Revista Dr Plinio 330
Setembro de 2025
Setembro de 2025
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Publicação Mensal
Vol. XXVIII - Nº 330 Setembro de 2025
Travando os nobres
combates do espírito
Samuel Holanda
São Miguel
Museu do Louvre
In victoria super diabolum
cognoverunt eum
O
Evangelho narra que, quando Jesus ressuscitado apareceu aos discípulos de Emaús, estes se sentiam
enlevados por Ele enquanto conversavam pelo caminho, mas só O reconheceram no momento em que
partiu o pão: “In fractione panis cognoverunt eum – reconheceram-No ao partir o pão” (Lc 24, 35).
Há Santos assim, que dão a entender tudo quanto têm de mais magnífico e de mais elevado num ato, num
gesto, a partir do qual tudo se vê, tudo se explica.
De São Miguel Arcanjo poder-se-ia dizer: In victoria super diabolum cognoverunt eum. Em sua vitória sobre
o diabo, todo o espírito amoroso, ardente e enlevado de São Miguel se dá a conhecer.
Nesse ato de luta, de cólera santa e de vitória absolutamente implacável e eterna (cf. Ap 12, 7-9), conhecemos
o amor de São Miguel Arcanjo a Deus e a Nossa Senhora. Ele é o calcanhar da Santíssima Virgem que,
por toda a eternidade, pisa a cabeça da serpente, enlevado em prestar a sua Senhora esse serviço, adorando
e pisando; pisando enquanto adora, adorando enquanto pisa, e fazendo da pisada e da adoração um só ato.
(Extraído de conferência de 29/9/1972)
Sumário
Publicação Mensal
Vol. XXVIII - Nº 330 Setembro de 2025
Vol. XXVIII - Nº 330 Setembro de 2025
Travando os nobres
combates do espírito
Na capa,
Dr. Plinio, em 1989.
Foto: Arquivo Revista
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
ISSN - 2595-1599
CNPJ - 02.389.379/0001-07
INSC. - 115.227.674.110
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Roberto Kasuo Takayanagi
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Roberto Kasuo Takayanag
Vicente de Paula Torres Nunes
Redação e Administração:
Rua Virgílio Rodrigues, 66 - sala 1 - Tremembé
02372-020 São Paulo - SP
Impressão e acabamento:
Pigma Gráfica e Editora Ltda.
Av. Henry Ford, 2320
São Paulo – SP, CEP: 03109-001
Segunda página
2 In victoria super diabolum
cognoverunt eum
Editorial
4 Modelo de humildade e
de combatividade
Piedade pliniana
5 Que as obras da luz brilhem
e nada impeça sua difusão
Dona Lucilia
6 Esplêndida lição
de doçura
De Maria nunquam satis
9 A Virgem-Mãe esmagando
todas as heresias
Reflexões teológicas
14 Ecos eternos da indignação
sacrossanta do glorioso Arcanjo
Hagiografia
22 O bom espírito, causa da união
entre os membros da Igreja
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Serviço de Atendimento
ao Assinante
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Denúncia profética
25 A cavalaria do espírito
Dr. Plinio comenta...
28 Entusiasmo, tédio e
conversão na vida espiritual
Luzes da Civilização Cristã
30 Como uma opala à luz do Sol
Última página
36 Como um exército em ordem de batalha
3
Editorial
Modelo de humildade e
de combatividade
A
Santa Igreja venera em São Miguel Arcanjo o modelo da humildade cristã. Lúcifer recusou a homenagem
que o Altíssimo dele exigia. São Miguel, acompanhado dos Anjos que permaneceram fiéis,
prestou essa homenagem. Enquanto Lúcifer personifica a Revolução, São Miguel é personificação
do espírito de hierarquia e de disciplina, quintessência da humildade cristã.
Numa época profundamente minada pelo espírito revolucionário, quando todos os poderes legítimos – seja
na ordem espiritual, política, social, econômica ou familiar – são objeto de um ódio e de uma desconfiança
generalizada, é especialmente difícil para o católico conservar íntegro o espírito de hierarquia que, em todos
os campos da atividade, é a nota distintiva do verdadeiro cristão. Entretanto, a alternativa é inexorável: ou
temos o espírito de hierarquia que caracterizou São Miguel, ou nosso espírito é o de Lúcifer. O patrocínio de
São Miguel Arcanjo é, pois, singularmente precioso para os que querem permanecer fiéis à ortodoxia, à genuína
doutrina da Igreja Católica, em todos os pontos atacada pelo espírito de revolta.
São Miguel é também o modelo do guerreiro cristão pela fortaleza de que deu prova atirando ao Inferno as
legiões de espíritos malditos. É ele o guerreiro de Deus, que não tolera que em sua presença a majestade divina
seja contestada ou ofendida e que está pronto a empunhar o gládio a fim de esmagar os inimigos do Altíssimo.
Ensina-nos ele que não basta ao católico proceder bem; é seu dever combater também o mal. E não apenas
um mal abstrato, mas o mal enquanto existente nos ímpios e pecadores, pois São Miguel não atirou ao Inferno
o mal enquanto um princípio, uma mera concepção da inteligência; e nem princípios e concepções meramente
intelectuais são susceptíveis de serem queimados pelo fogo eterno. Foi a Lúcifer e a seus sequazes
que ele atirou no Inferno, pois odiou o mal enquanto existente neles e amado por eles.
Indubitavelmente, um dos piores venenos com que o liberalismo ameaçou as consciências católicas foi a
ideia de um desarmamento espiritual. Assim como o pacifismo posterior à Guerra de 1914 foi ruinoso para a
paz mundial, pois na realidade não passava de uma atitude amedrontada e covarde que abriu as portas a todas
as arrogâncias dos totalitários, assim também essa espécie de pacifismo religioso compromete em extremo os
interesses da Igreja, permitindo as arremetidas dos seus inimigos implacáveis e cruéis.
É verdade que a Igreja é indefectível e eterna, mas quantas almas não foram arrancadas ao seu seio maternal
pelas incursões dos adversários que não foram contidos em sua sanha pela falta de combatividade dos que
lhes deveriam ter sido uma barreira natural? Assim, por não querer ferir os inimigos, se lhes entregam os irmãos
inocentes, o que é, certamente, uma das piores faltas de caridade.
Não se pode negar que o espírito de conciliação, principalmente em matéria religiosa, está muito de acordo com
o comodismo da natureza humana. Mas, exatamente por ser demasiadamente humano, é muito pouco divino.
Vivemos em um tempo de profundo liberalismo religioso. Poucos são os cristãos que têm a ideia de que pertencem
a uma Igreja militante, tão militante na Terra quanto militantes foram no Céu São Miguel e os Anjos fiéis.
Também nós devemos saber esmagar a insolência da impiedade. Também nós devemos opor uma resistência
tenaz ao adversário, atacá-lo em suas posições, expulsá-lo e reduzi-lo à impotência. São Miguel, nesta luta,
não deve ser apenas nosso modelo, mas nosso auxílio. A luta entre São Miguel Arcanjo e Lúcifer não cessou,
mas se estende ao longo dos séculos. O Príncipe da Milícia Celeste auxilia todos os cristãos nos combates que
empreendem contra o poder das trevas. *
* Cf. Legionário n. 515, 26/7/1942 e Catolicismo n. 9, setembro de 1951.
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
4
Piedade pliniana
Que as
Teodoro Reis
obras da
luz brilhem
e nada
impeça sua
difusão
São Miguel - Santuário
do Sagrado Coração
de Jesus, São Paulo
ÓImaculado Coração de Maria, que não quereis que a luz esteja encoberta
pelo alqueire, mas, pelo contrário, brilhe num candelabro, auxiliai os trabalhos
de difusão da obra que Vós mesma suscitastes.
Ó São Miguel Arcanjo, Príncipe da Milícia Celeste, neste último período do reino
das trevas, quando já se vislumbram os primeiros clarões do Reino de Maria, não
permitais que o demônio impeça a difusão das obras que proclamam guerra de morte
à Revolução.
(Composta em 26/2/1968)
5
Dona Lucilia
Gravidade, seriedade, força, doçura, bondade, afabilidade
e firmeza, características da alma de Dona Lucilia.
Pelo fato de ter correspondido à graça, ela não só
deu a devida glória a Deus, mas tornou-se também
incentivadora para que outros pratiquem a virtude.
Qualquer pedregulho que se
encontre pela rua, Deus o
criou para sua glória e, se
este deixasse de existir, em algo diminuiria
a sua glória extrínseca.
Tudo que existe dá
glória a Deus
Alguém poderia objetar: “Nosso
Senhor disse que um passarinho não
cai morto sem que Ele saiba; igualmente
nem um fio de cabelo cai de
nossa cabeça (cf. Mt 10, 29-30); então,
se um morrer e outro cair, isso diminui
a glória extrínseca de Deus?”
Na prodigiosa coleção de passarinhos
criados por Deus, desde o primeiro
até o último que existirá, cada
pássaro teve a sua trajetória, riscou
o horizonte e a glória de Deus ficou
marcada pelo fato de ele ter sido
criado. Ele deixar de existir é menos
importante do que o fato de ter existido.
Entretanto, com a criatura humana
não se dá isso. A alma não pode
deixar de existir e, tendo correspondido
à graça, dará glória a Deus
por toda a eternidade.
Perguntaram-me: “Se Dona Lucilia
não tivesse correspondido, o que
teria ficado faltando à glória extrínseca
de Deus?”
Em resposta a essa pergunta eu
diria o seguinte: faltaria uma certa
composição de doçura, de gravidade,
de seriedade, de força, de bondade,
de afabilidade e de firmeza, que constituem
a característica da alma dela.
Essa característica que dá glória a
Nossa Senhora e a Deus no Céu não
estaria presente no grau que deveria.
Seria, para servir-me de uma comparação,
como um piano ou um órgão
do qual se tirasse uma das notas.
“A você eu tenho por inteiro”
O que se poderia dizer a respeito
desse conjunto de atributos que caracteriza
Dona Lucilia?
6
Havia de minha parte em relação
a ela uma atitude fundamental, anterior
e superior a todos os agrados,
que era um querer bem estável, fixo,
que não variava, não diminuía nunca
e que eu votava a ela com todo o meu
amor e todo o meu afeto. E ela tinha
um conhecimento muito exato disso.
Certa vez, encontrando-me no corredor
de casa, ela cruzou-se comigo
por acaso. Cada um de nós ia fazer alguma
dessas coisas da vida quotidiana
dentro de uma casa, sem importância.
Ela parou e, como se ela estivesse continuando
alto uma reflexão começada,
apoiou a mão sobre meu ombro, e disse:
“Meu filho, eu só tenho você, mas
você eu tenho por inteiro”.
A meu ver, dificilmente se poderia
fazer um comentário a alguém
que fosse mais amistoso, mais afetuoso
do que esse. Eu não imagino um
comentário que denotasse mais amizade
do que esse.
Eu quereria que Nossa Senhora
pudesse dizer para cada um de nós
isto: “Meu filho, Eu só tenho você –
e agora vem o principal –, mas você
Eu tenho por inteiro”. Se eu pudesse
saber que Nossa Senhora disse isso
de um filho meu ou de mim, eu ficaria
radiantíssimo. Meu comentário
seria: “A partir deste momento eu
posso morrer!”
Eu sei bem que eu não deveria
morrer nesse momento, a não ser que
Deus dispusesse o contrário, porque
nós temos muitos serviços ainda a
prestar, mas eu queria dizer com isso
que a minha vida estaria realizada.
Alma cristalina,
isenta de egoísmo
Havia em Dona Lucilia aspectos
aparentemente contraditórios
os quais, para os compreendermos
bem, devemos ir ao fundo dessa aparente
contradição.
Mamãe tinha muito desapego de
si mesma e muito amor a Deus. O
desapego se demonstrava por uma
série de sinais, cada um mais luminoso,
mais claro do que o outro. E
o principal deles era que, na intimidade
da vida de família, onde é frequente
que as pessoas se elogiem a
si próprias ou àqueles que lhes são
muito próximos, ela não o fazia.
É frequente encontrar uma mãe
que elogia a sua filha ou o seu filho.
Nisso entra um amor natural, legítimo,
da mãe para com os filhos, mas
entra também um certo egoísmo:
“Veja, meu filho é assim; o seu, eu
tenho observado, não é; portanto, eu
estou na sua frente e você fica sabendo
que, na batalha da vida, eu estou
vencendo”. São misérias, mas são
coisas que existem.
Nunca vi que ela se elogiasse a si
própria ou que procurasse fazer-se valer
acima de outra pessoa, de um parente,
de um amigo, de um conhecido.
Pelo contrário, eu a vi numa disposição
muito boa a olhar para as pessoas
pelo lado melhor e considerar esse lado.
Pessoas indiferentes a ela, mas como
tinham aquela qualidade, ela gostava.
Isso era frequente. Algum caso
bonito que ela soubesse de alguém, ela
contava para terceiros. E nunca ficava
à espreita para ver se essa pessoa respondia
ou não ao elogio dela. Era inteiramente
desinteressada.
Com isso, ficava fácil a ela tomar
para com os outros uma atitude de
grande bondade porque, quando não
se é egoísta, de boa vontade se dá o
que se tem. Ela era bem o contrário
do egoísmo, de maneira que dava o
que tinha, mas largamente, generosamente,
afetuosamente, às escâncaras.
E a bondade dela transparecia
assim cristalinamente, magnificamente.
Não era uma bondade qual-
7
Dona Lucilia
quer. Às vezes se vê, por exemplo,
uma pessoa que passa por um mendigo
na rua e lhe dá uma esmola. Essa
pessoa manifestou em relação ao
mendigo uma certa bondade. Mas
há bondade e bondade. Há pessoas
que dão uma esmola para um mendigo,
jogam uma nota de dinheiro no
chapéu que ele está estendendo para
receber a esmola, jogam e vão embora.
Há outras pessoas que fazem isso,
mas com uma compreensão afetuosa
da vida dura do mendigo e como
quem, ao mesmo tempo, considera
o mendigo e gostaria de atenuar
a vida dele se tivesse meios; não
podendo, exprime-lhe por um olhar
carinhoso o que tem para com ele.
Essa segunda atitude era eminentemente
a de mamãe em relação a
todo mundo que precisasse dela para
qualquer coisa.
Uma lição de vida:
compaixão para com
os que erram
Havia uma pessoa de minha família
com que eu tinha relações difíceis.
Ela tinha andado mal em certas
ocasiões e eu tinha manifestado
desagrado com isso, porque era meu
dever coibi-la para não continuar no
mau caminho em que estava.
Um dia eu cheguei em casa vindo
do trabalho e, como fazia sempre,
ia diretamente à procura de mamãe.
Era algo que eu fazia instintivamente:
“Onde está mamãe?” Cheguei e
vi essa pessoa sentada no hall da casa
com um ar muito desanimado, muito
desagradado. Eu entrei no quarto de
mamãe, falamos um pouquinho algumas
coisas, banalidades, e ela em certo
momento me disse o seguinte: “O
vaso de cristal que tem aqui na entrada
da casa, sabe o que aconteceu?”
Era um vaso lindíssimo, que tínhamos
herdado de minha avó, mãe
dela. Autêntico cristal da Boêmia,
como já não se fabrica mais hoje em
dia. E eu o prezava muito.
Ela continuou: “Fulano chegou
aqui e involuntariamente esbarrou no
vaso, que caiu no chão e se partiu em
mil pedaços. Acontece que ele está
precisando de você para um grande
favor e sabe como você se contrariaria
enormemente com o rompimento
desse vaso. Ele está muito receoso
do desagrado que você possa mostrar
por isso”.
Eu, começando a me zangar, mas
ao mesmo tempo ouvindo a voz dela
que eu já sabia por todas as experiências
possíveis que ia pleitear a causa
do culpado.
E ela me acrescentou numa voz
mais doce: “Tenha pena dele!” Esse
“tenha pena dele” era tão suave e tão,
tão impregnado da pena que ela tinha
dele e da pena que ela achava que
se deveria ter para com todo mundo
que estivesse em apuros, em aflição.
Ela me disse: “Tenha pena dele e faça
o seguinte: vá para o hall e faça uma
brincadeira qualquer com ele que indique
bom humor, e depois diga a ele
que esse negócio de vaso, que se compra
outro, que não se incomode, para
ele ficar contente”.
Se fosse pedido por qualquer outra
pessoa eu não iria, mas o pedido
dela... era tiro e queda. Eu me levantei,
fui para o hall, o homem estava
estatelado. Os cacos de cristal,
a empregada já tinha levado para o
lixo. Eu lhe disse umas brincadeiras
e depois ele se sentou mais aprumado,
e dali a pouco já estava contente.
Na hora do jantar ele estava como se
não tivesse acontecido nada.
Ela praticara uma excelente ação
e tinha me ensinado a como se deve
ser doce em relação à pessoa que,
não tendo feito uma ação que diretamente
ofenda a Deus, fez uma ação
neutra do ponto de vista moral, algo
que pode acontecer com qualquer
um, em relação à qual, portanto, é
preciso ter compaixão. Então, para o
filho dela, ela deu uma esplêndida lição.
v
(Extraído de conferência de
31/3/1993)
8
Fra Angelico (CC3.0)
De Maria nunquam satis
A Virgem-Mãe esmagando
todas as heresias
Em Maria Santíssima, a plenitude da virgindade
coincidiu com a perfeição da maternidade. Eis um
predicado odiado pelos adeptos da gnose, cujas
teses são diametralmente opostas à Doutrina
Católica e, por isso também, à Contra-Revolução.
Pediram-me para fazer um
comentário sobre as invocações
contrarrevolucionárias
da Ladainha Lauretana. Evidentemente,
todas as invocações ali
contidas são contrarrevolucionárias.
Portanto, haveria muita vantagem
em esclarecer, debaixo de certo ponto
de vista, o que é uma coisa contrarrevolucionária.
Doutrina Católica e
Contra-Revolução
Contra-Revolução, em última
análise, é um fervor ou uma devoção
especial a determinadas verdades-chave
da Doutrina Católica, em
oposição à gnose.
No mundo só há, de fato, duas
doutrinas e opostas entre si. Uma é
a Doutrina Católica, considerada na
sua integridade e autenticidade; outra
é a doutrina gnóstica. Todas as
demais são intermediárias, são apenas
pontos de transição pouco consistentes
entre essas duas.
Há alguns pontos que são salientes
na doutrina gnóstica, como por
exemplo, o igualitarismo. Este e outros
pontos que nela mais se sobres-
10
De Maria nunquam satis
Flávio Lourenço
prêmio uma visão mais nítida e um
amor mais zeloso, mais ardoroso às
verdades que a gnose combate.
A verdade católica é uma verdade
total, como a ordem posta por Deus
no universo também é total. E tudo
quanto é verdade religiosa faz parte
desse tesouro de verdades da Doutrina
Católica. Portanto, na Doutrina
Católica tudo é contrarrevolucionário.
Não há nela algo que não seja
contrarrevolucionário.
Eu ouvi dizer que certas pessoas
achavam que algumas invocações
de Nossa Senhora não são contrarrevolucionárias
por serem muito sentimentais.
Afirmar isso é o que há
de mais disparatado! Tudo quanto é
aprovado pela Igreja é contrarrevolucionário,
é bom. Assim, repito, todas
as invocações de Nossa Senhora
são contrarrevolucionárias e toda
a Doutrina Católica é contrarrevolucionária
também.
Entretanto, há uma Contra-Revolução
lato sensu que é simplesmente
ser católico apostólico romano; e
uma Contra-Revolução stricto sensu
que é o mesmo ser católico apostólico
romano, mas com uma nota central
mais aguda, que é o zelo por certas
verdades que a gnose mais especialmente
quer negar.
Invocações de
Nossa Senhora mais
especialmente detestadas
pelo espírito gnóstico
Mãe de Deus e da Humanidade - Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona
saem constituem erros que correspondem
às verdades mais excelentes
da ordem de coisas posta por Deus.
Como a gnose é a caricatura e a negação
da ordem profunda de tudo
o que é verdadeiro, tudo o que ela
afirma é contrário a uma verdade capital,
a uma verdade-chave da Doutrina
Católica.
A Contra-Revolução é, portanto,
um estado de espírito de guerra, de
luta, de execração da gnose e que
ama na Doutrina Católica, com fervor
especial, as verdades que essa
heresia quereria tornar esquecidas
ou negar. O contrarrevolucionário
é quem tem esse estado de espírito
de combate, por isso recebe como
Podemos nos perguntar: quais
são as invocações de Nossa Senhora,
presentes em sua Ladainha, que
mais especialmente o espírito gnóstico
detestaria e às quais devemos ter
uma veneração maior?
A primeira invocação da Ladainha
Lauretana é genérica: Sancta
Maria. Duas outras invocações, que
vêm logo depois, Sancta Dei Genitrix
e Sancta Virgo virginum, a meu ver,
são frisantemente antignósticas.
11
Divulgação (CC3.0)
São Luís Gonzaga - Igreja do Sagrado
Coração, Bilbao, Espanha
Sancta Virgo virginum: Santa que
foi Virgem entre todas as virgens.
Nossa Senhora é de tal maneira Virgem,
que é superior às outras virgens,
como uma virgem é superior a
quem não o é. Quer dizer, tem uma
virgindade tal que, em comparação
a Ela, nada é virgindade. Isso é muito
próprio do espírito contrarrevolucionário
e faz um gnóstico encolerizar-se.
E como o indivíduo de espírito
moderno não é senão a periferia
da gnose, nós podemos dizer que
ele também bufa com isso. Por quê?
Porque a virgindade tem uma porção
de aspectos que causam implicância
a ele.
O primeiro desses aspectos – no
sentido de chamar mais a atenção e
não de ser mais importante – é algo
de segregacionista que existe na virgindade.
A virgindade não se mistura,
não se envolve; ela se mantém a
uma certa distância, não é promíscua;
ela foge às intimidades de qualquer
pessoa, é muito recatada. Se há
uma virtude que cria em torno da
pessoa que a possui uma atmosfera
de recato, de ambiente privado, uma
esfera reservada, é precisamente a
virgindade.
A impureza, pelo contrário, tende
para a promiscuidade, para a banalidade,
para ser um só com todo mundo,
para se misturar com tudo, para
se apresentar em trajes despojados
diante de todos. A impureza é fundamentalmente
coletivista, enquanto
a virgindade inclina-se para o aristocrático.
O puro está para o impuro
numa posição que lembra, até certo
ponto, não a do nobre em relação ao
plebeu, mas em relação ao facínora,
ao condenado às galeras.
Há uma transcendência, uma superioridade
vertical absoluta do puro
sobre o impuro, que tem em si
contidas o padrão de todas as desigualdades,
de todas as diferenciações
legítimas que se poderiam imaginar,
e que a gnose e o igualitarismo
moderno detestam. De maneira que,
já por essa razão, a pureza é execrável
para eles. Sobre pureza e igualitarismo
eu poderia fazer uma conferência
inteira.
Felicidade e bem-estar
da alma pura
Flávio Lourenço
Santa Teresinha do Menino Jesus no Carmelo de Lisieux
Na pureza há outra coisa execrável
para o igualitarismo moderno. Ela
supõe a afirmação da seguinte tese:
quando se fala de uma virgem, tem-
-se a impressão de uma pessoa que
goza de certa dose de felicidade e de
bem-estar interno. Enquanto a virgindade
conduz ao equilíbrio e harmonia
internos, contentamento consigo
mesmo, felicidade que vem de
dentro para fora, de cima para baixo
e enche aquele que é puro, a impureza,
pelo contrário, promove agitação,
instintos desvairados, necessidade de
12
De Maria nunquam satis
encontrar a fonte de prazer fora de si
para se alimentar e, portanto, uma espécie
de permanente insatisfação.
Então na ideia de pureza está envolvida
a seguinte noção: quem não
concede aos seus sentidos o que eles
pedem; quem governa o corpo e não
lhe dá aquilo que ele solicita; quem
leva uma vida relativamente pobre
de prazeres, encontra uma felicidade
que não é a do corpo, mas do espírito,
um bem-estar que não é o físico,
mas é o da alma. Trata-se de
uma harmonia interna, que não tem
nada a ver com os problemas terrenos,
mas se relaciona exclusivamente
com os bens do espírito e da alma.
É uma afirmação primeiro de
existência e depois de domínio do
espiritual sobre o material; de uma
plenitude da ordem pela qual o espírito
existe como uma coisa fundamentalmente
diversa e superior
à matéria. Isso faz urrar os homens
modernos, porque eles vivem para
a matéria e para a carne, não compreendem
prazer nem felicidade que
não sejam os do corpo.
A pureza e os valores
do espírito
Há um pontinho mais fino, difícil
e delicado, que irrita ainda mais
os gnósticos no que diz respeito à
pureza e aos valores do espírito: o
puro encontra felicidade numa situação
interna que não é a espontaneidade.
A pureza não é espontânea,
ela é algo que nós estamos
sempre defendendo contra alguma
investida do adversário, ao contrário
do mundo moderno, que adora a
espontaneidade sob pretexto de naturalidade
e sob o aspecto de horror
a um artificialismo. O espírito
hollywoodiano sobretudo é assim;
todo ator e toda atriz têm uma fisionomia
de quem não possui censuras
mentais, é aquela gargalhada, uma
atitude de alma espontânea, tudo é
uma criançada.
O puro encontra a sua felicidade
no controle e na direção de si mesmo,
que é a mais plena afirmação da
dignidade da pessoa humana. Porque
esta consiste em saber ver, saber
o que quer e o que deve ser, e saber
guiar-se para ser o que se deve ser.
O mais curioso é que, quando se
sobe ao alto dessa montanha, é fácil
ficar em cima. É preciso adquirir
essa pureza e, adquirindo-a, vem
GCI (CC3.0)
Assunção da Virgem - Museu Isabella Stewart Gardner, Boston
13
a harmonia interna, o bem-estar,
aquela satisfação.
O ódio da gnose
à pureza
Em nenhum lugar essa harmonia
é apresentada tão bem
como nas pinturas de Fra Angelico.
Aqueles Anjos que ladeiam
a imagem de Nossa Senhora,
por exemplo, são de
uma pureza que simboliza toda
a felicidade interior do puro.
Ora, a grande mentira do demônio
para os homens de hoje
é: “Sede impuros para serdes
felizes” e, na verdade, aquilo
que o demônio promete é precisamente
o que vai tirar. Então,
se ele promete a felicidade,
o impuro tenha certeza: é
isso que ele não vai ter.
O demônio vai lançar aquela
alma no inferno, no horror de degradação
e de sujeira. Ele vai embrutecer
aquela alma, enquanto
se trata de afirmar exatamente a
superioridade do espírito: nós temos
na castidade o domínio do
material pelo espiritual; o domínio
da alma do homem sobre si
mesma e, em terceiro lugar, ainda
na ordem espiritual, o domínio
do sobrenatural sobre o natural, da
graça sobre a matéria.
Ora, se isso é inteiramente o que o
espírito moderno rejeita, o que o filho
da gnose detesta, como ele deve
ter ódio de haver uma criatura excelsa,
maior que todas as outras, que acima
de Si tem só Deus: Nossa Senhora,
em cuja ladainha há dois títulos se
completando e constituindo para a
pureza uma glorificação sem par!
Maria Santíssima, Virgem
e Mãe: para a pureza, uma
glorificação sem par!
A virgindade tem tudo, ela só não
tem a glória da maternidade. Mas
A Virgem com o Menino - Museu
Cristão de Esztergom, Hungria
Flávio Lourenço
Aquela que foi a Virgem das virgens,
e que, portanto, deveria, pela natureza
das coisas, ser privada da glória
da maternidade, foi, por outro lado,
a Mãe por excelência porque foi
Mãe de Deus. N’Ela, para a glória da
virgindade, até esses opostos coexistiram:
ser a Mãe de Deus – mãe por
obra e graça do Espírito Santo, mas
mãe inteiramente verdadeira –, conservando
intacta a virgindade. É uma
espécie de cúmulo de glória insondável
e que ofusca, quer pela perfeição
natural que apresenta, quer sobretudo
pela obra da graça, que nos deixa
completamente desnorteados.
E aqui está outro ponto de conflito
com a gnose, e, portanto, outro
aspecto contrarrevolucionário
dessas invocações: isso
constitui uma ordem de desigualdade
em toda outra espécie
de bens criados! É o anti-
-igualitarismo levado a uma
plenitude inimaginável. Essa é
a Rainha de todas as criaturas,
Rainha dos Anjos, como Rainha
dos Santos, é a nossa Rainha!
A plenitude da virgindade
coincidiu com a perfeição
da maternidade. Mas uma perfeição
tal que não é a da natureza,
é a da graça.
Compreendemos facilmente
como isso deve nos encher de
admiração e fazer-nos avaliar
melhor qual é a santidade de
Nossa Senhora e que obra-prima
insondável Deus realizou
criando-A. Mas isso deve fazer-
-nos sentir também o aspecto
revolucionário e gnóstico dos
erros que são calcados aos pés
cada vez que católicos recitam
essa ladainha ou olham para a
imagem de uma Virgem que é
Virgem-Mãe, de uma Mãe que
é Mãe de Deus.
“Sancta Virgo virginum, ora
pro nobis”. Para nós isso é tão
banal e às vezes cantado pela
“heresia branca” 1 fica tão abobado,
tão vazio de sentido, que até
se perde a noção da grandeza que
essa invocação contém. Mas, quando
cantado com a voz e os instrumentos
da Igreja, com a piedade
dos verdadeiros fiéis, compreendendo
o que isso quer dizer, é um
brado de tributo e é o esmagamento
de toda espécie de heresia! v
(Extraído de conferência
sem registro de data)
1) Expressão empregada por Dr. Plinio
para designar a mentalidade sentimental
e adocicada que se manifesta
na piedade, na cultura, na arte etc.
14
Reflexões teológicas
Flávio Lourenço
Luta de São Miguel contra os anjos
decaídos - Igreja de São Lourenço,
Sant Llorenç de Morunys, Espanha
Ecos eternos da indignação
sacrossanta do glorioso Arcanjo
São Miguel condensa em si o amor de todos os Anjos bons.
Ele esmagou completamente Satanás e seus sequazes
atirando-os para fora do céu. Assim deve proceder todo
contrarrevolucionário: atacar o mal no que tem de mais
despótico e lutar com tanto amor, ímpeto e ódio, que arraste
atrás de si todos os que amam verdadeiramente a Deus.
São Miguel Arcanjo foi o ponto
de partida da reação dos Anjos
bons contra os anjos ruins.
Tendo sido o primeiro a se lançar na
luta, também a capitaneou. E por causa
disso as imagens costumam apresentá-lo
vestido como um guerreiro
medieval, Satanás calcado aos seus
pés, no ato de ser atirado ao Inferno.
Desse fato tão sintético, tão resumido,
mas ao mesmo tempo tão
cheio de significação, o que podemos
considerar como sendo a mentalidade
de São Miguel?
Um brado de reação que
desencadeou a batalha celeste
Há um primeiro dado que nos levará
a compreender melhor o papel
de São Miguel Arcanjo como chefe
que levantou a reação dos Anjos fiéis.
Afirma-se, a respeito dos anjos rebeldes,
que eles se dividem em duas
categorias: uns que se atiraram desde
logo à rebelião, foram direto para
o Inferno e ali estão; outros cuja
insurreição não foi motivada inteiramente
pelo seu próprio ódio, mas
que se deixaram arrastar, com cumplicidade,
pelos anjos maus. Portanto,
houve uma certa influência dos
anjos revoltados sobre eles.
14
A partir desse dado percebemos
o contrário da ideia que fazemos habitualmente
da natureza angélica.
Os anjos foram susceptíveis de serem
arrastados uns pelos outros. Aí
nós compreendemos o papel de São
Miguel dando o brado de reação no
Céu, com sua exclamação: “Quem é
como Deus?”, e começando ele a expulsar
os outros anjos.
Não significa que os Anjos bons
tenham hesitado ou tenham cometido
qualquer imperfeição. De qualquer
forma, um teve a glória de ser
o primeiro a reagir: esse foi São Miguel
Arcanjo. E foi a reação dele
que pôs em movimento uma porção
de reações, que certamente
também se poriam
sem ele, mas que
se puseram naquele
momento – se é que se
pode falar em momento
quando se trata de
acontecimentos dessa
natureza – dado o brado
dele.
Nos espaços eternos
e infinitos, diante
dos Anjos bons indignados
e horripilados
com a revolta, um
viu mais rapidamente,
um detestou mais imediatamente,
um formulou,
por um brado,
aquilo que em todos
os Anjos fiéis estava
em gestação para
dar numa magnífica
e celeste explosão. Este
teve a palavra que
moveu todos os outros,
que deu a fórmula
que desencadeou a
cavalaria celeste a sair
magnífica e majestosamente
na carga contra
os anjos abomináveis.
E a palavra de ordem
dessa luta, a indignação,
o ódio sacral que
a moveu foi um pensamento de São
Miguel.
O cântico da
inconformidade sagrada
Se nós tomamos em consideração
que os Anjos cantam, ele teve
uma canção magnificamente cantada.
E foi essa exclamação entoada
no Céu que moveu todos os espíritos
angélicos, como quem diz: “É o
que eu penso também, e não pode
durar mais um minuto; vamos para
a luta!” São Miguel teve essa exclamação
magnífica. E a glória dele foi,
portanto, em determinado momento
São Miguel - Igreja de Saint-Sulpice de Fougères, França
ter desatado a Contra-Revolução celeste,
por ordem de Deus evidentemente,
era essa a vontade divina.
Nós podemos então imaginar o
que seria a beleza desse brado ribombando
pelo Céu. Se eu fosse
músico, como gostaria de entoar um
“Quis ut Deus?” que procurasse imitar
na Terra o brado de inconformidade
sagrada, de indignação sacrossanta
e de ordenação perfeita com
que São Miguel saltou em cima de
Satanás.
A luta também deveria ser musicada.
Por quê? Porque está escrito:
“Prœlium magnum factum est in cælo”
(cf. Ap 12, 7), uma grande batalha foi
realizada no céu.
Samuel Holanda
Uma luta terrível
e altamente
simbólica
Para uma pessoa
que não leu nenhuma
interpretação autorizada
a respeito disso
e que comenta apenas
a olho nu, parece querer
dizer que houve realmente
uma luta que,
se fosse de homens, se
chamaria corpo a corpo,
mas, não sendo,
foi de espírito a espírito.
E que, de um modo
misterioso, os Anjos
lutaram de fato contra
os demônios; por
assim dizer, se atracaram
uns nos outros,
uns precipitaram os
outros no Inferno e
a limpeza no céu que
daí decorreu não veio
por uma simples ordem
de Deus, mas o
Todo-Poderoso agiu
por meio dos seus Anjos,
dando-lhes a ordem
para expulsar os
demônios utilizando
15
Reflexões teológicas
suas forças naturais e sobrenaturais
e as interferências de Deus.
Essa batalha, e a maneira como
se deu, deve ter produzido ruído,
não físico, porque os Anjos não
produzem ruídos físicos. Mas engana-se
quem pensa que o mais terrível
e o mais real dos ruídos é o físico.
Exatamente o estrépito do entrechoque
das almas umas contra as outras
deveria ser tal que, a ser transposto
a termos físicos, deixaria o homem
surdo e louco, de tal maneira é
mais forte do que ele, superior e incompreensível.
Esse estrépito não foi como o de
dois homens que lutam, pois os Anjos
estão muito mais próximos de personificar
as próprias virtudes do que
os homens. E por causa disso, a luta
entre os Anjos foi muito mais terrível,
mas também muito mais simbólica,
muito mais admirável do que um
mero combate entre seres humanos.
Dois indivíduos que
representam a causa
de dois exércitos
Eu procurarei me exprimir melhor
através de um exemplo. Não
houve mercenário nas Cruzadas, pelo
menos tanto quanto eu me lembre,
mas vamos dizer que um soldado
mercenário esteja lutando nas
Cruzadas. Ele sabe que, se tomar
Damieta ou Jerusalém, por exemplo,
ele ganha tanto. Tal soldado luta,
portanto, com o ódio de quem tem
vontade de ganhar dinheiro. Mas ele
não simboliza de nenhum modo a
causa à qual está servindo, pois não
tem amor a ela; nele não se reflete a
nobreza nem a santidade da causa. É
um homem pago.
Imaginemos que ao lado dele
combate contra os sarracenos não
um homem pago, mas um São Luís
IX, com todo o furor e indignação
do ódio religioso, do amor de Deus.
E o Santo Rei cruzado luta contra
um maometano que odeia a Deus
tanto quanto ele, São Luís, ama-O.
Isso resultaria num embate ultrassimbólico,
porque em cada um transpareceria
tudo da causa que representa.
Em tese, o entrechoque poderia
ser desses tais como havia em certas
batalhas medievais, nas quais
todos paravam de lutar para ver os
dois combaterem. Era a causa da
Cruz contra a do Crescente. Era o
amor de todos os homens que lutavam
pela Cruz contra o ódio de todos
os que pugnavam pelo Crescente,
simbolizados na luta daqueles
dois indivíduos, porque eles representam
dois exércitos. Essa seria
uma pugna muito mais expressiva,
muito mais tremenda do que a
de dois exércitos. Ora, assim seria a
luta de dois anjos.
Samuel Holanda
São Luís na Batalha de Taillebourg, 1242 - Galeria do Palácio de Versailles, França
16
Flávio Lourenço
Triunfo e glorificação
de São Miguel
O anjo, por sua própria natureza,
está muito mais próximo e adequado
a representar uma causa do que
o homem, tanto para o bem quanto
para o mal.
Na batalha celeste, todos os anjos
lutando uns contra os outros, de
um lado havia fragores, aclamações
de amor a Deus, protestos, atos de
reparação, de amor, de ação de graças,
de pedido a Deus pela vitória; e
do outro lado, blasfêmias. Os Anjos
bons revidando contra as blasfêmias,
espancando; e os anjos maus tentando
espancar também os Anjos bons.
E no cerne dessa luta, no centro,
São Miguel e Satanás. São Miguel
São Miguel - Catedral de São Pedro
e São Donato, Arezzo, Itália
Deus Pai - Museu Unterlinden,
Colmar, França
Flávio Lourenço
condensando em si o amor de todos
os Anjos bons, dando brados que cobriam
o campo de batalha angélico
e que glorificavam a
Deus mais do que qualquer
outro brado, e ouvindo
os gritos de Satanás,
enfurecendo-se
contra eles e revidando-os.
Imaginemos que
São Miguel seja o primeiro
a precipitar no Inferno
a Satanás, e este arraste,
pela força da gravidade, todos
os seus sequazes, os quais começam
a escorrer sob as pancadas dos
Anjos bons, como a água suja escorre
pelo ralo. Quando os últimos demônios
saíram do céu, este brilhou
diáfano, em paz de novo. E São Miguel
foi comparecer diante de Deus,
que assistia comprazido o combate,
apresentando as “tropas” vitoriosas.
Deve ter havido algo como o que
um rei faz com um general que ganhou
a guerra, uma glorificação do
Arcanjo, em que todos cantaram o
seu triunfo, e ele se sentou no seu
trono por toda a eternidade.
Não sei se será teológico: quem
sabe se São Miguel era um anjo de
uma categoria inferior à de Lúcifer e
se Deus deu o trono desse revoltado
para São Miguel ocupar, e ainda realçou
esse trono com belezas e grandezas
que não tinha antes. É possível.
Foi entoado, então, o cântico final,
o cântico de todos os Anjos
aclamando São Miguel; e a bênção
de Deus Pai, Filho e Espírito Santo
Todo-Poderoso desceu sobre ele. O
glorioso Arcanjo, unido à Santíssima
Trindade e vendo n’Ela verdades, esplendores
e magnificências face a face,
inenarráveis até para Anjos de
uma categoria inferior, recebeu ali
um prêmio cuja grandeza nós nem
podemos imaginar.
Nenhum triunfo de general, em
todos os tempos, nem a passagem
sob o Arco do Triunfo de Paris, nenhuma
vitória de Carlos Magno, sequer
a entrada dele em uma de suas
capitais depois de uma guerra, nem
de longe, pode ter representado o
que foi a glória de São Miguel.
Dois episódios que superam
a glória de São Miguel
Eu imagino, no Céu, só dois episódios
capazes de se comparar por
superação à glória de São Miguel.
O primeiro foi no momento em que
Nosso Senhor Jesus Cristo, depois
da Ascensão, entrou no Céu levando
consigo todas as almas que estavam
no Limbo; aí deve ter havido
uma festa simplesmente inimaginável.
E eu me comprazo em imaginar,
com uma probabilidade que toca na
certeza, que Nossa Senhora viu tudo
isso, e que Ela, embora o seu corpo
estivesse na Terra, foi levada ao Céu
para ser louvada e glorificada nessa
ocasião também.
O segundo episódio foi quando
a Santíssima Virgem entrou no Céu
para ser coroada e ocupou o trono
que Lhe estava reservado desde toda
a eternidade. Fora disso, eu não
17
Reflexões teológicas
posso imaginar na glória
celeste coisa comparável
a essa glória de São Miguel.
Aí está uma biografia,
um tanto hipotética,
mas muito verossímil de
São Miguel, como foi o
papel dele durante a luta,
como foi a sua glorificação.
E essa glorificação
naturalmente dura
por toda a eternidade,
porque no Céu não há
o dia seguinte da festa,
em que se faz o chamado
“enterro dos ossos”, 1
ainda meio fruindo qualquer
coisa, meio lamentando
que a festa tenha
acabado. No Céu, essas
comemorações deixam
ecos eternos. E quando
a Igreja celebra São
Miguel na Terra, talvez
também se renove toda
essa festa no Céu.
Em face do mal,
devemos ser como
São Miguel
Luis C.R. Abreu
Vem, então, a comparação
conosco, o nosso
papel, a nossa missão.
Em São Miguel devemos
admirar essa vigilância
e essa prontidão
de espírito pelas quais
ele foi o primeiro dos
primeiros, ninguém teve dianteira
sobre ele, em discernir, em detestar
e em atacar.
Nós também devemos ser assim:
desejar, em face dos adversários da
Igreja, de Nossa Senhora, de Deus
Nosso Senhor, ser os primeiros, os
mais prontos, os mais imediatos em
perceber quem é o inimigo e qual é a
ação dele, discernir por que um indivíduo
é ruim. Devemos ter uma voz
capaz de denunciá-lo, de increpá-lo
Assunção de Nossa Senhora - Museu de Capodimonte, Nápoles
de tal maneira, que todos os bons se
levantem.
Na Oração Abrasada, de São Luís
Maria Grignion de Montfort, há
uma linda oração, uma súplica, ou
melhor, um lindo apelo em que ele
diz: “Quem for do Senhor, junte-se
a mim!” (cf. Ex 32, 26) Ele se sentia
sozinho, e havia muita gente que
era mais ou menos de Deus, mas
que não se juntava a ele. Porém, São
Miguel teve uma voz tão forte que
quem era de Deus juntou-se
a ele.
Então, que tenhamos
uma voz tal, não a
física, não a da laringe,
mas é o dizer as coisas
tão na sua essência, com
tanta verdade, com tanto
amor, com tanto ímpeto
e com tanto ódio,
que arraste a todos os
que amam aquela verdade
a que tenham aquele
ímpeto, aquele amor
e aquele ódio. Que tenhamos
a fórmula certa,
precisa, pela qual nós jogamos
todos na luta. Depois
desçamos ali, para o
que entre aspas eu chamaria
o “corpo a corpo”.
São Miguel não perdeu
o seu tempo atacando
estes ou aqueles. Ele
foi a cabeça da Contra-
-Revolução. Ele esmagou
completamente, atirando
fora do céu a Satanás. Foi
o aplicador, o executor da
maldição de Deus.
Bem podemos imaginar
o resmungo no Inferno
por toda a eternidade,
o ódio, a vergonha,
a confusão de Satanás
e seus asseclas quando
chega a festa de São Miguel
e eles comprovam
que, por toda a vastidão
da Terra, a Igreja Santa
canta ao glorioso Arcanjo. Também o
ódio, a vergonha e a confusão dos demônios
espalhados pelos ares, todos
eles inibidos na sua ação.
Por fim, no Céu, São Miguel está
brilhando, e os rugidos de Satanás
ainda sobem como manifestação
da glória dele. “Olhai lá o miserável
que ruge. Olhai as penas complementares
que os ímpios têm. Até
nisso há uma glória para vós, ó São
Miguel!”
18
Gabriel K.
Nós devemos ser como São Miguel,
atacarmos o mal na sua causa
mais ativa, na sua ponta de lança,
no que tem de mais despótico. E
lutar de tal maneira que, no combate,
à medida que o adversário acentue
as blasfêmias, nosso amor cresça,
não diminua, que não fiquemos inseguros,
mas, pelo contrário, lutemos
mais. E, de ponto em ponto, chegará
o momento em que nosso amor
seja tão maior que o ódio deles, que
eles se precipitem no Inferno. É uma
coisa magnífica! Assim nós devemos
ser, isso nós devemos pedir.
Mais: com certeza São Miguel pediu
o tempo inteiro ao Todo-Poderoso
que o ajudasse; ele rezou durante
todo o tempo que lutou e sua vitória
foi uma vitória de Deus. Ele voltou
radioso de glórias, mas despretensioso,
glorificando o seu Criador que é,
São Miguel - Catedral de
Glócester, Inglaterra
não só a fonte, mas a própria essência
de toda verdade, de todo bem e
de toda beleza.
Ação de Maria Santíssima
no Prœlium Magnum
Alguém dirá: “Dr. Plinio, dentro
desse quadro falta Nossa Senhora”.
Realmente eu tenho um propósito,
a que raras vezes falto e quando
falto é por causa de minha péssima
memória, de nunca falar em público
sem ao menos fazer uma referência
a Nossa Senhora, mais extensa
ou menos, conforme a natureza
do assunto e as circunstâncias comportem,
mas falar d’Ela. Eu quereria
ser fiel a esse propósito aqui entre os
meus filhos, lugar por excelência onde
deve ser-nos grato falar ou ouvir
falar d’Ela.
Pode-se perguntar: como fez São
Miguel se ele não tinha a intervenção
de Maria Santíssima, pois Ela estava
ausente?
Nós sabemos que Nossa Senhora
foi mais imediatamente a razão
da discórdia. Satanás ficou indignadíssimo
porque lhe foi revelado que
o Homem-Deus, com as duas naturezas,
divina e humana numa só Pessoa,
deveria ser adorado por ele por
ocasião da Encarnação do Verbo.
Mas ele ficou ainda muito mais indignado
quando soube que uma simples
criatura humana, porém a mais
alta das criaturas, a Santíssima Virgem,
que já não tem união hipostática
com Deus, seria Rainha dele e teria
que receber o culto dele.
São Miguel aceitou junto com os
Anjos bons. Os anjos maus recusaram.
Então, eu acredito que São Miguel
terá pedido a Deus, em união
ou contando com as preces de Nossa
Senhora para ele vencer – porque
ele lutava pela glória d’Ela – de maneira
que a intercessão d’Ela provavelmente,
eu quase diria certamente,
de algum modo esteve presente.
Nossa Senhora do Apocalipse (coleção particular)
Quando Maria Santíssima começou
a ter o uso da razão, creio que
uma das coisas que Ela conheceu logo
no início foi o cântico de São Miguel
contra Satanás e suas blasfêmias,
e aclamou aqueles que haviam
lutado a favor d’Ela.
Se isso é verdade, como é belo
imaginar, em sua vida, Ela recebendo
uma revelação e rezando pela vitória
de São Miguel já realizada no
Céu, e associando-se a essa luta, Ela
que esmagou a cabeça da serpente.
Isso é uma verdadeira maravilha!
São Miguel reivindicou
a ordem e a hierarquia
Se São Miguel nos aparecesse,
qual seria a impressão que ele produziria
sobre nós?
Flávio Lourenço
19
Reflexões teológicas
Flávio Lourenço
Uma impressão rutilante de lutador,
não há dúvida. Mas lutador pelo
quê? Porque não basta ser lutador
para ser bom, é preciso lutar pelo
bem. Senão, do que vale ser lutador?
Não vale de nada. Então, ele produziria
sobre nós a impressão fundamentalmente
ordenativa de um lutador
pelo bem.
O “Quem como Deus?” era o
brado de quem reivindicava a ordem
contra o revoltado por excelência.
Como se dissesse: “Deus é como
ninguém, e você que saiu de sua
categoria, do papel que lhe compete
para, arrogantemente, querer ser
mais do que lhe toca; você tem que
ser esmagado, porque rompeu a ordem
posta por Deus na natureza de
todas as criaturas. Você foi um violador
da ordem na sua revolta contra
Aquele que é a fonte e a explicação
de toda ordem. Se Ele não existisse,
não haveria ordem. Ele é Deus
Nosso Senhor”.
Portanto, foi um brado repressivo
da desordem e defensor da ordem
hierárquica, segundo a qual um é o
Ser infinito, perfeito, é tudo, e outros
são criaturas contingentes que
dependem d’Ele e devem aceitar a
sua soberania, inclusive quando Ele
manda que adorem o Homem-Deus
e que prestem o culto de hiperdulia
Àquela mera criatura que será a
Mãe de Deus.
Satanás fez uma desordem e rompeu
a hierarquia. São Miguel reivindicou
a ordem e afirmou a hierarquia.
Esse é o pensamento fundamental
dessa luta, a qual é, no fundo,
uma “RCR” bem-aventurada, pois
Dr. Plinio em 1975
a Contra-Revolução destroçou para
todo o sempre a Revolução.
São Miguel despertaria em nós
um senso de zelo por todas as hierarquias,
por todas as categorias, como
sendo o modo de estabelecer a ordem,
como sendo a própria ordem.
Ele, então, poria em ordem nossos
próprios seres segundo esta hierarquia
interna: a fé inspirando todos
os nossos atos, a inteligência e a razão;
a razão dominando, orientando
e guiando a vontade; esta dominando
a sensibilidade. Por fim, os homens
seriam colocados nas respectivas
hierarquias uns com os outros e
em relação com Deus. E aí, São Miguel
cantaria de felicidade o “Quis ut
Deus?”, como cantou de indignação
quando viu que havia anjos revoltados
contra isso.
Altíssimos e misteriosos
desígnios de Deus
Arquivo Revista
São Miguel e os Anjos adorando a Cristo Rei - Museu de Belas Artes de Valência, Espanha
Alguém perguntará: “Por que a
Divina Providência suscitou São Miguel
e não um Querubim ou um Serafim?”
Sobre a posição exata de São Miguel
no Céu, o assunto não está in-
20
teiramente claro, parece haver discussão
entre os teólogos. Mas a Providência,
às vezes, faz ações dessas
com um desígnio que só depois compreendemos
e achamos belo.
Também se poderia perguntar
por que não houve união hipostática
com um Anjo. Poderia ter havido
com o mais alto dos Anjos. Mas, não,
foi com um homem.
Por que isso? A doutrina da Igreja
o explica. 2 O homem é espiritual
como o Anjo; de outro lado, é animal
no seu corpo, além de conter um
princípio vegetal e mineral. De maneira
que todo o universo está representado
no homem. E Deus, unindo-Se
hipostaticamente ao homem,
honrava mais o universo inteiro.
Ou seja, não é necessário que o
mais alto receba sempre a maior
honra. A ordem imposta por Deus
é tão magnífica que, às vezes,
tem uma excelência não geométrica,
na qual entra algo que
eu não chamaria de fantasia
– a expressão não seria
respeitosa –, mas que para
o homem tem o aspecto
de fantasia, com umas belezas
que excedem a tudo.
No Céu nós compreenderemos.
O que pedir a
São Miguel Arcanjo?
Luis C.R. Abreu
Prœlium Magnum (coleção particular)
Nós devemos ter o espírito
eminentemente ordenativo
e hierárquico, e
quando queiramos pedir
para ter esse espírito e sintamos
nisso alguma dificuldade,
devemos recorrer
à intercessão de São Miguel
para afastar os demônios
que nos levam à complacência
pândega e displicente,
a essa influência relativista
e relaxada em face
dessa ordenação. Que sejamos
tais que qualquer desordem,
qualquer violação da hierarquia
sobretudo, nos fira e nos indigne;
assim como toda manifestação
de ordem nos alegre, nos contente
e entusiasme.
Dessa forma nossa vida será um
contínuo “Quis ut Deus?” até o momento
em que cada um de nós, em proporções
quão mais modestas do que as
de São Miguel, mas autênticas, for coroado
também no Céu, pois subirá à
glória eterna com palavras como as do
Apóstolo São Paulo, as quais eu reputo
de uma beleza perfeita. Pouco tempo
antes de ser decapitado, ele disse estas
palavras: “Combati o bom combate,
completei a carreira que deveria completar.
Senhor, dai-me agora o prêmio
de vossa glória” (cf. 2Tm 4, 7-8).
Parafraseando São Paulo, nós seremos
outros São Miguéis que poderemos
dizer no fim da vida: “Combati
o bom combate, percorri todo o
esforço dessa corrida enorme, dessa
pista que eu deveria correr. Senhora,
agora, por vossa misericórdia, dai-
-me o prêmio de vossa glória. E antes
de todo esse prêmio excelso, dai-
-me um olhar, um sorriso vosso, uma
penetração de minha alma na vossa
alma sacratíssima, para que lá
eu possa penetrar até Deus Nosso
Senhor”.
Encerro pedindo a São
Miguel que nos dê a graça
de sermos inteiramente
hierárquicos até a pugnacidade,
e pugnazes até
a vitória. Na hora da vitória,
estejamos voltados exclusivamente
para Deus e
atribuindo a Ele toda a glória
que merece, da mesma
forma como o glorioso Arcanjo
amou tanto e tanto
a Nossa Senhora, que ele
Lhe foi fiel até antes de Ela
ter nascido. v
(Extraído de conferência
de 30/9/1975)
1) No Brasil, expressão que
designa o dia seguinte a uma
festa, no qual se servem as sobras
da comida e da bebida do
dia anterior.
2) Cf. SÃO TOMÀS DE
AQUINO. Suma Teológica.
III, q.4, a.1.
21
Hagiografia
O bom espírito, causa
da união entre os
membros da Igreja
Samuel Holanda
Envolvendo virtudes que parecem
antitéticas, a alma do grande São
Vicente de Paulo, ao mesmo tempo
tão combativa e tão compassiva, é
o exemplo perfeito do bom espírito
daquele que adere com a inteligência
e a vontade, sem infiltrações de
preferências pessoais, a todos os
princípios da Santa Igreja.
Muitas vezes eu me tenho
perguntado qual
é a razão da união de
almas que caracteriza tão especialmente
o nosso Movimento; união
que se traduz numa concórdia na
ação e na vida cotidiana, que é uma
das nossas maiores graças.
A união, uma grande graça
Várias vezes, recebendo visitantes
da Europa, mais de um me disse:
“Agradeça a Deus essa união que
reina aqui e peça sempre que Ele
continue a dá-la”. Eles se impressionam
com aquilo que há de compacto
e de maciço no Grupo.
22
São Vicente de Paulo
Igreja de Saint-Séverin, Paris
Isso me faz lembrar um sacerdote
da Paróquia de São Vicente, perto
de Santos, que me perguntava uma
vez se eu não podia entregar-lhe
nosso regulamento. Eu disse:
— Não temos regulamento.
Ele, acreditando pouco no que eu
dizia, insistiu:
— Eu queria que o senhor me
desse pelo menos o artigo que atribui
poderes ao senhor, para ver como
mantém todos unidos.
— Não há regulamento, não existe
esse artigo.
— Como?
Eu nem soube o que responder.
Porque essa união é uma graça tão
grande e é um fato tão natural, que
nem me passou pela cabeça como
lhe explicar isso.
União com base em
princípios supremos, livre
de caprichos pessoais
De fato, quando há um mesmo espírito
e quando este procura ser e é
inteiramente bom, ortodoxo, quando
nele não entram infiltrações de preferências
pessoais, de manias, de caprichos
individuais, mas nele a alma procura
conhecer e aceitar por inteiro a
Revelação, o Magistério da Igreja, e
modelar-se segundo o ensinamento
recebido e não segundo si mesma,
quando esse espírito se desenvolve ao
calor da devoção a Nossa Senhora,
existe algo que é mais eminente do
que uma humilde doutrina, que é a
profissão ardorosa, entusiástica, sem
restrições, incondicional de alguns
princípios supremos, dos quais todos
os outros princípios decorrem por via
de consequência.
Isso é o bom espírito, a união inteira
da inteligência e da vontade
nesses princípios que traz a adesão
aos outros princípios secundários, e
que faz também a coesão na ação.
A propósito disso, eu gostaria de
comentar algo sobre o espírito de
São Vicente de Paulo.
Desfazendo o mito
da incompatibilidade
entre as virtudes
São Vicente de Paulo era, ao mesmo
tempo, o Santo da combatividade
e da caridade. Da combatividade em
dois terrenos: o doutrinário, no qual
combateu os jansenistas com meticulosidade,
política, tática e estratégia.
Ele os combateu em Roma, na corte
do Rei da França, na nobreza, no clero,
no povo, de todos os modos possíveis,
com sua imensa influência pessoal.
Além da combatividade intelectual
ele também quis armar uma cruzada
contra Túnis e, nesse sentido, dirigiu-se
ao Rei de França.
Ao mesmo tempo, era o Santo
da caridade, da compaixão. Encontramos
nessa conjunção uma rara e
alta manifestação de bom espírito.
Porque, segundo a opinião corrente,
quem é muito combativo, não é muito
compassivo, e quem é muito compassivo,
não é combativo.
Dr. Plinio com seus discípulos, em 1965
Como nós somos muito combativos,
chegam à conclusão que nos falta
compaixão. Dizem que somos duros,
severos, vingativos, temos em nossa
alma toda a maldade que eles atribuem
aos inquisidores, a Torquemada
1 e ao grande São Pio V, 2 por exemplo.
Trata-se de destruir esse mito.
Quem é verdadeiramente compassivo
é combativo. Quem é santamente
combativo é compassivo. Se a combatividade
e a compaixão são virtudes,
não pode haver entre elas uma
incompatibilidade. Pelo contrário, todas
as virtudes são irmãs, revertem
umas nas outras. Imaginar que uma
pessoa possa ter uma virtude e por isso
não tenha a virtude oposta, é ignorar
o bê-á-bá da virtude.
O bom espírito consiste, isto sim,
em ser combativo contra aquilo e
aqueles que se deve combater e nas
horas certas, com toda a energia; ser
compassivo para aqueles com quem
se deve ter compaixão, nas horas em
que é necessário e na medida em
que é preciso.
Arquivo Revista
23
Hagiografia
Vê-se bem isso na
índole da Igreja, que
ao mesmo tempo
instituiu as ordens
de cavalaria e as ordens
de enfermeiros
e enfermeiras, que
curam as feridas.
Pode-se conceber
perfeitamente um
exército católico com
uma ordem de cavalaria
para ferir os adversários,
e depois
uma ordem de irmãs
de caridade para cuidar
desses feridos com
as devidas cautelas, e nos termos necessários,
sem humanitarismo. O verdadeiro
católico ama o bem sob todas
as formas, e como o bem é difusivo
de si, ele é compassivo.
Uma indomável
combatividade pode e
deve coexistir com uma
meticulosa compassividade
Mas não é possível amar o bem
sem odiar o mal. Qualquer amor ao
bem que não redunde em ódio ao
mal, não é verdadeiro. Se uma pessoa
ama o bem, pela mesma razão
pela qual é combativo, é compassivo.
Gabriel K.
Cenas da vida de São Vicente de Paulo - Igreja
de São Vicente de Paulo, Paris
Uma indomável, feroz e tremenda
combatividade pode e deve coexistir
com uma dulcíssima e meticulosa
compassividade, desde que esta
não signifique pactuar com o mal,
consentindo que ele continue quando
deve morrer, ou que continue
atuando, pelo menos ferido e incompleto,
quando ele deve ser exterminado
radicalmente. Consentir que
lhe restem algumas armas na mão,
restos de prestígio, de influência.
Contra o mal, a ofensiva deve ser inteira
para desarmá-lo por completo.
Fora dessa medida, a mais requintada,
extrema, e delicada suavidade é
o corolário da combatividade.
Eliminado até em suas sementes,
arrasado o mal e negados a ele todos
os quartéis, humilhado,
destroçado,
privado de todos
os meios de ação
e de todo o prestígio
em toda a medida em
que seja possível neste
vale de lágrimas, o
resto é tarefa da compaixão.
Na junção dessas
duas coisas entendemos
o que é o bom espírito,
envolvendo virtudes
que parecem
antitéticas, mas que
são uma só virtude.
Isso nos explica a alma do grande
São Vicente de Paulo, ao mesmo
tempo tão combativa e tão compassiva,
igual a de todos os outros Santos,
inclusive dos cruzados, dos Santos
inquisidores e dos que fundaram
ou se santificaram em Ordens de Cavalaria.
v
(Extraído de conferência de
20/7/1965)
1) Tomás de Torquemada (*1420 - †1498).
Alcunhado o Grande Inquisidor, Inquisidor-Geral
espanhol.
2) De nascimento chamado Antônio
Ghislieri; foi o 225º Papa, governou a
Igreja de 1556 até sua morte em 1572.
Foi também inquisidor.
Gabriel K.
Relicário de São Vicente de Paulo - Igreja de São Vicente de Paulo, Paris
24
gallerix.ru(CC3.0)
Denúncia profética
A cavalaria do espírito
Batalha de Fontenoy
Galeria do Palácio de
Versailles, Paris
Cavaleiro é o guerreiro católico no esplendor de sua virtude e de
toda sua capacidade. Ele deve ter uma penetração, uma dedicação,
uma combatividade de alma para, a todo momento, discernir a
Revolução e combatê-la. Isso supõe que quem luta precisa ter
finura, perspicácia e garra para combater as batalhas do espírito.
A
iniquidade e o mal se requintaram
com a eclosão da
Revolução. Por causa disso,
teria sido necessário que houvesse, já
naquela ocasião, cavaleiros mais valorosos
do que no tempo de Roland.
Por que o mal se requintou? Porque
ele contou no seu serviço com
militares mais valentes, com generais
mais competentes? É uma questão
para discutir. Mais valentes, não
creio; talvez mais competentes sim,
porque da mesma forma como a cultura
e a civilização foram se desenvolvendo,
também a arte militar foi se
aprimorando. De maneira que se pode
concluir que ela avançou muito,
mas a Cavalaria não cresceu com isso.
Um exemplo de guerreiro
que não chegou a ser
verdadeiro cavaleiro
Eu me lembrei disso intensamente
quando fui visitar o Castelo
de Chambord, na França. Um
dos últimos senhores desse castelo
foi um Marechal da França, Maurice
de Saxe, 1 aparentado com o
Rei. Ele era um general extraordinário,
que ganhou muitas batalhas;
o Rei travou uma série de guerras
e ele o ajudou a vencê-las. Mas todos
percebiam que a Europa entraria
numa longa era de paz e esse homem
ficaria, portanto, durante muito
tempo, sem as responsabilidades
de uma chefatura militar. Já velho,
ele provavelmente não serviria mais
na guerra. Então o Rei quis dar-lhe
uma grande recompensa. Sendo um
homem de muita categoria, parente
do próprio Rei, não havia mais nada
para dar a ele, nem mesmo títulos
de nobreza, porque já tinha tudo.
Então o Rei tomou o Castelo de
Chambord e deu-o de presente para
o Marechal.
Era o castelo que tinha sido dos
antigos reis da França, e que não estava
ocupado nessa ocasião. É uma
verdadeira maravilha! Pode-se sustentar
que ele é mais bonito que Versailles.
Sabe-se por historiadores sérios
do tempo que esse guerreiro fortíssimo
tinha uma doença contraída
em razão de sua vida dissoluta… Essa
enfermidade provocou-lhe uma
tal podridão, que as pontas de seus
dedos iam caindo… Ele não podia
mais segurar as rédeas do cavalo e
então ele guerreava deitado de bruços,
numa espécie de caminha de vime,
apoiado nos cotovelos que ainda
estavam intactos.
Por causa dessa moléstia, quando
ele fazia um gesto dando uma ordem,
apareciam aqueles dedos moles,
porque os ossos lhe saíam pela
carne… Era assim que ele comandava
os soldados a avançarem. Esse é
um cavaleiro? Não! Isso não é mais
a Cavalaria! Ele é um guerreiro; um
cavaleiro ele não é!
25
Arquivo Revista
Denúncia profética
Dr. Plinio diante do Castelo de Chambord, em outubro de 1988
O verdadeiro cavaleiro
O que é ser verdadeiro cavaleiro?
É o guerreiro católico no esplendor
de sua virtude, no esplendor de toda
sua capacidade! Esse é o verdadeiro
cavaleiro.
Em primeiro lugar: os cavaleiros
desapareceram; em segundo lugar, a
guerra se transformou.
A Revolução é muito mais apodrecedora
dos caracteres do que conquistadora
por tiros. Por exemplo, o mal
que uma televisão faz é incomparavelmente
pior do que o bem que poderia
fazer um exército de cruzados. E isso
numa noite! Mas não adianta reprimir
a televisão à força, porque fazem
outra… organizam uma clandestina e
recomeça tudo. O que é preciso é ganhar
as batalhas do espírito.
Essas batalhas do espírito supõem
que quem luta tenha toda a finura,
a penetração, o espírito profético,
a garra para lutar e combater nessas
batalhas, de maneira a ganhá-las!
Mas isso exige maior dedicação e
muito mais entrega do que precisa ter
um guerreiro comum, porque este vai
para a guerra, volta, se deita na cama
e fica esperando outra batalha…
Na batalha do espírito não! Nela a
luta é noite e dia, noite e dia…
O cavaleiro do século XXI
Por exemplo: um homem vai a uma
loja comprar uma caixinha para guardar
clipes sobre sua mesa de trabalhos;
pode ser que lhe ofereçam um
objeto com certa influência revolucionária:
ele deve recusá-lo. Ele vai a outra
loja comprar um par de sapatos;
precisa observar se eles são revolucionários.
Passa uma pessoa e o cumprimenta;
ele tem que analisar se esse
cumprimento não foi um gesto revolucionário.
Ele deve estar habilitado
a ver o sentido da Revolução, percebê-la
e repeli-la em tudo; do contrário,
ela entra e toma conta da situação.
O cavaleiro do século XXI, ou seja,
o homem da Contra-Revolução,
deve ser tal que tenha isso profundamente
entranhado no espírito; que
tenha uma dedicação à causa contrarrevolucionária
a bem dizer quase
sem exemplos; que em todo momento,
em toda ocasião, saiba ver a
Revolução e a Contra-Revolução. Se
ele não fizer isso, pode fazer o que
quiser, quando ele comparecer perante
Deus, atrás dele estarão várias
portas abertas através das quais
a Revolução entrou.
Analisemos, por exemplo, a situação
de um pai: se ele não incutir esse
espírito em todos os seus filhos, que
netos ele terá? Se um pai simplesmente
relaxar nesse ponto, pode ser
que seu filho se torne um colosso da
Revolução. E como ele vai dar conta
disso diante do juízo de Deus?
Tudo isso é uma coisa fantástica,
mas supõe uma perspicácia, uma penetração,
uma dedicação, uma combatividade
de alma que é maior que
a do guerreiro. E para isso nós fomos
chamados! De que adiantaria termos
nascido e vivermos, se quando morrermos
deixarmos abertas atrás de
nós as portas por onde a Revolução
volta? Poder-se-ia dizer o que Nosso
Senhor afirmou: “Melius erat illi si natus
non fuisset – teria sido melhor para
ele não ter nascido!” (Mt 26, 24).
O contrarrevolucionário
deve desconfiar do inimigo
até no auge da vitória
E como é isso dentro do Grupo?
Todos estão lutando, levam aqui dentro
uma vida difícil, com uma série de
restrições; mas sabem bem que um
que conserve certo hábito revolucionário
está passando esse hábito para
outros e, com isso, pode entrar o espírito
da Revolução inteiro. Já calcularam
a dedicação que precisariam ter?
Eu digo “precisariam”, porque nem
sempre temos… E do que serve uma
obra contrarrevolucionária onde está
aninhado o espírito revolucionário?
Então, nas menores coisas, o cavaleiro
do século XXI deve estar
com o espírito atento, desconfiado.
E desconfiado até no auge da vitória,
porque pode parecer que a Revolução
teve uma derrota tal que nem
adianta pensar mais em Contra-Revolução,
os otimistas vão se deitar
e descansar… No dia em que o primeiro
otimista deitar para descansar,
a Revolução põe a cabeça fora.
26
Então, qual é o resultado? É que
os cavaleiros do século XXI terão
que ser, por excelência, os homens
dedicados a essa tarefa.
Nós não podemos imaginar que um
país inteiro se dedique a essa tarefa se
não houver um punhado de homens
que seja tão excelente nela, que dê o
exemplo para todos os outros.
O cavaleiro medieval foi o paradigma
do cavaleiro de todos os tempos.
Esperamos que no Reino de
Maria os cavaleiros sejam mais paradigmáticos
ainda!
A decadência da Cavalaria se
deu pela falta de vigilância
Dir-se-á: “Mas o cavaleiro do século
XXI é superior aos cruzados?”
Não tem comparação! Os cruzados
são admiráveis, mas uma parte
da decadência da Ordem dos Templários,
por exemplo, veio dessa falta
de vigilância: nos intervalos da guerra
com os mouros, eles eram convidados
pelos árabes para ir às cidade
dos inimigos a fim de ver o luxo
que havia lá; como era tudo bonito:
os tapetes, as cortinas, as almofadas,
os mármores e tudo mais…
Granada, por exemplo. Até aquela
data, os palácios dos mouros eram
muito mais bonitos que os dos Reis
da Espanha. Hoje ainda rivalizam.
Os cristãos olhavam aquilo e se encantavam.
E o árabe dizia-lhes:
— Fique com esse tapete, leve-
-o… dê para o seu chefe, diga que eu
mandei para ele. Olhe aqui esta almofada;
quando você estiver cansado,
estenda-se, ponha a cabeça aí e
veja como ela é leve…
— Ah, muito obrigado!
O homem ia visitar a cidade inimiga
e voltava com os braços carregados
com o peso da própria derrota!
O resultado disso foi que as residências
dos Templários começaram
a se encher de objetos lindos, de cristais
maravilhosos, de pratarias que
os árabes lhes presenteavam. Eles
sabiam que estavam se intoxicando.
O que faltou? Os superiores não tiveram
perspicácia para ver isso.
A responsabilidade do
contrarrevolucionário
no Reino de Maria
No Reino de Maria, depois de a
Revolução estar derrotada, se a responsabilidade
de uma Sede do Grupo
devesse estar no ombro de cada
um, alguém se sentiria capaz de todas
as perspicácias, de todos os discernimentos,
de todas as intransigências
necessárias? Eu receio muito
que não. Mas como é que isso vai
para a frente, então? Eu sei a resposta:
“Não, nós nos apoiamos em Dr.
Plinio”. Não se iludam! Dr. Plinio
vai morrer, e se os espíritos não estiverem
muito em ordem, no dia da
morte dele haverá gente que sentirá
um alívio… Não tenham ilusão! E, a
partir desse alívio, o que vem? Vem
a Revolução. É uma coisa evidente.
E nós estamos então preparados
para isso? Até que ponto somos cavaleiros?
É uma pergunta que, em
seriedade de consciência, não se pode
deixar de pôr.
Quando se gosta de rir, de brincar,
de ser folgazão e não se é uma
pessoa séria, o que pode acontecer?
Só pode dar em ruína! Então devemos
pedir a Nossa Senhora esse alto
espírito de Cavalaria, que é a trans-
-Cavalaria! É, por certo, a Cavalaria
do corpo, mas é muito mais a Cavalaria
do espírito!
v
(Extraído de conferência de
11/9/1989)
1) Filho ilegítimo de Augusto II, Rei da
Polônia. Viveu de 1696 até 1750.
Arquivo Revista
Arquivo Revista
Dr. Plinio durante conferência em setembro de 1989
27
Dr. Plinio comenta...
Tomas T.
Entusiasmo, tédio
e conversão na
vida espiritual
Quando um ateu se torna católico, ou alguém que
leva uma existência de pecado passa a viver na graça
de Deus, afirma-se que tais pessoas se converteram.
Entretanto, também os bons devem pedir a graça da
“conversão”, ou seja, mudança muito acentuada que os
leva a progredir sempre mais na prática da virtude.
Para comentar a luta entre
o entusiasmo e a náusea
no interior da alma humana,
sirvo-me de uma metáfora tirada
do mundo físico.
“Quero mais!”
Um corpo que se nutre fica naturalmente
mais forte. Na medida em
que ele se fortalece, torna-se capaz
de um esforço maior, porém pedirá
mais nutrição, e isso vai num círculo
que se diria vicioso se não fosse de
acordo com a ordem posta por Deus.
No caso do corpo humano, entram
outros fatores e há um momento
em que o organismo chega a seu
apogeu e, depois, começa a decair.
Mas, de si, se o homem não tivesse
a vida circunscrita e sujeita ao deperecimento,
não sei que gigantes se
constituiriam.
Com a alma humana passa-se algo
semelhante. Se ela realmente correspondeu
ao brilho do que ela viu,
deve querer mais. O comentário perfeito
de quem ama o bem não é apenas
“Que magnífico!”, mas também
“Quero mais!”, “Mais a fundo, mais
inteira e perfeitamente!”
Suponhamos alguém que me oferece
um cálice de licor, e eu apenas
tomo um tragozinho e digo: “Estupendo!”,
mas não continuo a beber.
A ênfase da palavra “estupendo”
não convence... Porque, se fosse estupendo
mesmo, eu quereria mais.
Com mais razão ainda isso se dá
com as coisas relacionadas ao amor
de Deus.
Quando a Escritura afirma que
Ele é um Deus ciumento (cf. Ex 20,
5), o ciúme d’Ele chega até lá: Ele
quer que O amemos de tal maneira
que, à medida que vamos amando
mais, o próprio ritmo desta benquerença
vá crescendo.
Se analisarmos nossas almas, veremos
que com elas se dá isso de
curioso: queremos alguma coisa, depois
a desejamos ainda mais; entre-
28
Divulgação (CC3.0)
São Pio X quando era Bispo
tanto, há um determinado momento
em que a alma mais desejosa daquilo
sente a sua capacidade de querer
estancada. Embora isso não seja justo
acontecer em relação a Deus, nas
coisas terrenas e materiais é compreensível.
Um lugar com um
lindo panorama
Conta-se este episódio da vida de
São Pio X: Quando era bispo, ele foi
realizar uma visita pastoral por regiões
com paisagens muito bonitas, e
foi hospedado por um padre num lugar
com um panorama lindo!
Quando estiveram a sós, o primeiro
pedido que o sacerdote fez ao seu
prelado foi: “Excelência, eu queria
mudar de lugar”.
São Pio X disse ao padre: “Mas
com esse panorama maravilhoso, o
senhor quer mudar de lugar? O senhor
nunca mais deveria querer sair
daqui!”
O padre ficou quieto.
Na manhã seguinte, ele acordou
São Pio X bem cedinho, exclamando:
“Excelência, Excelência,
venha ver o nascer do Sol!”
Já na véspera São Pio X tinha
se levantado cedo para
contemplar a aurora.
São Pio X levantou-se e foi
ver o nascer do Sol.
Como a cena se repetisse
diariamente, ao quarto
dia São Pio X disse ao padre:
“Meu caro, eu já vi nascer o
Sol. Agora preciso cuidar de
outras obrigações”.
Quando, mais tarde, São
Pio X saiu do quarto, o sacerdote,
insinuando o pedido
feito na primeira conversa
a sós, disse: “Excelência, eu
também já vi nascer o Sol...”
Este pequeno fato que, segundo
os biógrafos, São Pio
X contava sorrindo, exprime
de um lado a miséria humana,
mas de outro denota um bom
senso no que tange às coisas meramente
naturais. Para estas, tal atitude
é compreensível; para as coisas
divinas, não.
A previdência na
vida espiritual
Se o homem introduz esse
procedimento na ordem sobrenatural,
ele comete o erro
de, em certo momento, ter
a inclinação de se saciar também
do que é de Deus.
Para a alma aumentar a
sua capacidade de amar a
Deus e buscá-Lo sempre
mais, é preciso receber da
parte da graça uma operação
misteriosa que os autores
espirituais chamam de
“conversão”. Assim como
um ateu pode ficar católico,
ou como um pecador se
converte entrando para a vida
da graça, assim uma pessoa
boa pode progredir muito
no bem; e essas mudanças
muito acentuadas para o bem podem
ser chamadas de “conversão”.
Portanto, neste sentido da palavra,
uma pessoa que esteja em um alto
grau de virtude ainda pode passar
por uma conversão.
E, mais ainda, a graça a que nós
correspondamos bem hoje prepara-
-nos para a conversão de amanhã.
Os grandes lances da vida espiritual
são as conversões, com as quais
aumenta a capacidade de querer e,
consequentemente, cresce a fome
das coisas divinas.
Essa conversão nós devemos pedi-la,
antes de começar a se verificar
a náusea. Porque a oração do nauseado
ou do tentado de náusea facilmente
é uma oração que não tem
ênfase. Nós devemos rogar a Nossa
Senhora, com a ênfase de hoje, graças
para combater a náusea que poderá
vir amanhã. Esta é a previdência
na vida espiritual. v
(Extraído de conferência de
16/2/1982)
Dr. Plinio em fevereiro de 1982
Arquivo Revista
29
Luzes da Civilização Cristã
Fotos: Flávio Lourenço
Como uma
opala à luz
do Sol
À maneira de uma
pedra preciosa posta
em confronto com a luz
e emitindo diferentes
reflexos, cada um mais
belo que o outro, assim
é a Igreja Católica e tudo
aquilo que nasce dela.
Analisando diferentes
elmos, Dr. Plinio
transcende do objeto
material para a sua
beleza metafísica.
Nos elmos feitos para soldados cristãos, católicos
que iam combater os infiéis, há expressa
qualquer coisa de guerra santa que traz
ao espírito a ideia de vigor, de decisão, de personalidade
extraordinária. De outro lado, há uma beleza inegável
e imponderável flutuando em torno de uma feiura assustadora.
Por exemplo, um capacete de cavaleiro da Ordem Teutônica,
compridíssimo, com uma espécie de nariz de metal
pavoroso e apenas uma seteira, a qual parece mais
própria para colocar atrás uma metralhadora do que o
olhar humano.
Heroico e poético, ao mesmo tempo
uma Camáldula ambulante
Cada elmo revela como o aspecto heroico está admiravelmente
presente e leva-nos a perguntar em que pormenor
dele se encontra esse aspecto. Parece-nos sentir
o tropel dos cavalos das Cruzadas, ouvir o olifante tocar,
ver o garbo majestoso de Godofredo de Bouillon que
avança, de São Luís, Rei de França, ou de São Fernando,
Rei da Espanha, ou de Santo Henrique, Imperador do
Sacro Império Romano Alemão, do Cid, de Roland, de
Olivier, dos cavaleiros enfim, que partem para a guerra
na sua mais alta acepção.
30
Batalha contra os normandos - Museu do Palácio de Versailles
Entretanto, se um elmo fosse feito hoje, em primeiro
lugar, não se chamaria assim. Dariam a ele o nome de
cabeceira, cabeçada... ou se o metal de que ele é feito fosse
óxido de qualquer coisa, diriam oxicabeça, ou o denominariam
com qualquer nome inútil… Mas elmo certamente
não o chamariam. A palavra é nobre demais para
ser inventada por uma época tão sem nobreza.
Em que pormenor se fixa essa atmosfera de poesia? Na
verdade, se houvesse uma doença que tornasse a fisionomia
de um homem parecida com um elmo, seria considerada
como uma moléstia terrível. Imaginar alguém que pela
manhã vá se lavar e veja no espelho que está com cara de
elmo... que susto, que respeito humano! Sair pela rua com
aquele elmo alemão que começa por não ter boca... O guerreiro
não fala? Ele apenas vê, respira e assalta?
Porém, não é grandioso um elmo que é uma Camáldula
ambulante, dentro da qual não se fala, mas em cujo
coração pulsa forte o amor de Deus, de Nossa Senhora,
da Igreja, que incendeia o olhar e arma o braço? “Agora
vos pegarei! E é já!” Esporada no cavalo e lança no peito
do maometano!
Símbolo de uma bela determinação
Que beleza pensar que aquele elmo pode servir de
mortalha! Assim como ele pode matar alguém, o cavaleiro
pode ser morto e o capacete poderá ser a prisão dentro
da qual expire, jogado ao chão. O cavaleiro, ao pôr o
elmo, sabe se revestir da dupla coragem: de matar e de
morrer. Ambas coisas por amor de Deus, de Nossa Senhora,
da Igreja.
O elmo exprime uma bela deliberação: “Matarei! Matarei
por amor a Deus, por amor a Nossa Senhora, por
amor à Santa Igreja Católica! Se for morto, eu desde já
aceito a morte atroz para que outros passem sobre meu
cadáver, vão para frente e ganhem a batalha. A morte para
mim não é uma surpresa, não é o desastre, não é uma
inimiga da qual eu fuja espavorido. Se a morte é, segundo
os desígnios de Deus, o final dos dias de todo mundo,
que a minha morte tenha isto de bom: ela virá por cima
de mim por causa do ódio que os infiéis têm a Deus.
“Ó morte, neste encontro eu te venço! Porque ainda
que tu me arranques a vida terrena, eu, de ti, arranco
outra coisa: a vida eterna! Tu me matarás, mas as razões
pelas quais morro me farão viver na vida eterna. Morte,
se meu encontro está marcado contigo, eu vou ao teu encontro
e te venço no momento em que tu me venceres e
me arrancares a vida, porque conquisto a vida eterna”.
Belezas iridescentes nascidas da Igreja
Dir-se-á ser isso óbvio. Mas faz parte da boa formação
de espírito saber explicitar o que é evidente, de maneira
a tirar sempre o caldo mais precioso da explicação.
31
Luzes da Civilização Cristã
Crucifixão - Museu de Belas Artes de Budapeste
Então, onde está a beleza disso tudo? Sabendo, por razões
históricas, como se passava a oferenda e a oblação
do cavaleiro, como ele deitava seu esforço para vencer, e
como quando ele ia ao encontro da morte dizia: “Tu me
encontras, eu te encontro! Tu me vences e eu morro, mas
sobretudo eu te venço!” Isso tem algo da beleza da Santa
Igreja Católica Apostólica Romana com a doutrina que
ensina, com as virtudes que comunica, com a orientação
que dá e com os ideais que acende na vida do homem.
À maneira de uma pedra preciosa posta em confronto
com a luz e emitindo diferentes reflexos, cada um mais
belo que o outro e todos diferentes, assim é a Doutrina
Católica, assim é a Igreja Católica.
Existe uma pedra que sempre me encantou: a opala.
Esta pedra leitosa possui dentro de si umas substâncias
misturadas, cada uma de uma cor. Mexendo a pedra, várias
cores brilham, mas mescladas umas nas outras, sem
formar uma cor só. Isso se chama irisação. Uma opala
iridescente é uma beleza!
Entretanto, a mais bela das opalas não é feita de pedra,
ela é feita de gotas de sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo! No momento em que do Corpo Sagrado e já morto
d’Aquele que é a vida eterna escapava a linfa mistu-
rada com sangue, nascia esta obra-
-prima da criação: a Santa Igreja
Católica Apostólica Romana!
Como se faz com a opala à luz do
Sol, vendo essa variedade de aspectos
à luz da Fé – mais bela ainda do que a
luz do Sol –, vê-se essa iridescência, a
beleza daquilo que é um ato verdadeiramente
católico por excelência: o ato
do martírio, que de muitos até lava os
pecados. E é certo que muitos daqueles
cavaleiros morreram verdadeiros mártires.
Por trás da viseira, a alma do
cavaleiro que reza e luta
Esse é um bonito elmo cheio de feiura. Pode-se imaginar
um cavaleiro metido dentro dele e, através dessas
frestas, verdadeiras seteiras, estarem dois olhos
que olham fixo, firmes e para frente. O cavaleiro exclama:
“Montjoie, Saint-Denis!”, grito de guerra dos cavaleiros
franceses, por exemplo, e avança rumo ao adversário
que ele fitou. Ele tem clara visão dos outros adversários
32
que podem cercá-lo, abatê-lo, mas ele vê, vê largo, e sobretudo
vê longe.
O elmo é construído de modo estritamente funcional.
O problema da respiração foi cuidadosamente estudado.
Além de entrar ar por círculos pequenos que se encontram
logo abaixo do capacete, em cima encontram-se
uns círculos, parecidos vagamente com rosáceas de catedral,
e também por elas entra o ar. Na viseira há vários
desenhos, aliás bonitos e dispostos com arte, de maneira
a também facilitar a entrada do ar, indispensável para o
cavaleiro poder avançar e rezar.
Atrás da viseira está a alma do cavaleiro que reza ou
que espera começar o ataque ou, já estando em pleno
ataque, de vez em quando faz subir ao Céu uma jaculatória:
“São Miguel, modelo dos cavaleiros, dai-me mais coragem,
dai-me mais força! São Miguel, eu quero libertar
o Santo Sepulcro! São Miguel, desembaraçai de mouros
e de turcos o meu caminho, para que eu possa chegar lá
com meus companheiros de armas! Rainha dos Anjos,
calcai aos pés satanás que me tenta! E para dar resposta
a esse medo que sobe dentro de mim: para frente!”
Vê-se uma certa preocupação de arte que, no todo, faz
o objeto ter certa beleza. No entanto, se fosse usado, por
exemplo, por tropas soviéticas e não tivesse adorno nenhum,
seria uma monstruosidade. Mas, sendo católico,
é uma beleza! Sobretudo pela beleza da alma que ali
dentro lutou.
Firme e indomável deliberação de lutar
Nesse elmo de cavaleiro da Ordem Teutônica, com a
cruz vazada, nota-se na parte debaixo uma pequena cruz
vermelha. O resto é deliberação de lutar, firme e indomável:
“Eu resolvi, está feito! Agora eu vou para frente.
E não há consideração sentimental, não há moleza de alma
nenhuma que possa perturbar a força de meu ímpeto.
Minha missão é ir para frente? Vou!”
E avança com um desses atos de vontade fortes e definitivos,
no qual joga a sua vida inteira: “Eu amei e amo o
meu Salvador com toda a alma, eu sou cavaleiro da Ordem
Teutônica e vejo as populações católicas do Mar
Báltico perseguidas por bárbaros que lhe querem tirar
a coisa mais preciosa do mundo: a fé em Nosso Senhor
Jesus Cristo. Perfurá-los-ei, miseráveis, com meu gládio
ou minha lança!”
O rosto do cavaleiro está protegido pelo capacete, dir-
-se-ia ser um escudo no qual abriram duas seteiras para
olhos que valem por flechas, e um protege-nariz sem
nenhuma beleza, como quem afirma: “O homem que está
aqui não procura outra coisa na vida, senão matar ou
morrer por amor de Deus!”
É bonito? Sim, porque é lindo pelo estado de alma que
ele reflete. Num concurso de belas artes, entretanto, não
ganharia o prêmio…
33
Luzes da Civilização Cristã
Bom gosto e coragem
O elmo dos cavaleiros de elite francesa, forjado no
ferro em brasa, com abertura em “T” para proteger as
faces, é terrível. Ele todo está protegido de ferro, exceto
a parte em que os olhos e nariz devem aparecer. Mas
não me surpreenderia que tivesse ainda uma peça complementar
para proteger melhor o rosto. O elmo vai tomando
forma, vai se tornando mais pontudo e se cobrindo
mais de enfeites. Vê-se nele uma majestade, que é o
aspecto civilizado do elmo anterior. O bom gosto nasce
da fé, como também a coragem. O bom gosto e a coragem
são amigos, e ambas as coisas procuram manifestar-se
aí.
Leveza, força e eficácia
Com o passar do tempo, o elmo procura tornar-se ao
mesmo tempo forte e leve. É o que se vê no elmo de cavaleiro
inglês de século XVI. A arte de temperar melhor os
metais, de fazer melhores ligas, permite tornar as chapas
mais esguias, sem serem mais frágeis, e proteger o
rosto e, com ele, a vida do cavaleiro.
São notáveis as preocupações de fé e de bom gosto. As
cruzes que estão na primeira fileira da viseira chamam
a atenção logo de início, mostrando ser um cruzado que
está combatendo. Em cima, as mesmas rosetas para a
respiração existentes em alguns elmos que já vimos, mas
esse é mais bem polido. Há uma espécie de cordão de
metal no centro e em cima da viseira. Esse detalhe no elmo
indica a crescente preocupação de fazê-lo mais belo,
mais leve, mais eficaz portanto, e de, ao mesmo tempo,
resguardar a força a fim de ser ainda mais forte.
Aparece uma novidade: uma abertura para a boca,
que o elmo anterior não tinha. Porque muitas vezes, durante
a batalha, os combatentes cantavam. Antes da batalha
começar, os guerreiros se formavam em fila e, do
outro lado, o adversário também, apenas separados por
um regato ou por uma depressão de terreno. De um lado
avança um menestrel ou um bardo, um arauto, e proclama
as razões pelas quais seu exército vai lutar, incitando
os guerreiros à valentia. Em seguida, diz as verdades para
o exército do outro campo.
Do outro lado vem a réplica. E depois disso começa
a batalha, em fila, dos dois lados. Em francês chama-se
la bataille rangée. Rang, é a fila que representa categoria,
portanto, a batalha ordenada em fileira. Bataille rangée é
quando as duas filas se entrechocam.
No entrechoque, obviamente, as filas se quebram. Uns
guerreiros vão mais para frente, outros mais para trás,
eles se misturam. Essa mistura é la bataille mêlée. Bataille,
quer dizer batalha, mêlée é misturada.
Porém, de vez em quando, os guerreiros não cantavam,
porque não tinham mais fôlego, a não ser para matar;
davam, então, um brado! Por exemplo, se no meio
da batalha o guerreiro católico ouve o maometano gritar
alguma palavra parecida com “Maomé”, o católico respondia:
“Maldito teu Maomé! Louvado seja Cristo! Rachar-te-ei
a cabeça!”
A época dos cavaleiros cede
lugar à dos artistas
Vê-se aqui uma armadura de cerimônias, italiana,
com flores de lis estilizadas sobre um fundo violeta escuro.
O caráter militar continua. Aqui não se vê somente
o elmo, mas também uma espécie de collier, essa peça
que protege o pescoço, composta de articulações, podendo
ser até achatada para assim facilitar a respiração.
34
A proteção dos braços
está distante da
proteção do corpo,
para poder entrar um
pouco de ar. A preocupação
do arejamento
é contínua e totalmente
explicável. O
resto é apenas o elmo,
o qual vai cada
vez mais se parecendo
com a anatomia e a fisionomia
humana.
Mas há um detalhe
que, apesar da persistência
da louvável impressão
de heroísmo
cavalheiresco, entristece:
não se nota mais o símbolo religioso. Nos desenhos
magníficos que recobrem a couraça e o elmo, não
se veem mais as formas sacralizantes da Idade
Média, mas começa a Renascença e, com ela, a
decadência da Civilização Cristã.
Ao mesmo tempo isso indica o declínio das armas
de metal e a era das armas de fogo. É o momento em
que os museus vão engolir os elmos.
Nesse elmo alemão de 1550, com viseira de ponta e
parte superior ornada como se fosse uma iluminura,
aberto e visto por detrás, nota-se um forte revestimento
de veludo e no pescoço os elementos de respiração. Mas,
no capacete e em todas as partes exteriores, tudo está finamente
trabalhado. É a época dos artistas. À medida
que o elmo vai sendo da época dos artistas, vai deixando
de ser dos cavaleiros.
Uma obra de arte, sem símbolo religioso
Na época do morrião espanhol, as armas de fogo já
estavam francamente introduzidas, entretanto ainda
permitiam o combate corpo a corpo, o qual aliás, até a
Segunda Guerra Mundial se prolongou. Dessa maneira,
convinha sempre ter elmos que protegessem a cabeça.
Os holandeses invasores do Brasil ainda usavam elmos
desse estilo. São bonitos, são sérios, são muito bem
trabalhados. Vê-se, em alguns deles, algo como um vasinho.
Ali punham a pluma. Em expressão mais apropriada:
le panache.
À primeira vista, fica-se na dúvida se o elmo alemão,
usado pela cavalaria ligeira, inteiramente recoberto de
arabescos e troféus que se cruzam, formando relevos, é
um mero objeto decorativo ou, de fato, um objeto de batalha.
Somente depois de analisar a fotografia, pode-se
interpretar o sentido dele, e é notável que o elmo floriu,
floresceu numa grande crista, a qual lembra vagamente
a crista e a dignidade do galo.
Esse elmo não deve ter pertencido a um soldado qualquer,
mas a um alto nobre, um príncipe ou rei. Ele é uma
verdadeira obra de arte.
No entanto, nenhum símbolo religioso se divisa nele...
Infelizmente o mundo está se paganizando. As guerras
deixam de ser guerras por razões religiosas para se tornarem
guerras pelo poder político. Com o tempo, o fator
político desaparecerá e elas serão feitas pelo novo deus:
Mamón, o deus do dinheiro.
v
(Extraído de conferência de 21/6/1986)
35
Gabriel K.
Como um exército em
ordem de batalha
Maria Santíssima tem em si uma fortaleza incomparavelmente maior à de todas as
criaturas, inclusive as angélicas. A repulsa de todos os Anjos reunidos e capitaneados
gloriosamente por São Miguel a Satanás e aos anjos por ele aliciados não é nada em
comparação à aversão de Nossa Senhora para com o demônio e seus asseclas.
Em consequência, não se pode ter ideia do que é a expansão da cólera e do intuito vingativo e
justiceiro, tomando a vingança no sentido da justiça que se exerce, d’Aquela que é ut castrorum
acies ordinata – como um exército em ordem de batalha (Ct 6, 10).
Por exemplo, Nosso Senhor diz que, se os últimos dias não fossem abreviados, os justos não perseverariam
(cf. Mt 24, 22). Portanto, a abreviação desses dias é uma graça. Ora, todas as graças
vêm por meio de Nossa Senhora. Logo, Ela pedirá a antecipação dos castigos, e é pela oração
d’Ela que eles despencarão sobre o mundo.
Nosso Senhor Jesus Cristo veio a primeira vez a pedido da Santíssima Virgem e virá a segunda
vez a pedido d’Ela também. Na primeira, Ela quis que seu Divino Filho viesse para sofrer tudo
quanto sofreu; na segunda, Ela será implacável com os maus.
(Extraído de conferência de 5/12/1979)