasionou

a dor de alma, pois esta padece em

vista do que o corpo vai sofrer. Mas

Ele previu também o oceano de ingratidões

que estava ali a dois passos

d’Ele. Depois, Ele sabia perfeitamente

que Judas O estava traindo. Tudo

Ele viu perfeitamente.

Ele teve dilacerações que não podemos

calcular. Ele previu todos os

sofrimentos de alma inclusive no alto

da Cruz; todos os séculos da História

e todos os pecados dos homens

até o fim do mundo, e, portanto, visto

de um lado, a aparente inutilidade

do sacrifício d’Ele. Tudo isso Ele

anteviu no Horto das Oliveiras e não

mudou, Ele quis.

Essa posição Lhe trouxe mais sofrimento

do que se Ele tivesse sofrido

no Corpo tudo quanto sofreu,

mas consolado com os discípulos,

20


Flávio Lourenço

Oração no Horto - Abadia de

Saint-Florent, Saumur, França

com os Apóstolos e com o povo fiel.

Aí se compreende o que Ele sofreu

em sua Alma.

A hora da previsão, da luta

e da aceitação do sofrimento

O sofrimento pode ser considerado

em duas claves. A alma é o elemento

capital do ser humano e é claro que o

sofrimento que a atinge é muito maior

do que o que se tem no físico.

Alguém poderia objetar: “Mas eu

já tenho tido sofrimentos físicos e tenho

tido sofrimentos de alma; sofri

muito mais no físico do que na alma”.

E poderíamos responder: “Você

nunca sofreu de fato com a alma,

porque o verdadeiro, o grande sofrimento

de alma é incomparavelmente

mais pungente que o físico”.

O sofrimento moral, de alma, é incomparavelmente

maior para quem

tem de fato a alma constituída como

elemento principal, entronizada em

seu ser. E para quem, portanto, a reflexão,

o pensamento, a ponderação

das coisas, a avaliação das situações,

a tomada séria de posição diante dos

fatos, façam sofrer mesmo.

Por que Nosso Senhor previu tudo

isso antes da hora? A questão é saber

qual é a hora! Tinha chegado a hora

de Ele prever. A previsão de um fato

iminente já faz parte de sua realização.

A pessoa deve prever e formar

uma resolução inquebrantável e varonil

que o infortúnio não vai quebrar.

Foi o exemplo que Ele nos deu da

batalha interior. Chama-se Agonia

no Horto, em parte porque é uma

dor comparável à do agonizante,

mas em parte porque “agonia”, em

grego, quer dizer “a luta”; por exemplo,

os atletas, em grego, se chamavam

agonistas. Foi a luta que Ele travou,

como um atleta, dentro de Si

mesmo, para manter a ordem imperturbável

que houve sempre n’Ele, na

qual o instinto de conservação estava

sujeito aos desígnios da razão.

Vemos que Ele teve aquela luta a

qual, por assim dizer, eclodiu na oração:

“Meu Pai, se é possível, afasta

de Mim este cálice! Todavia, não se

faça o que Eu quero, mas sim

o que Tu queres” (Mt 26, 39).

Nisso ponderamos como

foi a luta. A divindade d’Ele

ocultou, de algum modo, à

sua humanidade se era ou

não era possível afastar aquele

cálice. E de dentro da humanidade

Ele pediu aquilo

que, enquanto Deus, sabia

não ser possível. Ele pede

e obtém que um Anjo Lhe

dê um cálice; Ele bebe e Lhe

traz a força. v

(Extraído de conferências

de 25/9/1982 e 24/11/1983)

1) Historiadora britânica de origem

francesa (*1896 - †1978).

Passou a maior parte de sua

vida em Portugal e escreveu

diversas obras sobre a história portuguesa

e as navegações.

2) Fryderyk Franciszek Chopin (*1810 -

†1849). Compositor polonês que fez

carreira em Paris.

3) Nhonhô era o nome que os escravos

davam ao filho mais velho do patrão

nas antigas fazendas brasileiras,

por deturpação da palavra senhor. O

nhonhô era alvo de todos os cuidados

e atenções da parte dos escravos que

o serviam, tendo, portanto, vida fácil

e regalada. Dr. Plinio usava o termo

– bem como a forma derivada que

cunhou, “nhonhozeira” – para caracterizar

a mentalidade comodista dos

que têm aversão ao sacrifício.

4) Do francês: pessoa que vive de rendimentos

provenientes dos juros de títulos

governamentais.

5) Do francês: sentimento de pertencer

a algo ou a alguém; vínculo emocional.

6) Oskar Robert Arthur Bülow (*1837 -

†1907). Jurista alemão.

7) Otto Eduard Leopold von Bismarck-

-Schönhausen (*1815 - †1989). Estadista

e diplomata da Prússia e, mais

tarde, da Alemanha.

8) Do francês: filho não primogênito de

uma família nobre ou de boa estirpe.

9) Do francês: despojamento.

Dr. Plinio em novembro de 1983

Arquivo Revista

21


Reflexões teológicas

Confiança

Arquivo Revista

heroica nas

horas trágicas

Ainda que pareçamos perdidos, relegados aos

últimos rincões da Terra, só não cometamos um

erro: não cessemos de confiar. A doença de nosso

querido João traz como ensinamento que a hora

dos grandes perigos, das grandes incertezas, dos

fenomenais atos de confiança vem chegando.

Eu tenho uma gratíssima notícia

a lhes dar e que só pode

ser recebida de pé. Mandei

pôr na frente a imagem de Nossa

Senhora, porque é a única própria a

presidir realmente esta reunião.

Tranquilidade, alegria

e esperança ante a

notícia da cura

Recebi uma mensagem gravada

e depois tive um telefonema com o

Sr. João Clá, e ele contou-me – com

o pitoresco que ele sabe pôr nos pormenores

– que, oficialmente, o médico

mais notável do Hospital Hopkins,

1 depois de fazer nele um exame

exaustivo, declarou que estava

curado.

É justo e corresponde ao desejo

de todos nós que cantemos o Magnificat,

para dar graças a Nossa Senhora

por um tão grande, tão assinalado

e tão inesperado benefício.

Confesso que, ainda ontem, quando

eu pensava no caso do nosso João

– e era quantas e quantas vezes por

dia, para não dizer por noite –, era

com preocupação, com olhar sombrio:

“Mas será? Esses exames médicos,

no fundo, do que valem? O que

atestam? Até onde isso quer dizer

qualquer coisa?”

Tenho certeza de que perguntas

dessa natureza sombrearam as almas

de todos, durante esses seis meses

de padecimento que todos sofremos;

porque exatamente, a doença

se declarou no dia primeiro de janeiro

e se prolongou até 16 de junho.

Portanto, foram seis meses cheios,

durante os quais Nossa Senhora

quis prová-lo, quis provar-nos a nós,

e permitiu e dispôs que a provação

cessasse num belo dia de sol. Chamo

“belo dia de sol” não às condições

atmosféricas em São Paulo, mas um

belo dia em que tais notícias nos chegam.

Chegam de repente, inesperadamente,

e de um modo a tranquilizar

por completo.

Que se tenha passado do auge da

inquietude para o auge da tranquili-

22


Arquivo Revista

dade, quase sem transição, é algo no

qual entra um requinte do afeto de

Nossa Senhora, do carinho d’Ela como

a nos dizer: “Meus filhos, eu os

provei, mas agora está aqui minha

mão maternal para fazer passar as

dores e fazer com que elas se substituam

por uma alegria”. E por uma

alegria sólida, firme, porque tudo

quanto foi dito a ele partiu de uma

sumidade mundial.

Sem dúvida, nosso João terá ouvido

com a atenção normal e, portanto,

com a desconfiança supernormal

com que uma pessoa longamente

afetada por uma doença toma contato

com um médico que, embora

sendo uma grande sumidade, afinal

de contas, ele está conhecendo naquele

momento.

Podemos imaginar, à medida que

as palavras do médico foram gotejando

sobre o João, as torrentes de tranquilidade,

de alegria e de esperança

que desciam sobre a alma dele.

Esse médico empenha a sua responsabilidade

profissional, enquanto

sumidade reconhecida como tal

por toda parte, além de fazer parte

da direção de um dos hospitais

maiores e mais importantes do mundo,

o grande Hospital Hopkins. Nós

temos, assim, garantias das melhores

de que, com o favor de Nossa Senhora,

tudo correrá do melhor modo

possível.

A “Bagarre”, a grande

batalha da confiança

Nós estamos na orla da “Bagarre”.

2 Mais do que isso, podemos dizer

que as primeiras águas dela já

nos molham. De fato, dessa vez subiram

tão alto que, nas suas agitações

e ondulações desordenadas, elas,

por assim dizer, já nos golpearam no

rosto. Ou, para exprimir em termos

mais adequados o que se passou, já

nos bateram no coração. Tudo quanto

se passou com nosso João bateu

em nosso coração.

Como essa doença

dele está relacionada

com a “Bagarre”?

O fato concreto é que

nós todos sentimos, o

mundo todo sente, que a

“Bagarre” vem se aproximando

e que as alegrias

fúteis, fáceis e tantas vezes

pecaminosas da “Bagarre

azul” 3 têm que ir

acabando, e que a hora da

seriedade está chegando.

Ora, nós sentimos que o ensinamento

dessa doença de nosso querido

João é precisamente este: vem

chegando a hora das grandes dores,

dos grandes perigos, das grandes

incertezas, dos fenomenais atos

de confiança. Os fenomenais atos de

confiança se tornam necessários e

vencerá quem confiar. A “Bagarre”

começa por uma grande batalha de

confiança.

Nossa Senhora quis isso do nosso

João… Quantas qualidades ele acumula!

É uma torre de qualidades. As

asas da tragédia roçaram sobre ele,

roçaram, portanto, por nós. E pudemos

sentir que a época na qual as coisas

trágicas não aconteciam não existe

mais, que os dramas são o normal

da época, e trata-se de enfrentá-los

com o ânimo de herói. Herói católico,

que confia, confia, confia, e quan-

Art Anderson(CC3.0)

Acima, fachada

do Johns Hopkins

Hospital, em

Baltimore.

À esquerda,

aspectos do Êremo

Sedes Sapientiæ,

em Spring Grove

(Estados Unidos),

onde se hospedou o

Sr. João, durante

sua convalescença.

23


Reflexões teológicas

Arquivo Revista

Arquivo Revista

Dr. Plinio, durante um telefonema

com o Sr. João, no ano de 1995

do não há mais razão para confiar e

esperar senão a confiança em seco

em Deus, a confiança continua de pé

como era a de Jó. Veio um momento

em que o desafio de Satanás a Deus

se encerrou triunfalmente para Jó.

A desventura de Jó, uma

prova do amor de Deus

Imaginemos o momento em que

Satanás interpelou a Deus (cf. Jó 1,

6-12):

— Não há homem na Terra que

Vos siga, portanto, estais derrotado.

E Deus, nestas ou naquelas palavras,

respondeu:

— Tenho o meu servidor Jó. Vê

como ele é, e como desmente tua

afirmação.

E Satanás disse a Deus.

— Mas Vós a ele dais tudo. Ele

tem esposa, tem filhos, é feliz com

a esposa, feliz com os filhos; ele tem

uma enorme fortuna, é um homem

saudável, tudo quanto lhe acontece é

agradável. É evidente que ele não se

revolta contra Vós. Queremos saber

se Vós o ferísseis com várias dores,

provações, o que ele Vos faria.

E Deus, que amava Jó e confiava

nele, deu-lhe uma prova de amor

e de confiança extraordinária, e respondeu

a Satanás:

— Vai e prova Jó. Eu te dou sobre

ele todo o poder, exceto a possibilidade

de matá-lo. Faz cair sobre ele

todas as desgraças, todos os infortúnios,

e vamos ver se, no ápice do infortúnio,

esse varão que é meu, se levantará

contra Mim ou adorará os

meus desígnios misteriosos. Vai!

O demônio fez o possível, provou

Jó como se sabe, e ele respondeu

do modo sublime como se conhece

(cf. Jó 27, 1-6). E Deus, em determinado

momento, deu por cessada

a prova. Jó dera toda a demonstração

de seu amor a Deus, confiara

no auge do infortúnio, meio leproso,

sentado no monturo, reduzido à miséria,

acompanhado de uma mulher

da qual o mínimo que se poderia dizer

é que era acremente rabugenta e

falava contra ele, da sorte desventurada

que tinha caído sobre ambos.

Os amigos de Jó vieram da cidade

onde eram homens importantes

e ilustres à maneira do que ele fora;

lamentaram-se pelo destino dele, à

moda oriental, com aqueles simbolismos

que exprimem tanto.

Jó estava sozinho sobre o seu

monturo, talvez imaginando que até

seus mais próximos o tivessem abandonado,

quando viu chegar a turma

dos amigos (cf. Jó 2, 11). Em vez de

falarem com ele, ou ele com os amigos,

todos ficaram quietos quando se

viram, e uma grande consternação

fez-se notar.

Por causa disso, ficaram sete

dias e sete noites sem se falar, apenas

contemplando a tristeza, a miséria,

o infortúnio de Jó, e pensando

nesses desígnios impenetráveis de

Deus que faz acontecer ao homem

justo a coisa sinistra e triste, a qual

muitas vezes não cai sobre o injusto

(cf. Jó 2, 13).

Pode-se imaginar o efeito desse

silêncio sobre eles; o silêncio do

deserto, porque as grandes extensões

da Terra Santa são desérticas.

Jó estaria numa delas, 4 com um calor

abrasador, pondo por assim dizer

em fogo os cacos de telha que concomitantemente

o queimavam, o cortavam,

o faziam sofrer, e eram o seu

canapé; porque se ele se recostasse

sobre o chão ainda sofreria mais. Jó

ali deitado, no silêncio, ouvindo apenas

aquilo que é a voz sinistra do deserto:

é um animal que está morrendo

de sede ou de fome e uiva à distância,

um uivo que é uma ameaça;

se ele encontrar o que comer, ele

mata; mas, ao mesmo tempo, um gemido

de quem sente que os dias estão

se acabando, suas forças estão

desaparecendo e que ele vai indo para

a morte. É, mais adiante, um lon-

24


go sibilo de cigarra enchendo aquelas

vastidões e não encontrando nenhum

lugar onde o som batesse e

desse qualquer eco, porque tudo era

o vazio. Aquele vazio só tinha como

cântico que o exprimisse e exalasse a

dor, a monotonia do apelo da cigarra

e o desespero daquele apito, como

algo que não vai mais acabar.

Ele sofrendo aquele sol de hoje.

Já custou a se acostumar com o

sol de anteontem, com o de ontem; o

sol de hoje o causticou ainda mais. O

que será o de amanhã?

Alguém dirá: “Mas, por que ele

não se recolhe a uma árvore?” Onde

há árvore no deserto? Não há nenhuma.

Talvez uma esgueirada palmeira

com umas folhagens caídas e

um fio de sombra que corresponde

ao magro diâmetro de uma palmeira

comum, e mais nada.

No meio de tudo isso, pouca comida

e, de vez em quando, um camelo

que traz em seu bojo uma escassa

água. Mas, o que será uma água

tirada da bolsa que tem para isso o

camelo? Que gosto? Que aspecto?

Que amarelo nojento? Que gosto repugnante?

Bebe um pouco daquilo

para matar uma sede tremenda.

Tudo isso Jó aguentou, certo de

que ele era justo, não estava sendo

castigado, mas que Deus o estava

maltratando (cf. Jó 10).

Desde o Céu, Deus

preparava a recompensa

De fato, ele estava entregue às

mãos de Satanás, estava torturado.

Deus fizera isso, mas, simultaneamente,

no mais alto dos Céus, numa

alegria à qual se associavam os

Anjos, Ele ia preparando tudo para

que a recompensa de Jó viesse.

Os Anjos que costumam acompanhar

a ação de Deus conjecturavam

entre si o que Ele faria, que desígnios

Ele teria; conjecturavam talvez

cantando… Que linda reunião

de um conselho de Estado em que

os conselheiros são, ao mesmo tempo,

heróis e bardos da Sabedoria e,

ao mesmo tempo, cantores de lindas

harmonias! Que coisa maravilhosa

esse conselho, presidido por

Deus, de Anjos que cantam em louvor

de Jó!

Deus não revela o que pretende

fazer, mas eles percebem que, de repente,

certa região amanhece verdejante,

com regatos e riachos criados

durante a noite, e se perguntam por

que naquele deserto a Providência

colocara aquilo.

No dia seguinte, eles percebem

que há uma casa muito bonita, disposta

de um modo muito agradável,

num jardim excelente, e que ambos

se completam com as plantações, as

criações e, portanto, com toda a fortuna

que ali vai nascendo.

Jó, sobre o monturo, ignora tudo.

Os Anjos olham para ele e não notam

nele a mínima alegria. Será para

Jó aquilo tudo ou não? Se for, ó alegria

angélica! Se não for, ó incógnita

Ilya Repin(CC 3.0)

Jó recebe seus amigos - Museu Russo, São Petersburgo

25


Reflexões teológicas

terrível! Para quem será

então? Quando cessará

a dor de Jó?

Até que, em determinado

momento, Jó

percebe que toda a

vastidão onde ele estava

deitado amanheceu

ajardinada. Mais

adiante, durante a noite,

ele acorda em meio

a cantos magníficos e

percebe que está sendo

levado por Anjos. É

levado para a mansão

construída que os Anjos

contemplaram antes.

E eles entendem

para quem tudo se recompõe

e tudo passa a

ser vida.

Jó rejuvenesce, tem

outros filhos e a vida se

reconstitui (cf. Jó 42,

10-17). São os mistérios

de Deus. No meio

das dores lancinantes,

das preocupações terríveis,

aparecem também

horas adoráveis,

horas suavíssimas, em

que tudo se dissolve,

nas quais se recebem,

de repente, bênçãos e

graças que nos dão a

coragem para outras

correrias heroicas na “Bagarre”.

Samuel Holanda

Durante seis meses tivemos

um Jó que sofreu

O triunfo de Jó - Catedral de Notre-Dame de Paris

Vemos isso agora, por exemplo,

com o caso do nosso João. Vimos

de um modo, para toda a eternidade

célebre, com o caso de Jó. Ele

viveu depois anos de felicidade que

lhe compensaram as tristezas horríveis

pelas quais passara. Jó venceu

a batalha, mas por quê? Essencialmente

porque confiou que

Deus o trataria paternalmente, segundo

a sabedoria e a bondade infinitas

d’Ele; ele confiou e por isso

não se revoltou; porque não se

revoltou, adorou a Deus. Quando

Deus empunhava o açoite que

o fustigava, ele dizia: “Senhor, eu

sou vosso, fazei de mim o que quiserdes.

Adoro o açoite que me chicoteia”.

Afinal, ao cabo de algum

tempo, tudo refloresceu.

Ora, se Jó tivesse pensado: “Assim

como Satanás pediu para provar-me

e Deus permitiu, será que Ele não

dará licença outra vez? Não serei eu

provado de novo e de um modo terrível?”

e começasse a ter medo, esse

pensamento bastaria para estragar

a renovação pela qual

ele passou.

Ao contrário, ele,

mais do que isso, confiou:

“Eu tive tudo,

perdi tudo, tenho a

restituição de tudo.

Mas Deus pode me

honrar com outra prova,

infelicitar-me com

outro látego. Eu confio

n’Ele, eu O amo,

e se esse látego descer

sobre mim eu direi:

‘Senhor, vem de Vós,

eu aceito, eu mereço.

Dai-me forças!’”

Essa experiência

pela qual passamos

conduz a pensamentos

dessa natureza e

nos prepara para considerações

desse jaez.

É a história do Grupo

em vários dos seus aspectos,

é a nossa história

individual em vários

de seus aspectos.

Durante seis meses tivemos

um Jó que sofreu.

E quanto sofreu!

E quanto nós sofremos

juntamente com ele!

Quem de nós, ontem

ainda, poderia imaginar

que hoje ouviria o

que ouviu? Entretanto, acabamos de

ouvi-lo.

Isso é um prolongamento das reflexões

tão belas e tão cheias de fervor

enviadas pelo nosso João e nos

prepara para os dias que sempre esperamos,

pelos quais sempre gememos

porque tardavam. Eis que chegam!

Eu quis que a imagem de Nossa

Senhora, nossa Mãe Santíssima, ficasse

em primeiro plano para ser venerada,

amada por nós, porque, se

é verdade que Ela é Medianeira de

todas as graças – e disso não se pode

duvidar –, se é verdade que, por-

26


tanto, isso foi uma graça, ela então

nos veio por meio d’Ela, é natural, é

mais do que legítimo que, por meio

d’Ela, também nós agradeçamos a

Deus o grande benefício que nos

mandou.

Mas como agradecer? Aproveitando

a lição, compreendendo o que

se passou.

Por piores que sejam

as circunstâncias, não

cessemos de confiar!

Em nenhum momento eu vi o

João dizer uma palavra que fosse

uma queixa em relação a Deus. Onde

o João percebe que possa estar

sofrendo, ele vai para frente. Em nenhum

momento eu o vi fazer um resmungo

porque a coisa estava doendo

demais ou porque estivesse demorando.

Ele aceitou e padeceu o que

tinha que padecer. Chegou, afinal de

contas, a hora do Hospital Hopkins;

e chegou a hora da libertação, em

que foi dito o que ouvimos, e ele teve,

na alegria do justo, cheio de gáudio

e satisfação, ele teve a consolação.

Essa doença do João, no total, é

uma glória para ele, é evidente.

Isso deve servir para nós de ensinamento.

Por piores que sejam as

circunstâncias em que estejamos na

“Bagarre”, ainda que pareçamos perdidos,

relegados aos últimos rincões

da Terra, só não cometamos um erro:

não cessemos de confiar! Eu ouso

quase dizer o seguinte: o essencial

é não duvidar, é confiar; o resto vem

por si.

Dessa maneira devemos dispor

nossas almas para aproveitar a provação

pela qual passamos e nos preparar

para “jobices” eventuais pelas

quais Deus queira nos fazer passar.

Seja como for, havendo a proteção

de Nossa Senhora, não desesperarmos,

não termos receio de que seremos

abandonados. Pelo contrário,

quanto mais sofrermos, tanto mais

nos glorificaremos. E no dia em que

o sofrimento tenha atingido o insondável,

nesse dia devemos cantar o

Magnificat: a hora de Deus está próxima!

Foi o que eu quis tornar presente

a nossos olhos, pedindo a todos

que cantássemos o Magnificat agradecendo

a Nossa Senhora a esplêndida

lição que Ela nos deu. Portanto,

daqui para a frente, aconteça o que

acontecer: confiar, confiar, confiar,

Nossa Senhora dará o resto.

Devemos agradecer a Ela mais

uma vez esta grande alegria e, sobretudo,

por esta ter nascido de uma

grande dor. Felizes e nobres as alegrias

que nascem de dores! Miseráveis

e infames as alegrias que nascem

de meros prazeres, meros contentamentos,

meros gozos de vida,

em que o homem se lembra de Deus

apenas para pecar contra Ele e insultá-Lo…

(Extraído de conferências de

16, 21 e 23/6/1995; 7/7/1995)

1) Johns Hopkins Hospital. Localizado

em Baltimore, Maryland, Estados

Unidos.

2) Do francês: conflito desordenado

e profundo. Palavra usada por

Dr. Plinio para se referir ao grande

castigo de Deus à humanidade, se esta

não se voltar para Ele, profetizado

por Nossa Senhora em Fátima.

3) A expressão “Bagarre azul” alude ao estado

de espírito surgido na época do

desenvolvimentismo brasileiro, no qual,

mesmo em meio ao caos, as pessoas se

deixavam iludir pela prosperidade e pelo

avanço da industrialização.

4) Na terra de Uz, localizada possivelmente

entre a cidade de Damasco e

o Rio Eufrates, na orla do Deserto

da Arábia, ou na fronteira de Edom,

nesse mesmo deserto.

Arquivo Revista

Arquivo Revista

Dr. Plinio durante o Santo do

Dia no Auditório Nossa Senhora

Auxiliadora, em 16 de junho

de 1995, quando transmitiu a

notícia da cura do Sr. João

27


Denúncia profética

Luis C.R. Abreu

O papel

regenerador do

sofrimento

Nossa Senhora das Dores - Capela do Hospital

de Corpus Christi, Huelva, Espanha

Os homens abandonaram a

Deus e se puseram em luta

contra Ele. O que poderá salvar

a humidade é um movimento de

arrependimento e um pedido de

perdão e isto deve-se pedir a Nossa

Senhora, através do sofrimento.

Se nós prestarmos atenção nos

acontecimentos atuais; o modo

pelo qual eles se desconchavam,

se desconcatenam e se jogam

uns contra os outros, indica

uma anomalia de tudo: das relações,

dos modos de ser… e fazem com que

sintamos verdadeiro horror diante

deles. Assim, por exemplo, o crime

parece ter excedido o próprio crime.

Ora, o que é isso?

Uma atitude de

arrependimento e um

pedido de perdão poderiam

salvar a humanidade

Não é senão a purulência, a desagregação,

a fermentação doentia

e maldita de uma causa que chega

a profundidades quase insondáveis.

Que causa é essa?

Os homens abandonaram a Deus

e se puseram em luta contra Ele.

Posta esta luta, o mal que se declarou

nas entranhas morais da humanidade

– mais do que em suas entranhas

físicas –, é algo tão tremendo,

que os piores acontecimentos podem

se dar e as pessoas nem têm a

ousadia de contar.

Se a humanidade não vê este mal,

ela fica ainda mais cega e, consequentemente,

ela vê menos e assim

vai rolando de cegueira em abismo

e de abismo em cegueira, até precipícios

dos quais não se tem ideia. É

desta maneira que ela vai despencando.

O que poderia salvá-la? Um ato,

um movimento de arrependimento e

um pedido de perdão: “Sabemos que

chegamos onde chegamos. Está evidente

em tudo quanto acontece hoje

em dia de modo ostensivo, escandaloso,

clamoroso”.

Pois bem, se isso é assim, os homens

deveriam fazer um ato de confiança,

um ato de justiça e dizer: “Senhor,

nós sabemos que merecemos

o castigo. As nossas consciências estão

agitadas por uma dor interior que

não nos dá sossego um só instante…

como diz o Salmo: o meu pecado eu o

conheço, ele está de pé sempre diante

de mim como um juiz e como promotor

insaciável sempre me increpando:

‘Infame, vê o que fizeste! Miserável,

mede o que és! Foge de horror diante

28


de tua própria sombra, envergonha-

-te, dobra-te diante de Deus e pede

que Ele tenha pena de ti. Peça a Deus

não apenas misericórdia, mas castigo!

Que Ele, na sua clemência, te envie

uma forma de castigo que não te destrua,

mas que extinga em ti essas maldades

das quais te transformastes um

verdadeiro símbolo vivo. Ajoelha-te,

miserável, põe o rosto em terra e diga

quoniam iniquitatem meam ego cognosco:

et peccatum meum contra me

est semper – a minha iniquidade eu a

conheço, e de pé diante de mim está

sempre o meu pecado

(Sl 50, 5)’”.

Intercessão

onipotente de

Nossa Senhora

Crucifixão - Museu Lázaro Galdiano, Madri

Nesse momento, depois

de pesado e medido

todo o horror do pecado

cometido, na hora

em que o desespero

poderia tomar conta

de nós, mas tendo

feito este ato de confiança

em Deus, de suas

mãos bondosas partiria

um raio. Um raio

benfazejo, doce, suave,

não como um raio

de sol, mas de lua. Um

olhar da Virgem Maria

poderia pousar sobre

nós e, com doçura, Ela

nos diria:

“Filho, és miserável,

tens razão em

reconhecer. Chora

teu pecado como eu

o chorei aos pés da

Cruz, quando meu Filho,

na sua divina agonia,

previa todos os

pecados do mundo

que desfilavam diante

d’Ele numa farândola

terrível. Naquele momento,

tu estavas entre

os pecadores; e quando tu passaste,

eu chorei por ti. Mas chegou

a hora das lágrimas, chegou a hora

da doçura, chegou a hora do perdão.

Pede perdão porque eu sou Mãe, e

tu sabes bem o que é uma mãe, tu

não és tão ruim para te esqueceres

disso. Tu sabes que podes, por meio

de uma Mãe, obter tudo, todos os

perdões estão ao teu alcance. Meu

filho, tem coragem, bate no peito

e pede-me perdão. Eu pedirei perdão

a teu Divino Criador, meu Divino

Filho: ‘Perdoa-lhe porque eu estou

pedindo. Eu sei bem, meu Filho,

que ele não merece, mas Tu me deste

a vocação de ser Aquela que salva

os que não merecem; Aquela que

atende os que não têm mais direitos,

que não são mais nada, os crápulas,

os horríveis, os nojentos… Até estes

têm um lugar no meu Coração e a Ti

eu peço por eles: Salva aquele miserável,

salva este mundo miserável,

perdoa-lhe, tem compaixão dele’”.

Pelo sofrimento, o perdão

Então chegaria a hora áurea, a

hora maravilhosa da

confiança! A cabeça

do pecador um tanto

vergada, se levantaria

um pouquinho,

olharia para o ar e teria,

em certo momento,

a coragem de fitar

a lua. Ele se lembraria

daquela frase: “Nossa

Senhora electa ut sol,

pulcra ut luna – eleita

como o sol, bela como

a lua” (cf. C 6, 9)

e poderia pensar: “A

lua não empalideceu,

não se desfez de horror

quando olhei para

ela. Pelo contrário,

ela continuou a deitar

sobre mim aquela luz

triste, aquela luz de

pranto, mas que não

deixa de ser uma luz

que brilha e promete

perdão.

“Eu não mereço,

mas, meu Deus, eu

quero sofrer”. O sofrimento

é o modo do

pecador obter resgate.

“Dai-me um pouco

de tranquilidade,

fazendo-me sofrer e

concedendo-me amor

pelo sofrimento, para

que eu sinta que ele

me limpa e que, este

Flávio Lourenço

29


Denúncia profética

sofrimento castigando-me, Vós me

perdoais.

“Senhor, o Divino Espírito Santo

diz nas Escrituras: ‘O pai que poupa

a vara odeia seu filho’ (Prov 13, 24).

Aqui estou eu pecador, Senhor. Dai-

-me essa sublime prova de amor,

passe-me a varada, eu vo-lo peço de

todo o coração”.

Caminhar para a penitência é tomar

uma atitude de alma como essa.

E quando a varada descer, é preciso

amá-la e tentar osculá-la. Isso significa,

na dor da varada, dizer: “Meu

Pai, Vós me castigais e, portanto,

não me esquecestes. Se Vós não me

esquecestes, pelo fato de Vos lembrardes,

começa a descer sobre mim

o perdão. Então, meu Pai, eu Vos

peço: perdoai-me inteiramente!”

Com sua morte,

Nosso Senhor abriu-

-nos as portas do Céu

Arquivo Revista

Eu li no Funck-Brentano

1 um fato que me comoveu

profundamente:

Um camponês do interior

da França tinha um filho,

e juntos trabalhavam

na propriedade rural da família.

Esse filho cometeu

contra o pai uma ação péssima.

Como ele não gostava

de trabalhar, o pai deu-

-lhe como penitência levantar-se

ainda de madrugada

e começar a cultivar

uma parte enorme da terra

deles que estava inculta.

O rapaz, de manhã, levantou-se

e foi fazer o trabalho.

Era, portanto, um

filho que tinha certa inclinação

para a penitência.

Quando uma primeira

luz da aurora começou

a deitar seus lampejos, ele

percebeu ao longe um vulto

que nas trevas ele não tinha

discernido. Era um homem

que trabalhava também. Ele

aproximou-se e reconheceu que era

seu pai.

O pai dera ao filho um terrível

castigo, mas assumira para si uma

parte da penitência. Ele condenou o

filho a começar a trabalhar muito cedo.

Naquela mesma hora, o homem

alquebrado, transido de dor, levantava-se

e oferecia a Deus, feita por

ele, uma parte do trabalho que o filho

deveria fazer. De que modo misericordioso

isso nos lembra a bondade

divina!

Na nossa linguagem comum, às

vezes dizemos: “Este redimiu, aquele

redimiu”. São expressões que, por

analogia, têm inteiramente sua verdade,

mas o Redentor é um só: Nosso

Senhor Jesus Cristo, Homem-

Dr. Plinio em junho de 1995

-Deus, que morreu na Cruz por nós

e, pelo mérito infinitamente precioso

do seu Sangue, nos resgatou. Foi

Ele quem quebrou os grilhões da

morte, liquidou o império do pecado

e, subindo ao Céu, abriu suas portas

para todos os miseráveis.

Exemplo dessa misericórdia vemos

com aquele miserável tão invejável,

tão simpático, tão objeto da

piedade que passou para a História

com o título de Bom Ladrão, São Dimas,

a quem Nosso Senhor fez a primeira

promessa de entrada no Paraíso:

“Hodie mecum eris in Paradiso –

hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc

23, 43).

Nossas almas devem estar povoadas

destas considerações quando

constatamos dramas em nossas vidas

– talvez pecadoras – e,

sobretudo, quando nos

damos conta do grande

drama da humanidade

contemporânea.

Na hora em que

o mundo inteiro

for sacudido, não

tenhamos ilusões

Nós devemos compreender

que chegou

a hora de o mundo inteiro

ser sacudido; é a

hora das prevenções e

das cautelas contra as

grandes dores que devem

vir sobre nós e, assim,

nos prepararmos

para elas. E na hora

em que essa sacudida

se der, voltemos nosso

espírito a Nossa Senhora

e peçamos forças.

Com efeito, nós podemos

imaginar aquilo

que foi, na vida de

Nossa Senhora, a agonia

d’Ela. Fala-se com

30


Nossa Senhora da Piedade - Santuário Basílica

Nossa Senhora da Piedade, Minas Gerais

tanta propriedade da

agonia de Nosso Senhor

Jesus Cristo no

Horto. Nada melhor,

nada de comparável!

Mas imaginemos um

pouco como terá sido

com a Santíssima

Virgem. Ela, com

a sabedoria que possuía,

com o comércio

contínuo com os Anjos

e com a Santíssima

Trindade, acompanhar

de longe – e

às vezes de perto –, a

atuação do Divino Filho

d’Ela, no país que

Ele deveria mais imediatamente

resgatar

e salvar. Ela terá notado

naquela opinião

pública – ora deslumbrada,

ora revoltada,

ora agitada; jamais

bastante grata, admiradora

e súdita – a revolta,

o descontentamento,

a tendência

a ver deformadas as

coisas.

E Ela não se terá

lembrado da hora em

que, tendo nos braços o mais belo dos

meninos, levou-O ao Templo de Jerusalém,

o mais sagrado dos edifícios da

Terra, tendo junto a Ela São José, o

mais casto, o mais varonil, o mais nobre

dos príncipes que jamais houve na

Terra, descendente do Rei Davi? Naquela

ocasião, Ela foi interpelada por

Simeão; este Profeta Lhe prenunciou

que seu Coração seria transpassado

com um gládio de dor e previu todos

os sofrimentos que Lhe adviriam.

Quando Ela percebeu que tomava

um vulto satânico certa agitação crescente

na cidade, outrora sagrada, mas

que em breve receberia sobre si a fulminação

da maldição de Deus, e notou

que aquilo podia conduzir à morte

de seu Divino Filho e previu a morte

do Divino Filho, o que Ela sofreu?

Que martírio Ela teve?

E quando foi ao encontro d’Ele

no caminho do Calvário e O viu carregando

a Cruz; Eles se abraçaram

naquela situação terrível, cada um

dilacerado de dor pela dor do outro,

e subiram talvez juntos, o Calvário.

Ela ficou de pé junto à Cruz

durante todo o tempo até receber o

corpo de seu Filho morto e a tragédia

terminada. Nós podemos imaginar

tudo quanto Ela sofreu nessa

previsão?

Quiçá algum dia teólogos eruditos

e seguros constatarão que há fundamento

teológico para surgir, no firmamento

da Igreja, mais uma invocação

a Maria Santíssima: Nossa Senhora

da Previsão e

do Coração Dilacerado

e Confiante.

Ela previu tudo e,

entretanto, não Se

deixou derrubar por

nada. Ela sequer desmaiou

ou caiu sentada,

mas esteve de pé,

o tempo inteiro, junto

à Cruz.

Quando o Divino

Cadáver foi posto sobre

o seu colo, Ela O

recebeu com a cabeça

baixa, atenta, mas o

busto ereto numa atitude

de adoração, em

relação à qual todas

as adorações do Céu

não eram nada!

Quem sabe se algum

dia essa invocação

será introduzida

na Ladainha de Nossa

Senhora para servir

de modelo para nós?

Devemos compreender

que no mundo

de hoje as coisas

chegaram a um grau

que não nos permite

ilusões e, portanto,

a “Bagarre”, 2 com os seus horrores,

vem. Então, desde já, nós devemos

começar a pedir a Nossa Senhora

forças e confiança na misericórdia

de Deus, que tem seu canal, seu espelho,

seu magnífico símile n’Ela.v

Luis C.R. Abreu

(Extraído de conferência de

21/6/1995)

1) Frantz Funck-Brentano (*1862 -

†1947). Historiador e bibliotecário

francês.

2) Do francês: conflito desordenado

e profundo. Palavra usada por

Dr. Plinio para se referir ao grande

castigo de Deus à humanidade, se esta

não se voltar para Ele, profetizado

por Nossa Senhora em Fátima.

31


Dr. Plinio comenta...

Luis C.R. Abreu

Grandeza e sofrimento

É próprio à grandeza ser um pouco inexplicável sob

determinados ângulos. Quanto maior ela é, tanto maiores

serão os sofrimentos, os abandonos de quem a possui.

Numa primeira consideração,

a grandeza dá a impressão

de proporcionar

somente felicidade. Na realidade,

o sofrimento que ela produz em

ser admitida, admirada pelos outros,

propicia penosas dificuldades para

quem a alcança.

Sofrimento inerente

à grandeza

Qual o sofrimento trazido pela

grandeza?

Vamos proceder conforme São

Tomás: primeiro, ele formula questões

levantando objeções contra a

tese a ser defendida; em seguida, dá

as razões pelas quais se diria que tais

objeções estão corretas; por fim, em

sentido contrário, analisa cada afirmação,

definindo a resposta verdadeira.

Então, nós deveríamos pôr a

questão da seguinte maneira: Dir-

-se-ia que a grandeza não traz sofrimento.

Primeiro, é próprio à natureza

do homem procurar a sua plenitude.

Ora, a grandeza é uma plenitude;

logo, quando o homem se encontra

com a plenitude, não pode sofrer,

ele fica contente. É lógico!

Segundo, a grandeza traz consigo

uma série de vantagens que o homem

aprecia altamente, como por

exemplo, a consideração, o respeito,

certas facilidades para a vida, às vezes

a riqueza. Logo, a grandeza não

pode trazer sofrimentos. Ela é uma

fonte de alegria.

Terceiro, a experiência comum

dos homens indica que a grandeza

não traz sofrimentos. Porque todos

se sujeitam a muita coisa para conseguir

a grandeza e ninguém faz um

grande esforço para perder a grandeza

que tem. Logo, a grandeza não

pode trazer sofrimentos. Ela é uma

fonte de alegria para os homens.

Sed contra, em sentido contrário,

há uma experiência comum da vida

que indica que nada é fonte de mera

alegria para o homem neste vale de

lágrimas. Ora, a grandeza está neste

vale de lágrimas; logo, ela não pode

ser fonte de mera alegria. Se ela não

traz mera alegria, traz algo de oposto

que se deve chamar tristeza. Então,

pergunta-se no que consiste a

tristeza que a grandeza traz.

Por outro lado, vê-se, às vezes, ao

longo da História, pessoas sábias,

prudentes, até insignes pela sua maturidade,

recusarem a grandeza e dizerem

que viviam mais felizes sem

ela. Logo, as pessoas sábias e prudentes

podem encontrar na grandeza

uma fonte de dor, que a não-posse

da grandeza não lhes dá.

32


E, por fim, tudo o que o homem

tem lhe traz deveres. E quanto mais

ele tem, mais numerosos são os seus

deveres. Por exemplo, os deveres de

um homem que tem grande fortuna

não pesam sobre o homem que tem

uma pequena fortuna ou não a tem.

Logo, quanto mais alta a grandeza,

maiores os deveres. Como o cumprimento

do dever pesa sobre o homem

tal qual uma cruz! A grandeza traz

grandes cruzes!

Temos aí o pró e o contra da grandeza.

A grandeza foi dada

aos homens para servir

à Causa da Igreja

Então, o que dizer disso, a que

conclusão chegar? Primeiro é preciso

definir de que grandeza se fala, se

a honesta ou a ladra. Porque a grandeza

foi dada aos homens para que

sirvam à Causa da Igreja, a Nossa

Senhora, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os homens a merecem, não só na

medida em que tenham certos predicados,

mas em que coloquem esses

predicados a serviço dela.

Por exemplo, um homem merece

uma especial reverência

por ser muito inteligente. Dir-

-se-ia que a inteligência é uma

excelência, e isso lhe dá ocasião

de receber um certo respeito.

Mas, se ele não a usa para

aquilo que deve, não merece nada!

Aquela inteligência torna-se

uma razão para ser desprezado.

Portanto, a grandeza traz ou

não sofrimento? A resposta se

encontra na parábola dos talentos

(cf. Mt 25, 14-30).

É uma felicidade receber

muitos talentos para fazer render?

Pode ser, porque se todos

os talentos renderem, chegando

o dono daquele servo, ficará

contente e o premiará. E para

o servo é uma satisfação ter

aumentado expressivamente o

Parábola dos talentos

patrimônio de seu senhor. Mas traz

a dificuldade, a dor de uma gestão

muito maior, muito mais difícil, que

uma só moedinha não traz. Debaixo

desse ponto de vista, causa muito

mais sofrimento do que alegria.

Isso que se diz de uma moeda,

diz-se também de algum grande predicado.

Ser uma pessoa muito atraente

é muito agradável. Contudo,

que vontade tem ela de prestar contas

por isso e qual é o trabalho que

tem para dar toda a renda que é devida

à Causa de Deus?

Ainda mais quando se trata de alguém

revestido de uma eminente

grandeza do ponto de vista terreno

como, por exemplo, o presidente dos

Estados Unidos. A pessoa batalhou

para ser eleita e ocupa, indiscutivelmente,

o cargo de maior influência e

poder temporal da Terra.

Ora, por quantas coisas esse homem

precisa dar contas a Deus em

consequência desse cargo? Nós,

quando fazemos o exame de consciência

à noite, devemos dar conta de

nós mesmos e dos outros com quem

convivemos. Ele tem que prestar conta

de nações, do futuro do mundo por

séculos! Entretanto, como é esse exame

de consciência à noite, se ele tem

consciência disso tudo? E se ele não a

tiver, que dentadas sente no fundo de

sua consciência de vez em quando?

Porque, embora não tenha noção do

peso de seu cargo, sabe estar brincando

com os povos, nações e situações

importantes. É ou não é algo terrível?

Distância e vazio impostos

pela grandeza pessoal

Há uma outra grandeza que não é a

dos cargos nem a das honras. É a grandeza

que pode provir ao homem do feitio

de sua alma, do estilo, de sua personalidade,

do modo de sua projeção,

enfim, daquilo que é a sua impostação.

Pode-se dizer isso, a seu modo, de uma

senhora ou de um homem. Debaixo de

certo ponto de vista, é mais honrosa do

que a grandeza dos cargos.

Para exemplificar, vou fazer uso

de uma bagatela. O que é mais eminente

para uma pessoa: ter a mão

muito benfeita ou usar uma luva

muito bonita? A luva é um objeto

que se adquire. Alguém pode

não ter dinheiro para comprá-la

e um outro pode ter dinheiro

para comprar uma luva

muito mais bonita, mais fina,

de muito maior categoria.

É melhor ter uma luva do que

um trapo na mão, compreendo

bem. Mas, a mão benfeita é

própria ao indivíduo.

A grandeza de um cargo que

o indivíduo cavou – o termo é

um pouco vulgar – é uma coisa.

Outra, é aquilo que ele é.

Porque o cargo adquirido pode-se

perder. Um rei pode perder

o posto, um presidente tem

o mandato terminado etc.; porém,

uma grandeza pessoal não

se tira. De maneira que essa

grandeza é muito significativa.

Mas, vista assim, necessariamente

– notem bem a palavra

Divulgação (CC3.0)

33


Dr. Plinio comenta...

Vicente Torres

necessariamente – é condição própria

dessa grandeza fazer em torno

de si um vazio e uma distância que

serão tanto maiores quanto maior a

grandeza. Isso gera duas situações:

uma certa incompreensão e uma certa

desajuda da parte dos outros. Se

um homem se põe só, onde ele está

não tem quem o ajude. E se ele está

longe, em alguns ângulos não o compreendem

e não há quem o explique.

É próprio à grandeza

possuir aspectos inexplicáveis

Catacumba de Domitila, Roma

Inclusive é próprio à grandeza ser

um pouco, pelo menos um pouco,

inexplicável por alguns lados. Porque

aquilo que é inteiramente explicável

não tem grandeza. É evidente.

Ocorre-me uma comparação um

pouco extravagante, mas é assim.

As catacumbas, nos subterrâneos de

Roma, são um lugar venerável, antes

de tudo por quanto ali se passou. Incontáveis

vezes nelas foi celebrada

a Santa Missa em honra dos mártires,

mas os que ali estavam seriam,

eles mesmos, as próximas vítimas em

união com o Cordeiro de Deus. Não

há veneração que baste para as catacumbas.

Entretanto, há um lado das catacumbas

que eu senti muito nas poucas

vezes que estive lá, e é o seguinte:

elas são insondáveis. Quando se

entra nelas sente-se um vento frio

que circula e percebe-se que esse

vento vem dos fundos obscuros da

História, que não foram decifrados,

não foram explicados e valeria a pena

conhecer.

Isso concorre ou não para aumentar

o prestígio das catacumbas? Imaginem

que um homem trouxesse os

planos das catacumbas e dissesse:

“Visitei tudo e o mapa está aqui!”

Não as diminuiria um pouco? Não

é bonito saber que aquilo é meio insondável?

Essas coisas, de si, dão um peso

a quem é grande, porque criam circunstâncias

de vida que não são fáceis.

Por exemplo, uma torre que se

eleva sozinha numa

praça é uma construção

bonita, élancée,

1 elegante. Vi, andando

por aqui, numa

importante rua

da cidade, uma casinha

à qual nunca tinha

prestado atenção;

ela está afundada

tão embaixo no

chão, que a calçada

recua um pouco, e há

uma escadinha para

o sujeito entrar nela.

Essa casinha dá a

impressão de um buraco.

Deve ser um tugúrio.

Morar ali dentro

deve ser horroroso.

Mas é verdade

que dá uma certa

ideia de aconchego,

que quem está no alto

da torre não sente.

Quanto maior a grandeza,

tanto maior o ódio recebido

No tempo em que havia repartições

públicas no edifício Martinelli, 2

certa vez fui tratar de um assunto em

um dos mais altos andares do prédio.

Não havia quase arranha-céus em

São Paulo naquele tempo e vendo

aquela vastidão, pensei: “Que agradável,

não é? Mas, falta alguma coisa.

Falta aquele contato com o chão,

que é o nosso habitat”.

O problema se agrava muito

quando o indivíduo põe a grandeza

a serviço do bem. O que é estar a

serviço do bem? É estar em contato

com todos e a todos pedir um sacrifício.

Fazer o bem é pedir sacrifício.

Bem entendido, não é pedir sacrifício

para si, para sua vontade própria.

Mas é pedir um sacrifício de alguém

para Nosso Senhor, para Nossa Senhora,

para a Igreja Católica: “Faça

mais isto, faça mais aquilo; olhe, você

poderia dar mais tal coisa!”

O resultado é que, quanto maior é

a grandeza, maior é a força do golpe

que damos na porta, e tanto maiores

são as revoltas, as indignações,

as conspiratas, os ódios, as ciladas,

as invejas, os abandonos. A grandeza

está posta no alto como um alvo para

tomar tiro!

Renunciar às ilusões e

aceitar os sacrifícios

Esta exposição, por exemplo, eu

tentei, tanto quanto possível, torná-la

atraente. Alegra-me ver que

todos se sentem atraídos com coisas

boas. E como amo o bem, amo a

Nosso Senhor Jesus Cristo, alegra-

-me ver isto. Mas fiz esta conferência

também para amortecer algo pelo

qual estou lhes pedindo um sacrifício.

Qual é o sacrifício do fundo de

alma que estou pedindo?

Não quero ser ladrão e por isso

vou contar o que fiz tentando entrar

na alma de cada um. Conto de-

34


pois de ter feito, mas conto. Eu quis

mostrar-lhes quanto é ilusório todo

caminho que se encontre fora da vocação

católica, e, com isso, determinar

a seguinte reflexão: “Por amor à

verdade, eu não vou ter ilusões. Sei

que uma série de caminhos que eu

poderia imaginar agradáveis não o

são. Várias ilusões que eu poderia

ter dão em desilusões”.

Eu quis, assim, desinflar nas almas

diversas ilusões para, com isso,

aceitarem potencialmente uma série

de sacrifícios. Fiz bem, cumpri meu

dever.

Imaginem que neste momento

ouvissem um barulho de automóvel,

toca uma buzina prestigiosa e para

aqui. De repente, desce alguém com

intenções desonestas. Nós devemos

estar prontos para dizer: “Não! Eu

sei que isso é uma ilusão! Sei que seguindo

minha vocação, vivendo para

ser puro e para obedecer, eu sofrerei,

porque a pureza e a obediência

exigem toda espécie de renúncias

e, portanto, trazem toda espécie de

sofrimentos. Mas eu os quero, porque

esta é a minha finalidade! E sei

que aqui eu encontrei o que esse automóvel

não me dará: a paz da minha

alma!”

Eu os estou preparando para isso.

Parece-me prudente e oportuno.

Imensa grandeza de

Jesus crucificado

Uma pessoa, com uma observação

corrente das coisas, diria que, ao

encontrar a grandeza, nós exclamamos:

“Ó grandeza!” Mas esta não é,

talvez, necessariamente a verdadeira

grandeza. Muitas vezes nós a encontramos,

convivemos com ela e

não percebemos quanto ela é grande!

Não é como a grandeza material,

por exemplo, das pirâmides do Egito,

por onde, de longe, vê-se aquele

maço de pedra. Não é isso. As realidades

espirituais, nós podemos conviver

longamente com elas sem percebê-las!

Mas, de repente, num certo

aspecto desvenda-se aquilo para

o nosso olhar e ficamos surpresos:

“Mas que grandeza!”

Tanto quanto eu possa me lembrar

– portanto é dubitativo o que

estou dizendo –, eu desde pequeno

estava habituado a ver no Crucifixo

Nosso Senhor sofrendo por nós, com

reverência, com admiração, mas um

pouco achando normal Ele estar no

Crucifixo, como é normal eu estar

na cadeira de rodas. 3 E que, no fundo,

Ele acaba convivendo com aquilo

como eu acabo convivendo com

isto, o que não é uma coisa tão terrível

assim.

É a tendência que todo homem

tem de banalizar tanto as coisas, que

no primeiro encontro que tem com a

grandeza, ele põe um olhar meio admirativo

e meio toldado pela poeira

da banalidade. Banalização involuntária,

mas está nele. Como ele é banal,

ele vê as coisas banalmente.

Lembro-me de que, em determinado

momento – deve ter sido uma

graça – veio-me ao mesmo tempo

a noção da imensidade da dor de

Nosso Senhor e da enorme elevação

que havia em ser Ele tão maior

do que a sua própria dor, que sem

nenhuma dúvida Ele ofereceu a

dor por uma intenção mais alta!

Então concluí: “Mas que enorme!

Imenso! Que bom! Que misericordioso!

Que grandeza! Adoramus

te, Christe, et benedicimus tibi, quia

per sanctam Crucem tuam redemisti

mundum!”

v

1) Do francês: esguia.

(Extraído de conferência de

3/6/1985)

2) Primeiro arranha-céu da cidade de

São Paulo, inaugurado em 1929. Tornou-se

símbolo do progresso econômico

e da modernização da cidade.

3) Devido a uma sequela do desastre de

automóvel ocorrido em 1975.

Marcus Ramos

35


Luis C.R. Abreu

Nossa Senhora de Toledo

Catedral de Toledo, Espanha

A realeza das realezas

O

título de Regina Prophetarum é dado à Santíssima Virgem não apenas por ser Ela a Rainha

dos Profetas, mas de todos os aconteceres da História. Donde a especial nobreza desse título,

porque é a realeza das realezas enquanto dando impulso a todo o desenrolar da História.

É uma espécie de síntese da missão d’Ela. Em certo sentido, Nossa Senhora foi a Mãe do Verbo enquanto

Rainha dos Profetas. Ela previu, pediu, obteve e foi convidada a ser Mãe d’Ele.

Daí podemos concluir também que Ela é a Rainha de todos os nasceres, de todos os felizes e ascensionais

continuares e, na medida do necessário neste estado de prova, a Rainha cheia de desvelo dentro dos

ocasos e cheia de glória de tudo quanto ressurge de dentro do anoitecer.

(Extraído de conferência de 17/10/1980)

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