Download da revista n.47 - Instituto de Estudos Brasileiros - USP
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Sumário<br />
9 Editorial<br />
Artigos<br />
13 Cinema = Cavação<br />
Cendroswald produções cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
29 O lobisomem entre índios e brancos<br />
O trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no<br />
final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
57 A teoria <strong>da</strong> história em Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
75 Caio Prado Jr. y la historia agraria <strong>de</strong> Brasil y México<br />
Guillermo Palacios y Olivares<br />
93 Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m: saber e ofício nas<br />
experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
115 “O linguajar multifário”: os estrangeiros e<br />
suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
139 Os nomes <strong>da</strong> língua: configuração e<br />
<strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a<br />
língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
161 Caetés: nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez
Resenhas<br />
185 Vira e mexe nacionalismo<br />
Álvaro Silveira Faleiros<br />
190 A matéria histórica interroga a forma mítica<br />
Danielle Corpas<br />
Documentação<br />
201 O filme 100% brasileiro<br />
Blaise Cendrars<br />
Notícias<br />
217 Prêmio Marta Rossetti Batista <strong>de</strong><br />
História <strong>da</strong> Arte e <strong>da</strong> Arquitetura e<br />
Acervo Marta Rossetti Batista<br />
218 Feição e circunstância <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Sergio Miceli<br />
225 Implantação do setor <strong>de</strong> educação do IEB<br />
Elly Apareci<strong>da</strong> Rozo Vaz Perez Ferrari<br />
229 Critérios para apresentação e publicação <strong>de</strong> artigos
N<br />
este número, a Revista do IEB<br />
disponibiliza textos <strong>de</strong> várias áreas do saber, em acordo com o perfil multidisciplinar<br />
<strong>da</strong> publicação e do próprio IEB: Carlos Augusto Calil abor<strong>da</strong><br />
alguns dos sentidos <strong>de</strong> um projeto cinematográfico <strong>de</strong> Blaise Cendrars e<br />
Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> nos anos 1920; Mark Harris perscruta as imagens do<br />
lobisomem em Portugal e sua mescla com várias enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s transformativas<br />
<strong>da</strong> Amazônia no fim do século XVIII no Grão-Pará; Magaly Marques Pulhez<br />
analisa as experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e <strong>de</strong> Carlos<br />
Nelson Ferreira dos Santos na favela <strong>de</strong> Brás <strong>de</strong> Pina, no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
nos anos 1960; Maria Caterina Pincherle estu<strong>da</strong> os registros <strong>da</strong>s falas es trangeiras<br />
na obra <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, explorando o modo como integram<br />
os recursos estilísticos do escritor; Olga Ferreira Coelho acompanha os <strong>de</strong> ba -<br />
tes oitocentistas em torno do grau <strong>de</strong> autonomia <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> língua<br />
portuguesa utiliza<strong>da</strong> no Brasil; e Erwin Torralbo Gimenez analisa Caetés,<br />
o primeiro romance <strong>de</strong> Graciliano Ramos.<br />
São publicados, além disso, dois textos inéditos apresentados no se -<br />
minário Caio Prado Jr. e o Brasil contemporâneo, organizado pelo IEB no<br />
segundo semestre <strong>de</strong> 2007: Jorge Grespan escrutina a obra filosófica <strong>de</strong><br />
Caio Prado Jr., com o que ilumina aspectos <strong>de</strong> seu pensamento histórico,<br />
enquanto Guillermo Palacios elabora uma leitura <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Caio Prado<br />
propondo questões em torno <strong>da</strong> reflexão sobre a experiência agrária no<br />
9<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Brasil e no México. A edição crítica, por Carlos Augusto Calil, do projeto <strong>de</strong><br />
Blaise Cendrars estu<strong>da</strong>do no artigo “Cinema = Cavação”; um texto <strong>de</strong> Sergio<br />
Miceli sobre Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e resenhas <strong>de</strong> Álvaro Faleiros e Danielle<br />
Corpas completam a presente edição <strong>da</strong> Revista.<br />
Este número traz ain<strong>da</strong> um novo projeto gráfico. Nele, as páginas<br />
iniciais passam a ser <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s à divulgação do acervo do IEB, funcio nando<br />
como um convite à exploração <strong>de</strong> sua diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
10 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008<br />
O Editor
13<br />
Cinema = Cavação<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas 1<br />
Carlos Augusto Calil 2<br />
Resumo<br />
Em 1924, Blaise Cendrars, em meio a um projeto ambicioso <strong>de</strong> realização<br />
<strong>de</strong> um “filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> sobre o Brasil”, em parceria com<br />
Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, teve a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> testemunhar a eclosão <strong>da</strong><br />
Revolução <strong>de</strong> 1924, reprimi<strong>da</strong> com violência pelo governo fe<strong>de</strong>ral. A<br />
experiência marcou a sua imaginação e sepultou os planos <strong>de</strong> realizar<br />
um filme no Brasil, baseado em episódios <strong>da</strong> história paulista. Um dos<br />
elementos que aproximaram Oswald e Cendrars foi o <strong>de</strong>sejo comum<br />
<strong>de</strong> se tornarem cineastas-cavadores.<br />
Palavras-chave<br />
Blaise Cendrars, Mo<strong>de</strong>rnismo, Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Cinema, Cavação,<br />
Revolução <strong>de</strong> 1924<br />
1 O artigo, publicado pela primeira vez na <strong>revista</strong> Significação (n. 27, p. 23-43, out.<br />
2007), foi revisado pelo autor, que lhe acrescentou ain<strong>da</strong> a tradução e edição crítica<br />
<strong>de</strong> dois documentos inéditos, publicados aqui na seção Documentação (nota<br />
do Editor).<br />
2 Secretário <strong>de</strong> Cultura do Município <strong>de</strong> São Paulo e Professor do Departamento <strong>de</strong><br />
Cinema, Rádio e Televisão <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Comunicação e Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> São Paulo.<br />
E-mail: camcalil@usp.br<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Cinema = “Digging”<br />
Cendroswald Cinema Productions<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Abstract<br />
In 1924, Blaise Cendrars, working on an ambitious “propagan<strong>da</strong> film<br />
about Brazil” project with Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, had the chance of witnessing<br />
the outbreak of the 1924 Revolution, viciously disban<strong>de</strong>d by<br />
the fe<strong>de</strong>ral government. This experience left a <strong>de</strong>ep impression on his<br />
imagination and buried his plans of shooting the film in Brazil, based<br />
on episo<strong>de</strong>s from the history of São Paulo. One of the elements which<br />
brought together Cendrars and Oswald was their commonly-shared<br />
<strong>de</strong>sire of becoming diggers-moviemakers.<br />
Keywords<br />
Blaise Cendrars, Mo<strong>de</strong>rnism, Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Cinema, Digging,<br />
Revolution of 1924<br />
14 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
E<br />
15<br />
“Esta vi<strong>da</strong> ativa, cinema e finanças,<br />
não era para me <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>r.”<br />
Moravagine, Pro domo 3<br />
m 1957, no corpo <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> escritos díspares<br />
reunidos sob a divisa “Trop, c’est trop” (É <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>mais), aparecia um<br />
texto que chamou imediatamente a atenção dos leitores brasileiros <strong>de</strong><br />
Cen drars pela promessa formula<strong>da</strong> já no seu título: “Etc…, etc… (Un film<br />
100% brésilien)” 4 .<br />
Nele, <strong>de</strong>screve os percalços <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> um filme no Brasil, que<br />
havia tentado realizar no <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 1920. Eis os principais pontos <strong>da</strong> anedota.<br />
Cendrars, personagem <strong>de</strong> sua autoficção, não tinha vindo ao Brasil<br />
para ro<strong>da</strong>r um filme, nem sequer queria ouvir falar <strong>de</strong> cinema. Mas foi<br />
3 CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1961. Tomo 2. — La fin du mon<strong>de</strong><br />
(O fim do mundo). L’Eubage (O Eubagem). L’Or (Ouro). Moravagine. Petits contes<br />
nègres (Historinhas negras), p. 438.<br />
4 CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1965. Tomo 8 — D’oultremer à<br />
Indigo (Do Ultramar ao Índigo). Trop, c’est trop (É <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>mais). Films sans ima -<br />
ges (Filmes sem imagens). Textes inédits en volumes (Textos inéditos em volume).<br />
Blaise Cendrars vous parle… (Com vocês, Blaise Cendrars…), ent<strong>revista</strong>s con cedi<strong>da</strong>s<br />
a Michel Manoll. “Bibliographie générale” (Bibliografia geral), por Hughes Richard, p.<br />
196-200.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
arrebatado pela beleza do país. Deci<strong>de</strong> então fazer um filme para mostrar<br />
a floresta, os rios gigantes e o homem que aqui chega para construir-se uma<br />
nova pátria. Concebido como um gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>, contaria a<br />
história <strong>da</strong> formação do país, dos pioneiros <strong>da</strong> colonização aos mo<strong>de</strong>rnos<br />
engenheiros que promoviam o progresso. Os amigos se interessam pelo<br />
projeto e acabam por levá-lo a uma ent<strong>revista</strong> no Palácio do Catete com o<br />
presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República. O cineasta diz ao man<strong>da</strong>tário que ama o povo sim -<br />
ples do país, alegre e angelical. E que havia inclusive adquirido uma flo res ta,<br />
não para explorá-la, mas para estabelecer um vínculo e propiciar seu re -<br />
torno freqüente. O filme, embora <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>, não <strong>de</strong>veria ser aborrecido,<br />
cheio <strong>de</strong> estatísticas, e sim um gran<strong>de</strong> documentário, que revelasse o<br />
país aos próprios brasileiros: “um filme 100% nacional”. Como não havia<br />
artistas nem estrelas no Brasil, os atores principais seriam a natureza e a luz,<br />
e os personagens principais, a floresta e o rio Tietê, cuja navegação possibilitou<br />
aos paulistas se apropriarem do interior, criando a nação brasileira.<br />
Advertido por um amigo que o próprio presi<strong>de</strong>nte (Washington Luís) era<br />
autor <strong>de</strong> uma tese histórica sobre uma família, pe<strong>de</strong>-lhe autorização para<br />
utilizá-la como argumento <strong>de</strong> seu filme. Obtido o consentimento, <strong>de</strong>dica-se<br />
ao roteiro, enquanto expe<strong>de</strong> telegramas aos EUA e Europa para consulta<br />
aos técnicos especialistas. À noite, no hall do Copacabana Palace, on<strong>de</strong> se<br />
hospe<strong>da</strong>va, encontra-se com caçadores, mateiros, exploradores — índios e<br />
brancos — para discutir as melhores locações e a sua logística. Com o apoio<br />
<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> jornal <strong>de</strong> São Paulo, promove concurso <strong>de</strong> fotogenia, visando<br />
à escolha do casal <strong>de</strong> atores. O Presi<strong>de</strong>nte do Estado era nessa época Car -<br />
los <strong>de</strong> Campos, um músico erudito a quem pe<strong>de</strong> para compor a trilha <strong>de</strong><br />
seu filme. O projeto adquire tais proporções que um banco inglês lhe oferece<br />
crédito <strong>de</strong> 150 milhões <strong>de</strong> francos. Capitalistas brasileiros pressionam<br />
para participar do empreendimento. Chamado ao Ministério <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong>,<br />
é obrigado a aceitar, a título <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>, soma equivalente à ofereci<strong>da</strong><br />
pelo banco. Cendrars sai <strong>da</strong> se<strong>de</strong> do ministério com sua carta <strong>de</strong> crédito e<br />
é recebido com tiros <strong>de</strong> fuzil. A revolução ganhava as ruas. A única coisa<br />
que não havia previsto no filme liqui<strong>da</strong>va o seu belo projeto.<br />
Num procedimento comum na sua obra, Cendrars <strong>da</strong>ta o seu texto<br />
<strong>de</strong> 1925, embora o tenha escrito e publicado pela primeira vez em 1929,<br />
em Cinémon<strong>de</strong>, uma <strong>revista</strong> <strong>de</strong> cinema.<br />
A <strong>da</strong>tação arbitrária provoca no leitor brasileiro 5 um <strong>de</strong>sconforto que<br />
os mais curiosos acabam por investigar. Encontram no texto incongruências<br />
5 Cf. BROCA, Brito. As estórias brasileiras <strong>de</strong> Blaise Cendrars (1957) e MARTINS, Wilson.<br />
Cendrars e o Brasil (1960), ambos reproduzidos em EULALIO, Alexandre. A aventura<br />
brasileira <strong>de</strong> Blaise Cendrars. Org: Carlos Augusto Calil. 2a. ed. <strong>revista</strong> e aumenta<strong>da</strong>.<br />
São Paulo: Edusp; Imesp, 2001. p. 451-57; 490-500.<br />
16 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
17<br />
históricas que <strong>de</strong>sviam a atenção <strong>da</strong>s suas virtu<strong>de</strong>s literárias. A mais evi<strong>de</strong>nte<br />
é a presença <strong>de</strong> Washington Luís no Catete em 1925, o presi<strong>de</strong>nte<br />
que havia tomado posse em 1926! A revolução que o <strong>de</strong>rruba é a <strong>de</strong> 1930.<br />
No entanto, Carlos <strong>de</strong> Campos era presi<strong>de</strong>nte do estado <strong>de</strong> São Paulo em<br />
1924, quando irrompeu a revolução <strong>de</strong> julho, li<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> pelo general Isidoro<br />
Dias Lopes. Autor <strong>de</strong> tal imbroglio, Cendrars passa por distraído, fabulista.<br />
Suas imprecisões são, no entanto, <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>s 6 e, como num painel ex pressionista,<br />
ressaltam a natureza privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> interesses num<br />
regime político fechado. Nesse sentido, Alexandre Eulalio <strong>de</strong>ixou uma agu<strong>da</strong><br />
nota manuscrita:<br />
Na<strong>da</strong> mais fiel ao espírito <strong>da</strong> república oligárquica do que esse filme<br />
monstro no qual o presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República escreve (ou fornece o<br />
argumento) e o presi<strong>de</strong>nte do Estado <strong>de</strong> São Paulo, a música, o<br />
ministério <strong>da</strong>s Finanças, os fundos etc. etc. Em ritmo <strong>de</strong> opereta, é<br />
uma genial caricatura do sistema <strong>de</strong> relações <strong>da</strong> velha República. 7<br />
Vamos agora aos fatos, à crônica dos pequenos — e gran<strong>de</strong>s — acon -<br />
te cimentos em torno <strong>da</strong> primeira viagem <strong>de</strong> Blaise ao Brasil. Em carta à<br />
família, escrita às vésperas <strong>de</strong> embarcar no Formose, Cendrars informa:<br />
“Parto para a América do Sul… me propuseram diferentes negócios que vou<br />
estu<strong>da</strong>r in loco, sendo um <strong>de</strong> cinema que po<strong>de</strong> ser muito interessante.” 8<br />
Em 1o <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1924, encaminhava a Paulo Prado o projeto <strong>de</strong><br />
um “Gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> do Brasil”, resultado <strong>de</strong> conversas com<br />
Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e o próprio Prado, a quem pe<strong>de</strong> sugestões e o aval para<br />
continuar o negócio. O documento inédito, em segui<strong>da</strong> reproduzido na sua<br />
íntegra, já mereceu comentário num colóquio realizado em Paris em 1987 9 .<br />
Para espanto dos intelectuais que o hospe<strong>da</strong>vam, Cendrars evitava<br />
falar <strong>de</strong> literatura10 , mas não se negava quando o assunto era cinema. Rubens<br />
Borba <strong>de</strong> Morais relata que, no período que passou em São Paulo em 1924,<br />
6 Em outro texto, “L’actualité <strong>de</strong> <strong>de</strong>main”, do volume Histoires vraies (CENDRARS, Blaise.<br />
Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1960. Tomo 3, p. 419-36), Cendrars <strong>de</strong>monstra me -<br />
lhor memória: ain<strong>da</strong> que a revolução <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1924 tenha sido por ele transferi<strong>da</strong><br />
para setembro, o presi<strong>de</strong>nte era “Bernadès” e o general insurgente “Isodoro”. W. Luís<br />
aí aparece como presi<strong>de</strong>nte em 1926, no início do man<strong>da</strong>to que não concluirá.<br />
7 Centro <strong>de</strong> Documentação Cultural Alexandre Eulalio, <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>da</strong> Lin gua -<br />
gem, Unicamp, documento Pc 524, P 74.<br />
8 Apud CENDRARS, Miriam. Blaise Cendrars. Paris: Balland, 1984. p. 387.<br />
9 Cf. ROIG, Adrien. Blaise Cendrars et le Brésil: le Grand film brésilien, la traduction <strong>de</strong><br />
A selva, le “Morro Azul” et la “Tour Eiffel sidérale”. Atas do colóquio Portugal Brésil<br />
France Histoire et culture, Paris: Fon<strong>da</strong>tion Calouste Gulbenkian, 1988. p. 273-98. Nes se<br />
texto, o autor <strong>de</strong>sfaz a trapalha<strong>da</strong> histórica e resume o projeto <strong>de</strong> Cendrars.<br />
10 “Essa história dos que atacam a literatura e são literatíssimos é muito cômica. Eu já<br />
observara isso quando o Cendrars esteve aqui. Homem pourri <strong>de</strong> literatura e que vive<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
íamos muito ao cinema. Depois do espetáculo, em bares alemães <strong>de</strong><br />
Santa Efigênia, bebendo cerveja, [Blaise Cendrars] contava-nos es -<br />
tó rias mirabolantes do tempo em que trabalhava com Abel Gance,<br />
filmando “La Roue”. Inventava roteiros <strong>de</strong> filmes sobre a vi<strong>da</strong> brasileira<br />
que <strong>da</strong> riam uma fortuna. Cendrars estava imaginando fazer<br />
gran<strong>de</strong>s negócios. 11<br />
As histórias cinematográficas <strong>de</strong> Cendrars não impressionaram apenas<br />
Rubens Borba. Alcântara Machado num exemplar <strong>de</strong> seu “livro <strong>de</strong> ci ne -<br />
ma” Pathé-Baby escreverá a <strong>de</strong>dicatória: “Para Blaise Cendrars — gran<strong>de</strong><br />
especialista em fitas <strong>de</strong> documentação —, com o entusiasmo do Al cân ta ra” 12 .<br />
A revolução <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1924 surpreen<strong>de</strong> a todos, população e<br />
governo. Diante <strong>da</strong> violência dos ataques dos revoltosos, que bombar<strong>de</strong>avam<br />
o Palácio do Governo e os bairros operários, Paulo Prado <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> refugiar-se<br />
na fazen<strong>da</strong> Santa Veridiana para on<strong>de</strong> leva seu hóspe<strong>de</strong>. Apartado<br />
involuntariamente do espetáculo militar, Cendrars ia com freqüência à ci -<br />
<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Cruz <strong>da</strong>s Palmeiras para ler nos jornais <strong>da</strong> capital as últimas<br />
novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s revolucionárias.<br />
O projeto do filme ficou assim naturalmente suspenso. Em novembro<br />
do mesmo ano, já <strong>de</strong> volta à sua vidinha no Tremblay-sur-Mauldre, Cen -<br />
drars dirá na primeira carta que dirige a Paulo Prado:<br />
“Filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> brasileiro”. Pouco cui<strong>de</strong>i <strong>de</strong>ste assunto. De<br />
qualquer modo, son<strong>de</strong>i em duas direções diferentes; os dois lados<br />
acharam o negócio muito interessante e estão dispostos a participar<br />
com meta<strong>de</strong> do capital, segundo meu orçamento, ou mesmo com a<br />
sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Diga-me se este é o momento certo <strong>de</strong> tocar o negócio<br />
ou se é melhor esperar ain<strong>da</strong> um pouco. Um é a Pathé, que <strong>da</strong>ria<br />
a meta<strong>de</strong>, e o outro o Banco Mundial (o truste Stinnes) que entraria<br />
eventualmente com tudo. Diga a Oswald que continuo esperando o<br />
esboço <strong>de</strong> um roteiro. 13<br />
a maldizer <strong>de</strong>la. O <strong>de</strong>feito pegou. […] Cendrars que dizia e não cumpria, cheio <strong>de</strong><br />
facha<strong>da</strong>s e <strong>de</strong> lembranças, fez mais mal aqui do que bem. A culpa não é tanto <strong>de</strong>le. É<br />
<strong>da</strong> feminili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> nossa gente. Se entregaram e vivem agora a imitá-lo. Os fortes não.<br />
Veja o Couto [<strong>de</strong> Barros] que continua calmo na sua rota sem se importar com ninguém.<br />
Veja Tarsila que resolveu o problema <strong>de</strong>la e vai indo prá frente. Mas o Rubens<br />
[Borba <strong>de</strong> Morais] por exemplo está se per<strong>de</strong>ndo. O Osvaldo também que caiu em ad mi -<br />
ração idiota por tudo quanto é brasileiro e vive a se insurgir contra a erudição e pregando<br />
analfabetismo. É uma pena. Eu, ninguém precisou <strong>de</strong> me vir dizer que o Brasil<br />
era interessante.” Carta <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> a Sérgio Milliet em Paris, <strong>de</strong> 10/12/24.<br />
DUARTE, Paulo. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> por Ele Mesmo. São Paulo: E<strong>da</strong>rt, 1971. p. 301.<br />
11 EULALIO, Alexandre. Op. cit. p. 484.<br />
12 Biblioteca pessoal do escritor, Fonds Blaise Cendrars, Archives Littéraires Suisses,<br />
Bibliothèque Nationale Suisse, Berna.<br />
13 Carta <strong>de</strong> Blaise Cendrars a Paulo Prado, <strong>de</strong> 22/11/24. Fonds Blaise Cendrars, Berna.<br />
18 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
19<br />
Em fevereiro do ano seguinte, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concluir L’Or, Cendrars<br />
volta a farrear com os abonados amigos brasileiros em tempora<strong>da</strong> parisiense,<br />
entre eles Oswald e Washington Luís. O projeto do filme retorna à<br />
mesa, embora ele tenha perdido o controle sobre o assunto.<br />
Não creio que eu vá [ao Brasil] antes <strong>da</strong> sua parti<strong>da</strong> [<strong>de</strong> Paulo Pra do].<br />
Pois se estou empenhado nesse negócio <strong>de</strong> cinema, faria ain<strong>da</strong> mais<br />
questão <strong>de</strong> vê-lo. Mesmo porque aqui Oswald embrulhou tudo <strong>de</strong> uma<br />
maneira inextricável, com Washington [Luís], um banqueiro belga<br />
e os seus próprios negócios, que já não entendo mais na<strong>da</strong>. Oswald<br />
segue no fim do mês, você o verá e talvez compreen<strong>da</strong> aon<strong>de</strong> ele<br />
quer chegar. 14<br />
Essa foi a última menção <strong>de</strong> Blaise Cendrars ao seu projeto <strong>de</strong> filme,<br />
espécie <strong>de</strong> pedido <strong>de</strong> socorro, lançado ao amigo mecenas pelo correio<br />
internacional.<br />
Um ano <strong>de</strong>pois, novamente no Brasil, Cendrars presencia a eleição<br />
<strong>de</strong> Washington Luís à Presidência <strong>da</strong> República. Na terceira viagem, em<br />
1927, passa to<strong>da</strong> a tempora<strong>da</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro, quando teria tido a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> visitar o amigo presi<strong>de</strong>nte no Palácio do Catete, mas não há<br />
documentação nesse sentido. Ele parecia na ocasião mais interessado em<br />
tipos populares — Donga, Febrônio —, e nas incursões nas favelas com a<br />
ambulância do pronto-socorro. O resto <strong>de</strong>sta história é apenas literatura.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista do cinema, o projeto é bastante esclarecedor, so -<br />
bre tudo <strong>de</strong> um profissionalismo <strong>de</strong> que até hoje se duvi<strong>da</strong>. Cineasta sem<br />
filme, Cendrars conseguiu a proeza, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1920, <strong>de</strong> se fazer passar<br />
por um “homem do ramo”, constata <strong>de</strong>sconfiado Clau<strong>de</strong> Leroy. Para ele,<br />
esse cinema é apenas “<strong>de</strong> papel” 15 . O único filme que dirigiu na Itália — La<br />
Venere Nera (A Vênus Negra) — fracassou na bilheteria e na crítica 16 . Desse<br />
filme não restou cópia, mas Blaise Cendrars publicou o seu roteiro — em que<br />
aliás revela pleno domínio do meio — com o título <strong>de</strong> La Perle Fiévreuse.<br />
Sua passagem pelo cinema, no entanto, costuma ser encara<strong>da</strong> como veleitária,<br />
amadorística, no que é confirma<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Abel Gance:<br />
14 Carta <strong>de</strong> 7/4/25. Numa carta a Tarsila, <strong>de</strong> 25/6/25, escrita a bordo do Avon, Oswald<br />
revela seu empenho em tornar-se um bem sucedido poeta capitalista: “Comunico-lhe<br />
que entrei em relações com um grupo mais forte ain<strong>da</strong> do que o que tem negócios<br />
comigo. Horizontes vastos graças a Deus me preocupam. Passo os dias conversando<br />
‘business’. Você sabe inglês, não? Enfim, sou um puro homem <strong>de</strong> negócios. No entanto,<br />
fiz um poema sobre Recife…”. (Apud AMARAL, Aracy A. Tarsila sua obra e seu tempo.<br />
São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1975. p. 169).<br />
15 LEROY, Clau<strong>de</strong>. La Main <strong>de</strong> Cendrars. Villeneuve d’Ascq (Nord): Septentrion, 1996. p. 219.<br />
16 La Venere Nera recebeu certificado <strong>da</strong> censura italiana em janeiro <strong>de</strong> 1923. Críticas <strong>da</strong><br />
época falaram em “tratamento banal”, “interpretação medíocre”, “absur<strong>da</strong> mistura <strong>de</strong><br />
cenas sem sentido”. Cf. PILARD, Philippe. Cendrars: cinéma <strong>de</strong> rêve, rêve <strong>de</strong> cinéma,<br />
Blaise Cendrars, Sud, Marselha, 1988, p. 125.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
“ele permanecia estranho ao nosso trabalho, que o <strong>de</strong>sorientava, que ele mal<br />
acompanhava […] ele não tinha a mínima experiência profissional…” 17<br />
Em 1918, Gance procurava veteranos <strong>de</strong> guerra para atuarem como<br />
figurantes na cena dos mortos que retornam <strong>da</strong>s tumbas para assombrar<br />
os espectadores <strong>de</strong> seu filme J’accuse. Cendrars lhe é apresentado e logo se<br />
liga a ele por amiza<strong>de</strong>. Torna-se seu assistente faz-tudo: contra-regra, eletricista,<br />
fogueteiro, figurinista, assistente <strong>de</strong> câmara, <strong>de</strong> direção, motorista,<br />
contador, caixa, figurante 18 . Dois anos <strong>de</strong>pois, Gance vai chamá-lo para<br />
tra balhar em La Roue. A contribuição <strong>de</strong> Cendrars nesse filme é controverti<strong>da</strong>.<br />
Segundo Jean Epstein, a participação <strong>de</strong>le ficou restrita à filmagem<br />
e no âmbito <strong>de</strong> uma segun<strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produção 19 . Ezra Pound, num<br />
artigo <strong>de</strong> 1923, atribui a Blaise Cendrars os momentos interessantes e os<br />
efeitos propriamente cinematográficos <strong>de</strong> La Roue; o resto do filme é o<br />
“usual sentimentalismo imbecil” 20 .<br />
O próprio Cendrars parece concor<strong>da</strong>r com Pound. Na sua correspondência<br />
com Jacques-Henry Lévesque em mais <strong>de</strong> uma ocasião refere-se<br />
a Gance <strong>de</strong> maneira pouco cordial. Numa <strong>de</strong>las sugere modificações num<br />
texto que Lévesque estava escrevendo para insinuar exatamente o reconhecimento<br />
<strong>de</strong> sua contribuição:<br />
O célebre filme silencioso “La Roue” <strong>de</strong> Abel Gance foi ro<strong>da</strong>do em<br />
1921-22 e fez sensação pelas cenas digamos em montagem simultânea<br />
do trem em veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>! O que acha? Seria forte <strong>de</strong>mais? [Carta<br />
<strong>de</strong> 9/5/43] 21<br />
A insinuação maliciosa ce<strong>de</strong> lugar, em carta posterior, a um ataque<br />
direto:<br />
Acabei a revisão <strong>de</strong> Dan Yack (eliminei a <strong>de</strong>dicatória a Gance, na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> [ele] não merece mais figurar no meu livro! Nem mesmo<br />
numa nota!). [Carta <strong>de</strong> 15/10/45] 22<br />
17 Œuvres complètes <strong>de</strong> Blaise Cendrars, edição do Club français du livre, t. 2, p. XX, citado<br />
por VANOYE, Francis. Le cinéma <strong>de</strong> Cendrars, Europe, Paris, p. 185, juin. 1976.<br />
18 CENDRARS, Blaise. Op. cit. t. 8. p. 672-3.<br />
19 EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma. Paris: Seghers, 1974, t. 1. p. 33 e ss, cit. por MOURIER,<br />
Maurice. Quand Cendrars rêve cinéma…, Minard, série “Blaise Cendrars”. v. 1, p. 110.<br />
20 “Thanks, we presume, to Blaise Cendrars, there are interesting moments, and efects<br />
which belong, perhaps, only to the cinema. At least for the sake of argument we can<br />
admit that they are essentially cinematographic. […] and the rest of the show remains<br />
the usual drivelling idiocy of the cinema sentiment…”. POUND, Ezra, Paris letter, The<br />
Dial, março <strong>de</strong> 1923, cit. por LAWDER, Standish D. The cubist cinema. Nova York: New<br />
York University Press, 1975. p. 96.<br />
21 CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. CHEFDOR, Monique (Org.). Paris: Denoël,<br />
1991. Tomo 9 — “J’écris. Écrivez-moi.”. (“Escrevo. Escreva-me.”) Correspon<strong>da</strong>nce Blaise<br />
Cendrars — Jacques-Henry Lévesque 1924-59, p. 190.<br />
22 Ibi<strong>de</strong>m. p. 379-80.<br />
20 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
21<br />
Tal comportamento lança alguma luz sobre a postura <strong>de</strong> Cendrars<br />
no projeto do filme 100%, no qual se apresenta como realizador <strong>de</strong> J’Accuse<br />
e <strong>de</strong> La Roue, feitos “em colaboração com Abel Gance”. Consi<strong>de</strong>rava sua<br />
contribuição nesses filmes maior do que costumava ser admiti<strong>da</strong> pelo<br />
companheiro, talvez por isso cometera a levian<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inverter a or<strong>de</strong>m<br />
dos colaboradores.<br />
Cendrars tinha uma posição ambígua diante do cinema. Como<br />
escritor, via a nova arte como um po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> revelação dos<br />
homens a si mesmos, a câmara <strong>de</strong> filmar como um bisturi nas mãos do<br />
cineasta-cirurgião — ele havia estu<strong>da</strong>do medicina mas não concluiu o<br />
curso —, e as diferentes lentes <strong>da</strong> câmara <strong>de</strong> filmar, como pinças num laboratório.<br />
Seriam elas dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s extrafísicas; a lente 28, por<br />
exemplo, “colore os pensamentos”, a 12 “penetra insensivelmente a sua<br />
vítima para roubar-lhe a personali<strong>da</strong><strong>de</strong>” etc 23 .<br />
Já o cineasta queria distância <strong>da</strong> literatura. Cendrars mergulhara<br />
“<strong>de</strong> corpo inteiro no cinema” após “<strong>de</strong>spedir-se <strong>da</strong> poesia” em 1917 24 . O ci -<br />
ne ma que fazia — ou que queria fazer — era popular, sentimental, vulgar,<br />
nos antípo<strong>da</strong>s do “cinema puro”, o único que o escritor valorizava. O<br />
cineasta fazia filme “para ganhar dinheiro”; para o escritor “tudo faz prever<br />
que nos encaminhamos para uma nova síntese do espírito humano,<br />
para uma nova humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e que uma raça <strong>de</strong> homens novos vai surgir.<br />
Sua linguagem será o cinema!” 25 .<br />
O cineasta abraçava a física dos negócios; o escritor, para quem o<br />
cinema era uma nova religião, a metafísica <strong>da</strong> linguagem.<br />
No projeto do filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> para o Brasil não há literatura. Ao<br />
contrário, o cineasta <strong>de</strong>sconfia dos parceiros literatos Oswald e Wa shin g ton<br />
Luís, incumbidos <strong>da</strong> sinopse e <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção romancea<strong>da</strong> do roteiro, e enfatiza<br />
sobretudo a questão <strong>da</strong> visuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “to<strong>da</strong>s as situações dramáticas <strong>de</strong>vem<br />
ser resolvi<strong>da</strong>s ou <strong>de</strong>senre<strong>da</strong><strong>da</strong>s Visualmente” (o grifo é <strong>de</strong> Blaise Cendrars).<br />
Entre os <strong>de</strong>staques do projeto está o planejamento <strong>da</strong> distribuição<br />
do filme, assim como a estratégia <strong>de</strong> sua exibição. De início localiza<strong>da</strong>,<br />
para chamar a atenção do público, em segui<strong>da</strong> ampliando o circuito <strong>da</strong>s<br />
salas, alu<strong>de</strong> com certeza a experiências anteriores bem sucedi<strong>da</strong>s. O jogo<br />
23 I<strong>de</strong>m. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1964. Tomo 7 — Une Nuit <strong>da</strong>ns la Forêt (Uma<br />
Noite na Floresta). Chez l’Armée An glai se (Com o Exército Britânico). La Banlieue <strong>de</strong><br />
Paris (A Periferia <strong>de</strong> Paris). Emmène-moi au Bout du Mon<strong>de</strong>!… (Arrasta-me Até o Fim<br />
do Mundo!…), p. 39-40; 42.<br />
24 LEROY, Clau<strong>de</strong>. Op. cit. p. 217.<br />
25 CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1962. Tomo 4 — La Perle Fié -<br />
vreuse (A Pérola Febril). Moganni Nameh. Comment les Blancs sont d’Anciens Noirs<br />
(De Como os Brancos São Pri mi ti vos Negros). Aujourd’hui (Hoje). Vol à Voile (Vôo a Vela).<br />
Panorama <strong>de</strong> la Pègre (Pano ra ma do Submundo). Hollywood, la Mecque du Cinéma<br />
(Hollywood, a Meca do Cinema). La Vie Dangereuse (O Risco <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>), p. 165.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
com a mídia, as ressonâncias comerciais obti<strong>da</strong>s com a exploração <strong>da</strong> trilha<br />
sonora em concertos e do roteiro romanceado em forma <strong>de</strong> livro, a<br />
previsão <strong>de</strong> duas versões do filme <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a platéias distintas — o conjunto<br />
<strong>da</strong>s ações propostas é astucioso e premonitório. Só faltou Cendrars<br />
inventar a distribuição <strong>de</strong> brin<strong>de</strong>s e camisetas.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> produção, o projeto não é menos imaginoso. O<br />
filme <strong>de</strong>ve ser “<strong>de</strong> exceção”, isto é, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>stacar-se <strong>da</strong> produção média,<br />
para garantir o retorno do investimento. Há muito que se sabe que na in dústria<br />
do cinema, como num jogo <strong>de</strong> azar, quanto maior a aposta crescem as<br />
chances <strong>de</strong> lucros fabulosos se o filme estourar na bilheteria. O ris co é<br />
total, pois nesse caso eliminam-se as chances dos resultados medianos. Mas<br />
como o investimento seria composto <strong>de</strong> recursos privados (companhias distribuidoras,<br />
bancos), públicos (governos fe<strong>de</strong>ral e estaduais), na proporção<br />
<strong>de</strong> 1:2, e Cendrars contabilizaria como investimento o seu capital profis sio -<br />
nal — seus <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cinematográficas e seu trabalho <strong>de</strong> criação<br />
—, o risco se dilui. Trata-se <strong>da</strong> clássica fórmula <strong>da</strong> co-produção entre países,<br />
pela qual os investimentos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> país são aplicados no seu próprio terri tório,<br />
sem necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transferências internacionais <strong>de</strong> moe<strong>da</strong>. A distri buidora<br />
do filme retém as receitas <strong>de</strong> comercialização em escala mundial até<br />
se ressarcir do investimento, os governos obtêm o seu retorno institucional<br />
por meio <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> que o filme veicula, e Cen drars não põe um tostão<br />
do dinheiro — que aliás nunca teve — mas participa dos lucros.<br />
Nosso diretor/produtor introduz ain<strong>da</strong> um conceito que só se tornou<br />
corrente na indústria americana no <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 1950: a participação,<br />
nas receitas do filme, <strong>da</strong> equipe principal <strong>de</strong> criação, incluídos os autores<br />
do argumento, <strong>da</strong> trilha sonora, os atores, o fotógrafo etc. 26<br />
A ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> escritor/cineasta retorna em outro plano. Cendrars<br />
no projeto ora se comporta como produtor, ora como diretor. Para o produtor,<br />
a execução <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> espetáculo segue uma espécie <strong>de</strong><br />
receita <strong>de</strong> bolo: a “fórmula Superprodução”. Por outro lado, querendo<br />
assegurar “o alcance Total do filme”, Cendrars se reserva as funções <strong>de</strong><br />
autor <strong>da</strong> <strong>de</strong>cupagem e diretor. Inspirado em Griffith e Gance, também ele<br />
se vê como duplo <strong>de</strong> produtor e autor, <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> negócios e artista.<br />
Bem ao contrário do que afirma em “Etc…, etc…, Um filme 100%<br />
brasileiro”, o projeto do filme não surgiu <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um encantamento<br />
com a beleza contagiante do país visitado — o “paraíso terreal” —,<br />
mas <strong>de</strong> uma intenção <strong>de</strong>sapaixona<strong>da</strong>. Não digo que o encantamento não<br />
26 A elaboração do orçamento <strong>de</strong> um filme nos EUA utiliza duas fontes, separa<strong>da</strong>s por<br />
uma linha. Below the line contabiliza as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> fabricação do produto, above the<br />
line, os direitos <strong>da</strong> equipe principal <strong>de</strong> criação, que <strong>de</strong>ssa maneira participa em percentagem<br />
do resultado comercial do filme.<br />
22 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
23<br />
tenha ocorrido, mas o projeto <strong>de</strong> filme é anterior e <strong>de</strong>le mesmo prescin<strong>de</strong>.<br />
O que dá sustentação ao projeto é o seu lado oficial, Brasil “o maior país<br />
do futuro”. A ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong> ou a intenção abertamente comercial <strong>de</strong> Cen -<br />
drars provoca no leitor contemporâneo um sorriso irônico diante <strong>da</strong> frase<br />
O Brasil é um Gran<strong>de</strong> Estado Mo<strong>de</strong>rno com um passado, tradições,<br />
uma história. É atualmente uma gran<strong>de</strong> República Democrática<br />
que oferece to<strong>da</strong>s as garantias morais <strong>de</strong>sse regime.<br />
Em junho <strong>de</strong> 1924, o país vivia sob estado <strong>de</strong> sítio, <strong>de</strong>cretado pelo<br />
governo <strong>de</strong> Artur Bernar<strong>de</strong>s. E a revolução que eclodiria no mês seguinte<br />
<strong>de</strong>nunciaria a <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> facha<strong>da</strong> e a mão <strong>de</strong> ferro com que era conduzido.<br />
Mas estamos no domínio <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>, em que importam menos<br />
as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do produto a ser vendido que a forma com que é feita. E<br />
Cendrars era um precursor no culto <strong>de</strong>ssa nova forma <strong>de</strong> comunicação.<br />
Ao tomar partido numa polêmica que se <strong>de</strong>senrolaria em Paris em<br />
1927 sobre a concessão <strong>de</strong> um prêmio à melhor peça publicitária feita por<br />
um escritor, dirá ele:<br />
Publici<strong>da</strong><strong>de</strong> = Poesia. A publici<strong>da</strong><strong>de</strong> é a flor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemporânea;<br />
é uma afirmação <strong>de</strong> otimismo e <strong>de</strong> alegria, ela distrai o olho e o es -<br />
pí rito. É a mais calorosa manifestação <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos homens <strong>de</strong><br />
hoje, <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>rio, <strong>de</strong> sua puerili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> seu dom <strong>de</strong> invenção e<br />
<strong>de</strong> imaginação… 27<br />
Outro ponto polêmico do projeto diz respeito à sua ancoragem histórica.<br />
Escolher um episódio <strong>da</strong> história paulista — o caso dos irmãos Le -<br />
mes — pelo que ele oferece <strong>de</strong> conteúdo patriótico ao narrar uma luta <strong>de</strong><br />
aventureiros pré-capitalistas que não se submetem ao jugo <strong>da</strong> metrópole,<br />
para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e sobretudo seus interesses econômicos, parece<br />
rico <strong>de</strong> significados. Mas afirmar que a “História Paulista se confun<strong>de</strong> tão<br />
freqüentemente com a História Nacional”, revela antes uma posição do<br />
gru po a que Cendrars estava vinculado, composto <strong>de</strong> paulistões orgulhosos,<br />
chefiados por Paulo Prado. Assim, quando transformar o projeto do filme<br />
em literatura, Cendrars <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> lado o episódio dos Lemes, tema do<br />
filme do cineasta, e se fixará na narrativa do capítulo “Pires e Ca mar gos”,<br />
<strong>de</strong> Paulística, <strong>de</strong> autoria do amigo 28 . Lá encontrará os elementos dramáticos<br />
<strong>de</strong> uma ven<strong>de</strong>tta que se <strong>de</strong>senrola ao longo <strong>de</strong> gerações, tema do filme do<br />
escritor.<br />
27 Dites-nous, Monsieur Blaise Cendrars. RICHARD, Hughes (Org.). Lausanne: Rencontre,<br />
1969. p. 57 ; CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1960. Tomo 3 — Le<br />
Plan <strong>de</strong> l’Aiguille (O Plaino <strong>da</strong> Agulha). Confessions <strong>de</strong> Dan Yack (Confissões <strong>de</strong> Dan<br />
Yack). Rhum (Rum). Histoires Vraies (Histórias Autênticas), p. 229.<br />
28 PRADO, Paulo. Paulística. Org: Carlos Augusto Calil. 4a. ed. <strong>revista</strong> e aumenta<strong>da</strong>. São<br />
Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2004. p. 110-125.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O projeto do filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> afirma a certa altura que o cinema<br />
no Brasil não existe como indústria, só como comércio <strong>de</strong> fitas importa<strong>da</strong>s.<br />
E que preten<strong>de</strong> <strong>da</strong>r um “impulso generoso” a essa indústria nascente.<br />
O método é o transplante <strong>de</strong> técnicos estrangeiros e <strong>de</strong> tecnologia (estúdios<br />
ambulantes) cujo domínio seria compartilhado com membros brasileiros<br />
<strong>da</strong> equipe profissional 29 . Embora o diagnóstico estivesse correto — e infelizmente<br />
continua correto ain<strong>da</strong> hoje —, o que autorizava o visitante a<br />
igno rar o medíocre Cinema Brasileiro?<br />
No grupo mo<strong>de</strong>rnista apenas Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> acompanhava o lançamento<br />
dos filmes nacionais. Mas as suas críticas eram publica<strong>da</strong>s sob<br />
pseudônimo, para não suscitar o <strong>de</strong>boche dos amigos que <strong>de</strong>sprezavam os<br />
cavadores locais 30 . A única manifestação conheci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Paulo Prado sobre o<br />
assunto alu<strong>de</strong> à praga que assolou o país: os “inúmeros cinemas que pu lu -<br />
lam como sanguessugas até os confins dos sertões” 31 . Contextualizando, essa<br />
crítica se dirige à exploração do mercado pelo filme estrangeiro, o que provoca<br />
sangria <strong>de</strong> divisas. Se Paulo Prado nunca se manifestou positivamente<br />
a favor <strong>da</strong> produção cinematográfica nacional, po<strong>de</strong>mos inferir pelo<br />
comentário citado que apoiaria o estabelecimento <strong>de</strong>ssa indústria e via com<br />
bons olhos a iniciativa <strong>de</strong> Cendrars e Oswald, embora pu<strong>de</strong>sse cri ticar-lhe<br />
o aspecto ufanista.<br />
A coincidência <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista entre Prado e Cendrars po<strong>de</strong> ser<br />
senti<strong>da</strong> numa <strong>de</strong>claração <strong>de</strong>ste feita a Nino Frank:<br />
[…] o Brasil está estourando <strong>de</strong> dinheiro. Os americanos, Ford e<br />
Hol lywood, garfam tudo: só se pensa em automóveis. Cinemas em to<strong>da</strong><br />
a parte. Lá corre um rio <strong>de</strong> dinheiro, que sobe em direção ao Norte. 32<br />
Oswald, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1922 com Os con<strong>de</strong>nados, tentava fazer cinema <strong>de</strong><br />
palavras. Sua narrativa buscava a simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s ações paralelas, que<br />
o cinema <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Nascimento <strong>de</strong> uma nação (David Griffith, 1915) consagrara<br />
como uma marca registra<strong>da</strong>. Não se fizera ele passar certa vez por<br />
29 A visão “generosa” <strong>de</strong> Cendrars sobre o futuro do cinema brasileiro será reforça<strong>da</strong><br />
num trecho <strong>de</strong> seu texto “Des hommes sont venus…”, <strong>de</strong> Le Brésil (1952), em que diz:<br />
“…le Far-West d’un cinéma futur… quand le Brésil sera prêt à tourner et aura son<br />
Hollywood, Kinétopolis, studios et bungalows et gratte-ciel pour la telévision, et une<br />
tour d’émission pour la radio qui se dresseront aux confins du mon<strong>de</strong> civilisé, en l’an<br />
2000…”. [Le Brésil. Texto <strong>de</strong> Blaise Cendrars, fotografias <strong>de</strong> Jean Manzon. Mônaco: Les<br />
documents d’art, 1952. p. XVI]<br />
30 Depoimento <strong>de</strong> Rubens Borba <strong>de</strong> Morais em GALVÃO, Maria Rita. Crônica do cinema<br />
paulistano, São Paulo: Ática, 1975. p. 43.<br />
31 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Org: Carlos Augusto Calil. 8a. ed., <strong>revista</strong> e aumenta<strong>da</strong>.<br />
São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1997. p. 205.<br />
32 Ent<strong>revista</strong> a Nino Frank, “Malles et valises”, Les Nouvelles Littéraires, Paris, 21/4/28.<br />
24 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
25<br />
um cineasta em filmagem para com esse álibi raptar a bailarina adolescente<br />
Lan<strong>da</strong> Kosbach, objeto <strong>de</strong> uma paixão incontrolável? 33<br />
Washington Luís, que não era propriamente um mo<strong>de</strong>rnista, conhecia<br />
as potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do cinema como propagan<strong>da</strong> política. Na Presidência<br />
do Estado (1920-24) contratou por um conto <strong>de</strong> réis por mês um cinegrafista<br />
italiano — Gilberto Rossi — para que este apresentasse, em duas edições<br />
mensais, as Rossi Actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Inicialmente a intenção do operador<br />
era filmar “cataratas, florestas virgens, praias e outras belezas naturais”<br />
para propagan<strong>da</strong> no estrangeiro. Mas “em vez disso [Rossi] filmava estra<strong>da</strong>s<br />
e inaugurações” 34 .<br />
Fora do grupo diretamente envolvido no projeto do gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong><br />
propagan<strong>da</strong>, mas próximo <strong>de</strong> seus membros, merece ser lembrado Me not ti<br />
<strong>de</strong>l Picchia, o colunista “Helios” do Correio Paulistano. Mo<strong>de</strong>rnista <strong>da</strong> primeira<br />
hora, era sócio <strong>de</strong> uma empresa <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> cinema, a In<strong>de</strong> pen -<br />
dência Omnia Film, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por ocasião do centenário <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência<br />
para realizar documentários.<br />
Menotti, ligado ao partido do governo, o Partido Republicano Pau lis ta<br />
(PRP), aju<strong>da</strong>va o irmão José (que tocava a produtora) a conseguir con tra -<br />
tos oficiais para filmagem <strong>de</strong> “naturais”. O próprio Menotti reconheceria<br />
mais tar<strong>de</strong> que esses “naturais” — nome que se <strong>da</strong>va aos documentários,<br />
por oposição aos “posados”, os filmes <strong>de</strong> ficção — eram “uma gran<strong>de</strong> ma -<br />
ma ta. Sempre houve muita cavação no cinema, mas aquela era a maior <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong>s, a quinta-essência <strong>da</strong> cavação” 35 .<br />
Maria Rita Galvão, em Crônica do cinema paulistano, <strong>de</strong>screve esse<br />
universo <strong>de</strong> aventureiros que viviam precariamente <strong>de</strong> cinema:<br />
Sob qualquer <strong>de</strong> suas formas, a cavação foi a base <strong>de</strong> sustentação do<br />
cinema paulista. Recorria-se a to<strong>da</strong> sorte <strong>de</strong> expedientes, nem sempre<br />
recomendáveis, para arrumar dinheiro. […] feito o filme, ao fim<br />
<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> experiência voltava-se à estaca zero, com a agravante <strong>de</strong><br />
que, a ca<strong>da</strong> fracasso, diminuía o crédito do cinema nacional e o nú -<br />
mero <strong>de</strong> candi<strong>da</strong>tos a financiadores. 36<br />
As medi<strong>da</strong>s propostas para combater a improvisação e implantar uma<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira indústria eram invariavelmente o investimento em equipamentos<br />
Reproduzi<strong>da</strong> em EULALIO, Alexandre. Op. cit. p. 421.<br />
33 ANDRADE, Oswald <strong>de</strong>. Um homem sem profissão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1954;<br />
__________. Memórias sentimentais <strong>de</strong> João Miramar. São Paulo: Difusão Européia do<br />
Livro, 1964.<br />
34 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit. p. 198.<br />
35 Apud Ibi<strong>de</strong>m. p. 254.<br />
36 Ibi<strong>de</strong>m. p. 53.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
e estúdios e a importação <strong>de</strong> profissionais estrangeiros. Em 1924, ao mes -<br />
mo tempo em que Cendrars planejava o seu filme, o ambiente cinematográfico<br />
<strong>de</strong> São Paulo era sacudido com o empreendimento <strong>de</strong> A<strong>da</strong>lberto <strong>da</strong><br />
Alma<strong>da</strong> Fagun<strong>de</strong>s, industrial do ramo <strong>de</strong> porcelana, que criou em mol<strong>de</strong>s<br />
grandiosos a Visual Film. Para dirigir o primeiro — e único — filme que produziu,<br />
Quando elas querem, foi buscar um técnico estrangeiro em Cam -<br />
pinas, um italiano <strong>de</strong> nome Eugenio Centenaro, que se fazia passar por<br />
Eugene C. Kerrigan. 37<br />
A convicção <strong>de</strong> nossas elites <strong>de</strong> que cinema é coisa <strong>de</strong> estrangeiro é<br />
ain<strong>da</strong> anterior. Em 1918, o jornal O Estado <strong>de</strong> S. Paulo noticiava a chega<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> um ilustre <strong>de</strong>sconhecido, “o sr. Leon Bary, artista francês” que vinha<br />
“tratar <strong>de</strong> montar aqui, com capitais brasileiros, uma gran<strong>de</strong> empresa<br />
cinematográfica” 38 . E a Vera Cruz, no <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 1950, irá repetir a receita<br />
<strong>da</strong> Visual, equipamentos e técnicos estrangeiros, com resultados igualmente<br />
frustrantes, pela mesma ausência <strong>de</strong> estrutura <strong>de</strong> comercialização.<br />
Cendrars, poeta pranteado, não circulava fora dos meios literários;<br />
era refém dos intelectuais que o hospe<strong>da</strong>vam. Não <strong>de</strong>ve ter tomado conhecimento<br />
<strong>da</strong> iniciativa <strong>de</strong> Alma<strong>da</strong> Fagun<strong>de</strong>s, que corria paralela à sua. Uma<br />
eventual associação <strong>de</strong> interesses convergentes po<strong>de</strong>ria ter transformado<br />
ambas as experiências ou mesmo as convertido num mesmo empreendimento,<br />
com a vantagem <strong>de</strong> aproximar capitais nacionais disponíveis <strong>de</strong><br />
um projeto — o do filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> — que, embora megalômano, tinha<br />
uma perspectiva <strong>de</strong> mercado.<br />
Na sua nova pele <strong>de</strong> cineasta, Cendrars <strong>de</strong>monstra uma segurança<br />
que impressiona, mesmo se relevarmos uma ponta <strong>de</strong> cabotinismo. No<br />
projeto ele se <strong>de</strong>screve como<br />
alguém do ramo, conhecedor <strong>de</strong> todos os recursos <strong>de</strong> sua arte, dos<br />
truques <strong>da</strong> técnica, <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comerciais e do gosto dos diferentes<br />
públicos do mundo. […] um fino psicólogo e dotado do sentido<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>…<br />
Num livro inconcluso, escrito no Brasil e que permaneceu inédito até<br />
recentemente, proclama-se um perito, capaz <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com “as prevenções<br />
dos sócios investidores e dos exibidores, a sentimentali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos espectadores,<br />
to<strong>da</strong>s essas coisas primárias e besteiras convencionais…” 39<br />
37 Ibi<strong>de</strong>m. p. 55.<br />
38 O Estado <strong>de</strong> S. Paulo, 4/9/18, cit. em BERNARDET, Jean-Clau<strong>de</strong>. Cinema brasileiro:<br />
propostas para uma história. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra,1979. p. 32.<br />
39 John Paul Jones ou l’Ambition. LEROY, Clau<strong>de</strong> (org.). [Montpellier]: Fata Morgana,<br />
1989. p. 97.<br />
26 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
27<br />
De na<strong>da</strong> lhe serviriam tantos atributos. Por que fracassou o projeto<br />
do filme 100% brasileiro <strong>de</strong> Cendrars? Foi a embrulha<strong>da</strong> com os outros<br />
negócios <strong>de</strong> Oswald, conforme se queixaria a Paulo Prado? E o cineasta<br />
não se <strong>da</strong>va conta <strong>de</strong> que, enquanto buscava qualificar-se “profissionalmente”<br />
para um projeto <strong>de</strong> tamanha envergadura que teria mu<strong>da</strong>do o<br />
curso <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, associava-se a dois diletantes, Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e<br />
Washington Luís, sem problemas <strong>de</strong> sobrevivência, cujos interesses prioritários<br />
estavam plantados em outros campos?<br />
Oswald permanecerá ligado ao cinema, ao menos no plano virtual.<br />
Escreveu diversos roteiros, nenhum chegou a ser filmado. “Perigo negro”,<br />
extraído do seu romance Marco Zero, foi publicado na Revista do Brasil,<br />
em 1938 40 . Por essa época, tentou obter<br />
um contrato com o Ministério <strong>da</strong> Agricultura, Indústria e Comércio<br />
visando à realização <strong>de</strong> um “gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> nacional”.<br />
Pretendia divulgar nos Estados e no estrangeiro as diversas feições<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> brasileira, <strong>da</strong> sua história, e do seu progresso atual, com<br />
ênfase no <strong>de</strong>senvolvimento do espírito criador. O plano privilegiava<br />
dois gran<strong>de</strong>s aspectos do país: a formação geográfica e econômica,<br />
uma vez que o empreendimento cinematográfico se comprometia a<br />
divulgar o investimento nesses setores por parte do governo fe<strong>de</strong>ral.<br />
Esse foi outro projeto que não saiu do papel, apesar do ministro<br />
Marcon<strong>de</strong>s M. Filho ser seu amigo. 41<br />
Aí está a evidência <strong>de</strong> que o projeto do “Gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>”<br />
era idéia <strong>de</strong> Oswald, que, não a tendo podido viabilizar em 1924, insistia<br />
no vamente no final dos anos 1930. Dele falara com Blaise ain<strong>da</strong> em Paris, tentando<br />
atraí-lo para uma viagem ao Brasil. Por esse motivo, Cendrars ao es crever<br />
à família, nas vésperas do embarque, mencionava negócios que lhe ha -<br />
viam sido propostos, “sendo um <strong>de</strong> cinema que po<strong>de</strong> ser muito interessante”.<br />
Contrariando as expectativas do visitante que acolhia, o Brasil não<br />
lhe permitiu concretizar nenhuma <strong>da</strong>s inúmeras oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> negócios<br />
com que sonhara fazer a América. Dessa experiência, Cendrars sairá<br />
traumatizado e cunhará uma frase, repeti<strong>da</strong> ao longo <strong>de</strong> sua obra futura,<br />
que intriga o leitor pelo conteúdo emblemático que encerra, para além do<br />
simples pa ra doxo: “les affaires ne sont pas les affaires” 42 (negócios que não<br />
são negócios).<br />
40 Revista do Brasil, 3a. fase, ano I, no. 4, Rio <strong>de</strong> Janeiro: out. 1938, p. 383-417.<br />
41 BOAVENTURA, Maria Eugênia. O Salão e a Selva. São Paulo; Campinas: Ex Libris;<br />
Editora <strong>da</strong> Unicamp, 1995. p. 177; 194.<br />
42 Cf. CENDRARS, Blaise. Rhum (Œuvres complètes. tomo 3, p. 294-96); Bourlinguer<br />
(tomo 6, p. 42); Une Nuit <strong>da</strong>ns la Forêt (tomo 7, p. 23), com a variante: “Non, les affaires<br />
sont dures.”<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Mais tar<strong>de</strong>, quando foi capaz <strong>de</strong> elaborar o malogro, Cendrars admitiu<br />
que o Brasil, enquanto lhe negava o sucesso nos negócios, inclusive a<br />
gran<strong>de</strong> vira<strong>da</strong> na sua carreira <strong>de</strong> cineasta, inspirara-lhe o dom <strong>de</strong> escrever<br />
“romances”, que soube capitalizar com L’Or e Moravagine.<br />
Escrevera Ouro em seis semanas, tão impaciente estava eu por partir<br />
<strong>de</strong> novo para o Brasil, on<strong>de</strong> me esbal<strong>da</strong>va em per<strong>de</strong>r meu tempo,<br />
como no ano anterior, por ocasião <strong>da</strong> revolução <strong>de</strong> Isidoro, em que<br />
não tinha escrito uma linha sequer… Foi assim que me iniciei, não<br />
tanto na arte do romance como na arte do… capitão <strong>de</strong> indústria que<br />
o romancista mo<strong>de</strong>rno pós-Balzac exerce e que consiste em saber<br />
<strong>de</strong>scolar dinheiro na vola<strong>da</strong>. [Moravagine, Pro domo] 43<br />
A cavação, como se po<strong>de</strong> constatar, nem é exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do cinema,<br />
nem dos cineastas brasileiros. Os projetos <strong>de</strong> Blaise no cinema inviabilizaram-se<br />
<strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra. Por que a insistência <strong>de</strong>le em recomeçar?<br />
Para se libertar do ofício <strong>de</strong> escrever — que consi<strong>de</strong>rava mais conforme<br />
a um burocrata, alguém que renuncia à vi<strong>da</strong> —; para mergulhar na<br />
ação, na agit[ação], porque “fazer cinema é uma paixão, como um pico <strong>de</strong><br />
morfina. Uma vez que se experimentou, não há meio <strong>de</strong> abandonar.” 44<br />
Anos mais tar<strong>de</strong>, quando trabalhava na <strong>de</strong>cupagem para um filme<br />
baseado em Victor Hugo, dirá numa carta a Paulo Prado: “Espero continuar<br />
algum tempo no cinema. É mais divertido e paga um bom bife!” 45<br />
Desapontado, Cendrars teve <strong>de</strong> retornar à literatura. E na cozinha do<br />
escritor os textos são ora requentados, ora reformados, ou simplesmente<br />
remanejados. Remexendo velhos papéis ele se <strong>de</strong>para com o projeto do fil -<br />
me brasileiro. Com uma ponta <strong>de</strong> amargura lhe vem à memória a história<br />
<strong>de</strong>sse filme cuja realização o levou ao Brasil. Lá sua vi<strong>da</strong> tomou um rumo<br />
que não esperava. Lê o projeto. A quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> etc. nele emprega<strong>da</strong> <strong>de</strong>sperta<br />
sua curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Começa a contar, per<strong>de</strong> o número quando já passam<br />
<strong>de</strong> vinte. Há também alguns duplos: etc., etc… Mansamente chega-lhe a<br />
idéia para mais uma “histoire vraie”. Ele se constrói um entrecho, mais<br />
generoso que o fornecido pela lembrança vívi<strong>da</strong> <strong>da</strong> revolução <strong>de</strong> Isidoro,<br />
<strong>de</strong> Washington Luís, o amigo presi<strong>de</strong>nte, <strong>da</strong>s trapalha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Oswald, uma<br />
história cuja inverossimilhança absolve a frustração. Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira no essencial,<br />
abriga no seu auto-irônico etc…, etc… tudo o que a aventura brasileira<br />
lhe sonegou 46 .<br />
43 CENDRARS, Blaise. Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1961. Tomo 2, p. 440.<br />
44 Dites-nous, Monsieur Blaise Cendrars. RICHARD, Hughes (org.). Lausanne: Rencontre,<br />
1969. p. 50.<br />
45 Carta <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1933.<br />
46 A íntegra do projeto, elaborado em conjunto com o primeiro-amigo (“Oswald está por<br />
<strong>de</strong>mais impaciente”), que Cendrars encaminhou a Paulo Prado, acompanhado <strong>de</strong> uma<br />
breve carta, está publica<strong>da</strong> na seção Documentação <strong>de</strong>sta Revista.<br />
28 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
29<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no<br />
Grão-Pará no final do século XVIII 1<br />
Mark Harris 2<br />
Resumo<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma investigação sobre imagens do lobisomem em Por tu gal e<br />
sua mescla com várias enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s transformativas <strong>da</strong> Amazônia no fim do<br />
século XVIII no Grão-Pará. A análise é basea<strong>da</strong> em documentos existentes<br />
no Arquivo Público do Estado do Pará, em Belém. Nesse sentido, este artigo<br />
é mais metodológico e teórico — como fazer um estudo do “pensamento<br />
mestiço” (<strong>de</strong> Serge Gruzinski) usando documentação judiciária — do que<br />
etnográfico. Tal como Gruzinski, consi<strong>de</strong>ro que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> criar analogias<br />
imperfeitas têm um valor <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção, <strong>de</strong> salvar as pessoas <strong>da</strong> esterili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição <strong>da</strong> conquista. Em outras palavras, o esboço que<br />
Gruzinski nos oferece representa a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver as inovações po -<br />
pulares no tempo colonial e imperial como pontes <strong>da</strong> imaginação, ligando<br />
as diferenças e hierarquias formais com as práticas e relações cotidianas.<br />
Meu esforço se direciona também a examinar o significado <strong>da</strong> mestiçagem<br />
para pessoas que estavam realizando o trabalho <strong>de</strong> conexão e construção<br />
<strong>de</strong> novos e complexos compostos. Meu objetivo é contribuir para uma re -<br />
visão <strong>da</strong> historiografia sobre a Amazônia, <strong>da</strong> qual participam histo ria dores<br />
e antropólogos no Brasil, on<strong>de</strong> ou se <strong>de</strong>stacam o sofrimento e o holocausto<br />
<strong>da</strong> época colonial, ou se faz uma narrativa <strong>da</strong> emergência do povo paraense<br />
ou amazonense associa<strong>da</strong> à condição <strong>de</strong> elite regional e ao Estado. Uma nova<br />
historiografia tenta reconhecer outras histórias, assim como a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> região.<br />
Palavras-chave<br />
Amazônia, mestiçagem, imaginação, Ameríndios, historiografia, len<strong>da</strong>s,<br />
mitos.<br />
1 Apresentação realiza<strong>da</strong> no <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>Brasileiros</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
São Paulo, em 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2008. Agra<strong>de</strong>ço o convite <strong>da</strong> Profa Dra Marta<br />
Amo roso.<br />
2 Professor do Departamento <strong>de</strong> Antropologia Social Social <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
St. Andrews (St. Andrews, Escócia).<br />
E-mail: mh25@st-andrews.ac.uk<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
The werewolf in between indians<br />
and whites:<br />
the work of the imagination in Grão-Pará<br />
at the end of the eighteenth century<br />
Mark Harris<br />
Abstract<br />
The un<strong>de</strong>rstanding of the Amazon’s colonial period as the secure<br />
imposition of Portuguese control on powerless and scattered Indian<br />
peoples is misleading. The representation obscures Indian acts of<br />
resistance, the efforts of thousands of colonists to a<strong>da</strong>pt and the emergence<br />
of a mestiço population, as well as the local negotiations<br />
between these heterogeneous groups. Little research has been conducted<br />
on the popular culture or religion in the Amazon during this<br />
time <strong>de</strong>spite the existence of various sources. Developing arguments<br />
ma<strong>de</strong> elsewhere in Brazil, and using documents from the State archive<br />
of Pará, Brazil, this article reveals something of the popular culture<br />
which appeared as the diverse traditions converged. It was a way of life<br />
impregnated with complex negotiations and tense congregations of<br />
beliefs and practices that would eventually lead to a region wi<strong>de</strong>, mass<br />
participation rebellion in the 1830s. The focus of the text is a legal<br />
action brought by a Brazilian born town official in 1793 accused of<br />
being werewolf and scaring Indians and whites in the Lower Amazon.<br />
What was the significance of the werewolf and what work was the figure<br />
doing locally? By reconstructing aspects of this colonial world, my<br />
argument is that the Portuguese <strong>de</strong>rived figure of the werewolf acted<br />
as a bridging concept to similar transformative beings in the<br />
Amerindian world. I suggest the bridges ma<strong>de</strong> by the diverse kinds of<br />
people represent an imaginative frontier and was the localised form in<br />
which whites, mestiços and Indians came to relate each other.<br />
Keywords<br />
Amazonia, hybridity, imagination, Amerindians, historiography, folktales,<br />
myths.<br />
30 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
ste artigo faz parte <strong>de</strong> um projeto sobre a cultura<br />
po pular na Amazônia no período colonial, particularmente sobre religião<br />
popular. O que me interessa é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> entre<br />
os vários grupos e indivíduos, como o uso <strong>de</strong> símbolos, práticas e rituais.<br />
Essas comunicações articularam um espaço em comum. “Em comum” não<br />
significa que havia os mesmos interesses ou entendimentos: é “a zona <strong>de</strong><br />
contato”, <strong>de</strong> Mary Louise Pratt3 , o espaço colonial on<strong>de</strong> as culturas se en -<br />
contram e conflitam. Po<strong>de</strong> ser também o “terreno do meio”, <strong>de</strong> Ri chard<br />
White4 E<br />
, que estudou as interações entre índios e europeus na região dos<br />
Gran<strong>de</strong>s Lagos na América do Norte. Ao longo do tempo, emergem várias<br />
conexões e mediações, o que po<strong>de</strong> levar a um entendimento transcultural<br />
ou a um <strong>de</strong>sentendimento. Refiro-me às línguas populares, com termos e<br />
categorias locais e específicos, festas, parentesco, religião, trabalho, contos,<br />
tudo o que se passa no espaço público e <strong>da</strong> comunicação. Po<strong>de</strong>mos ver isso<br />
como a arte do possível, um mundo cheio <strong>de</strong> acomo<strong>da</strong>ções e transigências<br />
entre os diversos interesses.<br />
31<br />
3 Cf. PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: travel writing and transculturation. New York:<br />
Routledge, 1992.<br />
4 Cf. WHITE, Richard. The middle ground: indians, empires, and republics in the Great<br />
Lakes region, 1650-1815. New York: Cambridge University Press, 1991.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O projeto é sobre então o trabalho <strong>da</strong> imaginação que articula essas<br />
ligações e espaço comum. Entendo imaginação como uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> um<br />
pouco rebel<strong>de</strong>, que an<strong>da</strong> on<strong>de</strong> quer, mas sempre liga<strong>da</strong> à experiência, à<br />
matéria e à textura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Nesse sentido, é difícil prognosticar os resultados<br />
<strong>da</strong>s trilhas por on<strong>de</strong> vai a imaginação. Por isso chamo este projeto, <strong>de</strong><br />
que esta apresentação faz parte, Trilhas perigosas na Amazônia Oriental.<br />
Na<strong>da</strong> é mais evocativo do ambiente on<strong>de</strong> an<strong>da</strong>m estas passagens que os<br />
circuitos dos rios <strong>da</strong> Amazônia. Os rios e suas margens são a zona <strong>de</strong> contato.<br />
No texto seguinte não vá falar aqui sobre a cultura liga<strong>da</strong> às águas,<br />
gostaria que vocês guar<strong>da</strong>ssem em mente a importância e a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sse ambiente.<br />
Cultura popular e religião na Amazônia Portuguesa<br />
Uma pequena anedota exemplificará minhas intenções. João Felipe<br />
Bettendorff era um missionário jesuíta <strong>de</strong> Luxemburgo e amigo do muito<br />
estimado companheiro António Vieira. Bettendorff viveu no Grão-Pará na<br />
segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVIII e viajou extensiva e freqüentemente, crian -<br />
do novas missões e supervisionando as já existentes. A sua longa e, por ve -<br />
zes, fascinante crônica do seu trabalho na Amazônia é uma <strong>da</strong>s primeiras<br />
peças <strong>de</strong> escrita <strong>da</strong> não-conquista: <strong>de</strong>screve um mundo que, se não completamente<br />
em paz, funcionava como uma colônia e uma missão 5 . No início<br />
dos anos <strong>de</strong> 1660, ele ingressou numa viagem <strong>de</strong> regresso a Santarém<br />
(chama<strong>da</strong>, à época, Tapajós), acompanhado <strong>de</strong> João Corrêa, um militar<br />
que o escoltava e que também já havia estado lá. Depois <strong>de</strong> uma jorna<strong>da</strong><br />
particularmente fatigante a subir o rio, na qual a sua canoa quase virou<br />
durante uma tempesta<strong>de</strong>, ele chega a Santa rém ao amanhecer para ser<br />
recebido pelos índios. Eles estavam muito agra<strong>da</strong>dos por vê-lo novamente.<br />
Bettendorff relata:<br />
muito mais por me verem acompanhado <strong>de</strong> um branco entre eles<br />
tão conhecido e amado, pela gran<strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> com que os san gra ra e<br />
curava em suas doenças e achaques, e por esta razão todos chamavam<br />
seu atoassanã, que quer dizer compadre. 6<br />
5 Ain<strong>da</strong> assim, é importante ressaltar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outras leituras dos <strong>de</strong>talhes<br />
etno gráficos que o missionário introduz. A Crônica não apenas documenta a brutali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> conquista por sertanistas, como também utiliza o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> “conquista espiritual”<br />
para explicar a missão e a dimensão missionária <strong>da</strong> colônia.<br />
6 BETTENDORF, J. F. Crônica dos padres <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus no estado do Mara nhão.<br />
Belém: Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Cultura, 1990. p.164.<br />
32 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
33<br />
Na<strong>da</strong> é dito acerca do significado <strong>de</strong>ssa relação para qualquer <strong>da</strong>s<br />
par tes envolvi<strong>da</strong>s (embora Bettendorff fale <strong>de</strong> dois homens luso-brasileiros,<br />
um <strong>de</strong>les ex-missionário, que casaram na nobreza índia nativa <strong>de</strong> Ta pa jós).<br />
O cronista subenten<strong>de</strong> que o batismo não criava ligação entre as pessoas.<br />
Em vez disso, o uso do termo compadre parece ser uma forma amigável<br />
<strong>de</strong> incorporar estranhos no domínio do parentesco. Se tal está correto, o<br />
ato está ligado a casos que <strong>da</strong>tam dos primeiros dias <strong>da</strong> presença européia<br />
entre os povos indígenas, quando cronistas registraram a significância <strong>da</strong><br />
relação atoassanã para os povos indígenas <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a América do Sul, particularmente<br />
para os pertencentes ao grupo lingüístico tupi. Os atoassanãs<br />
eram mais do que meros compadres no entedimento nativo: eram pessoas<br />
<strong>de</strong> diferentes grupos (provavelmente primos cruzados) que procurariam<br />
es tabelecer relações mais abrangentes e duradouras entre os seus parentes.<br />
Dessa forma, a relação indígena era uma relação política, que asseguraria<br />
laços recíprocos ao longo do tempo. De acordo com Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss,<br />
observadores europeus agarravam-se à relação <strong>de</strong>vido à sua semelhança<br />
com o compadrio ibérico construído por meio do batismo. Ambos procu -<br />
ra vam estabelecer uma nova, especial e artificial ligação. Lévi-Strauss<br />
argumenta que o paralelo formal é “um exemplo surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma<br />
convergência na qual as instituições nativa e latino-mediterrânica mostram<br />
numerosas aparentes similari<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se sobrepõem a importantes<br />
diferenças estruturais” 7 .<br />
O significado social <strong>da</strong> expressão <strong>de</strong> atoassanã (a grosso modo, copa<br />
rente) em Santarém, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1660, é o reconhecimento <strong>de</strong> um fu -<br />
tu ro comum, quer as partes envolvi<strong>da</strong>s o soubessem, ou não. Quaisquer<br />
que fossem as diferenças culturais gerais indica<strong>da</strong>s por Lévi-Strauss, o momento<br />
é uma ponte entre dois parceiros, embora <strong>de</strong>sigualmente asso ciados.<br />
Revela a importância básica do parentesco para a condução dos assun tos <strong>da</strong><br />
colônia in situ, quase como uma expressão espontânea. Obvia mente, o<br />
parentesco encontra-se num dos extremos <strong>da</strong> escala, com a guerra no<br />
outro, e com todos os outros tipos <strong>de</strong> laços recíprocos que caracterizavam<br />
a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do Grão-Pará, no meio. A questão é que estas relações íntimas<br />
cresceram apesar do encorajamento ou <strong>de</strong> restrições, por parte do Estado<br />
ou <strong>da</strong> Igreja, no comportamento dos indivíduos. O argumento <strong>de</strong> Lévi-<br />
Strauss, porém, é que a convergência só é consegui<strong>da</strong> <strong>de</strong>vido a um <strong>de</strong>sentendimento<br />
que beneficia ambos os lados. Os europeus reconheceram<br />
erra<strong>da</strong>mente a instituição nativa <strong>de</strong> forma a se incluírem e a assimilarem<br />
7 LÉVI-STRAUSS, Clau<strong>de</strong>. The social use of kin terms. In: BOHANNON, Paul; MIDDLE-<br />
TON, John (Ed.). Marriage, family and resi<strong>de</strong>nce. New York: The Natural History Press,<br />
1968. p. 169. Nota-se que uma <strong>da</strong>s palavras tupis menciona<strong>da</strong>s por Lévi-Strauss é atourassap,<br />
e um dicionário contemporâneo traduz atuasaba como “compadre ou comadre”.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
as idéias do grupo indígena. Po<strong>de</strong>ríamos, então, dizer que estava em funcionamento<br />
um <strong>de</strong>sentendimento que auxiliou as relações do dia-a-dia e<br />
atuou como uma ponte conceitual entre as diferentes tradições.<br />
É possível discutir a cultura popular <strong>da</strong> mesma maneira? Parte <strong>da</strong><br />
atrativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do momento ataossanã é a imagem que nos dá <strong>de</strong> um grupo<br />
<strong>de</strong> pessoas numa praia arenosa fluvial, olhando uns para os outros, rindo e<br />
conversando. Po<strong>de</strong>mos imaginar outros momentos <strong>de</strong> ligação que tenham<br />
pouco a ver com o parentesco, e sim com o partilhar <strong>de</strong> contos populares,<br />
<strong>de</strong> mitos, <strong>de</strong> Portugal e indígenas? Talvez possamos — por baixo <strong>da</strong>s estrelas<br />
<strong>de</strong> uma quente noite tropical, bebendo cachaça, ou conjuntamente<br />
lavando roupas nessa mesma praia, ou ain<strong>da</strong> durante intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sexuais<br />
na floresta. Meu objetivo aqui é tentar posicionar a análise em locais reais,<br />
entre pessoas vivas, trabalhando na fronteira <strong>de</strong> suas imaginações.<br />
Minha proposta é que a miscigenação étnica e do parentesco também<br />
envolveu a construção (e a ponte conceptual) <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> pensar, na<br />
cultura popular, ligando noções <strong>de</strong> hibri<strong>da</strong>ção religiosa, a relação entre<br />
indíviduos e o Estado Colonial, e, no caso <strong>da</strong> minha temática, as relações<br />
e pontos <strong>de</strong> contato entre o folclore e o imaginário europeu e indígena.<br />
Nesse terreno, ou fronteira, idéias e imagens aproximam-se, coli<strong>de</strong>m ou con -<br />
vergem, absortas <strong>de</strong> hierarquias sociais, políticas, econômicas ou ra ciais<br />
existentes. Como resultado, o estudo <strong>de</strong>ssa “fronteira imaginativa” aju<strong>da</strong> a<br />
enten<strong>de</strong>r a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s dinâmicas <strong>de</strong> interação social num ambiente<br />
colonial, afastando a discussão <strong>de</strong> uma dicotomia simplista entre negro/<br />
mestiço e branco, ou índio e europeu. Em outras palavras, o trabalho <strong>da</strong><br />
imaginação nesses contextos possibilitou o reconhecimento do outro.<br />
A fonte principal para o estudo <strong>da</strong> religião popular na Amazônia<br />
nos períodos coloniais é a “visitação” <strong>da</strong> Inquisição ao Grão-Pará em 1763-<br />
1799 8 . Adicionalmente, há um número <strong>de</strong> processos na Torre do Tombo<br />
que estão fora <strong>da</strong> “visitação” ao Pará e que revelam um caráter mais fascinante<br />
e menos investigado <strong>da</strong> Amazônia portuguesa. Uma historiadora<br />
que fez bom uso dos registros (incluindo os <strong>de</strong> Belém), <strong>de</strong> forma a mostrar<br />
que o Grão-Pará no século XVIII apresentava tanto semelhanças como<br />
diferenças com o resto do Brasil, foi Barbara Sommer. Ela examina uma<br />
série <strong>de</strong> casos que trazem magia e bruxaria envolvendo amor e sexo, e ar -<br />
gumenta que “através <strong>de</strong> uma troca livre <strong>de</strong> ritos populares e a retenção <strong>de</strong><br />
práticas indígenas, os paraenses contrariaram os esforços <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
8 Amaral Lapa transcreveu o Livro <strong>da</strong> visitação, o qual contém quarenta e sete confissões<br />
e <strong>de</strong>núncias. Não traz os julgamentos: somente alguns dos casos levados ao Inquisidor<br />
chegaram tão longe. Os registros dos julgamentos guar<strong>da</strong>dos na Torre do Tombo, em<br />
Lisboa, contêm o interrogatório do acusado no que se refere às alegações, a sua genealogia,<br />
e o resultado do processo.<br />
34 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
35<br />
<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século para promover a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional portuguesa e<br />
mol<strong>da</strong>ram uma cultura única regional” 9 . Em outras palavras, as pessoas<br />
atuavam nos seus próprios interesses, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que o Esta do<br />
queria 10 . (Veja-se também Almir Diniz <strong>de</strong> Carvalho Junior, sobre religião<br />
in dígena que usa a Inquisição <strong>de</strong> Lisboa, entre outras fontes. 11 )<br />
Um estudo mais abrangente <strong>da</strong> natureza colonial <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
religiosas no Brasil tem sido bem realizado por Laura <strong>de</strong> Mello e Souza.<br />
Ela escreve que havia “convivência e interpenetração <strong>de</strong> populações <strong>de</strong><br />
procedências várias e credos diversos. Múltiplas tradições culturais <strong>de</strong>saguavam,<br />
assim, na feitiçaria e religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular. Dar conta <strong>de</strong>ssa complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
significava compreendê-la como o lugar em que cruzavam e<br />
reelaboravam níveis culturais múltiplos agentes <strong>de</strong> um longo processo <strong>de</strong><br />
sincretização” 12 . Laura <strong>de</strong> Mello e Souza enfatiza, ao longo do seu estudo<br />
<strong>da</strong> feitiçaria, a existência <strong>de</strong> “um fosso enorme” 13 que separaria a crença e<br />
prática religiosa popular e a oficial, particularmente a Inquisitorial. Ar gu -<br />
menta que a incorporação <strong>de</strong> elementos populares ou sincréticos do passado,<br />
e <strong>de</strong> outros continentes, não ocorreu por osmose, mas foi mo<strong>de</strong>la<strong>da</strong><br />
pela vi<strong>da</strong> na colônia. Tais elementos não eram sobrevivências: sua presença<br />
“era vivi<strong>da</strong>, inseria-se neste sentido, no cotidiano <strong>da</strong>s populações.<br />
Era, portanto, vivência” 14 . To<strong>da</strong>via, falta ao estudo <strong>de</strong> Mello e Souza uma<br />
contextualização etnográfica <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial, que revelaria como<br />
esses elementos faziam parte <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s diárias e dinâmicas sociais.<br />
Há mais um ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>. Carlo Ginzburg, no ensaio sobre “o<br />
antropólogo como inquisidor”, nota que um valor dos processos <strong>da</strong> Inqui -<br />
sição é trazer as vozes dos réus direto para nós. A testemunha mesmo,<br />
enquadra<strong>da</strong> no contexto do po<strong>de</strong>r extremo <strong>da</strong> igreja e do estado, é recor<strong>da</strong>ção<br />
fiel do que foi dito. Sobretudo, a interrogação do inquisidor era uma<br />
tentativa <strong>de</strong> saber se houvera ou não heresia, e isso necessitava uma<br />
recor<strong>da</strong>ção exata <strong>da</strong>s palavras ditas. O inquisidor estu<strong>da</strong>ria a transcrição<br />
com atenção minuciosa aos significados. Aqui não vou usar os registros <strong>da</strong><br />
9 SOMMER, Barbara. Cupid on the Amazon. Colonial Latin American Historical Review,<br />
v. 12, n. 4, p. 415-446, 2003. p. 416.<br />
10 I<strong>de</strong>m. Cupido na Amazônia: amor e morali<strong>da</strong><strong>de</strong> em finais do século XVIII no Pará. In:<br />
NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz (Org.). De Cabral a Pedro I: aspectos <strong>da</strong> colonização<br />
Portuguesa no Brasil. Porto: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Portucalense Infante D. Hen rique, 2001.<br />
p. 131-141; SOMMER, Barbara. Cupid on the Amazon. Op. cit.<br />
11 CARVALHO JR., Almir Diniz <strong>de</strong>. Índios cristãos: a conversão dos gentios <strong>da</strong> Amazônia<br />
Portuguesa (1653-1769). 2005. 402 f. Tese (Doutorado em História) — <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> Filo -<br />
so fia e Ciencias Humanas, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas, 2005.<br />
12 MELLO E SOUZA, Laura. <strong>de</strong>. O Diabo e a Terra <strong>de</strong> Santa Cruz: feitiçaria e religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1986. p. 16.<br />
13 Ibi<strong>de</strong>m. p. 149.<br />
14 Ibi<strong>de</strong>m. p. 98-9.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Inquisição no Grão-Pará, mas um processo jurídico que também nos traz<br />
as vozes do passado. Analisarei um caso judicial do interior <strong>da</strong> Amazônia.<br />
Creio po<strong>de</strong>rmos fazer importantes generalizações sobre a Amazônia por tuguesa<br />
do fim do século XVIII. Também aqui sigo o conselho <strong>de</strong> Ginz burg:<br />
em algumas circunstâncias, a leitura muito próxima e intensa <strong>de</strong> um só<br />
texto do arquivo vale mais do que a acumulação infinita <strong>da</strong> matéria repeti<strong>da</strong><br />
e chatíssima!<br />
Meu argumento consiste em que, com base nestas ligações, a inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> referência ao lobisomem representa uma fronteira imaginativa<br />
15 . Essa fronteira era uma convergência muito localiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> diversas<br />
mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> diferentes atores, nesse caso, no que diz respeito às metamorfoses<br />
<strong>de</strong> humanos e animais. Muito <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do caráter <strong>da</strong>s relações<br />
locais, era, por isso, regionaliza<strong>da</strong> e heterogênea. Essa fronteira entre mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
foi a forma pela qual brancos, mestiços e índios acabaram por se<br />
compreen<strong>de</strong>r e construir um modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> distintamente amazônico 16 .<br />
Aspectos do contexto histórico<br />
A matéria examina<strong>da</strong> a seguir encontra-se em um documento que<br />
consta do Arquivo Público do Pará, em Belém. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é um maço <strong>de</strong><br />
documentos consistindo <strong>de</strong> uma longa carta escrita <strong>de</strong> uma pequena vila,<br />
chama<strong>da</strong> Vila Franca, por José Cavalcante <strong>de</strong> Albuquerque, com <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 31<br />
<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1793, ao governador do Estado, Francisco <strong>de</strong> Souza Coutinho,<br />
e dois “autos <strong>de</strong> justificação” realizados nas vilas <strong>de</strong> Santarém e Óbidos,<br />
em meados <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1793. Esses três lugares, existentes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,<br />
situam-se na área do Baixo Amazonas e vêm, portanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época do<br />
Estado do Grão-Pará. Para os que não têm contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />
região, vale mencionar que Santarém se situa na foz do Rio Tapajós, Óbidos<br />
a cerca <strong>de</strong> dois dias <strong>de</strong> viagem subindo o rio Amazonas em canoa mo vi<strong>da</strong><br />
a remo, e Vila Franca na foz do rio Arapiuns, a uma distância <strong>de</strong> um dia<br />
<strong>de</strong> viagem partindo <strong>de</strong> Santarém na mesma forma <strong>de</strong> transporte.<br />
15 Sobre o trabalho <strong>de</strong> imaginação, veja RICOUER, Paul. Historiography and the representation<br />
of the past. In: GIFFORD, Paul (Org.). 2000 years and beyond: faith i<strong>de</strong>ntity<br />
and the common era. London: Routledge, 2003. p. 51-68. p. 171.<br />
16 Um argumento semelhante é apresentado por Carolyn Podruchny para o Canadá co -<br />
lonial francês e, por coincidência, envolvendo, igualmente, a figura européia do lobisomem<br />
(PODRUCHNY, Carolyn. Werewolves and windigos: narratives of cannibal<br />
mons ters in French-Canadian voyageur oral tradition. Ethnohistory, v. 51, n. 4, p. 677-<br />
700, 2004). Recorrendo a narrativas do século XIX sobre o lobisomem e o windigo<br />
(um monstro canibal Algonquian), ela revela “um complexo movimento cultural, uma<br />
mescla <strong>de</strong> cos mologias e tecnologias orais” entre os viajantes franco-cana<strong>de</strong>nses e as<br />
suas mu lheres aborígenes e parentes.<br />
36 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
37<br />
To<strong>da</strong>via, são comuns nos documentos do período, incluindo os <strong>da</strong><br />
Inquisição no Pará, indiciações concernentes a comportamentos ina<strong>de</strong>quados<br />
relacionados com magia e feitiçaria. Tais documentos estão cheios<br />
<strong>de</strong> acusações e contra-acusações envolvendo práticas e crenças. Devemos<br />
ver to<strong>da</strong>s essas acusações mais genericamente, incluindo a aqui analisa<strong>da</strong>,<br />
como acusações típicas <strong>de</strong> bruxaria. Elas são, fun <strong>da</strong>mentalmente, acer ca<br />
<strong>da</strong>s dinâmicas sociais num contexto particular; não po<strong>de</strong>m ser facilmente<br />
usa<strong>da</strong>s como forma <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r em que as pessoas acreditavam e em<br />
que pensavam. Em outras palavras, precisamos primeiramente compre -<br />
en<strong>de</strong>r o contexto histórico e, em segui<strong>da</strong>, reconstruir os elementos que<br />
<strong>de</strong>veriam estar posicionados a fim <strong>de</strong> que tal acusação fizesse sentido para<br />
os participantes locais.<br />
Contexto político<br />
De modo sumário, apresentarei em segui<strong>da</strong> um esboço dos principais<br />
fatores que mo<strong>de</strong>lavam o mundo <strong>da</strong> locali<strong>da</strong><strong>de</strong> no final do período do<br />
diretório e do século XVIII. Este é um tópico muito amplo e procurarei<br />
limitar-me ao que é mais pertinente, ou seja, à organização <strong>da</strong>s relações<br />
entre indígenas e europeus. Por conta <strong>de</strong> sua presença marginal nesta narrativa,<br />
preciso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o papel dos africanos escravizados. Entre -<br />
tanto, eles faziam parte do contexto maior e contribuíram para a cultura<br />
amazônica.<br />
A legislação do diretório foi escrita por Francisco Xavier <strong>de</strong> Men don ça<br />
Furtado, irmão do Marquês <strong>de</strong> Pombal, em 1755, mas somente começou a<br />
vigorar em 1757, protelamento causado pela oposição dos jesuítas, fator<br />
este <strong>da</strong> dimensão amazônico <strong>de</strong> um fenômeno mais geral que lhes causou<br />
a expulsão em 1759. O diretório e as reformas a ele liga<strong>da</strong>s tinham por<br />
objetivo reformar a região segundo linhas progressistas. Entre seus mais<br />
importantes aspectos, <strong>de</strong>stacam-se: a garantia <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> aos índios, a<br />
secularização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, a promoção <strong>de</strong> casamentos entre colonos<br />
e índios pelo oferecimento <strong>de</strong> incentivos econômicos, a instalação <strong>de</strong> escolas<br />
em ca<strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia, o uso exclusivo <strong>da</strong> língua portuguesa (ao invés <strong>da</strong> língua<br />
geral usa<strong>da</strong> pelos missionários) e a alocação <strong>de</strong> incentivo <strong>de</strong> lucro aos<br />
indígenas na produção econômica <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia. Esses eram os dias otimistas<br />
do iluminismo ibérico; o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> Amazônia era consi<strong>de</strong>rado<br />
fun<strong>da</strong>mental para as estratégias geopolíticas do Império Portu guês.<br />
Acima <strong>de</strong> tudo, o diretório era <strong>de</strong>stinado a reestruturar a economia para<br />
aten<strong>de</strong>r as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do estado e converter os índios <strong>da</strong>s missões em<br />
vassalos a<strong>de</strong>quados <strong>da</strong> Coroa, por meio <strong>de</strong> sua civilização e, é preciso<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
acrescentar, <strong>de</strong> sua transformação à condição <strong>de</strong> camponeses ou “vassalos”,<br />
nos termos <strong>da</strong> época.<br />
A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> jamais conseguiu concretizar o mo<strong>de</strong>lo projetado. O in -<br />
te resse privado dos colonos sobrepôs-se ao interesse público e os índios<br />
ja mais conseguiram a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhes fôra prometi<strong>da</strong>. As cifras indicativas<br />
<strong>da</strong> produção jamais se elevaram o bastante para obter a ren<strong>da</strong> que<br />
permitiria criar um sistema burocrático local para fiscalizar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
dos colonos e mercadores e as influentes elites administrativas. O gover na dor<br />
Souza Coutinho, o mesmo a quem nos referimos inicialmente, <strong>de</strong>smantelou<br />
o sistema administrativo em 1799, colocando a culpa na preguiça dos<br />
índios e na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar os diretores e outros oficiais 17 .<br />
Por volta <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> final do século XVIII, o diretório vivia os seus<br />
úl timos momentos do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> administração metropolitana.<br />
Muitos diretores estavam seqüestrando a produção comunal para seu próprio<br />
benefício. Índios estavam em controle <strong>de</strong> várias vilas, como Vila Fran -<br />
ca, Alter do Chão no Baixo Amazonas, e outros no Marajó 18 . Os africanos<br />
fugiam com freqüência e facili<strong>da</strong><strong>de</strong> e formavam mocambos. O po<strong>de</strong>r do<br />
Estado, mesmo estabelecido em to<strong>da</strong> a região vasta, era frágil e ameaçado<br />
por diversos interesses.<br />
Vale a pena mencionar rapi<strong>da</strong>mente o governador que aboliu o diretório.<br />
Francisco <strong>de</strong> Souza Coutinho era <strong>de</strong> uma família importantíssima do<br />
fim do período colonial. O pai era governador <strong>de</strong> Angola, os irmãos mais<br />
velhos ocuparam as posições mais altas em relação ao Brasil. Então, ele<br />
era bem posicionado para impor reformas com o apoio do centro, igual a seu<br />
contrapartido, Francisco Xavier Mendonça Furtado, o irmão do Mar quês <strong>de</strong><br />
Pombal. Ambos os governadores merecem mais atenção, mas ao que sei não<br />
há quase na<strong>da</strong> escrito <strong>de</strong>sses homens. Durante seus treze anos (1790-1803)<br />
no Pará, Souza Coutinho aumentou a importação dos escravos, co meçou<br />
um programa <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> navios e fez reformas militares. No fim do<br />
século XVIII, Belém era o quinto porto do Brasil em nível <strong>de</strong> exportações<br />
17 Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o Governador Souza Coutinho já havia tido problemas com Vila Franca<br />
em 1790, quando um posto <strong>de</strong> fiscalização em Gurupá apreen<strong>de</strong>u uma canoa vin<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A canoa levava mercadorias produzi<strong>da</strong>s em comum, que <strong>de</strong>viam, porém, ser<br />
vendi<strong>da</strong>s para o lucro pessoal do diretor, <strong>de</strong> acordo com o testemunho do cabo <strong>de</strong><br />
canoa. O diretor, Antônio José Malcher, foi expulso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O Governador ficou tão<br />
zangado, que <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>ns para que nenhum auxílio fosse <strong>da</strong>do a esse homem com a<br />
remoção <strong>de</strong> sua família e do extenso séquito formado pela sua proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> bens e<br />
<strong>de</strong> escravos. Mas essa or<strong>de</strong>m não foi cumpri<strong>da</strong>, porque a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> em Santarém teve<br />
pena do ex-diretor, <strong>de</strong>ixando a impressão <strong>de</strong> que ou estava em conluio com ele, ou<br />
concor<strong>da</strong>va com a transgressão. A expulsão levou o Governador Souza Coutinho a<br />
nomear José Cavalcante como substituto.<br />
18 Cf. SOMMER, Barbara. Cupido na Amazônia: amor e morali<strong>da</strong><strong>de</strong> em finais do século<br />
XVIII no Pará. Op. cit. p. 131-141.<br />
38 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
39<br />
e importações. Tal crescimento era <strong>de</strong>vido à produção <strong>de</strong> cacau por escravos<br />
nas áreas do Baixo Amazonas e Tocantins. Po<strong>de</strong>mos refletir que a crise<br />
que provocou o fim do diretório não era geral. O Pará no fim do século<br />
XVIII vivia um momento bom.<br />
Muito mais po<strong>de</strong>ria ser dito a respeito do que se passava nos basti -<br />
do res. Prefiro resumir aqui que esses foram tempos <strong>de</strong> confronto e recons -<br />
ti tui ção. Após um século <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição cultural e física <strong>da</strong>s formações<br />
ame ríndias ao longo do gran<strong>de</strong> rio, <strong>de</strong> 1650 a 1750, os diversos atores en -<br />
contravam-se enre<strong>da</strong>dos entre as severas regulamentações do diretório e,<br />
ao mesmo tempo, o amplo espaço sem lei que era o imenso território à sua<br />
dis posição. Entre esses extremos, evoluíram os distintos e localmente di -<br />
versos mundos <strong>da</strong> Amazônia Colonial. Quase por acaso e certamente sem<br />
nenhum planejamento, a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> inovadora e pragmática <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> indi -<br />
víduo veio a alcançar um significado essencial na luta pela sobrevivência.<br />
Aqui, indígenas, europeus e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes já nascidos nas novas terras,<br />
portanto, os primeiros “brasileiros”, eram transformados por suas<br />
experiências, usando os recursos culturais que lhes estivessem à mão para<br />
compreen<strong>de</strong>rem a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> presente com que se confrontavam. É nesse<br />
contexto <strong>da</strong> experiência compartilha<strong>da</strong> (se diferentemente interpreta<strong>da</strong>) e<br />
<strong>da</strong>s séries emergentes e instáveis <strong>de</strong> significados e símbolos que precisamos<br />
colocar a estória do lobisomem <strong>de</strong> Vila Franca. Desejo chamar esse es paço<br />
reconstituído <strong>de</strong> “uma fronteira <strong>da</strong> imaginação”, em que os tentáculos perceptivos<br />
<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa buscam as ligações entre o passado e o presente.<br />
O justificante<br />
Agora algumas palavras sobre o justificante, nosso lobisomem. José<br />
Cavalcante <strong>de</strong> Alburquerque nasceu na Bahia em 1760. Graduou-se na<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra em 1785, em Direito e Matemática 19 . Nomeado<br />
diretor <strong>de</strong> Souzel, vila do rio Xingu, em 1787, <strong>de</strong>pois foi como diretor dos<br />
índios em Vila Franca, em 1790. A razão por que procurou uma nomeação<br />
no Pará não é óbvia, mas po<strong>de</strong> ter sido a ambição e a busca <strong>de</strong> terra. Em<br />
1801 era Juiz <strong>de</strong> Paz em Óbidos e capitão dos milicianos ligeiros, um novo<br />
e temporário exército (o qual se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r por força <strong>de</strong> trabalho) trazido<br />
para substituir o sistema <strong>de</strong> recrutamento <strong>de</strong> trabalho indígena dos<br />
diretórios. Em 1819, ele era <strong>de</strong>scrito como dono <strong>de</strong> escravos nos registros<br />
batismais <strong>da</strong> paróquia <strong>de</strong> Óbidos. Também possuía gado, uma plantação <strong>de</strong><br />
19 MORAIS, Francisco, Estu<strong>da</strong>ntes <strong>Brasileiros</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1772-1872),<br />
Anais <strong>da</strong> Biblioteca, LXII, 1940, p. 137-335.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
cacau e um comércio. Tinha quatro filhos batizados em Óbidos e casou-se<br />
com Rita Vitória Alburquerque antes <strong>de</strong> 1812 (no censo <strong>de</strong> 1792 aparecia<br />
listado como solteiro). Então, no auge <strong>de</strong> sua carreira, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1821, foi eleito <strong>de</strong>putado <strong>da</strong> Capitania do Rio Negro para as Cortes Reais<br />
Portuguesas e viajou para Lisboa em agosto <strong>de</strong> 1822; 77 <strong>de</strong>putados, no to -<br />
tal, foram eleitos no Brasil. No entanto, ele foi substituído como <strong>de</strong>putado<br />
em 1823 e procurou, alternativamente, fundos para um projeto que visava<br />
a educar os índios no Rio Negro. Com o apoio do bispo do Pará e <strong>de</strong> outros<br />
<strong>de</strong>putados do Norte do Brasil, seu objetivo era incentivar os índios a se<br />
assentarem em al<strong>de</strong>ias e a trabalhar. Creio que o programa fazia parte <strong>de</strong><br />
uma nova on<strong>da</strong> na civilização dos índios, que venha <strong>da</strong> relação mais antiga<br />
que tinha com o governador Souza Coutinho, que escreveu um Plano<br />
<strong>de</strong> ci vilização na época <strong>da</strong> <strong>de</strong>smontagem do diretório 20 . O plano <strong>de</strong> Caval -<br />
cante não recebeu nenhum apoio, e, em agosto <strong>de</strong> 1825, ele ain<strong>da</strong> se en -<br />
con trava escrevendo cartas para requerer fundos que o levassem <strong>de</strong> volta<br />
para a Amazônia 21 .<br />
Ele inicia a carta <strong>de</strong> onze páginas ao governador em 1793 com a<br />
<strong>de</strong>claração: “não havendo a natureza o feliz aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> hum nobre [nasci -<br />
mento]; <strong>de</strong>vi Providência huma educação hum pouco onesta”. Assim co meça<br />
o seu apelo ao Governador, o qual o tinha anteriormente elogiado pelos<br />
seus bons trabalhos e inteligência. A carta oferece uma série <strong>de</strong> eventos <strong>de</strong><br />
sua história, <strong>de</strong> forma convincente e bem argumenta<strong>da</strong>, os quais abor<strong>da</strong>rei<br />
em segui<strong>da</strong>. Ele também critica o diretório e requer o seu fim — “hum<br />
Director hum tirano”, acrescentando que ninguém se beneficia <strong>da</strong>s suas<br />
regras. O seu raciocínio é que é impossível ter índios a trabalhar para a<br />
produção comum: eles fogem <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia, e os oficiais locais, tal como o<br />
cabo <strong>da</strong> canoa, não registram corretamente o que é produzido; e a punição<br />
não é a solução. Como diretor <strong>de</strong> Vila Franca, ele teve lutas constantes<br />
porque ninguém lhe obe<strong>de</strong>cia. Os índios eram “monstros <strong>de</strong> ingratidão” e<br />
ele queria “com algum barril do sol moira tapar a boca ao tezoureiro com<br />
o seu escrivão”. Termina a sua carta com um apelo ao governador para<br />
20 SOUZA COUTINHO, Francisco, Plano <strong>de</strong> civilização, Arquivo Histórico Ultramarino<br />
[AHU] Pará 8610, 1797, August 3rd, Pará.<br />
21 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz (Org). Dicionário <strong>da</strong> história <strong>da</strong> colonização portuguesa<br />
no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. p. 243-246; BAENA, A.L.M. Compêndio <strong>da</strong>s eras<br />
<strong>da</strong> Província do Pará. Belém: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Pará, 1969. p. 345.<br />
(Coleção Amazônica. Série José Veríssimo); RAIOL, D.A. Motins políticos, ou História<br />
dos principais acontecimentos politicos <strong>da</strong> Provincia do Pará <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 1821 até<br />
1835. Belém: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Pará, 1970. p. 21. 3 tomos; Arquivo<br />
Histórico Ultramarino [AHU] Pará, caixa 159, doc. 12129; AHU Pará, caixa 161, doc.<br />
12283; AHU Rio Negro caixa 18, doc. 750; Paróquia <strong>de</strong> Óbidos, Livro <strong>de</strong> Baptismos<br />
1807-1820.<br />
40 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
41<br />
passar três dias na sua al<strong>de</strong>ia como diretor, <strong>de</strong> forma a ver como é difícil<br />
cumprir a legislação. Ele está “cançado [para] po<strong>de</strong>r viver com elles [se -<br />
gundo] o seu passado, e [para] profun<strong>da</strong>r os seos gênios, e costumes” 22 .<br />
Apesar <strong>de</strong>ssas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e dos boatos contra ele, o seu espírito não <strong>de</strong>svanesceu,<br />
e ele prosseguirá. Mas “na<strong>da</strong>”, ele reassegura ao governador,<br />
“po<strong>de</strong> chamar invenção do seu Director” 23 .<br />
As alegações e os índios<br />
Eis o que foram as alegações contra Cavalcante no processo jurídico.<br />
Três <strong>de</strong>las estão <strong>de</strong>scritas nas páginas iniciais do auto perante a “inquirição”,<br />
isto é, os <strong>de</strong>poimentos <strong>da</strong>s testemunhas:<br />
Ele é acusado <strong>de</strong> beber em <strong>de</strong>masia, “vício <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong>”.<br />
De ser um mau administrador, negligente em relação a cui<strong>da</strong>r dos<br />
índios, <strong>de</strong> passar a maior parte do tempo no seu cacaual e por acobertar<br />
um criminoso, alguém que já fôra expulso <strong>de</strong> vários lugares, por quebrar<br />
o sossego público e comportar-se <strong>de</strong> modo in<strong>de</strong>vido (“má conduta”).<br />
E finalmente, existe uma acusação do Vigário <strong>de</strong> Vila Franca, Do -<br />
min gos <strong>de</strong> Lira Barros, <strong>de</strong> que ele costumava aparecer à noite como um<br />
“lobisomem” ou outras figuras semelhantes e, <strong>de</strong>sse modo, abusar <strong>da</strong><br />
ignorância e superstição <strong>de</strong> índios sob sua guar<strong>da</strong> e <strong>de</strong> alguns brancos.<br />
É sobre o terceiro item que me concentrarei, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado os<br />
outros dois. Claro, entretanto, que <strong>de</strong>veria ser lembrado, durante todo o<br />
processo, que a acusação <strong>de</strong> ser esse homem um lobisomem faz parte <strong>de</strong><br />
um episódio mais amplo subjacente à crise.<br />
Até on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> apurar, José Cavalcante conseguiu limpar o seu nome.<br />
To<strong>da</strong>s as testemunhas disseram que ele não era muito <strong>da</strong>do a beber, ingerindo<br />
somente, às vezes, uns poucos copos <strong>de</strong> vinho. Ele era forçado a passar<br />
tempo no seu cacaual <strong>de</strong>vido às más relações locais. A maioria <strong>da</strong>s <strong>de</strong> -<br />
clarações <strong>da</strong>s testemunhas con<strong>de</strong>nam as ações dos dois indivíduos acima<br />
mencionados, o clérigo e o tesoureiro; o cabo <strong>da</strong> canoa também estava<br />
envolvido.<br />
No coração do caso está o papel dos índios; no entanto, não ouvimos<br />
as suas vozes. Nesses documentos, há duas versões <strong>da</strong> participação índia.<br />
Já apontamos a visão dominante, <strong>de</strong> que os índios eram seres simples.<br />
22 A única referência <strong>de</strong> Cavalcante às acusações <strong>de</strong> “lobizome” foi quando ele <strong>de</strong>screveu<br />
que o cabo <strong>da</strong> canoa, Antonio Coelho, escreveu que ele era uma “cabeça <strong>de</strong> fogo”.<br />
23 APEP códice 501 doc. 6, 31 março 1793, José Cavalcante <strong>de</strong> Albuquerque.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Adicionalmente, encontramos nas <strong>de</strong>clarações a indicação <strong>de</strong> que os oficiais<br />
inferiores (acima mencionados) <strong>de</strong> Vila Franca teriam encorajado os<br />
índios a <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cerem a Cavalcante. Estas pessoas, Antonio Coelho e João<br />
Rodrigues Pereira, eram conheci<strong>da</strong>s por terem sido expulsas <strong>de</strong> outras<br />
vilas por comportamento anti-social e, realmente, no tempo do “auto”, já<br />
haviam <strong>de</strong>saparecido <strong>da</strong> área.<br />
Por outro lado, o mais sensível José Cavalcante mencionou na sua<br />
carta ter aju<strong>da</strong>do uma índia que havia sido abusa<strong>da</strong> (provavelmente viola<strong>da</strong>)<br />
na sua roça por um homem índio. Ele a protegeu, colocando-a na<br />
sua casa no cacaual. É possível que isso tenha incitado um novo antagonismo,<br />
ou que fosse parte <strong>de</strong> uma disputa preeexistente. Ele também menciona<br />
que os índios eram muito po<strong>de</strong>rosos e queriam governar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
por isso não lhe obe<strong>de</strong>ciam. Em outras palavras, os índios não eram tão<br />
passivos como indicado pelas testemunhas. Devido ao gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
índios e ao pequeno número <strong>de</strong> portugueses e brasileiros, e às suas evi<strong>de</strong>ntes<br />
divisões, não é provavelmente incorreto pensar que os índios estariam<br />
a controlar muito <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vila. É freqüentemente salientado por<br />
historiadores que o trabalho e a produção eram as principais dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
do período colonial <strong>da</strong> Amazônia Portuguesa. Essas eram extremamente<br />
importantes e Cavalcante o testemunha. Porém, é claro que esses problemas<br />
estavam interligados a outros fatores, como as lutas locais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />
as quais eram mais sutis do que uma estrutura índios versus brancos.<br />
Não é possível compreen<strong>de</strong>r a acusação contra o “lobisomem” sem<br />
o contexto <strong>de</strong>talhado no qual ela ocorria. O sociológico e o imaginativo<br />
estão claramente articulados na investigação. Então, é tempo <strong>de</strong> passar a<br />
uma consi<strong>de</strong>ração do lobisomem e <strong>de</strong> suas características.<br />
O “auto <strong>da</strong> justificação” e o “lobizome”<br />
em Vila Franca, Grão-Pará, 1793<br />
Conforme compreendi, um “auto <strong>de</strong> justificação” é solicitado por<br />
uma pessoa que <strong>de</strong>seja limpar o seu nome <strong>de</strong> várias acusações. O juiz<br />
ordinário <strong>da</strong> vila convi<strong>da</strong> várias testemunhas para falar a favor ou contra<br />
o “justificante” e a respeito <strong>da</strong>s acusações que lhe são imputa<strong>da</strong>s. Por essa<br />
razão, este envia os autos acompanhados <strong>de</strong> sua carta ao Governador do<br />
Estado (naquela época, o governador era Francisco <strong>de</strong> Souza Coutinho), o<br />
qual teria a palavra final no julgamento dos resultados do auto: as acusações<br />
eram ou não justifica<strong>da</strong>s? 24<br />
24 Estes tipos <strong>de</strong> acusação são freqüentemente encontrados nos “autos <strong>de</strong> justificação”,<br />
embora eu nunca tenha anteriormente <strong>de</strong>scoberto uma que envolvesse a referência<br />
ao lobisomem ou a uma figura semelhante. Normalmente uma justificação se refere<br />
42 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
43<br />
O juiz ordinário <strong>de</strong> Óbidos, Estanislau Ferreira, apresenta do se guin te<br />
modo a posição do suplicante:<br />
e também se lhe necessaria mostrar se o Reverendo Domingos <strong>de</strong><br />
Lira Barros que foi <strong>de</strong> Villa Franca fez persuadir não so a to<strong>da</strong>s os<br />
indios <strong>de</strong>lla, que o suplicante era lobizome <strong>de</strong> cujo epiteto <strong>de</strong> mana<br />
tem tantos abusos servindo-se <strong>de</strong>sta diabolica superstição, ignorancia<br />
dos indios, que os seos sinistros fins. 25<br />
O juiz <strong>de</strong> Santarém, Marcante, fez a mesma colocação.<br />
Em ca<strong>da</strong> caso, o juiz ordinário tem <strong>de</strong> argüir testemunhas, o escrivão<br />
registra-lhes as respostas. O que as testemunhas disseram a respeito <strong>de</strong><br />
José Cavalcante <strong>de</strong> Albuquerque ser um lobisomem? Das sete chama<strong>da</strong>s<br />
em Óbidos, quatro tiveram algo a dizer sobre o assunto. O primeiro, um<br />
sesmeiro <strong>de</strong> 63 anos, Constantino Manoel Marinho, expressou-se <strong>de</strong> modo<br />
bastante claro:<br />
Diçe mais em quanto abominavel abuzo <strong>de</strong> lobizome que o Reve -<br />
rendo Vigario no que foi <strong>de</strong> Villa Franca Domingos <strong>de</strong> Lira Barros<br />
emtroduzia na rustici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> queles povos em discredito <strong>de</strong> Seu<br />
Diretor para os fins que elle so saberia lhe consta assim ter sido por<br />
lhe referir em varias ocasions algumas indias.<br />
O padre havia inventado que José Cavalcante era um lobisomem e,<br />
ao assim fazer, não apenas explorava a vulnerável simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos indígenas,<br />
mas também levava Cavalcante ao <strong>de</strong>scrédito. Afinal, quem iria<br />
aceitar or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> um lobisomem? Contudo, ele apenas ouvira isso dos<br />
índígenas <strong>da</strong> área.<br />
A segun<strong>da</strong> testemunha, Vicente Marinho, filho <strong>da</strong> primeira testemunha,<br />
<strong>de</strong> 31 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, casado, confirmou o padre como origem <strong>da</strong> história:<br />
Diçe mais ao abuso que o Padre Domingos <strong>de</strong> Lira Barros emtroduzia<br />
no fraco e rusticos animos dos indianos <strong>de</strong> Villa Franca dizindo ser<br />
o Diretor era lobizome que se transformava em <strong>de</strong>frentes figuras<br />
que sabia por uma garuta em leva ro<strong>da</strong>s <strong>de</strong> fogo e outros semelhentes<br />
<strong>de</strong>lirios.<br />
a assuntos mun<strong>da</strong>nos tais como alegações <strong>de</strong> corrupção, roubo, mau comportamento,<br />
entre outras. A única maneira para alguém se proteger <strong>de</strong> tais alegações seria entrar<br />
no processo judicial, convocar testemunhas e aguar<strong>da</strong>r pelo veredito do governador<br />
do estado. Confira-se o romance <strong>de</strong> SOUZA, Inglês <strong>de</strong>. O cacaulista. Belém: UFPa,<br />
2004, para ver mais sobre a conduta dos processos nos meados do século XIX, que não<br />
po<strong>de</strong>ria ser tão diferente do fim do século XIX.<br />
25 APEP códice 501 doc. 06, 31 <strong>de</strong> março 1793, José Cavalcante <strong>de</strong> Albuquerque.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Portanto, José Calvacante, segundo os seus <strong>de</strong>tratores, não apenas<br />
virava lobisomem, mas também outros tipos <strong>de</strong> seres, inclusive uma ro<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> fogo.<br />
O terceiro testemunho <strong>de</strong> Óbidos foi <strong>da</strong>do por José Dias <strong>da</strong> Silva,<br />
casado e <strong>de</strong> 31 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Corroborou as <strong>de</strong>clarações anteriores, introduzindo,<br />
porém, uma importante diferença:<br />
Diçe mais que em quanto ao abuso que emtroduzia Padre Domingos<br />
<strong>de</strong> Lira Barros na rustici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos indios her serto pois que aelle<br />
mesmo testemunha lhe sertificar contados as vezes <strong>de</strong> que o suplicante<br />
hera lobizome e se transformar <strong>de</strong> noite em varias figuras.<br />
No meu enten<strong>de</strong>r, ele dissocia a fonte do boato, o padre, do boato<br />
em si mesmo; José Cavalcante po<strong>de</strong>ria muito bem tomar outras formas,<br />
acontecendo que o fato se tornou conhecido <strong>de</strong>vido à tentativa do padre <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sacreditá-lo.<br />
As <strong>de</strong>clarações provenientes <strong>de</strong> Santarém têm fraseado diferente e<br />
oferecem outra perspectiva <strong>da</strong> história. Há três testemunhas <strong>de</strong> Santarém.<br />
A última testemunha a fazer um comentário substancial é um tal Manoel<br />
Pinto, que assinou com uma cruz, visto não saber escrever<br />
E porguntado <strong>de</strong>lle testemunha pello contheudo requirimento do<br />
justificante disso indo digo que indo elle testemunha a Villa Franca<br />
no tempo em que era Vigario o Padre Domingos <strong>de</strong> Lira Barros e<br />
indo elle testemunha vizitalo, o ditto Vigario nam sessou <strong>de</strong> lhe falar<br />
mal do ditto Diretor e Justificante dizendo lhe era mao e que era lobizome<br />
e que <strong>de</strong> noite quando mu<strong>da</strong>va <strong>de</strong> figura batava muito fogo pelos<br />
olhos e que tambem lhe diçeram algumas peçoas que o ditto Vigario<br />
se embriagava muitas vezes e que sempre era custuma<strong>da</strong> a isso.<br />
De to<strong>da</strong>s as pessoas chama<strong>da</strong>s a oferecer evidência, Manoel Pinto<br />
foi o único que teria falado com o Vigário. Este parece ter ido embora (teria<br />
sido removido?) na ocasião em que se realizava a investigação 26 .<br />
26 Antes <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar em profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> este material específico e seu contexto, eu <strong>de</strong>veria<br />
acrescentar que, até on<strong>de</strong> posso dizer, José Cavalcante conseguiu limpar o seu<br />
nome. Conforme foi apurado dos <strong>de</strong>poimentos, ele não era viciado em bebi<strong>da</strong>, apenas<br />
tomava “uns cálices <strong>de</strong> vinho”, às vezes. E também ele era forçado a <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r tempo<br />
em sua plantação <strong>de</strong> cacau por causa dos maus relacionamentos locais. A maioria <strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong>clarações <strong>da</strong>s testemunhas são <strong>de</strong> fato <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a esclarecer os complicados negócios<br />
e relações entre os vários indivíduos, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que o queixoso na<strong>da</strong><br />
havia roubado, nem tentara escon<strong>de</strong>r os níveis <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> Vila Franca. De qualquer<br />
modo, José Cavalcante ressurge em algumas outras cartas mais adiante, e não<br />
pu<strong>de</strong> achar nenhuma carta do Governador Souza Coutinho que o censurasse pelo seu<br />
comportamento.<br />
44 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
45<br />
Desejo chamar a atenção para dois aspectos distintos <strong>da</strong> evidência<br />
acima apresenta<strong>da</strong>. Primeiro, o <strong>de</strong> que havia um conflito entre o Vigário e<br />
o Diretor, que se expressou, pelo menos nesse auto, na evocação <strong>de</strong> uma<br />
figura diabólica origina<strong>da</strong> no folclore europeu. Essa tensão está relaciona<strong>da</strong>,<br />
no documento, à rustici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos índios. José Cavalcante quer provar que<br />
era o Vigário quem propositalmente explorava a rustici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos indígenas, a<br />
fim <strong>de</strong> os amedrontar e a persuadi-los a tomarem partido na disputa pessoal<br />
entre os dois homens.Tipicamente, isso implica um argumento bastante<br />
paternalista, no que diz respeito à inteligência dos nativos. Em se gun do<br />
lugar, há a alega<strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> José Cavalcante em “virar”, ou gerar,<br />
uma série <strong>de</strong> “<strong>de</strong>frentes figuras” (construção arcaica que significa “diferentes<br />
figuras”), inclusive a <strong>de</strong> lobisomem. Relacionados a isso estão os intrigantes<br />
<strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> “ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> fogo” e “os olhos que batava <strong>de</strong> fogo”. De um lado,<br />
têm-se relações pessoais carrega<strong>da</strong>s e a manipulação <strong>de</strong> várias pessoas,<br />
mol<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo caótico contexto sociológico e colonial. De outro lado, en con -<br />
tramos o que po<strong>de</strong>ríamos chamar, a grosso modo, <strong>de</strong> crenças e idéias relaciona<strong>da</strong>s<br />
com a transformação corpórea, provavelmente origina<strong>da</strong>s tanto<br />
<strong>da</strong> tradição européia como <strong>da</strong> indígena. Tenho o cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> dizer provavelmente,<br />
porque na<strong>da</strong> sabemos <strong>da</strong>s outras figuras em que Cavalcante era<br />
acusado <strong>de</strong> transformar-se. Consi<strong>de</strong>rando a repressão aos elementos indígenas,<br />
introduzi<strong>da</strong> com as reformas pombalinas <strong>da</strong> meta<strong>de</strong> para o final do<br />
século XVIII, é possível que administradores em ascensão ficassem relutantes<br />
em mencioná-los numa carta ao Governador (que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, terminou<br />
por extinguir o diretório, <strong>de</strong>vido à falha dos administradores locais<br />
em fazerem cumprir as leis e a vonta<strong>de</strong> dos regentes reais).<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, dos muitos documentos e cartas <strong>de</strong>spachados do Baixo<br />
Amazonas no período colonial e nos primórdios do Império, esse auto é o<br />
único que encontrei que faz menção ao fun<strong>da</strong>mento religioso ou folclórico<br />
<strong>de</strong> crenças. A gran<strong>de</strong> maioria discute produção e organização econômica,<br />
o movimento <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> equipamento militar; é patente serem esses<br />
os assuntos <strong>de</strong> interesse maior na comunicação entre os níveis locais e<br />
estaduais <strong>de</strong> administração. Conforme mencionei acima, a maior parte do<br />
auto enfoca essas questões. A atenção marginal <strong>da</strong><strong>da</strong> às acusações <strong>de</strong><br />
“lobisomem” nesse documento oficial ganha importância por ser fora do<br />
comum e, até on<strong>de</strong> consegui pesquisar, não tem prece<strong>de</strong>ntes. Em outras<br />
palavras, a natureza formuliza<strong>da</strong> que caracteriza muitas <strong>da</strong>s <strong>de</strong>clarações<br />
<strong>da</strong>s testemunhas é menos forte do que nos assuntos centrais <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia bu -<br />
rocrática. Por essa razão, os testemunhos relacionados com o lobisomem<br />
revelam a existência <strong>de</strong> significativos processos em an<strong>da</strong>mento, que, a<br />
meu ver, <strong>de</strong>screvem as aventuras mentais alimenta<strong>da</strong>s pelas fronteiras <strong>da</strong><br />
imaginação inspira<strong>da</strong> pela vi<strong>da</strong> colonial.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O lobisomem, a cumacanga e<br />
outros seres transformacionais<br />
As figuras do lobisomem sobreviviam na Europa do século XVIII, e<br />
na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com Luís <strong>da</strong> Câmara Cascudo, floresciam na França<br />
do século XVII 27 . Carlos Rocque, em sua Gran<strong>de</strong> enciclopédia <strong>da</strong> Ama zô nia,<br />
assim <strong>de</strong>fine o lobisomem <strong>da</strong>quela região:<br />
Espírito mau, monstro (homem que à noite se transforma em lobo).<br />
Mesmo não existindo o lobo na Amazônia, esta é uma <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s que<br />
mais se difundiram e permite avaliar a gran<strong>de</strong> influência <strong>de</strong> outros<br />
grupos na formação étnica brasileira. 28<br />
Câmara Cascudo consi<strong>de</strong>ra universais os mitos em que lobos e hu -<br />
manos aparecem relacionados; a versão brasileira <strong>de</strong>riva claramente <strong>da</strong><br />
cultura ibérica, em que virar lobo é castigo por ofensa moral grave, como,<br />
por exemplo, o incesto. Também menciona uma variação amazônica do<br />
mito do lobisomem chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> cumacanga no Pará: uma encarnação es -<br />
pecial do lobisomem, visto que não se trata do sétimo filho ou do produto<br />
<strong>de</strong> uma relação incestuosa, mas do filho resultante <strong>de</strong> uma relação sexual<br />
ilícita e sacrílega <strong>de</strong> um padre. A cumacanga não fica assombrando a vizinhança<br />
como o lobisomem. Em vez disso, numa noite <strong>de</strong> sexta-feira, o<br />
corpo <strong>da</strong> pessoa permanece na casa, enquanto a cabeça se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> e se<br />
transforma numa bola <strong>de</strong> fogo voando pelo céu e voltando várias vezes ao<br />
local on<strong>de</strong> o corpo se encontra. Essa versão <strong>da</strong> história do lobisomem<br />
parece só existir no Maranhão e no Pará. Também parece possível que o<br />
testemunho a respeito dos olhos <strong>de</strong> fogo e <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> fogo seja uma referência<br />
liga<strong>da</strong> ao complexo <strong>da</strong> cumacanga, se não pelo nome, pelo menos<br />
pela aparência e fun<strong>da</strong>mentação.<br />
27 Sobre lobisomens ou werewolves a literatura é extensa. Vejam-se, por exemplo:<br />
CÂMA RA CASCUDO, Luís <strong>da</strong>. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002;<br />
LA DURIE, E. Le Roy. Jasmin’s Witch: an investigation into witchcraft and magic In<br />
South-West France during the Seventeenth Century. Trans. by Brian Pearce. Harmon dsworth:<br />
Penguin, 1990; os contos <strong>da</strong> feminista e romancista CARTER, Angela. The bloody<br />
chamber and other stories. London: Vintage, 1995; GINZBURG, Carlo. Clues, myths and<br />
the historical method. Trans. J. e A. Te<strong>de</strong>schi. Baltimore: The Johns Hopkins Univer -<br />
sity Press, 1989; __________. Ecstasies: <strong>de</strong>ciphering the witches’ Sabbath. trans. by Ray -<br />
mond Rosenthal. Harmondsworth: Penguin Books, 1992; VAZ DA SILVA, Francisco.<br />
Iberian born seventh born children, werewolves, and the dragon slayer: a case study<br />
in the comparative interpretation of symbolic praxis and fairytales. Folklore, v. 114,<br />
p. 335-353, 2003; JACQUES-LEFEVRE, N. Such an impure, cruel, and savage beast…<br />
In: EDWARDS, K. (Org.). Werewolves, witches and wan<strong>de</strong>ring spirits: traditional belief<br />
and folklore in early Mo<strong>de</strong>rn Europe. Kirksville, Missouri: Truman State University<br />
Press, 2002. p. 181-198. (Sixteenth century essays and studies series, v. 62).<br />
28 ROCQUE, Carlos. Gran<strong>de</strong> enciclopédia <strong>da</strong> Amazônia. Belém: Amazônia Editora, 1966.<br />
46 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
47<br />
No período em questão, a língua geral era fala<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> parte no<br />
Grão-Pará, embora Mendonça Furtado na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1750 haja tentado<br />
proibir o uso <strong>de</strong>ssa língua. Para se comunicar, quase todo mundo no interior<br />
teria <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r e conversar em língua geral. Cumacanga tem origem<br />
na língua geral e é composta <strong>de</strong> duas palavras. No meu entendimento não<br />
está claro se a primeira palavra é cunhã, mulher, ou cu, língua. O segundo<br />
termo é cabeça (acanga), com certeza. Pelo menos, cabeça é um elemento<br />
central. Se é uma cabeça <strong>de</strong> mulher ou uma cabeça com línguas <strong>de</strong> fogo,<br />
não sei. Po<strong>de</strong>mos ver isto na exposição seguinte.<br />
Dois outros seres míticos existentes no Brasil envolvem fogo. A<br />
anhanga é um espírito mau que protege os animais na floresta; em algumas<br />
versões, tem olhos <strong>de</strong> fogo. Po<strong>de</strong> transformar-se em qualquer animal,<br />
incluindo humano, e faz os caçadores se per<strong>de</strong>rem. O curupira é uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> floresta às vezes <strong>de</strong>scrita com cabelo <strong>de</strong> fogo. A mula-sem-cabeça<br />
é a figura metamorfosea<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma mulher, a amante <strong>de</strong> um padre. A<br />
trans formação, a qual ocorre <strong>da</strong>s noites <strong>de</strong> quinta para as manhãs <strong>de</strong><br />
sexta-feira, é uma punição por transgressão moral; parece que o padre<br />
não é punido. A mula-sem-cabeça faísca fogo do seu pescoço e dá coices<br />
com muito relinchar, possuindo, portanto, alguma semelhança com o<br />
lobisomem e com a cumacanga. A história é generaliza<strong>da</strong> na Península<br />
Ibérica e tem também várias manifestações na América Espanhola 29 .<br />
A única referência contemporânea do documento acha-se na crônica<br />
dos cientistas bavarianos Karl Martius e Johann Spix 30 . Em sua discussão<br />
sobre o medo <strong>de</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s diabólicas pelos índios, falam <strong>da</strong> equivalência<br />
entre um encantado e o lobisomem <strong>de</strong> origem portuguesa 31 . O encantado<br />
parece um homúnculo e também um tipo <strong>de</strong> cão com orelhas bem longas,<br />
que faz muito barulho à noite. Mas eles falham ao contar a len<strong>da</strong> portuguesa.<br />
A crônica continua informando que a equivalência é liga<strong>da</strong> à simi la -<br />
ri<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os contos dos índios sobre o boitatá (ro<strong>da</strong>s ou cobras <strong>de</strong> fogo)<br />
e o que os portugueses enten<strong>de</strong>m como a mula sem cabeça 32 . A discussão<br />
29 CÂMARA CASCUDO, Luís <strong>da</strong>. Op. cit. p. 191-195.<br />
30 Há poucos trabalhos sobre a vi<strong>da</strong> religiosa no período do diretório <strong>da</strong> Amazônia colonial;<br />
as melhores fontes são as duas visitas pastorais <strong>de</strong> Queiróz (SÃO JOSÉ QUEI -<br />
RÓZ, D. Fr. João <strong>de</strong>. Viagem e visita do sertão em o Bispado do Gram Pará em 1762-3.<br />
Revista do <strong>Instituto</strong> Geográfico e Histórico Brasileiro, tomo 10, p. 43-107, 179-227, 328-<br />
375, 476-527, 1848; CASTELLO-BRANCO, Camillo. Memórias <strong>de</strong> Fr. João <strong>de</strong> São José<br />
Quei róz, bispo do Grão-Pará. Com uma introdução e notas illustrativas por Camillo<br />
Castello-Branco. Porto: Typographia <strong>da</strong> Livraria Nacional, 1868) e os documentos<br />
inquisitoriais transcritos por Amaral Lapa (AMARAL LAPA, R. (Org.). Livro <strong>da</strong> visitação<br />
do Santo Ofício <strong>da</strong> Inquisição ao estado do Grão-Pará. Petrópolis: Vozes, 1978).<br />
31 SPIX, Joham B. von e MARTIUS, Karl. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. Belo Horizonte:<br />
Editora Itatiaia, 1981. p. 146.<br />
32 A transformação <strong>da</strong> mula-sem-cabeça que ocorre nas noites <strong>de</strong> quinta para sexta-feira<br />
é a punição <strong>de</strong> uma transgressão moral; em geral, o padre não é punido no folclore.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
<strong>de</strong> Spix e Martius é muito sugestiva do mesmo processo que estou trazendo<br />
aqui — as afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s entre contos ou figuras <strong>de</strong> culturas diferentes. O que<br />
po<strong>de</strong>mos constatar é um processo antropológico <strong>da</strong> primeira or<strong>de</strong>m: a<br />
procura <strong>de</strong> comparação.<br />
No folclore português o complexo do lobisomem tem aspectos diferentes<br />
dos acima mencionados. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, encontramos que o lobisomem<br />
não está necessariamente ligado à forma zoológica <strong>de</strong> um lobo. Em<br />
vez disso, a pessoa é transforma<strong>da</strong> em qualquer espécie <strong>de</strong> animal, normalmente<br />
um cão, um bo<strong>de</strong>, um porco, um cavalo, um burro, ou qualquer<br />
outro animal <strong>de</strong> fazen<strong>da</strong>. 33 De noite, o homem atormentado tira as suas<br />
roupas, pendura-as num pinheiro e rodopia nu na sujeira. Este ato <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>r<br />
afeta a transformação, o homem irá tornar-se no último animal que rebolou<br />
naquele lugar. Irá, então, correr muito rapi<strong>da</strong>mente não procurando,<br />
necessariamente, animais ou humanos para comer, e regressará ao estado<br />
humano quando voltar a vestir as suas roupas. Lobisomens freqüente -<br />
men te têm a pele amarela, uma condição que po<strong>de</strong> estar liga<strong>da</strong> ao consumo<br />
excessivo <strong>de</strong> álcool e à per<strong>da</strong> <strong>de</strong> sono. 34<br />
Assim, a pele é um elemento muito importante. O antropólogo português<br />
Francisco Vaz <strong>da</strong> Silva, num esforço para fazer sentido <strong>de</strong> uma referência<br />
obscura que lhe foi feita <strong>de</strong> passagem (acerca <strong>de</strong> escolher os filhos<br />
mais velhos <strong>de</strong> alguém para servir <strong>de</strong> padrinhos para os seus irmãos mais<br />
novos, começando com o sétimo), no seu trabalho <strong>de</strong> campo no norte <strong>de</strong><br />
Portugal — argumenta que a metamorfose do lobisomem é<br />
a conversão <strong>de</strong> uma forma animal interna numa forma animal ex -<br />
ter na… a qual ajusta-se com a noção difundi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que os lobisomens<br />
são “shifters <strong>de</strong> pele” [<strong>de</strong> James Frazer]. Isto supõe uma equivalência<br />
A mula-sem-cabeça lança fogo pelo pescoço, dá coices relinchando e é muito semelhante<br />
ao lobisomem e à cumacanga. A história generalizou-se na Península Ibérica e<br />
tem também várias manifestações na América Espanhola. CÂMARA CASCUDO, Luís<br />
<strong>da</strong>. Op. cit. p. 191-195.<br />
33 PEDROSO, C. Contribuições para uma mitologia popular portuguesa e outros escritos<br />
etnográficos. Org. J. Leal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. p.187; VAZ DA SILVA,<br />
Francisco. Iberian born seventh born children, werewolves, and the dragon slayer: a<br />
case study in the comparative interpretation of symbolic praxis and fairytales. Folklore,<br />
v. 114, p. 345, 2003; LADURIE, E. Le Roy. Op. cit. p. 58.<br />
34 O produto humano que resulta <strong>de</strong> um relacionamento sexual entre parentes, seja <strong>de</strong><br />
compadrio, afini<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>de</strong> sangue, po<strong>de</strong>ria transformar em lobisomem (veja HARRIS,<br />
Mark. Life on the Amazon. Oxford: Oxford University Press, 2000). No livro O cacaulista,<br />
<strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Souza (Op. cit., p. 139), uma senhora é acusa<strong>da</strong> como feiticeira e<br />
lobisomem. O autor <strong>de</strong>screve sua aparência como magra, páli<strong>da</strong>, abati<strong>da</strong> e com pele<br />
amarela. Para suas relações sexuais com um padre, “a velha transformava em lobisomem,<br />
revestindo a figura <strong>de</strong> uma pata choca” (Op. cit., p. 139). Nota-se bem o termo<br />
“revestindo”, que se liga com a transformação do boto em lobisomem <strong>de</strong> Portugal.<br />
48 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
49<br />
básica entre a metamorfose como a fuga do duplo do animal do corpo<br />
como uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> pele. 35<br />
A mu <strong>da</strong>n ça <strong>de</strong> pele sugere uma ligação entre a transformação corporal<br />
e o xamanismo, seguindo a interpretação <strong>de</strong> xamanismo <strong>de</strong> Mircea<br />
Elia<strong>de</strong>, como uma viagem <strong>da</strong> alma. E será agora tempo <strong>de</strong> perguntar acerca<br />
<strong>de</strong> outros seres transformacionais nos quais Cavalcante se po<strong>de</strong>ria tornar? 36<br />
E o que dizer <strong>de</strong> outros seres transformacionais, que Cavalcante su -<br />
pos tamente po<strong>de</strong>ria “virar”? Não temos <strong>de</strong>talhes, exceto a referência a “vá -<br />
rias e <strong>de</strong>frentes figuras” e “semelhantes <strong>de</strong>lírios”, mas temos algumas su -<br />
gestões recentes. Conforme bem se conhece, as locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s ribeirinhas <strong>da</strong><br />
Amazônia contam histórias <strong>de</strong> botos que po<strong>de</strong>m virar homem ou mu lher,<br />
como quiserem. Encantados, espíritos invisíveis (“os bichos do fundo”)<br />
com po<strong>de</strong>res especiais po<strong>de</strong>m ir morar em animais, tais como a cobra, ou<br />
em locais, tais como um buraco fundo no rio ou no igarapé (geralmente<br />
indicado pela existência <strong>de</strong> re<strong>de</strong>moinhos, vórtices <strong>de</strong> correntes num curso<br />
d’água). A natureza dos encantados é <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente ambígua, na maior<br />
parte dos casos eles fazem mal, mas seus po<strong>de</strong>res também são invocados<br />
para trazerem a cura a alguns tipos <strong>de</strong> humanos. O caboclo pajé é, por<br />
natureza, um ser transformacional, que tem o dom <strong>de</strong> nascença para curar<br />
ou para malinar. À noite ele po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar sua forma humana na re<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scer<br />
ao fundo <strong>da</strong>s águas para visitar os encantados. Po<strong>de</strong> dominar os espíritos<br />
malevolentes em suas sessões <strong>de</strong> cura, ao i<strong>de</strong>ntificar-se com eles.<br />
Para <strong>da</strong>r um exemplo <strong>de</strong> um ser transformacional <strong>de</strong> origem ameríndia,<br />
irei referir-me ao boto-cor-<strong>de</strong>-rosa <strong>da</strong> Amazônia (Inia geoffrensis).<br />
O boto tem ciúme <strong>da</strong> natureza humana e é malicioso ao li<strong>da</strong>r com os hu -<br />
manos. Na parte <strong>da</strong> história mais conheci<strong>da</strong>, ele ouve, do rio, o barulho <strong>de</strong><br />
uma festa <strong>de</strong> santo e quer fazer parte <strong>da</strong> diversão. Deixa a água, transforma-se<br />
num homem bem vestido, com um terno branco, chapéu e sapatos<br />
pretos, e procura a pista <strong>de</strong> <strong>da</strong>nça. Ele começa a <strong>da</strong>nçar e rapi<strong>da</strong>mente<br />
atrai mulheres que não conseguem resistir aos seus encantos.<br />
Finalmente ele <strong>de</strong>saparece na floresta com a que prefere e fazem<br />
amor. À medi<strong>da</strong> que ela se recupera, ele escapa e retorna ao rio. A mulher<br />
irá ansiar por encontrar o homem <strong>de</strong> novo e, eventualmente, as pessoas<br />
perceberão que foi um boto que a seduziu e que ela precisará dos po<strong>de</strong>res<br />
especiais do pajé para se curar37 . Os botos também atraem pessoas para os<br />
35 VAZ DA SILVA, Francisco. Op. cit. p. 346, 2003.<br />
36 É importante lembrar que a forma zoológica <strong>de</strong> lobo não tem na<strong>da</strong> a ver com o conceito<br />
<strong>de</strong> lobisomem dos séculos passados.<br />
37 Cf. SLATER, C. The <strong>da</strong>nce of the Dolphin. Chicago: Chicago University Press, 1994; LOU-<br />
REIRO, J. <strong>de</strong> Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
seus reinos encantados no fundo do rio. Pelo menos em versões contemporâneas<br />
<strong>da</strong> len<strong>da</strong>, as roupas que um boto usa são <strong>de</strong>riva<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />
corporais dos animais do rio, os sapatos são um par <strong>de</strong> arraias, e o chapéu<br />
uma tartaruga. Assim que o boto retorna à água, tudo se transforma ao<br />
anterior novamente. Em outras palavras, as roupas são parte importante<br />
<strong>da</strong> fuga do golfinho do rio para a terra, mas <strong>de</strong>sta vez, na direção oposta à<br />
do lobisomem, ao colocá-las, em vez <strong>de</strong> as tirar, para assumir uma forma<br />
diferente.<br />
Embora não exista lobo na Amazônia, a convivência com outros seres<br />
<strong>da</strong>s águas e dos ares (pássaros) e o imaginário indígena subjacente a to<strong>da</strong><br />
a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>da</strong> região permitiram a criação <strong>de</strong> outras figuras se -<br />
melhantes à do lobisomem: a matinta pereira (pessoas que batem à porta<br />
e vêm pedir um pouco <strong>de</strong> tabaco e se transformam em pássaro), as pessoas<br />
que viram “porco” ou “cachorro”.<br />
Os conceitos e o papel cultural <strong>de</strong>sse seres mágicos indubitavel men te<br />
sofreram mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do século XVIII. Embora não saibamos<br />
exatamente o que esses outros seres são, po<strong>de</strong>mos, com uma boa dose <strong>de</strong><br />
certeza, especular que eles <strong>de</strong>rivam <strong>da</strong> imensa panóplia <strong>de</strong> criaturas en -<br />
canta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma em constante mutação, que existem nos tempos con temporâneos.<br />
E sugeri acima minha impressão <strong>de</strong> que a razão pela qual as<br />
testemunhas se recusavam a <strong>da</strong>r-lhes um nome, bem como o escrivão a<br />
registrar tais nomes, era porque a Coroa Portuguesa estava tentando <strong>de</strong> sespera<strong>da</strong>mente<br />
impor à Colônia padrões culturais europeus. A lembrança <strong>de</strong><br />
que um lugar no sertão (interior) estaria cultivando abertamente crenças<br />
culturais híbri<strong>da</strong>s, ou sustentando superstições dos índios, teria atraído o<br />
<strong>de</strong>sprezo <strong>da</strong> metrópole.<br />
Po<strong>de</strong>mos relembrar a imagem do “fosso enorme” que separava as<br />
crenças e práticas religiosas populares do catolicismo oficial. No caso <strong>de</strong><br />
Vila Franca no Baixo Amazonas, o único sinal <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> Igreja era o<br />
padre, e, conforme já foi visto, é muito improvável que aquele padre tivesse<br />
tido interesse pelas questões teológicas mais refina<strong>da</strong>s; a<strong>de</strong>mais, é preciso<br />
notar que ele contava com quase nenhuma estrutura institucional para<br />
<strong>da</strong>r apoio ao seu trabalho. Em um meio ambiente assim caótico e indisciplinado<br />
surgiram as convergências. Po<strong>de</strong>ríamos dizer que havia uma “afini<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
natural” na imaginação entre os mutáveis seres ameríndios e as<br />
tradições européias.<br />
Embora ele não use a expressão “afini<strong>da</strong><strong>de</strong> natural”, a implicação<br />
aparece claramente na reinterpretação feita por Carlo Ginzburg do famoso<br />
estudo clínico do homem-lobo feito por Sigmund Freud. Ginzburg indica<br />
que, faltando a Freud a percepção do folclore russo, ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> compre -<br />
en<strong>de</strong>r em sua plenitu<strong>de</strong> o caso. Argumenta que Freud per<strong>de</strong>u uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
excepcional <strong>de</strong> articular a conexão entre esferas filogenéticas e<br />
50 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
51<br />
ontogenéticas <strong>de</strong> mitos tais como o do lobisomem. Para os nossos propósitos,<br />
o relevante é a insistência <strong>de</strong> Ginzburg <strong>de</strong> que, “<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista<br />
histórico” (o <strong>de</strong>staque é <strong>de</strong>le), há uma conexão entre lobisomens e o sabbat<br />
que tem o benan<strong>da</strong>nti como um elo intermediário: ambos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados<br />
figuras num vasto stratum semi-apagado <strong>de</strong> crenças impregna<strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong> sobretons xamanísticos. Com essa base, não é <strong>de</strong> admirar que, nos mundos<br />
religiosos que foram elaborados na Amazônia Colonial, uma forma <strong>de</strong><br />
pajelança cabocla, <strong>de</strong> caráter ameríndio e católico, e mitos a respeito <strong>de</strong><br />
seres encantados se tornassem proeminentes.<br />
Pajelança e o terreno no meio<br />
Vou agora brevemente ligar o complexo do lobisomem com o xamanismo<br />
ou, como se fala na Amazônia, pajelança ou pajeria. De acordo com<br />
Carlo Ginzburg, o caráter transformativo do lobisomem faz parte <strong>de</strong> um<br />
espaço imaginativo que po<strong>de</strong> ser caracterizado como xamanismo. Não es -<br />
queçamos que ele está falando do antigo mundo, <strong>de</strong> uma Europa que não<br />
foi complementamente cristianiza<strong>da</strong>. Isto é realmente um objetivo principal<br />
do trabalho <strong>de</strong>le; que existiam ao longo dos séculos focos <strong>de</strong> “sobrevivências”<br />
na Europa <strong>de</strong> práticas e crenças que pre<strong>da</strong>tam a introdução do cristianismo<br />
no século IV. Não sei se em Portugal do século XVIII existia tal<br />
foco <strong>de</strong> xamanismo tipo ibérico que foi transferido para a Terra <strong>de</strong> Santa<br />
Cruz. Mas po<strong>de</strong>mos fazer duas observações. Havia uma tradição <strong>de</strong> curas,<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res extraordinários, <strong>de</strong> transformações <strong>de</strong> pessoas em animais e<br />
também <strong>de</strong> viagens espirituais (veja-se Ginzburg 38 , pela busca <strong>da</strong>s tradições<br />
xamanísticas na Europa). Po<strong>de</strong>mos dizer também que, seguindo a linha <strong>da</strong><br />
história <strong>da</strong>s mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ca<strong>da</strong> complexo <strong>de</strong> práticas e crenças carrega<br />
uma bagagem não articula<strong>da</strong>. Essa bagagem são os traços que fo ram re -<br />
pri mi dos ou rejeitados no passado, porém continuam no presente como<br />
potências que po<strong>de</strong>m ser realiza<strong>da</strong>s. Mesmo que não tenha existido xamanismo<br />
propriamente em Portugal, havia os restos <strong>de</strong> um mundo subterrâneo<br />
ligado ao xamanismo como fenômeno histórico (não vou entrar no <strong>de</strong>bate<br />
sobre o universalismo do xamanismo). O lobisomem fazia parte disso <strong>de</strong><br />
forma explícita.<br />
Estou sugerindo que os colonizadores, a maioria provin<strong>da</strong> <strong>da</strong> classe<br />
popular e do antigo campesinato do norte <strong>de</strong> Portugal, chegaram já ao<br />
Grão-Pará com as idéias xamanísticas <strong>da</strong> Europa. Como a instituição <strong>de</strong><br />
compadrio com que se vincularam os índios e os primeiros colonizadores, a<br />
pajeria funcionou como um tipo <strong>de</strong> colar social. Atraiu todo tipo <strong>de</strong> pessoas<br />
38 GINZBURG, Carlo. Ecstasies. Op. cit.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
e to<strong>da</strong>s as classes, até governadores do Grão-Pará 39 . A sugestão é que o<br />
xamanismo dos mundos velho e novo ajudou o reconhecimento dos mundos<br />
imaginativos na América Portuguesa.<br />
Fica claro nas fontes que vários tipos <strong>de</strong> xamanismo floresciam no<br />
século XVIII nas áreas urbanas e rurais, e tanto entre brancos quanto en tre<br />
africanos e índios. Por quê? Uma resposta é que os diversos atores foram<br />
atraídos à cura e também à feitiçaria. E com a proliferação <strong>da</strong> participação,<br />
os rituais e práticas eram inovados no processo 40 . O teatro <strong>da</strong> pajelança e<br />
a feitiçaria foram terrenos férteis para a apropriação individual e a manipulação<br />
<strong>da</strong>s novas formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r simbólico. Conforme Laura <strong>de</strong> Mello<br />
e Souza, essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s estavam liga<strong>da</strong>s à sobrevivência na Colônia: as<br />
pessoas precisavam <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res mágicos para controlar as significados <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>.<br />
Esse mundo emergido do xamanismo/pajelança então foi o contexto<br />
em que várias enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, figuras e seres se ligam. Também volta o foco<br />
para o papel dos índios e sobretudo <strong>da</strong>queles homens e mulheres que praticam<br />
formas <strong>de</strong> cura e feitiçaria. Estas posições eram as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
locais, as referências para negociar não só o mundo invisível e visível, mas<br />
também os mundos culturais, como é sempre observado nos estudos <strong>da</strong><br />
pajelança na América do Sul. Igualmente aos padres e missionários, os<br />
novos pajés e curadores eram os mediadores <strong>de</strong> diversos interesses. O<br />
controle <strong>da</strong>s forças novas e as formas simbólicas estavam nas mãos <strong>de</strong>les.<br />
Embora não possa <strong>de</strong>senvolver o argumento aqui, estou certo <strong>de</strong> que nas<br />
vilas e povoações do Grão-Pará foram os pajés que fizeram a gran<strong>de</strong> parte<br />
do trabalho <strong>da</strong> imaginação. Há uma remota possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que Caval -<br />
cante, homem intelectual e político, formado em Coimbra, gran<strong>de</strong>s ambições<br />
e interesse pela cultura dos índios, tenha sido um <strong>de</strong>sses novos tipos<br />
<strong>de</strong> pajé e, por isso, adquirido o epíteto <strong>de</strong> “lobisomem”.<br />
Conectando conceitos e fronteiras imaginativas<br />
Venho-me aproximando <strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong> pensamento que sugere<br />
ter-se formado, por meio <strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> imagens relativas a humanos<br />
como seres transformacionais, surgindo dos “imaginários” <strong>da</strong>s culturas em<br />
39 Cf. AMARAL LAPA, R. (Org.). Op. cit.<br />
40 Cf. Ibi<strong>de</strong>m; SÃO JOSÉ QUEIRÓZ, D. Fr. João <strong>de</strong>. Via gem e visita do sertão em o Bis -<br />
pa do do Gram Pará em 1762-3. Revista do <strong>Instituto</strong> Geo grá fi co e Histórico Brasileiro,<br />
tomo 10, p. 43-107, 179-227, 328-375, 476-527, 1848; SOU ZA, A. F. <strong>de</strong>. 1848. Noticias<br />
geographicas <strong>da</strong> capitania do Rio Negro no Gran<strong>de</strong> rio Ama zo nas. Revista do <strong>Instituto</strong><br />
Histórico e Geográfico Brasileiro, 10, 411-503.<br />
52 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
53<br />
confronto (européia e ameríndia), uma ponte conceitual entre os vários<br />
atores. As experiências comuns <strong>de</strong> enfrentar as condições repressivas <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> numa parte marginal <strong>da</strong> Colônia, <strong>de</strong> estar <strong>de</strong>sorientado seja pelo <strong>de</strong>slocamento<br />
(“<strong>de</strong>sterrado”), seja pela escravidão virtual (no respeito dos ameríndios),<br />
e a falta <strong>de</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com as técnicas e habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s necessárias<br />
à sobrevivência nos mundos formados pelas áreas ribeirinhas e florestas<br />
(no respeito dos colonos e administradores) do Baixo Amazonas produziram<br />
uma série <strong>de</strong> reconciliações com bases locais entre os vários atores; mes -<br />
mo que, no papel e aos olhos <strong>da</strong> Colônia, existissem lacunas imensas entre<br />
os tipos <strong>de</strong> pessoas vivendo num mesmo local. Aquele não era um meio<br />
ambiente em que alguém pu<strong>de</strong>sse livrar-se <strong>da</strong>s exigências do trabalho<br />
cotidiano, exceto os aleijados e doentes, não obstante todos os protestos<br />
dos oficiais pelo contrário. Compartilhar essas exigências, ain<strong>da</strong> que com<br />
certa <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> na sua distribuição, oferecia a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou talvez<br />
até mesmo a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> limites imaginativos para avaliar a situação.<br />
A conexão talvez já se realizasse coletivamente, mas não estava acontecendo<br />
<strong>de</strong> modo uniforme: pessoas em diferentes posições sociais na colônia<br />
teriam interpretado tais <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong> forma varia<strong>da</strong>, o que ex pli ca<br />
a natureza heterogênea <strong>da</strong>s crenças folclóricas em evidência nos dias <strong>de</strong><br />
hoje. O que quero ressaltar é que as idéias estavam expressas abertamente,<br />
libera<strong>da</strong>s <strong>de</strong> suas jaulas, po<strong>de</strong>ndo ser <strong>de</strong>bati<strong>da</strong>s ou reprimi<strong>da</strong>s.<br />
No complexo <strong>da</strong> forma mutável, é possível então perceber um acoplamento<br />
entre as várias crenças e práticas (o substratum, para usar a frase<br />
arqueológica <strong>de</strong> Ginzburg) dos colonos ibéricos e os traços dos grupos<br />
ame ríndios, forçados a se tornarem vassalos nas vilas. Essas pontes conceituais<br />
estavam unindo continentes e indivíduos com diferentes histórias.<br />
Começara uma dinâmica, <strong>da</strong> meta<strong>de</strong> para o final do século XVIII, que reunia<br />
forças antagônicas num quadro <strong>de</strong> referência local, com o qual ambas<br />
precisavam <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente se relacionar. Eis então o que Gruzinski<br />
chamou <strong>de</strong> “métissage dynamique” (mestiçagem dinâmica) 41 com pouca<br />
ló gica ou estrutura, mas com movimento e conexão como princípio cultural.<br />
Para evocar a diferenciação feita por Ingold entre imaginação e inteligência,<br />
po<strong>de</strong>ríamos dizer que a imaginação tentava solucionar problemas encontrados<br />
na experiência.<br />
Embora algo novo estivesse emergindo, não era uma nova “cultura”,<br />
ou um novo “imaginário”. Era bem mais uma série <strong>de</strong> expressões singulares<br />
<strong>da</strong>s relações negocia<strong>da</strong>s e conflituosas entre os vários atores em um<br />
<strong>da</strong>do lugar, no caso a Vila Franca. Uma expressão na qual se encontravam<br />
41 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Tradução R. Freire d’Aguiar. São Paulo:<br />
Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2000.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
tanto aspectos materiais como i<strong>de</strong>ológicos, sendo que ca<strong>da</strong> parte não estava<br />
necessariamente <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> ou combina<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo regular. Há certa<br />
ironia na observação <strong>de</strong> que os índios <strong>de</strong> melhor posição na al<strong>de</strong>ia começavam<br />
já a apresentar formas <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> mais européias, e os colonos pobres<br />
estavam apren<strong>de</strong>ndo a viver e a trabalhar na região, para isso adotando uma<br />
mistura <strong>de</strong> conhecimento <strong>da</strong> técnica indígena e <strong>de</strong> métodos campesinos <strong>da</strong><br />
Europa, enquanto os colonos mais ricos também estavam a<strong>da</strong>ptando-se à<br />
Colônia, talvez usando escravos pela primeira vez. Em outras palavras, havia<br />
uma aprendizagem mútua <strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, crenças e visões <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>s<br />
e transporta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, sem que houvesse <strong>de</strong> permeio um<br />
encontro realmente harmonioso entre esses padrões. Talvez sob a magia<br />
<strong>de</strong> um céu estrelado com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma garrafa <strong>de</strong> cachaça, ou nos<br />
momentos íntimos <strong>de</strong> prazer sexual, tenha havido empatias individuais.<br />
Essas eram as condições <strong>da</strong> fronteira imaginativa <strong>da</strong> Colônia no<br />
crepúsculo do século XVIII no Baixo Amazonas. É <strong>de</strong> se perguntar por que<br />
referências tão escassas nesses documentos oficiais se referem a crenças<br />
folclóricas <strong>de</strong> figuras <strong>de</strong> transformação. A ênfase tanto do diretório como<br />
a <strong>da</strong>s exigências políticas e econômicas mais amplas referiam-se fun<strong>da</strong>mentalmente<br />
a uma mu<strong>da</strong>nça pessoal e coletiva <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>: que o ameríndio<br />
se tornasse um vassalo <strong>de</strong> El Rey e o colono se a<strong>da</strong>ptasse à Colônia,<br />
casasse com gente do local e se tornasse “brasileiro”. Não estou dizendo que<br />
essas categorias sejam auto-evi<strong>de</strong>ntes, mas a força total <strong>da</strong> administração<br />
e <strong>de</strong> seus privilégios estava volta<strong>da</strong> nessas direções. Novas noções <strong>de</strong> si<br />
estavam sendo forja<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> que não fossem aquelas que a Coroa pu<strong>de</strong>sse<br />
ter <strong>de</strong>sejado. Essas figuras imaginativas <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça refletem as esferas<br />
materiais, oferecendo conceitos pragmáticos com os quais é possível pensar.<br />
Contudo, as fronteiras imaginativas ligando as diversas experiências<br />
no Baixo Amazonas não podiam ser arregimenta<strong>da</strong>s tais quais religiões<br />
institucionaliza<strong>da</strong>s como o Catolicismo. Faltavam-lhes raízes sociológicas<br />
firmes, sendo ao mesmo tempo rebel<strong>de</strong>s e criativas em sua conectivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
do tipo jigsaw puzzle (quebra-cabeça <strong>de</strong> encaixes). A única forma institucional<br />
possível para essas crenças e práticas teria sido o pajé e seu conhecimento<br />
(e dom) <strong>de</strong> curar.<br />
É significativo que o padre seja formalmente reconhecido como o<br />
ponto <strong>de</strong> origem <strong>da</strong> história do lobisomem. Ele estaria bem posicionado<br />
para conhecer o mundo religioso e imaginativo dos índios <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia e<br />
como explorá-lo. O padre sabia muito bem o que estava fazendo ao tornar<br />
públicas as acusações, ele teria conhecido bem as ligações entre os brancos<br />
e os ameríndios. É tentador especular que po<strong>de</strong>ria ter sido o padre (e<br />
outros como ele) quem temerariamente sugeriu a ponte entre as idéias<br />
européias e ameríndias <strong>de</strong> seres transformacionais. Tendo ele casualmente<br />
54 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
55<br />
feito a conexão, por nenhuma outra razão senão para <strong>de</strong>sacreditar seu inimigo<br />
naquela locali<strong>da</strong><strong>de</strong>, “a coisa pegou”, embora isto seja mover-se em<br />
direção ao reino <strong>da</strong> fantasia. Indica, contudo, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que as afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
naturais discuti<strong>da</strong>s anteriormente não ocorram naturalmente,<br />
mas em situações históricas bastante precisas, <strong>de</strong>tona<strong>da</strong>s junto com as<br />
relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que lhes provocaram a convergência. Eu <strong>de</strong>veria concluir<br />
afirmando que não estou preten<strong>de</strong>ndo que essas pontes conceituais<br />
tenham conseguido êxito em unir as pessoas. Elas po<strong>de</strong>m ter proporcionado<br />
a esperança <strong>de</strong> criar um contexto para que isso acontecesse, mas em<br />
sua essência a fronteira imaginativa, como um modo <strong>de</strong> ser, não encontrava<br />
apoio nem nas condições sociais, nem nas políticas. Em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ela<br />
prometia mais do que podia realizar.<br />
Ao focalizar o trabalho <strong>da</strong> imaginação na Amazônia Colonial do<br />
século XVIII, tentei oferecer uma nova perspectiva sobre esse período.<br />
Sendo a dizimação dos ameríndios e a imposição dos portugueses quase<br />
sempre <strong>de</strong>scritas em termos apocalíticos ou maniqueístas, busquei mu<strong>da</strong>r<br />
o foco <strong>da</strong> atenção para as pessoas que tomaram parte ativa nesse mundo<br />
colonial e suas lutas para criar um lugar para si mesmas, em que pu<strong>de</strong>ssem<br />
habitar <strong>de</strong> modo mais ou menos seguro. Apesar <strong>da</strong> violência e do<br />
abuso, resistência e morte, a partilha força<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse mundo que os confrontava<br />
e a forma <strong>de</strong> imaginá-lo serviram à reconciliação dos diferentes<br />
grupos. Tradicionalmente, a antropologia não tem sido lá muito feliz em<br />
<strong>de</strong>screver esses compromissos e convergências frágeis e complexos, ou<br />
em encontrar um quadro <strong>de</strong> referência interpretativa para compreendê-los.<br />
Ao relacionar experiência com imaginação, conforme tentei fazer aqui,<br />
espero ter mostrado um modo <strong>de</strong> <strong>da</strong>r expressão a esse imenso mundo<br />
silencioso, cujos traços são as marcas <strong>da</strong>s palavras trabalhosamente escritas<br />
à mão nas preciosas e frágeis páginas amarela<strong>da</strong>s dos antigos documentos.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
57<br />
A teoria <strong>da</strong> história em Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan 1<br />
Resumo<br />
Este artigo analisa as obras em que Caio Prado Jr. trata <strong>de</strong> temas <strong>de</strong><br />
metodologia e filosofia, buscando enten<strong>de</strong>r, em primeiro lugar, como<br />
ele formulava os principais conceitos <strong>da</strong> dialética e como os vinculava<br />
à tradição filosófica, especialmente a <strong>de</strong> Hegel e <strong>de</strong> Marx. Em segundo<br />
lugar, a partir <strong>de</strong>ste contexto é analisado o conceito <strong>de</strong> sentido em sua<br />
riqueza dialética, para <strong>da</strong>í enten<strong>de</strong>r sem reducionismos como ele aparece<br />
na obra do historiador.<br />
Palavras-chave<br />
Filosofia, Dialética, Sentido, Hegel, Marx, História<br />
1 Professor <strong>de</strong> Teoria <strong>da</strong> História no Departamento <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
E-mail: grespan@usp.br<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Caio Prado Jr.’s Theory of History:<br />
dialetics and meaning<br />
Jorge Grespan<br />
Abstract<br />
This article analyzes the works in which Caio Prado Jr. <strong>de</strong>als with<br />
methodological and philosophical issues, trying to un<strong>de</strong>rstand in first<br />
place how he formulated the main concepts of dialectics and how he<br />
linked them to philosophical tradition, specially that of Hegel and of<br />
Marx. Secondly, in this context the concept of meaning is analyzed in<br />
its full dialectical complexity, and only then its non-reductionist<br />
un<strong>de</strong>rstanding in the historians work could be achieved.<br />
Keywords<br />
Philosophy, Dialectics, Meaning, Hegel, Marx, History<br />
58 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Do<br />
mesmo modo como ousava<br />
propor teses originais sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, Caio Prado Jr. foi o único<br />
intelectual marxista <strong>da</strong> sua geração que por aqui se aventurou a estu<strong>da</strong>r e<br />
a escrever sobre “lógica dialética”. Antes do surgimento do marxismo na<br />
universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre os anos 1950 e 1960, tais assuntos, como quase todos <strong>de</strong><br />
âmbito teórico, eram consi<strong>de</strong>rados problemas que os fun<strong>da</strong>dores europeus<br />
<strong>da</strong> doutrina já teriam resolvido. Os seguidores brasileiros <strong>de</strong>viam somente<br />
aplicá-los na prática política.<br />
Caio Prado se interessava por lógica e metodologia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />
1930. Mas talvez tenha <strong>de</strong>cidido concentrar-se no estudo <strong>da</strong> dialética apenas<br />
quando sentiu a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r suas posições: a interpretação<br />
original do Brasil e a própria divergência, <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa interpretação, em<br />
relação à política oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB).<br />
Nesse sentido, po<strong>de</strong> ser sintomático que Dialética do conhecimento,<br />
<strong>de</strong> 1952, tenha sido a primeira gran<strong>de</strong> publicação <strong>de</strong> Caio Prado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
História econômica do Brasil em 1945. Alguns estudiosos <strong>de</strong> sua obra chegam<br />
a distinguir nesse momento a passagem para uma segun<strong>da</strong> fase: não seria<br />
mais preciso, como nos anos 1930 e 1940, elaborar uma nova visão do Bra sil<br />
que o arrancasse do atraso econômico e político típico <strong>da</strong> República Velha;<br />
59<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
nos anos 1950 esta visão estaria mais ou menos consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>, e a tarefa<br />
passava a ser a re<strong>de</strong>finição do modo pelo qual o país se inseria no mundo 2 .<br />
Po<strong>de</strong> ser. O inegável é que o <strong>de</strong>bate havia mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> patamar. Vá rias<br />
instituições novas surgiam, como o <strong>Instituto</strong> Superior <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Brasi -<br />
leiros (ISEB) e o sistema <strong>de</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s públicas; e mesmo no PCB a<br />
formulação <strong>da</strong>s estratégias agora pedia referências a um quadro mais<br />
amplo. A interpretação <strong>da</strong> história brasileira proposta entre 1933 e 1945<br />
por Caio Prado passava a concorrer com outras relativamente próximas do<br />
seu espectro político. A disputa <strong>de</strong>man<strong>da</strong>va exatidão conceitual, clareza<br />
nos fun<strong>da</strong>mentos.<br />
Sentido <strong>da</strong> dialética<br />
De fato, Caio Prado chega a mencionar, no primeiro capítulo <strong>de</strong> um<br />
livro posterior sobre o tema — Notas introdutórias à lógica dialética, <strong>de</strong><br />
1959 —, que o tratamento <strong>da</strong>do por ele à questão em 1952 suscitara objeções:<br />
“Depois <strong>da</strong> publicação <strong>da</strong> Dialética do conhecimento, tive bem a medi<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>ssas dúvi<strong>da</strong>s e confusões, chegando alguns críticos a me acusarem <strong>de</strong><br />
‘hegeliano’ e ‘i<strong>de</strong>alista’ porque fazia <strong>da</strong> Dialética uma Lógica, e portanto<br />
um fato mental!” 3 . Ele trata então <strong>de</strong> esclarecer o leitor sobre os “dois sentidos<br />
<strong>da</strong> expressão” dialética, que <strong>de</strong>signaria tanto “o comportamento<br />
geral <strong>da</strong> Natureza […], a mutabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas feições, a<br />
permanente transformação <strong>de</strong>las”, quanto um método <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Um “sentido” objetivo e outro subjetivo, po<strong>de</strong>mos dizer, que “se<br />
entrosam intimamente”, mas “são distintos” 4 .<br />
Temos aqui já alguns pontos importantes. O primeiro é a concepção<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> marca<strong>da</strong> pela “permanente transformação”, pela “mutabili<strong>da</strong><strong>de</strong>”,<br />
o que introduz a discussão sobre a história e a historici<strong>da</strong><strong>de</strong> do real.<br />
O segundo é a relação entre os dois sentidos <strong>da</strong> dialética, isto é, o modo<br />
como se “entrosa” o que é “distinto”. Finalmente, mesmo levando em conta<br />
tratar-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>saforo tradicional na disputa política comunista, o fato<br />
<strong>de</strong> Caio Prado ter sido acusado <strong>de</strong> “hegeliano” po<strong>de</strong> ser índice <strong>de</strong> algo interessante,<br />
<strong>de</strong> uma concepção mais fina <strong>de</strong> dialética que caberia investigar.<br />
De qualquer modo, é preciso começar admitindo que esta concepção<br />
geral <strong>da</strong> dialética como “comportamento <strong>da</strong> Natureza” não é inovadora,<br />
constituindo um dos pilares do marxismo como doutrina elabora<strong>da</strong> por<br />
2 Cf., por exemplo: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo<br />
no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 118-119.<br />
3 PRADO JR., Caio. Notas introdutórias à lógica dialética. São Paulo: Brasiliense, 1959.<br />
p. 5, nota 1.<br />
4 Ibi<strong>de</strong>m, grifos meus.<br />
60 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
61<br />
Engels e consagra<strong>da</strong> pela União Soviética. Nos termos do <strong>de</strong>bate então em<br />
curso, aliás, nem po<strong>de</strong>ria haver inovação <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>.<br />
Mas o que Caio Prado enten<strong>de</strong> por “natureza”, para que esta tenha<br />
um “comportamento” dialético? Uma primeira resposta é que “a natureza<br />
[…] é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> objeto do pensamento e do conhecimento humano”; ou<br />
seja, por “natureza” ele <strong>de</strong>fine em geral o “objeto do conhecimento”, “a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
contraposta ao “pensamento”, e não necessariamente uma dimensão<br />
<strong>de</strong>sta reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a saber, a que se distingue dos fatos históricos e sociais,<br />
como na terminologia tradicional.<br />
E se, por outro lado, num sentido mais estrito “natureza” indica a<br />
parte <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> distinta <strong>da</strong>quela povoa<strong>da</strong> pelo histórico e social, aí também<br />
ela não se confun<strong>de</strong> com a <strong>de</strong>finição clássica <strong>de</strong> algo estático, porque,<br />
em vez <strong>de</strong> coisas inertes e individuais,<br />
a Dialética […] consi<strong>de</strong>ra antes as relações, o “conjunto” e a “uni<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
universal don<strong>de</strong> <strong>de</strong>correm tais relações; e é nessas relações, sejam<br />
no espaço, sejam no tempo (quando mais propriamente elas se <strong>de</strong> -<br />
no minam “processos”), é nelas que a Dialética vai pro cu rar e <strong>de</strong>terminar<br />
os “indivíduos” e sua “individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>” própria. 5<br />
As coi sas e os eventos individuais não o são por si mesmos, mas como<br />
resultado <strong>de</strong> “relações” que, quando se dão “no tempo”, “se <strong>de</strong>nominam<br />
pro cessos”. A natureza já é processual.<br />
Assim, o método dialético seria a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> relações reais<br />
pelo sujeito do conhecimento, relações em que os fatos são produzidos,<br />
<strong>de</strong>sdobrando no tempo a individuação dos eventos. Por tal <strong>de</strong>sdobramento<br />
a natureza se reveste <strong>de</strong> um caráter processual, à semelhança <strong>da</strong> história.<br />
Só nesse sentido seria possível falar realmente <strong>de</strong> uma “dialética <strong>da</strong><br />
natureza”, porque até nela “as feições” estão em “permanente transformação”.<br />
Por oposição à perspectiva que naturaliza a história, encontrando<br />
também aí apenas mecanismos e coisas, a dialética como que historiciza<br />
a natureza.<br />
Mais exatamente, Caio Prado diz que “os fatos <strong>da</strong> Natureza extrahumana<br />
também têm a sua história. […] enfim to<strong>da</strong> a Natureza orgânica<br />
e inorgânica tem sua história” na sucessão dos seus eventos. Como esta<br />
historici<strong>da</strong><strong>de</strong> não é visível em todo o real, “o pensamento metafísico é<br />
levado a introduzir em tal história aparentemente periódica a noção <strong>de</strong><br />
‘ciclos’ idênticos”, procedimento que é “possível e apresenta à primeira<br />
vista alguns visos <strong>de</strong> justeza, porque a natureza histórica <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte<br />
5 I<strong>de</strong>m. Dialética do conhecimento. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1960. tomo I, p. 10.<br />
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dos fatos do Universo, isto é, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história que introduz permanentemente<br />
o novo, essa história é freqüentemente imperceptível, na escala<br />
humana” 6 . O caráter cíclico observado nos fenômenos naturais só “aparentemente”<br />
é histórico, pois a “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história” é a “que introduz permanentemente<br />
o novo” e não a repetição previsível pela periodici<strong>da</strong><strong>de</strong>, em<br />
que na<strong>da</strong> <strong>de</strong> diferente se produz. Mas “a história humana, pelo contrário,<br />
<strong>de</strong>senvolvendo-se na nossa escala e tão próxima <strong>de</strong> nós, revela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo<br />
seu caráter ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro” 7 , a saber, aquele que produz algo “novo”, a relação<br />
processual que liga o passado ao futuro pela diferença.<br />
Nem a história natural é cíclica; ela aparenta sê-lo somente porque<br />
a “escala humana” é muito pequena para que o aparecimento do novo seja<br />
“perceptível” nos fatos do universo. Daí ser a história humana a dimensão<br />
privilegia<strong>da</strong> em que fica evi<strong>de</strong>nte, pela “escala tão próxima <strong>de</strong> nós”, que<br />
algo diferente surge <strong>de</strong> uma relação, surge do seu oposto, dialeticamente,<br />
como processo que liga e distingue passado e futuro — “notamos, tanto a<br />
propósito <strong>de</strong> Hegel como <strong>de</strong> Marx, que aquela maneira <strong>de</strong> tratamento é su -<br />
geri<strong>da</strong> sobretudo pela consi<strong>de</strong>ração <strong>da</strong> história humana” 8 . É essa história<br />
que <strong>de</strong>ve assim ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> “sobretudo”, porque “revela […] o caráter<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro” do tempo histórico.<br />
Quando se naturaliza a história humana, ao contrário, o que se faz<br />
é generalizar uma concepção cíclica do tempo que até para a história<br />
natural é uma simplificação, pois apresenta “um aglomerado <strong>de</strong> situações<br />
dispostas no tempo e sem outra ligação umas com as outras a não ser a <strong>da</strong><br />
própria sucessão e <strong>de</strong> seu parâmetro abstrato e puramente conceptual” 9 .<br />
Ou seja, esta concepção parte <strong>de</strong> “situações […] sem ligação umas com as<br />
outras”, já <strong>da</strong><strong>da</strong>s em sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e as relaciona apenas porque as<br />
“dispõe” numa sucessão em que o tempo é um “parâmetro” externo às si -<br />
tuações mesmas e, <strong>da</strong>í, “abstrato”. Em vez disso, a concepção dialética parte<br />
<strong>de</strong> relações que, na contradição dos seus termos, individuam as situações<br />
e articulam uma temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> processual, um tempo histórico, porque<br />
concreto.<br />
Por isso, Caio Prado afirma:<br />
Logo se vê o aspecto essencialmente revolucionário <strong>da</strong> História observa<strong>da</strong><br />
e interpreta<strong>da</strong> através <strong>da</strong> Dialética. […] Ca<strong>da</strong> um dos momentos<br />
<strong>de</strong>ssa história, ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong> suas fases ou situações traz no seu seio<br />
a transformação que a <strong>de</strong>struirá; transformação que não vem do seu<br />
6 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 519.<br />
7 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 520.<br />
8 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 518.<br />
9 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 520, grifo meu.<br />
62 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
63<br />
exterior, que não é diferente <strong>de</strong>la própria, mas é ela mesma no seu<br />
<strong>de</strong>senvolvimento. 10<br />
Mu<strong>da</strong>ndo um pouco os termos, como “a transformação que <strong>de</strong>struirá”<br />
“ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong> suas fases ou situações” já vem “no seio” <strong>de</strong>las, ocorre<br />
uma espécie <strong>de</strong> interiorização <strong>da</strong> própria “transformação, que não vem do<br />
exterior”. E como “não vem do exterior”, “não é diferente <strong>de</strong>la própria, mas<br />
é ela mesma”, a saber, a “fase ou situação”, não toma<strong>da</strong> como algo isolado<br />
e extático e sim “no seu <strong>de</strong>senvolvimento”. A dialética dissolve assim<br />
inclusive a dicotomia entre exterior e interior, interiorizando o princípio<br />
transformador do real no próprio real: a “<strong>de</strong>struição” <strong>de</strong> um “momento <strong>da</strong><br />
história” é a expressão <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong> inscrita neste momento mesmo; e<br />
o “<strong>de</strong>senvolvimento” é a emergência <strong>de</strong> uma nova “fase ou situação” a<br />
partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição <strong>da</strong> anterior.<br />
Esta explicação <strong>da</strong> “permanente transformação” e “mutabili<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
pela dialética, isto é, pela relação que “entrosa” o que é “distinto” — nos termos<br />
do primeiro texto citado acima (nota 3) —, é feita na Dialética do co nhe -<br />
cimento mediante uma longa exposição do pensamento <strong>de</strong> Hegel, notável<br />
por ter sido escrita num tempo em que, ao contrário do nosso, era escasso o<br />
recurso aos comentadores <strong>da</strong> obra do filósofo alemão 11 . A preocupação em<br />
ser fiel à importância <strong>de</strong>ssa obra talvez tenha contribuído para a acusação <strong>de</strong><br />
“hegeliano” feita a Caio Prado, como vimos também no texto mencionado<br />
à nota 3.<br />
De qualquer modo, dizíamos, ca<strong>da</strong> “fase ou situação” contém em si o<br />
princípio transformador <strong>de</strong> que surge o “novo”, o histórico propriamente<br />
dito. Este princípio transformador é que foi chamado por Hegel <strong>de</strong> ele mento<br />
“racional” inscrito, portanto, no próprio “real”. Daí que a exposição <strong>da</strong> sua<br />
filosofia por Caio Prado seja feita justamente por este caminho e nestes<br />
termos: “O Real é Racional”, famosa proposição <strong>da</strong> Filosofia do Direito es crita<br />
em 1821. Sem querer entrar no <strong>de</strong>talhe <strong>da</strong> exposição que <strong>da</strong>í <strong>de</strong>corre,<br />
basta aqui recapitular o movimento geral.<br />
Em primeiro lugar, o “real é racional” porque se realiza “pela ação<br />
racional do homem” 12 , e não por uma lógica abstrata, como afirmam as<br />
caricaturas <strong>de</strong> Hegel feitas por alguns materialistas. É o sujeito <strong>da</strong> história,<br />
o homem em sua “ação”, que se projeta “racionalmente” e tenta realizar seu<br />
plano; na medi<strong>da</strong> em que o consegue, torna-o “real”. Mas esta realização<br />
10 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 438.<br />
11 Além <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Croce, Caio Prado cita Jean Hyppolite, cujo estudo seminal sobre a<br />
Fenomenologia do Espírito havia sido publicado na França pouco tempo antes, em 1946<br />
(Cf., por exemplo, p. 363, nota 291).<br />
12 PRADO JR, Caio. Dialética do conhecimento. Op. cit. tomo II, p. 377, grifo meu.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
nunca é plena, nunca é <strong>de</strong>finitiva. Caio Prado afirma que “uma vez realizado,<br />
o Real torna-se ‘outro’ com relação à Razão; é exterior a ela, tornou-se<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte; e nesse sentido opõe-se à Razão; e na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> oposição,<br />
é Necessário, isto é, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> Razão e <strong>da</strong> ‘vonta<strong>de</strong>’ do homem”. Ou<br />
seja, embora uma situação histórica possa ser resultado <strong>de</strong> um projeto<br />
“racional” voluntário e consciente, sua existência envolve elementos que<br />
escapam ao plano original e que aparecem a este como algo <strong>de</strong> “outro”, <strong>de</strong><br />
“exterior”, <strong>de</strong> “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. A “razão” não se reconhece plenamente nesta<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, por outro lado, a consi<strong>de</strong>ra como uma contingência inevitável,<br />
“necessária”, sobre a qual <strong>de</strong>ve exercer em segui<strong>da</strong> a sua crítica “racional”:<br />
“Em face <strong>de</strong>sse novo Real in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e Necessário, a Razão se afirma<br />
novamente e com isso o nega. O Real <strong>de</strong>ixa então <strong>de</strong> ser Racional — pois é<br />
negado pela Razão.” É importante observar aqui o reconhecimento <strong>de</strong> que,<br />
contrariando a fórmula que os críticos <strong>de</strong> Hegel pensam ser rígi<strong>da</strong>, o “real”<br />
po<strong>de</strong> “<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser racional”; e este é justamente o momento <strong>da</strong> crítica,<br />
em que a “razão” con<strong>de</strong>na, “nega” a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> existente. O texto conclui:<br />
“e <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser Racional, <strong>de</strong>ixa também <strong>de</strong> ser Necessário, para logo<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser também Real. Está em vias <strong>de</strong> perecimento, porque em frente<br />
<strong>de</strong>le constitui-se outro Racional que será o novo Real que substituirá o<br />
antigo moribundo” 13 . O efeito prático <strong>da</strong> crítica “racional” é enxergar que a<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> existente po<strong>de</strong>ria ser distinta, por não ser ela mesma “racional”,<br />
apenas uma contingência. Ela então “<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser Necessária” e passa a ser<br />
objeto <strong>de</strong> uma ação revolucionária pela qual ela “logo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser também<br />
Real”. Será substituí<strong>da</strong> por um “novo Real”, fruto do “outro Racional”,<br />
<strong>de</strong> um novo projeto crítico e revolucionário.<br />
O próprio Caio Prado rebate esta exposição abstrata para o plano <strong>da</strong><br />
história nos seguintes termos:<br />
É nesse processo, nessa dialética <strong>da</strong> história aponta<strong>da</strong> por Hegel que<br />
as situações (a que o filósofo se refere, na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alista, como<br />
Idéias) se fazem <strong>de</strong> Racionais, Necessárias e Reais, em Irracionais,<br />
Não-necessárias e Irreais, por efeito <strong>da</strong> oposição <strong>de</strong> outras que se formam<br />
em seu próprio seio e que passam a encarnar a Racio na li <strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
(porque são produto <strong>da</strong> ação racional do homem), a Neces si <strong>da</strong><strong>de</strong><br />
(por que uma vez constituí<strong>da</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m já <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> humana)<br />
e naturalmente a Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez que passam a existir; Ra cio nali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
Ne ces si<strong>da</strong><strong>de</strong> e Reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que antes cabiam às que as prece<strong>de</strong>ram<br />
e que se aniquilam na morte. 14<br />
13 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 377.<br />
14 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 378.<br />
64 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
65<br />
É crucial observarmos que nessa <strong>de</strong>scrição a “ra cio nali<strong>da</strong><strong>de</strong>” e a<br />
“necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong>s situações históricas se configuram enquanto essas si tuações<br />
são “reais”, e não como uma razão em si mesma, externa à história.<br />
Pois elas justamente per<strong>de</strong>rão o seu título e sua majesta<strong>de</strong> diante <strong>da</strong> crítica<br />
<strong>de</strong> uma nova “racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “se aniquilarão na morte”; “morte” não<br />
apenas <strong>de</strong> uma “reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, mas sim, com ela, <strong>de</strong> sua “razão” <strong>de</strong> ser.<br />
A Dialética do conhecimento criticará a seguir a perspectiva i<strong>de</strong>alista<br />
<strong>de</strong> Hegel e passará a expor a materialista <strong>de</strong> Marx e Engels, mas conservará<br />
<strong>da</strong> primeira alguns resultados fun<strong>da</strong>mentais, como a forma do movimento<br />
<strong>da</strong> história que acabamos <strong>de</strong> examinar. Não é na relação dialética<br />
entre o “real” e o “racional” que radica o i<strong>de</strong>alismo a ser superado, e sim no<br />
que “se refere” às situações históricas “como Idéias”. O I<strong>de</strong>alismo erra ao<br />
transformar os projetos “racionais” dos agentes em “idéias” in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong>les, dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> uma lógica própria e, assim, <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong>s dos sujeitos<br />
individuais e associa<strong>da</strong>s a um sujeito universal, que Hegel chamava <strong>de</strong> “espírito<br />
do mundo” (Welgeist). Mas se a “razão” for consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como aquele<br />
projeto dos agentes, a dialética do “real” e do “racional” <strong>de</strong>corre nos termos<br />
<strong>de</strong>scritos por Hegel.<br />
Numa formulação simples, Caio Prado resume o momento seguinte:<br />
“Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que se passou foi que Marx, com sua formação hegeliana,<br />
aplicou aos fatos concretos e exteriores o mesmo tratamento que Hegel<br />
aplicara à Idéia” 15 . O “tratamento” em si não mu<strong>da</strong>ria, apenas seu objeto.<br />
E qual seria ele? A que “fatos concretos e exteriores” Marx teria “aplicado”<br />
a dialética? O texto afirma que “a germinação <strong>da</strong> semente <strong>da</strong> Dialética lança<strong>da</strong><br />
por Hegel ocorrerá com seus discípulos e sucessores Marx e Engels;<br />
e as condições necessárias para isso serão <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelas circunstâncias históricas<br />
do momento, a saber, a profun<strong>da</strong> transformação social em curso<br />
na Europa por efeito <strong>da</strong> revolução industrial inicia<strong>da</strong> no século XVIII e o<br />
conseqüente aparecimento <strong>de</strong> uma nova classe social em rápido crescimento<br />
e <strong>de</strong>senvolvimento, o proletariado industrial” 16 . As novas “circunstâncias<br />
históricas” haviam inviabilizado o I<strong>de</strong>alismo hegeliano, com suas<br />
conciliações, e reforçado o aspecto contraditório <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Agora, “tra -<br />
ta-se essencialmente, em Marx e Engels, <strong>da</strong> questão do proletariado” e <strong>da</strong><br />
luta <strong>de</strong> classes. Daí, “essas consi<strong>de</strong>rações permitem a Marx e Engels passar<br />
<strong>da</strong> noção <strong>de</strong> classes e <strong>da</strong> oposição <strong>de</strong> operários e capitalistas […] para<br />
outra i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> que é o Capitalismo” 17 , isto é, a “oposição” entre trabalho<br />
15 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 492.<br />
16 I<strong>de</strong>m. Notas introdutórias à lógica dialética. Op. cit. p. 25.<br />
17 Ibi<strong>de</strong>m. p. 26 e 28 respectivamente, grifo do autor. O texto explica assim a “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>”:<br />
“a i<strong>de</strong>n ti<strong>da</strong><strong>de</strong> do capitalismo não é <strong>da</strong><strong>da</strong> apenas ‘em si’, como <strong>de</strong>terminado regime<br />
econômico e social, mas em função <strong>da</strong>s relações que o estruturam e compõem. Isso<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
e capital. Esta oposição <strong>de</strong> base aparece como “aquele fato elementar <strong>da</strong><br />
troca […] que vai revelar to<strong>da</strong> a estrutura <strong>da</strong> economia capitalista” e, a<br />
partir <strong>de</strong>la, conformar “as relações estabeleci<strong>da</strong>s entre os homens, e as <strong>de</strong><br />
produção em particular — relações <strong>de</strong> empregado a empregador, <strong>de</strong> comprador<br />
a ven<strong>de</strong>dor, <strong>de</strong> prestamista a credor — […] em perpétuo ‘<strong>de</strong>venir’ e<br />
transformando-se permanentemente” 18 .<br />
A dialética agora reflete oposições reais do capitalismo, que o <strong>de</strong>finem<br />
como uma “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>” dialética, como um sistema social que configura<br />
“as relações estabeleci<strong>da</strong>s entre os homens” em ca<strong>da</strong> nível ou esfera<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento — na troca simples, no crédito, na produção etc. São as<br />
várias esferas <strong>de</strong> “reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, <strong>de</strong>sdobra<strong>da</strong>s pelo movimento <strong>da</strong> contradição<br />
que constitui o capital e pelo motivo do lucro que o anima, como sua razão<br />
<strong>de</strong> ser. “In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Razão e <strong>da</strong> ‘vonta<strong>de</strong>’ do homem”, como dizia o<br />
comentário sobre Hegel citado acima (nota 12), há aqui já uma “razão”<br />
neste “real” capitalista. Além <strong>de</strong>la, evi<strong>de</strong>ntemente, acrescentam-se as “razões”<br />
dos agentes, com graus múltiplos <strong>de</strong> consciência do sistema e <strong>de</strong> “vonta<strong>de</strong>”<br />
<strong>de</strong> enquadrar-se a ele ou <strong>de</strong> modificá-lo conforme a posição <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> pelo<br />
sistema a ca<strong>da</strong> agente ou grupo <strong>de</strong> agentes. Mas conscientemente ou não,<br />
to<strong>da</strong>s essas “razões” acabam operando <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s<br />
pela “razão” <strong>de</strong> ser do capitalismo em uma configuração histórica específica,<br />
no movimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e diferenciação entre o “real” e o “ra -<br />
cio nal” <strong>de</strong>scrito acima, a propósito <strong>de</strong> Hegel.<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer, portanto, que <strong>de</strong>sta dialética entre a “razão” proposta<br />
pelo agente histórico e a “razão” realiza<strong>da</strong> no todo social se forma algo co mo<br />
o “sentido” <strong>de</strong> uma configuração histórica: ele é justamente o “racional”<br />
possível no “real” <strong>da</strong> história. Neste ponto, porém, é preciso especial consi -<br />
<strong>de</strong>ração, <strong>de</strong>vendo ser <strong>de</strong>dicado a ele um item à parte, com o qual se concluirá<br />
o presente ensaio.<br />
Dialética do Sentido<br />
É bem conheci<strong>da</strong> a importância do conceito <strong>de</strong> “sentido” na história<br />
colonial conta<strong>da</strong> na Formação do Brasil contemporâneo 19 . Já na seqüência<br />
permite a Marx e Engels revelar o não-ser, a negação <strong>de</strong>sse Capitalismo […]; negação<br />
essa que <strong>de</strong>ve estar incluí<strong>da</strong> e implícita nas próprias relações que estruturam e representam<br />
a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do Capitalismo”. Trata-se <strong>de</strong> uma “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>” dialética, portanto.<br />
18 PRADO JR, Caio. Dialética do conhecimento. 3ª ed. Op. cit. tomo II, pp. 489 e 486<br />
respectivamente.<br />
19 É interessante observar que a palavra “sentido”, que chegou a merecer todo um capítulo<br />
introdutório <strong>de</strong> discussão metodológica na obra <strong>de</strong> 1942, tenha perdido bastante<br />
66 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
67<br />
<strong>da</strong> introdução do livro é discuti<strong>da</strong> a função metodológica <strong>de</strong>ste conceito,<br />
basea<strong>da</strong> na sua presença na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, caracterizando os fatos: “Todo povo<br />
tem na sua evolução, visto à distância, um certo ‘sentido’”, é a famosa frase<br />
<strong>de</strong> abertura; o “sentido” está, explica-se a seguir, “no conjunto dos fatos e<br />
acontecimentos essenciais que a constituem [a história <strong>de</strong> um povo] num<br />
largo período <strong>de</strong> tempo” 20 . Trata-se <strong>de</strong> algo “essencial”, distinto do que o<br />
texto chama <strong>de</strong> “pormenores” e <strong>de</strong> “cipoal <strong>de</strong> inci<strong>de</strong>ntes secundários” 21 , algo<br />
<strong>de</strong> “fun<strong>da</strong>mental e permanente” 22 , a “essência <strong>de</strong> nossa formação” 23 que<br />
“constitui” uma história, imprimindo a ela como que um “caráter” 24 .<br />
A história brasileira, em particular, terá o sentido <strong>de</strong> uma “empresa<br />
comercial”, pois “nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns<br />
outros gêneros; mais tar<strong>de</strong> ouro e diamantes; <strong>de</strong>pois, algodão, e em segui<strong>da</strong><br />
café, para o comércio europeu. Na<strong>da</strong> mais que isto. […] Tudo se disporá<br />
naquele sentido” 25 .<br />
A ênfase <strong>de</strong>sse trecho po<strong>de</strong> parecer exagera<strong>da</strong> e, <strong>da</strong>í, polêmica — “na<strong>da</strong><br />
mais que isto”, “tudo se disporá naquele sentido”. De fato, talvez tenha<br />
havido aqui a intenção <strong>de</strong> realçar a presença e a força formadora do “sentido”.<br />
Só que essa ênfase tem <strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong>, ela mesma, no contexto do<br />
<strong>de</strong>bate político sobre os rumos que o Brasil do século XX <strong>de</strong>veria tomar,<br />
tentando reverter o quadro <strong>da</strong> <strong>de</strong>pendência externa diagnosticado por<br />
Caio Prado nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1930 e 1940. Mas até que ponto o conceito<br />
mesmo <strong>de</strong> “sentido” é inevitavelmente unilateral, não po<strong>de</strong>ndo ser formulado<br />
sem uma fatal simplificação?<br />
À luz dos textos <strong>de</strong> cunho filosófico e metodológico que vínhamos<br />
examinando, o conceito ganha mais <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vimos que ele ali aparecia<br />
no âmbito <strong>da</strong> dialética entre a ação dos indivíduos e a “razão” capitalista<br />
que i<strong>de</strong>ntifica esse sistema pela sua autonegação. Retomando a questão<br />
proposta, até que ponto essa “razão” seria um “sentido” <strong>de</strong>terminante e<br />
importância <strong>de</strong>pois, para reaparecer apenas em 1959, e no contexto <strong>de</strong> uma discussão<br />
sobre “lógica dialética”. Na História econômica do Brasil, <strong>de</strong> 1945, com efeito, Caio<br />
Prado fala do “caráter <strong>da</strong> formação econômica brasileira”, título do capítulo 2, e a<br />
palavra “sentido” só aparece no fim do capítulo, em que praticamente ele cita o texto<br />
<strong>da</strong> Formação do Brasil contemporâneo. No livro <strong>de</strong> 1945, porém, o conceito <strong>de</strong> “caráter”<br />
não vem acompanhado <strong>da</strong> discussão metodológica do livro <strong>de</strong> 1942. Talvez, como<br />
foi sugerido no começo do presente texto, Caio Prado tenha preferido reservar esta<br />
discussão para uma obra que tratasse propriamente <strong>da</strong> questão do conhecimento, o<br />
que fez na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950.<br />
20 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23ª ed. São Paulo: Brasiliense,<br />
1994. p. 19, grifos meus.<br />
21 Ibi<strong>de</strong>m. p. 19.<br />
22 Ibi<strong>de</strong>m. p. 20.<br />
23 Ibi<strong>de</strong>m. p. 31.<br />
24 Ibi<strong>de</strong>m. Cf., por exemplo, p. 22 e p. 29.<br />
25 Ibi<strong>de</strong>m. p. 31-32.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
unilateral, tornando insignificantes, por exemplo, as ações dos indivíduos?<br />
Caio Prado afirma que<br />
a <strong>de</strong>liberação e ação individual […] são livres; mas o seu “sentido”<br />
profundo, a função social que vão <strong>de</strong>sempenhar e a resul tan te que<br />
<strong>de</strong>rivará <strong>de</strong>las, isso se encontra pre<strong>de</strong>terminado pelas circunstâncias<br />
sociais do tempo e lugar em que a ação é executa<strong>da</strong>; e é condicionado<br />
pelo processo histórico particular <strong>de</strong> que a ação forma uma<br />
<strong>da</strong>s componentes, bem como pelas contradições que constituem o<br />
dinamismo <strong>da</strong>quele processo. 26<br />
Aparentemente, “as circunstâncias sociais” “pre<strong>de</strong>terminam”, talvez<br />
até <strong>de</strong> modo absoluto, o que os indivíduos fazem e <strong>de</strong>liberam como “o seu<br />
‘sentido’ profundo, [sua] função social”. Examinemos a questão mais <strong>de</strong><br />
perto, analisando o texto.<br />
Em primeiro lugar, o que “condiciona” a ação dos indivíduos é o<br />
“processo histórico particular […] bem como (as) contradições que constituem<br />
o dinamismo <strong>da</strong>quele processo”; ou seja, também são as “contradições”;<br />
ou, melhor ain<strong>da</strong>, são elas, na medi<strong>da</strong> em “que constituem o dinamismo<br />
<strong>da</strong>quele processo”. O processo não é “constituído” por uma força<br />
única e unilateral, portanto, mas por “contradições”, o que é dito mais claramente<br />
numa passagem anterior: “É no âmbito <strong>de</strong> um tal processo que<br />
assim se <strong>de</strong>senvolve através <strong>de</strong> contradições que supera<strong>da</strong>s vão <strong>da</strong>r em mu<strong>da</strong>nças<br />
<strong>de</strong> situação e na eclosão <strong>de</strong> novas contradições, é aí que se realiza<br />
a ação dos indivíduos” 27 . Os indivíduos não agem empurrados por forças<br />
unilaterais: eles agem “aí”, situados num “tempo e lugar” abertos por um<br />
processo; mais, por um processo que não é unilateral, mas “se <strong>de</strong>senvolve<br />
através <strong>de</strong> contradições”, isto é, pela oposição dialética <strong>de</strong> forças so ciais<br />
reais — a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, enquanto “processo”, não é homogênea, e sim conflituosa;<br />
por fim, “processo” implica “mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> situação e […] eclosão <strong>de</strong><br />
novas contradições”. É em meio a conflitos e “mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> situação” que<br />
os indivíduos agem.<br />
E tais características <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica — contraditória e cambiante<br />
— repercutem não apenas sobre o problema do indivíduo diante do<br />
todo social, como também sobre a questão mais ampla <strong>da</strong> unilaterali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
“sentido” histórico. “Contradição” implica aqui que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é composta<br />
por forças sociais “opostas”, e não por uma força única ou fatalmente predominante;<br />
o predomínio que está associado ao “sentido” po<strong>de</strong> muito bem ser,<br />
usando palavras do autor (no texto citado à nota 25), uma “resultante”,<br />
sempre incerta do conflito <strong>da</strong>s forças opostas. Logo no começo <strong>da</strong> Formação<br />
26 PRADO JR, Caio. Dialética do conhecimento. Op. cit. tomo II, p. 549-550.<br />
27 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 549.<br />
68 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
69<br />
do Brasil contemporâneo, aliás, em segui<strong>da</strong> à <strong>de</strong>finição do “sentido”, é dito<br />
que “o sentido <strong>da</strong> evolução <strong>de</strong> um povo po<strong>de</strong> variar; acontecimentos estranhos<br />
a ele, transformações internas profun<strong>da</strong>s do seu equi líbrio ou estrutura,<br />
ou mesmo ambas estas circunstâncias conjuntamente, po<strong>de</strong>rão intervir,<br />
<strong>de</strong>sviando-o para outras vias até então ignora<strong>da</strong>s” 28 . As tendências predo mi -<br />
nantes que <strong>de</strong>terminam um “sentido”, contraditoriamente, po<strong>de</strong>m en gen -<br />
drar tendências opostas na “estrutura” do sistema, don<strong>de</strong> o caráter “interno”<br />
<strong>da</strong>s transformações <strong>de</strong>correntes.<br />
Mas há um segundo aspecto no problema além <strong>de</strong>ste primeiro, relativo<br />
ao caráter contraditório e cambiante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O conceito <strong>de</strong> “sentido”<br />
está inevitavelmente associado a valores, finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, intenções,<br />
consciência enfim. Voltando ao nível do indivíduo diante do todo social,<br />
“verifica-se portanto que o conhecimento do dinamismo dos fatos históricos<br />
e a consciência que com ele os homens adquirem <strong>de</strong> seu eventual <strong>de</strong>stino<br />
e <strong>da</strong>s conseqüências gerais <strong>de</strong> sua ação, aquele conhecimento se faz fator<br />
<strong>de</strong>terminante do sentido <strong>da</strong> ação e dos fatos sociais” 29 . Os indivíduos não<br />
agem cegamente, inconscientes <strong>da</strong>s forças sociais em conflito e <strong>da</strong>s ten dên -<br />
cias predominantes, mas com graus variados <strong>de</strong> percepção do conjunto<br />
em que se situam, relacionando suas “razões” particulares à “razão” geral,<br />
como vimos no fim do item anterior. A “consciência” que “adquirem do seu<br />
eventual <strong>de</strong>stino” orienta as suas ações pró ou contra este “<strong>de</strong>stino”; é ela<br />
que configura o “sentido <strong>da</strong> ação e dos fatos sociais”, e não uma força cega.<br />
O conceito <strong>de</strong> “sentido” assume plenamente <strong>de</strong>ste modo a conotação<br />
<strong>de</strong> “significado”,<br />
e isso <strong>de</strong> maneira tanto mais rigorosa e precisa e com tanto mais<br />
acerto e sucesso quanto aquele conhecimento for maior, a consciência<br />
dos indivíduos agentes mais clara, e portanto a sua expressão<br />
normativa for mais completa e corretamente formula<strong>da</strong>; isto é, que<br />
a norma <strong>de</strong> ação exprima <strong>de</strong> um lado mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente o dinamismo<br />
histórico-social do momento a que se aplica e doutro apre -<br />
sen te <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse dinamismo e seu sentido a perspectiva mais<br />
favorável e conveniente aos indivíduos a que ela se dirige. 30<br />
A consciência do “sentido” pelos agentes alcança assim uma “ex pres -<br />
são normativa”, ganhando força social; o “dinamismo histórico-social” se<br />
“exprime” como “norma <strong>de</strong> ação”, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser força cega; o “sentido”<br />
passa a ser valor compartilhado por um grupo <strong>de</strong> indivíduos 31 .<br />
28 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Op. cit. p. 19.<br />
29 I<strong>de</strong>m. Dialética do conhecimento. Op. cit. tomo II, p. 551, grifo do autor.<br />
30 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 551, grifo do autor.<br />
31 Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa forma a passagem <strong>da</strong> Formação do Brasil contemporâneo em<br />
que o sentido aparece como “o espírito com que os povos <strong>da</strong> Europa abor<strong>da</strong>m a Amé rica.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
E é enquanto “norma” que o “sentido” ultrapassa o nível <strong>da</strong> mera<br />
orientação <strong>da</strong>s ações e adquire uma dimensão epistemológica. Caio Prado<br />
afirma que “a norma <strong>de</strong> ação humana e dos fatos sociais só po<strong>de</strong> portanto<br />
ser um método <strong>de</strong> interpretação <strong>da</strong> história”, uma vez que não po<strong>de</strong> estar<br />
acima <strong>da</strong> sua historici<strong>da</strong><strong>de</strong>, funcionando “à feição <strong>da</strong> Moral e do Direito<br />
propostos pela Metafísica”; ou, ain<strong>da</strong>, que “a norma ou método histórico<br />
não é pois outra coisa no mundo <strong>de</strong> hoje que a ‘consciência <strong>da</strong> forma do<br />
movimento <strong>da</strong> história’ para usar <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Hegel” 32 .<br />
Elevado à consciência social como uma “norma”, o “movimento <strong>da</strong><br />
história” permite uma “interpretação <strong>da</strong> história”, que é justamente a função<br />
metodológica do conceito <strong>de</strong> “sentido”. Daí que ele tenha essa função<br />
na Formação do Brasil contemporâneo, on<strong>de</strong> “quem observa” a história<br />
pelo seu sentido po<strong>de</strong>rá “<strong>de</strong>sbastar o cipoal dos inci<strong>de</strong>ntes secundários” e<br />
“não <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> perceber que ele se forma <strong>de</strong> uma linha mestra” 33 ; on<strong>de</strong> o<br />
historiador é admoestado a “reconstituir o conjunto <strong>de</strong> nossa formação,<br />
colocando-a no amplo quadro” 34 . Atente-se para as palavras grifa<strong>da</strong>s —<br />
“observar”, “<strong>de</strong>sbastar”, “perceber”, “reconstituir”, “colocar”: há sempre aí<br />
uma operação do sujeito do conhecimento.<br />
Por isso também o conhecimento histórico é apresentado como<br />
“interpretação”. Pois todo o problema consiste em encontrar “um critério<br />
geral <strong>de</strong> interpretação dos fatos, em que se conciliem os aspectos contraditórios<br />
em que se apresenta a Natureza” 35 . Novamente, chamo a atenção para<br />
as palavras <strong>de</strong>cisivas que <strong>de</strong>staquei no texto: “critério”, “interpretação”,<br />
“conciliação”. Por princípio, elas têm a ver com o sujeito do conhecimento,<br />
com a sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong> relativa em compor o todo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> conforme um<br />
ou outro “sentido”. Mas isso não quer dizer que haja aqui qualquer subjetivismo.<br />
A “interpretação” não <strong>de</strong>ve inventar sentidos, e sim limitar-se a<br />
encontrar o “critério” pelo qual os lados opostos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se “conciliam”<br />
na própria reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como vimos, esta tem “aspectos contraditórios”, não<br />
sendo nunca unívoca. Por outro lado, o que a “interpretação” faz é formular<br />
o “sentido”, ou seja, o “critério” conforme o qual a contradição real se<br />
“concilia”, articulando-se <strong>de</strong> algum modo.<br />
Essa articulação é a função metodológica do “sentido”, <strong>de</strong> acordo<br />
com as Notas introdutórias à lógica dialética:<br />
A idéia <strong>de</strong> povoar não ocorre inicialmente a nenhum.”, p. 23. “Espírito” e “idéia” aparecem<br />
aqui como forma <strong>da</strong> consciência social do “sentido” histórico.<br />
32 PRADO JR., Caio. Dialética do conhecimento. Op. cit. tomo II, p. 552.<br />
33 I<strong>de</strong>m. Formação do Brasil contemporâneo. Op. cit. p. 19, grifos meus.<br />
34 Ibi<strong>de</strong>m. p. 20, grifos meus.<br />
35 I<strong>de</strong>m. Notas introdutórias à lógica dialética. Op. cit. p. 12, grifos meus.<br />
70 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
71<br />
o conhecimento científico não se constitui <strong>de</strong> um aglomerado <strong>de</strong><br />
conceitos individualizados e dispostos entre si por justaposição. E<br />
sim se compõe <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> conjunto cujas partes, que seriam<br />
os conceitos particulares, reciprocamente se in cluem umas nas<br />
outras, e têm sentido e conteúdo unicamente <strong>de</strong>ntro do sistema em<br />
que se integram, e em função <strong>de</strong>le. 36<br />
Mais uma vez, só que agora no plano epistemológico, aparece a crítica<br />
à “justaposição” <strong>de</strong> termos “individualizados”, que aqui são “conceitos”.<br />
No lugar <strong>de</strong>ssa uni<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, <strong>de</strong>sse mero “aglomerado” <strong>de</strong> indivíduos<br />
sem relação mútua, o “conhecimento científico” é formado pelo “sistema<br />
<strong>de</strong> conjunto” <strong>de</strong> suas partes, <strong>da</strong> relação interna entre os termos componentes,<br />
pelo qual os conceitos “têm sentido”. Ao encontrar o “sistema” em<br />
que as “partes […] reciprocamente se incluem umas nas outras”, a interpretação<br />
alcança o “critério” <strong>de</strong> “conciliação” <strong>da</strong>s oposições reais do objeto<br />
estu<strong>da</strong>do, o seu “sentido” como “resultante” <strong>da</strong>s forças antagônicas.<br />
Mas “a norma <strong>de</strong> ação humana, a interpretação <strong>da</strong> História, o Mar -<br />
xis mo, em suma, é a tradução do autodinamismo ou dialética dos fatos<br />
humanos numa lei do pensamento móvel, no movimento próprio do pensamento;<br />
e é isso a Lógica dialética, a Dialética como método lógico” 37 . As -<br />
sim, nem os conceitos são termos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, que uma “interpretação”<br />
po<strong>de</strong>ria reunir <strong>de</strong> diversos modos, nem é variável a sua reunião num “sentido”,<br />
que sempre po<strong>de</strong>ria ser outro. A “interpretação <strong>da</strong> história” não é<br />
arbitrária; ela <strong>de</strong>ve “traduzir” o “sentido” real “no movimento próprio do<br />
pensamento”. E este pensamento, portanto, só po<strong>de</strong> ser “móvel”, porque é<br />
dialético o “autodinamismo […] dos fatos humanos”. A “interpretação <strong>da</strong> história”<br />
<strong>de</strong>ve “traduzir” um “autodinamismo […] dialético”, <strong>de</strong>ve expressar<br />
não apenas o predomínio <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s forças em luta, mas a luta mesma<br />
<strong>da</strong>s forças opostas, <strong>da</strong> qual resulta um “sentido” sempre mutável.<br />
Disso tudo po<strong>de</strong>-se perfeitamente concluir que, na medi<strong>da</strong> em que a<br />
“norma <strong>de</strong> ação” dos próprios agentes históricos é que passa a ser “critério”<br />
<strong>de</strong> interpretação do historiador, estabelecendo como que uma ponte entre<br />
a dimensão real e a metodológica, em ambas ocorre um processo <strong>de</strong> normatização,<br />
<strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> sentido. Na dimensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica,<br />
<strong>de</strong>ve ser lembrado aquele primeiro aspecto do “sentido” visto acima, a sa ber,<br />
o <strong>de</strong> que as forças sociais estão sempre em conflito e transformação. Assim,<br />
o próprio pensamento dos agentes, o “espírito” ou “idéia” que norteia as<br />
suas ações (cf. nota 31), capta a força social “resultante” e a transfigura em<br />
36 Ibi<strong>de</strong>m. p. 66-67, grifo meu.<br />
37 I<strong>de</strong>m. Dialética do conhecimento. Op. cit. tomo II, p. 552.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
valor ou “norma”; o que não quer dizer que apenas esta força e este sentido<br />
existam em uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>, senão ela não seria conflituosa.<br />
Por outro lado, ao passar para o método do historiador, esta “norma” lhe<br />
é imposta como “sentido” <strong>de</strong> uma situação histórica. Mas haveria aí também<br />
uma normatização, isto é, uma espécie <strong>de</strong> simplificação <strong>de</strong> um todo<br />
social sempre mais complexo? Examinemos, por fim, estes dois pontos.<br />
Em relação ao primeiro, ou seja, que os próprios agentes simplificam<br />
a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ao reconhecer nela um “sentido” fun<strong>da</strong>mental, po<strong>de</strong>-se citar a<br />
análise dos i<strong>de</strong>ais liberais feita por Caio Prado na Dialética do conhe ci men to.<br />
Estes i<strong>de</strong>ais se originaram <strong>da</strong> luta contra os privilégios absolutistas e feu<strong>da</strong>is.<br />
Mas “essa luta contra os privilégios não era tão simples como po<strong>de</strong>rá<br />
parecer a quem os consi<strong>de</strong>ra unicamente em si e isola<strong>da</strong>mente. Atrás<br />
<strong>de</strong>les se abrigava to<strong>da</strong> uma estrutura política e jurídica complexa <strong>de</strong> que<br />
os privilégios não representavam senão um aspecto particular e mais aparente”<br />
38 . A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social do Antigo Regime era mais “complexa” do que<br />
podia “parecer a quem” a compreen<strong>de</strong>sse apenas do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um<br />
sentido, no caso, <strong>da</strong> luta contra os privilégios. Por mais “aparente” e <strong>de</strong>cisiva<br />
que fosse, essa luta constituía apenas “um aspecto particular” ao lado<br />
do qual havia outros. Mas justamente por ser o “mais aparente” é que ela<br />
permitia a configuração do sentido <strong>da</strong> ação revolucionária, escon<strong>de</strong>ndo<br />
aspectos menos ou não “aparentes”.<br />
Por isso, continua o texto,<br />
disfarçando-se embora, para os efeitos práticos <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>, e <strong>de</strong><br />
maneira mais ou menos vela<strong>da</strong> e inconsciente atrás <strong>da</strong> luta popular<br />
contra os privilégios, o ataque em conjunto às instituições do Antigo<br />
Regime era <strong>de</strong>corrência natural <strong>da</strong>quela luta: não era possível<br />
mexer numa só <strong>de</strong> suas peças sem afetar as <strong>de</strong>mais partes e o conjunto.<br />
Daí to<strong>da</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> contradições e incoerências aparentes que<br />
ocorrem sempre em situações semelhantes, e que tornam tão complexa<br />
a interpretação do historiador e a tarefa do político. 39<br />
Em primeiro lugar, o “ataque” liberal não era algo arbitrário, mas<br />
“<strong>de</strong>corrência natural” <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> conjunto em que os privilégios<br />
não podiam mais se sustentar; e “<strong>de</strong>corria” como força “resultante” do<br />
conflito <strong>de</strong> forças, sendo assim o seu “sentido” fun<strong>da</strong>mental. Entretanto,<br />
em segundo lugar, como a situação era “complexa”, esta “norma” consciente<br />
acarretava conseqüências imp<strong>revista</strong>s, “vela<strong>da</strong>s e inconscientes”<br />
aos agentes históricos. Don<strong>de</strong> as “contradições e incoerências” inevitáveis<br />
38 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 455.<br />
39 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 455.<br />
72 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
73<br />
nas “normas” orientadoras <strong>da</strong> “tarefa do político”, o fato <strong>de</strong> um sentido<br />
“disfarçar” outros.<br />
E tais “contradições e incoerências” também “tornam tão complexa<br />
a interpretação do historiador”, entrando agora no segundo ponto indicado<br />
acima, a saber: a possível simplificação que o “sentido” <strong>de</strong> uma situação<br />
impõe inclusive ao conhecimento. Prosseguindo sua análise do liberalismo,<br />
Caio Prado afirma que<br />
Liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e Igual<strong>da</strong><strong>de</strong> apresentavam-se assim com um duplo aspecto<br />
e sentido: <strong>de</strong> um lado, eram armas i<strong>de</strong>ológicas volta<strong>da</strong>s contra os<br />
antigos e odiados privilégios que ain<strong>da</strong> crepitavam com o lusco-fusco<br />
<strong>de</strong> brasas que se apagam; mas <strong>de</strong> outro, constituem os fun<strong>da</strong>mentos<br />
sobre que se estruturavam novos privilégios tão odiados como os<br />
antigos. E não havia, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s concepções clássicas do racionalismo<br />
metafísico, como separar aqueles dois aspectos aproveitando-se <strong>de</strong><br />
um e <strong>de</strong>scartando-se do outro: eram como imagem refleti<strong>da</strong> em es -<br />
pelho refletor 40 .<br />
Como quase sempre, o “sentido” <strong>de</strong>stes valores era “duplo” e indissociável,<br />
reportando-se ca<strong>da</strong> qual a um momento <strong>da</strong> mesma situação em<br />
que se configurava a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> “complexa”. O elemento “i<strong>de</strong>ológico” <strong>da</strong><br />
norma liberal estava em <strong>de</strong>s conhecer o outro lado, simplificando o conjunto<br />
em um dos seus “aspectos particulares”, consi<strong>de</strong>rando-os “unicamente<br />
em si e isola<strong>da</strong>mente”. E isso era inevitável para o liberalismo,<br />
associado ao “racionalismo metafísico” que não conseguia levar em conta<br />
os dois aspectos em sua uni<strong>da</strong><strong>de</strong> contraditória.<br />
O historiador preso a tal concepção do conhecimento, portanto, tam -<br />
bém ficará enre<strong>da</strong>do no dilema entre a simplificação <strong>de</strong> um “critério <strong>de</strong><br />
interpretação” único e as “contradições e incoerências” advin<strong>da</strong>s <strong>de</strong> tentar<br />
separar o que é inseparável. Só a perspectiva dialética permitirá a ele as sumir<br />
a contradição do “duplo sentido”, encontrando o “critério geral <strong>de</strong> inter -<br />
pretação dos fatos, em que se conciliem os aspectos contraditórios”, conforme<br />
passagem cita<strong>da</strong> antes (à nota 35). Daí a elaboração <strong>de</strong> um “critério <strong>de</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” histórico, “relativo” a ca<strong>da</strong> momento <strong>de</strong> uma situação complexa 41 .<br />
O próprio conceito <strong>de</strong> “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” não é absoluto, então, <strong>de</strong>finindo-se pela<br />
historici<strong>da</strong><strong>de</strong> e, mais ain<strong>da</strong>, pela contradição dos momentos históricos.<br />
Decorreria disso que o “sentido”, como articulação ou “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” dos<br />
conceitos relativos a uma formação social, seria único apenas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste<br />
critério, traduzindo a simplificação pela qual os próprios agentes pau tam<br />
40 Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 457, grifos meus.<br />
41 Cf. Ibi<strong>de</strong>m. tomo II, p. 634-635.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
as suas “tarefas”. O historiador dialético <strong>de</strong>ve indicar este “sentido” pelo<br />
qual as forças sociais que estu<strong>da</strong> resolveram na prática as “contradições e<br />
incoerências” em que se encontravam, articulando-se numa situação histórica<br />
específica. Não será uma simplificação, na medi<strong>da</strong> em que o “sentido”<br />
for explicitado como “resultante” <strong>de</strong>ste conflito, até para que <strong>de</strong> sua<br />
dinâmica própria possa ser explica<strong>da</strong> a superação do “sentido” e sua<br />
transformação interna.<br />
Caio Prado não chega a tanto, talvez não tenha ousado tanto, preferindo<br />
limitar-se a afirmações gerais sobre a “relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”, isto<br />
é, a sucessão temporal <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, distintas mas váli<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> etapa. A<br />
conclusão se impõe, contudo, como o termo final <strong>de</strong> um silogismo do qual<br />
só se tivessem os dois primeiros enunciados. E a partir <strong>de</strong>la fica sugerido<br />
um caminho para a reflexão e a avaliação retroativa <strong>de</strong> suas idéias sobre<br />
o hoje controvertido “sentido <strong>da</strong> colonização”, tema bem mais complexo e<br />
sofisticado se compreendido na chave dialética proposta pelo próprio autor.<br />
Essa po<strong>de</strong>ria, enfim, converter-se na tarefa que “torna tão complexa a<br />
interpretação do historiador”, especialmente <strong>da</strong>quele que preten<strong>de</strong> seguir<br />
tais pega<strong>da</strong>s.<br />
74 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
75<br />
Caio Prado Jr. y la historia agraria <strong>de</strong><br />
Brasil y México<br />
[Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México]<br />
Guillermo Palacios y Olivares 1<br />
Resumo<br />
O texto procura fazer uma leitura <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Caio Prado Jr. aproveitando<br />
para isso uma breve comparação temática com a experiencia agrária<br />
mexicana, em particular durante as déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1930-1940, quando<br />
Prado produz algumas <strong>da</strong>s suas obras fun<strong>da</strong>mentais. Dá-se ênfase às<br />
diferenças e semelhanças em torno <strong>da</strong> reforma agrária, do problema<br />
<strong>da</strong> integração nacional, do tratamento diferenciado dos problemas <strong>da</strong><br />
cultura no âmbito rural e, em especial, <strong>da</strong> “questão camponesa”, sua<br />
<strong>de</strong>finição e terminología.<br />
Palavras-chave<br />
Reforma agrária, campesinato, integração nacional, México<br />
1 Professor do El Colegio <strong>de</strong> México (D.F., México).<br />
E-mail: gpalacio@colmex.mx<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Caio Prado Jr. and the agrarian history<br />
of Brazil and Mexico<br />
Guillermo Palacios y Olivares<br />
Abstract<br />
The article centers on a revision of the work of Caio Prado Jr. from the<br />
perspective of a brief thematic comparison with the Mexican agrarian<br />
experience, in particular during the <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s of 1930-1940, when Prado<br />
produces some of his fun<strong>da</strong>mental works. Differences and similarities<br />
are emphasized regarding the following questions: agrarian reform, the<br />
<strong>de</strong>bate over national integration, differential treatment of the problems<br />
of “culture” in the rural milieu, and in particular, the “peasant question”,<br />
its <strong>de</strong>finition and terminology.<br />
Keywords<br />
Agrarian reform, peasantry, national integration, Mexico<br />
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i relación<br />
profesional con Caio Prado Jr., más allá <strong>de</strong> las lecturas obligatorias que <strong>de</strong>bí<br />
hacer durante mi entrenamiento como historiador que buscaba especializarse<br />
en la historia agraria <strong>de</strong> Brasil, tuvo que ver precisamente con la<br />
“cuestión campesina” en la historiografía brasileña. Yo estaba re<strong>da</strong>ctando mi<br />
segun<strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> tesis <strong>de</strong> doctorado sobre poblaciones libres y pobres<br />
en el interior <strong>de</strong> la Capitanía General <strong>de</strong> Pernambuco y había encontrado<br />
en algunos documentos <strong>de</strong>l gobierno colonial <strong>de</strong>scripciones <strong>de</strong> poblados<br />
don<strong>de</strong> se aglomeraban lo que la visión oficial <strong>de</strong>cía ser consi<strong>de</strong>rables<br />
números <strong>de</strong> individuos que vivían <strong>de</strong> lo que plantaban. Parecía natural<br />
intuir que se trataba <strong>de</strong> hombres y mujeres, y que entre ellos había niños<br />
y ancianos, y que entre todos formaban familias y re<strong>de</strong>s familiares. Eran<br />
libres, eran pobres, vivían en alguna especie <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong>d, plantaban<br />
cultivos alimentarios, probablemente se ayu<strong>da</strong>ban los unos a los otros,<br />
invasores u ocupantes como eran, quizá plantaban en tierras que no tenían<br />
dueño y que tal vez compartían. Parecían comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se aproximaban<br />
<strong>de</strong> lo que podía haber sido un proto-campesinado, en términos <strong>de</strong><br />
Sydney Mintz, en la mitad <strong>de</strong> una formación esclavista, y chocaban frontalmente<br />
con las tesis tan calurosamente <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s inicialmente por Caio<br />
Prado en torno a la inexistencia <strong>de</strong> “campesinos” en el Brasil colonial2 M<br />
.<br />
77<br />
2 MINTZ, Sidney. Caribbean Transformations. Chicago: Aldine, 1974.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Años antes, mientras trataba <strong>de</strong> escribir mi primera tentativa <strong>de</strong> tesis<br />
<strong>de</strong> doctorado, que versaba sobre la historia <strong>de</strong> los productores <strong>de</strong> caña <strong>de</strong><br />
Pernambuco <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la fun<strong>da</strong>ción <strong>de</strong> su asociación profesional (la Asso cia ção<br />
<strong>de</strong> Fornecedores <strong>de</strong> Cana <strong>de</strong> Pernambuco) en la última déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>l siglo<br />
XIX hasta 1964, me había enterado <strong>de</strong> la inexistente historia <strong>de</strong>l término<br />
“campesino” o “camponés” en la historia <strong>de</strong> Brasil, por lo menos en la historia<br />
<strong>de</strong> la región que yo estudiaba, el Nor<strong>de</strong>ste 3 . Diversos nombres habían<br />
sido empleados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> por lo menos inicios <strong>de</strong>l siglo XX, esto es, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
la consoli<strong>da</strong>ción <strong>de</strong> la República, para <strong>de</strong>nominar a los habitantes <strong>de</strong>l<br />
campo que vivían <strong>de</strong>l cultivo <strong>de</strong> su propia subsistencia y que <strong>de</strong>notaban,<br />
algunos <strong>de</strong> ellos, condiciones especiales <strong>de</strong> sujeción a la tierra y a sus propietarios:<br />
matutos, moradores <strong>de</strong> condição, agregados, parceros, hasta el<br />
inaudito “rurícolas” que aparece en las discusiones sobre el Estatuto <strong>da</strong><br />
Lavoura Canavieira en pleno Estado Novo.<br />
Esto sí parecía encajar en las percepciones <strong>de</strong> Caio Prado: las condiciones<br />
específicas <strong>de</strong> la constitución <strong>de</strong> la socie<strong>da</strong>d rural, fuertemente<br />
<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s por el esclavismo, la monocultura y la exportación, habían<br />
<strong>da</strong>do lugar a una serie casi interminable <strong>de</strong> categorías <strong>de</strong> productorestrabajadores,<br />
aisla<strong>da</strong>s por particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionales y microrregionales,<br />
y por inserciones propias en el sistema económico más general, y en la<br />
socie<strong>da</strong>d que <strong>de</strong> éste se <strong>de</strong>rivaba. Pero no encajaba con las informaciones<br />
que me llamaban la atención en los fondos documentales referentes al<br />
Nor<strong>de</strong>ste, en los cuales el empleo <strong>de</strong> esa multitud <strong>de</strong> clasificaciones buscaba<br />
ocultar una naturaleza común a to<strong>da</strong>s ellas. Resolví la pen<strong>de</strong>ncia en un<br />
breve texto que publiqué hace años en el Boletin Bibliográfico <strong>de</strong> la Anpocs,<br />
intitulado, precisamente, “Campesinato e historiografia no Brasil” 4 .<br />
Así, mi diálogo con las obras historiográficas <strong>de</strong> Caio Prado fue un<br />
tanto breve y contrastante (y <strong>de</strong> ninguna manera me consi<strong>de</strong>ro un conocedor<br />
serio <strong>de</strong> sus obras). Las evi<strong>de</strong>ncias que yo creía haber encontrado en los<br />
archivos refutaban parte <strong>de</strong> las tesis <strong>de</strong>l gran historiador, que en los años<br />
1970, a la época <strong>de</strong> mi investigación, continuaba siendo una referencia<br />
universal en los medios académicos brasileños y “brasilianistas”. Mi primera<br />
tentativa <strong>de</strong> explicación para el contraste fue el “são-paulo-centrismo”<br />
<strong>de</strong> la visión historiográfica <strong>de</strong> Caio Prado y su poco interés, por no <strong>de</strong>cir<br />
indiferencia, por el acontecer histórico <strong>de</strong> las regiones “periféricas” <strong>de</strong><br />
3 Una versión resumi<strong>da</strong> <strong>de</strong> los principales <strong>de</strong>sarrollos y argumentos <strong>de</strong> esa historia falli<strong>da</strong><br />
fue publicado en <strong>Estudos</strong> EIAP, <strong>revista</strong> (también falli<strong>da</strong>) <strong>de</strong> la FGV que sólo tuvo<br />
un número. Cf. PALACIOS, Guillermo. Os plantadores <strong>de</strong> cana <strong>de</strong> Pernambuco: nascimento,<br />
crise e consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma “Classe Agrária”: 1900-1945. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>da</strong> EIAP.<br />
Série Desenvolvimento Agrícola, Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 1, p. 125-72, 1979.<br />
4 I<strong>de</strong>m. Campesinato e historiografia no Brasil: comentários sobre algumas obras notáveis.<br />
Boletim Informativo e Bibliográfico <strong>de</strong> Ciencias Sociais, n. 35, p. 41-57, 1º sem. 1993.<br />
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79<br />
Brasil, nichos <strong>de</strong> los famosos “residuos esclavistas” o “coloniales” que tanto<br />
obstaculizaban, en su opinión, la marcha <strong>de</strong>l país. Junto a eso, claro está,<br />
había que evaluar el peso relativo que en sus planteamientos y con clu -<br />
siones tenían la investigacion histórica y el esquema teórico-metodológico<br />
que <strong>de</strong> alguna manera la informaba, para establecer la justa relación entre<br />
esos dos factores fun<strong>da</strong>mentales <strong>de</strong> la obra pradiana.<br />
Otro elemento que podría ser llevado en consi<strong>de</strong>ración para tratar <strong>de</strong><br />
explicar las posturas “no-campesinistas” <strong>de</strong> Caio Prado era, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />
la época durante la cual realizó la mayor parte <strong>de</strong> las investigaciones que<br />
produjeron sus libros principales, algo sobre lo cual voy a volver una y<br />
otra vez, pues me parece <strong>de</strong> la mayor importancia: la Evolução política do<br />
Brasil (1933), la Formação do Brasil contemporâneo (1942) y la História<br />
econômica do Brasil (1945), esto es, el periodo entre-guerras, cuando po<strong>de</strong>rosos<br />
movimientos sociales redujeron a cenizas la aparente apacibili<strong>da</strong>d<br />
<strong>de</strong> la historia <strong>de</strong> Brasil, acompañados <strong>de</strong> notables procesos <strong>de</strong> urbanización<br />
y <strong>de</strong> formación <strong>de</strong> una clase obrera industrial — que transfirieron a<br />
las ciu<strong>da</strong><strong>de</strong>s la historia que antes se había <strong>de</strong>sarrollado en el espacio agrario.<br />
La marcha <strong>de</strong> la Columna Prestes parecía haber sido el entierro <strong>de</strong>l<br />
viejo Brasil arcaico y agrario. Era el asfalto y no más la tierra lo que apuntaba<br />
al futuro <strong>de</strong>l país. La cuestión agraria, que tanto espacio iba a ocupar<br />
a partir <strong>de</strong> 1960, estaba prematuramente liqui<strong>da</strong><strong>da</strong> ante las evi<strong>de</strong>ncias <strong>de</strong><br />
la industrialización <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Como todos sabemos, la discusión sobre la “cuestión campesina”,<br />
que tendrá su auge en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960 con la aparición y militancia <strong>de</strong><br />
las Ligas Camponesas, es uno <strong>de</strong> los problemas que están en el fondo tanto<br />
<strong>de</strong> la investigación y <strong>de</strong> la reflexión históricas <strong>de</strong> Caio Prado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> los años<br />
que intermedian las dos gran<strong>de</strong>s guerras, como en sus posturas teóricas<br />
con relación a las “fases” <strong>de</strong>l <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la Colonia hasta la<br />
República, que serán el centro <strong>de</strong> sus argumentos en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970,<br />
cuando <strong>de</strong>l famoso <strong>de</strong>bate feu<strong>da</strong>lismo/capitalismo en el seno <strong>de</strong> las iz -<br />
quier <strong>da</strong>s latinoamericanas. En ambos contextos (pues, como se ha dicho<br />
y repetido, en el caso <strong>de</strong> Prado Jr., el investigador y el militante son uno<br />
solo), la ausencia <strong>de</strong> un campesinado se explica básicamente por una<br />
visión <strong>de</strong>l es clavismo como un Deus ex Machina que todo lo domina y<br />
subordina, y por una concepción <strong>de</strong>l Brasil Colonia como un apéndice <strong>de</strong><br />
un mercado mundial ya capitalista. Se pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cir que, paradójicamente,<br />
esa perspectiva “negacionista” <strong>de</strong> la existencia <strong>de</strong> formaciones campesinas<br />
en la historia <strong>de</strong> Brasil es una <strong>de</strong> las razones <strong>de</strong> la actuali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Caio<br />
Prado, en la medi<strong>da</strong> en que las nuevas investigaciones, que aportan <strong>da</strong>tos<br />
que contradicen las posturas <strong>de</strong> nuestro historiador, nos hacen releeerlo<br />
para tratar <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r los matices <strong>de</strong> sus argumentos.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
La tesis historiográfica pradiana, específica <strong>de</strong> Brasil, y por lo tanto<br />
dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> un halo <strong>de</strong> nacionalismo, o <strong>de</strong> una “cuestión nacional”, más o<br />
menos implícitos, es clara: la naturaleza <strong>de</strong> “negocio” agro-exportador <strong>de</strong><br />
la Colonia portuguesa en América impi<strong>de</strong> o hace inútil el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong><br />
mercados internos que podrían haber <strong>de</strong>man<strong>da</strong>do la formación <strong>de</strong> un sector<br />
productor <strong>de</strong> alimentos. Por su parte, la <strong>de</strong>man<strong>da</strong> real <strong>de</strong> las reduci<strong>da</strong>s<br />
aglomeraciones urbanas que se constituyen como sectores <strong>de</strong> servicio <strong>de</strong><br />
las uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s agro-exportadoras se satisface con la importación <strong>de</strong> alimentos<br />
<strong>de</strong> la metrópoli o con los exce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> un pequeño conjunto <strong>de</strong> productores<br />
esclavistas <strong>de</strong> alimentos. Mientras tanto, los libres y pobres,<br />
“sobrantes” humanos, <strong>de</strong>sechos <strong>de</strong>l sistema agro-exportador que para<br />
ellos no tiene cupo, se acumulan en el interior <strong>de</strong> Brasil, en la periferia <strong>de</strong><br />
los complejos agroexportadores — como la mo<strong>da</strong> estructuralista nos hacía<br />
llamarlos entonces —, <strong>de</strong>sarticulados, primitivos, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ros <strong>de</strong>spojos <strong>de</strong>l<br />
crecimiento <strong>de</strong>l sistema colonial.<br />
Caio Prado los veía así: segmentos <strong>de</strong>sclassificados, practicantes <strong>de</strong><br />
una “mesquinha agricultura”, llevados<br />
por efeito <strong>de</strong> uma espontânea se le ção social, econômica e moral, às<br />
categorias inferiores <strong>da</strong> colonização […] um elemento humano residual,<br />
sobretudo mestiços <strong>de</strong> índio que conservaram <strong>de</strong>le a indolência<br />
e quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s negativas para um teor <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> ma te rial e moral mais<br />
elevado. Ou então brancos <strong>de</strong>generados e <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes. 5<br />
No estando articulados al motor <strong>de</strong>l sistema colonial, su historia no<br />
tenía ningún interés, la história do Brasil era otra.<br />
Es obvio que, aunque Caio Prado no lo diga, la “<strong>de</strong>scalsificación” y<br />
la “inferiorización” <strong>de</strong> esas poblaciones rurales, contemplan, a<strong>de</strong>más <strong>de</strong><br />
claras implicaciones biológicas — en especial, elementos <strong>de</strong> las teorías <strong>de</strong> la<br />
<strong>de</strong>generación racial tan en boga en la Entre-Guerra —, <strong>de</strong>nuncias implícitas<br />
en el ámbito “inconfesable” <strong>de</strong> la cultura, que Prado llama <strong>de</strong> “moral”, una<br />
categoría que, a diferencia <strong>de</strong> la primera, podía navegar libremente en las<br />
aguas <strong>de</strong>l marxismo <strong>de</strong> finales <strong>de</strong> los años 1930. Volveré a esto más a<strong>de</strong>lante.<br />
Por otro lado, el sustantivo “residual” indica claramente la naturaleza<br />
“transitoria” <strong>de</strong> esos segmentos <strong>de</strong>sclasificados, una transitorie<strong>da</strong>d que, si<br />
bien no se les consi<strong>de</strong>re propiamente “campesinos”, sí comparten en plenitud<br />
con los campesinos “reales” <strong>de</strong> la teoría marxista clásica: allá son<br />
residuos <strong>de</strong> la socie<strong>da</strong>d feu<strong>da</strong>l; aquí lo son <strong>de</strong>l esclavismo. En ambos casos<br />
están con<strong>de</strong>nados a <strong>de</strong>saparecer, diluyéndose, con otros atributos, en la<br />
socie<strong>da</strong>d nacional. También sobre esto volveré.<br />
5 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Li vra ria<br />
Martins Editora, 1942. p. 161.<br />
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81<br />
La tesis es clara, no hay du<strong>da</strong>. Sin embargo, leí<strong>da</strong> con la ventaja <strong>de</strong><br />
casi medio siglo <strong>de</strong> investigación, no es posible <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> sentir un cierto<br />
exceso <strong>de</strong> rigor metodológico en la <strong>de</strong>finición <strong>de</strong>l término “campesino” en<br />
la obra <strong>de</strong> Caio Prado. Un exceso que pue<strong>de</strong> haber sido heurísticamente<br />
inescapable en los momentos <strong>de</strong> la elaboración <strong>de</strong> la obra, pero que también<br />
contrasta y parece entrar en conflicto con sus posturas posteriores en<br />
favor <strong>de</strong> la contextualización coyuntural <strong>de</strong> los procesos como condición<br />
indispensable para enten<strong>de</strong>rlos en su especifici<strong>da</strong>d, libres <strong>de</strong> la camisa <strong>de</strong><br />
fuerza <strong>de</strong> esquemas teóricos pesados, tan criticados por el maestro. Su<br />
<strong>de</strong>terminación en el sentido <strong>de</strong> sólo consi<strong>de</strong>rar “campesino” a quienes<br />
correspon<strong>de</strong>n al mo<strong>de</strong>lo irrepetible <strong>de</strong>l productor medieval sujeto a la<br />
gleba y el hecho no referirse a todo lo largo <strong>de</strong> su obra publica<strong>da</strong>, por lo<br />
menos explícitamente y como categoría comparativa, a la existencia <strong>de</strong><br />
numerosas y complejas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s campesinas en los países andinos,<br />
vecinos <strong>de</strong> Brasil, es algo <strong>de</strong> alguna manera inexplicable, o por lo menos<br />
intrigante. Para enten<strong>de</strong>r su punto <strong>de</strong> referencia no hay sino que leer un<br />
fragmento <strong>de</strong> la História econômica do Brasil, <strong>de</strong> 1945, don<strong>de</strong> Caio Prado<br />
admite, al fin, la existencia histórica <strong>de</strong> pequeñas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> producción<br />
agrícola “que se aproximam do tipo camponês europeu”, con lo que él<br />
mismo comienza a aproximarse <strong>de</strong> la cuestión campesina.<br />
Las posiciones <strong>de</strong> Caio Prado a favor <strong>de</strong> la tesis <strong>de</strong>l capitalismo “original”<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el inicio <strong>de</strong> la formación <strong>de</strong> Brasil están basa<strong>da</strong>s en investiga -<br />
ciones académicas que antece<strong>de</strong>n a su rechazo a la tesis <strong>de</strong>l Partido Comu -<br />
nista sobre la existencia <strong>de</strong> un periodo “feu<strong>da</strong>l”, pero que, a pesar <strong>de</strong> anteriores,<br />
refuerzan y le <strong>da</strong>n un peso imbatible al argumento que esgrimirá en<br />
esa polémica. Sin embargo, la transferencia <strong>de</strong>l <strong>de</strong>bate intelectual al terreno<br />
i<strong>de</strong>ológico parece haber reforzado también una mira<strong>da</strong> selectiva que lo llevó<br />
a ignorar situaciones sociales y condiciones laborales que no encajaban<br />
con el mo<strong>de</strong>lo tan lapi<strong>da</strong>riamente construido — y que era y es tan impor -<br />
tan te para el crecimiento <strong>de</strong> la historiografía mo<strong>de</strong>rna en Brasil — y que, <strong>de</strong><br />
haberlas aceptado, habrían significado un flanco abierto a las tesis <strong>de</strong> sus<br />
adversarios, o un proceso revisionista entonces prácticamente imposible.<br />
Las investigaciones <strong>de</strong> finales <strong>de</strong> los años setenta <strong>de</strong>l siglo pasado, que<br />
consoli<strong>da</strong>ban ca<strong>da</strong> vez más la noción <strong>de</strong> la existencia <strong>de</strong> formaciones “campesinas”<br />
o “proto-campesinas” al interior <strong>de</strong>l sistema esclavista (pien so en<br />
Ciro Cardoso y, evi<strong>de</strong>ntemente, en Jacobo Goren<strong>de</strong>r, como también en el<br />
proyecto historia <strong>de</strong> la agricultura brasileña, <strong>de</strong>l Centro <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Desenvolvimento Agrícola (CPDA), que buscaba res ca tar la historia <strong>de</strong><br />
las formaciones socio-económicas coloniales y <strong>de</strong>ci mo nónicas que no es ta -<br />
ban inclui<strong>da</strong>s en el famoso binomio senhor-escravo) 6 , renovaban las tesis<br />
6 Me refiero al Projeto <strong>de</strong> História Geral <strong>da</strong> Agricultura Brasileira, coordinado por Maria<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
<strong>de</strong> Caio Prado sin que significaran un refuerzo <strong>de</strong> las posiciones “feu<strong>da</strong>listas”<br />
al estilo <strong>de</strong> Quatro séculos <strong>de</strong> latifúndio, <strong>de</strong> Passos Guimarães 7 .<br />
Tal vez por eso, por la <strong>de</strong>saparición <strong>de</strong>l peligro, resultado <strong>de</strong> la creciente<br />
sofisticación <strong>de</strong> las investigaciones “campesinistas” que na<strong>da</strong> tenían<br />
que ver con el feu<strong>da</strong>lismo, la perspectiva “negacionista” que marca la obra<br />
temprana <strong>de</strong> Caio va a admitir algunas concesiones y a relativizarse crecientemente<br />
en sus artículos sobre la cuestión agraria publicados en la dé -<br />
ca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960 y reunidos en un volumen publicado en 1979, con ese mismo<br />
nombre. Sin du<strong>da</strong>, en esos momentos su atención al problema “campesino”<br />
<strong>de</strong>rivó <strong>de</strong> la propia militancia <strong>de</strong> los movimientos sociales agrarios <strong>de</strong> los<br />
años sesenta <strong>de</strong>l siglo pasado, en especial <strong>de</strong> los que asumían sin ambages<br />
el término “camponês” en su título, como era el caso <strong>de</strong> las Ligas Cam po -<br />
ne sas <strong>de</strong>l Nor<strong>de</strong>ste.<br />
Por su vez, esa atención al fenómeno “camponês” contemporáneo fue<br />
lo que lo impulsó a mirar nuevamente hacia atrás, hacia los siglos XVIII y<br />
XIX, con algunas “preguntas campesinistas” en la cabeza, y a admitir en<br />
História e <strong>de</strong>senvolvimento, escrito en 1968 y publicado en 1972, la existencia,<br />
cito, “do que constituiria, na economia agrária <strong>da</strong> colônia, um setor<br />
propriamente camponês” 8 . Es <strong>de</strong>cir, la “cuestión campesina” nace como<br />
pregunta <strong>de</strong> investigación histórica en la obra <strong>de</strong> Caio Prado gracias al problema<br />
que al fin se hacía recién evi<strong>de</strong>nte en los años que median entre el<br />
fin <strong>de</strong> la Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial y el golpe <strong>de</strong> 1964. Na<strong>da</strong> nuevo para los<br />
historiadores: miramos al pasado preocupados por los dilemas <strong>de</strong>l presente.<br />
Incapaz <strong>de</strong> producir un texto original sobre la obra <strong>de</strong> Caio Prado o<br />
<strong>de</strong> discurrir sobre su papel en la historiografía brasileña sin repetir lo que<br />
ya se ha dicho hasta la sacie<strong>da</strong>d, tanto sobre el pionerismo <strong>de</strong> sus análisis<br />
como sobre las limitaciones <strong>de</strong> sus propuestas, tanto historiográficas como<br />
políticas, voy a tratar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarrollar brevemente, en la continuación <strong>de</strong> este<br />
trabajo, algunos puntos <strong>de</strong> comparación entre Brasil y México tomando<br />
como pretexto la obra <strong>de</strong> Caio Prado Jr., para tratar <strong>de</strong> <strong>de</strong>cir algo sobre el<br />
asunto general <strong>de</strong>l dossier, esto es, sobre la actuali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> los temas <strong>de</strong> Caio<br />
Prado Jr. Parto <strong>de</strong> la premisa <strong>de</strong> que esos “temas”, por más que se hayan<br />
referido a la situación brasileña y traten en su abrumadora mayoría <strong>de</strong> la<br />
historia <strong>de</strong> Brasil, pue<strong>de</strong>n y <strong>de</strong>ben ser vistos a la luz <strong>de</strong> otras historias y <strong>de</strong><br />
Yed<strong>da</strong> Linhares en los inicios <strong>de</strong>l Centro <strong>de</strong> Pós-Graduação em Desenvolvimento<br />
Agrí cola (CPDA), en el Hôrto Florestal <strong>de</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, en la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong> la<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970. Ver <strong>de</strong> CARDOSO, Ciro. Esclavage colonial et economie: contribution<br />
à l’etu<strong>de</strong> <strong>de</strong>s sociétés esclavagistes d’Amérique à partir du cas <strong>de</strong> la Guyane Francaise<br />
au 18ème siècle. Fort Worth, Texas: Centre d’Etu<strong>de</strong>s Régionales Antilles-Guyane, 1982.<br />
Evi <strong>de</strong>n te mente <strong>de</strong> GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.<br />
7 PASSOS GUIMARÃES, Alberto. Quatro séculos <strong>de</strong> latifúndio. São Paulo: Fulgor, 1964.<br />
8 PRADO Jr., Caio. História e <strong>de</strong>senvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1972. p. 46.<br />
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83<br />
otras situaciones “nacionales”, aunque tal no haya sido la intención <strong>de</strong>l<br />
autor. Al mismo tiempo, sirva esto como una fugaz llama<strong>da</strong> <strong>de</strong> atención<br />
sobre la manera como el mito <strong>de</strong> la especifici<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la historia <strong>de</strong> Brasil,<br />
irrepetible e incomparable, tan bien construido por los estadistas <strong>de</strong>l<br />
Imperio y sus intelectuales, penetra hasta las raíces en la obra <strong>de</strong> nuestro<br />
principal historiador marxista.<br />
Des<strong>de</strong> luego, no se trata <strong>de</strong> encontrar en el pasado <strong>de</strong> Brasil un sector<br />
“campesino” al estilo <strong>de</strong> lo que se pue<strong>de</strong> encontrar en la historia y en la<br />
actuali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> los países andinos o en México y América Central. En esos espacios,<br />
antes <strong>de</strong> la invasión europea había socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s enteras sustenta<strong>da</strong>s<br />
por uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> producción familiar que fueron i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el inicio<br />
como “campesinos” por los primeros cronistas e historiadores ibéricos<br />
— ellos mismos provenientes <strong>de</strong> naciones don<strong>de</strong> los “campesinos” (los “ver -<br />
<strong>da</strong><strong>de</strong>ros”) habían sido la base <strong>de</strong> las economías medievales y lo seguían<br />
siendo en diversos sentidos durante el siglo <strong>de</strong> la conquista <strong>de</strong> América.<br />
En muchos casos, esos agricultores precolombinos producían exce<strong>de</strong>ntes<br />
suficientes como para permitir la existencia <strong>de</strong> aglomeraciones urbanas y<br />
ceremoniales <strong>de</strong> gran <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong>d <strong>de</strong>mográfica. Su naturaleza “campesina”<br />
fue entonces un atributo que les fue adscrito por analogía, y que en buena<br />
medi<strong>da</strong> contribuyó — y quién sabe hasta qué punto esto pudo haber sido,<br />
lado a lado con las dimensiones relativamente menores <strong>de</strong>l universo conceptual<br />
<strong>de</strong> la época, una <strong>de</strong> las causas centrales <strong>de</strong> la <strong>de</strong>nominación — para<br />
justificar y legitimar jurídicamente los sistemas <strong>de</strong> repartimiento y encomien<strong>da</strong>,<br />
a<strong>de</strong>cuaciones mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> una visión originalmente feu<strong>da</strong>l 9 .<br />
No hay que olvi<strong>da</strong>r que algunos cronistas españoles llegados con<br />
Hernán Cortés vieron admirados los edificios <strong>de</strong>dicados al culto religioso<br />
<strong>de</strong> la Gran Tenochtitlán y, para que sus lectores se hicieran una i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> su<br />
“feal<strong>da</strong>d” y <strong>de</strong> su “paganismo”, los llamaron “mesquitas”. ¿Por qué entonces<br />
no llamar <strong>de</strong> “campesinos” a los macehuales, los productores <strong>de</strong> alimentos<br />
<strong>de</strong> las socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mesoamericanas? Un alma caritativa y <strong>de</strong>spreocupa<strong>da</strong><br />
podría <strong>de</strong>cir que todos nuestros problemas con el término “campesino”<br />
<strong>de</strong>rivan, entonces, <strong>de</strong> una simple simplificación lingüística, <strong>de</strong> una <strong>de</strong>ficiente<br />
aproximación conceptual.<br />
¿Cómo po<strong>de</strong>mos “leer” a Caio Prado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> México? ¿Cómo iniciar un<br />
diálogo comparativo que nos permita encontrar nuevas abor<strong>da</strong>jes a viejos<br />
problemas o a <strong>de</strong>scubrir nuevos problemas con viejas mira<strong>da</strong>s? La “cuestión<br />
9 Sobre la encomien<strong>da</strong> consúltese el clásico estudio <strong>de</strong> ZAVALA, Silvio. La encomien<strong>da</strong><br />
indiana. Madrid: Helénica, 1935, que tiene una segun<strong>da</strong> edición consi<strong>de</strong>rablemente<br />
corregi<strong>da</strong> y aumenta<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong> por la editorial Porrúa en 1973; sobre el repartimiento,<br />
si bien en sólo una <strong>de</strong> sus variantes, véase MENEGUS BORNEMAN, Mar ga -<br />
ri ta (Comp.). El repartimiento forzoso <strong>de</strong> mercancías en México, Per y Filipinas. México:<br />
<strong>Instituto</strong> Mora/UNAM, 2000.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
campesina” es evi<strong>de</strong>ntemente un tema a tratar, si bien su “complica<strong>da</strong><br />
ausencia” en la obra <strong>de</strong> nuestro autor — porque es una ausencia, pero una<br />
ausencia complica<strong>da</strong> como lo <strong>de</strong>nota su constante batallar con ella — inhibe<br />
un tratamiento <strong>de</strong>tallado en lo afirmativo, que contrasta <strong>de</strong> manera gritante<br />
con lo que suce<strong>de</strong> en el México <strong>de</strong> los años 1930, cuando Caio Prado investigaba<br />
y recopilaba los <strong>da</strong>tos para escribir sus principales obras, don<strong>de</strong> el<br />
“problema campesino” es un asunto vital, <strong>de</strong> dominio público, prácticamente<br />
<strong>de</strong> seguri<strong>da</strong>d nacional. Ese contraste es lo que nos permite comparar<br />
y discutir la diferencia en los planteamientos, y tal vez llevarnos a nuevas<br />
preguntas <strong>de</strong> investigación (que es uno <strong>de</strong> los objetivos <strong>de</strong> la historia compara<strong>da</strong>),<br />
si bien el espacio <strong>de</strong> esta exposición no permite hacerlo como se<br />
merece, pues el <strong>de</strong>bate necesitaría las páginas <strong>de</strong> un pequeño libro. El otro<br />
asunto que me gustaría contrastar, o por lo menos tratar brevemente en<br />
paralelo, es el <strong>de</strong> la “integración nacional”.<br />
La mira<strong>da</strong> historiográfica <strong>de</strong> Caio Prado señaló con incomparable<br />
precisión que el “problema” central <strong>de</strong> Brasil era, y siempre había sido, el<br />
<strong>de</strong> la mano <strong>de</strong> obra, tanto históricamente, en términos <strong>de</strong> su obtención y<br />
sujeción a la propie<strong>da</strong>d, como mo<strong>de</strong>rnamente, durante los últimos años <strong>de</strong><br />
vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> nuestro historiador, en términos <strong>de</strong> la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> barrer para<br />
siempre las viejas relaciones patrimoniales, supervivencias <strong>de</strong> la época <strong>de</strong><br />
la esclavitud, y regular y garantizar sus <strong>de</strong>rechos por medio <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnización<br />
<strong>de</strong> los sistemas laborales en el campo. Es un lugar común en la<br />
historiografía latinoamericanista el contraste entre una colonia portuguesa<br />
pletórica <strong>de</strong> tierras y carente <strong>de</strong> mano <strong>de</strong> obra y colonias españolas con<br />
tierras limita<strong>da</strong>s y abun<strong>da</strong>nte disponibili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> trabajo; como es un lugar<br />
común la referencia a la compleji<strong>da</strong>d <strong>de</strong> las socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s indígenas coloniza<strong>da</strong>s<br />
por el imperio español, se<strong>de</strong>ntarias, jerárquicamente organiza<strong>da</strong>s,<br />
dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> trabajo colectivo altamente disciplinados, con grupos<br />
sociales legalmente diferenciados, por contraste con el aparente menor<br />
<strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> las agrupaciones indígenas con las cuales entraron en contacto<br />
los primeros lusitanos que llegaron a la que fue bautiza<strong>da</strong> como la<br />
Tierra <strong>de</strong> la Santa Cruz. De ahí, se dice, el imperativo <strong>de</strong> la esclavitud y su<br />
peso relativamente menor, y muy tardío, en los dominios indo-hispánicos.<br />
De esta matriz original parte una serie <strong>de</strong> proposiciones historiográficas<br />
que constituyen la base <strong>de</strong> la historia que se ha escrito sobre la<br />
Iberoamérica Colonial y sobre su “persistencia” durante el siglo XIX. Entre<br />
otras, la que apunta las diferencias que se proyectan a las llama<strong>da</strong>s reformas<br />
liberales <strong>de</strong> mediados <strong>de</strong>l siglo, entre un Brasil que trata, entre otras cosas,<br />
<strong>de</strong> iniciar su liberación <strong>de</strong> la esclavitud (pues es una liberación si mul tá -<br />
nea, la <strong>de</strong>l esclavo y la <strong>de</strong> la nación que esclavizaba), fun<strong>da</strong>r el trabajo libre<br />
e instaurar el “cativeiro <strong>da</strong> terra”, en la feliz — por apropia<strong>da</strong> — expresión<br />
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<strong>de</strong> José <strong>de</strong> Souza Martins 10 , y un México que libera la tierra <strong>de</strong> las corpora -<br />
ciones religiosas y <strong>de</strong> los pueblos <strong>de</strong> indios y construye al mismo tiempo<br />
sistemas <strong>de</strong> trabajo coercitivo para sujetar al campesino.<br />
Pero siendo Brasil un espacio caracterizado durante el siglo <strong>de</strong> la<br />
ocupación portuguesa, por lo menos en la historiografía tradicional y <strong>de</strong><br />
acuerdo a mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> los años 1970, por un relativo “vacío” <strong>de</strong>mográfico,<br />
y siendo ese “vacío”, repito, una <strong>de</strong> las explicaciones <strong>de</strong> la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong><br />
importar trabajadores africanos en régimen <strong>de</strong> esclavitud, parece acertado<br />
que Caio Prado dirija sus especulaciones y sus reflexiones al problema <strong>de</strong><br />
las relaciones <strong>de</strong> trabajo como el nudo <strong>de</strong> la historia <strong>de</strong> Brasil; un problema<br />
que va a plantear, en esos mismos términos, <strong>de</strong> relaciones <strong>de</strong> trabajo, la<br />
cuestión <strong>de</strong> la “integración nacional”.<br />
Es posible <strong>de</strong>cir que el tema <strong>de</strong> la “integración nacional” aparece en<br />
la obra <strong>de</strong> Caio Prado Jr. referido a la compleja situación que enfrenta<br />
Brasil <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la Primera Guerra Mundial, y en particular durante la<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930; es <strong>de</strong>cir, es un problema <strong>de</strong> la contemporanei<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Caio.<br />
Y aparece con características propias, que sorpren<strong>de</strong>n a quienes hemos<br />
tenido que enfrentar ese <strong>de</strong>bate en otras situaciones históricas, si bien la<br />
sorpresa se atenúe por el tiempo transcurrido y por los avances teóricos y<br />
metodológicos <strong>de</strong> la historiografía a partir <strong>de</strong> los años ochenta <strong>de</strong>l siglo<br />
pasado, avances que nuestro historiador ya no tuvo a la mano.<br />
Para Caio Prado, y todos lo sabemos, la situación agraria brasileña<br />
durante los años 1930 <strong>de</strong>l siglo pasado está caracteriza<strong>da</strong> por la persistencia<br />
<strong>de</strong>l latifundio y por el continuado predominio <strong>de</strong> relaciones patrimoniales<br />
10 MARTINS, José <strong>de</strong> Souza. O cativeiro <strong>da</strong> terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências<br />
Hu manas, 1979.<br />
Antes <strong>de</strong> eso, en algunos textos, más político-i<strong>de</strong>ológicos que historiográficos — <strong>de</strong> nuevo<br />
la dificultad o la inutili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la diferenciación —, Caio Prado, refiriéndose al problema<br />
<strong>de</strong>l latifundio, propuso acciones como “transformação do regime”, “abolição do sistema”,<br />
“divisão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “entrega <strong>da</strong> terra aos camponeses”, pero sin llegar a for mular<br />
la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> una “reforma agraria”. Cf. O Programa <strong>da</strong> Aliança Nacional Li ber ta -<br />
dora. Escrita Ensaio, n. 127, 1935. Hay que resaltar el empleo <strong>de</strong>l término “camponês`<br />
en un texto político, en el atar<strong>de</strong>cer <strong>de</strong> la alianza obrero-campesina preconiza<strong>da</strong> por<br />
los dirigentes <strong>de</strong> la Tercera Internacional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1927 y en plena campaña <strong>de</strong> colectivización<br />
agraria en la Unión Soviética. Más a<strong>de</strong>lante, se referirá a la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sarrollar y difundir la pequeña propie<strong>da</strong>d (“trata-se simplesmente <strong>de</strong> substituir a<br />
gran<strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, a fazen<strong>da</strong>, pela pequena”) por medio <strong>de</strong> la “adoção <strong>de</strong> uma política<br />
<strong>de</strong>libera<strong>da</strong>, consciente e <strong>de</strong> larga projeção”, que permitiera una “evolução organiza<strong>da</strong>,<br />
planeja<strong>da</strong>, e sobretudo ampara<strong>da</strong> e estimula<strong>da</strong>”. En: Problemas <strong>de</strong> povoamento e a<br />
divisão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> rural. Revista do Idort, 1944, in: Evolução política do Brasil e<br />
outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1953. p. 245. Agra<strong>de</strong>zco a Paulo Iumatti el ha -<br />
ber me llamado la atención para estas referencias, in<strong>de</strong>pendientemente <strong>de</strong> que nuestras<br />
lecturas sean un poco diferentes. Sobre las Ligas Camponesas véase AZEVEDO, Fer -<br />
nan do A. As ligas camponesas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1982, y MEDEIROS, Leo nil<strong>de</strong><br />
Sérvolo <strong>de</strong>. História dos movimentos sociais no campo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fase, 1989.<br />
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en el campo, a pesar <strong>de</strong> algunas evi<strong>de</strong>ncias <strong>de</strong> un incipiente (y no sostenible)<br />
proceso <strong>de</strong> fragmentación fundiária, resultado <strong>de</strong> la crisis <strong>de</strong>l sector ex portador<br />
durante la primera mitad <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong>. Es un panorama que se mantiene<br />
en la perspectiva <strong>de</strong> nuestro autor hasta los años en que escribe sus<br />
artículos sobre la cuestión agraria en Brasil, con matices y cambios, sí, pero<br />
ninguno suficientemente importante como para modificar las bases <strong>de</strong>l mo -<br />
<strong>de</strong>lo. Contra ese telón <strong>de</strong> fondo aparece el problema <strong>de</strong> la “integración na cional”,<br />
pero, repito, referido al núcleo que Caio Prado había <strong>de</strong>finido como el<br />
constitutivo <strong>de</strong> la dinámica histórica <strong>de</strong> Brasil: las relaciones <strong>de</strong> trabajo.<br />
En su perspectiva, el problema <strong>de</strong> la “integración nacional” tiene que<br />
ver básicamente con la existencia <strong>de</strong> numerosas variantes contractuales<br />
que persisten al interior <strong>de</strong> las relaciones patrimoniales <strong>de</strong> trabajo en el<br />
campo, y que impi<strong>de</strong>n, entre otras cosas, la formación <strong>de</strong> un contingente<br />
uniforme <strong>de</strong> fuerza <strong>de</strong> trabajo, capaz <strong>de</strong> postular reivindicaciones comunes,<br />
y <strong>de</strong> incorporarse con las características <strong>de</strong> un ejército <strong>de</strong> trabajo mo<strong>de</strong>rno<br />
a la ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nía plena. Es una percepción <strong>de</strong> la “integración nacional” como<br />
algo que tiene que ver básicamente con la mo<strong>de</strong>rnización <strong>de</strong>l mercado <strong>de</strong><br />
mano <strong>de</strong> obra, <strong>de</strong> manera a que todos los trabajadores se integren nacionalmente<br />
bajo un mismo padrón y constituyan, <strong>de</strong> nuevo, una fuerza <strong>de</strong><br />
trabajo homogénea, sujeto <strong>de</strong> los mismos <strong>de</strong>rechos y habilita<strong>da</strong> para formular<br />
<strong>de</strong>man<strong>da</strong>s uniformes, <strong>de</strong> clase.<br />
Es una perspectiva que <strong>de</strong>scarta cualquier otro problema en el ca mi no<br />
<strong>de</strong> la integración nacional, y que ve a ésta como resultado <strong>de</strong> la in tro ducción<br />
y extensión <strong>de</strong> los <strong>de</strong>rechos básicos <strong>de</strong> un trabajador mo<strong>de</strong>rno: <strong>de</strong>recho <strong>de</strong><br />
huelga, <strong>de</strong>recho a la educación y salud, <strong>de</strong>scansos remunerados, remuneraciones<br />
que permitan una vi<strong>da</strong> digna, y, en algunos casos, <strong>de</strong>recho <strong>de</strong><br />
acceso a la tierra — sin nunca llegar a proponer una reforma agraria general,<br />
por lo menos antes <strong>de</strong> 1960, cuando las primeras Ligas Camponesas,<br />
asocia<strong>da</strong>s al Partido Comunista Brasileiro (PCB), hicieron su aparición y<br />
plantearon esa disyuntiva.<br />
Por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> estas propuestas se pue<strong>de</strong> intuir la tesis <strong>de</strong> que esa<br />
fragmentación en las relaciones <strong>de</strong> trabajo no había nacido <strong>de</strong> una mera<br />
casuali<strong>da</strong>d, sino que era una estrategia consciente <strong>de</strong> los grupos dominantes<br />
representativos <strong>de</strong> los “residuos <strong>de</strong> la colonia” para evitar la uni<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la<br />
clase trabajadora <strong>de</strong>l campo. La propia varie<strong>da</strong>d en la <strong>de</strong>nominación <strong>de</strong> los<br />
trabajadores rurales, a la que ya me referí, era el inicio <strong>de</strong> esa estrategia<br />
<strong>de</strong> fragmentación: no podía haber ni unión ni alianzas entre categorías<br />
nominalmente diversas.<br />
En el México <strong>de</strong> los años 1930 se llevaba a cabo una reforma agraria,<br />
que en la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> se volvería un proceso radical, con<br />
sus experimentos <strong>de</strong> formación <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s multifamiliares <strong>de</strong> explotación<br />
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<strong>de</strong> la tierra, los llamados “ejidos colectivos”. Pero la reforma agraria en<br />
México, y en un sentido más amplio, las políticas públicas inicia<strong>da</strong>s en la<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 por los gobiernos triunfadores <strong>de</strong>l movimiento armado<br />
conocido como la Revolución Mexicana, comenzaron a <strong>de</strong>pararse a fines<br />
<strong>de</strong> esa déca<strong>da</strong> con un problema que fue i<strong>de</strong>ntificado también como <strong>de</strong><br />
“integración nacional”. Pero si el problema era nominalmente el mismo,<br />
la mira<strong>da</strong> <strong>de</strong> los intelectuales <strong>de</strong> ambos países era muy diferente y se enfocaba<br />
en tejidos sociales muy distintos.<br />
Así, el problema <strong>de</strong> la “integración nacional”, que Caio Prado veía<br />
como resultante <strong>de</strong> las variaciones en los sistemas <strong>de</strong> contratación <strong>de</strong> la<br />
mano <strong>de</strong> obra, en México se i<strong>de</strong>ntificaba con variaciones formi<strong>da</strong>bles en<br />
el ámbito <strong>de</strong> la cultura, una vez que la población <strong>de</strong>l país agrario estaba<br />
compuesta por centenas <strong>de</strong> grupos étnicos que hablaban lenguas diferentes,<br />
que cultivaban una historia propia, que veneraban ancestros que no<br />
correspondían a los que veneraban otros, que tenían usos y costumbres<br />
contrastantes y muchas veces incompatibles.<br />
Detengámonos un poco en esa contraposición entre las relaciones<br />
<strong>de</strong> trabajo y el “problema <strong>de</strong> la cultura”. O, mejor, preguntémonos porqué<br />
el “problema <strong>de</strong> la cultura” no lo es para Caio Prado (o no está relacionado<br />
con la cuestión <strong>de</strong> la “integración nacional”) y sí lo es para los intelectuales<br />
mexicanos <strong>de</strong>l periodo pos-revolucionario, como dije, y por qué<br />
para éstos la cuestión <strong>de</strong> las relaciones <strong>de</strong> trabajo no aparece vincula<strong>da</strong><br />
con la “integración nacional”. Si bien yo no conozco textos pradianos que<br />
hayan tratado <strong>de</strong> la cuestión <strong>de</strong> la cultura agraria durante la colonia, o,<br />
para mayor precisión, durante el periodo esclavista, parece fácil <strong>de</strong>ducir<br />
<strong>de</strong>l propio mo<strong>de</strong>lo que él elabora y <strong>de</strong> las matrices teóricas y metodológicas<br />
que lo sostienen que la “cultura” no existe en su campo <strong>de</strong> reflexión,<br />
por lo menos como la pue<strong>de</strong>n ver los historiadores “culturalistas” <strong>de</strong> nuestros<br />
días. Y no existe en dos sentidos.<br />
El primero, historiográfico, pue<strong>de</strong> pensarse como <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> la<br />
percepción que en la época <strong>de</strong> las obras historiográficas <strong>de</strong> Caio Prado se<br />
tenía <strong>de</strong> la esclavitud como un sistema que no permitía otras preguntas<br />
que no fueran las liga<strong>da</strong>s a la esfera <strong>de</strong> la explotación <strong>de</strong>l trabajo, a la circulación<br />
comercial y a la acumulación <strong>de</strong> capital. Es <strong>de</strong>cir, estudiar cuestiones<br />
“culturales” en el ámbito <strong>de</strong> la esclavitud era <strong>de</strong>dicarse a espejismos<br />
huecos, que pali<strong>de</strong>cían hasta <strong>de</strong>saparecer completamente ante la<br />
magnitud <strong>de</strong> la ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra dimensión que le <strong>da</strong>ba “sentido” — un término<br />
famoso en el vocabulario pradiano — a la esclavitud como el componente<br />
central <strong>de</strong>l sistema económico <strong>de</strong> Brasil. (Si bien na<strong>da</strong> <strong>de</strong> eso impidió que<br />
Gilberto Freire escribiera en 1933 su atrevi<strong>da</strong>mente original Casa-gran<strong>de</strong><br />
e senzala). Para Caio Prado la esclavitud había eliminado el tema <strong>de</strong> la<br />
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“cultura” como algo que mereciera ser estudiado en la historia <strong>de</strong> Brasil,<br />
había hecho uniforme el mercado <strong>de</strong> trabajo durante la Colonia y la primera<br />
mitad <strong>de</strong>l siglo XIX, y <strong>de</strong>spués, en el proceso <strong>de</strong> su <strong>de</strong>sintegración se<br />
había <strong>de</strong>sintegrado también esa uni<strong>da</strong>d en una multitud <strong>de</strong> variantes <strong>de</strong><br />
relaciones laborales que “<strong>de</strong>sintegraron” por su vez a la nación. Por eso la<br />
reunificación <strong>de</strong> los mo<strong>de</strong>los contractuales en el campo era una condición<br />
para la integración nacional, o, mejor, para su “re-integración”.<br />
El segundo acto, que hace <strong>de</strong>saparecer a la cultura como un tema <strong>de</strong> la<br />
obra pradiana, es, sin du<strong>da</strong>, la concepción que el marxismo pre-gramsciano<br />
tenía <strong>de</strong> esa dimensión <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong>. Como sabemos, allí, la cultura se percibe<br />
como un <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ología, una máscara que oculta relaciones <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r, un atributo <strong>de</strong> clase que resulta <strong>de</strong> condicionantes que se encuentran<br />
en otras esferas, en el proceso <strong>de</strong> acumulación, en el avance <strong>de</strong> las<br />
fuerzas productivas etc. No posee la autonomía suficiente como para me -<br />
recer un estudio in<strong>de</strong>pendiente <strong>de</strong> esos elementos que la condicionan, la<br />
dirigen y la explican <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el exterior. Existe en sí, pero no para sí.<br />
Sin embargo, para los intelectuales mexicanos <strong>de</strong> la época <strong>de</strong> entre<br />
guerras — y lo mismo se pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cir <strong>de</strong> los intelectuales peruanos y bolivianos,<br />
guatemaltecos y nicaragüenses, marxistas o no — la cuestión <strong>de</strong> la<br />
“in tegración nacional” es básicamente un problema <strong>de</strong> la cultura. Mien tras<br />
la esclavitud se <strong>de</strong>sintegra en Brasil durante la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong>l siglo XIX,<br />
empuja<strong>da</strong> por las reformas <strong>de</strong> las déca<strong>da</strong>s 1840-1850, y <strong>de</strong>sintegra con eso<br />
la relativa uniformi<strong>da</strong>d en los mercados <strong>de</strong> trabajo, en México ocurre un<br />
fenómeno inverso. Allá las llama<strong>da</strong>s reformas liberales atacan los bienes<br />
<strong>de</strong> las corporaciones poscoloniales, liberan enormes parcelas <strong>de</strong> tierra que<br />
habían estado en manos <strong>de</strong> la Iglesia y <strong>de</strong> las ór<strong>de</strong>nes religiosas, y <strong>de</strong>bilitan<br />
significativamente los muros <strong>de</strong> protección que la legislación colonial<br />
había construido en torno a las tierras <strong>de</strong> los indios.<br />
Éstas comienzan a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s también tierras <strong>de</strong> corporaciones,<br />
blanco <strong>de</strong> las reformas contra los remanentes, los “residuos”, diría Caio<br />
Prado, <strong>de</strong>l Antiguo Régimen. La in<strong>de</strong>fensión <strong>de</strong> las tierras <strong>de</strong> los pueblos<br />
permite que las gran<strong>de</strong>s hacien<strong>da</strong>s <strong>de</strong>l centro y centro norte <strong>de</strong> México se<br />
lancen sobre ellas y conviertan a sus habitantes, paulatinamente, en trabajadores<br />
obligados <strong>de</strong> las gran<strong>de</strong>s propie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Hacia 1880, mientras en<br />
Brasil comienza a aparecer una multitud <strong>de</strong> variaciones en los sistemas <strong>de</strong><br />
sujeción <strong>de</strong> la mano <strong>de</strong> obra, en México, por el contrario, el mercado <strong>de</strong><br />
trabajo se homogeneiza en torno <strong>de</strong> la figura <strong>de</strong>l peón <strong>de</strong> hacien<strong>da</strong>. Es<br />
<strong>de</strong>cir, en México la mo<strong>de</strong>rnización agraria <strong>de</strong>l último cuarto <strong>de</strong>l siglo XIX<br />
<strong>da</strong> lugar a un proceso <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scampesinización”, que en algunas partes <strong>de</strong> la<br />
República es muy agudo, y que va a ser uno <strong>de</strong> los <strong>de</strong>tonadores <strong>de</strong> la Re volución<br />
<strong>de</strong> 1910.<br />
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89<br />
Hacia 1920, una vez termina<strong>da</strong> la fase más agu<strong>da</strong> <strong>de</strong>l movimiento<br />
armado, los gobiernos emanados <strong>de</strong> la revolución comienzan a formular<br />
una serie <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a satisfacer las <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>de</strong> la<br />
base popular que produjo la revolución. Lo primero será aten<strong>de</strong>r el problema<br />
<strong>de</strong> la tierra, inicialmente con un programa <strong>de</strong> “restitución” <strong>de</strong> las<br />
parcelas <strong>de</strong> los pueblos que las hacien<strong>da</strong>s habían absorbido y luego, ya a<br />
mediados <strong>de</strong> los años 1920, con un programa <strong>de</strong> “dotación” <strong>de</strong> tierras a<br />
campesinos <strong>de</strong>spojados. Al lado <strong>de</strong> eso, se <strong>da</strong> inicio a un extenso programa<br />
<strong>de</strong> “re-campesinización” para acompañar el proceso <strong>de</strong> reforma agraria.<br />
Es una “re-campesinización” basa<strong>da</strong> en un diagnóstico <strong>de</strong> la situación rural<br />
que centra el problema en la anulación <strong>de</strong> las capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s y <strong>de</strong> los saberes<br />
productivos <strong>de</strong> los antiguos campesinos por causa <strong>de</strong> su conversión en<br />
individuos integrados a sistemas <strong>de</strong> trabajo colectivo dirigido al interior <strong>de</strong><br />
las gran<strong>de</strong>s propie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rniza<strong>da</strong>s. Se trata entonces <strong>de</strong> re-construir al<br />
“campesinado nacional”, <strong>de</strong> hacer con que el peón trabajador vuelva a ser<br />
un campesino, pero un campesino diferente. El campesino “reconstruido”<br />
tiene que ser un “nuevo campesino”, un campesino revolucionario, alfabe -<br />
tizado, mo<strong>de</strong>rno, consciente <strong>de</strong> sus <strong>de</strong>rechos, y, sobre todo, sabedor <strong>de</strong> sus<br />
obligaciones y lealta<strong>de</strong>s para con el nuevo régimen. (No hay que olvi<strong>da</strong>r<br />
que Caio Prado también se refirió en diversas ocasiones a la falta <strong>de</strong> preparación<br />
<strong>de</strong> los “trabajadores rurales” para convertirse en productores<br />
autónomos: el viejo problema <strong>de</strong> cómo los sistemas coloniales “incapacitaron”<br />
al trabajador nacional para la agricultura in<strong>de</strong>pendiente) 11 .<br />
Y aquí, en el intento <strong>de</strong> resolver lo que se va a llamar “el problema<br />
campesino”, es don<strong>de</strong> en reali<strong>da</strong>d comienzan los problemas. Porque la<br />
segun<strong>da</strong> parte <strong>de</strong>l diagnóstico que orienta las políticas agraristas <strong>de</strong> la<br />
revolución mexicana dice que el México <strong>de</strong> los años <strong>de</strong> 1920-1930 no es en<br />
ver<strong>da</strong>d una nación, sino un mosaico inconexo, inconsistente, compuesto<br />
por centenas <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionales y locales para quienes el término<br />
“México” no significa gran cosa, pues crecen y se reproducen al interior<br />
<strong>de</strong> sus propias culturas ancestrales. Es <strong>de</strong>cir, la “nación” <strong>de</strong>cimonónica, la<br />
“nación” <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d y <strong>de</strong>l liberalismo, ha resultado ser una ficción<br />
crea<strong>da</strong> por los intelectuales citadinos. En palabras <strong>de</strong> François-Xavier<br />
Guerra, se trata <strong>de</strong> una “socie<strong>da</strong>d <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s” 12 . ¿Alguna vez oímos algo<br />
11 Sobre esto véase mi La Pluma y el Arado: los intelectuales pe<strong>da</strong>gogos y la construcción<br />
socio-cultural <strong>de</strong>l “problema campesino” en México, 1930-1932. México: El Co -<br />
le gio <strong>de</strong> México/CIDE, 1999. Es ver<strong>da</strong>d que Prado, si bien recalcó en algunos textos<br />
las dificulta<strong>de</strong>s culturales <strong>de</strong> los trabajadores rurales, también indicó el remedio para<br />
esta situación en la adopción <strong>de</strong> políticas públicas dirigi<strong>da</strong>s a la capacitación rural.<br />
Véase el ya citado “Problemas <strong>de</strong> povoamento e divisão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Agra<strong>de</strong>zco<br />
nuevamente la ayu<strong>da</strong> <strong>de</strong>l Prof. Iumatti en este aspecto.<br />
12 Cfr GUERRA, François-Xavier. México, <strong>de</strong>l Antiguo Régimen a la Revolución. México:<br />
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semejante referido a Brasil? Creo que no. Por lo menos yo no recuerdo<br />
ninguna corriente <strong>de</strong> pensamiento en la historia intelectual <strong>de</strong> Brasil que<br />
discuta una supuesta inconsistencia cultural <strong>de</strong> la nación. Y vaya que existen<br />
diferencias culturales abismales.<br />
Entonces, en México, el problema <strong>de</strong> la multiplici<strong>da</strong>d <strong>de</strong> culturas, y<br />
no <strong>de</strong> la multiplici<strong>da</strong>d <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> relaciones <strong>de</strong> trabajo, es lo que impi<strong>de</strong><br />
la “integración nacional” y <strong>de</strong>ja al país montado sobre una red <strong>de</strong> relaciones<br />
sociales y políticas <strong>de</strong> gran fragili<strong>da</strong>d, que se pue<strong>de</strong> romper a cualquier<br />
momento y poner en peligro la propia uni<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l territorio. A diferencia <strong>de</strong><br />
Brasil, lo que hay que homogeneizar es la cultura, no el trabajo, y en esa<br />
dirección se dirigen los proyectos <strong>de</strong> los intelectuales mexicanos, contemporáneos<br />
<strong>de</strong> Caio Prado, armados con un instrumento principal: la es cuela<br />
rural. Se trata <strong>de</strong> una institución indispensable para enten<strong>de</strong>r la historia<br />
contemporánea <strong>de</strong> México, diseña<strong>da</strong> para implementar una educación<br />
“instrumental” basa<strong>da</strong> en dos “martillos” culturales centrales: la generali -<br />
za ción <strong>de</strong> la lengua castellana como lengua franca y un civismo revolucionario<br />
que contenía fuertes dosis <strong>de</strong> nacionalismo, anticlericalismo y propuestas<br />
con<strong>de</strong>natorias contra los “vicios” <strong>de</strong>l Antiguo Régimen: alcoholismo,<br />
<strong>de</strong>snutrición, fanatismo religioso, vagancia, promiscui<strong>da</strong>d sexual y sus en -<br />
ferme<strong>da</strong><strong>de</strong>s etc. Al referirse a la relación entre la educación rural y el ataque<br />
que significaba contra los usos y costumbres inmemoriales <strong>de</strong> las comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
indígenas <strong>de</strong> México, uno <strong>de</strong> los principales i<strong>de</strong>ólogos <strong>de</strong> la revolución<br />
cultural lo dijo claramente: la escuela es la enemiga <strong>de</strong> la cultura.<br />
Me gustaría terminar haciendo unas preguntas finales.<br />
¿Cuánto <strong>de</strong> lo que estaba pasando en México estaba presente en las<br />
reflexiones <strong>de</strong> Caio Prado? ¿Qué tanto y con qué ojos acompañó la revolución<br />
y sus proyectos sociales? O, más en general, ¿cuánto <strong>de</strong> lo que estaba<br />
pasando en el resto <strong>de</strong> América Latina estaba presente en la percepción <strong>de</strong><br />
Caio Prado sobre la problemática brasileña?<br />
¿Estaba, como es casi seguro, enterado <strong>de</strong> los problemas que en fren -<br />
taba el experimento agrario mexicano a finales <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930? De<br />
haberlo estado, ¿ese panorama confirmaba su escepticismo con relación a las<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s revolucionarias <strong>de</strong>l campesinado y a los peligros <strong>de</strong> su manipulación<br />
populista por parte <strong>de</strong>l Estado? (México llamaba la atención <strong>de</strong> las<br />
izquier<strong>da</strong>s brasileñas <strong>de</strong> la época, comunistas o no, no sólo por su proceso<br />
social y por el <strong>de</strong>cidido apoyo a la República Española en su lucha contra<br />
los nacionalistas <strong>de</strong> Franco y sus aliados fascistas, muy bien vistos por altos<br />
personajes <strong>de</strong>l Gobierno Vargas, sino porque allá se llevaban a cabo ruidosas<br />
Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1991.<br />
SAENZ, Moisés. Sobre el indio peruano y su incorporación al medio nacional. México:<br />
Secretaría <strong>de</strong> Educación Pública, 1933. p. 269-270.<br />
90 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
91<br />
protestas contra la prisión <strong>de</strong> Luiz Carlos Prestes, cuya madre y hermana<br />
se asilarían en la capital mexicana en1940) 13 .<br />
¿Qué tanto <strong>de</strong> lo que estaba sucediendo en los países “campesinos”<br />
<strong>de</strong> América Latina durante los años treinta y cuarenta <strong>de</strong>l siglo pasado,<br />
a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> sus convicciones teórico-i<strong>de</strong>ológicas, influyó en la percepción<br />
pradiana <strong>de</strong> las inconveniencias <strong>de</strong> un <strong>de</strong>sarrollo agrario sustentado por<br />
un campesinado extendido y por una economía basa<strong>da</strong> en la pequeña producción?<br />
¿Qué tanto <strong>de</strong> esa visión sobre las excelencias <strong>de</strong> la gran propie<strong>da</strong>d<br />
tecnifica<strong>da</strong> y mo<strong>de</strong>rna, concentradora <strong>de</strong> un proletariado rural sujeto<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>rechos la bo rales y sociales, se inspiraba en el ejemplo <strong>de</strong> los gran<strong>de</strong>s<br />
países hegemónicos, en particular en Estados Unidos y en lo que se veía<br />
como el futuro resplan<strong>de</strong>ciente <strong>de</strong> Unión Soviética? ¿Qué tanto su aversión<br />
hacia las formas campesinas reflejaba en cierto sentido los problemas <strong>de</strong> -<br />
rivados <strong>de</strong> la resistencia <strong>de</strong> los campesinos rusos a la política buhariniana<br />
<strong>de</strong> colectivización forza<strong>da</strong>?<br />
Porque los marxistas mexicanos <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930 interesados en<br />
teorizar sobre la cuestión agraria, no ven — o no admiten ver — la resistencia<br />
a la colectivización sino que se fijan tan sólo en el “<strong>de</strong>spués” teórico <strong>de</strong> ese<br />
brutal proceso, esto es, una economía agraria basa<strong>da</strong> en un “nuevo campesino”<br />
progresista, física y mentalmente sano y competente, que domina la<br />
tecnología y produce <strong>de</strong> acuerdo a los métodos más avanzados <strong>de</strong> plantío,<br />
que obe<strong>de</strong>ce a planos sexenales <strong>de</strong> producción, que se convierte en un elemento<br />
<strong>de</strong> la planificación estatal etc.<br />
¿Qué tanto <strong>de</strong> la visión pradiana sobre la supuesta “ineficiencia”<br />
pro ductiva <strong>de</strong> la pequeña producción viene <strong>de</strong>l contexto en el que escribe<br />
y no necesariamente <strong>de</strong> pruebas irrefutables proporciona<strong>da</strong>s por el pasado<br />
<strong>de</strong> Brasil? En otras palabras, ¿Qué tanto compartía Caio Prado la perspectiva<br />
<strong>de</strong>l Brasil hegemónico, <strong>de</strong>l Brasil potencia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l propio mundo<br />
capitalista?<br />
¿Será posible comparar un proceso <strong>de</strong> reforma agraria, el mexicano,<br />
que se encuentra ya plenamente <strong>de</strong>sacreditado en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, con<br />
un proceso <strong>de</strong> reforma agraria, el brasileño, que se presenta, por esos mismos<br />
años, como una <strong>de</strong> las “reformas <strong>de</strong> base” esenciales para el país?<br />
¿Tiene algún sentido comparar el proceso <strong>de</strong> re-campesinización<br />
an ticlerical que tiene lugar en México durante los años 1930 con los proyectos<br />
<strong>de</strong> la teología <strong>de</strong> la liberación que buscan en Brasil, cincuenta años<br />
<strong>de</strong>spués, enseñar a los sin tierra cómo “ser campesinos” con un profundo<br />
sentimiento religioso y <strong>de</strong> justicia social?<br />
13 Sobre esto véase PALACIOS, Guillermo. Intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, conflictos y reconciliaciones:<br />
México y Brasil, 1822-1993. São Paulo: Edusp, 2008. (La traducción al portugués fue<br />
publica<strong>da</strong> por Edusp, en marzo <strong>de</strong> 2008).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
¿Será posible comparar las situaciones actuales entre un campo, el<br />
brasileño, que asienta “campesinos”, antiguos trabajadores sin tierra, y un<br />
campo, el mexicano, que expulsa campesinos sin cesar, ya sea a la ciu<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
ya sea, con más frecuencia, a Estados Unidos?<br />
Tengo para mí que la obra <strong>de</strong> Caio Prado, sobre todo aquella parte que<br />
trata <strong>de</strong> la historia <strong>de</strong> Brasil, es <strong>de</strong>cir, su obra <strong>de</strong> historiador, <strong>de</strong> nuevo, en<br />
caso <strong>de</strong> que sea posible separarlo <strong>de</strong>l pensador político, ha mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> na -<br />
tu raleza. Es <strong>de</strong>cir, me parece que su obra <strong>de</strong> historia ya pasó a la historia,<br />
ya se fundió con ella. Así es la historia, está siempre <strong>de</strong>jando las cosas, y<br />
con partricular saña, a los historiadores, para atrás. De ser una fuente<br />
invaluable <strong>de</strong> consulta to<strong>da</strong>vía en los años 1970, la obra <strong>de</strong> Caio Prado se<br />
ha convertido en una gloria <strong>de</strong> la tradición historiográfica nacional y ha<br />
pasado a ser una fuente primaria <strong>de</strong> la mayor importancia para enten<strong>de</strong>r<br />
el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rna práctica <strong>de</strong> la historia en Brasil.<br />
Ya los temas que él trató, y la manera como los trató, no tienen la<br />
misma ventura. Muchos siguen vigentes, con apariencias diversas, resis -<br />
ten tes al cambio y en muchos casos — pienso en el problema eterno <strong>de</strong> la<br />
<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong>d extrema y en el resurgimiento <strong>de</strong> formas posmo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> es -<br />
cla vitud en el campo (pues el esclavismo colonial era “mo<strong>de</strong>rno”), usando<br />
máscaras bajo las que se ocultan “residuos” <strong>de</strong> una tradición secular <strong>de</strong><br />
conflictos y agravios que no encuentran solución. Tanto la cuestión agraria<br />
como el problema <strong>de</strong> la integración nacional, en la perspectiva <strong>de</strong> Caio<br />
Prado o en otras, alia<strong>da</strong>s o adversarias, son temas que siguen quemando<br />
las entrañas <strong>de</strong> Brasil. Las condiciones pue<strong>de</strong>n haber cambiado, las soluciones<br />
pue<strong>de</strong>n ser distintas, pero fue él quien primero puso en la agen<strong>da</strong><br />
nacional <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate esos dos, básicos, problemas.<br />
92 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
93<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong><br />
Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos<br />
em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez 1<br />
Resumo<br />
A partir <strong>de</strong> duas experiências que apontam revisões <strong>de</strong> fronteiras entre<br />
saberes especializados e populares, este texto ensaia uma abor<strong>da</strong>gem<br />
amplia<strong>da</strong> <strong>de</strong> temas relacionados às opções intelectuais no Brasil dos<br />
anos 1960. As vivências <strong>de</strong> Hélio Oiticica, artista plástico, no Morro <strong>da</strong><br />
Mangueira e a <strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos, arquiteto, na favela<br />
Brás <strong>de</strong> Pina, no Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>sse período, embora constituam-se<br />
como experiências <strong>de</strong> natureza <strong>de</strong> fato distintas, apresentam conteúdos<br />
que, afastados dos usuais cortes marxistas ou político-partidários <strong>da</strong><br />
época, funcionaram, num <strong>da</strong>do momento, como uma estratégia <strong>de</strong><br />
rein venção e <strong>de</strong> transgressão dos próprios repertórios através dos quais<br />
usualmente operavam seus pares, fun<strong>da</strong>ndo novos olhares sobre as<br />
formas <strong>de</strong> organização popular, trazendo o princípio <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> como<br />
o princípio mesmo <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> seus ofícios. Suas contribuições à<br />
discussão sobre a constituição <strong>de</strong> novas instituições possíveis para novas<br />
práticas possíveis para novos sujeitos possíveis po<strong>de</strong>m ser reconheci<strong>da</strong>s,<br />
nesse sentido, como potenciais exercícios <strong>de</strong> alargamento e redimen sionamento<br />
dos territórios dos saberes e discursos que processualmente<br />
se constroem acerca <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> urbana, suas formas <strong>de</strong> manifestação<br />
cultural, seus conflitos e traduções simbólicas e espaciais.<br />
Palavras-chave<br />
Hélio Oiticica, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, cultura popular, artes<br />
plásticas, arquitetura<br />
1 Professora do curso <strong>de</strong> Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Central<br />
Paulista (Unicep, São Carlos, SP) e associa<strong>da</strong> <strong>da</strong> ONG Teia (São Carlos, SP), que<br />
atua nas áreas <strong>de</strong> produção do habitat, educação, comunicação e artes.<br />
E-mail: magamarques@sc.usp.br<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Bor<strong>de</strong>rs of Disor<strong>de</strong>r:<br />
knowing and craft in the experiences<br />
of Hélio Oiticica at Morro <strong>da</strong> Mangueira<br />
and Carlos Nelson Ferreira dos Santos<br />
at Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Abstract<br />
From two experiences which point towards a revision of the bor<strong>de</strong>rs<br />
between specialized and popular knowledge, this article essays a broad<br />
approach to themes related to the intellectual options in 1960’s Brazil.<br />
The experiences of the artist Hélio Oiticica at Morro <strong>da</strong> Mangueira,<br />
and the experiences of the architect Carlos Nelson Ferreira dos Santos<br />
at Brás <strong>de</strong> Pina favela, in Rio <strong>de</strong> Janeiro during that time, although<br />
being distinct from one another, present contents that, apart from the<br />
usual Marxist perspectives or partisan political back then, worked as a<br />
strategy to reinvent and transgress their own repertoire through which<br />
their fellow artists usually had operated, founding new ways to look at<br />
the popular organizational forms, bringing the alterity principle as a<br />
principle itself for the existence of their works. Their contributions to<br />
the discussion about the constitution of new possible institutions to new<br />
possible practices and to new possible subjects can be recognized, in<br />
that sense, as potential exercises to broa<strong>de</strong>n and redirect the territories<br />
of knowledge and speech which construct themselves in a process of<br />
urban socialization, their ways of cultural manifestation, their conflicts,<br />
and their symbolical and spatial translations.<br />
Keywords<br />
Hélio Oiticica, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, popular culture, art,<br />
architecture.<br />
94 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
I<br />
ntrodução<br />
Este texto preten<strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem perspéctica <strong>de</strong> temas que cir cun<strong>da</strong>m<br />
as especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados saberes que se po<strong>de</strong>m fazer construir<br />
através <strong>da</strong> experiência urbana. Inegáveis enquanto conteúdos históricos,<br />
estes saberes merecem ser postos em foco como elementos fun<strong>da</strong>cionais<br />
<strong>de</strong> trajetórias individuais e coletivas que, a seu tempo, uma vez cruza<strong>da</strong>s,<br />
po<strong>de</strong>m apontar revisões <strong>de</strong> fronteiras <strong>de</strong> linguagens, redimensionamentos<br />
discursivos e até mesmo reorientações profissionais: a exposição cotidiana<br />
<strong>de</strong> Hélio Oiticica, artista plástico, ao universo popular do Morro <strong>da</strong> Man -<br />
guei ra e a <strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos, arquiteto, à favela Brás <strong>de</strong><br />
Pina, no Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, são experiências que, embora<br />
<strong>de</strong> natureza <strong>de</strong> fato distinta, apresentam interesses e valores que, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente<br />
afastados dos usuais cortes marxistas ou político-partidários<br />
<strong>da</strong> época, funcionaram, num <strong>da</strong>do momento, como uma estratégia <strong>de</strong> reinvenção<br />
e <strong>de</strong> transgressão dos próprios repertórios através dos quais usualmente<br />
operavam seus pares, fun<strong>da</strong>ndo novos olhares sobre as formas <strong>de</strong><br />
organização popular nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, trazendo o princípio <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> como<br />
o princípio mesmo <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> seus ofícios.<br />
95<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
É sobre estas duas experiências que este trabalho lança olhares<br />
interessados: buscamos suas contextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas, seus pontos <strong>de</strong> articulação<br />
e divergência com o mundo <strong>da</strong> “prática oficial” <strong>de</strong> seus próprios<br />
ofícios, as inflexões substantivas <strong>de</strong> re-a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong>s práticas so ciais e<br />
dos fenômenos culturais enquanto parte constitutiva <strong>de</strong> uma ação política<br />
que se constrói a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suas vanguar<strong>da</strong>s, a “<strong>de</strong>sintelectualização” <strong>de</strong><br />
saberes supostamente “especializados”, relocando-os ombro a ombro àqueles<br />
consi<strong>de</strong>rados “populares” através <strong>de</strong> proposições (naquele momento ain<strong>da</strong><br />
marginais) <strong>de</strong> participação, uma tal organici<strong>da</strong><strong>de</strong> que, enfim, permitira<br />
que os temas do urbano e do popular se mesclassem entre si e com os próprios<br />
anseios <strong>de</strong> renovação e <strong>de</strong> crítica às concepções <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
presentes <strong>de</strong> forma amplia<strong>da</strong> na história urbana dos anos <strong>de</strong> 1960 e 1970<br />
e <strong>de</strong> forma pontual, mas, evi<strong>de</strong>ntemente, não menos relevante, nas trajetórias<br />
dos personagens aqui em foco.<br />
A política, a cultura e o popular<br />
Tal como a história nos informa, antes do golpe <strong>de</strong> 1964, boa parte<br />
<strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> brasileira movimentava-se, ain<strong>da</strong> imersa nas brumas <strong>de</strong> um<br />
certo populismo, na perspectiva <strong>da</strong> luta <strong>de</strong> classes, cuja disposição tendia<br />
ao crédito numa “revolução burguesa”, capaz <strong>de</strong> unir a burguesia nacional<br />
e a vanguar<strong>da</strong> do proletariado 2 . Segundo a análise contun<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Ro berto<br />
Schwarz 3 , tal era a “estratégia” do Partido Comunista Brasileiro (PCB) —<br />
conseqüência <strong>de</strong> uma “espécie <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nta<strong>da</strong> e parlamentar <strong>de</strong> marxismo<br />
patriótico, um complexo i<strong>de</strong>ológico ao mesmo tempo combativo e <strong>de</strong> conciliação<br />
<strong>de</strong> classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista<br />
então dominante […].”<br />
Uma parcela consi<strong>de</strong>rável <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong><strong>de</strong> esquerdista brasileira<br />
encontrava-se então empenha<strong>da</strong> na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “conscientização <strong>da</strong>s<br />
massas”, movi<strong>da</strong> <strong>de</strong> alguma maneira por um engajamento político extremado,<br />
que enxergava no “nacional-popular” uma forma outra <strong>de</strong> nacionalismo,<br />
agora crítico e consciente, que seria resgatado ao plano político e ao<br />
cultural como instrumento <strong>de</strong> combate ao imperialismo.<br />
Um “vento pré-revolucionário” agitava a cena cultural brasileira<br />
naqueles anos: iniciativas <strong>de</strong> forte caráter político-contestatório como, por<br />
exemplo, as do Cinema Novo <strong>de</strong> Glauber Rocha, as dos Centros Populares <strong>de</strong><br />
2 CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fun<strong>da</strong>dor e socie<strong>da</strong><strong>de</strong> autoritária. São Paulo: Fun<strong>da</strong>ção<br />
Perseu Abramo, 2000. p. 36.<br />
3 SCHWARZ, Roberto. Cultura e política 1964-1969. In: __________. O pai <strong>de</strong> família e<br />
outros estudos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 63.<br />
96 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
97<br />
Cultura (CPC) <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE), ou as dos teatros<br />
<strong>de</strong> inspiração brechtiana, ain<strong>da</strong> que promovessem uma certa apologia <strong>da</strong><br />
noção <strong>de</strong> povo 4 , permitiam <strong>de</strong> fato uma reorientação <strong>da</strong> produção intelectual<br />
próxima <strong>de</strong> uma via <strong>de</strong> inquietu<strong>de</strong> que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o mo<strong>de</strong>rnismo<br />
dos anos <strong>de</strong> 1930 já havia trilhado — a rigor, sem a mesma “militância”:<br />
A expressão “cultura popular” surge como uma <strong>de</strong>núncia dos conceitos<br />
culturais em voga que buscam escon<strong>de</strong>r o seu caráter <strong>de</strong> classe.<br />
Quan do se fala em cultura popular, acentua-se a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> por<br />
a cultura a serviço do povo, isto é, dos interesses efetivos do país.<br />
Em suma, <strong>de</strong>i xa-se clara a separação entre uma cultura <strong>de</strong>sliga<strong>da</strong> do<br />
povo, não-popular, e outra que se volta para ele e, com isso, coloca-se<br />
o problema <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> social do intelectual, o que obriga<br />
a uma opção. 5<br />
A indissociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as inquietações culturais e os problemas<br />
político-sociais que compromete a “opção do intelectual ” <strong>de</strong> que fala Fer reira<br />
Gullar, é o que, segundo ele, <strong>de</strong>veria antece<strong>de</strong>r quaisquer preocupações<br />
meramente esteticistas, em função <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong> <strong>de</strong>salienação<br />
capaz <strong>de</strong> simultaneamente contribuir para a integração arte-vi<strong>da</strong> e para a<br />
consciência revolucionária.<br />
É certo, evi<strong>de</strong>ntemente, que o estatuto teórico que se conferia às<br />
relações estabeleci<strong>da</strong>s entre a cultura e a política estava, neste momento,<br />
alicerçado sobre análises marxistas as mais tradicionais: os conceitos <strong>de</strong><br />
alienação e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, estruturados pelos princípios mesmos <strong>da</strong> falsa<br />
cons ciência e <strong>da</strong> mistificação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, circunscreviam, <strong>de</strong> certa forma,<br />
a prática social ao lugar preciso <strong>da</strong> consciência <strong>de</strong> classe — o operariado<br />
ain<strong>da</strong> imaturo e <strong>de</strong>sorganizado corria o risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-se <strong>de</strong> sua tarefa<br />
revolucionária histórica, o que fazia <strong>de</strong> suas formas incipientes <strong>de</strong> manifestação<br />
política um elemento <strong>de</strong> transformação social ain<strong>da</strong> carente <strong>de</strong><br />
seus porta-vozes 6 .<br />
Este tipo <strong>de</strong> “preocupação social” que a reboque se constituía a partir<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate acerca do sub<strong>de</strong>senvolvimento — muitas vezes traduzi<strong>da</strong> no<br />
compromisso em <strong>de</strong>monstrar e mesmo assumir na própria obra a carência<br />
<strong>de</strong> recursos do povo brasileiro pela economia <strong>de</strong> meios com que eram feitos<br />
filmes e peças teatrais (veja-se os exemplos dos cenários-favela criados<br />
por Flávio Império e a precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> obstina<strong>da</strong> na elaboração material do<br />
4 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
5 GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />
1965. p. 1.<br />
6 CHAUÍ, Marilena. Op. cit.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Cinema Novo) 7 — <strong>de</strong> fato não encontrara nas manifestações <strong>da</strong>s artes plásticas<br />
o mesmo caráter <strong>de</strong> trincheira crítica, muito presente no teatro, no<br />
cinema e também na música popular <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960.<br />
Aracy Amaral atribui a “pali<strong>de</strong>z <strong>da</strong> contribuição dos artistas plásticos”<br />
ao “elitismo dos canais <strong>de</strong> distribuição <strong>da</strong> produção plástica — museus,<br />
ga lerias, bienais — ao contrário dos gran<strong>de</strong>s auditórios dos teatros e festivais”<br />
8 . Ain<strong>da</strong> assim, a autora lembra que foi justamente na busca <strong>de</strong> se<br />
comunicar com um público maior que, nos anos <strong>de</strong> 1960, “surge to<strong>da</strong> uma<br />
produção que tem ‘a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> como suporte’”. Se “o político tocaria o artista<br />
plástico ‘<strong>de</strong> leve’”, a contaminação e o interesse por uma experiência coletiva,<br />
por outro lado, abriria portas para uma renovação no campo <strong>da</strong>s artes<br />
plásticas, na tentativa do artista <strong>de</strong> extrapolar as fronteiras dos ateliês<br />
rumo ao espaço urbano e à multidão.<br />
De todo modo, em escala global, o momento era <strong>de</strong> guina<strong>da</strong> pósmo<br />
<strong>de</strong>rna: uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> quebra <strong>de</strong> hegemonia e a valorização <strong>de</strong><br />
outros registros culturais, numa agitação <strong>de</strong>flagra<strong>da</strong> com os movimentos<br />
antifordistas <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1968, abriam caminho para aquelas que se afirmavam<br />
“minorias” — homossexuais, feministas, negros, estu<strong>da</strong>ntes, movimentos<br />
<strong>de</strong> contracultura. Por esta via, os próprios conceitos <strong>de</strong> arte e <strong>de</strong><br />
vanguar<strong>da</strong> estavam sendo internamente <strong>de</strong>safiados; o movimento mo<strong>de</strong>rno,<br />
no campo <strong>da</strong> arquitetura, já sofria duras críticas (ain<strong>da</strong>, <strong>de</strong> fato, um tanto<br />
<strong>de</strong>sestrutura<strong>da</strong>s, basea<strong>da</strong>s em vertentes <strong>de</strong> suposições múltiplas e dispersas) 9 .<br />
Em território nacional, as artes plásticas, a sua maneira, talvez te -<br />
nham sido pioneiras no questionamento às idéias totalizadoras do projeto<br />
7 Sobre a obra <strong>de</strong> Flávio Império veja-se, sobretudo, KATZ, Renina; HAMBURGER,<br />
Amélia Império (Org.). Flávio Império. São Paulo: Edusp, 1999. Sobre o Cinema Novo<br />
e Glauber Rocha ver XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética <strong>da</strong> fome.<br />
São Paulo: Brasiliense, 1983.<br />
8 AMARAL, A. Arte pra quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970. 2. ed.<br />
São Paulo: Nobel, 1987. p. 328.<br />
9 No coração do próprio Movimento Mo<strong>de</strong>rno, num dos últimos CIAMs (Congressos<br />
Internacionais <strong>de</strong> Arquitetura Mo<strong>de</strong>rna), surge em 1959 um grupo, conhecido como<br />
Team X, que se propõe questionar os princípios fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> funcional<br />
corbusiana em favor <strong>de</strong> uma valorização <strong>da</strong>s noções <strong>de</strong> pertencimento, <strong>da</strong> história, <strong>da</strong><br />
continui<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> memória, <strong>da</strong> tradição e <strong>da</strong> cultura. Mais adiante, em 1977, Venturi,<br />
Scott-Brown e Izenour publicam um estudo sobre Las Vegas (Apren<strong>de</strong>ndo com Las<br />
Vegas), procurando <strong>de</strong>cifrar a logici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma “arquitetura para homens (<strong>de</strong> mercado)”<br />
e não mais para o velho homem-tipo. Em solo europeu, Aldo Rossi, no seu<br />
A arquitetura <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> 1966, propõe a releitura do modo <strong>de</strong> se pensar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
convocando substituir a máquina corbusiana pela referência historicista vernacular.<br />
As críticas <strong>de</strong> Jane Jacobs, em Morte e vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s à crença inconteste<br />
numa “utopia do plano” são <strong>de</strong> 1961. A lista é gran<strong>de</strong>. De todo modo, as fraturas <strong>de</strong><br />
um projeto mo<strong>de</strong>rno que já se mostrava insuficiente provocaram, em escala global,<br />
contestações as mais diversas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo menos o final dos anos <strong>de</strong> 1950.<br />
98 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
99<br />
mo<strong>de</strong>rno então <strong>de</strong>fendido: submergiam num processo <strong>de</strong> revisão <strong>da</strong>s formas<br />
passivas <strong>de</strong> contemplação <strong>da</strong> obra (sob a forma <strong>de</strong> objeto auto-centrado)<br />
como instrumento <strong>de</strong> crítica não só à própria idéia <strong>de</strong> arte e <strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong>,<br />
mas ao modo mesmo como esta socie<strong>da</strong><strong>de</strong> pretensamente mo<strong>de</strong>rna se<br />
submetia regularmente a mecanismos pré-estabelecidos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social.<br />
Hélio Oiticica esteve presente neste <strong>de</strong>bate: o imperativo <strong>de</strong> revalo ri -<br />
zação do corpo e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o resgate <strong>de</strong> uma experiência sensorial<br />
plena, dos quais não po<strong>de</strong>ria prescindir a constituição <strong>de</strong> um novo sujeito,<br />
foram idéias compartilha<strong>da</strong>s pelo artista.<br />
Oiticica viveu, no Brasil, um dos pontos altos <strong>de</strong> sua produção — o que<br />
aqui nos interessará levantar: o envolvimento com a favela carioca — no<br />
momento exato em que o golpe militar <strong>de</strong> 1964 veio <strong>de</strong>smontar <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s<br />
experiências <strong>de</strong> aproximação entre “elite intelectual” e “povo”. Nesse<br />
contexto, sua figura ganha relevância à medi<strong>da</strong> que propõe que essa aproximação<br />
se dê segundo outros termos: passava-se a vez a uma contestação<br />
menos “ortodoxa” em termos marxistas, mas <strong>de</strong> natureza política inegável,<br />
por questionar a submissão a mo<strong>de</strong>los prontos <strong>de</strong> “representação” do<br />
popular, tanto à direita como à esquer<strong>da</strong>. Como registra Celso Favaretto 10 ,<br />
mantendo-se embora afastado dos projetos culturais que figuravam<br />
a “reali<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional”, como etapa <strong>da</strong> ação política que reagia à<br />
dominação do imperialismo e do regime militar, Oiticica respon<strong>de</strong>u<br />
à sua maneira aos apelos <strong>de</strong>ssa esquer<strong>da</strong>. O seu processo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sintelectualização”<br />
não consistiu apenas na superação do esteticismo;<br />
sua marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<strong>da</strong> circunstancial, foi vivi<strong>da</strong>.<br />
Seu encontro com o universo popular do Morro <strong>da</strong> Mangueira rom pe<br />
<strong>de</strong> maneira transgressora com as i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong>senvolvimentista e populista<br />
que <strong>da</strong>vam contorno às “categorias” <strong>de</strong> popular até então veicula<strong>da</strong>s. Além<br />
disso, a experiência direta e cotidiana com a favela suscitou em Oiticica<br />
questionamentos importantes que o aju<strong>da</strong>ram a problematizar, junto a<br />
outros artistas, o que <strong>de</strong> fato significava naquele momento uma arte brasileira<br />
<strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong> afina<strong>da</strong> com aspirações universais:<br />
[…] como, num país sub<strong>de</strong>senvolvido, explicar o aparecimento <strong>de</strong><br />
uma vanguar<strong>da</strong> e justificá-la, não como uma alienação sintomática,<br />
mas como um fator <strong>de</strong>cisivo no seu processo coletivo? Como situar<br />
aí a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do artista? O problema po<strong>de</strong>ria ser enfrentado com uma<br />
outra pergunta: para quem faz o artista sua obra? Vê-se, pois, que<br />
10 FAVARETTO, Celso. A invenção <strong>de</strong> Hélio Oiticica. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2000 . p. 118.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
sente esse artista uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior, não só <strong>de</strong> criar simplesmente,<br />
mas <strong>de</strong> comunicar algo que para ele é fun<strong>da</strong>mental, mas essa<br />
comunicação teria que se <strong>da</strong>r em gran<strong>de</strong> escala, não numa elite<br />
reduzi<strong>da</strong> a experts mas até contra essa elite, com a proposição <strong>de</strong><br />
obras não acaba<strong>da</strong>s, “abertas”. É essa a tecla fun<strong>da</strong>mental do conceito<br />
<strong>de</strong> antiarte: não apenas martelar contra a arte do passado ou<br />
contra os conceitos antigos […], mas criar novas condições experimentais<br />
[…]. O problema antigo <strong>de</strong> fazer uma nova arte ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar<br />
culturas já não se formula assim — a formulação certa seria a<br />
<strong>de</strong> se perguntar: quais as proposições, promoções e medi<strong>da</strong>s a que<br />
se <strong>de</strong>vem recorrer para criar uma condição ampla <strong>de</strong> participação<br />
popular nessas proposições abertas, no âmbito criador a que se elegeram<br />
esses artistas. Disso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> sua própria sobrevivência e a<br />
do povo nesse sentido. 11<br />
Sem a pretensão <strong>de</strong> esmiuçar questões <strong>de</strong> natureza essencialmente<br />
estética na obra <strong>de</strong> Hélio Oiticica, nos interessara verificar, pois, o que exatamente<br />
sua produção artística teve <strong>de</strong> princípio universal e ao mesmo tem -<br />
po transgressor: uma tal organici<strong>da</strong><strong>de</strong> do ofício do artista que se constrói<br />
pela possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> participação.<br />
Acreditando que sua estreita relação com o saber popular do morro<br />
muito po<strong>de</strong> nos dizer a respeito, comentamos o Parangolé como o trabalho<br />
em que talvez estejam agregados mais explicitamente os elementos<br />
<strong>de</strong>sta participação e <strong>da</strong> própria reinvenção <strong>de</strong> repertórios que se confluem<br />
na obra do artista <strong>de</strong> modo a reorientá-la a novas formas <strong>de</strong> interpretação<br />
<strong>da</strong>s sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s urbanas, pelo tanto que por elas se acumulam, em<br />
registros simbólicos, capitais culturais os mais diversos.<br />
Oiticica e o princípio criativo <strong>da</strong> favela<br />
O artista se vê agora, pela primeira vez, em face <strong>de</strong> outra reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
o mundo <strong>da</strong> consciência, dos estados <strong>de</strong> alma, o mundo dos valores.<br />
Tudo tem <strong>de</strong> ser agora enquadrado num comportamento significativo.<br />
Com efeito, a pura e crua totali<strong>da</strong><strong>de</strong> sensorial, tão <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente<br />
procura<strong>da</strong> e tão <strong>de</strong>cisivamente importante na arte <strong>de</strong> Oiticica, é afinal<br />
mareja<strong>da</strong> pela transcendência a outro ambiente. Nesse, o artista,<br />
má qui na sensorial absoluta, baqueia vencido pelo homem, convul -<br />
si va men te preso <strong>da</strong>s paixões sujas do ego e na trágica dialética do<br />
11 OITICICA, Hélio. Aspiro ao gran<strong>de</strong> labirinto. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1986. p. 98.<br />
100 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
101<br />
encontro social. Dá-se, então, a simbiose <strong>de</strong>sse extremo, radical<br />
refi na mento estético com um extremo radicalismo psíquico, que en -<br />
volve to<strong>da</strong> a personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O inconformismo estético, pecado luciferiano,<br />
e o inconformismo social, pecado individual, se fun<strong>de</strong>m. A<br />
mediação para essa simbiose <strong>de</strong> dois inconformismos maniqueístas<br />
foi a escola <strong>de</strong> samba <strong>da</strong> Mangueira. 12<br />
Hélio Oiticica chega ao Morro <strong>da</strong> Mangueira em 1964. De fato, ano<br />
significativo na vi<strong>da</strong> do país e em sua própria vi<strong>da</strong> — per<strong>de</strong> seu pai, com quem<br />
trabalhara nos arquivos do Museu Nacional e com quem havia aprendido,<br />
segundo Paola Jacques 13 , “o rigor e a or<strong>de</strong>m”.<br />
Também envolvido pela mesma atmosfera em que se permitia pensar<br />
o Brasil a partir <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o artista participara, anos antes, do<br />
Movimento Neoconcreto, cujas proposições registravam “uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
posição crítica frente ao <strong>de</strong>svio mecanicista <strong>da</strong> arte concreta” 14 . Enfren -<br />
tando a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma arte não-figurativa, mas ain<strong>da</strong> interessados<br />
na arte como instrumento <strong>de</strong> construção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (que Ronaldo Brito<br />
enten<strong>de</strong> como “positivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que está no centro <strong>da</strong> tradição construtiva”),<br />
são os neoconcretos os primeiros a propor uma superação <strong>da</strong>s relações<br />
convencionais entre arte e espectador, abolindo pe<strong>de</strong>stais e molduras<br />
(<strong>de</strong>cretando, aliás, a “morte” <strong>da</strong> pintura), numa clara intenção <strong>de</strong> estabelecer<br />
a interativi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a obra e aquele que Oiticica viria a chamar <strong>de</strong><br />
participador 15 .<br />
Depois <strong>de</strong> fin<strong>da</strong>do o movimento, mas ain<strong>da</strong> antes <strong>de</strong> tomar contato<br />
com a favela, já é notável na evolução <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Oiticica o que Celso Fa varetto<br />
16 chama <strong>de</strong> “intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> progressiva do experimental” — proposições<br />
essenciais <strong>de</strong> cor, tempo, estrutura, corpo e participação.<br />
Os Parangolés são o primeiro fruto <strong>de</strong> seu contato com a Man guei ra:<br />
conjunto <strong>de</strong> capas, ten<strong>da</strong>s e estan<strong>da</strong>rtes, os Parangolés são experiências ao<br />
mesmo tempo individuais e coletivas, mas que expõem claramente a força<br />
<strong>de</strong> superação do individualismo.<br />
De início, o que se po<strong>de</strong> dizer do Parangolé é que se trata <strong>de</strong> uma<br />
discussão a respeito do objeto artístico: uma busca pela “estrutura do objeto,<br />
os princípios constitutivos <strong>de</strong>ssa estrutura”, por uma “fun<strong>da</strong>ção objetiva e<br />
12 Trecho <strong>da</strong> introdução, por Mário Pedrosa, do livro OITICICA, Hélio. Op. cit. p. 12-13.<br />
13 JACQUES, Paola Berenstein. Estética <strong>da</strong> ginga: a arquitetura <strong>da</strong>s favelas através <strong>da</strong><br />
obra <strong>de</strong> Hélio Oiticica. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Casa <strong>da</strong> Palavra; Rioarte, 2003.<br />
14 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura no projeto construtivo brasileiro.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: FUNARTE, 1985. p. 11.<br />
15 Mário Pedrosa chega a <strong>de</strong>clarar, ain<strong>da</strong> nos anos <strong>de</strong> 1960, que se estava tratando, ali,<br />
<strong>de</strong> arte “pós-mo<strong>de</strong>rna”.<br />
16 FAVARETTO, Celso. Op. cit. p. 18.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
não a dinamização ou o <strong>de</strong>smonte do objeto” 17 . Oiticica chega a falar em<br />
“totali<strong>da</strong><strong>de</strong>-obra”, através <strong>da</strong> fundição absoluta <strong>de</strong> cor, estrutura, sentido<br />
poético, <strong>da</strong>nça, palavra, fotografia, enfim, uma série <strong>de</strong> elementos que dão<br />
forma a uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong> — tal como ele i<strong>de</strong>ntifica na “primitivi<strong>da</strong><strong>de</strong> construtiva<br />
popular” em que se revela um “núcleo construtivo primário”, dono<br />
<strong>de</strong> “um sentido espacial <strong>de</strong>finido, uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong>” 18 .<br />
Segundo Celso Favaretto 19 , a “antiarte ambiental” <strong>de</strong> Oiticica, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
pelo Parangolé 20 , é uma constituição paulatina <strong>de</strong> “um campo <strong>de</strong> estruturas<br />
abertas em que a invenção exercita-se como ‘proposição vivencial’.”<br />
De fato, o que o artista chama <strong>de</strong> “proposição vivencial” é a própria<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma “manifestação <strong>da</strong> imaginação coletiva”, uma vez que,<br />
o Parangolé não era assim, uma coisa para ser posta no corpo, para<br />
ser exibi<strong>da</strong>. A experiência <strong>da</strong> pessoa que veste, para a pessoa que está<br />
fora, vendo a outra se vestir, ou <strong>da</strong>s que vestem simultaneamente as<br />
coisas, são experiências simultâneas, são multiexperiências. Não se<br />
trata, assim, do corpo como suporte <strong>da</strong> obra; pelo contrário, é a total<br />
“in(corpo)ração”. É a incorporação do corpo na obra e <strong>da</strong> obra no<br />
corpo. 21<br />
Como apontávamos, o Parangolé <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> fato como<br />
um <strong>de</strong>sdobramento <strong>da</strong>s experiências que Oiticica vinha realizando <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o fim do Movimento Neoconcreto, mas que incorporou, indubitavelmente,<br />
segundo o próprio artista, uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas <strong>da</strong>s quais ele foi to -<br />
mando partido a partir <strong>de</strong> sua vivência no Morro <strong>da</strong> Mangueira.<br />
No texto “Bases fun<strong>da</strong>mentais para uma <strong>de</strong>finição do Parangolé” 22 , Oi -<br />
ticica faz referência à arquitetura <strong>da</strong> favela, dizendo que ali “está implícito<br />
17 OITICICA, Hélio. Op. cit. p. 67. “Os Parangolés não são objetos: a estrutura se produz<br />
à medi<strong>da</strong> que os materiais são usados. Produzem-se, pois são eventos, instáveis e<br />
in<strong>de</strong>finidos.” (FAVARETTO, Celso. Op. cit. p. 105)<br />
18 OITICICA, Hélio. Op. cit. p. 66-67.<br />
19 FAVARETTO, Celso. Op. cit. p. 121.<br />
20 Segundo Oiticica, a antiarte tem como principal objetivo “<strong>da</strong>r ao público a chance <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser público espectador, <strong>de</strong> fora, para participante na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> criadora. É o<br />
começo <strong>de</strong> uma expressão coletiva. O Parangolé, ou Programa Ambiental, como quiserem,<br />
seja na sua forma incisivamente plástica (uso total dos valores plásticos tácteis,<br />
visuais, auditivos etc.) mais personaliza<strong>da</strong>, como na sua mais disponível, aberta<br />
à transformação no espaço e no tempo e <strong>de</strong>spersonaliza<strong>da</strong>, é antiarte por excelência.”<br />
(OITICICA, Hélio. Op. cit. p. 82).<br />
21 “A Arte Penetrável <strong>de</strong> Hélio Oiticica”. Ent<strong>revista</strong> [<strong>de</strong> Hélio Oiticica] a Ivan Cardoso<br />
(1979). Folha <strong>de</strong> S. Paulo, 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1985, p. 48. Cita<strong>da</strong> em FAVARETTO,<br />
Celso. Op. cit. p. 107.<br />
22 Este texto, original <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1964, consta <strong>da</strong> coletânea OITICICA, Hélio. Op. cit.<br />
102 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
103<br />
o caráter do Parangolé, tal a organici<strong>da</strong><strong>de</strong> estrutural entre os elementos<br />
que o constituem e a circulação interna e o <strong>de</strong>smembramento externo <strong>de</strong>ssas<br />
construções […].”<br />
No entanto, talvez ain<strong>da</strong> mais importantes para a elaboração dos<br />
Parangolés tenham sido a <strong>de</strong>scoberta do samba — ritmo e corpo, “força mí -<br />
tica interna, individual e coletiva” no cotidiano do morro — e <strong>de</strong> uma forma<br />
outra <strong>de</strong> relação social presente na Mangueira, em que o artista i<strong>de</strong>ntifica<br />
uma “ética comunitária” 23 .<br />
Elaborados a partir <strong>de</strong> uma vivência total <strong>de</strong> Oiticica com a força criativa<br />
e marginal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m na or<strong>de</strong>m que é a própria favela, os Paran go lés<br />
não são e <strong>de</strong> fato jamais po<strong>de</strong>riam ser uma alegoria <strong>da</strong> favela ou do favelado<br />
24 . Segundo Gabriel Souza 25 , o que Oiticica extraiu <strong>de</strong>sse “popular” foi<br />
o seu conteúdo revolucionário — não em um sentido programático e<br />
partidário, mas no sentido <strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> improviso e burla, <strong>de</strong><br />
atuação, jogo e reinvenção <strong>da</strong>s próprias formas <strong>de</strong> ser do sujeito<br />
como indivíduo e como ser social. Reinvenção que necessitaria<br />
mais do que a observação e a contemplação; exigiria obrigatoriamente<br />
a experi men tação e participação coletiva, a presença do<br />
outro. De fato, a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> tornou-se um princípio inseparável <strong>da</strong><br />
obra <strong>de</strong>sse artista […].<br />
Daí po<strong>de</strong>mos levantar outra questão importante suscita<strong>da</strong> pelo Pa -<br />
rangolé: quem é o autor <strong>da</strong> obra? Se a obra só se realiza quando posta em<br />
23 Essa formulação <strong>de</strong> influências <strong>da</strong> favela sobre a obra <strong>de</strong> Oiticica é cita<strong>da</strong> por Paola<br />
Jacques (JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit.) e por Celso Favaretto (FAVARETTO,<br />
Celso. Op. cit.) como sendo <strong>de</strong> Guy Brett (em texto publicado no catálogo <strong>da</strong> ex po sição<br />
<strong>de</strong> HO na Whitechapel Gallery, Londres, 1969).<br />
24 Se a música dos Tropicalistas representou <strong>de</strong> certa forma uma construção <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong><br />
brasili<strong>da</strong><strong>de</strong> à medi<strong>da</strong> que “submetia os arcaísmos culturais à luz branca do ultramo<strong>de</strong>rno,<br />
apresentando o resultado como uma alegoria do Brasil” (SCHWARZ, Roberto.<br />
Op. cit. p. 52), o mesmo não se po<strong>de</strong> dizer sobre as obras que Hélio Oiticica criou a partir<br />
<strong>de</strong> seu contato estreito com o universo popular. Conforme adverte Gabriel Souza<br />
(SOUZA, Gabriel G. L. A transgressão do “popular” na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 60: os Parangolés e a<br />
Tropicália <strong>de</strong> Hélio Oiticica. Revista Risco: Revista <strong>de</strong> Pesquisa em Arquitetura e Ur banismo,<br />
São Carlos, n.3, p. 86-103, 2/2006), na obra “Tropicália”, por exemplo, Oiticica<br />
trabalha uma série <strong>de</strong> sobreposições <strong>de</strong> registros culturais (po pular, erudito, comercial,<br />
nacional, regional, internacional), contrapondo à noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional a<br />
idéia <strong>de</strong> cultura em formação, don<strong>de</strong> a sua convergência com os músicos baianos. No<br />
entanto, ele nunca preten<strong>de</strong>u aludir a uma imagem do Brasil, ou do popular, porque<br />
o que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o interessava era a experiência, sem a qual a imagem não po<strong>de</strong>ria<br />
ser supera<strong>da</strong> como superficiali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sobre o tropicalismo na mú sica brasileira, veja-se<br />
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,<br />
2000.<br />
25 SOUZA, Gabriel G. L. Op. cit.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
movimento pelo participante — participador!; nesse caso “participadorobra”!<br />
— ele se torna automaticamente seu co-autor à medi<strong>da</strong> que a veste<br />
e <strong>da</strong>nça com ela 26 .<br />
O papel do artista também se matiza: “o artista, menos que aquele<br />
que cria, é quem propõe, motiva e orienta a criação. O artista não é mais<br />
o que assina a obra, mas o que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia experiências coletivas” 27 .Ao<br />
assumir-se como “<strong>de</strong>clanchador <strong>de</strong> estados <strong>de</strong> invenção”, Hélio Oiticica <strong>de</strong> -<br />
libera<strong>da</strong>mente escarnece a intelectualização e a estilização excessivas e o<br />
“fetiche” do objeto-obra, o que explicita com clareza sua idéia <strong>de</strong> antiarte.<br />
O que nos parece mais transgressor no contato <strong>de</strong> Oiticica com o<br />
Mor ro <strong>da</strong> Mangueira é justamente a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele enuncia <strong>de</strong> utilizar-se<br />
<strong>de</strong> características que à favela lhe são inerentes — o precário, o fle xí -<br />
vel, o improvisado, o inacabado, o coletivo — para, <strong>de</strong> maneira absolutamente<br />
comprometi<strong>da</strong> com o sujeito, invertê-las, e convertê-las em experiências <strong>de</strong><br />
caráter universal. Mais do que apanhar na favela raízes históricas para a<br />
construção <strong>da</strong> “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional”, como <strong>de</strong> fato tentaram os mo<strong>de</strong>rnistas<br />
nos anos <strong>de</strong> 1920 e 1930, Oiticica buscava, pela inversão marginal <strong>da</strong><br />
or<strong>de</strong>m, algo maior:<br />
O princípio <strong>de</strong>cisivo seria o seguinte: a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong>, individual e coletiva,<br />
será o soerguimento <strong>de</strong> algo sólido e real, apesar do sub<strong>de</strong>sen -<br />
vol vimento e caos — <strong>de</strong>sse caos vietnamesco é que nascerá o futuro,<br />
não do conformismo e do otarismo. Só <strong>de</strong>rrubando furiosamente<br />
po <strong>de</strong>remos erguer algo válido e palpável: a nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 28<br />
Levar os moradores do morro ao Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna (MAM),<br />
como ele o fez em 1966 e submetê-los à explicitação <strong>de</strong> um campo socialmente<br />
segregado, ou participar, com o público e outros artistas, <strong>de</strong> um<br />
acontecimento como Apo ca li popótese, em 1968 no Aterro do Flamengo 29 ,<br />
configuram um comportamento “guerrilheiro” <strong>de</strong> alguém que, pelo conflito<br />
e pela tensão construtiva, resiste na adversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e fun<strong>da</strong>, a seu modo,<br />
uma outra prática política.<br />
26 JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit.<br />
27 Ibi<strong>de</strong>m. p. 109.<br />
28 OITICICA, Hélio. Op. cit. p. 83.<br />
29 Sobre tais eventos, veja-se FAVARETTO, Celso. A invenção <strong>de</strong> Hélio Oiticica. Op. cit.; e<br />
JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit.<br />
104 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
105<br />
Nildo <strong>da</strong> Mangueira com Parangolé P4, capa 1, 1964.<br />
Lona, filó, náilon e plástico com pigmentos.<br />
Foto <strong>de</strong> Sérgio Zalis, reproduzi<strong>da</strong> do livro CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA.<br />
Hélio Oiticica: cor, imagem, poética. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1996. p. 31.<br />
Parangolé P4, capa 1, 1964.<br />
Lona, filó, náilon e plástico com pigmentos.<br />
Foto do Acervo Projeto HO, reproduzi<strong>da</strong> do livro FAVARETTO, Celso.<br />
A invenção <strong>de</strong> Hélio Oiticica. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2000. p. 109.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O arquiteto e a favela<br />
A julgar pelos brados <strong>de</strong> progresso e renovação que na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
1930 começaram a agitar o país, ninguém duvi<strong>da</strong>ria que, <strong>de</strong> fato, cabia ao<br />
programa <strong>de</strong> racionalização <strong>da</strong> arquitetura mo<strong>de</strong>rna que aqui se praticava,<br />
arregimentar esforços que contribuíssem eficazmente na superação do<br />
nosso recalcitrante sub<strong>de</strong>senvolvimento 30 . O Estado forte e mo<strong>de</strong>rnizador<br />
era o po<strong>de</strong>r empreen<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> que necessitava o “espírito novo” para pôr<br />
em campo suas “utopias socializantes”.<br />
No entanto, passando-se os anos, esta arquitetura do novo homem<br />
acabara revelando-se <strong>de</strong> fato “muito mais institucional e monumental do que<br />
propriamente social” 31 . As promessas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> atravancavam-se na<br />
falta <strong>de</strong> base material, produtiva e social; o caráter refratário <strong>da</strong> cons tru -<br />
ção civil à plena industrialização contrastava com o emprego do concreto<br />
armado — a tecnologia “mais avança<strong>da</strong> do mundo” — que aqui parecia não<br />
ter outra finali<strong>da</strong><strong>de</strong> que aten<strong>de</strong>r a formalismos extremados.<br />
Pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950 — pleno <strong>de</strong>senvolvimentismo,<br />
portanto —, em termos gerais, o quadro que se esboçava no campo <strong>da</strong><br />
arquitetura chamava profissionais e estu<strong>da</strong>ntes a refletir sobre as causas<br />
<strong>da</strong> permanência do atraso, retardo do tão prometido <strong>de</strong>senvolvimento que,<br />
afinal, não vinha nunca. Perguntavam-se sobre seu papel na empreita<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnização do país, solicitavam <strong>de</strong> si mesmos um envolvimento ca<strong>da</strong><br />
vez maior com vínculos político-sociais, impunham-se a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> uma aproximação necessária aos “anseios do povo”.<br />
O temário <strong>da</strong> carência habitacional e do (mal) aproveitamento terri to -<br />
rial foi o foco <strong>de</strong> intensas discussões trava<strong>da</strong>s entre arquitetos, engenheiros,<br />
sociólogos, economistas, assistentes sociais, <strong>de</strong>ntre outros, por ocasião do<br />
Seminário <strong>de</strong> habitação e reforma urbana, <strong>de</strong> 1963.<br />
No entanto, se, por um lado, o <strong>de</strong>bate lograra politizar os compro mis -<br />
sos <strong>da</strong> profissão quanto ao que diz respeito à crise <strong>de</strong> expansão <strong>da</strong>s ci <strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
incluindo os “problemas urbanos” no interior do i<strong>de</strong>ário <strong>da</strong>s reformas <strong>de</strong><br />
base, por outro, estando to<strong>da</strong>via montado sobre os alicerces <strong>de</strong> um projeto<br />
político orientado para a mo<strong>de</strong>rnização nacional, seus termos ain<strong>da</strong> não<br />
eram capazes <strong>de</strong> romper o círculo <strong>de</strong> ferro que circunscrevia a arquitetura<br />
como signo do <strong>de</strong>senvolvimentismo, reiterando a i<strong>de</strong>ologia do plano, ou seja,<br />
a sobreposição inconteste <strong>da</strong> ação direta do Estado planificador, com quem<br />
os técnicos <strong>de</strong>veriam estabelecer aliança para sanar o mal vertiginoso do<br />
inchaço urbano.<br />
30 ARANTES, Otília. Urbanismo em fim <strong>de</strong> linha e outros estudos sobre o colapso <strong>da</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnização arquitetônica. São Paulo: Edusp, 1998.<br />
31 Ibi<strong>de</strong>m. p. 113.<br />
106 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
107<br />
Nesse sentido, durante os anos que antece<strong>de</strong>ram o golpe militar,<br />
con figurações eiva<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ambivalência, entre o interesse (muitas vezes <strong>de</strong><br />
cunho assistencialista) e a con<strong>de</strong>nação, haveriam <strong>de</strong> embeber o que diz<br />
respeito às formas populares <strong>de</strong> inserção urbana. Em relação às favelas,<br />
mais especificamente, ain<strong>da</strong> que seu aumento acelerado não permitisse<br />
mais que fossem <strong>de</strong> todo ignora<strong>da</strong>s, sua presença causava incômodo e <strong>de</strong>sconforto<br />
para po<strong>de</strong>res públicos e profissionais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> habitação:<br />
junto aos discursos e práticas can<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> assistência social, ecoavam, <strong>de</strong><br />
forma análoga, os mesmos brados pelo progresso (e contra o atraso, a <strong>de</strong>smoralização<br />
e a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> gerados pela pobreza urbana) dos anos <strong>de</strong><br />
1930, legitimando muitas <strong>da</strong>s ações truculentas <strong>de</strong> remoção integral <strong>de</strong><br />
favelas ain<strong>da</strong> postas em curso durante os anos <strong>de</strong> 1950 e 1960.<br />
Nestas circunstâncias, as poucas experiências <strong>de</strong> envolvimento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminados arquitetos com o universo <strong>da</strong>s favelas seguiam, também elas,<br />
<strong>de</strong> forma ambivalente: em sua maioria, encontravam-se ain<strong>da</strong> restritas à<br />
esteira caritativa do voluntarismo católico. Por outro lado, no entanto,<br />
construíam-se caminhos possíveis <strong>de</strong> reconhecimento <strong>da</strong> favela como um<br />
espaço legítimo <strong>de</strong> moradia e se estabeleciam vínculos estreitos <strong>de</strong> nature za<br />
política e cultural dos profissionais com as periferias, suas vizinhanças e<br />
organizações comunitárias, numa composição <strong>de</strong> forças que se faria notar<br />
nos movimentos <strong>de</strong> resistência ao autoritarismo que se seguiria.<br />
É, pois, em meio a este cenário <strong>de</strong> confusas angulações que, aos<br />
poucos, se estruturava um campo — ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>veras incipiente, porém po ten -<br />
cialmente novo — <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> disposição para o enfrentamento<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> habitacional popular, pelo qual po<strong>de</strong>mos observar mu<strong>da</strong>nças<br />
importantes na ótica e conduta dos arquitetos. Estes, então ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente<br />
divididos entre a aposta mo<strong>de</strong>rna no progresso social e econômico <strong>da</strong> nação,<br />
e as primeiras e continua<strong>da</strong>s evidências <strong>de</strong> uma crise <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />
projeto <strong>de</strong>senvolvimentista em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> cuja industrialização e<br />
urbanização produziam sempre novos impasses e <strong>de</strong>fasagens, passariam<br />
a reconsi<strong>de</strong>rar a sua função social e cultural no enfrentamento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
populares.<br />
Ain<strong>da</strong> hoje emblemática, a experiência <strong>de</strong> urbanização <strong>da</strong> favela Brás<br />
<strong>de</strong> Pina, no subúrbio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, acontece justamente<br />
neste contexto histórico-político, em que as prefigurações do ofício se am -<br />
pliam, num re<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> seus próprios limites: a história <strong>de</strong> Brás <strong>de</strong> Pina<br />
e dos arquitetos que ali atuaram confun<strong>de</strong>-se com a própria história <strong>da</strong><br />
re<strong>de</strong>finição <strong>da</strong> ação profissional naquele momento, na medi<strong>da</strong> em que se<br />
permitiu questionar — e, em certa medi<strong>da</strong>, também redimensionar — os<br />
territórios tradicionais em que os saberes e as práticas <strong>da</strong> arquitetura e do<br />
urbanismo até então eram erigidos.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Um dos personagens principais <strong>de</strong>sta experiência, duas ou três<br />
palavras sobre a figura <strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos: formado em<br />
1966 pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Arquitetura e Urbanismo <strong>da</strong> Univer si -<br />
<strong>da</strong><strong>de</strong> do Brasil, ain<strong>da</strong> antes <strong>de</strong> graduar-se, acompanhado por colegas que,<br />
como ele, atuavam em política estu<strong>da</strong>ntil, toma contato com estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong><br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina que faziam trabalhos <strong>de</strong> medicina social e sanitária<br />
em algumas favelas do Rio 32 . Através <strong>de</strong>les, conhece lí<strong>de</strong>res comunitários<br />
ligados à Fe<strong>de</strong>ração <strong>da</strong>s Associações <strong>de</strong> Favelas do Estado <strong>da</strong> Guanabara<br />
(Fafeg) 33 . A partir <strong>da</strong>í, ou seja, por volta <strong>de</strong> 1964, começam suas incursões<br />
como assessor técnico a alguns projetos <strong>de</strong> urbanização <strong>de</strong> favelas na ci <strong>da</strong> -<br />
<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Por seu largo envolvimento com o universo complexo<br />
<strong>da</strong>s favelas, acabou enre<strong>da</strong>ndo-se no estudo <strong>de</strong> categorias antropológicas <strong>de</strong><br />
entendimento social — recebeu o título <strong>de</strong> mestre em antropologia social<br />
pelo Museu Nacional <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ),<br />
em 1979. Por conta disso, auto-intitulava-se “antropoteto” 34 .<br />
Seu campo <strong>de</strong> interesse ampliou-se gra<strong>da</strong>tivamente durante sua tra -<br />
jetória como urbanista e pesquisador que foi 35 , partindo <strong>da</strong> problematização<br />
sobre a questão <strong>da</strong>s favelas cariocas, passou à discussão <strong>da</strong> evolução<br />
<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileiras, cuja tônica se centrava no <strong>de</strong>bate sobre a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> terra urbana, chegando à complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s regiões<br />
metropolitanas:<br />
Das favelas e <strong>de</strong> tudo o que vivi com os favelados ou que aprendi<br />
através dos contatos com eles, passei a questionar ca<strong>da</strong> vez mais os<br />
32 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Zahar, 1981.<br />
33 Cria<strong>da</strong> em 1963, como forma <strong>de</strong> gerar, segundo BURGOS, Marcelo Baumann. Dos<br />
par ques proletários ao FavelaBairro: as políticas públicas nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
In: ZALUAR, Alba; AL VITO, Marcos. Um século <strong>de</strong> favela. 3. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora<br />
Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas, 2003. p. 33, “por meio <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> basea<strong>da</strong> tãosomente<br />
nas condições <strong>de</strong> habitação, uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> incorporação política dos<br />
moradores <strong>da</strong>s favelas à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
34 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Como e quando po<strong>de</strong> um arquiteto virar antropólogo?<br />
In: VELHO, Gilberto. O <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: novas perspectivas <strong>de</strong> antropologia<br />
brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Campus, 1980.<br />
35 De 1975 a 1989 (ano <strong>de</strong> sua morte), Carlos Nelson coor<strong>de</strong>nou o Centro <strong>de</strong> Pesquisas<br />
Urbanas — CPU, do <strong>Instituto</strong> Brasileiro <strong>de</strong> Administração Municipal — IBAM, on<strong>de</strong> teve<br />
a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver varia<strong>da</strong>s pesquisas (uma <strong>de</strong>las transformou-se no livro<br />
Quando a rua vira casa, cujo título já diz muito sobre o trabalho) e redigir uma série <strong>de</strong><br />
artigos os mais diversos sobre a temática <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Integrou também o corpo do cente do<br />
<strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> Economia Industrial <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Arquitetura e Urba nismo <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense (PUGLIESI, Sttela<br />
C. S. <strong>de</strong> T. S. Urbani za ção <strong>de</strong> favelas: <strong>de</strong> alternativa à política consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>. Dissertação <strong>de</strong><br />
Mestrado. 2002. 125 p. Dissertação (Mestrado em Tecnologia do Ambiente Construído) —<br />
Escola <strong>de</strong> Enge nha ria <strong>de</strong> São Carlos, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Carlos, 2002.).<br />
108 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
109<br />
conjuntos urbanos como um todo. Afinal, se nas pequenas partes<br />
ha via tantos libelos contra as visões totalizantes […] e autoritárias<br />
dos planejadores urbanos, na<strong>da</strong> me autorizava a acreditar na sua<br />
eficácia para explicar ou resolver problemas como os <strong>da</strong>s enormes<br />
áreas metropolitanas e <strong>de</strong> suas periferias. Fui dirigindo meus enfoques<br />
para estas questões e <strong>de</strong>scobrindo ca<strong>da</strong> vez mais “novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
velhas”, isto é, coisas que só eram surpreen<strong>de</strong>ntes para mim e que<br />
eram mais do que comuns para os que as praticavam. Fui <strong>da</strong>ndo<br />
passa<strong>da</strong>s largas que, paradoxalmente, eram ca<strong>da</strong> vez mais curtas,<br />
pois visavam atingir o <strong>de</strong>talhe, o caso, o milimétrico. 36<br />
A gran<strong>de</strong> questão que alimentava as críticas <strong>de</strong> Carlos Nelson às formas<br />
“ortodoxas” <strong>de</strong> se pensar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> era justamente o fato <strong>de</strong> que o que<br />
se alar<strong>de</strong>ava como “saber urbano”, científico e portanto “seguro”, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
não passava <strong>de</strong> tabula rasa feita <strong>de</strong> um “sem-número <strong>de</strong> particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s”<br />
dissolvi<strong>da</strong>s num todo, a rigor, inexplicável 37 .<br />
Foi buscando “explicações” ou “respostas” — sabi<strong>da</strong>mente inalcançáveis<br />
— para o aumento <strong>da</strong>s manifestações espaciais <strong>da</strong> pobreza urbana<br />
no Brasil que o pesquisador partiu <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> reconhecimento do<br />
indivíduo <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> favela, com seus códigos e padrões singulares 38 , para<br />
um cenário mais amplo, <strong>de</strong> entendimento do indivíduo e <strong>da</strong> favela <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s<br />
áreas metropolitanas, atentando para o seu crescimento <strong>de</strong>scontrolado e<br />
para os processos que contribuíam para sua reprodução.<br />
Daí que a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem antropológica a respeito<br />
<strong>da</strong> dinâmica urbana tenha permitido a Carlos Nelson inverter a or<strong>de</strong>m do<br />
jogo, apostando na observação <strong>da</strong> experiência cotidiana como estratégia<br />
para o entendimento <strong>da</strong> formação <strong>de</strong> complexos arranjos territoriais.<br />
Tal como Oiticica em outro contexto, interessa-nos, portanto, observar<br />
como, em Brás <strong>de</strong> Pina, o arquiteto operou <strong>de</strong> fato esta inversão e repropôs,<br />
através <strong>da</strong> construção compartilha<strong>da</strong> <strong>de</strong> um conhecimento com os próprios<br />
moradores, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apanhar na favela <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> apropriação do espaço, profun<strong>da</strong>mente marca<strong>da</strong>s<br />
pela experiência cotidiana e conflituosa <strong>de</strong> existência na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
36 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Como e quando po<strong>de</strong> um arquiteto virar antropólogo?<br />
Op. cit. p. 43.<br />
37 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
38 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Op. cit.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Carlos Nelson e sua experiência em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Comecei, ca<strong>da</strong> vez mais, a <strong>de</strong>sviar minha atenção <strong>da</strong>s casas, dos sis te -<br />
mas viários dos aglomerados, <strong>da</strong>s soluções <strong>de</strong> esgoto e abasteci men to<br />
<strong>de</strong> água e <strong>de</strong> outros aspectos consi<strong>de</strong>rados do interesse primordial<br />
<strong>de</strong> um urbanista ou arquiteto. […] Fui <strong>de</strong>scobrindo que havia muitos<br />
mundos <strong>de</strong>ntro do que, simplisticamente, eu <strong>de</strong>signava por um só<br />
nome. Fui vendo que algumas ações e maneiras <strong>de</strong> ser ou <strong>de</strong> ver as<br />
coisas que eu classificaria, com rapi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> “aliena<strong>da</strong>s” tinham sentido<br />
<strong>de</strong>ntro dos códigos particulares a que estavam referi<strong>da</strong>s, frente<br />
aos quais, por não saber como me comportar, o alienado era eu. 39<br />
Toma posse em 1961, como governador do Estado <strong>da</strong> Guanabara,<br />
Carlos Lacer<strong>da</strong>, um dos articuladores <strong>da</strong> imposição do Regime Militar, em<br />
1964. Sua política para remoção <strong>de</strong> favelas — basea<strong>da</strong> em argumentos relacionados<br />
a teorias <strong>de</strong> marginali<strong>da</strong><strong>de</strong> urbana e ao medo <strong>de</strong> que to<strong>da</strong> a Amé -<br />
rica Latina seguisse os caminhos comunistas que tomou Cuba — vinha<br />
recebendo expressivos recursos financeiros americanos 40 , via “Aliança para<br />
o Progresso”.<br />
Haviam sido construí<strong>da</strong>s cerca <strong>de</strong> doze mil uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s habitacionais<br />
para receber as populações removi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cinco favelas, <strong>de</strong>ntre elas, Brás<br />
<strong>de</strong> Pina 41 . O <strong>de</strong>stino: Vila Kennedy. Era uma espécie <strong>de</strong> resposta do Estado<br />
ao amadurecimento <strong>da</strong>s organizações populares: remoção <strong>de</strong> eventuais<br />
focos <strong>de</strong> “revolta” e controle social intenso pelas mãos do catolicismo<br />
assistencialista.<br />
Às vésperas do Natal <strong>de</strong> 1964, no entanto, os moradores <strong>de</strong> Brás <strong>de</strong><br />
Pina, razoavelmente organizados, apoiados por alguns membros <strong>da</strong> Igreja<br />
e com respaldo <strong>da</strong> exposição pública na imprensa, ofereceram enorme<br />
resistência à remoção que seria efetua<strong>da</strong> pelo Estado. Ganharam, então,<br />
aliados que muito contribuíram para que se viabilizasse, junto à administração<br />
pública, o projeto <strong>de</strong> urbanização <strong>da</strong> favela, assenta<strong>da</strong> sobre terreno<br />
pantanoso, conquistado através <strong>de</strong> aterros graduais realizados pelos próprios<br />
moradores que, portanto, não tinham construído somente suas casas, mas<br />
também o chão on<strong>de</strong> implantá-las 42 .<br />
Uma <strong>da</strong>s estratégias mobiliza<strong>da</strong> pelos moradores foi constituir um<br />
contra-discurso, certamente político em favor <strong>da</strong> radicação, mas também<br />
construído a partir <strong>de</strong> argumentos técnicos, arquitetônicos e urbanísticos.<br />
39 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
40 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
41 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
42 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
110 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
111<br />
Para tal, o recurso <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> a uma assessoria profissional, por meio<br />
<strong>da</strong> Fafeg, estabeleceria um novo parâmetro <strong>de</strong> intervenção do arquiteto no<br />
enfrentamento do problema <strong>da</strong> favela.<br />
O primeiro projeto urbanístico, elaborado entre 1964 e 65, enco men<strong>da</strong>do<br />
pelos moradores 43 quando Carlos Nelson Ferreira dos Santos e seus<br />
colegas ain<strong>da</strong> eram estu<strong>da</strong>ntes ficou no papel. Cerca <strong>de</strong> dois anos mais tar<strong>de</strong>,<br />
já sob o nome <strong>de</strong> Quadra Arquitetos Associados, o grupo foi recontratado,<br />
<strong>de</strong>ssa vez pelo próprio Estado, para funcionar como assessor, consultor e<br />
executor <strong>de</strong> planos urbanísticos e habitacionais para a Co<strong>de</strong>sco (Compa -<br />
nhia <strong>de</strong> Desenvolvimento <strong>de</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, do governo do ain<strong>da</strong> Estado<br />
<strong>da</strong> Guanabara) 44 .<br />
Foram executados, numa etapa que se seguiu aos levantamentos <strong>de</strong><br />
campo, o <strong>de</strong>smonte e o remanejamento dos barracos e em segui<strong>da</strong> as obras<br />
<strong>de</strong> aterro e a implantação <strong>da</strong> infra-estrutura. Em relação às instalações <strong>da</strong>s<br />
re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água, luz e esgoto, Sueli Azevedo 45 relata que houve sérias dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
em li<strong>da</strong>r com o “convencionalismo” dos técnicos dos órgãos muni -<br />
ci pais respectivamente responsáveis por elas, sobretudo porque a tecnologia<br />
tradicionalmente emprega<strong>da</strong> na “ci<strong>da</strong><strong>de</strong> formal” era incompatível (como,<br />
aliás, ain<strong>da</strong> o é) com a configuração espacial <strong>da</strong> favela.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a urbanização se <strong>de</strong>u na base do empirismo, mas, sur pre -<br />
en<strong>de</strong>ntemente, a gestão do processo revelou-se, então, algo transgressora:<br />
a relação (ou a “parceria”) entre arquiteto e morador se <strong>de</strong>u à maneira,<br />
quase, <strong>de</strong> uma “antiarquitetura” 46 , em que o que havia <strong>de</strong> precário, flexível,<br />
43 A Associação <strong>de</strong> Moradores possuía algum dinheiro arreca<strong>da</strong>do via mensali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
Segundo Carlos Nelson Ferreira dos Santos, o pagamento dos arquitetos vinha <strong>da</strong>í. (SAN-<br />
TOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Op. cit.).<br />
44 Em 1966, assume a gestão do Estado <strong>da</strong> Guanabara o governador Negrão <strong>de</strong> Lima,<br />
suce<strong>de</strong>ndo (e se opondo a) Carlos Lacer<strong>da</strong>. Mesmo em meio ao clima <strong>de</strong> autoritarismo<br />
político e condução violenta <strong>da</strong> política <strong>de</strong> erradicação <strong>de</strong> favelas do governo fe<strong>de</strong>ral,<br />
o novo governador assumiria compromissos <strong>de</strong> “não-remoção” com a população favela<strong>da</strong><br />
do Rio. Brás <strong>de</strong> Pina passaria a fazer parte <strong>de</strong> um esforço (inicial) do governo em<br />
<strong>de</strong>senvolver um trabalho <strong>de</strong> urbanização integrado com os moradores <strong>da</strong>s favelas sob<br />
intervenção. Para executar os planos em vista, o Quadra é chamado <strong>de</strong> volta ao trabalho<br />
(SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Ibi<strong>de</strong>m), sob supervisão <strong>da</strong> Co<strong>de</strong>sco. A Co<strong>de</strong>sco<br />
(Companhia <strong>de</strong> De sen vol vimento <strong>de</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, do governo do Estado <strong>da</strong> Gua na -<br />
ba ra) foi o órgão criado, em 1968, para gerenciar os projetos já em an<strong>da</strong>mento.<br />
Segundo Carlos Nelson Ferreira dos Santos (Ibi<strong>de</strong>m, p. 57), a companhia representaria<br />
naquele momento “uma lufa<strong>da</strong> <strong>de</strong> ar fresco, uma alternativa que, frente às outras, era<br />
<strong>de</strong> um liberalismo extremo”. Seus objetivos seriam enfatizar a importância <strong>da</strong> posse<br />
legal <strong>da</strong> terra, fazer com que os fa velados permanecessem próximos <strong>de</strong> seus lugares<br />
<strong>de</strong> trabalho e garantir sua participação na melhoria dos serviços públicos comunitários<br />
e nos <strong>de</strong>senhos e construção <strong>da</strong>s próprias casas (PERLMAN, Janice. O mito <strong>da</strong><br />
marginali<strong>da</strong><strong>de</strong>: favelas e política no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1977).<br />
45 Em ent<strong>revista</strong> concedi<strong>da</strong> à pesquisadora Sttela Pugliesi (PUGLIESI, Sttela C. S. <strong>de</strong> T. S.<br />
Op. cit.).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
improvisado e inacabado somou-se ao conhecimento dos técnicos através<br />
<strong>de</strong> um largo (e conflituoso) processo <strong>de</strong> participação <strong>da</strong> população. Os<br />
mo radores apresentavam <strong>de</strong>senhos aos técnicos na tentativa <strong>de</strong> compor<br />
um projeto que contivesse um saber <strong>da</strong> casa, ou do morar, que não fosse<br />
puramente acadêmico:<br />
[…] ficou <strong>de</strong>cidido que os próprios moradores trabalhariam em cam po<br />
sob nossa orientação e nos forneceriam o material bruto que in ter -<br />
pretaríamos no escritório. […] Como urbanista nunca tive me lhor<br />
experiência profissional do que a <strong>de</strong>sse tempo em que trabalhamos<br />
tão diretamente com os nossos “clientes”. Ain<strong>da</strong> que parecesse lógico<br />
o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a face<br />
com as pessoas para quem fazem planos. Vivíamos com o escritório<br />
cheio <strong>de</strong> favelados que o invadiam para ver o que fazíamos e ficavam<br />
para discussões que varavam a noite. Era emocionante ir recebendo<br />
aqueles pe<strong>da</strong>ços dos mais diversos papéis e ir vendo um trabalho<br />
que surgia aos poucos. 47<br />
A exposição à favela e ao cotidiano dos moradores foi, para os arquitetos<br />
do Quadra, uma forma (e uma opção) <strong>de</strong> romper com “regras” e<br />
“nor mas” que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre condicionaram o ensino e a prática <strong>da</strong> arquitetura<br />
a estabelecer-se num universo “excelso”, “<strong>de</strong> glórias nacionais, <strong>da</strong><br />
gran<strong>de</strong> ve<strong>de</strong>te” 48 .<br />
À favela e ao favelado — que no mais <strong>da</strong>s vezes transitavam no imaginário<br />
burguês ora como representação pitoresca <strong>da</strong> “cultura popular”<br />
ora como “praga” urbana — lhes foi permitido, mais do que simplesmente<br />
existir, resistir na adversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua existência urbana e requalificar a<br />
prática política que sempre fez do ofício do arquiteto um mero aspecto do<br />
exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
46 “Antiarquitetura” foi o termo que consi<strong>de</strong>ramos a<strong>de</strong>quado empregar para <strong>de</strong>finir o que<br />
naquele momento sequer era “bem visto” pela “classe”: <strong>de</strong> forma geral, o i<strong>de</strong>ário <strong>da</strong><br />
arquitetura estava inserido no i<strong>de</strong>ário do <strong>de</strong>senvolvimento nacional, <strong>de</strong>ntro do qual as<br />
favelas vinham sendo encara<strong>da</strong>s como o produto dramático <strong>de</strong> uma anomalia estrutural<br />
que assolava o país.<br />
47 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Op. cit.<br />
p. 45.<br />
48 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Depoimento <strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos.<br />
(transcrição ví<strong>de</strong>o do IBAM, 1988). In: PUGLIESI, Sttela C. S. <strong>de</strong> T. S. Op. cit.<br />
112 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
113<br />
Arquiteto e morador na Favela Brás <strong>de</strong> Pina.<br />
Planta-tipo <strong>de</strong>senha<strong>da</strong> pelos arquitetos.<br />
Planta <strong>de</strong>senha<strong>da</strong> por moradores.<br />
Fotos do autor, reproduzi<strong>da</strong>s do livro SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos.<br />
Movimentos urbanos no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1981.<br />
p. 31, 69 e 68, respectivamente.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Notas <strong>de</strong> conclusão<br />
As reflexões aqui presentes se <strong>de</strong>senham <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>stacar, em<br />
meio às complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que historicamente vem tomando parte aos processos<br />
<strong>de</strong> conhecimento <strong>da</strong> experiência urbana, as vivências singulares <strong>de</strong><br />
dois personagens que, no mais, envolvidos organicamente com um refazer<br />
contínuo <strong>de</strong> seu ofício mesmo, atravessaram, <strong>de</strong> certa forma, as próprias<br />
estruturas <strong>da</strong><strong>da</strong>s, (re)elaborando problemas e questões acerca do urbano<br />
e do popular no momento preciso em que estas categorias começavam a<br />
<strong>de</strong>stituir-se <strong>de</strong> suas velhas e monolíticas atribuições <strong>de</strong>dutivistas. Envol vi -<br />
dos por uma conjuntura sócio-política (e cultural) que <strong>de</strong> certa forma lhes<br />
suscitava um alargamento (na contramão) <strong>de</strong> (re)interpretações <strong>de</strong> suas<br />
próprias trajetórias na medi<strong>da</strong> em que iam elas mesmas sendo construí<strong>da</strong>s,<br />
parece-nos esta a importância mais efetiva <strong>da</strong>s experiências <strong>de</strong> Hélio<br />
Oiticica e <strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos.<br />
Participante que se verte em participador, o “outro” que se soma e se<br />
faz complementar no exercício do (re)fazer <strong>da</strong> obra artística ou do projeto<br />
arquitetônico-urbanístico <strong>de</strong>svela o contra-mol<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que se <strong>de</strong>senha por diálogos possíveis, por interlocuções necessárias,<br />
repropondo linguagens que se permitam abertas, <strong>de</strong>sconstruindo a<br />
figura aurática do gran<strong>de</strong> conhecedor, do gran<strong>de</strong> autor.<br />
Militantes do ofício, as contribuições <strong>de</strong> Oiticica e <strong>de</strong> Carlos Nelson<br />
à discussão sobre a constituição <strong>de</strong> novas instituições possíveis para novas<br />
práticas possíveis para novos sujeitos possíveis fazem hoje parte <strong>da</strong> história<br />
urbana brasileira <strong>da</strong>ndo cor ao gran<strong>de</strong> campo que os atravessa, artista<br />
e arquiteto: uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alargamento e redimensionamento dos<br />
territórios dos saberes e dos discursos (e <strong>da</strong>s práticas) que processualmente<br />
se constroem acerca <strong>da</strong>s sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s urbanas, suas formas <strong>de</strong><br />
manifestação cultural, seus conflitos e traduções simbólicas e espaciais.<br />
114 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
115<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na<br />
ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle 1<br />
Resumo<br />
Na procura mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> uma linguagem literária que respeitasse a<br />
língua viva fala<strong>da</strong> no Brasil, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> registrou finamente as<br />
falas dos imigrados no país. O choque entre o português e as línguas<br />
“outras” se tornou um recurso estilístico admirável, utilizado <strong>de</strong> diversas<br />
maneiras na apresentação <strong>de</strong> personagens estrangeiros: do aproveitamento<br />
<strong>de</strong> estereótipos nacionais a uma busca <strong>de</strong> correspondência<br />
sociolingüística e psicolingüística do fenômeno <strong>da</strong> integração (no caso<br />
do italiano), até chegar (no caso do alemão e sobretudo do francês) a<br />
um uso sutilíssimo <strong>da</strong> linguagem em sentido psicanalítico, quando os<br />
lapsos pronunciados pelos imigrados em sua própria língua se insinuam<br />
na narração com seus sentidos ocultos, chegando a adquirir uma<br />
vi<strong>da</strong> autônoma e a criar um enredo paralelo ao <strong>da</strong> ação.<br />
Palavras-chave<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ficção, personagens estrangeiros, línguas estrangeiras.<br />
1 Professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma “La Sapienza” (Roma, Itália).<br />
E-mail: pincherl@uniroma3.it<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
“O linguajar multifário”:<br />
strangers and their languages in<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>’s fiction<br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Abstract<br />
In his mo<strong>de</strong>rnist search for a literary language wich could reflect spoken<br />
Brazilian language, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> subtly registered the language<br />
of the strangers in the country. The shock between Portuguese and<br />
other languages became an admirable stylistical resource, which was<br />
used in different ways to present stranger characters: from the use of<br />
national stereotypes to the search for a sociolinguistical and psycholinguistical<br />
correspon<strong>de</strong>nce of the phenomenon of integration, in the case<br />
of Italian, to a subtle use of language in a psychoanalytical sense, in the<br />
case of German and especially French, when the lapsus pronounced<br />
by the immigrants in their mother-tongue enter the narration with<br />
their hid<strong>de</strong>n senses, acquiring a proper life and creating a plot parallel<br />
to the action.<br />
Keywords<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, fiction, stranger characters, foreign languages.<br />
116 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
caráter <strong>da</strong>s línguas<br />
Se conseguir que se escreva brasileiro sem por isso ser caipira, mas<br />
sistematizando erros diários <strong>de</strong> conversação, idiotismos brasileiros<br />
e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri meu <strong>de</strong>stino.<br />
[Carta a Manuel Ban<strong>de</strong>ira, outubro <strong>de</strong> 1924] 2 O<br />
117<br />
Não quis criar língua nenhuma. Apenas pretendi usar os materiais<br />
que a minha terra me <strong>da</strong>va, minha terra do Amazonas ao Prata. […]<br />
A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> empregar os brasileirismos vocabulares não só no<br />
seu exato sentido porém já no sentido translato, metafórico, tal qual eu<br />
fiz. A apropriação subconsciente <strong>da</strong>s palavras, pra que elas te nham<br />
realmente uma função expressiva caracteristicamente nacional.<br />
[…] Ninguém me tirará a convicção […] que se muitos tentarem<br />
também o que eu tento […] muito breve se organizará uma maneira<br />
brasileira <strong>de</strong> expressar, muito pitoresca, psicologiquíssima na sua<br />
2 MORAES, Marcos Antonio <strong>de</strong> (Org.). Correspondência Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> & Manuel<br />
Ban<strong>de</strong>ira. São Paulo: Edusp, IEB, 2000. p. 137.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
lentidão, nova doçura e varie<strong>da</strong><strong>de</strong>, novas melodias bem nasci<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
terra e <strong>da</strong> raça do Brasil. […] o importante é se a<strong>da</strong>ptar, ser lógico<br />
com a sua terra e com seu povo.<br />
[“Postfácio Inédito” a Amar, verbo intransitivo, 1926?] 3<br />
Que contraditório instrumento <strong>de</strong> expressão, esta nossa língua… É<br />
suave, é brilhante, é tudo quanto quisermos, mas dificilmente chega<br />
a ser áspera e agressiva […]. As vêzes me ponho imaginando que ela<br />
ain<strong>da</strong> se assemelha às línguas dos povos primitivos, cujas palavras<br />
são tão vagas, tão ricas <strong>de</strong> significações diversas, que se diria, são<br />
ain<strong>da</strong> virginais emanações do subconsciente.<br />
[“Polêmicas”, artigo <strong>de</strong> 24/XII/1939 no Estado <strong>de</strong> S. Paulo] 4<br />
Nos românticos chegou-se a um “esquecimento” <strong>da</strong> gramática por tuguesa,<br />
que permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico<br />
e sua expressão verbal.<br />
[“O Movimento Mo<strong>de</strong>rnista”, 1942] 5<br />
Não gosto do verso alexandrino em português. Estou convencido que<br />
não é <strong>da</strong> índole <strong>da</strong> nossa língua, nem se afaz ao ritmo do nosso jeito<br />
<strong>de</strong> pensar […].<br />
[Carta a Mansueto Bernardi, 24/XI/1944] 6<br />
Nestas palavras, escritas em momentos e situações diferentes, Mário<br />
<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> estabelece uma estreita ligação entre “fala nacional” e “psicologia<br />
nacional”: “subconsciente”, “índole” e “ser psicológico” são os termos<br />
por ele usados para <strong>de</strong>finir a íntima a<strong>de</strong>são <strong>da</strong> língua ao caráter nacional.<br />
Na procura mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> uma linguagem literária que respeitasse a língua<br />
viva fala<strong>da</strong> no Brasil 7 , Mário registra vivamente um novo rumo na socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
brasileira, iniciado no fim do século prece<strong>de</strong>nte: ca<strong>da</strong> vez mais, vão<br />
formando parte <strong>da</strong> “sua terra e [do] seu povo” inúmeros estrangeiros — e,<br />
com eles, suas línguas.<br />
3 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Amar, verbo intransitivo. 16. ed. São Paulo: Itatiaia, 1989. p. 151-152.<br />
4 I<strong>de</strong>m. O empalhador <strong>de</strong> passarinho. São Paulo: Martins, 1952. p. 176.<br />
5 I<strong>de</strong>m. Aspectos <strong>da</strong> literatura brasileira. 5. ed. São Paulo: Martins, 1974. p. 244.<br />
6 FERNANDEZ, Lygia (Org.). 71 Cartas <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria São<br />
José, 1963. p. 132.<br />
7 Sua pesquisa, aliás, ambicionava reformar não somente a língua literária, mas também<br />
a prosa em geral, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a expressão pessoal (como <strong>de</strong>monstra a grafia <strong>de</strong> suas cartas,<br />
por exemplo) até a prosa ensaística. Vejam-se, entre outros, os artigos reunidos em O<br />
empalhador <strong>de</strong> passarinho: A língua viva e A língua radiofônica (São Paulo: Martins,<br />
1952. p. 211-215; 205-210), e Terminologia musical em ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Música,<br />
doce música. São Paulo: Martins, 1972. p. 56-63.<br />
118 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
119<br />
Num célebre trecho <strong>da</strong> “Carta pras Icamiabas”, Macunaíma <strong>de</strong>screve<br />
o hábito lingüístico dos paulistas — “falam numa língua e escrevem noutra”.<br />
Ao lado <strong>da</strong> “língua <strong>de</strong> Camões” e do “linguajar bárbaro e multifário,<br />
crasso <strong>de</strong> feição e impuro na vernaculi<strong>da</strong><strong>de</strong>” os paulistanos “se enriquecem<br />
do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos<br />
os recantos <strong>da</strong> urbs é versado” 8 . O italiano, e outras línguas, como veremos:<br />
é esta mistura que o autor tenta reconstruir em suas inúmeras facetas.<br />
Mas qual seria o papel específico <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> língua estrangeira por ele<br />
usa<strong>da</strong>? Como se dá a relação entre língua e caráter na representação <strong>da</strong>s<br />
diversas nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s presentes no Brasil?<br />
O exame <strong>da</strong> ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> mostra um paralelo entre<br />
a presença <strong>da</strong> fala “outra” no tecido <strong>da</strong> narração em português e o peso<br />
efetivo do personagem estrangeiro no contexto brasileiro. Ca<strong>da</strong> diferente<br />
modo <strong>de</strong> inserção do imigrante no cotidiano brasileiro correspon<strong>de</strong> a um<br />
diferente modo <strong>de</strong> olhar o país <strong>de</strong> acolhi<strong>da</strong> e com ele estabelecer relações —<br />
portanto, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar interagir a língua-mãe com a do novo país. Mário aproveita<br />
ca<strong>da</strong> triângulo povo-língua-caráter <strong>de</strong> forma matiza<strong>da</strong> e originalíssima,<br />
tornando a presença <strong>da</strong> língua estrangeira — italiano, alemão e francês 9 —<br />
um recurso estilístico precioso, totalmente inédito até então.<br />
O choque entre idiomas diferentes dá lugar a uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> ex pressiva<br />
admirável: vai <strong>da</strong> formulação <strong>de</strong> estereótipos nacionais a uma busca<br />
<strong>de</strong> correspondência sociolingüística e psicolingüística do fenômeno <strong>da</strong> in -<br />
tegração (no caso do italiano), até chegar (no caso do alemão e sobretudo<br />
do francês) a um uso sutilíssimo <strong>da</strong> linguagem no sentido psicanalítico.<br />
Assim acontece quando os lapsos pronunciados por estrangeiros em suas<br />
respectivas línguas se insinuam na narração com sentidos ocultos, logrando<br />
adquirir uma vi<strong>da</strong> autônoma e criar um enredo paralelo ao <strong>da</strong> ação.<br />
Outra característica peculiar do escritor é a <strong>de</strong> citar diretamente seus<br />
personagens estrangeiros em meio à narração, não somente explicitando<br />
o estrito elo entre autor (ou narrador) e personagem, como também ilustrando,<br />
<strong>de</strong> forma mais ampla na literatura nacional, a conjunção profun<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s culturas vin<strong>da</strong>s do exterior com a brasileira.<br />
Falas híbri<strong>da</strong>s num mundo híbrido.<br />
8 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica por Telê<br />
Porto Ancona Lopez. Paris: Coleção Arquivos, 1988. p. 84. [1º edição 1928].<br />
9 O uso do inglês não é acompanhado pela presença marcante <strong>de</strong> personagens estrangeiros<br />
e se limita geralmente à <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> termos próprios <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> (tramway,<br />
bond). Os únicos ingleses que aparecem em Macunaíma são sempre ligados à<br />
aquisição (por compra ou roubo) <strong>de</strong> objetos (a smith-wesson, o whisky, o anzol <strong>de</strong> metal),<br />
quase apoiando a tese <strong>de</strong> Gilberto Freyre sobre uma “mística <strong>da</strong> máquina” liga<strong>da</strong> à<br />
chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> técnicos e comerciantes ingleses no início <strong>da</strong> industrialização brasileira<br />
(FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1948).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O italiano<br />
Numa ágil resenha dos personagens italianos na ficção brasileira dos<br />
séculos XIX e XX, o ensaísta Giorgio Marotti nota que, não se po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> -<br />
fi nir um padrão fixo,<br />
a única coisa que se po<strong>de</strong> dizer do italiano é que ele pertence, <strong>de</strong><br />
uma maneira ou <strong>de</strong> outra, ao mundo do trabalho […]; e isto, que<br />
po<strong>de</strong> parecer óbvio, se não até banal, tem sua importância numa<br />
literatura como a brasileira, tão cheia <strong>de</strong> personagens voltados para<br />
o dolce farniente, sempre inclinados a evitar qualquer possível contato<br />
com o mundo do trabalho. 10<br />
O próprio termo farniente comparece, em Macunaíma, no parágrafo<br />
em que o herói <strong>de</strong>scobre a dupla i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do “regatão peruano” que<br />
lhe roubou a muiraquitã: seu antagonista, o “doutor Venceslau Pietro<br />
Pietra, súbdito do vice-reinado do Peru, e <strong>de</strong> origem francamente florentina,<br />
como os Cavalcântis <strong>de</strong> Pernambuco”, assim <strong>de</strong>scrito na “Carta pras<br />
Icamiabas”, se revela-se, aqui, “o gigante Piaimã comedor <strong>de</strong> gente” 11 .<br />
O traço caricatural do italiano “<strong>de</strong>vorador”, reforçado no episódio<br />
<strong>da</strong> sua morte grotesca, é explicado por Manuel Cavalcanti Proença nesses<br />
termos:<br />
conquanto não exista um antagonismo <strong>de</strong>clarado entre Macunaíma<br />
e o Gigante, pois que este dorme em re<strong>de</strong>, casa com uma Caapora<br />
nacional, tem duas filhas brasileiras, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que Piaimã simboliza<br />
o estrangeiro. Tem espírito prático, tenaci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Começa como<br />
qualquer mascate, regatão nas águas amazônicas, e termina ricaço<br />
com palacete na rua Maranhão […]. Um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro novo-rico. E a<br />
sua última frase, reclamando queijo para a polenta, vale não só<br />
como achado humorístico, é a manifestação <strong>de</strong> uma norma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
o senso prático <strong>da</strong>s coisas. 12<br />
O cultivador <strong>da</strong> preguiça <strong>de</strong>spreza o trabalhador arrivista, porém o<br />
admira a ponto <strong>de</strong> querer emulá-lo. Segundo seus cânones, é certo… ou<br />
seja, trocando a rica coleção <strong>de</strong> pedras do italiano por uma <strong>de</strong> palavrasfeias,<br />
bem menos “pesa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> carregar”.<br />
10 MAROTTI, Giorgio. Il personaggio <strong>de</strong>ll’italiano <strong>de</strong>l romanzo brasiliano <strong>de</strong>ll’Ottocento<br />
e Novecento. Roma: Bulzoni, 1978. p. 8; minha tradução.<br />
11 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Macunaíma. Op. cit. p. 35, 74, 42.<br />
12 CAVALCANTI-PROENÇA, Manuel. Roteiro <strong>de</strong> Macunaíma. São Paulo: Anhembi, 1955.<br />
p. 28.<br />
120 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
121<br />
Outro aspecto, porém, <strong>da</strong> presença dos italianos em São Paulo está<br />
registrado dramaticamente, sempre na “Carta pras Icamiabas”, durante a<br />
caleidoscópica <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> “ci<strong>da</strong><strong>de</strong> macota”. Longe, mas nem tanto, do luxo<br />
em que o gigante vive imerso,<br />
[…] nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão<br />
<strong>de</strong> rapazes e raparigas bulhentos, a que chamamos “italianinhos”;<br />
<strong>de</strong>stinados a alimentarem as fábricas dos áureos potentados,<br />
e a servirem, escravos, o <strong>de</strong>scanso aromático dos Cresos. 13<br />
O modo leve e irônico <strong>da</strong> “Carta”, ain<strong>da</strong> presente no adjetivo “bu -<br />
lhenta”, ce<strong>de</strong> bruscamente o lugar à séria con<strong>de</strong>nação do estado social<br />
<strong>de</strong>sses precoces trabalhadores forçados na indústria do café.<br />
Se o gigante é perfeitamente integrado na vi<strong>da</strong> brasileira, como aponta<br />
Cavalcanti Proença, enquanto parece que os pequenos imigrantes dificilmente<br />
chegarão a sê-lo, a vi<strong>da</strong> dos italianos em seu processo <strong>de</strong> integração<br />
é objeto principal dos Contos <strong>de</strong> Belazarte, a maioria dos quais prece<strong>de</strong><br />
Macunaíma 14 .<br />
Na obra, vários aspectos contribuem para recriar o sentido <strong>de</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
com que, normalmente, eram vistos estes “novos mamelucos” (a<br />
expressão é <strong>de</strong> Alcântara Machado, <strong>de</strong>dicatário do livro).<br />
O próprio papel do narrador Belazarte, contador-<strong>de</strong>-histórias e tes temunha<br />
oral dum mundo popular, é uma forma <strong>de</strong> avizinhamento ao leitor.<br />
Os diferentes acontecimentos são constantemente postos em dia e seus<br />
pro tagonistas relembrados pelo narrador, sempre no registro coloquial<br />
(“Você se lembra <strong>de</strong> João? Ara, se lembra! o pa<strong>de</strong>iro que…”; “Você in<strong>da</strong><br />
está lembrado <strong>de</strong> Teresinha? aquela uma, etc”); outra vez, o autor é explicitamente<br />
posto em jogo pelo narrador numa representação realística<br />
(“Você é músico […], por isso há <strong>de</strong> se divertir com isso”).<br />
Desta forma, é como se os personagens, além <strong>de</strong> terem um <strong>de</strong>stino<br />
individual ligado às histórias pessoais <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, vivenciassem um “<strong>de</strong>stino<br />
coletivo”, construído no âmago <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> obra.<br />
13 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Macunaíma. Op. cit. p. 83.<br />
14 Os contos <strong>de</strong> Belazarte foram escritos entre 1923 e 1926; a coletânea foi publica<strong>da</strong><br />
numa primeira edição em 1934. Consultei a edição <strong>de</strong> ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Os contos<br />
<strong>de</strong> Belazarte. São Paulo: Itatiaia, 1980. Para um perfil dos italianos no contexto político-social<br />
dos anos 1920, veja-se o ensaio <strong>de</strong> CARELLI, Mario. Carcamanos e comen<strong>da</strong>dores:<br />
os italianos em São Paulo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> à ficção. 1919-1930. São Paulo: Ática,<br />
1985. A panorâmica literária relativa é interessante, abrangendo os mais diversos<br />
gêneros, embora algumas observações — como o suposto maior racismo <strong>de</strong> Mário<br />
comparado com certa “participação” <strong>de</strong> Alcântara Machado sejam discutíveis além <strong>de</strong><br />
não prova<strong>da</strong>s. Por exemplo, o termo “carcamana”, con<strong>de</strong>nado em Mário, comparece<br />
em Alcântara Machado (abrindo o conto “A Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”), sem que aqui, porém, o autor<br />
seja acusado <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir a visão xenófoba <strong>de</strong> seus personagens.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Embora <strong>de</strong>scritos em sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, seu temperamento e suas<br />
relações afetivas próprias, estes imigrantes são encarnações literárias do<br />
estereótipo nacional que se criou aos poucos na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: trabalhadores, ale -<br />
gres, cheios <strong>de</strong> uma paixão que po<strong>de</strong> chegar a tornar-se violência. Porém,<br />
sua italiani<strong>da</strong><strong>de</strong>, por si resumível a singulares traços, tem uma função dife -<br />
rente em ca<strong>da</strong> conto, constituindo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> um mero fator <strong>de</strong> caracterização<br />
exterior até um fator <strong>de</strong>cisivo no <strong>de</strong>senvolvimento do enredo.<br />
Por exemplo, a italiani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Carmela, protagonista <strong>de</strong> “Jaburu<br />
ma landro” (1924), reduz-se à <strong>de</strong>scrição física — “era moça bonita, isso era,<br />
dêsses tipos <strong>de</strong> italiana que envelhecem muito cedo, isto é, envelhecem não,<br />
engor<strong>da</strong>m, ficam chatas, enjoativas” 15 —, enquanto sua índole, seu comportamento<br />
e sua história são em tudo análogos aos <strong>de</strong> Rosa, a protagonista<br />
<strong>de</strong> “O besouro e a Rosa” (1923), cuja nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> não é menciona<strong>da</strong>. Até o<br />
epílogo é o mesmo: “Rosa foi muito infeliz”, “só sei que Car mela foi muito<br />
infeliz”. Nenhum nexo explícito entre a origem e o <strong>de</strong>stino.<br />
Ao contrário, em “Caim, Caim e o resto” (1924), a naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />
protagonistas é <strong>de</strong>terminante na narração <strong>de</strong> um duplo <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> paixão,<br />
tema <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre associado ao mundo itálico 16 .<br />
A relação entre os irmãos Aldo e Tino, “sempre tão irmãos um do<br />
outro”, <strong>de</strong>teriora-se até que Tino é morto. Aldo fica livre por legítima <strong>de</strong>fesa,<br />
“mas o caso não terminou”: ele é por sua vez encontrado morto. A polícia<br />
pren<strong>de</strong> Alfredo, marido <strong>de</strong> Teresinha, <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> a cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s duas crianças<br />
junto com a sogra, a qual “adivinhava muito, com instinto <strong>de</strong> mãe, e odiava<br />
a moça”. Teresinha voltará, no sexto conto, como a mulher que, num<br />
telegráfico resumo do prece<strong>de</strong>nte, “assassinou dois homens por tabela, os<br />
irmãos Aldo e Tino”.<br />
No enredo que soma um fratricídio por ciúmes a um <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> honra,<br />
o <strong>de</strong>senvolvimento do melodrama é constantemente acompanhado por<br />
ex plícitas referências ao ambiente italiano.<br />
Os muitos traços exteriores típicos — os nomes, a <strong>de</strong>voção familiar,<br />
referências mais específicas à vi<strong>da</strong> ítalo-paulista, como os nomes dos jogadores<br />
do Palestra Italia ou os jornais (o Fanfulla, “fascista e anticlerical”)<br />
— são acompanhados <strong>de</strong> traços caracterizadores geralmente associados aos<br />
italianos, como o lado artístico (musical) e a índole impulsiva, no bem e<br />
no mal. Tais aspectos são sempre sublinhados pela presença <strong>da</strong> língua italiana,<br />
que garante sua origem, como um marco registrado:<br />
15 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Os contos <strong>de</strong> Belazarte. Op. cit. p. 27.<br />
16 Veja-se por exemplo o análogo conto <strong>de</strong> Alcântara Machado com personagens italianos,<br />
Amor e sangue, cujo título já dispensa qualquer resumo (MACHADO, Antônio <strong>de</strong> Al -<br />
cântara. Brás, Bexiga e Barra Fun<strong>da</strong>: notícias <strong>de</strong> São Paulo. São Paulo: Editorial Hélios,<br />
1927. Agora em MACHADO, Antônio <strong>de</strong> Alcântara. Novelas paulistanas. Rio <strong>de</strong> Ja nei ro;<br />
Belo Horizonte: Garnier, 1994).<br />
122 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
123<br />
[Tino] cantava com voz fraca a “Mamma mia” num napolitano<br />
duvidoso do bairro <strong>da</strong> Lapa. […] Aldo junto <strong>da</strong> janela sentia-se or -<br />
gu lhoso si algum passante parava escutando<br />
Era só ca<strong>da</strong> um chegar até no meio <strong>da</strong> rua, pronto: se abraçavam<br />
chorando, “Fratello!…”<br />
Chegaram em casa e dito-e-feito: brigaram medonhamente. Porca<br />
la miseria, <strong>da</strong>va medo! 17<br />
Cabe ressaltar que aqui, como em vários outros momentos na obra,<br />
o idioma estrangeiro é absorvido pela fala do narrador, com intenções<br />
expressivas: uma espécie <strong>de</strong> citação lingüística caracterizante, ou seja, italianismos<br />
que contribuem para assinalar o ambiente <strong>de</strong> maneira mais eficaz<br />
e imediata que qualquer <strong>de</strong>scrição. Ao mesmo tempo, esta penetração nos<br />
dá uma idéia <strong>de</strong> quão facilmente o italiano podia insinuar-se na língua dos<br />
brasileiros.<br />
Em “Piá não sofre? Sofre” (1926), continuação <strong>de</strong> “Caim, Caim e o<br />
resto”, a caracterização italiana dos personagens entra <strong>de</strong> novo muito mar -<br />
ginalmente no conto, contrariamente a seu antece<strong>de</strong>nte. Aqui, a violência<br />
verbal entre Teresinha e a sogra fun<strong>da</strong>-se em suas condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e em<br />
razões emocionais, na<strong>da</strong> tendo a ver com uma impetuosi<strong>da</strong><strong>de</strong> intrínseca<br />
em seus caracteres. Mas <strong>de</strong>ntre as várias ofensas emergem os recíprocos<br />
preconceitos: “filha <strong>de</strong> negro” uma, “carcamana porca” a outra. Pelo contrário,<br />
na trágica <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do “piá” em questão, Paulino (o único<br />
filho que sobrou a Teresinha <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> morte do maior), e sua <strong>de</strong>scoberta<br />
do amor e dos afetos através <strong>da</strong> fome e <strong>da</strong> miséria, não cabem o estereótipo<br />
ou a notação <strong>de</strong> costume: o menino na<strong>da</strong> tem <strong>de</strong> tipicamente italiano, à<br />
parte o diminutivo “-ino”. As poucas palavras, <strong>de</strong> afeto ou <strong>de</strong> repreensão,<br />
que lhe dirigiam em italiano <strong>de</strong>sapareceram há tempo, ou vão <strong>de</strong>ixando<br />
espaço ao abandono e à fome:<br />
e o Paulino faziam já quatro anos, dos oito meses <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> até agora,<br />
que não sabia o que era calor <strong>de</strong> peito com seio, dois braços apertando<br />
a gente, uma palavra “figliuolo mio” vin<strong>da</strong> em cima <strong>de</strong>sta<br />
gostosura […]. Paulino sobrava naquela casa<br />
— Stá zito, guaglion!<br />
Que “stá zito” na<strong>da</strong>! fome vinha apertando… 18<br />
17 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Os contos <strong>de</strong> Belazarte. Op. cit. p. 52, 55, 56.<br />
18 Ibi<strong>de</strong>m. p. 109, 110.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Aqui, a minúscula imperfeição do termo “guaglione”, significando<br />
“piá”, “moleque”, lexicalmente ligado à área napolitana, mas com o inverossímil<br />
truncamento —on típico do Veneto (correto seria guaglio’), mostra<br />
uma <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> língua italiana por parte <strong>de</strong> Mário diretamente através<br />
<strong>da</strong> mistura dos dialetos falados na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma aprendizagem feita na rua<br />
e “bricola<strong>da</strong>” longe do ambiente livresco. Quanto à grafia, esta oscila entre<br />
a correta italiana (gl para a pronúncia lh) e a portuguesa (zito para zitto).<br />
Em “Menina <strong>de</strong> olho no fundo” (1925), a italiani<strong>da</strong><strong>de</strong> dos personagens<br />
tem papéis ain<strong>da</strong> diferentes: elemento <strong>de</strong> caracterização realística e<br />
original observação <strong>de</strong> tipo sociológico, na <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Dolores, a menina em questão; traço abertamente caricatural na do Maes tro<br />
Marchese, outro “<strong>de</strong>vorador” <strong>de</strong> sucesso.<br />
O enredo: a lin<strong>da</strong> Dolores, apaixona<strong>da</strong> pelo professor <strong>de</strong> violino, Go -<br />
mes, cria boatos em torno <strong>de</strong>les dois; como resultado, o Maestro Mar che se,<br />
diretor <strong>da</strong> escola <strong>de</strong> música, obriga Gomes a se <strong>de</strong>mitir.<br />
Na figura <strong>de</strong> Dolores emerge um traço até agora não <strong>de</strong>stacado nos<br />
ítalo-paulistas: a vonta<strong>de</strong>, por parte <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> geração <strong>de</strong> imigrantes, <strong>de</strong><br />
serem assimilados como brasileiros. A menina<br />
<strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> nossa raça não tinha na<strong>da</strong>, porém se po<strong>de</strong> afirmar que<br />
tinha o <strong>de</strong>mais porque não havia ninguém mais brasileiro que ela.<br />
Falassem mal do Brasil perto <strong>de</strong>la pra ver o que sucedia! Desba ra -<br />
tava logo com o amaldiçoado que vem comer o pão <strong>da</strong> gente, agora!<br />
praquê não ficou lá na sua terra morrendo <strong>de</strong> fome! 19<br />
Nasce um novo patriotismo. Os filhos dos imigrantes, já totalmente<br />
alheios à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu país <strong>de</strong> origem, renegam a “pátria” dos pais para<br />
a<strong>de</strong>rirem à ótica do país em que nasceram, chegando ao paradoxo <strong>de</strong> apo<strong>de</strong>rar-se<br />
(distorcendo-os comicamente) dos lugares-comuns mais difusos<br />
a respeito dos estrangeiros e <strong>de</strong> sua nação: a Itália é um país <strong>de</strong> assassinos,<br />
cuja <strong>de</strong>caí<strong>da</strong> beleza se reduz a “uma porcaria<strong>da</strong> <strong>de</strong> casas velhas” e não po<strong>de</strong><br />
sustentar o confronto com “ca<strong>da</strong> amor <strong>de</strong> bangalôzinho” <strong>da</strong> capital paulista.<br />
Basta reler a apresentação do Maestro Marchese (“maestro uma<br />
ova”, corrige o narrador) para notar a enorme diferença entre o tratamento<br />
<strong>de</strong>ste personagem e o uso dos traços italianos: numa linguagem popularesca,<br />
tomando distância dos ambientes <strong>de</strong>scritos, Belazarte mostra todos<br />
os elementos ridículos ou grotescos <strong>da</strong> ascensão social do “rei <strong>da</strong> música<br />
19 Ibi<strong>de</strong>m. p. 65. Aqui também po<strong>de</strong> ser interessante um paralelo com um conto análogo<br />
<strong>de</strong> Alcântara Machado, “Tiro-<strong>de</strong>-guerra” n. 35, sempre em MACHADO, Antônio <strong>de</strong> Al -<br />
cântara. Brás, Bexiga e Barra Fun<strong>da</strong>: notícias <strong>de</strong> São Paulo. Op. cit.<br />
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125<br />
do Brás […] brilhantão no <strong>de</strong>do e quatro marchesinhos com bastante ma -<br />
carrão na barriga lá em casa”.<br />
Se o arrivismo, a arrogância, a exibição <strong>da</strong> riqueza e <strong>da</strong> posição eleva<strong>da</strong><br />
são características que po<strong>de</strong>m pertencer a qualquer novo-rico, seja<br />
qual for sua nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, aqui elas são reforça<strong>da</strong>s pela linguagem usa<strong>da</strong><br />
pelo próprio personagem, uma forte mistura <strong>de</strong> italiano e português, que<br />
lembra constantemente sua origem e o contraste entre esta, a nova condição<br />
<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e a nova respeitabili<strong>da</strong><strong>de</strong> adquiri<strong>da</strong>. A suntuosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do personagem<br />
emergirá sobretudo no diálogo <strong>de</strong>cisivo com Gomes, que terminará<br />
com a <strong>de</strong>missão do coitado.<br />
Sutilmente, o hibridismo lingüístico na fala do Maestro, longe <strong>de</strong> ser<br />
mecanicamente registra<strong>da</strong> e padroniza<strong>da</strong>, é proporcional às emoções prova<strong>da</strong>s,<br />
sejam elas <strong>de</strong> enervamento, ou preocupação ou, simetricamente, <strong>de</strong><br />
alívio. Nos momentos em que é posto em cheque seu interesse e sua reputação,<br />
comprometi<strong>da</strong> por um eventual escân<strong>da</strong>lo, o professor passa fran ca -<br />
mente ao italiano:<br />
sono un povero uomo con quatro figliuoli in casa, si! […]. Sono inrovinato,<br />
Dio santo! 20<br />
e o mesmo acontece no momento em que se sente livre <strong>de</strong>sse peso<br />
enorme, quando Gomes aceita <strong>de</strong>mitir-se:<br />
Ma il Giacomo paga tutta la mensalitá. Tante grazie, signor professore,<br />
tante grazie!… Á rive<strong>de</strong>rlo! 21<br />
Quanto a algumas <strong>de</strong>stas imprecisas construções bilíngües, como<br />
“sono inrovinato” ou “mensalità” (correto seria sono rovinato e mensilità)<br />
ou os mais complexos híbridos “pra la signorina tocare” ou “man<strong>da</strong>re la<br />
ragazza s’imbora”, se é bem dúbia sua verossimilhança na fala <strong>de</strong> um italiano,<br />
é inegável sua eficácia expressiva em um autor brasileiro o qual se<br />
dirige a um público que bem <strong>de</strong>via ter presente o ambiente em que mesclas<br />
parecidos iam se formando.<br />
Estamos na presença <strong>de</strong> um amplíssimo leque <strong>de</strong> interferências lingüísticas,<br />
que vai <strong>de</strong> uma fala portuguesa com elementos italianos a uma<br />
fala integralmente italiana, em que as misturas, embora imperfeitas do ponto<br />
<strong>de</strong> vista idiomático ou morfossintático, são incrivelmente pertinentes do<br />
ponto <strong>de</strong> vista psicolingüístico; logo, eficacíssimas no plano estilístico 22 .<br />
20 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Os contos <strong>de</strong> Belazarte. Op. cit. p. 80.<br />
21 Ibi<strong>de</strong>m. p. 81.<br />
22 Para outras observações a respeito do uso <strong>da</strong> língua italiana nos contos <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Alcântara Machado, incluindo uma análise dos “erros” cometidos pelos<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O alemão<br />
Bem diferente é o uso que Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> faz <strong>da</strong> língua alemã.<br />
Este reflete, por um lado, o tipo <strong>de</strong> integração dos alemães no Brasil e, por<br />
outro, o próprio interesse <strong>de</strong> Mário pelo idioma estrangeiro.<br />
Se compara<strong>da</strong> com a presença dos italianos na região paulista, a<br />
presença <strong>de</strong> colônias alemãs no sul do Brasil tinha um caráter bem mais<br />
fechado, tornando a integração muito mais lenta e parcial. Como escreveu<br />
Roger Basti<strong>de</strong>, “isolados numa região semi<strong>de</strong>serta, sem estra<strong>da</strong>s, sem<br />
escolas, era evi<strong>de</strong>nte que estes grupos <strong>de</strong> alemães tornariam a formar uma<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> alemã, mantendo o idioma e parte dos costumes […]” 23 .<br />
Do lado brasileiro, o avizinhamento à cultura alemã, a partir do<br />
Romantismo, sempre foi uma questão <strong>de</strong> interesses individuais que con -<br />
cer nira quase exclusivamente a uma elite intelectual, mais do que um<br />
fenômeno difuso — contrariamente ao que acontecia com a língua francesa,<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> pela boa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> um indispensável complemento <strong>da</strong><br />
educação.<br />
Quanto ao próprio Mário, sua <strong>de</strong>dicação sistemática ao alemão é<br />
motiva<strong>da</strong>, segundo suas <strong>de</strong>clarações, pela resolução <strong>de</strong> se “<strong>de</strong>sintoxicar do<br />
exagerado francesismo do [seu] ser” 24 . Por um lado, a leitura dos clássicos,<br />
mas também as novas correntes <strong>da</strong> literatura, <strong>da</strong> música, <strong>da</strong>s artes plásticas,<br />
com <strong>de</strong>staque para o Expressionismo; por outro lado, o ensaísmo: Freud e<br />
os estudos sobre folclore — <strong>de</strong> fato, observa Telê Porto Ancona Lopez, foi<br />
“graças a seu conhecimento do alemão que chegou ao lendário <strong>de</strong> Macu -<br />
naí ma em Vom Roroima zum Orinoco <strong>de</strong> Theodor Koch-Grünberg” 25 .<br />
Amar, verbo intransitivo, <strong>de</strong> 1927, refletirá, tanto em seu tema como<br />
em sua feição, estes dois aspectos <strong>da</strong> relação entre o mundo brasileiro e o<br />
germânico: o relativo isolamento <strong>de</strong>ste (mesmo nas condições <strong>da</strong> metrópole<br />
paulista, bem diferentes <strong>da</strong>s do Sul do país) e o aproveitamento cultural<br />
por parte <strong>da</strong>quele.<br />
Às técnicas e às temáticas expressionistas a obra <strong>de</strong>ve, sempre se -<br />
gun do Telê Ancona Lopez, a construção narrativa “quebra<strong>da</strong>”, a escolha <strong>de</strong><br />
autores, eficazes porém no plano expressivo, veja-se meu artigo PINCHERLE, Maria<br />
Caterina. Parlo assim para facilitar — La lingua italiana nelle Novelas Paulistanas e nei<br />
Contos <strong>de</strong> Belazarte. Revista <strong>de</strong> Italianística, São Paulo, p. 9-27, 2006.<br />
23 BASTIDE, Roger. Brasil, terra <strong>de</strong> contrastes. São Paulo; Rio <strong>de</strong> Janeiro: Difel, 1980. p.<br />
190-191.<br />
24 Teutos mas músicos. (Artigo para O Estado <strong>de</strong> São Paulo <strong>de</strong> 1939). Agora em ANDRADE,<br />
Mário <strong>de</strong>. Música doce música. Op. cit. p. 314-318 (p. 314-315).<br />
25 LOPEZ, Telê Porto A. Uma difícil conjugação [introdução]. In: ANDRADE, Mário <strong>de</strong>.<br />
Amar, verbo intransitivo. Op. cit. p. 37. Daqui em diante, as citações do romance remetem<br />
a esta edição.<br />
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127<br />
uma protagonista <strong>de</strong> certo modo marginal (mulher e estrangeira), a atenção<br />
à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> interior do indivíduo, mais que à ação e aos fatos exteriores 26 .<br />
A construção caracterial e psicológica <strong>da</strong> protagonista Elza, chama<strong>da</strong><br />
Fräulein, imigra<strong>da</strong> no Brasil para escapar às <strong>de</strong>sastrosas condições <strong>de</strong><br />
vi<strong>da</strong> do pós-guerra no seu país, é forja<strong>da</strong> por Mário através dos canais cultos,<br />
mas também do convívio com grupos fechados <strong>de</strong> imigrantes em São<br />
Paulo, em particular com suas professoras <strong>de</strong> alemão, cujos hábitos lhe<br />
oferecem até achados curiosos para a narrativa 27 .<br />
O narrador atento, por vezes irônico, que acessa o universo interior<br />
<strong>de</strong> Fräulein e o esclarece para nós, adota um esquema móvel, uma bipartição<br />
flexível, utilizando o método “musical” do Leitmotiv (wagneriano!) e<br />
<strong>de</strong> sua variação. As características nacionais alemãs são resumi<strong>da</strong>s na<br />
dupla <strong>de</strong>finição-tema do “homem-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>” (o tipo a<strong>da</strong>ptável, “espécie prática<br />
do homem-do-mundo que Sócrates se dizia”) e do “homem-do-sonho”<br />
(“trapalhão, obscuro, nostalgicamente filósofo, religioso, i<strong>de</strong>alista incorrigível,<br />
muito sério, agarrado à pátria, com a família, sincero e 120 quilos”),<br />
que cultiva <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si os valores autenticamente germânicos. A convivência<br />
entre os dois tipos é pacífica: “Se a<strong>da</strong>pta o homem-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>, faz muito<br />
bem. E se eu pu<strong>de</strong>sse fazia o mesmo, e você, leitor. […] Porém o homemdo-sonho<br />
permanece intacto” 28 .<br />
Ca<strong>da</strong> novo comportamento peculiar <strong>da</strong> protagonista é reconduzido<br />
a um <strong>de</strong>sses dois aspectos, integrando a <strong>de</strong>finição <strong>da</strong>s duas expressões<br />
recorrentes, motivos condutores <strong>da</strong> narração que vão se enriquecendo aos<br />
poucos <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes 29 .<br />
Normalmente, na relação <strong>de</strong> Fräulein com os brasileiros ou os ou tros<br />
estrangeiros, o homem-do-sonho é responsável pelo isolamento, enquanto<br />
26 Um estudo aprofun<strong>da</strong>do sobre a relação do Mário com o Expressionismo foi <strong>de</strong>senvol -<br />
vido por Rosângela Asche <strong>de</strong> Paula, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> equipe Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> do <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Estudos</strong> <strong>Brasileiros</strong> <strong>da</strong> <strong>USP</strong>, abrindo novos caminhos na análise <strong>da</strong> obra do escritor.<br />
27 Por exemplo, a singular idéia <strong>de</strong> Fräulein <strong>de</strong> memorizar o dicionário bilíngüe antes <strong>de</strong><br />
viajar para o Brasil não é pura invenção do autor: em Teutos mas músicos (ANDRADE,<br />
Mário <strong>de</strong>. Música doce música. Op. cit. p. 315) ele <strong>de</strong>screve sua se gun<strong>da</strong> professora <strong>de</strong><br />
alemão como uma “moça recém-chega<strong>da</strong>” cujo “primeiro ato <strong>de</strong> vin<strong>da</strong>” fora exatamente<br />
o <strong>de</strong> “comprar o dicionário alemão-português <strong>de</strong> Michaelis” e <strong>de</strong>corá-lo… Sempre no<br />
mesmo artigo (p. 314-317), Mário evoca vivi<strong>da</strong>mente as reuniões entre alemães <strong>da</strong>s<br />
quais participara, e cuja atmosfera reconstrói no romance.<br />
28 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Amar, verbo intransitivo. Op. cit. p. 59-60. Nem sempre os<br />
aspectos <strong>de</strong>scritos são positivos: às convicções íntimas <strong>da</strong> superiori <strong>da</strong> <strong>de</strong> alemã, próprias<br />
do homem-do-sonho, é reconduzível a i<strong>de</strong>ologia agressivamente na cionalista que irá<br />
abrir o caminho para o nazismo. Ver as p. 60-61 e 63 do romance.<br />
29 O <strong>de</strong>vaneio amoroso <strong>de</strong> Fräulein também é submetido ao método <strong>da</strong> variação: a singular<br />
figura do amado, ca<strong>da</strong> vez mais pormenoriza<strong>da</strong>, é completa<strong>da</strong> aos poucos com os<br />
<strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do casal (vejam-se ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Amar, verbo intransitivo.<br />
Op. cit. p. 50-51, 63, 64, 84, 120). Algumas vezes, o sonho se fun<strong>de</strong> com a imagem <strong>de</strong><br />
Carlos (p. 75, 120, 139) ou é permeado <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (p. 146).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
o homem-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong> permite certa forma <strong>de</strong> integração. Mas o perfeito equilíbrio,<br />
a síntese, entre as duas “almas” será atingido por Fräulein na elaboração<br />
<strong>de</strong> seu método <strong>de</strong> trabalho, em que ela consegue transformar sua<br />
prosaica tarefa <strong>de</strong> iniciadora <strong>de</strong> adolescentes no sexo, disfarça<strong>da</strong> <strong>de</strong> professora<br />
<strong>de</strong> alemão e <strong>de</strong> piano, na missão <strong>de</strong> “professora <strong>de</strong> amor”.<br />
Seu alvo é elevar espiritualmente seu “aluno” Carlos, suscitando<br />
nele o amor por uma mulher i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong> — ela mesma, Fräulein. Os recursos<br />
<strong>da</strong> cultura alemã atentamente selecionados, como os Lie<strong>de</strong>r e a poesia<br />
dos românticos, e a própria língua <strong>da</strong> professora, nunca permea<strong>da</strong> (como<br />
no caso dos italianos) pela língua do país <strong>de</strong> acolhi<strong>da</strong>, saem do refúgio<br />
interior do homem-do-sonho, passando a “instrumentos <strong>de</strong> trabalho”. A<br />
ma nobra <strong>de</strong> sedução funciona: Carlos se apaixonará por ela durante as<br />
aulas <strong>de</strong> alemão.<br />
Mergulhando seja nas ações seja nos pensamentos profundos <strong>da</strong><br />
protagonista, é inevitável que o narrador, este sim, aproveite sua língua:<br />
<strong>da</strong>do o movimento “íntimo” <strong>de</strong> penetração <strong>da</strong> alma, será obviamente ressaltado<br />
sempre o elemento conotativo <strong>da</strong>s palavras mais que o <strong>de</strong>notativo.<br />
O gênero dos termos germânicos, por exemplo, é esclarecedor do modo <strong>de</strong><br />
sentir dos alemães: observa-se que “a pátria em alemão é neutro. Das<br />
Vaterland. Será!”, e o fato <strong>de</strong> ser “a morte […] masculina pros que pensam<br />
em alemão, <strong>de</strong>r Tod”, parece apontar para seu hábito <strong>de</strong> enfrentá-la mais<br />
virilmente.<br />
Mas há um uso ain<strong>da</strong> mais profundo <strong>da</strong> língua no seu aspecto “privado”:<br />
o recurso psicanalítico, freudiano, ao lapso como a um sinal revelador<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos ou medos inconscientes dos protagonistas. Dado que as<br />
lições <strong>de</strong> alemão coinci<strong>de</strong>m com as aulas <strong>de</strong> amor, é natural que Fräulein<br />
aproveite o ato <strong>da</strong> correção como um instrumento <strong>de</strong> aproximação e cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
criando um contato sensual com seu aluno. E, sutilmente, o autor<br />
escolhe termos significativos para sublinhar o momento crucial.<br />
Os lapsos se verificam com as expressões in seiner Tiefe ruht (na sua<br />
profun<strong>de</strong>z jaz[em]), Sehnsucht (<strong>de</strong>sejo; sau<strong>da</strong><strong>de</strong>) e Geheimnis (segredo). Vale<br />
a pena ver como funciona progressivamente o movimento <strong>de</strong> enlace e <strong>de</strong> -<br />
senlace nos três casos.<br />
“In seiner Tiefe ruht” é o verso final <strong>de</strong> um poema <strong>de</strong> Heine que<br />
Fräulein dita a Carlos. Enquanto ela dita, torna-se consciente <strong>da</strong> atração que<br />
sente por ele; Carlos, por sua vez, aparece confuso e perturbado e só <strong>de</strong>seja<br />
o fim <strong>da</strong> aula. Mas, na distração e na pressa, escreve “Tiefe ruth” 30 . Fräulein<br />
<strong>de</strong>sfruta o momento para se aproximar <strong>de</strong>le e guiar sua mão na escritura,<br />
criando assim o primeiro contato sensual com ele. O cumprimento <strong>da</strong><br />
30 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Amar, verbo intransitivo. Op. cit. p. 73.<br />
128 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
129<br />
correção chega como uma liberação para o embaraçado Carlos, e a “solução”<br />
tem o duplo sentido <strong>de</strong> “resposta exata” e <strong>de</strong> “<strong>de</strong>satamento” do nó em que<br />
ele se encontrava preso. O significado <strong>da</strong> frase, antes obscurecido pela grafia<br />
erra<strong>da</strong>, reemerge com sua mensagem tranqüilizadora <strong>de</strong> “profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
e “sossego”.<br />
Uma cena análoga se repete durante a aula seguinte, em que o ter -<br />
mo em questão é “Senhnsucht”. À inquietação do rapaz — “Senhnsucht tinha<br />
agá ou não?” — Fräulein aproxima-se (“assim, não é pra intrigar, porém ele<br />
ficava abraçado”), mas ele se afasta bruscamente. A professora insiste para<br />
que ele recomece a escrever: “Voltaram pras ca<strong>de</strong>iras. Muito unidos agora.<br />
De propósito. Sabiam que estavam unidos <strong>de</strong> propósito. Amantes e confessados.<br />
Sehnsucht tinha agá.” 31 A cena se conclui com o primeiro beijo.<br />
Nos dois casos, a palavra correta põe fim a um momento <strong>de</strong> forte<br />
tensão. Mas além <strong>de</strong>sta função narrativa, há sempre um valor simbólico<br />
dos termos alemães, encerrado em seu próprio significado. O aluno <strong>de</strong> alemão<br />
e <strong>de</strong> amor é ain<strong>da</strong> um principiante em ambos os domínios: sua hesitação<br />
sobre a grafia <strong>da</strong>s palavras correspon<strong>de</strong> ao fato <strong>de</strong> que ele ignora seu<br />
sentido real, <strong>da</strong> mesma forma que não enten<strong>de</strong> a natureza dos próprios<br />
sentimentos. Ignora o “sossego nas profun<strong>de</strong>zas” do sentimento por Fräu -<br />
lein e que este sentimento é “<strong>de</strong>sejo”. Seu guia, conduzindo-o fisicamente<br />
à grafia correta <strong>da</strong>s palavras, leva-o, ao mesmo tempo, a tomar consciência<br />
<strong>de</strong> seu sentido ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro. Significante e significado são iluminados ao<br />
mesmo tempo.<br />
Esse emaranhado <strong>de</strong> valores simbólicos e afetivo/psicológicos re tor -<br />
na no episódio ligado ao termo “Geheimnis”, <strong>de</strong> que nenhum dos dois<br />
consegue lembrar a tradução, embora ambos saibam seu significado. O<br />
lapso freudiano é vivenciado pelos dois amantes <strong>de</strong> forma atormenta<strong>da</strong>:<br />
Carlos fica “aterrorizado” quando ela fala do estranho esquecimento na<br />
frente <strong>de</strong> todos; ela fica “espanta<strong>da</strong>” quando enfrenta este bloqueio sozinha,<br />
durante um passeio:<br />
Sabe a tradução, isso sabe, porém não po<strong>de</strong> dizer! Por que razão?<br />
Estranho… Nota que a boca a língua se amol<strong>da</strong>m pra rasgar as consoantes<br />
<strong>da</strong> palavra e uma coisa qualquer proíbe. Carlos? Não, não<br />
po<strong>de</strong> ser Carlos, ela imagina. Porém o que será? Se irrita. 32<br />
Está evi<strong>de</strong>nte que os dois não somente atuam sob o mesmo recalque,<br />
mas que também percebem o nexo entre o misterioso esquecimento<br />
31 Ibi<strong>de</strong>m. p. 90.<br />
32 Ibi<strong>de</strong>m. p. 110.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
e sua relação ilícita: é significativo o uso, nos pensamentos <strong>de</strong> Fräulein, dos<br />
verbos “não po<strong>de</strong>” e “proíbe” se confrontados, por exemplo, com os mais<br />
neutros “não consegue” e “impe<strong>de</strong>”.<br />
A solução chega quando os dois conseguem se isolar dos <strong>de</strong>mais e<br />
recobrar a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos encontros — logo, a vivenciar seu “segredo” com<br />
tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esclarecido o conteúdo <strong>da</strong> palavra, o mecanismo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
mu<strong>da</strong>: sua conotação não é mais percebi<strong>da</strong> como proibi<strong>da</strong> e a solução<br />
po<strong>de</strong> ser anuncia<strong>da</strong> novamente na frente <strong>de</strong> todos:<br />
Fräulein anuncia que afinal <strong>de</strong>scobriram a palavra, Geheimnis quer<br />
dizer segredo:<br />
— Foi ela que achou!<br />
— Eu só não, Carlos. Fomos os dois. 33<br />
O movimento <strong>de</strong> um recalque para outro é sutil. Antes, algo era percebido<br />
como “proibido” sem po<strong>de</strong>r ser ligado conscientemente ao “segredo”,<br />
cujo nome fugia à memória; agora, cientes <strong>de</strong> que se tratava <strong>de</strong> “segredo”,<br />
esquecia-se <strong>de</strong> que o mal-estar era <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> tratar-se “<strong>da</strong>quele”<br />
segredo proibido:<br />
E ambos têm uma <strong>de</strong>silusão, palavra tão sem significância: Fräulein<br />
se admira <strong>de</strong> não ter <strong>da</strong>do com ela mais cedo, come calmamente.<br />
Carlos acha agora que não tinha razão pros terrores do almoço e do<br />
dia, come satisfeito. Nunca ninguém <strong>de</strong>scobrirá! 34<br />
(Mas, ironia do <strong>de</strong>stino, justamente quando se acham livres do medo,<br />
não percebem que estão <strong>de</strong>scobertos: “Sousa Costa, não sei, porém me<br />
parece que teve uma intuição genial: olha malicioso pros dois”. Ele é o<br />
único a perceber a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> tanto no segredo como no lapso…)<br />
Por um processo <strong>de</strong> aprofun<strong>da</strong>mento progressivo no pensamento e na<br />
linguagem dos personagens, Mário chega a insinuar-se no fundo <strong>da</strong> alma<br />
<strong>de</strong>les e a mostrá-la a seu público através <strong>de</strong> termos estrangeiros. Estes,<br />
alheios ao narrador, são por isso ain<strong>da</strong> mais contun<strong>de</strong>ntes, adquirindo<br />
sentidos duplos ou múltiplos e ressoando, não só com suas conotações<br />
evi<strong>de</strong>ntes, mas também com seus valores escondidos.<br />
O francês<br />
No caso do francês, idioma que Mário domina até nos pormenores<br />
<strong>da</strong> pronúncia, a diferença <strong>de</strong> uso entre língua pública e linguagem priva<strong>da</strong>,<br />
entre langue e parole, é ain<strong>da</strong> mais marca<strong>da</strong>.<br />
33 Ibi<strong>de</strong>m. p. 111.<br />
34 Ibi<strong>de</strong>m. p. 111.<br />
130 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
131<br />
Tendo sido “educado num colégio francês”, como esclareceu em “A<br />
escrava que não é Isaura” 35 , o escritor sempre teve uma enorme familiari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
com este idioma, que chegou a formar para ele uma reserva expressiva<br />
e lexical adjunta, <strong>de</strong> que se servia livremente na fala cotidiana — um<br />
bilingüismo espontâneo <strong>de</strong> que as cartas são perfeitas testemunhas 36 .<br />
E a mesma liber<strong>da</strong><strong>de</strong> encontra-se nos escritos <strong>de</strong> caráter teórico:<br />
termos <strong>de</strong>senvoltamente extraídos dos mais diferentes âmbitos <strong>da</strong> língua<br />
comum, por sua presença estranha, criam um duplo contraste — idiomático<br />
e estilístico — com o contexto, ganhando conotações peculiares, no mais<br />
espirituosas. Mais uma vez em “A escrava que não é Isaura”, encontramos,<br />
por exemplo:<br />
Lirismo + Arte (no sentido <strong>de</strong> crítica, esteticismo, trabalho) soma<br />
belas artes… Corrigi<strong>da</strong> a receita, eis o marron-glacé: Lirismo puro<br />
+ Critica + Palavra = Poesia.<br />
Foi a inteligência romantiza<strong>da</strong> pela preocupação <strong>de</strong> beleza, que nos<br />
levou às duas métricas existentes e a outros crochets, filets e frivolités.<br />
Certos mo<strong>de</strong>rnistas, boxeurs e blagueurs <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> perfeita, irritam-se<br />
porquê reconheço em mim, em nós, a existência <strong>da</strong> fadiga intelectual. 37<br />
Quantitativamente, a afini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mário com a língua e a cultura<br />
fran cesas será explora<strong>da</strong> em apenas dois contos, “Brasília”, <strong>de</strong> Primeiro<br />
an<strong>da</strong>r (1926), e “Atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão”, <strong>de</strong> Contos novos (publicado<br />
postumamente, após uma longuíssima gestação, em 1947) 38 . Mas, se o primeiro<br />
é um divertissement que se vinga dos lugares-comuns recíprocos<br />
sobre as duas nações, girando em torno duma só palavra francesa — até<br />
semanticamente indicativa — blague, o segundo é uma obra <strong>de</strong> mestre única,<br />
em que o bilingüismo português/francês joga um papel extraordinariamente<br />
sutil e intrigante.<br />
35 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. A escrava que não é Isaura. In: ______. Obra imatura. São Paulo:<br />
Martins, 1972. p. 266.<br />
36 Vejam-se, por exemplo, as cartas em FERNANDEZ, Lygia (Org.). Op. cit. p. 22, 29, 45,<br />
129. Para a influência <strong>da</strong> obras em francês, ver os estudos <strong>de</strong> FEREZ, Terezinha Nites.<br />
Leituras em francês <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. São Paulo: IEB–<strong>USP</strong>, 1969, e <strong>de</strong> GREMBEC-<br />
KI, Maria Helena. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e L’ Esprit Nouveau. São Paulo: IEB–<strong>USP</strong>, 1969.<br />
Uma nova pesquisa em torno <strong>de</strong>sta <strong>revista</strong> está atualmente sendo <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por<br />
Lilian Escorel, sempre no âmbito do <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>Brasileiros</strong> <strong>da</strong> <strong>USP</strong>.<br />
37 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. A escrava que não é Isaura. Op. cit. p. 205, 208, 288.<br />
38 Brasília. In: ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Primeiro an<strong>da</strong>r. São Paulo, 1926. Agora em Obra<br />
imatura. Op. cit. p. 113-129. ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão. In: ______.<br />
Contos novos. A gênese atormenta<strong>da</strong> do conto é <strong>de</strong>scrita pelo autor em apêndice ao<br />
texto. A edição consulta<strong>da</strong> é a <strong>de</strong> Belo Horizonte: Vila Rica, 1990. p. 47-71.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O personagem em torno do qual gira “Atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão” é<br />
a quarentona Ma<strong>de</strong>moiselle, professora particular <strong>de</strong> francês que, ao contato<br />
com suas duas maliciosas alunas adolescentes, vive uma espécie <strong>de</strong><br />
tardio <strong>de</strong>spertar dos sentidos, e, constantemente perturba<strong>da</strong> pelo fantasiar<br />
<strong>de</strong> “imorali<strong>da</strong><strong>de</strong>s horrorosas”, chegará a imaginar-se protagonista <strong>de</strong> uma<br />
aventura escabrosa atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> São Paulo.<br />
A narração não acompanha a or<strong>de</strong>m cronológica dos eventos, e sim<br />
segue o método <strong>da</strong> análise freudiana. De fato, o autor proce<strong>de</strong> como um<br />
analista que tenta reconstruir o percurso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica e emocional <strong>de</strong> sua<br />
paciente a partir <strong>de</strong> indícios por ela fornecidos — principalmente, sua lin guagem<br />
39 . Eis que as invenções bilíngües dos personagens e suas metamorfoses<br />
vêm a ser o motor dum enredo extremamente dinâmico e variado.<br />
As expressões crípticas e os lapsos <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle são investigados<br />
até encontrar sua origem, a qual esclarece os acontecimentos presentes.<br />
Mas, no curso dos eventos presentes, as expressões francesas passam <strong>de</strong><br />
maneira flui<strong>da</strong> <strong>de</strong> um personagem para outro e <strong>de</strong>stes para o autor, constituindo<br />
uma série <strong>de</strong> Leitmotive que, porém, enriquecem-se <strong>de</strong> sentidos<br />
ca<strong>da</strong> vez mais complexos 40 .<br />
Desenrolam-se, assim, duas histórias paralelas: a dos personagens<br />
e a <strong>de</strong> suas palavras.<br />
De uma forma geral, os diversos caracteres e aspectos psicológicos dos<br />
personagens po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>tectados em suas próprias atitu<strong>de</strong>s em relação<br />
à língua. As adolescentes criaram uma espécie <strong>de</strong> “interlíngua” e oscilam<br />
entre o jogo infantil e <strong>de</strong>spreocupado <strong>da</strong>s invenções lexicais, nas quais<br />
emer ge a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre o sexo — sua criação <strong>de</strong> “onomatopéias pressenti<strong>da</strong>s”<br />
—, e, por outro lado, a utilização mais madura e sabi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s duas<br />
línguas em chave irônica, nas paródias <strong>da</strong>s expressões <strong>da</strong> professora. Esta,<br />
em seu equilíbrio perturbado, alterna momentos <strong>de</strong> severo autocontrole e<br />
atitu<strong>de</strong>s mais <strong>de</strong>sinibi<strong>da</strong>s, oscilando entre uma rígi<strong>da</strong> vigilância “profissional”<br />
do francês falado pelas meninas (com rigorosas correções <strong>de</strong> pronúncia)<br />
e a livre criação <strong>de</strong> “metáforas suspeitas” e <strong>de</strong> locuções com dúbias<br />
conotações. E o autor está sempre pronto para aproveitar as expressões <strong>de</strong><br />
39 Uma análise minuciosa <strong>de</strong>ste conto encontra-se em DANTAS, Luiz. Amar sem aulas<br />
práticas. Remate <strong>de</strong> Males, Campinas, n. 7, p. 63-68, 1987. Outro estudo pormenorizado,<br />
mais focado no aspecto lingüístico, é o meu artigo PINCHERLE, Maria Caterina. La<br />
cattedrale di Rouen a San Paolo. Letterature d’America, n. 47/48, p. 161-192, 1992, cujas<br />
idéias principais são aqui resumi<strong>da</strong>s.<br />
40 A técnica lembra aquela ilustra<strong>da</strong> aqui para Amar, verbo intransitivo (e, se quisermos,<br />
pertence a Macunaíma também, com a repetição <strong>da</strong>quelas que Cavalcanti-Proença<br />
<strong>de</strong>fine como “fórmulas verbais”, aproximando seu uso ao <strong>da</strong> fabulação), embora aqui o<br />
processo seja mais complexo, pois são as próprias protagonistas que fornecem a matéria<br />
verbal ao autor. (CAVALCANTI-PROENÇA, Manuel. Op. cit. p. 28-31).<br />
132 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
133<br />
seus personagens, às vezes, explicitamente citando-as, outras vezes, simplesmente<br />
utilizando sua fala colori<strong>da</strong> ou seu método <strong>de</strong> criação expressiva.<br />
Eis alguns exemplos <strong>de</strong>ntre os inúmeros que oferece o conto:<br />
E agora mais que nunca ela “se trompait <strong>de</strong> lisière” — o que tinha uma<br />
história.<br />
naquele tempo ain<strong>da</strong> não podia “se sentir muito freudiana, hoje” como<br />
as meninas vieram <strong>da</strong> Europa falando […]<br />
[…] chegava afrosa, nariz vermelho, pingando. 41<br />
A reconstrução completa <strong>da</strong> vivência psicológica <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle se<br />
inicia no momento em que suas duas opostas atitu<strong>de</strong>s — controle e <strong>de</strong>scontrole<br />
— coinci<strong>de</strong>m, justamente no plano lingüístico, originando um lapso:<br />
no intuito <strong>de</strong> corrigir uma aluna, a professora troca a palavra mal por mâle<br />
(macho), justificando a sua confusão pelo fato <strong>de</strong> estar pensando no “ma -<br />
léfice <strong>de</strong>s hommes”… E sua explicação metalingüística é imprevisível e<br />
ain<strong>da</strong> mais incompreensível do que o próprio lapso (por si explicável pela<br />
homofonia): “je me suis trompée <strong>de</strong> lisière” (errei a orla). O autor não per<strong>de</strong><br />
a ocasião para procurar, seja a origem <strong>de</strong>sta expressão, seja a origem <strong>da</strong><br />
série <strong>de</strong> “erros” <strong>da</strong> professora. É assim que começa a aventura <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong><br />
psiqué <strong>de</strong>la.<br />
De fato, dividindo o enredo em seus episódios narrativos singulares,<br />
é fácil individuar em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, pelo menos uma expressão francesa,<br />
seja pronuncia<strong>da</strong> pelos personagens ou retoma<strong>da</strong> pelo autor: as expressões<br />
recorrentes em seu conjunto apontam para uma função estática <strong>da</strong><br />
língua francesa (atuam como ecos, isotopias à Greimas), mas é evi<strong>de</strong>nte<br />
também uma função dinâmica, quando é justamente para explicar uma<br />
<strong>de</strong>stas expressões que o autor avança em sua narração.<br />
Consi<strong>de</strong>remos, por exemplo, o caso emblemático do dito que dá tí -<br />
tu lo ao conto, e cuja história o atravessa por inteiro.<br />
Após ter-se <strong>de</strong>tido sobre o estado <strong>de</strong> turvação <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle, que<br />
parece piorar ao contato com as meninas, o autor insere um diálogo em<br />
que aparece o novo Leitmotiv “atrás <strong>da</strong> catedral”. As meninas lembram ter<br />
visto um homem barbudo atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão; Ma<strong>de</strong>moiselle corta<br />
a insinuação, dizendo que<br />
Ce qui se passait <strong>de</strong>rrière la cathédrale <strong>de</strong> Rouen, voyons! se passe<br />
<strong>de</strong>rrière toutes le cathédrales!<br />
41 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão. Op. cit. p. 48, 50.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Logo <strong>de</strong>pois, o autor observa como Ma<strong>de</strong>moiselle, após ter ela mes ma<br />
proposto um assunto <strong>de</strong> conversação bastante picante, fecha o discurso<br />
embaraça<strong>da</strong> com a expressão “et alors… c’était comme <strong>de</strong>rrière la cathédrale<br />
<strong>de</strong> Rouen”, que assume <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então a função <strong>da</strong> reticência <strong>de</strong> tudo o<br />
que, sendo potencialmente escabroso, está submetido a censura.<br />
O narrador po<strong>de</strong>rá, <strong>da</strong>qui em diante, servir-se livremente <strong>da</strong> nova<br />
locução esclareci<strong>da</strong>. Assim, quando Ma<strong>de</strong>moiselle é tenta<strong>da</strong> a ver o que<br />
acontece atrás <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong> Sé, dir-se-á que é “chama<strong>da</strong> pela catedral”, que<br />
“termina <strong>de</strong> contornar o ‘<strong>de</strong>rrière’ <strong>da</strong> catedral” e que “lhe fica um fraco<br />
pelo ‘<strong>de</strong>rrière’ <strong>da</strong>s igrejas” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que, indo para a farmácia, envere<strong>da</strong>ra-se,<br />
inconscientemente e como que fora <strong>de</strong> si, para a catedral.<br />
A expressão, inicialmente uma simples <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um lugar real,<br />
é carrega<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong> narração <strong>de</strong> conotações particulares na linguagem<br />
reticente <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle, até readquirir um valor semântico <strong>de</strong><br />
indicação espacial (tornando-se, <strong>de</strong> fato, uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira meta) agora in -<br />
fluenciado por aquelas conotações particulares. A distância entre a ficção e<br />
a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> foi anula<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> distância entre conotação<br />
e <strong>de</strong>notação: na narração, a expressão está sempre presente na sua duplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> valor — “atrás <strong>da</strong> catedral” <strong>de</strong>signa ao mesmo tempo o lugar físico<br />
<strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> São Paulo e o misterioso chamariz <strong>de</strong> um inominável tabu.<br />
O mecanismo <strong>de</strong> eliminação <strong>da</strong>s divisões lingüísticas envolve todos<br />
os outros motivos narrativos. As oposições binárias no conto — que se<br />
apre sentam como estados <strong>de</strong> fato (passado/presente, europeu/brasileiro,<br />
infância/i<strong>da</strong><strong>de</strong> adulta, consciência/subconsciente, real/imaginário) — são<br />
sempre elimina<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, graças à influência <strong>da</strong> am -<br />
bigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> que caracteriza as expressões francesas <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle e <strong>da</strong>s<br />
alunas. Se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras frases a distância entre consciente e subconsciente<br />
é anula<strong>da</strong> através do lapso “mal/mâle”, to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais expressões<br />
estão assinala<strong>da</strong>s por sua polivalência, conecta<strong>da</strong> a função <strong>de</strong> “transfor -<br />
ma ção”. Em outras palavras, além <strong>de</strong> funcionar como trâmite entre os vários<br />
episódios, elas funcionam como trâmite entre os diferentes planos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
contidos na narração — o consciente e o subconsciente, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
objetiva e a onírica, o presente (no Brasil) e o passado (na França para<br />
Ma<strong>de</strong>moiselle, na Europa e na África para as meninas).<br />
No episódio <strong>da</strong> absur<strong>da</strong> fuga <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle do ponto <strong>de</strong> ônibus<br />
até sua casa, quando ela passa inexplicavelmente “atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão”<br />
e se imagina persegui<strong>da</strong> por dois homens suspeitos, suas alucinações, em<br />
que reemergem violentamente to<strong>da</strong>s as lembranças <strong>de</strong> suas recentes turvações,<br />
estão expressas através <strong>da</strong> obsessiva retoma<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos os idiotismos<br />
franceses dos diferentes personagens: as “cathédrales”, confundi<strong>da</strong>s<br />
entre si, <strong>de</strong>smoronam como <strong>de</strong>sabam as ilusões; as árvores, “inúteis” como<br />
134 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
135<br />
“cochonneries” na <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong> busca <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>, agri<strong>de</strong>m-na; os passos dos<br />
perseguidores têm o som onomatopéico dos tiros (“poum…”) e cinco são<br />
os espirros <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle como cinco eram os tiros; é provável que os<br />
perseguidores tenham “une barbe” como o homem visto pela sua aluna<br />
atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão e como um dos convi<strong>da</strong>dos a uma festa <strong>de</strong> dona<br />
Lúcia; o “trou” pelo qual o primeiro Secretário (segundo um dos muitos<br />
relatos imaginários e provocadores <strong>da</strong>s meninas) fora <strong>de</strong>scido, nu, no interior<br />
do Teatro Santa Helena, volta como os “trous, trous, doloridíssimos”<br />
feitos pelos lampiões no ar <strong>da</strong> noite.<br />
A “chave” <strong>de</strong>sse mecanismo <strong>de</strong> metamorfose que envolve léxico e<br />
significados está no próprio texto e consiste na expressão “se tromper <strong>de</strong><br />
li sière”. A evolução dos sentidos <strong>de</strong>sta invenção lingüística <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong> moi -<br />
selle é análoga à <strong>de</strong> “atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão”.<br />
Da “lisière du bois” <strong>de</strong> uma canção <strong>da</strong> infância <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle (o<br />
<strong>de</strong>signatum é fantástico, mas o significado é o originário <strong>de</strong> “orla”, “beira’”,<br />
“limite”) passa-se à idéia <strong>da</strong> metafórica “lisière” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle,<br />
diante <strong>da</strong> qual ela se encontra como num impasse, sentindo-se solitária no<br />
fim <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>.<br />
Um dia, ao cantarolar a canção, ela emu<strong>de</strong>ce, inexplicavelmente<br />
angustia<strong>da</strong>, no ponto em que Lisette topa com um cavaleiro na “lisière”.<br />
Reconduzindo, <strong>de</strong> maneira totalmente inconsciente, a razão <strong>de</strong>sse bloqueio<br />
emotivo à causa <strong>de</strong> seus freqüentes lapsos, Ma<strong>de</strong>moiselle cria a locução “je<br />
me suis trompée <strong>de</strong> lisière”, que em segui<strong>da</strong> é utiliza<strong>da</strong> pelo autor como<br />
se citasse a protagonista a ca<strong>da</strong> erro <strong>de</strong>la. É assim que, a certa altura, recuperam-se<br />
to<strong>da</strong>s as conotações <strong>da</strong> expressão: quando Ma<strong>de</strong>moiselle, indo para<br />
a farmácia, an<strong>da</strong> sem razão na direção oposta, rumo à catedral, diz-se:<br />
como é que estava an<strong>da</strong>ndo assim noutra direção, […] envere<strong>da</strong>ndo<br />
para a catedral! O bom senso a obrigou a se <strong>de</strong>finir, não era possível<br />
“se tromper” tamanhamente “<strong>de</strong> lisière”.<br />
Ou seja, Ma<strong>de</strong>moiselle “erra” no duplo sentido <strong>da</strong> palavra: se “engana”<br />
e “vagabun<strong>de</strong>ia sem meta”, além <strong>de</strong> “errar moralmente”, experimentando<br />
a culpa <strong>de</strong> querer investigar o que é censurável. O erro <strong>de</strong> “lisière”<br />
se refere, ao mesmo tempo, ao errar <strong>de</strong> lugar físico — o ponto <strong>de</strong> ônibus —<br />
e ao errar metafórico: ce<strong>de</strong>r ao apelo <strong>da</strong>quilo que ela imagina acontecer<br />
atrás <strong>da</strong>s igrejas. O ponto <strong>de</strong> ônibus age como a “lisière” metafórica que<br />
separa Ma<strong>de</strong>moiselle do que se encontra “atrás <strong>da</strong> catedral”.<br />
A esses significados sobrepõe-se o que envolve o papel <strong>da</strong>s línguas<br />
utiliza<strong>da</strong>s: uma espécie <strong>de</strong> “metasignificado” que remete ao sentido do meio<br />
<strong>de</strong> expressão utilizado. Ma<strong>de</strong>moiselle, completamente transtorna<strong>da</strong> por ter<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
perdido o tino, <strong>de</strong>parando-se com a catedral e imaginando-se constrangi<strong>da</strong><br />
no tumulto, respon<strong>de</strong> em francês a um guar<strong>da</strong> que lhe pergunta se precisa<br />
<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>:<br />
Ma<strong>de</strong>moiselle tirou a mão dos olhos, muito envergonha<strong>da</strong>, refeita<br />
<strong>de</strong> súbito com a pergunta. “Non, merci”, mas, se percebendo noutra<br />
“lisière”, consertou: Não obriga<strong>da</strong>.<br />
Este é o lance crucial: o “limite”, compreendido no âmago <strong>da</strong> “fronteira”<br />
entre duas línguas, está entre a situação pessoal e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva,<br />
ou seja, entre a situação objetiva e a imaginação <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle,<br />
entre a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> — expressa na língua-mãe, na qual lhe são possíveis<br />
os lapsos — e a aparência — a percepção que <strong>de</strong>la têm os estranhos, esses<br />
brasileiros perante os quais <strong>de</strong>ve controlar-se e exprimir-se em português.<br />
Uma vez que a “lisière” é também o limite lingüístico, quando este se dis solve,<br />
até mesmo por um instante, todos os outros vêm a cair, pois a dissolução<br />
possibilita a comunicação entre a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>svaira<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong> moi -<br />
selle e a objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s situações reais (o que nunca acontecia com sua<br />
homóloga Fräulein).<br />
Nessa perspectiva, a “lisière” permeável funciona como a membrana<br />
num processo <strong>de</strong> osmose, permitindo uma passagem e um intercâmbio<br />
contínuos entre elementos franceses e portugueses no conto. Isto acontece<br />
no plano lingüístico, passando <strong>de</strong> um bilingüismo estático ao dinamismo<br />
<strong>da</strong>s contínuas interferências (língua do autor/língua <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle/língua<br />
franco-brasileira <strong>da</strong>s alunas) e, analogamente, no plano semântico, quando<br />
a catedral <strong>de</strong> Ruão, após ter se tornado abstratamente universal, reconcretiza-se<br />
numa igreja <strong>de</strong> São Paulo. Da mesma forma, a osmose verifica-se<br />
no âmago <strong>da</strong> evolução psicológica, quando o autor sobrepõe à lembrança<br />
<strong>da</strong> infância <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle (a canção evoca<strong>da</strong> na sua língua originária),<br />
a lembrança <strong>da</strong>s meninas (sua visita à catedral <strong>de</strong> Ruão) e a experiência<br />
brasileira atual <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselle (o apelo <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> São Paulo e, em<br />
segui<strong>da</strong>, <strong>de</strong> qualquer igreja <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>).<br />
Embora permaneçam distintos, os dois momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> protagonista<br />
(origem francesa/experiência brasileira atual) interagem conti nua -<br />
mente, o que contribui a possibilitar a representação <strong>da</strong> confusão mental<br />
do personagem e <strong>da</strong> sua dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vivenciar sua complexa situação<br />
psicológica.<br />
Esse processo narrativo é <strong>de</strong>vido, quase exclusivamente, ao fato do<br />
autor <strong>de</strong>sfrutar não somente as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s expressivas <strong>da</strong>s duas línguas<br />
como também as <strong>da</strong>s suas interações: ca<strong>da</strong> idioma adquire, além dos habituais<br />
papéis <strong>de</strong> <strong>de</strong>notação e conotação e <strong>de</strong> suas esferas <strong>de</strong> langue e parole,<br />
136 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
137<br />
um papel simbólico. A ca<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> código lingüístico correspon<strong>de</strong><br />
uma mu<strong>da</strong>nça total <strong>de</strong> código temático, e a ca<strong>da</strong> interação entre os dois có -<br />
digos lingüísticos correspon<strong>de</strong> uma correlação dialética entre os dois códigos<br />
temáticos opostos a eles subjacentes.<br />
O final <strong>da</strong> história <strong>de</strong>ixa entrever a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r o jogo<br />
para além <strong>da</strong> conclusão <strong>da</strong> narração. Ma<strong>de</strong>moiselle, que se imaginara persegui<strong>da</strong><br />
por dois homens “très louches”, chega na frente <strong>da</strong> sua casa, sentindo-se<br />
salva. Os dois perseguidores passam por ela, conversando tranqüilamente;<br />
e ela aproxima-se <strong>de</strong>les, <strong>da</strong>ndo-lhes dinheiro e agra<strong>de</strong>cendo<br />
a “boa companhia”:<br />
e Ma<strong>de</strong>moiselle soluçava as sílabas, na coragem raivosa <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />
ilusões ecrula<strong>da</strong>s:<br />
— Mer-ci pour votre bo-nne com-pa-gnie!<br />
E lhes enfiou na mão um níquel para ca<strong>da</strong> um, pagou! Pagou a<br />
“bonne compagnie”. Subiu as esca<strong>da</strong>s correndo, foi chorar. 42<br />
Mediante o usual mecanismo <strong>da</strong> citação, a expressão “bonne compagnie”<br />
toma uma importância relevante na frase: emerge um novo “protagonista”,<br />
lexical e temático ao mesmo tempo, do qual se acena uma<br />
potencial evolução no texto, embora a história <strong>da</strong> protagonista efetiva seja<br />
inequívoca e irremediavelmente concluí<strong>da</strong>.<br />
Se para a “história” do personagem parece não haver muito mais a<br />
dizer, a “história” <strong>da</strong>s suas palavras parece po<strong>de</strong>r continuar, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
no infinito.<br />
42 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Atrás <strong>da</strong> catedral <strong>de</strong> Ruão. Op. cit. p. 71.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
139<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate<br />
sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho 1<br />
Resumo<br />
No século XIX, a <strong>de</strong>terminação do grau <strong>de</strong> autonomia <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> língua portuguesa utiliza<strong>da</strong> no Brasil foi tema <strong>de</strong> calorosas e recorrentes<br />
discussões. Intelectuais <strong>de</strong> diferentes especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s nascentes<br />
mobilizaram-se em torno <strong>de</strong>sse assunto e contribuíram para que ele se<br />
mantivesse em evidência até, pelo menos, as quatro primeiras déca<strong>da</strong>s<br />
do século XX. Neste artigo, valendo-nos, sobretudo, dos trabalhos <strong>de</strong><br />
Rubim (1853), Beaurepaire-Rohan (1888) e Macedo Soares (1875/1889<br />
e 1874/1891) — <strong>de</strong>dicados à compilação e à <strong>de</strong>scrição do léxico específico<br />
do português do Brasil —, acompanhamos esse <strong>de</strong>bate, procurando<br />
avaliar implicações que o privilégio <strong>da</strong> dimensão vocabular <strong>da</strong> língua<br />
trouxe para a discussão e para certas práticas <strong>de</strong> tratamento <strong>da</strong> linguagem<br />
que começaram a se articular no país a partir dos anos 1800.<br />
Palavras-chave<br />
português do Brasil; léxico; século XIX; historiografia lingüística.<br />
1 Professora do Departamento <strong>de</strong> Lingüística e pesquisadora do Centro <strong>de</strong> Docu -<br />
mentação em Historiografia Lingüística (Cedoch) <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia,<br />
Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
E-mail: olgafc@usp.br<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
The names of the language:<br />
setting and <strong>de</strong>velopments of the<br />
<strong>de</strong>bate on the Brazilian language in<br />
the XIXth century<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Abstract<br />
In the XIXth century, the resolution on the <strong>de</strong>gree of authonomy of the<br />
Portuguese language mo<strong>da</strong>lity used in Brazil was the subject of vigorous<br />
and recurrent discussions. Intellectuals coming from different<br />
emerging fields gathered this subject and contributed to keep it on the<br />
agen<strong>da</strong>, at least, the four first <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s of the XXth century. In this<br />
paper, mainly based on the works of Rubim 1853, Beaurepaire-Rohan<br />
1888 and Macedo Soares 1875/1889 and 1874/1891 — <strong>de</strong>dicated to the<br />
compilation and <strong>de</strong>scription of the specific lexicon of Brazilian<br />
Portuguese —, we follow this <strong>de</strong>bate, in the attempt of evaluating implications<br />
that the privilege of the lexical dimension of the language<br />
brought to the discussion and to certain linguistic practices which<br />
started in the country in the 1800s.<br />
Keywords<br />
Brazilian Portuguese; lexicon; XIXth century; linguistic historiography.<br />
140 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
a<strong>da</strong> gente com sua língua<br />
Em seu Catálogo <strong>de</strong> las lenguas <strong>de</strong> las naciones conoci<strong>da</strong>s (1800/<br />
1805) 2 C<br />
, Lorenzo Hervás (1735-1809) estabeleceu um conjunto <strong>de</strong> critérios<br />
que consi<strong>de</strong>rou a<strong>de</strong>quados para a caracterização e a classificação <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />
as línguas existentes. Sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong> era, a partir <strong>de</strong> estudos lingüísticos,<br />
reunir elementos que permitissem agrupar as nações em diferentes famílias.<br />
É possível, em vista disso, enxergar em sua obra monumental uma<br />
equação segundo a qual a ca<strong>da</strong> língua correspon<strong>de</strong>ria uma nação.<br />
Em codificações menos fortes e explícitas, essa equação encontrou<br />
espaço em diferentes trabalhos, <strong>de</strong> diferentes períodos, especialmente<br />
naqueles em que foram <strong>de</strong>scritos os primeiros estágios do processo <strong>de</strong> con -<br />
soli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s línguas nacionais. Por mais próximas que fossem<br />
as línguas, ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las teria suas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s, suas marcas; e ressaltar<br />
seus atributos correspon<strong>de</strong>ria a enaltecer quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> própria gente<br />
que a empregava, já que as características <strong>de</strong>finidoras dos povos se espe lha -<br />
riam em seus falares. É assim que encontramos índices <strong>da</strong> equivalência<br />
141<br />
2 HERVÁS Y PANDURO, Lorenzo. Catálogo <strong>de</strong> las lenguas <strong>de</strong> las naciones conoci<strong>da</strong>s, y<br />
numeración, división, y clases <strong>de</strong> estas segun la diversi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> sus idiomas y dialectos.<br />
Madrid: Imprenta <strong>de</strong> la Administración <strong>de</strong> Beneficiencia, 1800/1805.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
proposta por Hervás ao observarmos, por exemplo, o caso <strong>de</strong> Por tugal no<br />
século XVI, momento em que ocorre a primeira sistematização <strong>da</strong> gramática<br />
<strong>da</strong> língua portuguesa: parecia necessário individualizar dicções, sentidos,<br />
estruturas típicas <strong>da</strong>quele idioma e, com isso, apontar traços particulares<br />
também do povo que o utilizava. Não é, pois, surpreen<strong>de</strong>nte, que localizemos<br />
em Fernão d’Oliveira (1531-1580/81), o primeiro gramático, trechos como<br />
os seguintes:<br />
[…] umas gentes formam suas vozes mais no papo, como Cal<strong>de</strong>us e Arábicos,<br />
e outras nações cortam vozes, apressando-se mais em seu falar,<br />
mas nós falamos com gran<strong>de</strong> repouso, como homens assentados.<br />
[…] Os Gregos com os Latinos e os Hebraicos com os Arábicos e nós<br />
com os Castelhanos, que somos mais vizinhos, concorremos muitas<br />
vezes em umas vozes e letras e contudo não tanto que não fique al -<br />
guma particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> a ca<strong>da</strong> um por si […]. E no pronunciar quem<br />
não sentirá a diferença que temos porque eles escon<strong>de</strong>m-se e nós<br />
abrimos mais a boca? E quase po<strong>de</strong>mos dizer que o que dá a enten<strong>de</strong>r<br />
Horácio na Arte Poética dos Gregos e Latinos temos entre nós e os Castelhanos<br />
porque a eles <strong>de</strong>u a natureza afeiçoar o que querem dizer<br />
e nós falamos com mais majesta<strong>de</strong> e firmeza. 3<br />
Debates acerca <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s línguas nacionais são uma espécie <strong>de</strong><br />
lugar-comum nos momentos em que há alguma (re)<strong>de</strong>finição do estatuto<br />
político dos povos — o que torna o século XIX um período especialmente rico<br />
para o tratamento <strong>de</strong>sse tema na América. Notamos, com efeito, em obras<br />
produzi<strong>da</strong>s em países americanos que se tornaram in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes à época,<br />
uma busca reitera<strong>da</strong> <strong>de</strong> aspectos lingüísticos que contribuíssem para o <strong>de</strong> -<br />
li neamento <strong>de</strong> um quadro político ain<strong>da</strong> em formação. E o Brasil não es ca -<br />
pou a essa tendência: nos anos 1800, o grau <strong>de</strong> autonomia <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> língua portuguesa utiliza<strong>da</strong> no país foi tema <strong>de</strong> calorosas e recorrentes<br />
discussões. A língua nacional converteu-se em um dos focos <strong>de</strong> maior mo -<br />
bilização <strong>de</strong> intelectuais — <strong>da</strong>s mais diversas especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s nascentes —<br />
em torno <strong>da</strong>s questões <strong>de</strong> linguagem. Perpassando <strong>de</strong> estudos estritamente<br />
lingüísticos a textos literários, etnográficos, históricos, folclóricos, projetos<br />
políticos, o assunto esteve em evidência e sua discussão se manteve bastante<br />
aqueci<strong>da</strong> até, pelo menos, as quatro primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX 4 .<br />
3 OLIVEIRA, Fernão d’. Gramática <strong>da</strong> linguagem portuguesa. 2ª. ed. Lisboa: Biblioteca<br />
Nacional, 1988[1536], p. 39 e p.47-48, respectivamente.<br />
4 Cf. ELIA, Sílvio Edmundo. O problema <strong>da</strong> língua brasileira. 2ª. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Irmãos Pongetti Editores, 1961[1940]; PINTO, Edith Pimentel. O português do Brasil.<br />
Textos críticos e teóricos. Fontes para a teoria e a história (1820-1920). vol. I. Rio <strong>de</strong><br />
142 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
143<br />
O português do Brasil, ora tomado como autônomo, ora como mera<br />
variante diatópica <strong>da</strong> língua <strong>de</strong> Portugal, foi avaliado, no contexto <strong>de</strong>ssas<br />
discussões, fun<strong>da</strong>mentalmente em sua dimensão vocabular.<br />
O privilégio do léxico nessa conten<strong>da</strong> ensejou, entre as déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
1850 e 1890, a publicação <strong>de</strong> obras especificamente volta<strong>da</strong>s para essa<br />
dimensão <strong>da</strong> língua. Tais obras tanto correspon<strong>de</strong>m a sínteses gerais — como<br />
o Vocabulário brasileiro para servir <strong>de</strong> complemento aos dicionários <strong>da</strong> língua<br />
portuguesa 5 , <strong>de</strong> Brás <strong>da</strong> Costa Rubim (1817-1871), o Diccionario brazileiro<br />
<strong>da</strong> língua portuguesa 6 , <strong>de</strong> Antônio Joaquim <strong>de</strong> Macedo Soares (1838-1905),<br />
e o Dicionário <strong>de</strong> vocábulos brazileiros 7 , do Viscon<strong>de</strong> Henrique <strong>de</strong> Beau -<br />
repaire-Rohan (1812-1894) —, quanto a produções volta<strong>da</strong>s para particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
regionais.<br />
Dessas últimas, são exemplos o Vocabulário indígena <strong>de</strong> uso na província<br />
do Ceará, com explicações etymologicas, orthographicas, topogra phi -<br />
cas, históricas 8 , <strong>de</strong> Paulino Nogueira, o Vocabulário sul-riogran<strong>de</strong>nse 9 , <strong>de</strong><br />
Romaguera J. Correa, e a Collecção <strong>de</strong> vocábulos e phrases usados na província<br />
<strong>de</strong> São Pedro do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul 10 , <strong>de</strong> Antônio Álvares Pereira<br />
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978; ORLANDI, Eni (Org.). Discurso fun<strong>da</strong>dor.<br />
A formação do país e a construção <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional. Campinas: Pontes, 1993;<br />
DIAS, Luiz Francisco. Os sentidos do idioma nacional. As bases enunciativas do nacionalismo<br />
lingüístico no Brasil. Campinas: Pontes, 1996; CHRISTINO, Beatriz & COE-<br />
LHO, Olga. O tratamento <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística. O século XIX. In ALTMAN, C. &<br />
IMAGUIRE, L. As línguas do Brasil. Tipos, varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionais e mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s discursivas.<br />
São Paulo: Humanitas, 2000. p. 191-197. O texto <strong>de</strong> Pinto correspon<strong>de</strong> à mais<br />
completa organização <strong>de</strong> fontes para a historiografia lingüística do tema no Brasil. A<br />
diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> materiais e autores reunidos no volume I (1820-1920) dão a medi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
sua recorrência e relevância no século XIX. O texto <strong>de</strong> Elia reconstitui a discussão, dos<br />
anos 1820 até trabalhos do início do século XX (na 2ª. edição, <strong>de</strong> 1961) com vistas à<br />
comprovação <strong>da</strong> premissa <strong>de</strong> que a língua utiliza<strong>da</strong> no Brasil é a mesma língua portuguesa<br />
usa<strong>da</strong> em Portugal, ain<strong>da</strong> que possua “estilo” diferente. O trabalho <strong>de</strong> Dias, centrado<br />
nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1930 e 1940, remete o leitor à déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1820, quando projetos<br />
que requisitavam diplomas médicos emitidos em “língua brasileira” (1826) e ensino<br />
<strong>da</strong> gramática <strong>da</strong> “língua nacional” (1827) iniciaram o <strong>de</strong>bate na esfera legislativa.<br />
Christino e Coelho traçam um panorama não exaustivo <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> tratamento do<br />
tema entre as três últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX e a primeira do XX; Orlandi analisa<br />
as configurações discursivas e i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate e seu impacto na constituição<br />
<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional.<br />
5 RUBIM, Braz <strong>da</strong> Costa. Vocabulário brasileiro para servir <strong>de</strong> complemento aos dicionários<br />
<strong>da</strong> língua portuguesa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Dous <strong>de</strong> Dezembro, 1853.<br />
6 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Diccionario Brazileiro <strong>da</strong> língua portuguesa.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Typ. De G. Leuzinger & Filhos. 1889 [1875/1888].<br />
7 BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique Pedro Carlos <strong>de</strong>. Dicionário <strong>de</strong> vocábulos brasileiros.<br />
2ª. ed. [Fac-simila<strong>da</strong>]. Salvador: Livraria Progresso, 1956 [1889].<br />
8 NOGUEIRA, Paulino. Vocabulário indígena <strong>de</strong> uso na província do Ceará, com expli -<br />
ca ções etymologicas, orthographicas, topographicas, históricas. Ceará: s. n., 1887.<br />
9 CORREA, Romaguera J. Vocabulário sul-riogran<strong>de</strong>nse. S.L: Fchenique & Irmão, 1897.<br />
10 CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Collecção <strong>de</strong> vocábulos e phrases usados na província<br />
<strong>de</strong> São Pedro do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul Revista do IHGB, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Tomo XV,<br />
p. 210-240, 1852.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Coruja (1806-1889), texto mais recorrentemente lembrado em retrospectivas<br />
históricas do período. A esses dois tipos <strong>de</strong> textos, <strong>de</strong> natureza mais<br />
<strong>de</strong>scritiva e técnica, juntam-se, no mesmo período, artigos e outros trabalhos,<br />
<strong>de</strong> vocação mais reflexiva, publicados por Macedo Soares e reunidos,<br />
postumamente, no volume <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro 11 .<br />
A eleição do léxico como principal fornecedor <strong>de</strong> argumentos parece<br />
ter conferido às obras <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> autonomia lingüística certa<br />
ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, que, por sua vez, redundou no enfraquecimento paulatino<br />
<strong>de</strong>ssa tese e no <strong>de</strong>lineamento <strong>de</strong> algumas características <strong>de</strong>finidoras <strong>da</strong>s<br />
práticas preferenciais <strong>de</strong> tratamento <strong>da</strong> linguagem posteriormente <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />
no país.<br />
Observaremos esse <strong>de</strong>bate mais <strong>de</strong> perto, a fim <strong>de</strong> avaliar essas hi póteses.<br />
Os textos <strong>de</strong> Rubim, Beaurepaire-Rohan e Macedo Soares merecerão<br />
nossa análise mais atenta.<br />
Os lexicógrafos do português do Brasil<br />
Com pequenas alterações, Morais e Aulete, os dois dicionários <strong>de</strong><br />
lín gua portuguesa mais prestigiados durante o século XIX e o início do XX<br />
no Brasil, <strong>de</strong>finem nação como “gente <strong>de</strong> um paiz, região, que tem Língua,<br />
Leis e Governo à parte” 12 . Ao menos no dicionário, ser uma nação significava<br />
possuir autonomia política, administrativa e lingüística. No momento<br />
em que surge a produção lexicográfica analisa<strong>da</strong> — o Segundo Reinado<br />
(1840-1889) — já havia leis próprias e um governo, finalmente, brasileiro.<br />
O período era propício, pois, à análise cui<strong>da</strong>dosa <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> língua, que<br />
emergia em meio a uma série <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças que reorganizavam aspectos<br />
<strong>da</strong> estrutura e <strong>da</strong> imagem do Império.<br />
Para Guimarães 13 , o que se nota, nessa época, é a consecução <strong>de</strong> um<br />
certo projeto <strong>de</strong> Brasil: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> implantado o Estado Nacional, impunha-se<br />
como tarefa o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um perfil para essa nação, “capaz <strong>de</strong> lhe garantir<br />
uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria no conjunto mais amplo <strong>da</strong>s ‘Nações’, <strong>de</strong> acordo<br />
com os novos princípios organizadores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social do século XIX” 14 . Como<br />
11 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro.<br />
[Org. Julião Rangel <strong>de</strong> Macedo Soares]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Publicação <strong>da</strong> Revista do IHGB,<br />
1942 [1874/1891].<br />
12 SILVA, Antonio <strong>de</strong> Morais. Diccionário <strong>da</strong> língua portuguesa. 2ª. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Empresa Literária, 1813 [1789].<br />
13 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. O <strong>Instituto</strong> His -<br />
tórico e Geográfico Brasileiro e o projeto <strong>de</strong> uma história nacional. <strong>Estudos</strong> Históricos.<br />
1, p. 5-22, 1988.<br />
14 Ibi<strong>de</strong>m. p.8.<br />
144 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
145<br />
o espelho eram os Estados Europeus, se tal projeto <strong>de</strong>veria assegurar particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
<strong>de</strong>veria também, e sobretudo, garantir a inserção do país no<br />
conjunto dos que se tinham por civilizados.<br />
O <strong>Instituto</strong> Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) assumiria parte<br />
significativa <strong>de</strong>ssa tarefa: <strong>de</strong>veria coletar, catalogar, publicar ou <strong>de</strong>positar<br />
em arquivos documentos relativos à história e à geografia do Brasil; promover<br />
o conhecimento <strong>de</strong>sses dois segmentos <strong>da</strong> ciência; manter-se em<br />
contato com associações similares do Velho e do Novo Mundo; promover<br />
a integração <strong>da</strong>s províncias para melhor atingir os objetivos propostos, e<br />
publicar uma <strong>revista</strong> 15 .<br />
Beaurepaire-Rohan e Rubim pertenceram a essa agremiação; o primeiro<br />
chegou a ocupar o posto <strong>de</strong> vice-presi<strong>de</strong>nte do instituto. A viabilização<br />
<strong>de</strong> um projeto nacional aparece, pois, como um importante cenário para a<br />
sua produção intelectual. É <strong>de</strong> fato altamente provável que, em face <strong>de</strong>ssa<br />
circunstância, a língua tenha sido entendi<strong>da</strong> por eles não como um objeto<br />
autônomo, mas como uma <strong>da</strong>s peças importantes na concretização <strong>de</strong> um<br />
plano mais abrangente, <strong>de</strong> reconhecimento do Brasil e <strong>de</strong> fixação <strong>de</strong> seu<br />
perfil.<br />
Oficialmente, as questões propriamente lingüísticas passaram a in -<br />
te grar as preocupações dos intelectuais do IHGB apenas a partir <strong>de</strong> 1851,<br />
quando reformulações estatutárias recomen<strong>da</strong>ram o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />
estudos etnográficos, arqueológicos e relativos às línguas, principalmente<br />
as dos indígenas brasileiros. Sintomaticamente, a Collecção <strong>de</strong> vocábulos e<br />
phrases usados na província <strong>de</strong> São Pedro do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>de</strong> Co ruja,<br />
ganha as páginas <strong>da</strong> <strong>revista</strong> do IHGB em 1852. No ano seguinte, Rubim<br />
publica seu Vocabulário brazileiro.<br />
Aparentemente, Rubim sentia-se o menos apto, <strong>de</strong>ntre os três autores<br />
<strong>de</strong>stacados neste artigo, para discorrer sobre a língua do Brasil. Alegava<br />
não ser especialista. Nessa condição, organizou um estudo bastante breve,<br />
com gran<strong>de</strong> proporção <strong>de</strong> termos relativos à flora (campo do qual <strong>de</strong>clarava<br />
conhecimento), meramente classificados segundo a taxionomia proposta<br />
pelas ciências biológicas. Constantemente, e talvez em função <strong>de</strong> seu<br />
caráter panorâmico, esse vocabulário é esquecido em retrospectivas históricas<br />
do período.<br />
Beaurepaire-Rohan, por outro lado, é autor <strong>de</strong> um festejado dicionário<br />
do português do Brasil. A rigor, no período que <strong>de</strong>stacamos, seu dicionário<br />
é o único inteiramente <strong>de</strong>dicado a esse corpus — já que Rubim propõe<br />
um vocabulário e o dicionário <strong>de</strong> Macedo Soares, interrompido, esten<strong>de</strong>-se<br />
apenas até a letra c.<br />
15 Cf. Revista do IHGB I, 1839, 1:4-10.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Autor <strong>da</strong> Carta geográfica do Império (1883), Beaurepaire-Rohan<br />
rea lizou, a serviço do Estado, viagens exploratórias pelas províncias do Pará,<br />
Ceará, Paraná, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>da</strong> Paraíba, <strong>da</strong> Bahia, <strong>de</strong> Pernambuco e <strong>de</strong><br />
Santa Catarina. Em muitas <strong>de</strong>las, exerceu funções administrativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.<br />
Obteve, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua permanência em distintas regiões do país,<br />
a fama <strong>de</strong> conhecedor profundo do mosaico lingüístico nacional. Estava,<br />
assim, habilitado a versar sobre as peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais e vocabulares<br />
<strong>da</strong>s diferentes províncias 16 . Seu dicionário é, com efeito, largamente <strong>de</strong>talhado<br />
em relação à distribuição geográfica dos itens lexicais ali registrados:<br />
assim como as paisagens diversificavam-se, a língua assumia ma tizes distintos<br />
ao longo <strong>de</strong> um país com dimensões continentais. E tal diversi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>ria ser mapea<strong>da</strong> em um dicionário <strong>de</strong> vocábulos locais.<br />
Na produção lexicográfica do período, o regional ten<strong>de</strong>, com efeito,<br />
a ser tomado como exemplo <strong>da</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> linguagem nacional. É, nesse<br />
sentido, paradoxal que a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística entre esta nação e a portuguesa<br />
tenha sido usa<strong>da</strong> como argumento pró-autonomia, enquanto a<br />
diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> interna ao Brasil tenha servido apenas para ilustrar a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e a riqueza do falar local. Não se explicam os critérios adotados, fica<br />
somente <strong>de</strong>clarado que a diferença entre mandioca e aipim, por exemplo,<br />
é interna ao português do Brasil e se estabelece entre uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s pertencentes<br />
à mesma língua, ao passo que a verifica<strong>da</strong> entre fósforos e lumes promptos<br />
sinaliza a existência <strong>de</strong> dois sistemas lingüísticos já não idênticos 17 .<br />
Os textos produzidos pelos lexicógrafos do IHGB guar<strong>da</strong>m, contudo,<br />
menores excessos patrióticos no momento <strong>de</strong> assinalar distinções entre o<br />
português do Brasil e o <strong>de</strong> Portugal. A idéia <strong>de</strong> uma linguagem específica,<br />
antes formula<strong>da</strong> como <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um vocabulário exclusivo do Brasil, não os<br />
leva a críticas agressivas a Portugal ou à língua portuguesa — procedimento<br />
comum em Macedo Soares, advogado e literato que abertamente reivindicou<br />
autonomia, prestígio e superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> para a linguagem do Brasil:<br />
Mais dia, menos dia, [os críticos <strong>de</strong> Lisboa] vão ser forçados a fazer<br />
duas confissões importantes: a 1ª. é que no Brasil a língua portuguesa<br />
tem sido menos ataca<strong>da</strong> do gálico, que a está corroendo e <strong>de</strong>formando<br />
em Portugal; a 2ª. é que temos uma língua nossa, e, portanto, uma<br />
literatura nossa… 18<br />
16 Cf. COELHO, Olga Ferreira. A anguza<strong>da</strong> lexicográfica luso-bundo-brasileira. Língua e<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX. 2003. Tese (Doutorado em<br />
Lingüística). DL, FFLCH–<strong>USP</strong>, 2003.<br />
17 Cf. CHRISTINO, Beatriz & COELHO, Olga. Op. cit.; COELHO, Olga Ferreira. Op. cit.<br />
18 Cf. MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Chapa<strong>da</strong>, chapadão, chato, loma, planiço,<br />
varge. In: <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro. Op. cit. p. 87.<br />
146 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
147<br />
Para o autor, pontuar as divergências entre a língua do Brasil e a <strong>de</strong><br />
Portugal, certamente menos pura e menos conservadora, levaria ao inevitável<br />
reconhecimento <strong>da</strong>s produções literárias locais. O pressuposto era<br />
que, para uma literatura ser reconheci<strong>da</strong>, <strong>de</strong>veria ser veicula<strong>da</strong> em idioma<br />
<strong>de</strong> cultura. Portanto, não era possível aceitar que o português do Brasil<br />
continuasse a ser consi<strong>de</strong>rado como corrupção do português <strong>da</strong> Europa.<br />
Legitimar a língua do Brasil significava tornar sua literatura digna. O<br />
raciocínio inverso também era válido e ampliava os efeitos do ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver<br />
e analisar o brasileiro: à medi<strong>da</strong> que a língua, tacha<strong>da</strong> pelos portugueses<br />
<strong>de</strong> incorreta, ganhasse os textos literários, receberia o predicado <strong>de</strong><br />
civiliza<strong>da</strong>, e este po<strong>de</strong>ria ser estendido à nação. Era necessário, portanto,<br />
imprimir à alega<strong>da</strong> língua inculta do Brasil “o cunho dos idiomas literários”,<br />
<strong>da</strong>r-lhe “foros <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>” 19 , para que pu<strong>de</strong>sse exemplificar a pujança do<br />
estado que a abrigava. O autor pretendia que certas peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> lin guagem<br />
nacional pu<strong>de</strong>ssem também ter o estatuto <strong>de</strong> norma culta. Para tanto,<br />
reitera<strong>da</strong>mente evocava semelhanças <strong>de</strong>ssa linguagem com o portu guês<br />
mais antigo e imaculado:<br />
Os nossos jornalistas escrevem muito diverso do que falam. Fa lan do,<br />
dizem que moram na rua do Ouvidor, no largo <strong>da</strong> Lapa, no campo<br />
<strong>de</strong> Santa Anna, nas Laranjeiras; escrevendo, dizem que moram às<br />
Laranjeiras, ao campo <strong>de</strong> Santa Anna, à rua do Ouvidor, ao largo <strong>da</strong><br />
Lapa. Falando, são brasileiros, ain<strong>da</strong> lembrados do bom português<br />
<strong>de</strong> Camões, fr. Luiz <strong>de</strong> Souza, <strong>de</strong> Vieira, <strong>da</strong>s or<strong>de</strong>nações do reino, <strong>de</strong><br />
todos os antigos monumentos do bem falar lusitano, que ficou na<br />
colônia <strong>da</strong> América. Escrevendo, teem um medo que se pelam <strong>da</strong>s<br />
risotas do Chiado, e tratam <strong>de</strong> acompanhar os jornalistas <strong>de</strong> Lisboa,<br />
que quase se envergonham <strong>de</strong> ser portugueses, e por isso mesclam <strong>de</strong><br />
francês e mais estrangeirices a língua que <strong>de</strong> seus pais her<strong>da</strong>ram. 20<br />
Contra o purismo português, o forjamento <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> para a<br />
variante local através <strong>da</strong> arte e também <strong>da</strong> escrita comum (jornalística):<br />
…“Virge Maria!” Exclamação <strong>de</strong> susto, <strong>de</strong> medo, <strong>de</strong> admiração, <strong>de</strong><br />
alegria […]; e havemos <strong>de</strong> reparar que não é só dos lábios <strong>da</strong> gente<br />
ru<strong>de</strong> que ela escapa… E quando fosse, do vulgacho vai passando<br />
para o povo, e do povo para os letrados, porque estes se formam na<br />
19 I<strong>de</strong>m. Baptista Caetano. Homenagem do discípulo. In: <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto<br />
brasileiro. Op. cit. p. 14.<br />
20 Cf. I<strong>de</strong>m. Estadoal, estadual, estatual? In: <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro.<br />
Op. cit. p. 202.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
im prensa jornalística, e o jornal é o gran<strong>de</strong> livro on<strong>de</strong> o povo ca<strong>da</strong><br />
dia escreve, a tribuna don<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia fala a linguagem que é sua, e<br />
fica sendo a linguagem nacional. 21<br />
A visão <strong>de</strong> que o jornalismo e o jornal tinham um papel na conformação<br />
<strong>da</strong> língua é original no período. As autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> escrita eram,<br />
conforme a tradição, os literatos. No entanto, Macedo Soares faz a linguagem<br />
literária — presumivelmente mais trabalha<strong>da</strong>, elabora<strong>da</strong> — la<strong>de</strong>ar a<br />
linguagem popular, por <strong>de</strong>finição mais espontânea. Principalmente, prevê<br />
que, pelo uso, vulgari<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>riam per<strong>de</strong>r o valor negativo e tornarem-se<br />
comuns. É esse o julgamento que faz, por exemplo, <strong>de</strong> palavras e expressões<br />
populares, como Virge Maria!, mas também <strong>de</strong> palavras como bun<strong>da</strong>:<br />
BUNDA sf., o assento, as ná<strong>de</strong>gas, on<strong>de</strong> se bate; que bate. ETYM. Bd.<br />
Cu-bun<strong>da</strong>. LEX PORT. Aul.[ete] <strong>de</strong>f.[ine]: “t.[ermo] Braz[ileiro]. Ná -<br />
<strong>de</strong>gas volumosas”. Beaurepaire Rohan o confirma; o adj.[etivo], porém,<br />
é <strong>de</strong> mais: carnu<strong>da</strong>s ou magras, as ná<strong>de</strong>gas são sempre bun<strong>da</strong>,<br />
pal.[alvra] chula para os ports.[portugueses], mas pop.[popular] no<br />
Brazil, e por isso muito acceitável. 22<br />
Como é notório, além <strong>de</strong> idéias inovadoras para o período, esse autor<br />
utiliza-se <strong>de</strong> estilo mais agressivo no apontamento <strong>de</strong> divergências entre<br />
Brasil e Portugal. Menos comprometidos com o saber oficial e com a política<br />
<strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> um contato cordial com os portugueses, seus textos<br />
não poupam críticas aos colonizadores, a sua literatura e a sua língua. Em<br />
certas passagens, o tratamento <strong>de</strong> questões vocabulares converte-se em<br />
guerra retórica. Os <strong>da</strong>dos lingüísticos nesses instantes são o pretexto para<br />
<strong>de</strong>senvolverem-se outros tipos <strong>de</strong> disputas:<br />
CABRA s.2, adj.2 — 1) quarteirão <strong>de</strong> mulato com negro; mulato escuro;<br />
caboclo escuro […] era nesse sentido que os portugueses, nas lutas<br />
<strong>da</strong> nossa in<strong>de</strong>pendência, parodiavam a quadrinha do nosso hino Brava<br />
gente brasileira, <strong>de</strong>sta sorte “cabra gente brasileira/<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
Guiné/ Trocaram as cinco chagas/ pelo fumo e o café […]”. Es que -<br />
ciam-se que eles primeiro se amulataram em Angola do que no Brasil. 23<br />
A citação certamente <strong>de</strong>ixa entrever restrições étnicas muito difundi<strong>da</strong>s<br />
no período e, principalmente, ilustra os tipos <strong>de</strong> provocações que se<br />
faziam <strong>de</strong> parte a parte.<br />
21 I<strong>de</strong>m. <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro. Op. cit. p. 91.<br />
22 I<strong>de</strong>m. Diccionario brazileiro <strong>da</strong> língua portuguesa. Op. cit. p. 114.<br />
23 I<strong>de</strong>m. <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro. Op. cit. p. 120.<br />
148 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
149<br />
Essa espécie <strong>de</strong> repúdio a Portugal apresenta também nuanças mais<br />
técnicas, como a do <strong>de</strong>scrédito atribuído à tradição portuguesa <strong>de</strong> estudos<br />
<strong>da</strong> língua:<br />
É curiosa a <strong>de</strong>scrição que dão <strong>de</strong> capoeira os léxicos portugueses,<br />
<strong>de</strong>monstrando ain<strong>da</strong> uma vez que a língua brasileira já é alguma<br />
coisa diferente <strong>da</strong> portuguesa, como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, atentos<br />
os elementos que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras povoações do Brasil, estão<br />
influindo para esse resultado. Frei Domingos Vieira, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir<br />
capoeira como o negro que vive no mato e acomete os passageiros<br />
à faca [!] dá capoeirão o que tem vivido muito na capoeira [!].<br />
Constâncio é ain<strong>da</strong> mais engraçado na origem <strong>da</strong> palavra: capoeira<br />
tira o nome <strong>de</strong> ser matagal <strong>de</strong> arbustos semelhantes aos <strong>de</strong> que se<br />
fazem as capoeiras (gaiolas <strong>de</strong> galinhas) […]. Estes arbustos são ta -<br />
quaras; to<strong>da</strong> capoeira, pois, seria um taquaral.<br />
Faria, com o pouco siso habitual, copia essa confusão <strong>de</strong> capoeira,<br />
termo brasileiro, mato ralo e miúdo, com capoeira, termo português,<br />
jaca ou cesto fechado para conduzir galinhas. 24<br />
Como a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística entre os países parecia abala<strong>da</strong>, os equívocos<br />
portugueses em relação ao vocabulário brasileiro eram inevitáveis.<br />
Ain<strong>da</strong> que não o fossem, Macedo Soares, provavelmente, assumiria diante<br />
<strong>de</strong>les a mesma postura <strong>de</strong> <strong>de</strong>fensor incondicional dos interesses nacionais<br />
contra o “português, o pé <strong>de</strong> chumbo, o galego, o mariola, o marinheiro, o<br />
lapuz […]” 25 .<br />
Uma língua ou um dialeto?<br />
Os modos <strong>de</strong> nomear a língua fala<strong>da</strong> no Brasil também nos aju<strong>da</strong>m<br />
a reconstruir posicionamentos acerca do seu estatuto. Algumas expressões<br />
utiliza<strong>da</strong>s para este fim <strong>de</strong>ixam antever uma visão mais favorável à uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
lingüística luso-brasileira; outras apontam para um certo grau <strong>de</strong> diversificação<br />
e outras ain<strong>da</strong>, para a requisição <strong>de</strong> autonomia plena do brazileiro<br />
em relação ao portuguez. Mapeando esse fato, Pinto assinala que, ao longo<br />
do século,<br />
24 Ibi<strong>de</strong>m. p. 41.<br />
25 Ibi<strong>de</strong>m. p. 29.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
A <strong>de</strong>signação <strong>da</strong> língua do Brasil, incerta como sua vigência, oscilava<br />
entre dialeto brasileiro (Alencar, Macedo Soares, Araripe, Romero),<br />
luso-brasileiro (Macedo Soares, Baptista Caetano, Paranhos <strong>da</strong> Silva),<br />
luso-americano (Romero) neoportuguês (Araripe), brasileiro (Macedo<br />
Soares) […]. 26<br />
Nos textos lexicográficos que analisamos, já os títulos <strong>de</strong>monstram<br />
tal oscilação. Brás <strong>da</strong> Costa Rubim dá a sua obra o título <strong>de</strong> Vocabulário<br />
brazileiro e acrescenta o subtítulo para servir <strong>de</strong> complemento aos dicionários<br />
<strong>da</strong> língua portuguesa, explicando no prólogo que ela<br />
[…] compreen<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> vocábulos usados no Brasil,<br />
e que se não encontram nos dicionários <strong>da</strong> nossa língua […]. 27<br />
Embora o autor <strong>de</strong>ixe claro que há uma parte do léxico total <strong>da</strong> língua<br />
<strong>de</strong> uso restrito ao Brasil e que essa parte é composta <strong>de</strong> “um gran<strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> vocábulos” — uma consi<strong>de</strong>rável divergência lexical é, portanto, reconheci<strong>da</strong><br />
—, sua concepção é a <strong>de</strong> que a língua é a mesma aqui e em Portugal.<br />
Beaurepaire-Rohan é ain<strong>da</strong> mais favorável à uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Chama sua<br />
obra <strong>de</strong> Diccionario <strong>de</strong> vocábulos brasileiros e consi<strong>de</strong>ra que tais vocábulos<br />
recobrem campos semânticos muito específicos; basicamente, <strong>da</strong>riam conta<br />
dos nomes <strong>de</strong> lugares, tribos indígenas, plantas e animais. Sua proposta é<br />
a dicionarização <strong>de</strong>ssas palavras pitorescas, cuja “etymologia é tão rica <strong>de</strong><br />
poesia” 28 , com vistas a facilitar sua inclusão nos textos literários. O léxico<br />
brasileiro, <strong>de</strong>ssa forma, teria como principal função tropicalizar as criações<br />
literárias, imprimir-lhes uma cor lingüística local. De fato, como atestam,<br />
entre outras, as obras <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar (1829-1877) publica<strong>da</strong>s no mes -<br />
mo período 29 , o léxico foi uma ferramenta essencial para a impressão <strong>de</strong><br />
brasili<strong>da</strong><strong>de</strong> aos textos artísticos: garantia-se a cor local, sobretudo com o<br />
uso <strong>de</strong> palavras provenientes do tupinambá.<br />
Macedo Soares intitula sua obra Diccionario brasileiro <strong>da</strong> lingua por -<br />
tugueza. Apesar <strong>de</strong> lermos a expressão lingua portugueza no título, o autor<br />
sinaliza, em diversas passagens <strong>de</strong>sse e <strong>de</strong> outros textos, que há uma versão<br />
brasileira <strong>de</strong>la, ou pelo menos <strong>de</strong> seu léxico, que requer tratamento<br />
específico. A reconstrução <strong>de</strong> seu posicionamento, porém, não é tarefa simples,<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s as constantes reformulações a que foi submetido ao longo <strong>de</strong><br />
26 Cf. PINTO, Edith Pimentel. Op. cit. p. XXXII.<br />
27 BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique <strong>de</strong>. Op. cit. p. 2.<br />
28 Ibi<strong>de</strong>m. p. 2.<br />
29 ALENCAR, José <strong>de</strong>. O guarani. São Paulo: Ática, 1995 [1857]; __________. Iracema.<br />
São Paulo: Ática, 1995 [1871]; __________. Ubirajara. São Paulo: Ática, 1990 [1874].<br />
150 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
151<br />
pelo menos 17 anos <strong>de</strong>dicados ao tratamento do tema. Os estudos lexicográficos<br />
publicados por este autor em periódicos variados entre 1874 e<br />
1891 são, a propósito, uma fonte mais rica que os títulos e prólogos dos<br />
dicionários para a interpretação <strong>de</strong> opiniões sobre o estatuto <strong>da</strong> língua<br />
fala<strong>da</strong> no Brasil. Na coletânea póstuma que reúne esses textos, pu<strong>de</strong>mos<br />
contabilizar 20 maneiras diferentes (excetuando as <strong>de</strong> referência menos<br />
precisa) <strong>de</strong> nomear o português do Brasil, algumas mais e outras menos<br />
favoráveis a sua autonomia.<br />
Os nomes do português do Brasil nos <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto<br />
brasileiro são: “dialeto brasileiro”, “português do Brasil”, “linguagem na cional”,<br />
“língua brasileira”, “português falado no Brasil”, “português que se fala<br />
hoje no Brasil”, “luso-brasileiro”, “nosso dialeto”, “língua pátria”, “dialeto<br />
luso-brasileiro”, “português <strong>da</strong> América”, “nossa atual linguagem”, “brasileiro”,<br />
“língua portuguesa que se fala no Brasil”, “linguagem cá <strong>da</strong> terra”,<br />
“nossa língua”, “dialeto nacional”, “língua <strong>de</strong> cá”, “língua do Brasil”, “língua<br />
portuguesa fala<strong>da</strong> no Brasil”. Nessa listagem, como facilmente notamos, há<br />
alguns rótulos mais conciliatórios, como a língua portuguesa fala<strong>da</strong> no Brasil<br />
(e suas paráfrases), o português <strong>da</strong> América, ou o português do Brasil. E há<br />
outros mais separatistas, como a língua brasileira, o brasileiro, a língua do<br />
Brasil, a nossa língua, a língua <strong>de</strong> cá, a língua pátria, o dialeto nacional e<br />
o dialeto brasileiro. Essa hesitação (lexical) — patentea<strong>da</strong> pela alternância<br />
entre os substantivos língua, linguagem e dialeto (que <strong>de</strong>limitam estruturas<br />
hierarquicamente diferencia<strong>da</strong>s) e entre os qualificadores nacional,<br />
pátria, <strong>de</strong> cá, brasileiro — sugere que tais conceitos e a sua aplicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> à<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística do país estavam em elaboração, ou, em outros termos,<br />
que havia uma instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> conceitual nos estudos <strong>de</strong>ssa linha.<br />
Sobre a oscilação entre língua, linguagem, dialeto — mais interessante<br />
do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> <strong>de</strong>preensão do estatuto atribuído ao português<br />
do Brasil —, notamos que linguagem normalmente se aproxima dos con ceitos<br />
contemporâneos <strong>de</strong> norma (tal como proposto por Coseriu), ou variante<br />
(tal como empregado em sociolingüística quantitativa). Língua, por outro<br />
lado, é uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> com gênio ou índole própria, autônoma em relação<br />
a outras <strong>de</strong> mesma categoria, embora não haja, também neste caso, rigorosa<br />
consistência no emprego do termo. Essa flagrante aleatorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uso é reconheci<strong>da</strong> pelo próprio autor num texto em que sintetiza suas<br />
inquietações acerca do problema <strong>da</strong> língua brasileira. Publicado pela primeira<br />
vez na Revista Brasileira, em 1880, o artigo “Sobre algumas palavras<br />
africanas introduzi<strong>da</strong>s no português que se fala hoje no Brasil” 30 encerra<br />
30 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Sobre algumas palavras africanas introduzi<strong>da</strong>s<br />
no português que se fala hoje no Brasil. <strong>Estudos</strong> Lexicográficos do dialeto brasileiro.<br />
Op. cit. p. 44-74.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
uma reflexão sobre a questão <strong>da</strong> metalinguagem, partindo do rótulo mais<br />
recorrentemente utilizado por Macedo Soares: dialeto brasileiro. O autor<br />
justifica essa opção terminológica e expõe suas dúvi<strong>da</strong>s a respeito <strong>de</strong> seu<br />
significado:<br />
Temos muitas vezes, no correr <strong>de</strong>ste escrito, falado em dialeto brasi -<br />
leiro. Cumpre observar que não apuramos o valor científico <strong>da</strong> palavra<br />
dialeto. Se enten<strong>de</strong>mos por dialeto a linguagem <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> <strong>da</strong> língua<br />
geral <strong>de</strong> uma nação e particular a uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ou província, o brasileiro<br />
não é dialeto do português. Por outro lado, a expressão língua<br />
brasileira nos parece <strong>de</strong>masiado pretensiosa, se se quer com ela<br />
distinguir o português falado no Brasil, modificado pelo clima, pela<br />
na tureza ambiente, pela influência dos elementos africano e indiano,<br />
<strong>da</strong>s relações comerciais, etc. do português falado em Portugal. Em -<br />
pregamos como mais mo<strong>de</strong>sta a outra expressão, que é ao mesmo<br />
tempo menos incorreta, e dá bem a enten<strong>de</strong>r que nos referimos ao<br />
movimento que visivelmente se está operando na linguagem nacional. 31<br />
A linguagem nacional não po<strong>de</strong>ria ser toma<strong>da</strong> como uma simples<br />
variante regional; nesse sentido, não seria um dialeto do português. Por<br />
outro lado, as modificações por que passava ain<strong>da</strong> não autorizavam falar em<br />
língua brasileira. A expressão dialeto brasileiro, então, procurava <strong>da</strong>r conta<br />
<strong>de</strong> que havia um processo notável <strong>de</strong> diferenciação em curso. Contudo,<br />
mais relevante que o próprio termo é o raciocínio que o justifica: como se<br />
tratava <strong>de</strong> nações distintas, com climas, formação étnica, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas,<br />
era natural que o que se falasse em uma e outra se diferenciasse.<br />
Essa perspectiva naturalista era uma <strong>da</strong>s principais justificativas para<br />
se requerer uma língua ou dialeto diferenciado no Brasil: assim como do<br />
latim provieram diferentes e múltiplas línguas e dialetos, pelo fato <strong>de</strong> ele<br />
ter-se expandido por lugares com reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas, também do português<br />
europeu po<strong>de</strong>ria estar surgindo uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística. Tal<br />
perspectiva insinua-se na previsão <strong>de</strong> Macedo Soares em relação à in<strong>de</strong>pendência<br />
inevitável do lexicon brasileiro até meados do século XX. Ha ve -<br />
ria uma progressão histórica irrefreável em direção a seu abrasileiramento.<br />
Lembra-nos Elia 32 que essa era, em relação ao português do Brasil, a posição<br />
“<strong>da</strong> fina flor <strong>da</strong> lingüística <strong>de</strong> então: Pott, Duval, Schlei cher, Rufino José<br />
Cuervo, Francisco Adolfo Coelho”. Tal posição estava atrela<strong>da</strong> à concepção<br />
<strong>de</strong> língua como organismo natural, para a qual estariam previstos nascimento,<br />
<strong>de</strong>senvolvimento, multiplicação e morte.<br />
31 Ibi<strong>de</strong>m. p. 73.<br />
32 ELIA, Sílvio Edmundo. Op. cit. p. 89.<br />
152 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
153<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua do Brasil não eram, como vimos, consensuais<br />
entre os diferentes autores, e nem mesmo consistentes em um <strong>de</strong>les. Tam -<br />
pouco o estatuto a ela atribuído. Essa in<strong>de</strong>terminação po<strong>de</strong>ria estar relaciona<strong>da</strong><br />
ao fato <strong>de</strong> os estudos, não só sobre a língua, mas sobre as “coisas”<br />
brasileiras, serem ain<strong>da</strong> inaugurais.<br />
De to<strong>da</strong> forma, se todo signo lingüístico resulta <strong>de</strong> um recorte operado<br />
na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> objetiva a partir <strong>de</strong> um <strong>da</strong>do ponto <strong>de</strong> vista culturalmente<br />
marcado, a opção vacilante por uns e outros nomes para a língua do Brasil<br />
aponta para a existência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate acalorado. A reflexão sobre como<br />
<strong>de</strong>nominar e a proposição <strong>de</strong> novos nomes parecem, com efeito, procedimentos<br />
mais comuns quando se i<strong>de</strong>ntificam imprecisões, ou quando o no me<br />
usual parece não <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> um referente que passou a ser concebido a<br />
partir <strong>de</strong> uma nova perspectiva.<br />
E eram múltiplas, mesmo em um único autor, as perspectivas a<br />
partir <strong>da</strong>s quais a questão do estatuto do português do Brasil era proposta<br />
e avalia<strong>da</strong>.<br />
Léxico e gênio <strong>da</strong> Língua<br />
Nos <strong>de</strong>bates acerca do estatuto do português do Brasil travados du -<br />
rante o século XIX, como afirmamos anteriormente, o nível lexical — não<br />
obstante ser tradicionalmente tomado como uma <strong>da</strong>s partes mais maleáveis<br />
e suscetíveis a interferências exteriores <strong>de</strong> um sistema lingüístico 33 —<br />
funcionou como o principal fornecedor <strong>de</strong> argumentos para aqueles que<br />
reivindicaram, em diferentes graus, autonomia para o brazileiro. Em al -<br />
guns casos, esse nível <strong>de</strong> articulação foi alçado ao posto <strong>de</strong> elemento diferenciador<br />
não apenas <strong>da</strong> língua, mas também do país:<br />
[…] e, por <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> palavras que receberam [os guarani e os tupi]<br />
dos invasores, lhes <strong>de</strong>ram milhares! São principalmente essas novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
indígenas que fazem do castelhano e do português <strong>da</strong> Amé -<br />
rica uma língua assaz diferente do castelhano e do português <strong>da</strong> Eu -<br />
ropa. É por aí, mais do que pelas instituições políticas, que o Brasil<br />
e as repúblicas espanholas vão firmando sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua<br />
in<strong>de</strong>pendência, sua nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 34<br />
33 Para um histórico abrangente do tratamento <strong>de</strong>sse nível <strong>de</strong> articulação no Oci<strong>de</strong>nte,<br />
v., por exemplo, JOSEPH, John. Limiting the arbitrary. Linguistic naturalism and its<br />
opposites in Plato’s Cratylus and the mo<strong>de</strong>rn theories of language. Amster<strong>da</strong>m/Phila -<br />
<strong>de</strong>lphia: John Benjamins, 2000.<br />
34 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Notas à Declaración <strong>de</strong> la doctrina cristiana,<br />
manuscrito guarani. <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro. Op. cit. p. 229, nota 44.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
A origem autóctone <strong>de</strong> muitas <strong>da</strong>s palavras que constituíram o léxico<br />
nacional parecia garantir divergências suficientes entre a língua do Brasil<br />
e a <strong>de</strong> Portugal e, portanto, também entre os dois países. Para Macedo<br />
Soares, o léxico captava e exteriorizava uma diferença <strong>de</strong> visão <strong>de</strong> mundo<br />
e <strong>de</strong> contexto. E, se era assim, individualizava línguas e nações. Seria, ao<br />
mesmo tempo, fruto <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> (natural, social, cultural, política e étni -<br />
ca) e elemento (lingüístico) que a comprovava. Cumpriria, <strong>de</strong>sse modo, o<br />
duplo papel <strong>de</strong> incorporar e refletir a organização <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
falantes, bem como seu tempo e seu espaço.<br />
Como havia diferenças marcantes entre a nação brasileira e a portuguesa<br />
— <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s ao clima, à topografia, à flora, à fauna e à constituição<br />
étnica —, Soares enxergava a inevitabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> termos, no Brasil, um lexicon<br />
nacional, <strong>de</strong>scolado do lusitano, já na primeira meta<strong>de</strong> do século XX:<br />
Muitas <strong>de</strong>las [“vozes” = palavras] são comuns a Portugal e ao Brasil;<br />
algumas lá ficaram, que nunca foram aqui aceitas; outras, que entre<br />
nós se aforaram, jamais foram ouvi<strong>da</strong>s em Portugal; outras, finalmente,<br />
que vieram <strong>de</strong> Portugal, passaram ou estão passando no<br />
Brasil pelas transformações dialetais que <strong>de</strong>nunciam o progressivo<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as línguas. Não será ousadia afirmar que<br />
na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XX o léxicon brasileiro não há <strong>de</strong> ser<br />
mais o léxicon português. 35<br />
Para o autor, se em relação ao gênio (estrutura gramatical) a língua<br />
pu<strong>de</strong>sse permanecer a mesma em uma e outra margem do Atlântico, no<br />
léxico concentrar-se-iam as contribuições brasileiras mais autênticas à<br />
língua <strong>de</strong> Camões. Dessas contribuições, com o tempo, po<strong>de</strong>ria resultar a<br />
autonomia completa e <strong>de</strong>finitiva do dialeto brasileiro. Nestes termos contraditórios,<br />
era equacionado o problema: o léxico, uma espécie <strong>de</strong> franja <strong>da</strong><br />
língua, na medi<strong>da</strong> em que não integraria o seu gênio, po<strong>de</strong>ria ser empregado<br />
como suporte central <strong>de</strong> uma argumentação favorável à diversificação<br />
lingüística.<br />
Essa observação requer dois esclarecimentos. O primeiro diz res pei -<br />
to ao que temos chamado <strong>de</strong> autonomia. Esse conceito <strong>de</strong>ve ser nuançado,<br />
uma vez que a requisição <strong>de</strong> um estatuto autônomo para o português do<br />
Brasil não se <strong>de</strong>u sempre com a mesma ênfase e nos mesmos termos ao longo<br />
do século XIX, como a própria oscilação na metalinguagem que o <strong>de</strong>screvia<br />
parece apontar. O segundo está ligado ao papel contraditório que os<br />
<strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> autonomia atribuem ao léxico. Não o interpretamos como<br />
falha, até porque a <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong>s funções <strong>de</strong>sse nível <strong>de</strong> articulação <strong>da</strong><br />
35 I<strong>de</strong>m. Sobre algumas palavras africanas introduzi<strong>da</strong>s no português que se fala no Bra sil.<br />
<strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro. Op. cit. p. 72-73.<br />
154 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
155<br />
língua configura-se, ain<strong>da</strong> hoje, como um problema teórico relevante para<br />
a lingüística 36 . Ao mesmo tempo periférico — uma vez que não integraria a<br />
índole <strong>da</strong> língua — e essencial — já que po<strong>de</strong>ria implicar a individualização<br />
do brazileiro —, o vocabulário tornou-se o mais corriqueiro dos argumentos<br />
no <strong>de</strong>bate. E, também ambiguamente, serviu a qualquer um dos lados, ou<br />
porque, para os separatistas, evi<strong>de</strong>nciava a diferença, ou porque tal diferença,<br />
neste domínio <strong>da</strong> língua, não parecia tão significativa aos olhos dos<br />
continuístas 37 .<br />
Aparentemente convencidos do potencial explicativo <strong>da</strong>s estruturas<br />
lexicais, os estudiosos <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> que tratamos propuseram a orga ni -<br />
zação do nosso lexicon em dicionários e vocabulários exclusivamente na -<br />
cionais, pois os habitantes do país precisavam conscientizar-se <strong>de</strong> seu modo<br />
<strong>de</strong> falar, conhecer e prestigiar “as palavras e as phrases que, originárias do<br />
Brazil, ou aqui populares, não se encontrão nos diccionarios <strong>da</strong> lingua<br />
portugueza, ou nelles vem com forma ou significação diferente” 38 . Eles não<br />
ignoravam outras esferas em que a diferenciação entre o português do<br />
Bra sil e o europeu se <strong>da</strong>va e nem se sentiam inaptos a explorá-las <strong>de</strong> uma<br />
perspectiva científica, tal como se propuseram a fazer com o léxico 39 . Hou ve,<br />
ao que parece, uma eleição consciente <strong>de</strong>sse nível como o principal fornecedor<br />
<strong>de</strong> argumentos lingüísticos. De to<strong>da</strong> forma, e qualquer que tenha<br />
sido o caso, como o dicionário é um dos pilares do saber lingüístico e instrumento<br />
fun<strong>da</strong>mental para o que Auroux 40 chamou <strong>de</strong> gramatização — isto<br />
é, o processo que conduz a “<strong>de</strong>screver e a instrumentar uma língua” 41 —, a<br />
confecção <strong>de</strong> tais obras correspon<strong>de</strong> a um impulso <strong>de</strong> legitimação do português<br />
do Brasil.<br />
36 Mesmo módulos <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> investigação como o gerativista — que consolidou<br />
entre nós a visão <strong>de</strong> que é o sintático o nível <strong>de</strong> organização fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong>s línguas<br />
— reconhecem que as regras <strong>de</strong> junção <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s requerem especificações<br />
concomitantes do léxico, já que os núcleos lexicais impõem restrições à estrutura<br />
argumental dos sintagmas que integram.<br />
37 Cf. PINTO, Edith Pimentel. Op. cit.; CHRISTINO, Beatriz & COELHO, Olga. Op. cit.<br />
38 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Diccionario brasileiro <strong>da</strong> língua portuguesa.<br />
Op. cit., do pórtico <strong>da</strong> obra.<br />
39 É, nesse sentido, relevante assinalar que os próprios autores fazem, mesmo nos dicionários,<br />
observações relativas a outros níveis lingüísticos e que importantes estudos<br />
gramaticais e filológicos distanciados do tratamento do léxico e do tema <strong>da</strong> autonomia<br />
do português do Brasil foram elaborados no período. Como exemplos <strong>de</strong>sses estudos,<br />
po<strong>de</strong>mos citar os que fizeram <strong>de</strong>spontar as gramáticas hoje clássicas <strong>de</strong> Júlio Ribeiro<br />
(1845-1890), Maximino Maciel (1865-1923), Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920),<br />
entre tantas outras. Essa produção, a propósito, permite creditar a esse período o nascimento<br />
<strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s mais fortes tradições brasileiras <strong>de</strong> estudos lingüísticos, aquela<br />
<strong>de</strong>dica<strong>da</strong> à <strong>de</strong>scrição e à normatização <strong>da</strong> língua portuguesa.<br />
40 AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica <strong>da</strong> gramatização. [Trad. Eni P. Orlandi].<br />
Campinas: Editora <strong>da</strong> Unicamp, 1992.<br />
41 Ibi<strong>de</strong>m. p. 65.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Os atributos <strong>da</strong> língua<br />
Em alguns <strong>de</strong> seus textos, Macedo Soares dirige apelos aos literatos,<br />
aos jornalistas e aos brasileiros letrados em geral. Em sua visão, eles comporiam<br />
um grupo capaz <strong>de</strong> influenciar os <strong>de</strong>stinos <strong>da</strong> língua no país: se<br />
valorizassem o brazileiro, incorporando-o ao seu trabalho e ao seu dia a dia,<br />
legitimariam o modo <strong>de</strong> falar local na escrita, contribuindo para firmar o<br />
português do Brasil como língua autônoma e <strong>de</strong> cultura:<br />
Já tivemos ocasião <strong>de</strong> explicar o sentido em que empregamos a ex pressão<br />
dialeto brasileiro. Em geral, falamos esse dialeto, mas procuramos<br />
escrever um português que às vezes não é entendido, porque… di -<br />
gamos com franqueza: o português <strong>de</strong> Portugal não é inteiramente a<br />
língua do Brasil, e é raro escrever bem não sendo na própria língua. 42<br />
A escrita encaixaria o português do Brasil na categoria <strong>da</strong>s línguas <strong>de</strong><br />
civilização e o diferenciaria, por exemplo, <strong>da</strong>s “línguas selvagens” <strong>de</strong> África<br />
e Ásia 43 — ágrafas e, portanto, selvagens. A ca<strong>da</strong> nação civiliza<strong>da</strong> caberia<br />
uma língua com igual atributo. Daí a requisição <strong>de</strong> uma escrita brasileira,<br />
distinta <strong>da</strong> portuguesa. A língua por aqui já estaria diferencia<strong>da</strong> <strong>da</strong> portuguesa<br />
a ponto <strong>de</strong> a empregarmos <strong>de</strong> um outro modo; o que faltava era<br />
registrar essa mu<strong>da</strong>nça no sistema <strong>de</strong> representação escrita, que se mantinha<br />
ain<strong>da</strong> naquela “outra língua”.<br />
Quando compara<strong>da</strong> à outra língua, a do Brasil esteve sempre em<br />
vantagem: os autores con<strong>de</strong>navam, por exemplo, a corrupção causa<strong>da</strong> pela<br />
pronúncia <strong>de</strong>snatura<strong>da</strong> 44 , sobretudo <strong>da</strong>s vogais átonas, em Portugal, en quanto<br />
características fonéticas exclusivas do Brasil foram percebi<strong>da</strong>s como<br />
recuperação e preservação <strong>de</strong> traços <strong>de</strong> um português antigo, genuíno. Na<br />
mesma medi<strong>da</strong>, interferências do gálico no português <strong>de</strong> Portugal correspon<strong>de</strong>riam<br />
a uma <strong>de</strong>turpação, enquanto as interferências indígenas e africanas<br />
redun<strong>da</strong>vam em enriquecimento, e até em embelezamento, <strong>da</strong> língua<br />
no Brasil. O dialeto brasileiro, em vista dos predicados que lhe eram atribuídos,<br />
seria novo e resultante <strong>de</strong> mistura (etno)lingüística; mas também<br />
seria puro e um guardião <strong>da</strong> tradição lingüística lusitana mais profun<strong>da</strong>,<br />
já que avesso a galicismos e outros modismos abun<strong>da</strong>ntes em Portugal.<br />
42 Cf. MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. Chapa<strong>da</strong>, chapadão, chato, lomba, planiço,<br />
varge. Op. cit. p. 81.<br />
43 I<strong>de</strong>m. Sobre algumas palavras africanas introduzi<strong>da</strong>s no português que se fala no Brasil.<br />
Op. cit. p. 58.<br />
44 PARANHOS DA SILVA, José Jorge. Sistema <strong>de</strong> orthographia brazileira, pelo auctor do<br />
Idioma do hodierno Portugal comparado com o do Brazil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Typografia<br />
<strong>de</strong> Lourenço Winte, 1880. p. XII.<br />
156 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
157<br />
Novamente nos <strong>de</strong>paramos com a hesitação, oscilação, contradição<br />
que parece caracterizar os textos lingüísticos sob análise, permear to<strong>da</strong> a<br />
polêmica e contribuir para que ela <strong>de</strong> fato seja percebi<strong>da</strong> como tal: havia<br />
pouco consenso, poucas noções compartilha<strong>da</strong>s e mesmo pouco conhecimento<br />
documentado sobre a língua e seus mecanismos <strong>de</strong> funcionamento;<br />
<strong>da</strong>í a ausência <strong>de</strong> visões uniformes e coerentes sobre ela. Ser conservadora<br />
e novi<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, pura e mista era, precisa e contraditoriamente, o que confe ria<br />
riqueza à língua cá <strong>da</strong> terra. A imagem <strong>da</strong> língua era, pois, heterogênea e<br />
complexa.<br />
Esse movimento parece não ter sido exclusivo <strong>de</strong>sse grupo, mas ca -<br />
racterizar também um clima <strong>de</strong> opinião. Schwarcz i<strong>de</strong>ntifica-o em aspectos<br />
<strong>da</strong> própria organização <strong>de</strong> imagens do Segundo Império, que fundiam a<br />
cultura local a certas “tradições longínquas”:<br />
[…] que significa inventar uma corte em território americano, buscar<br />
to<strong>da</strong>s as regras na mais fiel tradição medieval européia, mas adotar<br />
nomes e títulos indígenas? Como explicar um príncipe que se veste<br />
com o rigor majestático <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s cortes, porém introduz uma<br />
murça <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> papo <strong>de</strong> tucano, tal qual um cacique, e um manto<br />
com ramos <strong>de</strong> café e tabaco? O que dizer <strong>da</strong> famosa Fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Santa<br />
Cruz, tira<strong>da</strong> dos jesuítas quando <strong>de</strong> sua expulsão pelos monarcas<br />
portugueses aqui resi<strong>de</strong>ntes, que agrupava um número elevado <strong>de</strong><br />
escravos-cantores <strong>de</strong> música sacra? De que maneira enten<strong>de</strong>r um<br />
imperador que se sentava na frente dos estan<strong>de</strong>s brasileiros <strong>da</strong>s<br />
exposições universais — ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras festas <strong>de</strong> exibição dos feitos tecnológicos<br />
e industriais capitalistas — e exibia sua coroa ao lado <strong>de</strong> produtos<br />
indígenas e <strong>da</strong> arte popular? 45<br />
Schwarcz li<strong>da</strong> com um leque bastante amplo <strong>de</strong> aspectos e nele<br />
observa a mesma busca <strong>de</strong> síntese entre o autóctone e o alóctone, entre o<br />
local e universal, que se flagra na produção lingüística relativa ao léxico<br />
do Brasil. Ao requerer para o brasileiro o status <strong>de</strong> língua <strong>de</strong> civilização e<br />
encontrar a origem <strong>de</strong> suas singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas contribuições <strong>de</strong> línguas<br />
ti<strong>da</strong>s como “selvagens”, ou nele <strong>de</strong>stacar como quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s aspectos criticados<br />
na língua matriz, o que se mostra com maior clareza são vonta<strong>de</strong>s,<br />
opiniões, preferências — traços que têm sido tradicionalmente utilizados<br />
para caracterizar <strong>de</strong>scrições lingüísticas como as que selecionamos para<br />
análise.<br />
45 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos.<br />
3ª. reimpressão. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1999. p. 17.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Outros traços, como a in<strong>de</strong>finição, também po<strong>de</strong>m ser reconhecidos<br />
nos textos que analisamos. Neles, não estão <strong>de</strong>finidos, por exemplo, os<br />
conceitos operatórios fun<strong>da</strong>mentais à discussão do estatuto <strong>da</strong> língua (tais<br />
como os <strong>de</strong> língua, dialeto, variante). Outra in<strong>de</strong>finição é a relativa ao<br />
papel do léxico nas línguas: como o vocabulário po<strong>de</strong>ria particularizar línguas<br />
e nações, e, também, ao contrário disso, estar à margem do que se<br />
consi<strong>de</strong>rava gênio <strong>da</strong> língua, tornou-se, <strong>de</strong>vido à maleabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, um argumento<br />
inconsistente.<br />
Os textos que <strong>de</strong>screveram o léxico do português do Brasil durante<br />
o século XIX tiveram certa repercussão no período em que foram publicados<br />
— receptivo a idéias basea<strong>da</strong>s no conceito <strong>de</strong> nação — mas, em segui<strong>da</strong>,<br />
foram praticamente apagados dos registros historiográficos. A razão <strong>de</strong>cisiva<br />
para isso parece estar nas características retóricas <strong>de</strong>ssas obras, que,<br />
ao fim e ao cabo, pareciam ter ambições bem maiores do que a <strong>de</strong> apenas<br />
consignar o vocabulário local. Entre essas ambições, estariam as <strong>de</strong> proporcionar<br />
o reconhecimento <strong>da</strong> literatura brasileira, legitimar as normas<br />
lingüísticas nacionais, contribuir para a formação <strong>de</strong> uma tradição local<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição lingüística.<br />
Impactos <strong>da</strong> lexicografia luso-bundo-americana<br />
sobre a lingüística brasileira<br />
Sabemos que o processo <strong>de</strong> imposição política <strong>da</strong> língua portuguesa<br />
aos habitantes do Brasil remonta pelo menos aos anos 1750, quando uma<br />
série <strong>de</strong> documentos elaborados pela administração pombalina exigiu o<br />
seu ensino e a sua utilização nos contextos oficiais. Tal medi<strong>da</strong>, alia<strong>da</strong> a<br />
diversos outros reforços ao longo <strong>da</strong> história, forjou entre nós a idéia <strong>de</strong> ser<br />
o português a língua do Brasil; e essa construção <strong>de</strong> uma aparente uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
lingüística contribuiu para que o conhecimento sobre os idiomas autóctones<br />
e africanos aqui utilizados fosse construído <strong>de</strong> forma fragmenta<strong>da</strong>,<br />
seja em estudos autônomos, seja em trabalhos que costuram sua <strong>de</strong>scrição<br />
à do português, como os <strong>de</strong> Mendonça; Silva Neto; Rodrigues, Petter 46 , entre<br />
outros. Um movimento semelhante po<strong>de</strong> ser observado em relação aos<br />
estudos clássicos, especialmente os <strong>da</strong>s línguas latina e grega.<br />
46 MENDONÇA, Renato. O português do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Bra si lei ra,<br />
1936. _________. A influência africana no português do Brasil. 4ª. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Civi li za ção Brasileira, 1973. SILVA NETO, Serafim Pereira <strong>da</strong>. Introdução ao estudo <strong>da</strong><br />
língua portuguesa no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: INL, 1950. _________. História <strong>da</strong> língua<br />
portuguesa. 2ª. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livros <strong>de</strong> Portugal, 1970. RODRIGUES, Aryon.<br />
Contribuições para a etimologia dos brasileirismos. Separata <strong>da</strong> Revista <strong>de</strong> Filologia<br />
158 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
159<br />
Se nos lembrarmos <strong>de</strong> que a eleição do português como principal<br />
objeto <strong>de</strong> análise e a adoção preferencial <strong>da</strong> perspectiva diacrônica são<br />
duas <strong>da</strong>s principais características verifica<strong>da</strong>s no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma<br />
tradição brasileira <strong>de</strong> estudos <strong>da</strong> linguagem até os anos 1970 47 , localizaremos<br />
o problema <strong>da</strong> língua brasileira — assim nomeado pelo filólogo Sílvio<br />
Edmundo Elia em 1940 — como uma <strong>da</strong>s questões centrais para o entendimento<br />
<strong>de</strong> certos processos <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong>ssa tradição. Ao que parece,<br />
a reconstrução histórica do português do Brasil — tomado em relação a sua<br />
ascendência românica ou em relação ao seu contato com outras línguas<br />
configura-se como uma <strong>da</strong>s questões <strong>de</strong> base para a formação <strong>de</strong> uma tradição<br />
lingüística nacional.<br />
Contraditoriamente, porém, é provável que o próprio interesse prepon<strong>de</strong>rante<br />
dos lingüistas brasileiros (<strong>de</strong> hoje e <strong>de</strong> ontem) pela língua portuguesa,<br />
associado ao intuito <strong>de</strong> investigar o que particulariza o nosso falar,<br />
tenha se convertido em estímulo para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> lingüística<br />
indígena e africana nos quadros acadêmicos nacionais: se a língua portuguesa<br />
aqui se diferenciava em função do contato com outras línguas, talvez<br />
fosse necessário conhecer um pouco mais sobre elas. Essa foi, por exemplo,<br />
a justificativa apresenta<strong>da</strong> por Macedo Soares 48 , no século XIX, e por Silva<br />
Neto em 1950 49 , para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se estu<strong>da</strong>rem tais línguas.<br />
Dessa forma, embora nem sempre a motivação para o tratamento <strong>da</strong>s línguas<br />
<strong>da</strong> América e <strong>da</strong> África no país estivesse vincula<strong>da</strong> ao interesse pelo<br />
português, esse interesse pô<strong>de</strong> ser tomado como uma justificativa suficiente<br />
para tanto, <strong>da</strong><strong>da</strong> a atmosfera acadêmica e institucional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito<br />
cedo marca<strong>da</strong> pela preferência por estu<strong>da</strong>r a língua portuguesa em <strong>de</strong>trimento<br />
<strong>da</strong>s (várias) outras línguas aqui existentes 50 . Se este quadro <strong>de</strong> fato<br />
assume tais tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como saldo histórico positivo <strong>da</strong> conten<strong>da</strong> em tor no<br />
<strong>da</strong> natureza do português do Brasil, po<strong>de</strong>mos apontar um aprofun<strong>da</strong>mento<br />
paulatino dos estudos <strong>de</strong>scritivos <strong>da</strong> nossa variante do português (e <strong>de</strong><br />
suas variantes internas) — um resultado previsível — e estudos ca<strong>da</strong> vez mais<br />
numerosos e verticais sobre línguas indígenas e africanas que teriam contribuído<br />
para a sua conformação — uma espécie <strong>de</strong> efeito colateral.<br />
Portuguesa, IX, p. 1-154, 1958. PETTER, Margari<strong>da</strong> Maria Taddoni. A presença <strong>de</strong> línguas<br />
africanas no português do Brasil. <strong>Estudos</strong> Lingüísticos. XXVII, p. 777-783, 1998.<br />
47 Cf. levantamento e análise que ratificam esta tendência em ALTMAN, Cristina. A pes -<br />
qui sa lingüística no Brasil (1968-1988). São Paulo, Humanitas, 1998.<br />
48 MACEDO SOARES, Antônio Joaquim <strong>de</strong>. <strong>Estudos</strong> lexicográficos do dialeto brasileiro.<br />
Op. cit.<br />
49 SILVA NETO, Serafim Pereira <strong>da</strong>. Op. cit.<br />
50 A respeito <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> línguas existentes no Brasil, do período colonial aos nossos<br />
dias, v. RODRIGUES, Aryon. As outras línguas <strong>da</strong> colonização do Brasil. In CARDOSO,<br />
Suzana et. al. 500 anos <strong>de</strong> história lingüística do Brasil, 2000.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Propomos, além disso, que essa opção pelo local (ou nacional) en -<br />
contre suas raízes na concepção <strong>de</strong> língua — e <strong>de</strong> seu estudo — como parte<br />
essencial do que nos <strong>de</strong>fine e i<strong>de</strong>ntifica. As abor<strong>da</strong>gens contextuais, transdisciplinares<br />
e discursivas <strong>da</strong> linguagem, tão marca<strong>da</strong>mente sedutoras<br />
para o lingüista brasileiro, teriam encontrado nessa concepção um porto<br />
seguro para a sua ancoragem.<br />
Outra característica que parece se impor aos estudos <strong>da</strong> linguagem<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse período é sua tênue vocação para o que po<strong>de</strong>ríamos rotular<br />
como empirismo. Se <strong>de</strong>vemos admitir que os lexicógrafos do dialeto brasileiro<br />
utilizaram diversifica<strong>da</strong>s fontes bibliográficas para a confecção dos<br />
dicionários — e essas fontes iam <strong>de</strong> textos sobre o folclore nacional a obras<br />
filológico-lingüísticas <strong>da</strong> última hora na Europa —, cumpre também admitir<br />
que raríssimas e pouco esclarecedoras referências são feitas, por exemplo,<br />
a eventuais pesquisas <strong>de</strong> campo. Isso leva a supor que, ou os procedimentos<br />
para a coleta, compilação e tratamento <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos eram largamente com partilhados<br />
— a ponto <strong>de</strong> justificar a ausência <strong>de</strong> explicitações —, ou a pesquisa<br />
bibliográfica, <strong>de</strong> gabinete, era ti<strong>da</strong> como suficiente para que se arbitrasse<br />
sobre a natureza <strong>da</strong> língua e <strong>de</strong> suas variantes 51 .<br />
A quase ausência <strong>de</strong> pesquisas <strong>de</strong> campo — excetua<strong>da</strong>s as realiza<strong>da</strong>s<br />
por Beaurepaire-Rohan nos intervalos <strong>de</strong> suas missões militares e admi nis -<br />
trativas pelas províncias do país — parece ser a responsável por um aspecto<br />
bastante curioso <strong>da</strong> conformação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>bate durante o século XIX: a língua<br />
reivindica<strong>da</strong>, sobretudo por Macedo Soares, como autônoma, ou, pelo<br />
menos, como diferente (por Rubim e Beaurepaire-Rohan), ao final <strong>da</strong>s<br />
contas, compunha-se <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 2.500 palavras, quase to<strong>da</strong>s restritas ao<br />
âmbito popular, familiar, regional, ou, no caso <strong>da</strong>s palavras indígenas,<br />
literário.<br />
51 Em projeto <strong>de</strong> pesquisa em <strong>de</strong>senvolvimento, <strong>de</strong>dicado ao estudo dos processos <strong>de</strong><br />
institucionalização <strong>da</strong> área <strong>de</strong> Letras e Lingüística no Brasil, nos séculos XIX e XX,<br />
propomos que a prática <strong>de</strong> manipulação <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos provenientes <strong>de</strong> pesquisa empírica<br />
surge fora <strong>da</strong>s disciplinas tradicionalmente associa<strong>da</strong>s ao tratamento <strong>da</strong> linguagem.<br />
Vem <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> geografia, <strong>da</strong> etnologia, <strong>da</strong> antropologia. A lingüística que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong><br />
diretamente <strong>da</strong> filologia e <strong>da</strong> gramática clássicas tem vocação teórica ou realiza<br />
<strong>de</strong>scrições basea<strong>da</strong>s em <strong>da</strong>dos “<strong>de</strong> gabinete”, isto é, em exemplos, extraídos <strong>de</strong> jornais,<br />
<strong>da</strong> literatura ou <strong>da</strong>s próprias vivências lingüísticas do <strong>de</strong>scritor.<br />
160 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
161<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói 1<br />
Erwin Torralbo Gimenez 2<br />
Resumo<br />
Centrado na análise <strong>de</strong> Caetés, primeiro romance <strong>de</strong> Graciliano Ramos,<br />
o ensaio procura examinar o processo <strong>de</strong> formulação <strong>da</strong>s idéias e dos<br />
aspectos formais, ain<strong>da</strong> sob impasses, que já indicia o projeto do autor:<br />
a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar o índio uma figura épica, <strong>de</strong>smistificando<br />
o passado e provando os seus reflexos contínuos no ciclo <strong>de</strong> explorações;<br />
o a<strong>de</strong>nsamento do núcleo conservador <strong>de</strong>ssa lógica, construí<strong>da</strong><br />
na metonímia <strong>de</strong> uma pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> se preservam as marcas <strong>de</strong><br />
uma história sem rupturas efetivas; e, em especial, o percurso do nar rador<br />
rumo à consciência que, apesar <strong>de</strong> só se insinuar ao fim, encerra<br />
o livro com o <strong>de</strong>salento <strong>de</strong> quem já não escapa ao reverso <strong>da</strong>s ilusões.<br />
Trata-se, com efeito, <strong>de</strong> um esboço <strong>de</strong> romance mo<strong>de</strong>rno, ajustado à<br />
matéria brasileira, pois promove a revisão dos <strong>de</strong>scompassos nacionais,<br />
trazidos à tona na medi<strong>da</strong> em que conduz o protagonista à reflexão<br />
solitária, para fora dos vícios ordinários do ambiente.<br />
Palavras-chave<br />
Graciliano Ramos; romance brasileiro; pobre-diabo; narrador erradio<br />
1 Este texto apareceu, originalmente, como um capítulo <strong>de</strong> minha tese <strong>de</strong> doutoramento,<br />
que versou sobre os romances em primeira pessoa <strong>de</strong> Graciliano Ramos.<br />
GIMENEZ, Erwin Torralbo. Graciliano Ramos: o mundo coberto <strong>de</strong> penas. 2005.<br />
Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) — Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e<br />
Ciências Humanas, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 2005.<br />
2 Professor <strong>de</strong> Literatura Brasileira <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências<br />
Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
E-mail: torralbogimenez@bol.com.br<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Caetés:<br />
no hero for our people<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Abstract<br />
Centered in the analysis of Caetés, Graciliano Ramos’s first novel, the<br />
essay tries to examine the formulation process of the i<strong>de</strong>as and the formal<br />
aspects, still un<strong>de</strong>r some impasse, that already indicates the author’s<br />
project: the impossibility to make the Indian into an epic figure,<br />
<strong>de</strong>mystifying the past and proving its continuous reflexes in the cycle<br />
of explorations; the thickening of the conservative core of that logic,<br />
built up on the metonym of a small town where the marks of a story<br />
without effective breaks are preserved; and, specially, the narrator<br />
steps towards the conscience which, <strong>de</strong>spite the insinuation presented<br />
only in the end, finishes his book with the feeling of not escaping from<br />
the illusions reversal. It is, in fact, a sketch of the mo<strong>de</strong>rn novel, adjusted<br />
to the Brazilian subject, for it promotes the reconsi<strong>de</strong>ration of the<br />
national differences, brought to the surface at the same time it leads<br />
the protagonist to the lonely reflection outsi<strong>de</strong> the ordinary vices of its<br />
environment.<br />
Keywords<br />
Graciliano Ramos; Brazilian novel; poor <strong>de</strong>vil; erratic narrator.<br />
162 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O<br />
único favor que nos <strong>de</strong>vem os índios é <strong>de</strong>ixarem<br />
<strong>de</strong> comer carne humana.<br />
[José Bonifácio]<br />
163<br />
Brasil é um país fun<strong>da</strong>mentalmente carnavalesco.<br />
Palmeira é uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> essencialmente brasileira.<br />
Gran<strong>de</strong> parte dos <strong>de</strong>feitos e <strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s que no brasileiro<br />
se encontram, em geral, o palmeirense possui,<br />
em particular. Reproduz-se entre nós, em ponto pequeno,<br />
o que o país em ponto gran<strong>de</strong> produz.<br />
[…]<br />
Por cima e por baixo, o mesmo fenômeno, com diferença<br />
<strong>de</strong> gra<strong>da</strong>ções: estopa pinta<strong>da</strong> <strong>de</strong> preto, a fingir casimira.<br />
A pátria é um orangotango; nós somos um sagüi.<br />
Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> em tamanho, inclinações idênticas.<br />
Imitações, a<strong>da</strong>ptações, reproduções — macaqueações.<br />
O que o Rio <strong>de</strong> Janeiro imita em grosso nós imitamos a<br />
retalho. Usamos um fraque por cima <strong>da</strong> tanga, alpercatas<br />
e meias.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
De resto, nenhum pensamento, nenhuma ação, muito<br />
falar. Temos a idolatria <strong>da</strong> palavra, vazia embora.<br />
É comparando mal, coisa semelhante ao culto do<br />
selvagem que adora a feição material <strong>de</strong> seus grosseiros<br />
manipanços <strong>de</strong> pau. A idéia escapa-lhes. Nossa<br />
preocupação máxima é falar bonito.<br />
O país é preguiçoso. Dormir é a gran<strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Coerentemente, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> dorme ou sonha acor<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />
Acor<strong>da</strong><strong>da</strong>? Engano. Vive numa modorra. De longe em<br />
longe estira os braços, espreguiça-se num bocejo, esfrega<br />
os olhos — e volta a mergulhar a cabeça nos travesseiros.<br />
[Graciliano Ramos, 1921]<br />
A crônica em xeque<br />
A técnica pessoal em arte, quando se li<strong>da</strong> com um criador capaz <strong>de</strong><br />
engendrá-la, costuma mostrar-se, em seus traços ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong> todo consumados,<br />
já nas primeiras obras. É nos rastros iniciais <strong>da</strong> sua produção,<br />
talvez, e menos nos títulos bem acabados, que <strong>de</strong>vemos começar a investigar<br />
a idéia e a expressão particulares, o sentimento e a perspectiva, o<br />
estilo enfim, responsáveis pela arquitetura própria <strong>de</strong> um escritor, no caso<br />
<strong>da</strong> literatura, a grafar a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Escapando à solidão necessária para<br />
construir a sua visão, o autor converte, na forma literária, o conceito pessoal<br />
em testemunho coletivo. Porém, ele não se faz sozinho, embora aspire à<br />
originali<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque partilha do cotidiano comum e <strong>da</strong> tradição artística<br />
— o seu trabalho se obstina em penetrar a cultura, em termos <strong>de</strong> juízo e <strong>de</strong><br />
estética.<br />
Quem se <strong>de</strong>dica a divisar o engenho <strong>de</strong> Graciliano Ramos, portanto,<br />
precisa atentar para o seu livro <strong>de</strong> estréia: Caetés. Publica<strong>da</strong> em 1933, apesar<br />
<strong>de</strong> composta entre os anos <strong>de</strong> 1925 e 1928, a obra traz a marca dos pontos<br />
isolados, cujo lugar é difícil <strong>de</strong>terminar meio às tendências <strong>da</strong> época, e trai<br />
os germes <strong>de</strong> um projeto literário ímpar. Após escrever poemas e crônicas<br />
sob pseudônimo, o autor resolve ce<strong>de</strong>r à instância <strong>de</strong> um editor carioca,<br />
assinando um romance que escondia na gaveta. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que não se alça,<br />
ain<strong>da</strong>, ao nível dos títulos posteriores, mas, por isso mesmo, <strong>de</strong>ixa entrever,<br />
no <strong>de</strong>scosido <strong>da</strong> forma, as linhas <strong>de</strong> força <strong>da</strong> técnica que <strong>de</strong>pois se potenciaria<br />
já sem impasses. Bem, se seria injusto erguer o livro ao patamar dos<br />
romances seguintes, mais injusto seria <strong>de</strong>scartá-lo porque está à sombra<br />
dos <strong>de</strong>mais.<br />
164 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
165<br />
Numa anamnese sobre o próprio ofício, Graciliano <strong>de</strong>clara:<br />
[…] É certo que, por volta dos treze anos, achei que <strong>de</strong>via ser agradável<br />
construir uma espécie <strong>de</strong> Inocência ou Casa <strong>de</strong> Pensão e fiz<br />
algumas tentativas. Com o correr do tempo os mo<strong>de</strong>los se tornaram<br />
maiores, mas aí veio o bom senso e vieram ocupações razoáveis: a<br />
idéia <strong>de</strong> ser literato <strong>de</strong>sapareceu completamente.<br />
Rememora também que, anos mais tar<strong>de</strong>, vendo-se em situação ad -<br />
ver sa, apela à literatura para expurgar certas admoestações e rabisca uns<br />
contos; quanto a Caetés, recor<strong>da</strong> constrangido:<br />
[…] O terceiro conto estirou-se <strong>de</strong>mais e <strong>de</strong>sandou em romance, pouco<br />
mais ou menos ro mance, com uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> apreciável <strong>de</strong> tipos<br />
miúdos, <strong>de</strong>sses que fervilham em to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s pequenas do in -<br />
te rior. Várias pessoas se julgaram retrata<strong>da</strong>s nele e supuseram que<br />
eu havia feito crônica, o que muito me aborreceu. 3<br />
À parte o <strong>de</strong>sencanto <strong>de</strong>ssa autocrítica — aliás Graciliano foi talvez<br />
o leitor mais severo <strong>de</strong> si mesmo —, convém retirar <strong>de</strong>la dois comentários<br />
para a nossa reflexão: primeiro, as leituras juvenis, que se nutriam <strong>de</strong><br />
românticos e naturalistas, causaram-lhe gran<strong>de</strong> estímulo a princípio, po -<br />
rém o senso maduro aos poucos o impelia a i<strong>de</strong>ar “mo<strong>de</strong>los maiores”, os<br />
quais intentariam provavelmente vencer os limites <strong>da</strong>s referi<strong>da</strong>s escolas,<br />
<strong>de</strong> maneira a representar melhor as tensões — isto é, impõe-se ao literato<br />
em esboço a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superar a tradição, movê-la por meio <strong>de</strong> um<br />
em penho aproximativo aos contornos do momento. Segundo, o seu ro mance<br />
<strong>de</strong> estréia, embora pareça haver nascido quase por aci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>certo se<br />
<strong>de</strong>stinava a cumprir aquela expectativa antes i<strong>de</strong>a<strong>da</strong>; conforme o público<br />
não lhe confere tal valor, julgando-o trabalho raso <strong>de</strong> cronista, o autor se<br />
ressente do livro e prefere abjurá-lo.<br />
To<strong>da</strong>via, se nos aprofun<strong>da</strong>mos no exame do romance, sem as mesmas<br />
prevenções, vemos que Caetés, enquanto estrutura e exercício irônico, ensaia<br />
a conversão <strong>da</strong>s narrativas prece<strong>de</strong>ntes. Em termos dos eventos, <strong>de</strong>stecem-se,<br />
nos reveses <strong>da</strong> trama, as ilusões que faziam comover nos folhetins<br />
românticos: a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar o índio uma figura épica, <strong>de</strong>smistificando<br />
o passado e provando as suas projeções contínuas no ciclo <strong>de</strong><br />
explorações e a efemeri<strong>da</strong><strong>de</strong> do enlace amoroso, cujo arrebatamento não<br />
transcen<strong>de</strong> à inconstância humana. De outro lado, essa ironia sobre os<br />
i<strong>de</strong>a lismos não encerra, como acontecia no naturalismo nacional, uma<br />
3 RAMOS, Graciliano. Alguns tipos sem importância. In:______. Linhas tortas. São<br />
Paulo: Martins, 1970.<br />
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simples <strong>de</strong>núncia dos avessos: o a<strong>de</strong>nsamento do centro conservador <strong>de</strong><br />
uma lógica perversa, construí<strong>da</strong> na metonímia <strong>de</strong> uma pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
on<strong>de</strong> se preservam as marcas <strong>de</strong> uma história sem rupturas efetivas, não<br />
redun<strong>da</strong> em <strong>de</strong>sprezo pela nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas se <strong>de</strong>tém em atravessá-la<br />
para saber reagir aos seus embustes.<br />
O <strong>de</strong>senho novo que então se percebe na composição do romance, e<br />
por isso Caetés indicia a técnica do autor, se firma em buscar um ponto <strong>de</strong><br />
equilíbrio entre os elementos constitutivos <strong>da</strong> narrativa: se a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>rramar ingênua, sofrendo uma educação em face dos reversos,<br />
tampouco os valores objetivos conseguem suplantá-la. Tal son <strong>da</strong> gem<br />
apenas se insinua porque se quer escorregar <strong>da</strong>s noções estritas; em vez<br />
<strong>de</strong> paralisar a personagem, para além ou para aquém <strong>da</strong>s contingências,<br />
ela a acompanha em seus choques com o contexto. Trata-se, com efeito, <strong>de</strong><br />
um esboço <strong>de</strong> romance mo<strong>de</strong>rno, ajustado à matéria brasileira, pois pro -<br />
mo ve a revisão dos <strong>de</strong>scompassos nacionais, trazidos à tona na medi<strong>da</strong><br />
em que conduz o protagonista à reflexão solitária, para fora dos vícios<br />
ordinários do ambiente.<br />
À primeira vista, Caetés sugere um mero registro <strong>de</strong> cotidiano tacanho<br />
e dos tipos miúdos que se condicionam à sensaboria <strong>da</strong> província.<br />
Relatando a vidinha <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior, Palmeira dos Índios, com<br />
seus costumes e sua pasmaceira, on<strong>de</strong> domina a velha prática do mandonismo<br />
e se multiplicam figuras características, aparentemente se pren<strong>de</strong> à<br />
análise curta <strong>da</strong>s crônicas sociais 4 . Seria tão só isso, se não se forjasse certo<br />
expediente: a <strong>de</strong>scrição do espaço sempre nos chega filtra<strong>da</strong> pelo crivo <strong>de</strong><br />
um narrador que, imerso nesse mundo, oscila entre a a<strong>de</strong>são embota<strong>da</strong> ao<br />
meio e vagas inquietu<strong>de</strong>s a respeito <strong>da</strong> sua lógica. De forma incipiente,<br />
mas crescendo no passo do seu percurso, o narrador-protagonista rasga<br />
no texto uma fen<strong>da</strong> através <strong>da</strong> qual se vão tornando dramáticas as experiências<br />
— diferente, logo, do juízo afastado e anti-lírico do <strong>de</strong>terminismo,<br />
4 A crítica, o mais <strong>da</strong>s vezes, relega Caetés ao plano do documento, consi<strong>de</strong>rando-o um<br />
romance falhado. Carlos Nelson Coutinho, por exemplo, conforme se esforça por in -<br />
troduzir as teorias luckasianas na interpretação <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Graciliano Ramos, conclui<br />
que o livro não vai além <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição estéril do ambiente pequeno, <strong>de</strong>ixando, assim,<br />
<strong>de</strong> atingir o caráter problemático que só a narração, técnica que segundo o crítico o<br />
escritor incorpora nos <strong>de</strong>mais romances, po<strong>de</strong> iluminar: “[…] O universo <strong>de</strong>ste ro mance<br />
não ultrapassa a representação <strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; trata-se <strong>de</strong> uma crônica,<br />
do relato quase jornalístico <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior nor<strong>de</strong>stino. Um tênue enredo,<br />
disposto em torno <strong>de</strong> um fait divers, não consegue organizar e unificar o universo do<br />
romance, criando-lhe uma estrutura que seja análoga à estrutura global do real. Na turalmente,<br />
parcelas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, isola<strong>da</strong>s do conjunto, estão reproduzi<strong>da</strong>s em Caetés;<br />
não porém o movimento <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do real, único conteúdo que po<strong>de</strong> permitir ao<br />
escritor a construção <strong>de</strong> uma forma épica ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente artística.” (GRACILIANO<br />
Ramos. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos: coleção fortuna crítica. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.)<br />
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167<br />
aqui as vicissitu<strong>de</strong>s tumultuam a idéia do indivíduo, arrastando-o em graus<br />
ca<strong>da</strong> vez mais tensos até contrair o <strong>de</strong>salento <strong>de</strong> quem já não se es quiva<br />
ao impacto <strong>da</strong>s <strong>de</strong>rrotas.<br />
Contrariamente ao que pregam os <strong>de</strong>tratores <strong>de</strong> Caetés, a sua estrutura<br />
não se difun<strong>de</strong> entre variados quadros, carecendo <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sentido;<br />
esse parecer correspon<strong>de</strong> à crônica, mas se levamos em conta que o<br />
livro visa exato ao <strong>de</strong>slizamento <strong>da</strong> superfície social para a meditação íntima,<br />
em avanço gra<strong>da</strong>tivo, aí se revela a coesão <strong>de</strong> estrutura. A análise do<br />
primeiro capítulo já aponta o norte <strong>de</strong> construção que, <strong>de</strong>sdobrando-se,<br />
garante ao conjunto um alcance mais amplo.<br />
Principiando o romance em media res, a cena <strong>de</strong> abertura nos lança<br />
na sala <strong>de</strong> Adrião, durante uma <strong>da</strong>s reuniões periódicas, às quais freqüenta<br />
um grupo seleto <strong>de</strong> convivas; a um canto, João Valério, o narrador, se atreve<br />
abrupto a beijar a esposa do anfitrião, Luísa; mediante o espanto <strong>da</strong> mulher,<br />
Valério se retira agoniado com o que fizera. Enquanto caminha só, vai pela<br />
rua avaliando os apuros que lhe causaria aquele arroubo, e então sabemos<br />
que trabalha como guar<strong>da</strong>-livros na firma do velho negociante, tomando<br />
parte também nos chás em sua casa, e que já havia algum tempo estava<br />
apaixonado por sua jovem esposa. Passa a <strong>de</strong>screver o ritmo insosso <strong>da</strong>s<br />
reuniões, quando, alheio ao burburinho em sua volta, entregava-se aos<br />
<strong>de</strong>vaneios e adorava a imagem <strong>de</strong> Luísa. Perceba-se que essa inclinação <strong>de</strong><br />
Valério para o alheamento, incapaz <strong>de</strong> fixar-se nas ro<strong>da</strong>s coletivas e nelas<br />
apagar-se junto aos <strong>de</strong>mais, correspon<strong>de</strong> à cena presente: tanto como<br />
divagava sem participar dos jogos e <strong>da</strong>s conversas, ora an<strong>da</strong> solitário após<br />
sair do âmbito social, relembrando o que lá havia ocorrido. Há, espacialmente,<br />
um manejo <strong>de</strong> espelhos: do convívio geral para o fluxo particular,<br />
<strong>da</strong> sala cheia para a rua <strong>de</strong>serta e, ao fim do capítulo, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> para o<br />
quarto <strong>de</strong> pensão, on<strong>de</strong> conjectura sobre o seu <strong>de</strong>stino.<br />
Com efeito, esta será a estratégia <strong>de</strong> composição do romance: os epi -<br />
sódios <strong>da</strong> esfera pública não servem senão como motivos que, carreados<br />
para as reflexões <strong>de</strong> Valério, vão, lenta e obliquamente, mol<strong>da</strong>ndo-lhe a<br />
consciência; o arremesso às fantasias do seu espírito o arranca <strong>da</strong> prática<br />
comum, mas o revés que a ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las se impõe, quando em face <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o faz sentir o contrapeso <strong>da</strong>s ilusões 5 . E mais: conforme se acirra<br />
5 Antonio Candido, para relativizar a tão alar<strong>de</strong>a<strong>da</strong> influência <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queiroz sobre<br />
Caetés, pon<strong>de</strong>ra: “[…] À técnica, pratica<strong>da</strong> segundo mol<strong>de</strong> queirosiano, junta-se algo<br />
próprio a Graciliano: a preocupação ininterrupta com o caso individual, com o ângulo<br />
do indivíduo singular, que é — e será — o seu modo <strong>de</strong> encarar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. No âmago<br />
do acontecimento está sempre o coração do personagem central, dominante, impondo<br />
na visão <strong>da</strong>s coisas a sua posição específica.” (CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão.<br />
São Paulo: Editora 34, 1999.)<br />
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o processo na zona do indivíduo, a visão ascen<strong>de</strong> do seu fracasso para o<br />
fracasso do mundo que o aniquilou — ao fim, a metonímia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> pe -<br />
quena se abre em chave maior, <strong>de</strong>senre<strong>da</strong>ndo a fisionomia do país.<br />
Ao sentenciar que Caetés se conserva nas raias horizontais <strong>da</strong> crônica,<br />
sendo a sua estrutura um punhado <strong>de</strong> retratos sem elos entre si, a crítica<br />
ignora justo o empenho do escritor. A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> orgânica <strong>de</strong>ste romance,<br />
disposta com vistas a fraturar o espraiamento <strong>de</strong>scritivo, se realiza a partir<br />
<strong>de</strong> uma força centrípeta — o sujeito <strong>da</strong> escrita — que traga os fatos exteriores<br />
e sobre eles imprime uma dúvi<strong>da</strong> precária, porém evolutiva. To<strong>da</strong> obra<br />
cujo propósito é <strong>de</strong>smontar uma forma literária congrega ao mesmo tempo<br />
os elementos <strong>de</strong> tal forma e o seu contraponto transformador; é assim,<br />
pois, que Caetés arranja e <strong>de</strong>sarranja os traços substantivos <strong>da</strong> crônica:<br />
espalha os quadros na superfície e em segui<strong>da</strong> os faz refluir para a verticali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
pessoal. Não se trata, contudo, <strong>de</strong> uma cisão, como a dividir o<br />
livro em dois momentos, porque esse an<strong>da</strong>mento se repete a ca<strong>da</strong> passagem,<br />
a fim <strong>de</strong> representar a formação do narrador. Deve-se assinalar que<br />
tal experimento, embora se mostre coerente em seu esquema, não <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> esbarrar em limites: ao tornar o protagonista um abismo <strong>de</strong>ntro do<br />
entrecho, com sua percepção vacilante, elabora mal as múltiplas figuras<br />
em redor <strong>de</strong>le. Se o narrador atinge ao cabo do seu percurso um estado<br />
problemático, as <strong>de</strong>mais personagens parecem permanecer na mediania.<br />
O pobre-diabo em esboço<br />
A escolha <strong>de</strong> João Valério como ângulo <strong>de</strong> apreensão <strong>de</strong>sse contexto<br />
medíocre, a propiciar um ponto <strong>de</strong> fuga <strong>de</strong>ntro do universo imóvel, não é<br />
casual. Deca<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> velha aristocracia rural, e enganado quanto à partilha<br />
<strong>de</strong> uns poucos bens, Valério foi instalar-se em Palmeira dos Índios on<strong>de</strong><br />
exercia um humil<strong>de</strong> cargo na casa Teixeira & Irmão. O caráter in<strong>de</strong>ciso <strong>da</strong><br />
sua situação — entre o orgulho <strong>de</strong> man<strong>da</strong>nte <strong>de</strong>caído e a cobiça <strong>de</strong> voltar<br />
ao mando — percute em sua instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica, a qual pendula entre o<br />
anseio <strong>de</strong> vencer naquele mundo, absorvendo as suas artimanhas, e certa<br />
reserva nem sempre abafa<strong>da</strong> contra aquele mundo. No meio <strong>de</strong> um tecido<br />
social sem mu<strong>da</strong>nças, o autor encontra um foco ain<strong>da</strong> não cristalizado,<br />
permeável portanto ao <strong>de</strong>sassossego que interroga os fatos ordinários; ora<br />
seduzido pela norma ora avesso a ela, o guar<strong>da</strong>-livros simboliza uma fissura<br />
favorável à análise <strong>da</strong> lógica geral. Insatisfeito, pois não consegue<br />
acomo<strong>da</strong>r-se aos “aborrecimentos que fervilham nesta vi<strong>da</strong> pacata, vagarosamente<br />
arrasta<strong>da</strong>”, Valério <strong>de</strong>riva para o excurso do <strong>de</strong>sejo; interditos, no<br />
ambiente estreito, os seus <strong>de</strong>sejos, ele compreen<strong>de</strong> pouco a pouco o circuito<br />
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cerrado <strong>de</strong> que é vítima. Estu<strong>da</strong>ndo um ângulo assim oscilante, o autor<br />
traceja os passos <strong>da</strong> formação <strong>de</strong> uma personagem vulnerável às ilusões e<br />
cativa do fracasso.<br />
Das várias vezes em que o narrador <strong>de</strong>para com a própria inconstância,<br />
agastado e preguiçoso, uma sugere sem equívoco a sua posição <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>snaturado no meio, e também o quase lamento <strong>de</strong> nele não saber con for -<br />
mar-se. No capítulo 16, Padre Atanásio, cujas opiniões fortes sempre servem<br />
<strong>de</strong> contraste à lógica dos enganos, transmite a Valério a oferta <strong>de</strong> emprego<br />
na firma <strong>de</strong> Mendonça, com as vantagens <strong>de</strong> melhor salário e interesse nos<br />
lucros; <strong>de</strong> início, o guar<strong>da</strong>-livros ten<strong>de</strong> a aceitar, pois seria um modo <strong>de</strong><br />
fugir a Luísa, que então o trazia muito atordoado, mas termina recusando.<br />
A recusa contenta ao padre, que a reputa à fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Valério aos pa trões<br />
(“— Perfeitamente, concordou o vigário. Recusa, mas não tem senso co mum.”),<br />
sem suspeitar que o móvel era no fundo estar próximo à esposa <strong>de</strong> Adrião.<br />
Porém, a resposta do narrador é o que bem dimensiona o seu <strong>de</strong>sconcerto,<br />
já em parte pressentido: “— Não tenho na<strong>da</strong>, nem senso nem coisa nenhuma.<br />
Sou um <strong>de</strong>sgraçado.” — isto é: a essa altura dos acontecimentos, pela meta<strong>de</strong><br />
do livro, Valério se dá conta <strong>de</strong> não participar <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m geral, porque ca<strong>da</strong><br />
vez mais se permite guiar pela emoção e menos pelo cálculo, mas em contraparti<strong>da</strong><br />
percebe que as suas velei<strong>da</strong><strong>de</strong>s, se o afastam do comum, também<br />
não chegam a lhe <strong>de</strong>finir nenhuma outra feição, e a sua <strong>de</strong>sgraça parece<br />
ser ziguezaguear sem jamais invadir o sentido <strong>da</strong>s coisas.<br />
O capítulo seguinte repete, <strong>de</strong> fato, a estrutura antes menciona<strong>da</strong>:<br />
to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sfila na procissão natalina, percorrendo os bairros até o<br />
ponto mais alto, on<strong>de</strong> se localiza a igreja; Valério observa, à margem, e<br />
quando o chamam a tomar parte no cortejo, prefere adiantar-se e esperar<br />
lá em cima. Apartado <strong>da</strong> festa coletiva, sobrevém outra vez o pendor para<br />
a auto-análise, que aliás lhe vem sempre à revelia <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>; a se -<br />
qüência <strong>de</strong> impulsos e recuos do seu <strong>de</strong>sejo enfim leva o sujeito a sus pei tar<br />
os giros do engano em que está enovelado. O enquadramento espacial <strong>da</strong><br />
cena reflete essa espécie <strong>de</strong> saliência que Valério acaba por representar, <strong>de</strong><br />
forma acanha<strong>da</strong>, na planura do ambiente mesquinho: do alto e solitário,<br />
enxerga o que ninguém po<strong>de</strong> ver lá <strong>de</strong> baixo — será assim a paisagem que<br />
lhe revelará, pela correspondência, o seu empare<strong>da</strong>mento, mas com isso<br />
lhe estorvará a invenção <strong>de</strong> novas quimeras. É o primeiro instante agudo<br />
a lhe ferir os <strong>de</strong>vaneios:<br />
Encostei-me à gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro que circun<strong>da</strong> a calça<strong>da</strong>.<br />
Montes à esquer<strong>da</strong>, próximos, ver<strong>de</strong>s; montes à direita, longe, azuis;<br />
montes ao fundo, muito longe, brancos, quase invisíveis, para as ban<strong>da</strong>s<br />
do S. Francisco. Acendi um cigarro. E imaginei com <strong>de</strong>salento<br />
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que havia em mim alguma coisa <strong>da</strong>quela paisagem: uma ex tensa<br />
planície que montanhas circulam. Voam-me <strong>de</strong>sejos por to<strong>da</strong> a parte,<br />
e caem, voam outros, tornam a cair, sem força para transpor não sei<br />
que barreiras. Ânsias que me <strong>de</strong>voram facilmente se exaurem em<br />
caminha<strong>da</strong>s curtas por esta campina rasa que é a minha vi<strong>da</strong>. 6<br />
É preciso perguntar: quais são os <strong>de</strong>sejos que, em sua travessia, se<br />
aventuram para logo <strong>de</strong>spencar? Três saltos, três que<strong>da</strong>s: narrar os feitos<br />
heróicos dos índios caetés, amar a uma mulher enleva<strong>da</strong>mente, subir na<br />
carreira do comércio. Se é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que tais fantasias advêm <strong>de</strong> um ânimo<br />
insatisfeito e se alimentam <strong>de</strong> certas falácias do imaginário brasileiro,<br />
então esgarçá-las uma a uma significa investigar agu<strong>da</strong>mente a nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Os <strong>de</strong>lírios do guar<strong>da</strong>-livros são investi<strong>da</strong>s contra a obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
a monotonia, planos <strong>de</strong> evadir-se <strong>de</strong> um entorno que em tudo lhe resulta<br />
mofino; contudo, as suas ilusões se valem dos referentes do próprio espaço,<br />
porque o cegam e fascinam as imagens cria<strong>da</strong>s pelo discurso <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m. Eis<br />
a ironia do romance: apontar a medula logra<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse mundo a partir <strong>da</strong> trajetória<br />
<strong>de</strong> um jovem que pensa ter vez <strong>de</strong> vencer aquilo que o tem vencido.<br />
Ironicamente, João Valério escon<strong>de</strong> o dinheiro para as suas <strong>de</strong>spesas<br />
ordinárias na Bíblia, justo no Eclesiastes, on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> ler na primeira<br />
pági na: “O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: na<strong>da</strong> há <strong>de</strong> novo<br />
<strong>de</strong>baixo do sol!”.<br />
Três vôos, três que<strong>da</strong>s<br />
Nem bem chega a Palmeira dos Índios, o órfão <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte já planeia<br />
um modo <strong>de</strong> suprir o seu <strong>de</strong>samparo com escrever um livro, visto que não<br />
possuía recursos e só lhe restava o talento para sair <strong>da</strong> sombra. Deci<strong>de</strong>-se<br />
a compor um romance histórico, enaltecendo a bravura dos indígenas que,<br />
no passado, <strong>de</strong>ram prova <strong>de</strong> valentia ao aprisionar os portugueses que ali<br />
aportaram após um naufrágio e <strong>de</strong>vorar o Bispo Sardinha. Embora o fato<br />
não passasse <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong> exceção na historiografia, cuja regra se<br />
fez <strong>de</strong> massacres sobre os índios, repontava como len<strong>da</strong> épica a enobrecer<br />
os filhos <strong>da</strong> terra. Sem se ocupar <strong>de</strong> estudos ou <strong>de</strong> tentar um juízo crítico<br />
acerca <strong>da</strong> matéria, interessa a Valério somente atrair a admiração dos seus<br />
pares, e assim o gênero elevado <strong>de</strong> uma epopéia se afina como nenhum<br />
outro ao seu intento. Afinal, os folhetins venturosos ain<strong>da</strong> suscitavam<br />
enorme encanto entre os provincianos e remediavam a angústia <strong>da</strong> pátria<br />
sem i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Da parte <strong>de</strong> Valério, no entanto, não há qualquer indústria<br />
6 RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1953.<br />
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enganosa, quer dizer, ele apenas <strong>de</strong>seja imitar os mo<strong>de</strong>los que lhe haviam<br />
infundido tanta exaltação na escola, e não manejar essas fantasias a fim<br />
<strong>de</strong> velar o triste legado, sendo ele próprio mais um dos que se fiavam na<br />
memória oficial e literária. Ocorre que, li<strong>da</strong>ndo com a tarefa, quando as<br />
incongruências aparecem — e aí se reproduz a constante do senso geral ao<br />
particular, ora num <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> versão comum à interrogação pessoal —,<br />
Valério se frustra com o substrato histórico, incapaz <strong>de</strong> extrair <strong>de</strong>le um<br />
valor altivo:<br />
Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer<br />
história! Os meus caetés não têm verossimilhança, porque <strong>de</strong>les<br />
apenas sei que existiram, an<strong>da</strong>ram nus e comiam gente. Li, na escola<br />
primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar,<br />
mas já esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r transformar esse material arcaico numa brochura <strong>de</strong> cem a<br />
duzentas páginas, cheia <strong>de</strong> lorotas em bom estilo, edita<strong>da</strong> no Ramalho.<br />
[…]<br />
Caciques. Que entendia eu <strong>de</strong> caciques? Melhor seria compor uma<br />
novela em que arrumasse padre Atanásio, o dr. Liberato, Nico lau<br />
Varejão, o Pinheiro, d. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as<br />
personagens, <strong>da</strong>r-lhes vi<strong>da</strong>? Decidi<strong>da</strong>mente não tinha habili<strong>da</strong><strong>de</strong> para<br />
a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar<br />
uma narrativa embacia<strong>da</strong> e amorfa. 7<br />
É durante a empreita<strong>da</strong> que Valério, leitor ingênuo dos românticos, se<br />
dá conta <strong>de</strong> não saber na<strong>da</strong> a respeito <strong>de</strong> um passado tão caro à sua imagi -<br />
nação. Enquanto se entretinha passivo com as idéias falsas, transfigura<strong>da</strong>s<br />
num tempo remoto, jamais suspeitou serem fruto <strong>de</strong> um artifício; quando<br />
se abalança a exercer o papel ativo <strong>da</strong> composição, tendo <strong>de</strong> traba lhar so -<br />
bre o material, manifesta-se a sua ignorância e a escrita emperra. De início,<br />
essa inabili<strong>da</strong><strong>de</strong> apenas revela, empiricamente, a ausência <strong>de</strong> espírito crítico<br />
no sujeito médio <strong>da</strong> nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, enevoado pelos lances heróicos <strong>de</strong> uma<br />
memória construí<strong>da</strong> 8 . Para o guar<strong>da</strong>-livros, há uma dissensão evi<strong>de</strong>nte entre<br />
ele, civilizado, e os indígenas, selvagens — conquanto os feitos <strong>de</strong>stes tinjam<br />
<strong>de</strong> glória o nosso passado, já se rompeu <strong>de</strong> todo o laço e o presente está<br />
7 Ibi<strong>de</strong>m. cap. 3.<br />
8 Exemplo dos mais emblemáticos (para não dizer risíveis) é o texto <strong>de</strong> Affonso Celso,<br />
Por que me ufano <strong>de</strong> meu país, cujo êxito editorial <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1900 dá mostra <strong>da</strong> tendência<br />
mitificadora do i<strong>de</strong>ário nacional quanto ao seu passado: “Na sua história, relaciona<strong>da</strong> com<br />
os mais notáveis acontecimentos <strong>da</strong> espécie humana, escasseiam guerras civis e efusões<br />
<strong>de</strong> sangue, sobejando feitos heróicos, formosas legen<strong>da</strong>s, preclaras figuras, lu minosos<br />
exemplos.” (CELSO, Affonso. Por que me ufano <strong>de</strong> meu país. São Paulo: Ex pres são e<br />
Cultura, 2001.) Graciliano Ramos manifestou, com dura ironia, a sua aversão a esse tipo<br />
<strong>de</strong> discurso inflado e equívoco, ao avaliar o autor: “O sr. con<strong>de</strong> Afonso Celso, varão<br />
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voltado para os rumos mo<strong>de</strong>rnos, europeizados. Daí não se fazer necessário<br />
inquirir se verídicos ou não os fatos, nobres e superados. Mas, instigado a<br />
representar o presente, o narrador também se mostra inepto; convencido<br />
do divórcio entre o Brasil antigo e o Brasil mo<strong>de</strong>rno, não consegue testemunhar<br />
sobre nenhum dos dois — evocando aquele e vivenciando este, irá<br />
no exercício <strong>da</strong> escrita duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s certezas antes impostas.<br />
Ao insistir em terminar a epopéia, Valério sofre o maior <strong>de</strong>sapontamento<br />
quando <strong>de</strong>lineia justo a passagem central: o naufrágio <strong>da</strong> esquadra<br />
lusa e o rito antropofágico dos caetés. Ignora os expedientes <strong>de</strong> invenção, e<br />
a carência <strong>de</strong> adornos, espécie <strong>de</strong> realismo involuntário, o conduz a ver as<br />
coisas mais ou menos como <strong>de</strong>viam ter-se passado:<br />
De mais a mais a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> era gran<strong>de</strong>, as idéias mingua<strong>da</strong>s recalcitravam,<br />
agora que eu ia tentar <strong>de</strong>screver a impressão produzi<strong>da</strong><br />
no ru<strong>de</strong> espírito <strong>da</strong> minha gente pelo galeão <strong>de</strong> d. Pêro Sardi nha. Em<br />
todo caso apinhei os índios em alvoroço no centro <strong>da</strong> ocara, aterrorizados,<br />
gritando por Tupã, e afoguei um bando <strong>de</strong> marujos portugueses.<br />
Mas não os achei bem afogados, nem achei a bulha <strong>de</strong> caetés<br />
suficientemente <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>.<br />
Com a pena irresoluta, muito tempo contemplei <strong>de</strong>stroços flu tuan -<br />
tes. Eu tinha confiado naquele naufrágio, i<strong>de</strong>alizado um gran<strong>de</strong><br />
nau frágio cheio <strong>de</strong> adjetivos enérgicos, e por fim me aparecia um<br />
pequenino naufrágio inexpressivo, um naufrágio reles. E curto: <strong>de</strong> -<br />
zoito linhas <strong>de</strong> letra espicha<strong>da</strong>, com emen<strong>da</strong>s. Pôr no meu livro um<br />
navio que se afun<strong>da</strong>! Tolice. On<strong>de</strong> vi eu um galeão? E quem me disse<br />
que era galeão? Talvez fosse uma caravela. Ou um bergantim. Melhor<br />
teria feito se houvesse arrumado os caetés no interior do país e <strong>de</strong>ixado<br />
a embarcação escangalhar-se como Deus quisesse. 9<br />
Impossível narrar feitos nunca vistos, se não se propõe o escritor gerar<br />
fantasmas. Valério bem gostaria <strong>de</strong> saber gerá-los, pois ambiciona concluir<br />
o romance para ganhar prestígio na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; acontece que lhe falta a<br />
astúcia <strong>de</strong> novelista, ou melhor, não supunha haver tanta astúcia nas no -<br />
velas li<strong>da</strong>s. Sem adquirir a ciência nos estudos, e inebriado com a retórica<br />
fantasista, é na experiência <strong>da</strong> escrita que ele tropeça nas dúvi<strong>da</strong>s — e<br />
estanca diante <strong>de</strong>las. E a dúvi<strong>da</strong> se gradua em sentimento do contrário; no<br />
capítulo 18, subseqüente à metáfora <strong>da</strong> planície e dos montes, o narrador<br />
ilustre <strong>de</strong> outras i<strong>da</strong><strong>de</strong>s, parecia muito firme e era precioso. Foi ele que nos habituou a<br />
temer esse patriotismo farfalhudo que olha para cima, cruza os braços e vive no mun do<br />
<strong>da</strong> lua; foi ele que, em matéria <strong>de</strong> composição literária, sempre nos <strong>de</strong>u lições va lio sas<br />
mostrando, perseverante e <strong>de</strong>sinteressado, como não se <strong>de</strong>ve escrever.” (RAMOS, Gra -<br />
ciliano. Uma eleição. In:______. Linhas tortas. Op. cit.).<br />
9 RAMOS, Graciliano. Caetés. Op. cit. cap. 7.<br />
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173<br />
diz haver abandonado os índios, e explica: “Para que mexer nos caetés, uma<br />
hor<strong>da</strong> <strong>de</strong> brutos que outros brutos varreram?”<br />
Um parágrafo abaixo, o segundo vôo infeliz repete a curva <strong>de</strong> <strong>de</strong>scenso,<br />
indo <strong>da</strong> euforia à indiferença:<br />
Só Luísa me preocupava. Desejei-a dois meses com uma intensi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que hoje me espanta. Um <strong>de</strong>sejo violento, livre <strong>de</strong> todos os véus<br />
com que a princípio tentei encobri-lo. Amei-a com raiva e pressa,<br />
<strong>de</strong>spi-me <strong>de</strong> escrúpulos que me importunavam, sonhei, como um<br />
doente, cenas lúbricas <strong>de</strong> arrepiar.<br />
Como ficou dito, as primeiras páginas já anunciam o entorpecimento<br />
do narrador por causa <strong>da</strong> esposa <strong>de</strong> seu patrão; <strong>de</strong>svanece-o a candura<br />
<strong>de</strong> Luísa, em quem projeta a aura <strong>de</strong> um ser superior, digno <strong>de</strong> todos os<br />
seus cui<strong>da</strong>dos: “A religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que a minha alma é capaz ali se concentrava”.<br />
À paixão se juntava ain<strong>da</strong>, acessória, a perspectiva <strong>de</strong> tomar ao<br />
chefe, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, além <strong>da</strong> mulher a herança. O espírito romântico<br />
<strong>de</strong> Valério se extravasa obcecado em torno a Luísa, que assim empresta<br />
aos seus <strong>de</strong>svarios apenas a imagem, cujo preenchimento se faz com as<br />
nuvens do amor i<strong>de</strong>al. Tornando-se amante <strong>de</strong> Luísa, às escondi<strong>da</strong>s, sente<br />
aflorar em si a sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e o enlevo surge mu<strong>da</strong>do em apelo erótico —<br />
a sacie<strong>da</strong><strong>de</strong> aos poucos o força a duvi<strong>da</strong>r, como no caso anterior, <strong>da</strong> infinitu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> seus entusiasmos: “Mas to<strong>da</strong>s as belas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s com que me<br />
entretive a enfeitar o meu ídolo seriam o que eu julgava?” Outra vez, a<br />
experiência faz Valério entestar com o avesso <strong>da</strong> ilusão, tombando frente<br />
às muralhas ergui<strong>da</strong>s pela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> 10 .<br />
Com isto, po<strong>de</strong>-se inferir mais um elemento <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> Caetés em<br />
relação à narrativa tradicional: o triângulo amoroso, lugar-comum <strong>da</strong>s<br />
tra mas romanescas, aqui não aparece como a <strong>de</strong>sgraça dos amantes<br />
espreitados pela convenção, impedidos <strong>de</strong> viver o amor elevado no mundo<br />
contra o qual se voltam — o que ora apaga a chama dos amantes é o fim do<br />
<strong>de</strong>sejo. Após vencer a esquivança <strong>de</strong> Luísa, o guar<strong>da</strong>-livros passa a fre -<br />
qüen tar a sua cama, quando o marido se ausenta <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; embora se<br />
10 Graciliano Ramos, ain<strong>da</strong> na juventu<strong>de</strong>, explicita o seu apego ao realismo, o qual consi<strong>de</strong>ra<br />
a única seara competente ao escritor interessado em <strong>da</strong>r testemunho do seu<br />
tempo. Aos <strong>de</strong>zoito anos, conce<strong>de</strong> uma ent<strong>revista</strong> à imprensa local, <strong>de</strong>clarando: “[…]<br />
Prefiro a escola que, rompendo a trama falsa do i<strong>de</strong>alismo, <strong>de</strong>screva a vi<strong>da</strong> tal qual é,<br />
sem ilusões nem mentiras./ Antes a ‘nu<strong>de</strong>z forte <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>’, que o ‘manto diáfano <strong>da</strong><br />
fantasia’./ Dizem por aí que os realistas só olham a parte má <strong>da</strong>s coisas./ Mas, que querem?/<br />
A parte boa <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> quase que não existe./ De resto, é bom a gente acostumar-se<br />
logo com as misérias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É melhor do que o indivíduo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mergulhado<br />
em pieguices românticas, <strong>de</strong>parar com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nua e crua.” (Apud SAN T’ANA,<br />
Moacir Me<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>. Graciliano Ramos: achegas bibliográficas. Maceió: Arquivo Pú bli -<br />
co <strong>de</strong> Alagoas, Senec, 1973.)<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
acautelem, logo o caso transpira entre os palmeirenses, e Adrião recebe<br />
uma carta anônima que lhe <strong>de</strong>nuncia o adultério; interpelado pelo patriarca<br />
traído, Valério nega tudo, mas Adrião teme o escân<strong>da</strong>lo e mete uma bala<br />
no peito; agoniza até que enfim falece. Todos sabem ou <strong>de</strong>sconfiam do real<br />
motivo do suicídio, porém a or<strong>de</strong>m trata rápido <strong>de</strong> abafar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> malvin<strong>da</strong>,<br />
e o médico arruma como pretexto não agüentar mais o pobre velho<br />
os achaques nervosos e preferir a morte. Absolvidos pelo silêncio cúmplice<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, Luísa e Valério po<strong>de</strong>riam casar-se, não fosse o arrefecimento<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes fatal à paixão. De fato, o narrador usa menos <strong>de</strong> cálculo que<br />
<strong>de</strong> sentimento, porque, se tivesse aprendido a inserir-se na lógica dos interesses,<br />
assumiria o posto <strong>de</strong> Adrião na casa e na firma. Compungia-o,<br />
entretanto, ver gorar-se mais uma quimera, e quando vai procurar Luísa,<br />
dois meses <strong>de</strong>pois, já o faz por mera obrigação moral (“Hipocrisia: todos<br />
os meus <strong>de</strong>sejos tinham murchado.”). A frieza <strong>da</strong> última ent<strong>revista</strong> obstrui<br />
qualquer reconciliação (“— É que <strong>de</strong>sapareceu tudo.”, sentencia Luísa), e<br />
Valério tem <strong>de</strong> mirar o próprio tamanho tal qual a nova que<strong>da</strong> o reduzira:<br />
“E tentei adornar Luísa com os atributos <strong>de</strong> que a tinha <strong>de</strong>spojado./ — Para<br />
quê? refleti. É melhor assim./ Eu agora era um pequenino João Valério,<br />
guar<strong>da</strong>-livros mesquinho.” (cap. 29)<br />
A terceira falência do protagonista diz respeito ao fator econômico.<br />
Como aristocrata <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> posses, Valério tem <strong>de</strong> empregar-se numa<br />
firma comercial, on<strong>de</strong> trata <strong>da</strong> escrituração; sem dominar a malícia dos<br />
negócios, exerce uma função burocrática, mas inveja os donos <strong>da</strong> nova<br />
or<strong>de</strong>m e almeja fazer-se um <strong>de</strong>les. Com efeito, <strong>de</strong>tém somente um conhecimento<br />
formal, típico dos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> velha classe, ignorante dos<br />
meandros próprios à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> especulativa — já no começo, espanta-se com<br />
a sua inépcia para o mercado: “…admirei o tino <strong>de</strong> Adrião. Não serei um<br />
comerciante nunca.” A<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> não apreen<strong>de</strong>r a lógica burguesa, pois<br />
provém <strong>de</strong> outro sistema, a sua índole indisciplina<strong>da</strong> e flutuante lhe impe<strong>de</strong><br />
treinar o raciocínio, <strong>de</strong> modo a arraigar em si as argúcias <strong>de</strong> arrivista<br />
— a ascensão financeira era para ele mais um <strong>de</strong>svario que um projeto. Por<br />
isso, também inveja os bacharéis que, bem afinados com o curso <strong>da</strong>s conveniências,<br />
amealham os lucros que ele cobiça sem saber como obter. Ver -<br />
<strong>da</strong><strong>de</strong>iro arrivista, na região, é Evaristo Barroca: figura característica <strong>da</strong> era<br />
burguesa, operou com sucesso os seus meios, usando do diploma para<br />
ganhar respeito e meter-se na prática dos favores e na política, afetando uma<br />
cultura <strong>de</strong> almanaque, trazendo às suas mãos os bens <strong>da</strong> aristocracia:<br />
“Aquele, sim, an<strong>da</strong> sem se <strong>de</strong>ter e alcança tudo com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vence os embaraços,<br />
corta-os, e o que vai encontrando serve-lhe <strong>de</strong> meio para avançar.<br />
Que bandido!” Apesar <strong>de</strong> presumir, <strong>de</strong> vez em vez, os sintomas <strong>de</strong>ssa so -<br />
cie<strong>da</strong><strong>de</strong>, nova apenas nas formas <strong>de</strong> ação, o guar<strong>da</strong>-livros é incapaz <strong>de</strong><br />
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175<br />
manejar os seus cordões, o que fica claro quando se refere ao jogo <strong>de</strong> xa -<br />
drez, explorado no romance como espelhamento <strong>da</strong> praxis social: “…não me<br />
entravam na cabeça aquelas combinações embrulha<strong>da</strong>s. Afinal sempre<br />
me resignava a per<strong>de</strong>r uma parti<strong>da</strong>.”<br />
O capítulo 30 encerra, ironicamente, o ciclo malogrado em que gira<br />
o pobre-diabo João Valério. Morto o cabeça <strong>da</strong> firma, Adrião, o guar<strong>da</strong>-livros<br />
é promovido a sócio, a convite <strong>de</strong> Vitorino, o Teixeira ocioso. Imaginando-se<br />
vencedor, preten<strong>de</strong> apagar em si os vestígios <strong>de</strong> evasão, compenetrar-se<br />
do pragmatismo <strong>de</strong> um negociante; os reveses acolhidos em seu espírito<br />
lhe parecem, ain<strong>da</strong>, não se implicarem em na<strong>da</strong> com o presente, ao qual<br />
se <strong>de</strong>veria pren<strong>de</strong>r. Entretanto, para nós leitores, reponta o sentido circular<br />
do seu percurso: o protagonista se encontra, ao fim, na mesma situação do<br />
início. Basta analisar o primeiro parágrafo para verificar que tudo ro<strong>da</strong> sem<br />
sair do lugar: “Decorreram mais três meses. Passei a sócio <strong>da</strong> casa, que<br />
Vitorino não po<strong>de</strong> dirigi-la só; Luísa é hoje comanditária; a razão social<br />
não foi altera<strong>da</strong>.” — note-se, na cadência do período, o movimento enganoso<br />
que tal entorno, inabalável, <strong>de</strong>screve: o tempo transcorre, Valério sobe um<br />
<strong>de</strong>grau na firma (mas já se sabe que em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> o patrão necessitar <strong>de</strong><br />
auxílio), a viúva do outro sócio herdou parte dos fundos, e o sobrenome do<br />
novo sócio não consta na placa — isto é: sob a aparente mu<strong>da</strong>nça resiste a<br />
conservação. Qual a percentagem <strong>de</strong> Valério na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>do que o<br />
espólio <strong>de</strong> Adrião coube a Luísa e Vitorino, é óbvio, não renunciou ao seu<br />
quinhão? O prêmio do protagonista se limita a ter redobrado o serviço, em<br />
favor do irmão que restou, este, sim, beneficiado com o sumiço do chefe:<br />
Todos os dias, <strong>da</strong>s oito <strong>da</strong> manhã às cinco <strong>da</strong> tar<strong>de</strong>, trabalho no es critório,<br />
e trabalho com vigor. Temos ocupação: precisamos inspirar<br />
confiança à freguesia e sossegar os fornecedores, mostrar-lhes que<br />
po<strong>de</strong>mos gerir o estabelecimento na falta do chefe que <strong>de</strong>sapareceu.<br />
Continuo na pensão <strong>de</strong> d. Maria José, mas aos domingos janto com<br />
Vitorino. Quase sempre vai Isidoro. A Teixeira, excelente dona <strong>de</strong><br />
casa, traz aquilo muito bonito. Há no salão duas paisagens a óleo. Os<br />
móveis <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> jantar foram substituídos por outros, on<strong>de</strong> porcelanas<br />
e cristais novos brilham. Uma habitação confortável. 11<br />
Enquanto a vi<strong>da</strong> do narrador permanece em igual modéstia, apenas<br />
aumentado o trabalho com o título <strong>de</strong> sócio, a <strong>de</strong> Vitorino se areja <strong>de</strong> vantagens.<br />
A ironia do autor, oculto atrás <strong>da</strong> ilusão <strong>de</strong> Valério, consiste em<br />
11 RAMOS, Graciliano. Caetés. Op. cit.<br />
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colocá-lo exato na posição do começo, variando só o cenário: à semelhança<br />
do início, ele freqüenta a casa do patriarca, ora Vitorino, e transfere o <strong>de</strong>sejo<br />
antes projetado em Luísa para Josefa, a filha do anfitrião, com quem<br />
sonha à noite, sozinho: “No silêncio do meu quarto, penso às vezes que a<br />
vi<strong>da</strong> com ela seria doce. […] Parece-me que vou casar com a Teixeira.” O<br />
círculo se fecha, perfeito: a condição atual <strong>da</strong> personagem em na<strong>da</strong> contradiz<br />
aquela <strong>da</strong> primeira cena, pois o estado <strong>de</strong> coisas não lhe abriu qualquer<br />
brecha, e ele tampouco a soube abrir por si mesmo; em paralelo ao<br />
efeito inútil <strong>de</strong> os caetés haverem <strong>de</strong>vorado o bispo português, já que os<br />
índios acabaram dizimados, o fato <strong>de</strong> Valério “<strong>de</strong>vorar” Adrião, tomandolhe<br />
o posto, equivale também a uma falsa vitória.<br />
Porém, o <strong>de</strong>vaneio econômico, mal fincado na or<strong>de</strong>m presente, não se<br />
salva <strong>de</strong> <strong>de</strong>cair e, esboroando-se, será a gota d’água a inun<strong>da</strong>r a consciência<br />
do narrador. Em simetria exata com a estrutura do romance, sempre<br />
afunilando o foco para o olhar do protagonista e repuxando-o do senso<br />
comum, as últimas páginas vão lançá-lo naquele mesmo ponto elevado,<br />
on<strong>de</strong> antes sofreu a primeira fisga<strong>da</strong> lúci<strong>da</strong>: “Entrei a vagar pela ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
maquinalmente, levado por uma on<strong>da</strong> <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ções. À boca <strong>da</strong> noite<br />
achava-me na calça<strong>da</strong> <strong>da</strong> igreja./ Da paisagem admirável apenas se divi -<br />
sa vam massas confusas <strong>de</strong> serras cobertas <strong>de</strong> sombras.” Em caminha<strong>da</strong><br />
solitária, e ora cumulado <strong>de</strong> fracassos, Valério se encontra outra vez acima<br />
do ambiente tacanho; a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> dorme, abaixo, e os montes que o empare<strong>da</strong>vam<br />
já se nublam — não é que os tenha transposto com o êxito, mas, sim,<br />
com reconhecer, à custa <strong>da</strong>s que<strong>da</strong>s, que eles o obrigam a enxergar-se<br />
pequeno. Quando se livra <strong>da</strong>s ilusões, após experienciar os seus reveses,<br />
ganha a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saber-se preso. Tanto os enganos <strong>da</strong>quele mundo se<br />
infiltram em sua idéia que, por fim, a inquietação se traduz em consciência,<br />
ou melhor, o olhar inquieto já não cabe nos limites <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, à beira <strong>da</strong><br />
consciência. Feito um eco às avessas, assim como ocorria durante a escrita<br />
<strong>da</strong> epopéia, a assertiva se relativiza em interrogativa: “Infelizmente não sou<br />
selvagem.” (cap. 3); “Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido,<br />
com uma tênue cama<strong>da</strong> <strong>de</strong> verniz por fora?” (cap. 31). Derrubado <strong>da</strong> imagem<br />
civiliza<strong>da</strong> que lhe havia incutido a promessa mo<strong>de</strong>rna, a qual o asfixiava<br />
e diminuía, o guar<strong>da</strong>-livros se vê presa <strong>da</strong> mesma teia que antes <strong>de</strong>duzira<br />
pren<strong>de</strong>r os indígenas; <strong>de</strong>rivando <strong>da</strong> sincronia à diacronia, sente percutir<br />
em seu itinerário um fado igual ao dos caetés, pois os irmana o fracasso<br />
ditado por uma lógica cerra<strong>da</strong>, cuja arte se dá em mu<strong>da</strong>r os meios e conservar<br />
a essência: “Um caeté, sem dúvi<strong>da</strong>.” Ao topar com essa alteri<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
dramática, levanta os traços do caráter nacional 12 — inconstância, preguiça,<br />
12 José Paulo Paes, retomando as discussões em torno dos influxos <strong>de</strong> A Ilustre Casa <strong>de</strong><br />
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177<br />
embrutecimento, imaginação <strong>de</strong>sregra<strong>da</strong>, etc. —, cuja permanência na<br />
alma dos explorados (dos índios até ele) sempre os <strong>de</strong>sviou <strong>de</strong> levar a cabo<br />
qualquer ruptura com a tradição brasileira, que assim risca círculos contínuos<br />
sem evoluir nem se formar: “Outras raças, outros costumes, quatrocentos<br />
anos. Mas no íntimo, um caeté.” E as frases finais resumem bem o<br />
espírito vagabundo <strong>de</strong> um povo, incapaz portanto <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r heroicamente<br />
a sua história: “Tenho passado a vi<strong>da</strong> a criar <strong>de</strong>uses que morrem logo, ídolos<br />
que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>rrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra…”.<br />
O selvagem e o funcionário<br />
Aliado à revisão do pensamento nacional, em termos i<strong>de</strong>ológicos e<br />
formais, está o problema peculiar do ângulo narrativo: distinto dos relatos<br />
em primeira pessoa, que se costumam fazer com o retrospecto do vivido, em<br />
Caetés o narrador se constrói quase colado aos eventos, <strong>de</strong> maneira a refletir<br />
o passo gradual <strong>de</strong> uma formação, movi<strong>da</strong> pelas incertezas, numa espécie<br />
<strong>de</strong> educação sentimental à brasileira. À medi<strong>da</strong> que os fatos lhe contrariam<br />
as expectativas, João Valério começa a converter a memória em testemunho,<br />
até que, digeri<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>sventuras pelo crivo subjetivo, cessa <strong>de</strong> palpitar<br />
in<strong>de</strong>ciso e chega a um julgamento. Para representar esse fenômeno, e <strong>de</strong>slizar<br />
<strong>da</strong> superfície social, o escritor forja um narrador erradio, cuja feição <strong>de</strong><br />
vagabundo (vagueante, sem base firme) se presta a intuir as contradições do<br />
espaço. É assim que Graciliano se <strong>de</strong>svencilha do ponto <strong>de</strong> vista hori zon -<br />
tal e examina criticamente as tensões, esboçando uma técnica pessoal 13 .<br />
Antonio Candido, quando do cinqüentenário <strong>de</strong> Caetés, observa:<br />
Ramires, <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queiroz, sobre Caetés, conclui que as obras se encerram em tons<br />
absolutamente opostos: enquanto aquela exorta os portugueses a reatar com o seu<br />
passado glorioso, pois a índole lusa lhe parece altiva, esta <strong>de</strong>sven<strong>da</strong> o sentido negativo<br />
do nosso caráter, <strong>de</strong> comum servil e inerte: “por serem o contrário <strong>da</strong>s ‘necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
sociais’ <strong>da</strong> civilização, elas não são virtu<strong>de</strong>s, são vícios”. E então o crítico aponta<br />
em Caetés o constitutivo <strong>de</strong>siludido <strong>da</strong>s figuras do autor, vendo em João Valério a primeira<br />
feição <strong>de</strong> pobre-diabo: “Termina assim Caetés num clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença e malogro<br />
pessoal que se irá prolongar até São Bernardo, Angústia e Vi<strong>da</strong>s Secas, os dois primeiros<br />
escritos também em primeira pessoa.” (PAES, José Paulo. Do fi<strong>da</strong>lgo ao guar<strong>da</strong>-livros.<br />
In: ______. Transleituras. São Paulo: Ática, 1995.)<br />
13 Segundo Walter Benjamin, o que caracteriza a prosa mo<strong>de</strong>rna é o ilhamento do sujeito<br />
em suas próprias experiências, retirado do convívio geral para reflexionar acerca do<br />
mundo: “[…] A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não<br />
po<strong>de</strong> mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />
conselhos, e que não sabe <strong>da</strong>r conselhos a ninguém. Escrever um romance significa<br />
<strong>de</strong>screver a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo.” (BENJAMIN,<br />
Walter. A crise do romance. In: ______. Obras Escolhi<strong>da</strong>s I: magia e técnica, arte e política<br />
— ensaios sobre literatura e história <strong>da</strong> cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.)<br />
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[…] as ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do texto, vincula<strong>da</strong>s à ironia criadora <strong>de</strong> Gra -<br />
ci liano Ramos, ironia que está na estrutura e é um dos maiores<br />
encantos do livro. Com efeito, o narrador lamenta a própria incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escrever o romance sobre os índios e parece construir um<br />
vazio, que é a ausência do discurso planejado; mas simultaneamente,<br />
como sem querer, vai escrevendo algo mais importante: a história <strong>da</strong><br />
sua experiência amorosa no quadro <strong>da</strong> pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O seu fra -<br />
cas so é, portanto, o seu triunfo; o vácuo aparente é uma plenitu<strong>de</strong>… 14<br />
E, se cabe fazer um trocadilho, o seu triunfo é conhecer o próprio fra casso,<br />
porque isto o emancipa <strong>da</strong> cegueira comum e lhe dá vez <strong>de</strong> penetrar o<br />
valor negativo <strong>da</strong> sua empresa no mundo, bem como pensar a negativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
do mundo. O título do romance — Caetés —, a lembrar os nomes <strong>de</strong> epopéia,<br />
como Os Lusía<strong>da</strong>s, reforça a ironia: impossível entre nós um canto épico,<br />
<strong>da</strong>do o círculo histórico, a nossa tragédia po<strong>de</strong> ser conta<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong><br />
qual quer momento, pois passado e presente se comunicam.<br />
Deve-se, contudo, ressalvar o preço pago ao ensaio <strong>de</strong> um “mo<strong>de</strong>lo<br />
maior”: conforme a perspectiva se concentra inteira numa figura, traduzindo<br />
em sua particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> os abalos gerais, faz convergir para esse<br />
abismo to<strong>da</strong> a carga problemática e obscurece, ou <strong>de</strong>ixa por <strong>de</strong>senvolver,<br />
as <strong>de</strong>mais personagens do enredo. Obstinado em autenticar um foco isolado,<br />
o autor hipertrofia o seu papel <strong>de</strong>ntro do livro e com efeito o torna<br />
típico, mas esquece os que estão orbitando em redor <strong>de</strong>le no <strong>de</strong>grau dos<br />
médios 15 . Trata-se <strong>de</strong> um limite necessário ao projeto, pois só se po<strong>de</strong> pôr<br />
em xeque uma forma artística quando se posiciona o seu avesso <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>la mesma. Tanto assim que certas personagens <strong>de</strong> feitio naturalista, ou<br />
seja, aquelas regi<strong>da</strong>s pela face exterior, aparecem algo relativiza<strong>da</strong>s sob o<br />
14 CANDIDO, Antonio. No aparecimento <strong>de</strong> Caetés. In: ______. Ficção e confissão. São<br />
Paulo: Editora 34, 1999.<br />
15 Tais categorias foram longamente estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s por Georg Lukács: “Apresenta-se aqui a<br />
escolha: o mo<strong>de</strong>lo para a caracterização artística <strong>de</strong>ve ser a estrutura normal do típico<br />
ou a do médio? O princípio <strong>de</strong>sta escolha implica, em resumo, o seguinte: se a forma<br />
<strong>da</strong> caracterização parte <strong>da</strong> explicitação ao máximo grau <strong>da</strong>s <strong>de</strong>terminações contraditórias<br />
(como no típico), ou se estas contradições se <strong>de</strong>bilitam entre si, neutralizandose<br />
reciprocamente (como no médio). […] No primeiro caso, vemos como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />
forma, que <strong>de</strong>senvolve o seu conteúdo médio <strong>de</strong> acordo com as proporções <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
real, engendra movimento e vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> no que é em si rígido; no segundo caso, vemos<br />
que o modo <strong>da</strong> realização formal na representação é muito mais pobre do que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
empírica imediata.” (LUKÁCS, Georg .O típico: problemas <strong>da</strong> forma. In: ______.<br />
Introdução a uma estética marxista. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.) Neste<br />
sentido, po<strong>de</strong>ríamos dizer que, em Caetés, João Valério atinge a estatura do típico, pois<br />
as suas contradições se tensionam a ponto <strong>de</strong> a personagem escapar à mediania,<br />
enquanto as <strong>de</strong>mais se mantêm quase inaltera<strong>da</strong>s.<br />
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prisma do narrador: o cientificismo biológico e político, cujos estigmas<br />
estão respectivamente em dr. Liberato e Miran<strong>da</strong> Nazaré, embora causem<br />
admiração em Valério, logo redun<strong>da</strong>m em disparate; o <strong>de</strong>terminismo sexual,<br />
como em d. Maria José e Isidoro Pinheiro, per<strong>de</strong> o seu teor patológico e se<br />
verte em <strong>de</strong>man<strong>da</strong> afetiva: “Punham a sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> podiam alcançá-la.”<br />
Um tipo menos rasteiro é Nicolau Varejão: sendo em tudo um<br />
pobre-diabo, sem nenhum mérito entre os seus pares, intenta ludicamente<br />
imaginar, com um espiritismo arrevesado, gran<strong>de</strong>s passagens em suas vi<strong>da</strong>s<br />
pretéritas, como se isso lhe corrigisse a má sina; encontrando apenas o<br />
riso dos ouvintes, Varejão serve <strong>de</strong> duplo para o protagonista e já prenuncia<br />
o seu <strong>de</strong>sencanto.<br />
O importante é acentuar, neste romance <strong>de</strong> estréia, a gênese <strong>de</strong> um<br />
projeto literário engajado na busca <strong>de</strong> um equilíbrio técnico que, sem<br />
eclipsar o entorno, se enraíza no sujeito para formar o seu olhar. Se em<br />
Caetés o alcance se circunscreve ao estudo <strong>de</strong> um indivíduo e do seu contexto,<br />
os romances seguintes irão aprimorar o engenho, articulando na<br />
trama uma hierarquia <strong>de</strong> entes típicos.<br />
Vale a pena sublinhar ain<strong>da</strong>, no cerne <strong>da</strong> técnica, o juízo <strong>de</strong> Gra ci -<br />
liano Ramos no tocante à nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: sem reacen<strong>de</strong>r o mito do herói<br />
civilizador, próprio <strong>da</strong> cultura indígena 16 , como fizeram os mo<strong>de</strong>rnistas,<br />
nem se enganar com a miragem do progresso que contemplaria a todos, a<br />
sua visão do fracasso resiste aos apelos <strong>de</strong> evasão seja no passado seja no<br />
futuro 17 . O problema brasileiro, com efeito, se <strong>de</strong>sdobra entre os tempos,<br />
preservando-se, e ao escritor só a consciência fracassa<strong>da</strong> no presente,<br />
invadido em sua ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong> acusar o rastro <strong>de</strong> uma história sem<br />
reviravoltas. A chave <strong>de</strong> ouro em Iracema — “Tudo passa sobre a terra.” —<br />
ressoa a poética conciliadora, que ora o romancista inverte para ajustar as<br />
16 Veja-se a tese <strong>de</strong> Egon Scha<strong>de</strong>n acerca <strong>da</strong>s mitologias indígenas, em que se expõe o<br />
culto à figura do herói mítico, ou herói civilizador, à qual os índios <strong>de</strong>legavam a tarefa<br />
<strong>de</strong> transformar o universo e ofertar benefícios à tribo, pois se tratava <strong>de</strong> um ente investido<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r por um ser supremo, o que sempre os <strong>de</strong>sviava <strong>da</strong>s ações efetivas e os<br />
levava a esperar uma intervenção mística sobre as suas adversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. (SCHADEN,<br />
Egon. A mitologia heróica <strong>de</strong> tribos indígenas do Brasil. São Paulo: Ministério <strong>da</strong> Edu -<br />
ca ção e Cultura, 1959. (Coleção Vi<strong>da</strong> Brasileira)<br />
17 Alfredo Bosi situa a visão <strong>de</strong> Graciliano Ramos nos quadros do intelectual que “mor<strong>de</strong><br />
a própria impotência e, com a mesma intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, acusa as razões objetivas <strong>de</strong>ssa<br />
impotência, que estão na estrutura material e moral <strong>da</strong> província on<strong>de</strong> capitalismo e<br />
<strong>de</strong>sequilíbrio são sinônimos perfeitos. Não cabia na consciência <strong>de</strong> Graciliano, nem<br />
no melhor romance <strong>de</strong> 1930-40, tematizar as conquistas <strong>da</strong> técnica mo<strong>de</strong>rna ou entoar<br />
os ritos <strong>de</strong> um Brasil selvagem. O mundo <strong>da</strong> experiência sertaneja ficava muito aquém<br />
<strong>da</strong> indústria e dos seus encantos; por outro lado, sofria <strong>de</strong> contradições ca<strong>da</strong> vez mais<br />
agu<strong>da</strong>s que não se podiam exprimir na mitologia tupi, pois exigiam formas <strong>de</strong> dicção<br />
mais chega<strong>da</strong>s a uma sóbria e vigilante mimese crítica.” (BOSI, Alfredo. Mo<strong>de</strong>rno e<br />
mo <strong>de</strong>rnista na literatura brasileira. In: ______. Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1988.)<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
contas com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: na<strong>da</strong> passou sobre esta terra. Esse juízo se esclarece<br />
em Caetés, numa ironia cortante, mas também enforma a crítica latente<br />
dos seus outros escritos. Em crônica <strong>de</strong> 1938, Graciliano confirma seguir<br />
com a mesma idéia:<br />
Uma parte do brasileiro quer civilizar-se, a outra conserva-se bugre,<br />
pinta<strong>da</strong> a jenipapo e urucu; usa enduape e tem sau<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> antropofagia.<br />
Há alguns meses, esse funcionário tamoio foi leve men te funcionário<br />
e tamoio <strong>de</strong>mais. Intratável, nostálgico, só pensava em<br />
Anchieta e outros missionários <strong>de</strong> épocas escuras.<br />
Bons tempos! Não havia automóvel, nem aeroplano, essas máquinas<br />
exóticas que não se harmonizam com a índole pacífica do nosso<br />
povo, mas, em compensação, existia fé nos corações. E quando isso<br />
faltava, um medo salutar envergava os espinhaços. Bons tempos,<br />
tempos <strong>de</strong> força e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m!<br />
Mas, os espíritos irrequietos inventaram novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, cantaram a<br />
“Marselhesa”, outra esquisitice, incompatível com as nossas ten -<br />
dên cias or<strong>de</strong>iras, puseram-se a ler em <strong>de</strong>masia. Afastamo-nos <strong>da</strong><br />
tradição.<br />
Necessário pôr fim a semelhantes <strong>de</strong>sregramentos, retornar o bom<br />
caminho. Pois não! Seria bom a gente recuar uns duzentos anos,<br />
suprimir inovações perigosas e adotar a can<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> azeite.<br />
Dois séculos ou mais.<br />
Devíamos era restaurar o Brasil <strong>de</strong> Cunhambebe, rebaixar o funcionário<br />
e elevar o canibal.<br />
Parece que o cartão postal, que vi na escola primária, estava certo.<br />
Dois tipos: — um vestido, carregado <strong>de</strong> papel impresso; outro nu,<br />
feroz, com os <strong>de</strong>ntes pontudos, cacete na mão. 18<br />
18 RAMOS, Graciliano. Um velho cartão-postal. In: ______. Linhas Tortas. Op. cit.<br />
180 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
181<br />
Datas <strong>de</strong> recebimento e aprovação dos artigos <strong>de</strong>sta edição<br />
Cinema = Cavação:<br />
Cendroswald Produções Cinematográficas<br />
Carlos Augusto Calil<br />
Recebido em 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
O lobisomem entre índios e brancos:<br />
o trabalho <strong>da</strong> imaginação no Grão-Pará no final do século XVIII<br />
Mark Harris<br />
Recebido em 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
A teoria <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Caio Prado Jr.:<br />
dialética e sentido<br />
Jorge Grespan<br />
Recebido em 1 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Caio Prado Jr. e a história agrária do Brasil e do México<br />
Guillermo Palacios<br />
Recebido em 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008<br />
Fronteiras <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m:<br />
saber e ofício nas experiências <strong>de</strong> Hélio Oiticica no Morro <strong>da</strong> Mangueira e<br />
<strong>de</strong> Carlos Nelson Ferreira dos Santos em Brás <strong>de</strong> Pina<br />
Magaly Marques Pulhez<br />
Recebido em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2008<br />
Aprovado em 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008<br />
“O linguajar multifário”:<br />
os estrangeiros e suas línguas na ficção <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Maria Caterina Pincherle<br />
Recebido em 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Os nomes <strong>da</strong> língua:<br />
configuração e <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>bate sobre a língua brasileira no século XIX<br />
Olga Ferreira Coelho<br />
Recebido em 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
Caetés:<br />
nossa gente é sem herói<br />
Erwin Torralbo Gimenez<br />
Recebido em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007<br />
Aprovado em 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
185<br />
Vira e mexe nacionalismo<br />
Álvaro Silveira Faleiros 1<br />
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos<br />
do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2007.<br />
Ao colocar como subtítulo <strong>de</strong> sua mais nova e iluminadora coletânea<br />
<strong>de</strong> textos, os “paradoxos do nacionalismo literário”, Leyla Perrone-Moisés<br />
<strong>de</strong>fine com clareza o fio que guia sua reflexão ao longo dos quatorze artigos<br />
que compõem o livro. Refletir sobre as tensões que permeiam a idéia <strong>de</strong><br />
nação, assim como os conceitos <strong>de</strong> cultura, i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> e colonialismo<br />
que lhe são correlatos, por meio <strong>da</strong> literatura, justifica-se, para a<br />
autora, pelo fato <strong>de</strong> que “as obras literárias esclarecem, tanto ou mais do<br />
que os discursos políticos, como são construídos os conceitos <strong>de</strong> nação e<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional”.<br />
Leyla Perrone-Moisés, mais do que refazer a história <strong>de</strong>sses conceitos,<br />
trata <strong>de</strong> alguns dos paradoxos característicos <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional na<br />
América Latina e no Brasil e <strong>de</strong> como são problematizados sobretudo em<br />
obras literárias <strong>de</strong> autores ibero-americanos. No primeiro artigo, “A cultura<br />
latino-americana, entre a globalização e folclore”, ela atenta para o fato <strong>de</strong><br />
que a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> latino-americana po<strong>de</strong><br />
levar a enganos, como o nacionalismo exacerbado, o populismo e o que<br />
chama <strong>de</strong> espontaneísmo. O nacionalismo exacerbado equivoca-se, pois<br />
reduz a cultura a uma suposta origem, o que limitaria a cultura latinoamericana<br />
às culturas indígenas ou às heranças africanas. O populismo,<br />
por sua vez, é <strong>de</strong> natureza paternalista e, ao cultuar o folclore, impe<strong>de</strong> as<br />
culturas <strong>de</strong> inovar e as cama<strong>da</strong>s populares <strong>de</strong> receber informações mais<br />
complexas; as manifestações culturais só são, nesse caso, apreendi<strong>da</strong>s no<br />
que têm <strong>de</strong> pitoresco e exótico. O espontaneísmo é também um discurso<br />
redutor, pois, em nome <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> alegria e <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> —<br />
características imputa<strong>da</strong>s à parte sul do continente —, recusa-se o experimentalismo<br />
e o rigor artístico latino-americano. To<strong>da</strong>s essas concepções<br />
1 Professor do Departamento <strong>de</strong> Letras Mo<strong>de</strong>rnas <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e<br />
Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
estão, <strong>de</strong> alguma forma, vincula<strong>da</strong>s à relação “filial, edipiana, com a Euro -<br />
pa”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provém, inclusive, a própria noção <strong>de</strong> nacionalismo.<br />
Como já havia indicado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1982, em seu artigo “Literatura compara<strong>da</strong>,<br />
intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e antropofagia”, Leyla Perrone-Moisés sublinha<br />
mais uma vez a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> criativa e própria <strong>de</strong> se tratar com o paradoxo <strong>da</strong><br />
herança européia, <strong>de</strong> autores como Jorge Luís Borges e sua concepção <strong>de</strong><br />
patrimônio universal latino-americano, como José Lezama Lima e seu conceito<br />
<strong>de</strong> “protoplasma incorporativo”, ou ain<strong>da</strong> como Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
e sua antropofagia cultural. Essas formas <strong>de</strong> “receptivi<strong>da</strong><strong>de</strong> crítica e criadora”<br />
apontam para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a existência <strong>de</strong> um discurso crítico<br />
latino-americano para o qual constantemente contribui. Ela comenta ain<strong>da</strong><br />
que, “num mundo globalizado, essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> incorporação, e sobretudo<br />
<strong>de</strong> prefiguração, é um mo<strong>de</strong>lo que po<strong>de</strong>mos oferecer às outras culturas”.<br />
A “prefiguração” é também central para se compreen<strong>de</strong>r como ope ra<br />
criticamente Leyla Perrone-Moisés. Em “Castro Alves e o aplicativo Victor<br />
Hugo”, ao estabelecer relações entre os autores, ela <strong>de</strong>senvolve a noção <strong>de</strong><br />
confluência. Além <strong>da</strong> influência e <strong>da</strong> aclimatação <strong>de</strong> Victor Hugo por Castro<br />
Alves, o poeta brasileiro “às vezes prefigura os procedimentos hugoanos”<br />
(grifo <strong>da</strong> autora), ou seja, há semelhanças entre os autores, coincidências<br />
que “não tem anteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> temporal como prova”.<br />
Esse fenômeno <strong>de</strong> prefiguração, que chama <strong>de</strong> confluência, é um dos<br />
modos como Leyla Perrone-Moisés pensa a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: um modo <strong>de</strong><br />
reinterpretar, renovar, mediar. Assim, rompe-se com a lógica <strong>da</strong> influência,<br />
como na análise que ela faz em “Lautréamont e as margens americanas”.<br />
Neste artigo, a autora aponta a dupla origem cultural <strong>de</strong> Isidore Ducasse e<br />
<strong>de</strong> como ela foi, primeiramente, negligencia<strong>da</strong> e, em segui<strong>da</strong>, exotiza<strong>da</strong><br />
por estudiosos. Foi seu trabalho <strong>de</strong>senvolvido com o crítico uruguaio Emir<br />
Ro dríguez Monegal, publicado a partir <strong>de</strong> 1983, que evi<strong>de</strong>nciou as marcas<br />
do bilingüismo e do bicultualismo nos Cantos <strong>de</strong> Maldoror, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
a influência do barroco espanhol até os hispanismos que introduziu no<br />
léxico e na sintaxe <strong>de</strong> seus textos escritos em francês. Os efeitos literários<br />
<strong>de</strong>ssas incorreções seriam, em parte, responsáveis por expressões originais<br />
cunha<strong>da</strong>s por Lautréamont; o que faria <strong>de</strong> seu handicap uma “vantagem<br />
estética”. Leyla Perrone-Moisés propõem, pois, pensar-se a relação<br />
entre a dupla cultura, hispano-americana e européia, <strong>de</strong> Lautréamont<br />
numa lógica avessa à influência.<br />
A <strong>de</strong>sestabilização <strong>da</strong> relação filial entre velho e novo mundo, produzi<strong>da</strong><br />
por Perrone-Moisés, dialoga com o conceito <strong>de</strong> “imagem dialética”<br />
<strong>de</strong> Walter Benjamin. Conceito que ela atualiza num dos mais brilhantes e<br />
reveladores artigos do livro, intitulado “Passagens: Isidore Ducasse, Wal -<br />
ter Benjamin e Júlio Cortázar”. A autora parte do conto “El outro cielo” <strong>de</strong><br />
186 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
187<br />
Cortázar, no qual a personagem se <strong>de</strong>sloca no tempo e no espaço, indo <strong>de</strong><br />
uma rua <strong>de</strong> luxo coberta (chama<strong>da</strong> à época <strong>de</strong> “passagem”) <strong>da</strong> Buenos Aires<br />
dos anos 1940 para uma outra “passagem”, em Paris, nos últimos dias do<br />
Segundo Império (1870), e estabelece uma relação <strong>de</strong>ste conto com o Livro<br />
<strong>da</strong>s passagens <strong>de</strong> Walter Benjamin, recentemente traduzido no Brasil.<br />
Tendo como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> justamente as passagens parisienses,<br />
Benjamin <strong>de</strong>senvolve, nesse livro, um “novo método dialético <strong>da</strong> historiografia”<br />
que consiste em “atravessar o passado com a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
sonho, a fim <strong>de</strong> experimentar o presente como o mundo <strong>da</strong> vigília, ao qual<br />
o sonho se refere”. Isto pressupõe seu novo conceito <strong>de</strong> “imagem dialética”,<br />
que consiste, por sua vez, em lançar sobre o passado um olhar, tendo, como<br />
contraponto, o futuro <strong>da</strong>quele passado. Assim, seria possível compreen<strong>de</strong>r<br />
o presente “à luz <strong>da</strong>quilo que se anunciava (e se preparava) no ventre do<br />
passado”.<br />
Perrone-Moisés vê, no conto <strong>de</strong> Cortázar, a realização mais completa<br />
<strong>da</strong> imagem dialética <strong>de</strong> Benjamin. Nele, as imagens são duplica<strong>da</strong>s e, se<br />
por um lado, anulam a idéia <strong>de</strong> progresso, por outro, não reduzem o gesto do<br />
futuro à mera repetição do passado. Dessa maneira, ao atualizar o passado,<br />
o presente (futuro do passado) se constitui dialeticamente como síntese,<br />
realiza-se como um momento novo e inesperado. A autora <strong>de</strong>staca ain<strong>da</strong><br />
que o maior interesse <strong>da</strong>s imagens dialéticas para a literatura é o fato <strong>de</strong><br />
que Benjamin <strong>de</strong>clara que as mesmas se encontram na linguagem; nas<br />
suas palavras: “só as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é,<br />
não arcaicas); e o lugar on<strong>de</strong> as encontramos é a linguagem”.<br />
Em segui<strong>da</strong>, a autora i<strong>de</strong>ntifica a personagem do conto <strong>de</strong> Cortázar<br />
a Isidore Ducasse e retoma sua reflexão sobre o modo como Lautréamont<br />
produz imagens dialéticas <strong>da</strong> colonização atualizando, por exemplo, o<br />
pas sado barroco e Homero como invenção. Em sua conclusão, lança luz<br />
sobre o papel vital <strong>da</strong>s imagens no processo <strong>de</strong> construção do saber, como<br />
revelação. Ela aponta, também, para a “função organizadora” <strong>da</strong> obra literária<br />
sem, contudo, per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que a força revolucionária <strong>da</strong> literatura<br />
está não em introduzir conteúdo revolucionário numa obra, mas, sim, em<br />
<strong>de</strong> sen volver formas literárias com potencial revolucionário, como é o caso<br />
<strong>de</strong> Cortázar.<br />
Situar com mais clareza a natureza específica do objeto literário por<br />
meio do conceito <strong>de</strong> imagem (imagens dialéticas, prefiguração) permite a<br />
Leyla Perrone-Moisés apontar alguns caminhos profícuos para uma crítica<br />
literária capaz <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o caráter híbrido <strong>da</strong> literatura<br />
pós-colonial. O conceito <strong>de</strong> imagem serve também para uma melhor<br />
compreensão <strong>de</strong> alguns dos “Paradoxos do nacionalismo literário na Amé -<br />
rica Latina”, como se po<strong>de</strong> notar no artigo assim intitulado.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Nele, a autora parte do princípio <strong>de</strong> que “a nação é um conjunto <strong>de</strong><br />
imagens” e i<strong>de</strong>ntifica uma série <strong>de</strong> metáforas sobre a América, surgi<strong>da</strong>s logo<br />
após o Descobrimento, como a oposição entre a “velha Europa” e a “nova<br />
América” ou, ain<strong>da</strong>, “a tópica do americanismo como <strong>de</strong>sterro” — discurso<br />
que vai dos primeiros letrados até Jorge Luís Borges e Sérgio Buarque <strong>de</strong><br />
Holan<strong>da</strong>. Em segui<strong>da</strong>, outras metáforas ganham força, <strong>de</strong>riva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> primeira,<br />
como as oposições entre civilização e barbárie, al<strong>de</strong>ia e mundo, centro<br />
e periferia; sempre numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>preciativa em relação à América.<br />
Essas tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição, como o nacionalismo, <strong>de</strong>sembocaram em<br />
paradoxos, <strong>de</strong>vido à inevitável origem européia tanto <strong>da</strong>s línguas como <strong>da</strong><br />
idéia mesmo <strong>de</strong> nação. Uma vez mais, Perrone-Moisés aponta, como superação,<br />
as propostas inclusivas <strong>de</strong> autores como Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Borges,<br />
Octavio Paz e Sábato.<br />
Em outros artigos, acrescenta à lista Machado <strong>de</strong> Assis e Mário <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>. Retomando Gilberto Pinheiro Passos, nota, no primeiro, a pre sen ça<br />
<strong>de</strong> uma “poética diplomática” por meio <strong>da</strong> qual Machado li<strong>da</strong> ironicamente<br />
com a questão <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixando-a em aberto, “porque esta é re -<br />
conheci<strong>da</strong> como uma representação imaginária”. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, por<br />
sua vez, é consi<strong>de</strong>rado pela autora como aquele que criou, no mo<strong>de</strong>rnismo,<br />
“a obra máxima <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a essa questão [o nacionalismo]; diferentemente<br />
<strong>de</strong> Oswald, que ela <strong>de</strong>fine como autor <strong>da</strong> astuciosa e sugestiva metáfora<br />
an tropofágica, mesmo se “não foi um pensador consistente”. Leyla Per -<br />
rone-Moisés assinala o uso do termo “enti<strong>da</strong><strong>de</strong>”ao invés <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, evitando o essencialismo e a busca <strong>de</strong> uma origem<br />
que este último termo pressupõe. Mário trata, assim, do sujeito <strong>de</strong> cultura<br />
como um sujeito sempre em formação e em <strong>de</strong>vir.<br />
Dessa maneira, a autora coloca a discussão <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s nações<br />
e <strong>de</strong> suas literaturas em relação a sua dimensão simbólica, por meio <strong>da</strong>s<br />
metáforas. Não se trata, pois, <strong>de</strong> “fazer coincidir a autonomia literária com<br />
a autonomia política <strong>da</strong> nação”, mas <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os paradoxos <strong>da</strong> literatura<br />
ibero-americana em função <strong>da</strong>s imagens que cria <strong>de</strong> si mesma. O<br />
modo como se constituem as figurações preparam e anunciam prefigurações.<br />
As imagens constituí<strong>da</strong>s, porém, não se estabilizam, mas estão em<br />
formação e são sempre negocia<strong>da</strong>s.<br />
Sua atitu<strong>de</strong> reflexiva, contrária a qualquer dogmatismo e essencialismo,<br />
a leva, em dois outros artigos, a discutir os rumos dos estudos culturais<br />
e pós-coloniais. Em um <strong>de</strong>les, procura “<strong>de</strong>sconstruir os estudos póscoloniais”,<br />
mostrando como <strong>de</strong>svirtuam o pensamento <strong>de</strong>rridiano ao tratar<br />
<strong>de</strong> forma essencialista as questões referentes à mulher, à raça e à periferia.<br />
Perrone-Moisés lembra que Derri<strong>da</strong> não trabalha com oposições e sim com<br />
<strong>de</strong>scentramento, que para o filósofo francês não se trata <strong>de</strong> opor as margens<br />
188 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
189<br />
ao centro, pois “as margens não tem centro único”. Isso não significa que<br />
ele seja um relativista, uma vez que sua relação com a tradição — acrescenta<br />
a autora — é complexa e que é a partir <strong>de</strong> um profundo conhecimento<br />
<strong>de</strong>la que ele almeja <strong>de</strong>sconstruí-la. A autora assinala a presença <strong>de</strong> aporias<br />
no pensamento <strong>de</strong>rridiano e <strong>de</strong>staca o fato <strong>de</strong> a <strong>de</strong>sconstrução ser uma<br />
prática filosófica e acadêmica, não política. Ela não visa, contudo, apontar<br />
possíveis limites e contradições <strong>de</strong>sse pensamento i<strong>de</strong>ntificados, por exemplo,<br />
por autores como Richard Freadman e Seumas Miller (RE-pensando a<br />
teoria, Unesp, 1994), para os quais o construtivismo lingüístico pós-saussureano<br />
<strong>de</strong> Derri<strong>da</strong> é, em gran<strong>de</strong> medi<strong>da</strong>, anti-humanista.<br />
Em outro artigo, ela apresenta justamente o pensamento <strong>de</strong> Edward<br />
Said, que <strong>de</strong>fine como “um intelectual fora <strong>de</strong> lugar”, chamando-o, em tom<br />
elogioso, <strong>de</strong> “humanista”. Segundo a autora, Said, em Orientalismo (1979),<br />
antecipou os estudos culturais norte-americanos e os estudos pós-coloniais,<br />
mas, diferentemente <strong>da</strong> “impostação freqüentemente raivosa, simplificadora<br />
e <strong>de</strong>magógica <strong>de</strong> boa parte <strong>da</strong> produção teórico-crítica pós-colonial<br />
subseqüente”, Said não adota atitu<strong>de</strong> arrogante e procura “encarar os problemas<br />
<strong>de</strong> vários ângulos”. Sua postura, com efeito, se aproxima <strong>da</strong>quela<br />
adota<strong>da</strong> por Leyla Perrone-Moisés, pois ambos recusam “tanto o <strong>de</strong>terminismo<br />
historicista quanto ‘a <strong>de</strong>spreocupação etérea <strong>da</strong> crítica pós-axiológica’<br />
<strong>da</strong> chama<strong>da</strong> pós-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>” e, se li<strong>da</strong>m com os condicionamentos<br />
históricos e geográficos <strong>da</strong> obra literária, é sempre por meio <strong>da</strong> avaliação<br />
estética e <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta com as imagens que produz.<br />
Enfim, essa breve resenha é mera introdução, pois nenhuma síntese<br />
será capaz <strong>de</strong> reproduzir a riqueza <strong>da</strong>s análises conti<strong>da</strong>s nesses quatorze<br />
brilhantes artigos, dos quais apenas comentamos alguns. Por isso, é im -<br />
pres cindível lê-la para enten<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> fato, o alcance <strong>de</strong> suas reflexões.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
A matéria histórica interroga<br />
a forma mítica<br />
Danielle Corpas 1<br />
PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e<br />
processo social nas Primeiras estórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa.<br />
São Paulo: Nankin, 2006<br />
Num artigo publicado em 2001, Ana Paula Pacheco assinalou o se -<br />
guinte problema na recepção <strong>de</strong> Guimarães Rosa: “o perigo <strong>da</strong> regressão<br />
mítica <strong>de</strong> cunho conservador ron<strong>da</strong> a obra rosiana ca<strong>da</strong> vez que nela a<br />
representação do atraso não parece a alguns viga <strong>de</strong> nossa mo<strong>de</strong>rnização,<br />
e sim remanescente arcaico, mito nacionalista a frisar positivamente o que<br />
é <strong>de</strong>fasagem” 2 . Esse perigo, ela contornou muito bem em Lugar do mito:<br />
nar rativa e processo social nas Primeiras estórias <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Em<br />
perspectiva rigorosamente materialista, o exercício crítico aí passa ao largo<br />
<strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> apologia i<strong>de</strong>alista <strong>da</strong> amplitu<strong>de</strong> simbólica ou alegórica<br />
<strong>da</strong>s narrativas, do elogio inócuo à habili<strong>da</strong><strong>de</strong> do escritor em incorporar ao<br />
seu mundo-sertão signos <strong>de</strong> ressonância metafísica ou mitológica. Pelo contrário,<br />
a dimensão mítica é percebi<strong>da</strong> como componente <strong>de</strong> um problema<br />
formal no qual se cristalizam impasses <strong>da</strong> história. O trabalho põe em discussão<br />
os “dilemas <strong>da</strong> representação” presentes em ca<strong>da</strong> narrativa e na<br />
ar quitetura <strong>de</strong> Primeiras estórias (1962), on<strong>de</strong> se imbricam a propensão<br />
rosiana para o transcen<strong>de</strong>nte e as contradições <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização conservadora<br />
à brasileira. Refletir sobre o tratamento mítico <strong>da</strong> história do país<br />
na composição literária é um <strong>de</strong>safio que vem sendo encarado por uma<br />
leva <strong>de</strong> bons escritos sobre Rosa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990. Essa<br />
recepção está redimensionando a importância <strong>de</strong> sua prosa, tirando-a <strong>da</strong><br />
posição <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> obra” celebra<strong>da</strong> incondicionalmente para valorizá-la<br />
como feito estético capaz <strong>de</strong> se haver com a representação <strong>de</strong> problemas<br />
1 Professora visitante no Departamento <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Literatura <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
2 PACHECO, Ana Paula. História, psique e metalinguagem em Guimarães Rosa. Cult —<br />
Revista brasileira <strong>de</strong> literatura, São Paulo, ano IV, n. 43, p. 42-47, 2001.<br />
190 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
191<br />
pungentes <strong>da</strong> experiência brasileira. Talvez esse movimento no tabuleiro<br />
crítico seja mais perceptível quando se trata do divisor <strong>de</strong> águas que é<br />
Gran<strong>de</strong> sertão: vere<strong>da</strong>s — em meio a tantas leituras em disputa sobre a<br />
obra-prima, aquelas cujo foco mantém um olho na forma singular do<br />
romance e outro no histórico <strong>da</strong> formação do Brasil mo<strong>de</strong>rno vêm conquistando<br />
mais espaço na pauta dos <strong>de</strong>bates. Lugar do mito cobre uma<br />
lacuna nessa fortuna crítica recente, até então <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma reflexão<br />
abrangente que lançasse luz sobre a vinculação e a tensão entre mito e<br />
matéria histórica no livro publicado em 1962.<br />
Molduras, tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e pontos <strong>de</strong> vista<br />
Postos lado a lado em Lugar do mito, os dois extremos <strong>de</strong> Primeiras<br />
estórias (“As margens <strong>da</strong> alegria” e “Os cimos”) <strong>de</strong>lineiam a moldura temporal<br />
que situa o volume: a arranca<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnizadora ocorri<strong>da</strong> no governo<br />
<strong>de</strong> Juscelino Kubitschek — esse é o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> do estudo. Afora ou -<br />
tros índices <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização disseminados nesses e nos <strong>de</strong>mais contos, a<br />
construção <strong>de</strong> Brasília, ícone do período, é referência evi<strong>de</strong>nte nas duas<br />
narrativas protagoniza<strong>da</strong>s pelo Menino. O livro <strong>de</strong> Rosa nos lança, portanto,<br />
num período <strong>de</strong> transformação <strong>da</strong> paisagem <strong>de</strong> roças e campos contempla<strong>da</strong><br />
do alto em “As margens <strong>da</strong> alegria”. Período em que o capitalismo<br />
brasileiro acelera seu ajustamento à sofisticação <strong>da</strong> lógica industrial (in -<br />
clusive na produção rural) e ao sistema financeiro mundial; período em<br />
que se intensifica o convívio tenso entre modos <strong>de</strong> viver e <strong>de</strong> pensar arraigados<br />
no passado escravocrata (patriarcalista, mandonista, elitista) e os<br />
novos parâmetros <strong>da</strong> civili<strong>da</strong><strong>de</strong> urbana (nominalmente esclareci<strong>da</strong>, institucional,<br />
<strong>de</strong>mocrática).<br />
Na medi<strong>da</strong> em que avança a explanação, vamos percebendo como<br />
esse ritmo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças alimentou os “dilemas <strong>da</strong> representação” com os<br />
quais se <strong>de</strong>frontou Guimarães Rosa. O mítico vai aparecendo como “modo<br />
<strong>da</strong> cultura popular redimensionado pelo olhar erudito” (p. 18) e influência na<br />
figuração <strong>de</strong> “dinâmicas <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal e coletiva” (p. 20). Assi na la -<br />
<strong>da</strong>s logo <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>, essa condição e essa função já indicam que relações entre<br />
estratos culturais e sociais, conformação <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e organi za ção<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> serão aspectos privilegiados na abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s diferentes maneiras<br />
como mito e história se entretecem — as tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que assumem<br />
as narrativas. De fato, a incorporação do traço mitificador nessa ficção é<br />
observa<strong>da</strong> o tempo todo pelo prisma <strong>da</strong> armação do ponto <strong>de</strong> vista que<br />
coman<strong>da</strong> as narrativas e a simbolização <strong>da</strong> experiência social; é permanente<br />
a atenção à configuração do foco narrativo, ao lugar social dos nar ra -<br />
dores, à distância e/ou proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> que mantém em relação à mentali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
sertaneja. Atenta também ao “olhar <strong>de</strong> classe do escritor” e aos “limites <strong>da</strong><br />
gran<strong>de</strong> obra”, Ana Paula indica como e on<strong>de</strong> as estórias alcançam “a superação<br />
literária <strong>de</strong> seus impasses, ao formalizar contradições que são <strong>da</strong><br />
matéria, do país” (p. 218, grifos <strong>da</strong> autora). É por essa via que o trabalho vai<br />
nos esclarecendo o que está por trás <strong>da</strong> assimilação ou <strong>da</strong> <strong>de</strong>negação <strong>da</strong><br />
dimensão mítica, a que respon<strong>de</strong>, no contexto <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização acelera<strong>da</strong>,<br />
o diálogo com uma ótica não mo<strong>de</strong>rna, quais impasses históricos estão<br />
im plicados nas opções formais que li<strong>da</strong>m com o pensamento amparado<br />
no mito.<br />
Entendido inicialmente como (tentativa <strong>de</strong>) contraponto à reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
objetiva, material, <strong>da</strong>s personagens via <strong>de</strong> regra excluí<strong>da</strong>s, o mítico<br />
surge na dobradiça do foco narrativo ora como mentira, ora como<br />
sabedoria, mas também como mentira (que é) histórica, ou seja,<br />
visa<strong>da</strong> do mundo que revela, no seu modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r/suprimir a<br />
História, contradições sociais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras. O mítico como resposta a<br />
mu<strong>da</strong>nças, como leitura do processo social, como resguardo <strong>de</strong> uma<br />
cultura; enfim, como atraso e simultaneamente como resposta a um<br />
“progresso” <strong>de</strong>sigual. [p. 19, grifos <strong>da</strong> autora]<br />
Antes <strong>de</strong> chegar a esses resultados, vale atentar para uma segun<strong>da</strong><br />
moldura <strong>de</strong> que a crítica lança mão. Ao contrário <strong>da</strong> primeira (a baliza histórica<br />
anuncia<strong>da</strong> <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>), essa outra vai se configurando pouco a pouco,<br />
sem alar<strong>de</strong>, conforme a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>da</strong> discussão em curso, <strong>de</strong> modo menos<br />
programático que ensaístico. Vou chamá-la, na falta <strong>de</strong> termo melhor, <strong>de</strong><br />
moldura literária.<br />
Muitas vezes, a argumentação progri<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> comparações<br />
entre Primeiras estórias e obras anteriores <strong>de</strong> Guimarães Rosa, <strong>de</strong> outros<br />
autores brasileiros (Machado <strong>de</strong> Assis, Graciliano Ramos) ou do cânone<br />
oci<strong>de</strong>ntal (<strong>de</strong> Édipo-Rei a Edgard Allan Poe e Piran<strong>de</strong>llo). No caso <strong>da</strong> literatura<br />
estrangeira, as referências apóiam a análise em an<strong>da</strong>mento — é o que<br />
ocorre no capítulo sobre “O espelho” com o rol <strong>de</strong> narrativas européias e<br />
norte-americanas centra<strong>da</strong>s no tema do duplo. Já a tradição literária local<br />
parece ser evoca<strong>da</strong> para <strong>de</strong>finir com mais precisão um diferencial entre a<br />
representação <strong>da</strong> história nas estórias e em prosas que respon<strong>de</strong>m a outras<br />
circunstâncias — <strong>de</strong> modo que essa segun<strong>da</strong> moldura, mais tênue, reforça<br />
a primeira, ao sinalizar o lugar do livro <strong>de</strong> 1962 no conjunto <strong>da</strong> pro dução<br />
rosiana e no sistema literário nacional. Se no irônico espelho machadiano<br />
se vê “o burguês perfeitamente invulnerável” diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> questionamento<br />
à “lei cínica <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> liberal-escravocrata” (p. 251-252),<br />
no conto <strong>de</strong> Guimarães Rosa a especulação resulta, conforme mostra a<br />
192 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
193<br />
leitura <strong>de</strong> Ana Paula, na visão <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo <strong>de</strong>rna, porém “sem<br />
formas estáveis <strong>de</strong> constituição do sujeito [autônomo], como <strong>de</strong> si mesma,<br />
[…] que refrata em môna<strong>da</strong>s <strong>de</strong> crenças individuais imagens <strong>de</strong> sua anomia<br />
social” (p. 255). O contraste entre estágios <strong>da</strong> formação nacional — e<br />
entre as respostas estéticas que lhes são correspon<strong>de</strong>ntes — também fica<br />
bastante evi<strong>de</strong>nte quando a análise se <strong>de</strong>svia <strong>de</strong> seu objeto central para<br />
comentar “A hora e vez <strong>de</strong> Augusto Matraga” ou Gran<strong>de</strong> sertão: vere<strong>da</strong>s.<br />
São passagens que exprimem bem como, nos modos específicos com que<br />
se efetua a notação <strong>da</strong> história na mimese, po<strong>de</strong>-se observar o ritmo do<br />
processo social. Um exemplo:<br />
A violência dos jagunços [em Gran<strong>de</strong> sertão: vere<strong>da</strong>s] — ali isola<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> outras violências sociais — podia ser imagina<strong>da</strong> como forma <strong>de</strong><br />
re<strong>de</strong>nção, talvez uma aposta na <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m or<strong>de</strong>nadora à margem <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> política que se estabelecia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> épocas remotas, entre governo<br />
e coronéis, donos do país. Nesse sentido, é curioso pensar que o re -<br />
gionalismo (romântico e sobretudo em sua fase “realista”, isto é, <strong>de</strong><br />
escola realista) antepunha o homem civilizado ao caipira, como se<br />
aquele fosse reformar o Brasil “bárbaro”. Já Guimarães Rosa, nesse<br />
livro <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 50 — mas cujas ações se passam durante a Pri meira<br />
República —, encena simbolicamente o contrário, talvez numa<br />
linha <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnista, apostando num substrato “pri mi -<br />
tivo” (e mítico) do país. [p. 106-107]<br />
A aposta no mítico — viável no espaço e no tempo em que transitam<br />
Riobaldo e Augusto Matraga, uma vez que a dimensão do sagrado ali funcionava<br />
<strong>de</strong> fato como princípio organizador <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social 3 — ganha nuanças<br />
distintas em Primeiras estórias. Os três primeiros capítulos <strong>de</strong> Lugar do<br />
mito abor<strong>da</strong>m separa<strong>da</strong>mente três tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> imbricação entre mito e<br />
história no volume: o aventuresco, o anedótico e o trágico. Notando, em<br />
ca<strong>da</strong> grupo <strong>de</strong> contos, a presença mais ou menos intensa <strong>de</strong> veios míticos<br />
e o alcance <strong>de</strong> sua eficácia como solução formal em relação à matéria <strong>da</strong><br />
narrativa, a crítica vai especificando os sentidos do procedimento mitificante.<br />
Vamos a eles.<br />
No primeiro grupamento <strong>de</strong> contos (aqueles em que o narrador a<strong>de</strong>re<br />
ao imaginário infantil), a resposta ao ritmo <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong>ixa entrever<br />
3 Neste passo, Ana Paula não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> assinalar que em Gran<strong>de</strong> sertão: vere<strong>da</strong>s a eficácia<br />
do mito já se vê relativiza<strong>da</strong>, que a fala do jagunço letrado “já <strong>de</strong>ixa entrever os<br />
limites <strong>da</strong> explicação mítica do mundo” ao preocupar-se com uma potência <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição<br />
puramente humana, e <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> justiça<br />
(p. 105).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
um tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento. Seguindo a via do lúdico (“Parti<strong>da</strong> do au<strong>da</strong>z<br />
navegante”, “Pirlimpsiquice”, “Os cimos”), do mágico-religioso (“A menina<br />
<strong>de</strong> lá”), <strong>da</strong> rememoração (“Nenhum, nenhuma”) ou do resgate <strong>de</strong> integração<br />
com a natureza (“As margens <strong>da</strong> alegria”), os enredos se estruturam pela<br />
complementari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dois movimentos: <strong>de</strong>scoberta do mundo <strong>de</strong>sencantado<br />
e anseio <strong>de</strong> reencantamento. É gran<strong>de</strong> aí o investimento na fabulação<br />
mitificadora, que promove a redução do percurso histórico à abstração <strong>de</strong><br />
encenações <strong>da</strong> existência, com o fito <strong>de</strong> recuperar uma harmonia nostálgi ca,<br />
pré-mo<strong>de</strong>rna. No espaço privado em que circulam as crianças protagonistas,<br />
o i<strong>de</strong>alismo rosiano se <strong>de</strong>sdobra em poética do <strong>de</strong>sejo — “experiência <strong>de</strong><br />
per<strong>da</strong>s efetivas, recriar um mundo mais satisfatório, em que carências e so -<br />
frimentos teriam compensações simbólicas” (p. 44) — e em poética essencializante<br />
—“reaver, na redução do percurso histórico, o coração <strong>da</strong> existência”,<br />
“uma ‘substância’ guar<strong>da</strong><strong>da</strong> na infância distante” e perdi<strong>da</strong> na azáfama do<br />
mundo adulto, na conturbação <strong>da</strong> esfera pública (p. 29, grifos <strong>da</strong> autora).<br />
No refúgio do universo infantil po<strong>de</strong>-se — pelo passe <strong>de</strong> mágica do “era uma<br />
vez” mítico-aventuresco, que engendra cosmogonias, contos maravilhosos<br />
ou epopéias (subjetivas, por mo<strong>de</strong>rnas) — figurar um mundo belo e i<strong>de</strong>al,<br />
reversão estética <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> opressora, recriação simbólica que liberta <strong>da</strong>s<br />
contingências do momento histórico, restando estas apenas como pálido<br />
pano <strong>de</strong> fundo. Com relação a essas estórias comoventes, o juízo crítico<br />
ressalta que são, no volume, as que manifestam com mais intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> o<br />
escapismo <strong>da</strong> faceta i<strong>de</strong>alizante presente na criação <strong>de</strong> Guimarães Rosa —<br />
o “lado menos atual” <strong>de</strong> sua obra (p. 47). Por outro lado, vantagem <strong>da</strong> “poética<br />
feita <strong>de</strong> contradições” (p. 18) em boa parte responsável pelo valor do<br />
livro, algumas narrativas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> apontar para a limitação do i<strong>de</strong>alismo<br />
— por exemplo, no salto para o vazio que dá o narrador <strong>de</strong> “Pirlim -<br />
psiquice”, encerrando o transe em que se converteu a apresentação teatral,<br />
fazendo frente à dissolução <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, à substituição do mundo<br />
pela representação essencializante que abole a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> experiência<br />
histórica. Em outras palavras: nas encenações <strong>da</strong> existência que convocam<br />
o mítico-aventuresco como alternativa à reificação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no contexto<br />
mo<strong>de</strong>rno, a dimensão mítica parece preten<strong>de</strong>r substituir a história. Porém,<br />
com a insistência própria dos <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, esta retorna pelas frestas<br />
<strong>da</strong> forma mitificadora, como se vê em “Nenhum, nenhuma” — aí a fabulação<br />
encantatória forja<strong>da</strong> na subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se vê diante dos limites que o<br />
mundo lhe impõe, sua aspiração totalizadora esbarra na contingência <strong>de</strong><br />
um tempo no qual já se per<strong>de</strong>u a coesão coletiva que conferia eficácia ao<br />
mito. Essa estratégia <strong>de</strong> representação enfrenta, então, a crise — impossibi -<br />
li<strong>da</strong><strong>de</strong> tanto <strong>de</strong> submeter o mundo a suas pretensões or<strong>de</strong>nadoras quanto<br />
<strong>de</strong> contorná-lo <strong>de</strong>finitivamente no refúgio imaginário.<br />
194 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
195<br />
A falibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> associação entre mito e conjuntura mo<strong>de</strong>rna fica<br />
mais evi<strong>de</strong>nte no segundo conjunto <strong>de</strong> contos, aqueles que compartilham<br />
o tom anedótico. O mito comparece, nesse caso, em versão negativa: um<br />
ciclo <strong>de</strong> violência e uma maldição familiar que não se cumprem (“Os ir mãos<br />
Dagobé”); a paródia <strong>de</strong> aventura romanesca em “Tarantão, meu patrão”,<br />
espécie <strong>de</strong> périplo épico satirizado; a astúcia homérica com as palavras<br />
(“Famigerado”, “Fatali<strong>da</strong><strong>de</strong>”), fun<strong>da</strong>mento mítico que vinca a atitu<strong>de</strong> es -<br />
cla reci<strong>da</strong>, como mostram Adorno e Horkheimer em sua Dialética do esclarecimento.<br />
São enredos, ambientados na esfera pública, que tematizam a<br />
violência sem recorrer ao mítico-mágico, <strong>de</strong>ixando a matéria histórica<br />
mais visível. Uma revelação <strong>de</strong>sencanta<strong>da</strong> <strong>de</strong> matizes <strong>da</strong> dinâmica política<br />
que põe em cena meandros <strong>de</strong> um processo em curso no contexto do <strong>de</strong> -<br />
senvolvimentismo J. K.: o trânsito (incompleto, como sabemos) do convívio<br />
regrado pela violência priva<strong>da</strong> para a or<strong>de</strong>nação civil, garanti<strong>da</strong> (ao menos<br />
nominalmente) pelas instituições do po<strong>de</strong>r público. Aqui também a percepção<br />
do fluxo para a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> tem a marca <strong>da</strong> contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apre sen -<br />
tando o novo quadro <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no sertão, reflexo <strong>da</strong> crescente<br />
hegemonia urbana, os contos fazem graça com as promessas do progresso,<br />
que não alcança resolver problemas seculares <strong>de</strong> nossa sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> —<br />
sobreposição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r público e força priva<strong>da</strong>, reversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre or<strong>de</strong>m<br />
e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, cordiali<strong>da</strong><strong>de</strong> mistura<strong>da</strong> a institucionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É emblemática,<br />
nesse sentido, a atitu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>legado culto <strong>de</strong> “Fatali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, que conduz o<br />
sertanejo pacífico em busca <strong>de</strong> garantia legal a fazer justiça com as próprias<br />
mãos.<br />
Nesse anedotário, nota-se o recuo <strong>da</strong> mitificação, torna<strong>da</strong> <strong>de</strong>rrisória.<br />
O que avulta é o procedimento chistoso. Ao <strong>de</strong>stacá-lo, a crítica chama<br />
atenção para o sentido do equilíbrio entre dimensão mítica (residual) e<br />
tratamento humorístico <strong>da</strong>s questões <strong>da</strong> esfera política. Justo quando vem<br />
à superfície um aspecto distintivo (e grave) <strong>da</strong> matéria histórica — “tensão<br />
gera<strong>da</strong> pela passagem, incompleta, entre mando pessoal e lei” (p. 113) — a<br />
representação convi<strong>da</strong> ao riso. Riso discreto — é sempre discreta a comici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
em Guimarães Rosa —, e a análise não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> reconhecer nessa discrição<br />
algo do “caráter específico <strong>da</strong> nossa sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>” (p. 113). Pois<br />
trata-se <strong>de</strong> um riso entre pares (narrador e leitor esclarecidos), que provém<br />
<strong>da</strong> quebra <strong>da</strong>s expectativas <strong>de</strong> encaminhamento do enredo alimenta<strong>da</strong>s<br />
pelo confronto entre vigência <strong>da</strong> tradição política arcaica nas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que participam <strong>da</strong> ação e intervenção <strong>de</strong> recursos civilizatórios recém-instaurados.<br />
Nem o ciclo <strong>da</strong> violência mítica nem a civili<strong>da</strong><strong>de</strong> se efetivam. O<br />
<strong>de</strong>sfecho é risível — <strong>da</strong> perspectiva <strong>de</strong> classes que têm o privilégio <strong>de</strong> manipular<br />
a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> situação — pelo realce <strong>de</strong> um <strong>de</strong>scompasso no trânsito<br />
para a legali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
O humor, neste conjunto, não é o riso que permaneceu fora <strong>da</strong> mentira<br />
oficial, como o <strong>da</strong> cultura popular, presente no livro na praça<br />
pública <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, como se vê em “Darandina”. Mas traz seu crivo<br />
crítico, não na superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> quem o manipula, e sim na composição<br />
que dá a ver o procedimento. Entre a lei e o mando, a anedota,<br />
como vimos, parece rir <strong>de</strong>ssa nossa incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica <strong>de</strong> nos<br />
“civilizarmos”. [p. 114]<br />
Como esse, outros impasses históricos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização à brasileira<br />
encontram-se formalizados com mais radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos contos em que o<br />
veio mítico se reveste <strong>de</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> trágica — “nos quais uma consciência<br />
em trânsito, entre o arbítrio e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre razões míticas e or<strong>de</strong>m<br />
citadina, permeia situações <strong>de</strong> catástrofe” (p. 20). O trágico aí é tomado em<br />
seu sentido rigoroso, bem estabelecido pelo paralelismo entre o quadro<br />
histórico <strong>da</strong> tragédia ática e o contexto brasileiro, em que o arcaico é constitutivo<br />
do mo<strong>de</strong>rno: “certa dimensão <strong>de</strong> encantamento permanece, con traface<br />
<strong>de</strong> um país em que o capitalismo se manteve conjugado a uma or<strong>de</strong>m<br />
pré-burguesa no que se refere ao tratamento <strong>da</strong> pessoa, à sua constituição<br />
como sujeito <strong>de</strong> direitos” (p. 121).<br />
No conjunto formado por “A benfazeja”, “A terceira margem do rio”,<br />
“Substância”, “Sorôco, sua mãe, sua filha” e “Na<strong>da</strong> e a nossa condição”,<br />
cruzam-se posse e privação, perspectiva mítico-religiosa e instrumental<br />
esclarecido, mundo do trabalho e transcendência, discurso individual e imaginário<br />
coletivo, pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> classes distintas. À diferença <strong>da</strong> atmosfera<br />
<strong>de</strong> sonho (ou pesa<strong>de</strong>lo), <strong>da</strong> graça <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> ou pungente que perpassa os<br />
contos focados em crianças, nesses outros sobressai a concretu<strong>de</strong> vívi<strong>da</strong><br />
dos percalços: o sofrimento <strong>de</strong>ixa marcas nos corpos <strong>de</strong> várias personagens,<br />
a ação <strong>de</strong>ixa à mostra condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> muito precárias (ausência<br />
<strong>de</strong> recursos institucionais, trabalho <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>nte, exclusão social, <strong>de</strong>sespero).<br />
A notação mitificadora <strong>da</strong> história tem mais <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> — mais peso crítico<br />
— sobretudo quando ocorre paralisação do mito (“A benfazeja”, “A terceira<br />
margem do rio”, “Na<strong>da</strong> e a nossa condição”), quando a forma literária, li -<br />
<strong>da</strong>ndo com experiências-limite sem amainar sua gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, põe em xeque<br />
a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> simbolizar saí<strong>da</strong>s para contradições históricas bem precisas,<br />
que o não-tempo mítico preten<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r. Sobretudo nas narrativas<br />
em que há mescla <strong>de</strong> vozes sociais, em que a mitificação viceja no<br />
cruzamento entre lógica coletiva <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> pobre e estratégia per suasiva<br />
<strong>de</strong> narrador esclarecido — “A benfazeja”, “Na<strong>da</strong> e a nossa condição” —,<br />
o mito surge como construção fissura<strong>da</strong>. Já não mais repositório <strong>de</strong> con vic -<br />
ções inabaláveis, como no pensamento religioso, a or<strong>de</strong>m mítica participa <strong>de</strong><br />
uma postulação, funciona como artifício que confere (falsa) universali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
196 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
197<br />
ao plaidoyer apaziguador <strong>de</strong> uma voz em primeira pessoa. O momento <strong>de</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do mito coletivo se estilhaça no choque com a matéria histórica, na<br />
qual a distância entre classes e o insulamento <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, minando<br />
por entre as fissuras <strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> reversão simbólica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> problemática,<br />
põe sob suspeita a própria solução mítica.<br />
O juízo sobre o recurso à mitificação como estratégia persuasiva <strong>de</strong><br />
narrador em primeira pessoa é um dos mais altos rendimentos críticos<br />
<strong>de</strong> Lugar do mito, contribuição importante para o entendimento <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa (vale lembrar que também o narrador <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> sertão:<br />
vere<strong>da</strong>s está às voltas com um trabalho <strong>de</strong> persuasão que envolve a di -<br />
mensão mítica). Agenciado pela perspectiva esclareci<strong>da</strong>, o espectro mítico,<br />
sob as lentes críticas <strong>de</strong> Ana Paula Pacheco, dá a ver os contornos <strong>da</strong> naturalização<br />
do <strong>de</strong>stino histórico em nossa mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> exclu<strong>de</strong>nte, sem<br />
margem para a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, suspensa na má infinitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> passagem para a<br />
civili<strong>da</strong><strong>de</strong> prometi<strong>da</strong>.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
201<br />
O filme 100% brasileiro 1<br />
Blaise Cendrars<br />
Tradução e notas: Carlos Augusto Calil<br />
Revisão <strong>da</strong> tradução: Maria Teresa <strong>de</strong> Freitas<br />
Eis a íntegra do projeto, elaborado em conjunto com o primeiroamigo<br />
(“Oswald está por <strong>de</strong>mais impaciente”), que Cendrars encaminhou<br />
a Paulo Prado, acompanhado <strong>de</strong> uma breve carta.<br />
[<strong>da</strong>t., FBC: P 41]<br />
São Paulo, 1 o<br />
<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1924.<br />
Mon cher Paul,<br />
Você encontrará, anexo, o projeto do gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
que tanto falamos. Creio que a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s minhas sugestões está bastante<br />
completa. Peço-lhe a gentileza <strong>de</strong> ler este projeto com muita atenção e<br />
ficarei bastante grato se você me <strong>de</strong>r sua opinião e me fizer to<strong>da</strong>s as suas<br />
observações. Aguardo sua orientação antes <strong>de</strong> <strong>da</strong>r prosseguimento a esse<br />
negócio. Oswald está por <strong>de</strong>mais impaciente.<br />
Trabalho na minha conferência do dia 12 [sobre a pintura contemporânea,<br />
que <strong>da</strong>ria no Conservatório Dramático e Musical]. Foi o Oswald<br />
que pegou a coisa na mão e <strong>de</strong>la se ocupa. Ele é muito gentil.<br />
To<strong>da</strong> essa bateção <strong>de</strong> máquina me ocupa o dia todo me impedindo<br />
<strong>de</strong> achar o tempo <strong>de</strong>masiado longo durante a sua ausência.<br />
Enfim o frio anunciado chegou e você <strong>de</strong> novo tem razão: um sobretudo<br />
pesado não é <strong>de</strong>mais.<br />
Minhas melhores lembranças à d. Marinette, a você<br />
minha mão amiga<br />
BC<br />
1 Anexo ao artigo “Cinema = Cavação”, <strong>de</strong> Carlos Augusto Calil (p. 13 <strong>de</strong>sta edição).<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
[<strong>da</strong>t., PP2; FBC: P 41]<br />
GRANDE FILME DE PROPAGANDA DO BRASIL<br />
Sugestões para a realização <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> do<br />
Brasil por Blaise Cendrars.<br />
1. O Brasil<br />
O Brasil é um Gran<strong>de</strong> Estado Mo<strong>de</strong>rno em formação.<br />
Mais do que qualquer outro, precisa se tornar conhecido.<br />
Precisa <strong>de</strong> colonização, <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, <strong>de</strong> especialistas industriais,<br />
<strong>de</strong> investimentos etc. para valorizar seu subsolo (minas), seu solo (agricultura,<br />
pecuária, recursos florestais), seus cursos d’água (eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
navegação, hidroaviação), <strong>de</strong>senvolver sua malha ferroviária e <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>gem<br />
(meios <strong>de</strong> transporte, caminhões, automóveis e aviação) e possibilitar à<br />
sua indústria nascente um pleno rendimento.<br />
O Brasil é um Gran<strong>de</strong> Estado Mo<strong>de</strong>rno com um passado, tradições,<br />
uma história. É atualmente uma gran<strong>de</strong> República Democrática que oferece<br />
to<strong>da</strong>s as garantias morais <strong>de</strong>sse regime.<br />
É atualmente o maior país do futuro.<br />
É isso que precisa se tornar conhecido no Exterior.<br />
2. Propagan<strong>da</strong> e Publici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos Estados Mo<strong>de</strong>rnos<br />
Durante a guerra, os maiores Estados Europeus se empenharam<br />
numa propagan<strong>da</strong>, numa publici<strong>da</strong><strong>de</strong> ar<strong>de</strong>nte freqüentemente com resultado.<br />
Hoje em dia, os Estados Unidos se empenham em todo o mundo<br />
numa propagan<strong>da</strong> ardorosa para tornar conheci<strong>da</strong>s as riquezas naturais e<br />
industriais <strong>de</strong> seu país. Ninguém contestará os resultados obtidos, quando<br />
temos em mente que os Estados Unidos lograram criar um movimento<br />
turístico no seu próprio país, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong>s velhas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas<br />
européias, <strong>da</strong> terra clássica <strong>da</strong> Itália ou <strong>da</strong> bela natureza suíça.<br />
A forma <strong>de</strong> publici<strong>da</strong><strong>de</strong> emprega<strong>da</strong> é a Propagan<strong>da</strong> Cinemato grá fi ca.<br />
3. Propagan<strong>da</strong> Cinematográfica<br />
A Propagan<strong>da</strong> Cinematográfica é a forma <strong>de</strong> publici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> maior<br />
resultado. Ela se dirige simultaneamente a todos os países do mundo e<br />
diretamente a to<strong>da</strong>s as classes <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Atinge a imaginação e o coração<br />
assim como a razão. É uma lição <strong>de</strong> coisas, a que to<strong>da</strong>s as crianças <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong>s as escolas do mundo assistem e carregam seus pais. Existem atualmente<br />
mais <strong>de</strong> 60 mil salas <strong>de</strong> cinema em exploração e o capital envolvido<br />
nessa nova indústria ultrapassa os 25 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />
202 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
203<br />
4. Filmes <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong><br />
O filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong>, tal como foi concebido até hoje, é mais propriamente<br />
um Filme Documentário, com interesse pe<strong>da</strong>gógico ou apenas<br />
pitoresco, o que já não basta. Além disso, tem a mesma finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
nova forma que está se propagando ca<strong>da</strong> vez mais, o Filme Científico Puro.<br />
Documentário ou Científico, esta forma <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> não po<strong>de</strong> ter<br />
gran<strong>de</strong> alcance, pois ela se dirige freqüentemente a um público restrito <strong>de</strong><br />
especialistas ou <strong>de</strong> intelectuais e suscita no gran<strong>de</strong> público apenas um<br />
movimento <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. De resto, o comprimento comercial imposto a<br />
esse tipo <strong>de</strong> filmes (<strong>de</strong> 100 a 150 metros) não permite expor o tema em<br />
profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>; por isso são logo esquecidos.<br />
O Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> Mo<strong>de</strong>rna se faz ca<strong>da</strong> vez mais sob a fórmula<br />
<strong>da</strong> Superprodução, isto é do Filme Histórico, Sentimental e Artístico. (Exemplos:<br />
nos Estados Unidos, Nascimento <strong>de</strong> uma nação 2 , <strong>de</strong> Griffith, e, na<br />
França, J’accuse, o gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> guerra que Blaise Cendrars realizou em<br />
colaboração com Abel Gance).<br />
5. Filme Histórico, Sentimental e Artístico<br />
Esse filme é a melhor forma <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> Cinematográfica. Per mi -<br />
te a ampla exposição <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado tema, que se po<strong>de</strong> explorar em todos<br />
os sentidos, situá-lo no passado, permite expandi-lo e <strong>da</strong>r-lhe to<strong>da</strong> a sua<br />
importância no presente e até tirar conclusões para o futuro. Atinge o espírito,<br />
a imaginação e o coração, sobretudo se o momento histórico for bem<br />
escolhido, se a intriga não é <strong>de</strong>masiado pesa<strong>da</strong>, se ela for bem conduzi<strong>da</strong>, se<br />
se <strong>de</strong>senvolve em locações novas e em ambientes curiosos, se as personagens<br />
são bem características, e se atuam no meio <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> figurantes<br />
bem escolhidos e, se possível, <strong>de</strong> diversas raças. Com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> tais veículos<br />
po<strong>de</strong>mo-nos empenhar na propagan<strong>da</strong> mais intensa, a mais ampla, a<br />
mais completa, sem que ela jamais canse. Um filme assim é inesquecível,<br />
interessa a to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Alguns seguem a intriga, outros<br />
são atraídos pelas paisagens, lugares, costumes curiosos, a página <strong>da</strong> história,<br />
todos são submetidos inconscientemente à propagan<strong>da</strong> que emana <strong>de</strong><br />
um tal espetáculo. O comprimento exigido por esse tipo <strong>de</strong> filmes é <strong>de</strong> 2.400<br />
a 3.000 metros 3 , permitindo sua exibição co mercial com Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
2 Cendrars, como a maioria dos cineastas, ficara impactado por esse filme: “Nascimento<br />
<strong>de</strong> uma nação me <strong>de</strong>u uma prodigiosa impressão <strong>de</strong> invenção e <strong>de</strong> criação, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<br />
<strong>de</strong> poesia mo<strong>de</strong>rnos”. [Moravagine, Pro-domo, Œuvres complètes. Paris: Denoël, 1961.<br />
Tomo 2, p. 432]<br />
3 O filme silencioso era exibido à veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 16 fotogramas por segundo. A duração <strong>de</strong><br />
um filme cujo comprimento estivesse contido na faixa entre 2.400 e 3.000 metros ficaria<br />
entre 2h10min e 2h40min. O gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong> Blaise Cendrars seria<br />
longo para os padrões <strong>da</strong> época. Nascimento <strong>de</strong> uma nação, <strong>de</strong> David W. Griffith, o filme<br />
que se tornou paradigma do gran<strong>de</strong> espetáculo, durava 3h15min, na sua primeira versão,<br />
e 2h50min na cópia corta<strong>da</strong>, que circulou nos cinemas.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
6. Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
A exibição com Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é a maneira <strong>de</strong> apresentar um filme ao<br />
maior número possível <strong>de</strong> pessoas, nas melhores condições e com o máximo<br />
<strong>de</strong> rendimento.<br />
A fórmula é a seguinte: em to<strong>da</strong>s as capitais do mundo, Paris, Nova<br />
York, Londres etc., ce<strong>de</strong>-se o filme a uma única sala, com exclusão <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />
as outras e <strong>de</strong> qualquer outro espetáculo. To<strong>da</strong> a população <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
capital mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>sfila diante <strong>de</strong> uma só tela que exibe o filme até o seu<br />
com pleto esgotamento. (Vimos assim alguns filmes durarem um ano). Isso<br />
permite <strong>da</strong>r a ele to<strong>da</strong> a importância que merece com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma pu -<br />
blici<strong>da</strong><strong>de</strong> enorme, com sessões especiais <strong>de</strong> gala e solenes para os mem bros<br />
do governo, os diplomatas e a imprensa, para os alunos <strong>da</strong>s escolas etc.<br />
Qualquer que seja a duração do filme no cinema <strong>da</strong> capital, ao fim <strong>de</strong> um<br />
mês, exibe-se <strong>da</strong> mesma maneira, com Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, numa única sala em<br />
ca<strong>da</strong> gran<strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior, on<strong>de</strong> o filme chega com o máximo <strong>de</strong> sensação.<br />
Depois do seu esgotamento no interior e na capital, faz-se uma nova<br />
versão, geralmente reduzi<strong>da</strong>, que é então exibi<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as salas <strong>da</strong><br />
capital, <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior e <strong>da</strong>s menores ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s em todo o<br />
território. O filme assim renovado é exibido simultaneamente em ca<strong>da</strong> país<br />
do mundo e <strong>de</strong> um modo ininterrupto durante um ano ou dois.<br />
Só são explorados <strong>de</strong>sta maneira os filmes <strong>de</strong> Exceção.<br />
7. Filme <strong>de</strong> Exceção<br />
O filme <strong>de</strong> Exceção é aquele que exige o maior Investimento, o maior<br />
número <strong>de</strong> Colaboradores, a execução Técnica Mo<strong>de</strong>rna mais cui<strong>da</strong>dosa,<br />
os A<strong>de</strong>reços mais variados, os melhores Intérpretes, um Roteiro elaborado<br />
com todo o critério, uma Ação movimenta<strong>da</strong> que se <strong>de</strong>senvolve nas me -<br />
lhores Locações e as mais belas Paisagens, os Figurinos mais ricos etc., etc.<br />
Deve igualmente produzir dois, três efeitos <strong>de</strong> Sensação que o público <strong>de</strong> hoje<br />
exige em to<strong>da</strong> superprodução — batalhas, com gran<strong>de</strong>s movimentos <strong>de</strong> massa,<br />
incêndio <strong>de</strong> floresta, cenas <strong>de</strong> água etc. — e apresentar igualmente alguns<br />
<strong>de</strong>talhes Pitorescos, tais como animais raros, flora extravagante, diferentes<br />
raças humanas com seus modos e costumes etc.<br />
O filme <strong>de</strong> Exceção que reunir todos estes elementos terá um sucesso<br />
garantido, um rendimento máximo automático e um alcance incalculável.<br />
Afasta to<strong>da</strong> concorrência possível justamente porque é <strong>de</strong> exceção e se <strong>de</strong>staca<br />
<strong>da</strong> produção média industrializa<strong>da</strong>. É o filme que todos os exibidores<br />
do mundo procuram, aquele que lhes assegura as melhores receitas, aquele<br />
ao qual nos aplicamos, ao qual <strong>da</strong>mos o máximo <strong>de</strong> publici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> alcance,<br />
em cujo sucesso milhares <strong>de</strong> indivíduos, <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s estão diretamente<br />
interessados. É igualmente o filme mais difícil <strong>de</strong> realizar, aquele que exige<br />
204 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
205<br />
mais tempo, trabalho e dinheiro, e o concurso <strong>de</strong> pintores, figurinistas,<br />
armeiros, arquitetos, engenheiros, historiadores, etnógrafos etc. O filme se<br />
apresenta geralmente acompanhado <strong>de</strong> uma Música especialmente composta<br />
para ele.<br />
8. Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil<br />
Um gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> para interessar todo um país tão<br />
vasto quanto o Brasil não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser concebido segundo a fórmula<br />
Superprodução, quer dizer, <strong>de</strong>veria ser um Filme Histórico, Sen ti -<br />
men tal e Artístico, uma realização <strong>de</strong> Exceção <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a ser exibi<strong>da</strong> com<br />
sentido <strong>de</strong> Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> para obter o maior e o mais universal dos alcances.<br />
N.B. Não insistirei sobre a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> e as vantagens para o Brasil <strong>da</strong><br />
realização em seu território <strong>de</strong> um Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> em tais mol<strong>de</strong>s.<br />
O momento me parece particularmente bem escolhido. Há uma crise<br />
mundial na indústria do cinema. Esta crise é <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> ao excesso <strong>da</strong> produção<br />
americana, que possui em estoque mais <strong>de</strong> 400 milhões <strong>de</strong> dólares <strong>de</strong><br />
filmes <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> média ou inferior que não conseguem distribuição, já<br />
que o gosto do público se apurou; é <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> a uma má organização<br />
interna dos gran<strong>de</strong>s trustes cinematográficos, à crise financeira internacional,<br />
crise do roteiro e dos atores. O Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Exceção que aparecer<br />
hoje em dia teria a chance excepcional <strong>de</strong> surgir praticamente só nas<br />
telas <strong>de</strong> todo o mundo, concentrando sobre si, durante certo tempo, to<strong>da</strong> a<br />
atenção do mundo inteiro.<br />
O Brasil possui <strong>de</strong> um modo privilegiado todos os elementos acima<br />
enumerados, que permitiriam a Realização e fariam o Sucesso <strong>de</strong> um<br />
Gran <strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Exceção.<br />
9. Realização <strong>de</strong> um Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil<br />
Passemos agora em <strong>revista</strong> todos os elementos <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> um<br />
Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong>: Roteiro, Música, Colaboradores, Inves ti -<br />
men tos etc.<br />
10. O Roteiro<br />
Nunca seria <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>stacar a importância do Roteiro. Dele <strong>de</strong>corre<br />
todo o interesse <strong>de</strong> um filme. Depois <strong>da</strong>s filmagens, <strong>da</strong> realização técnica,<br />
é o ponto crucial do filme.<br />
O Tema <strong>de</strong> um roteiro para um filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil <strong>de</strong>ve<br />
ser procurado na História do país, e mais na história ligeiramente lendária<br />
que na precisão dos fatos. A história ligeiramente lendária atinge diretamente<br />
as mais amplas cama<strong>da</strong>s sociais e humanas; ela põe em relevo o<br />
que há <strong>de</strong> Universal na história nacional: as Personagens Heróicas.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Inútil insistir sobre as razões históricas que nos levam a procurar o<br />
tema <strong>de</strong> um Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil na História Paulista que se<br />
confun<strong>de</strong> tão freqüentemente com a História Nacional. Uma página <strong>de</strong>ssa<br />
história paulista nos fornecerá o elemento lendário e o elemento heróico<br />
necessários: é a Época <strong>da</strong>s Ban<strong>de</strong>iras.<br />
Estas consi<strong>de</strong>rações e os conselhos <strong>de</strong> alguns amigos brasileiros, nota<strong>da</strong>mente<br />
do dr. Paulo Prado, nos fizeram escolher como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong><br />
para o roteiro A história <strong>da</strong> Capitania <strong>de</strong> São Paulo 4 , do dr. Washington<br />
Luís, e mais particularmente os capítulos IV e V, que tratam tão magistralmente<br />
<strong>da</strong> história e <strong>da</strong>s aventuras dos Irmãos Lemes.<br />
Aí temos matéria para um belíssimo filme dramático.<br />
É em suma a história <strong>da</strong> última ban<strong>de</strong>ira. A luta entre o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong><br />
metrópole e o sentimento <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> nascente, <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, <strong>da</strong><br />
nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O espírito <strong>de</strong> conquista e as aventuras dos Irmãos Lemes<br />
conduzem-nos para o interior do país. Florestas virgens, rios* gigantescos,<br />
lutas com os Índios, natureza hostil, animais selvagens, mamalucos*, es cra -<br />
vos negros, cinematograficamente falando, são elementos extraordinários.<br />
Os caracteres <strong>da</strong>s personagens são heróicos e bem <strong>de</strong>finidos. Mas será<br />
necessário acrescentar em função <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dramáticas do filme<br />
algumas personagens femininas, em torno <strong>da</strong>s quais a intriga se estabelece<br />
e os interesses, as motivações <strong>de</strong> todos gravitam 5 .<br />
Mas o aspecto Propagan<strong>da</strong> Mo<strong>de</strong>rna não <strong>de</strong>ve ser perdido <strong>de</strong> vista.<br />
É por isso que o roteiro <strong>de</strong>ve conter uma ação nos Tempos Mo<strong>de</strong>rnos. E<br />
esta ação será, em suma, o prolongamento nos tempos mo<strong>de</strong>rnos <strong>da</strong> história<br />
dos Irmãos Lemes e mostrará a Persistência do espírito <strong>de</strong> conquista<br />
e <strong>de</strong> empreendimento (as gran<strong>de</strong>s culturas, o café, o algodão), a persistência<br />
do espírito <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> (<strong>de</strong>claração <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência), a persistência <strong>da</strong><br />
vonta<strong>de</strong> e <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> raça (formação <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, abolição <strong>da</strong><br />
escravatura, absorção dos imigrantes). Esta segun<strong>da</strong> parte do filme <strong>de</strong>ve<br />
ser igualmente trata<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma Romanesca.<br />
Concebido <strong>de</strong>sta maneira, o roteiro adquire um interesse particular,<br />
pois contém Duas Ações Dramáticas que se passam em Duas Épocas Di fe -<br />
rentes <strong>da</strong> história e mostram o país sob Dois Aspectos, em dois momentos<br />
típicos <strong>da</strong> sua Evolução. Assim será possível perceber todos os recursos<br />
4 O título correto é Capitania <strong>de</strong> São Paulo (Governo <strong>de</strong> Rodrigo César <strong>de</strong> Menezes). São<br />
Paulo: Typ. Garraux, 1918, 168 p. Cendrars possuía um exemplar <strong>de</strong>sse livro na sua<br />
bi blioteca, que não chegou a abrir. Deve tê-lo lido no exemplar <strong>de</strong> Paulo Prado.<br />
5 Por uma curiosa ironia, a ausência justamente <strong>de</strong> personagens femininas e a intriga<br />
romântica serão os elementos que os estúdios <strong>de</strong> Hollywood alegarão para não se<br />
interessar imediatamente, como esperava Blaise Cendrars, pela a<strong>da</strong>ptação ao cinema<br />
<strong>de</strong> L’or, livro escrito no final <strong>de</strong>sse ano <strong>de</strong> 1924.<br />
* Em português no original.<br />
206 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
207<br />
que uma tal concepção oferece para a Propagan<strong>da</strong> Geral do País e to<strong>da</strong>s as<br />
vantagens que o diretor po<strong>de</strong> também tirar <strong>de</strong> uma dupla intriga que lhe<br />
permite Valorizar as coisas <strong>de</strong> uma maneira nova, seja por Contrastes<br />
Bruscos, seja pela Simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> Rápi<strong>da</strong>, procedimentos que estimulam<br />
bastante a imaginação <strong>da</strong>s massas.<br />
Cinematograficamente falando, esta dupla ação po<strong>de</strong> ser conduzi<strong>da</strong><br />
seja Sucessivamente, seja Paralelamente, seja Simultaneamente.<br />
Re<strong>da</strong>ção do Roteiro. Proce<strong>de</strong>-se à re<strong>da</strong>ção do roteiro <strong>da</strong> seguinte<br />
maneira: uma vez aceita a História dos Irmãos Lemes, faz-se uma re<strong>da</strong>ção<br />
Sinóptica do roteiro. Esta sinopse é dividi<strong>da</strong> em tantas Partes quantas terá<br />
o filme, geralmente três gran<strong>de</strong>s partes ou quatro pequenas. Como o tema<br />
do presente filme comporta duas gran<strong>de</strong>s divisões, uma ação no passado<br />
e outra no presente, é preferível adotar a fórmula em quatro partes e sub di -<br />
vidir ca<strong>da</strong> ação em dois momentos principais. A sinopse <strong>de</strong>lineia sucintamente<br />
o conjunto do tema, <strong>de</strong>senha em traços largos as principais personagens,<br />
fixa a sua psicologia, <strong>de</strong>senvolve sua ação, <strong>de</strong>fine a sua situação no<br />
filme. Ela indica igualmente um número aproximado <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong><br />
segundo plano. E situa em ca<strong>da</strong> subdivisão um ou dois momentos mais particularmente<br />
dramáticos e em ca<strong>da</strong> parte uma cena patética. Ela prevê também<br />
os dois, três efeitos indispensáveis e as gran<strong>de</strong>s cenas sensacionais.<br />
Este primeiro trabalho será feito pelo dr. Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Será<br />
então submetido ao Autor e ao Diretor, que o discutirão, e somente quando<br />
estiverem <strong>de</strong> acordo sobre o conjunto, as coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s e o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>da</strong> história, é que o Autor, o dr. Washington Luís, passará à re<strong>da</strong>ção Ro mancea<strong>da</strong><br />
do Roteiro.<br />
O Autor se cerca <strong>de</strong> todos os colaboradores e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a documentação<br />
necessária. Ele não <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que o Diálogo não existe no cinema<br />
e que todos os problemas e to<strong>da</strong>s as situações dramáticas <strong>de</strong>vem ser resolvidos<br />
ou <strong>de</strong>senre<strong>da</strong>dos Visualmente. Nunca será <strong>de</strong>mais insistir sobre esta questão<br />
<strong>da</strong> Visuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ela é própria do cinema e é por ela que o cinema se torna<br />
uma Arte. O diretor aliás figura entre os colaboradores mais próximos do<br />
Autor e lá está para fazer-lhe sugestões úteis e informá-lo sobre as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
novas <strong>de</strong> sua arte. O Autor <strong>de</strong>ve encaixar sua história no quadro<br />
geral, nas subdivisões adota<strong>da</strong>s, fornecer to<strong>da</strong> a documentação necessária<br />
sobre as armas, os figurinos, os costumes etc., <strong>da</strong>r informações sobre os<br />
Interiores nos quais as diferentes ações se <strong>de</strong>senvolvem (casas históricas,<br />
igrejas, palácios etc.) e <strong>da</strong>r sugestões úteis para os Exteriores (lugares, rios,<br />
florestas, lagos, grutas etc.).<br />
No momento do lançamento do filme, a versão romancea<strong>da</strong> do<br />
roteiro é publica<strong>da</strong> em livro, brochura ou como folhetim nos jornais, é traduzi<strong>da</strong><br />
para to<strong>da</strong>s as línguas dos países on<strong>de</strong> o filme será apresentado. O<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
alcance do roteiro romanceado se junta ao do filme e passa a integrar a<br />
Propagan<strong>da</strong> do país.<br />
A Decupagem do Roteiro é a fragmentação, anota<strong>da</strong> e numera<strong>da</strong>, do<br />
roteiro romanceado e contém to<strong>da</strong>s as indicações técnicas necessárias à<br />
toma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s cenas. (Um filme <strong>de</strong> 3.000 metros po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>talhado em 1.500<br />
cenas numera<strong>da</strong>s.) A re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Decupagem <strong>de</strong>ve ser feita por alguém do<br />
ramo, conhecedor <strong>de</strong> todos os recursos <strong>de</strong> sua arte, dos truques <strong>da</strong> técnica,<br />
<strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comerciais e do gosto dos diferentes públicos do mundo.<br />
Deve ser ain<strong>da</strong> um fino psicólogo e dotado do sentido <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois<br />
seu trabalho servirá <strong>de</strong> base para o planejamento <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a formidável<br />
organização hoje necessária para a realização <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> filme mo<strong>de</strong>rno.<br />
O sr. Blaise Cendrars se encarregará <strong>de</strong>ste trabalho, em colaboração com<br />
o Autor, o dr. Washington Luís, e com o autor <strong>da</strong> Sinopse, o dr. Oswald <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>. Constitui uma vantagem inapreciável que o autor <strong>da</strong> Decupagem<br />
seja ao mesmo tempo Diretor do filme, pois assegura <strong>de</strong>ssa maneira a<br />
Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Concepção e a Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Realização, a melhor garantia para<br />
o alcance Total do filme.<br />
11. O Diretor<br />
O sr. Blaise Cendrars, poeta, escritor e jornalista, tem atrás <strong>de</strong> si Dez<br />
Anos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> cinematográfica. Realizou entre outras, em colaboração<br />
com o sr. Abel Gance, as duas maiores produções cinematográficas <strong>da</strong> Eu -<br />
ropa: J’accuse, gran<strong>de</strong> filme <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> francesa, e La roue,<br />
gran<strong>de</strong> filme sobre a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a importância social <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ferrovias, a P.L.M. [Paris Lyon Méditerranée]. Isso bem mostra que ele<br />
está qualificado para exercer a direção geral e a mise-en-scène do Gran<strong>de</strong><br />
Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil, <strong>de</strong> que teve a idéia.<br />
Os parágrafos seguintes expõem sua maneira <strong>de</strong> ver a realização<br />
<strong>de</strong>sse filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>:<br />
12. Indústria Cinematográfica Brasileira<br />
A indústria cinematográfica brasileira propriamente dita não existe.<br />
Há no Brasil um ramo do comércio cinematográfico, as Companhias ou Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que compram filmes americanos ou europeus, to<strong>da</strong>s Im por ta -<br />
doras. Não há firma <strong>de</strong> montagem, nenhum laboratório para revelação ou<br />
copiagem, nenhuma fábrica <strong>de</strong> película. As poucas firmas que tentaram<br />
até hoje a filmagem e a montagem são to<strong>da</strong>s embrionárias, trabalham com<br />
equipamento ultrapassado e suas instalações são mais que precárias. Não<br />
há sequer um Estúdio <strong>de</strong> filmagem no Brasil. O sr. Blaise Cendrars pensou<br />
também neste aspecto <strong>da</strong> questão, a <strong>da</strong> Propagan<strong>da</strong> Interior, em suma.<br />
Realizando uma Superprodução no Brasil, acredita po<strong>de</strong>r agir utilmente,<br />
208 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
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<strong>da</strong>ndo um impulso generoso a essa indústria brasileira nascente, impulso<br />
no sentido <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> economia mo<strong>de</strong>rna que faz que Todos Os Gran<strong>de</strong>s Es -<br />
ta dos Novos se tornem ca<strong>da</strong> vez mais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos produtos industriais<br />
estrangeiros (Índia, África do Sul, Austrália, Canadá, Brasil). Por esse<br />
motivo, o sr. Blaise Cendrars preten<strong>de</strong> que Uma Firma Cinematográfica<br />
Brasileira, estabeleci<strong>da</strong> no país e que trabalhe sob a sua direção e do seu<br />
estado-maior técnico, se inicie <strong>de</strong>ssa maneira nos métodos e na técnica<br />
mo<strong>de</strong>rna <strong>da</strong> filmagem.<br />
13. Colaboradores Técnicos<br />
O sr. Blaise Cendrars constituirá seu estado-maior <strong>de</strong> colaboradores<br />
técnicos: operadores, engenheiros, eletricistas, escolhidos entre os melhores<br />
especialistas <strong>da</strong> França e dos Estados Unidos. (Ao todo uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong><br />
pessoas.) Os outros colaboradores, operadores, fotógrafos, figurinistas etc.<br />
serão recrutados no país.<br />
14. Estúdio <strong>de</strong> Filmagem<br />
Um filme que preten<strong>de</strong> estar no nível <strong>da</strong> melhor produção cinema tográfica<br />
atual não po<strong>de</strong>ria prescindir <strong>de</strong> um Estúdio <strong>de</strong> filmagem equipado<br />
eletricamente. Como não há Estúdio no Brasil, não se po<strong>de</strong> querer construir<br />
um para as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um único filme. O sr. Blaise Cendrars se<br />
encarregará <strong>de</strong> obter junto a uma firma amiga na França o empréstimo ou<br />
o aluguel <strong>de</strong> um Estúdio ambulante equipado eletricamente e montado<br />
sobre caminhões.<br />
15. Intérpretes<br />
Mesmo não havendo Artistas cinematográficos no Brasil, não se <strong>de</strong>ve<br />
pensar na convocação <strong>de</strong> Artistas Estrangeiros renomados. O próprio espírito<br />
<strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> do Brasil se oporia a tal medi<strong>da</strong>. Será preciso<br />
então criar uma companhia <strong>de</strong> Atores Cinematográficos e prepará-los com<br />
todos os meios. Po<strong>de</strong>-se proce<strong>de</strong>r por intermédio <strong>de</strong> um anúncio na im -<br />
pren sa, organizando, com o apoio <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> Jornal brasileiro, um<br />
Concurso <strong>de</strong> Fotogenia, que conce<strong>da</strong> prêmios em espécie e no qual o<br />
Gran<strong>de</strong> Público será o juiz. Os candi<strong>da</strong>tos que obtiverem mais votos serão<br />
automaticamente incorporados à companhia para a interpretação <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>terminado papel. Este procedimento, muito utilizado na Europa e nos<br />
Estados Unidos, obteve freqüentemente os melhores resultados, e oferece<br />
ain<strong>da</strong> a vantagem <strong>de</strong> envolver <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início o Gran<strong>de</strong> Público no resultado<br />
do filme, <strong>de</strong> fazê-lo participar <strong>de</strong> um empreendimento nacional e <strong>de</strong>flagrar<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia a gran<strong>de</strong> campanha <strong>de</strong> publici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> qual nenhum<br />
gran<strong>de</strong> filme mo<strong>de</strong>rno po<strong>de</strong> prescindir.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
16. Música 6<br />
Uma Superprodução é sempre acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma Música composta<br />
especialmente para o filme. A música <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> filme mo<strong>de</strong>rno<br />
é tão importante quanto a música <strong>de</strong> uma ópera, e as gran<strong>de</strong>s Orquestras<br />
Sinfônicas liga<strong>da</strong>s a to<strong>da</strong>s as gran<strong>de</strong>s salas que passam o filme com Ex clu -<br />
sivi<strong>da</strong><strong>de</strong> em to<strong>da</strong>s as capitais do mundo e nas gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do in terior<br />
não são inferiores às dos gran<strong>de</strong>s teatros líricos e dos gran<strong>de</strong>s concertos. Hoje<br />
em dia, a estréia <strong>de</strong> um Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Exceção é também um acontecimento<br />
musical sensacional a que todos os críticos musicais comparecem<br />
e que os jornais comentam. O público melômano <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
do mundo aprecia muito esse tipo <strong>de</strong> manifestação. Por esse motivo o<br />
programa musical corrente nos cinemas habituais, espécie <strong>de</strong> pot-pourri<br />
ou <strong>de</strong> fragmentos tirados <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as composições, não serve mais e ca<strong>da</strong><br />
vez mais se encomen<strong>da</strong> a música <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Arte a um compositor<br />
<strong>de</strong> renome, capaz <strong>de</strong> fazer uma música a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ao valor do filme.<br />
Esta música concebi<strong>da</strong> para as gran<strong>de</strong>s orquestras sinfônicas <strong>da</strong>s<br />
salas <strong>de</strong> exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é reduzi<strong>da</strong> para pequenas orquestras quando o filme<br />
passa nas pequenas salas <strong>da</strong>s pequenas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior e do campo.<br />
Fica garantido por contrato que só ela acompanha o filme em to<strong>da</strong>s as salas<br />
do mundo. Para um Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil é preciso contar com<br />
o concurso <strong>de</strong> um Gran<strong>de</strong> Compositor Nacional Brasileiro. Tal como o<br />
Roteiro escrito, a Música faz parte <strong>da</strong> Propagan<strong>da</strong> do país.<br />
17. Estados do Brasil que se beneficiarão mais especificamente do<br />
Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong><br />
Se um filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil interessa ao conjunto do país,<br />
alguns Estados <strong>de</strong>le se beneficiarão <strong>de</strong> uma maneira especial: são os Es ta -<br />
dos on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senrolam certas cenas do filme e os Estados que serão visitados<br />
pela equipe para as filmagens. Mesmo que a ação <strong>de</strong>ste filme <strong>de</strong>va<br />
situar-se no Estado <strong>de</strong> São Paulo, nem todos os episódios po<strong>de</strong>rão ser nele<br />
filmados; por exemplo, as cenas <strong>da</strong> floresta virgem, as cenas <strong>da</strong>s lutas contra<br />
os índios etc. Po<strong>de</strong>mos então prever que os seguintes Estados se beneficiarão<br />
mais especificamente <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> direta <strong>de</strong>ste filme: São Paulo, Minas,<br />
Paraná, Mato Grosso, Distrito Fe<strong>de</strong>ral, Bahia etc.<br />
18. Documentários<br />
Como as filmagens levarão a equipe a diferentes Estados, o sr. Blaise<br />
Cendrars pensa aproveitar a presença dos seus operadores e dos seus intér -<br />
pretes nesses Estados para ro<strong>da</strong>r, além do Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do<br />
6 Item acrescentado na segun<strong>da</strong> versão do projeto.<br />
210 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
211<br />
Brasil, uma série <strong>de</strong> Pequenos Filmes Documentários consagrados a um<br />
tema restrito, indústria local, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas, curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s etc. Esses<br />
pe quenos filmes po<strong>de</strong>rão ser apresentados ao público antes do gran<strong>de</strong><br />
filme <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong>, para o qual servirão <strong>de</strong> arauto e anúncio. Deve-se<br />
prever uma vintena <strong>de</strong>sses pequenos filmes, documentários estritos.<br />
19. Duração <strong>da</strong>s filmagens e <strong>da</strong> pós-produção<br />
Em vista <strong>da</strong>s distâncias enormes a percorrer, <strong>da</strong> lentidão <strong>da</strong>s comunicações<br />
e <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> todo tipo que po<strong>de</strong>m surgir, é preciso prever<br />
que a duração <strong>da</strong>s filmagens será <strong>de</strong> Um Ano.<br />
A revelação do negativo na França, o estabelecimento do copião, a<br />
montagem e o lançamento do filme po<strong>de</strong>m durar <strong>de</strong> 3 a 6 meses.<br />
Prazo total para a estréia: <strong>de</strong> 15 a 18 meses.<br />
20. Metragem<br />
Metragem do Negativo: 100 mil metros <strong>de</strong> filme Eastman Ko<strong>da</strong>k e Pathé.<br />
Metragem do Positivo: 3 mil metros.<br />
21. Orçamento<br />
É preciso prever para o orçamento: 3.000.000 (Três Milhões <strong>de</strong> francos<br />
franceses).<br />
22. Retorno<br />
Consi<strong>de</strong>rando o seu caráter <strong>de</strong> Superprodução, se este filme for tec ni -<br />
camente bem resolvido, quer dizer comercial, a Exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r<br />
(Europa e colônias apenas) um mínimo <strong>de</strong> 26 milhões <strong>de</strong> francos franceses.<br />
Com um pouco <strong>de</strong> sucesso po<strong>de</strong>rá ren<strong>de</strong>r 40 milhões e com muito sucesso<br />
<strong>de</strong> 60 a 80 milhões <strong>de</strong> francos.<br />
(Não estou contando nestes valores a receita dos Estados Unidos por<br />
causa <strong>da</strong>s leis proibitivas americanas e <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa bem ativa contra os filmes<br />
estrangeiros que os trustes cinematográficos fazem <strong>de</strong> seu mercado.<br />
Por isso não se po<strong>de</strong> sequer prever a receita <strong>de</strong> um filme estrangeiro nos<br />
Estados Unidos. Naturalmente, isso não quer dizer que o Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong><br />
Propagan<strong>da</strong> do Brasil não será aí apresentado, ao contrário. E se fizer o<br />
sucesso que Caligari 7 , filme alemão, fez nos Estados Unidos, po<strong>de</strong>rá ren<strong>de</strong>r,<br />
7 O gabinete do dr. Caligari, <strong>de</strong> Robert Wiene, com seus cenários <strong>de</strong>senhados com a in -<br />
tenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>formar a perspectiva realista, inaugurou em 1919 o ciclo expressionista<br />
no cinema alemão. Cendrars não gostava <strong>de</strong> Caligari, não o consi<strong>de</strong>rava cinema puro.<br />
Chegou mesmo a escrever uma crítica do filme em forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>cálogo: “1. As distorções<br />
pictóricas são apenas truques (uma nova convenção mo<strong>de</strong>rna); 2. Personagens<br />
reais em um cenário irreal (absurdo); 3. As distorções não são ópticas e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
como este, 82 milhões <strong>de</strong> dólares. Porém, isso faz parte do impon<strong>de</strong>rável<br />
no qual não nos po<strong>de</strong>mos basear, mas que <strong>de</strong>vemos provocar.)<br />
23. Investimentos<br />
Os Três Milhões <strong>de</strong> francos franceses necessários à realização <strong>de</strong> um<br />
Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil são representados por um Aporte<br />
Francês e um Aporte Brasileiro.<br />
24. Aporte Francês<br />
O sr. Blaise Cendrars participa pessoalmente <strong>de</strong>sse empreendimento<br />
com um aporte <strong>de</strong> Um Milhão <strong>de</strong> francos franceses. Para isso, constituirá<br />
uma Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa 8 tipo Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em Participação, cuja Se<strong>de</strong> Social<br />
será em Paris.<br />
O primeiro objetivo <strong>de</strong>ssa Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> será participar <strong>da</strong> realização<br />
<strong>de</strong> um Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do Brasil com a soma <strong>de</strong> Um Milhão<br />
<strong>de</strong> francos.<br />
Este Milhão se juntará ao Aporte Brasileiro <strong>de</strong> maneira a ser ain<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>. Ele será <strong>de</strong>positado num banco em Paris e servirá para pagar a<br />
<strong>de</strong>spesa com a aquisição do filme virgem (negativo e positivo) necessário<br />
às filmagens e ao estabelecimento do copião, <strong>de</strong> materiais <strong>de</strong> to<strong>da</strong> natureza<br />
(câmeras <strong>de</strong> filmar, fotográficas, <strong>de</strong> laboratório e acessórios etc.), os salários<br />
dos técnicos especialistas contratados pelo sr. Blaise Cendrars na França e<br />
nos Estados Unidos, para pagar os serviços <strong>de</strong> laboratório para revelação<br />
e copiagem, em suma, para fazer face a to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>spesas extrabrasileiras.<br />
O segundo objetivo <strong>de</strong>ssa Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> será a Comercialização do Filme<br />
até o seu completo esgotamento em todos os países do mundo, com exclusão<br />
do Brasil e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a América do Sul, cedidos ao Aporte Brasileiro. Para<br />
cumprir este segundo objetivo, a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa constituirá, posteriormente,<br />
após a tiragem do copião, um segundo capital <strong>de</strong> 500 mil francos<br />
franceses para o lançamento, a publici<strong>da</strong><strong>de</strong> e a organização <strong>da</strong>s ven<strong>da</strong>s do<br />
referido filme.<br />
Da receita Líqui<strong>da</strong> 9 <strong>da</strong> Comercialização do Filme <strong>de</strong> Propagan<strong>da</strong> do<br />
Brasil em todos os países do mundo a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa ce<strong>de</strong>rá ao Aporte<br />
<strong>de</strong> um ângulo especial <strong>da</strong> câmera, nem <strong>da</strong>s lentes, do diafragma, ou do foco; 4. Nunca<br />
há uni<strong>da</strong><strong>de</strong>; 5. Teatral; 6. Movimento sem ritmo; 7. Não há purificação <strong>da</strong> arte; todos<br />
os efeitos provêm <strong>de</strong> técnicas que pertencem à pintura, música ou literatura etc. A<br />
câmera não tem qualquer importância; 8. Sentimental e não visual; 9. Boas imagens,<br />
bonita luz, soberba interpretação; 10. Boa bilheteria”. Publicado em Cinéma, no. 56,<br />
2/6/22, p. 11, como citação <strong>de</strong> Feuilles libres, sem indicação <strong>de</strong> <strong>da</strong>ta. Cf. LAWDER,<br />
Stan dish D. The cubist cinema. Nova York: New York University Press, 1975. p. 96-7.<br />
8 Na primeira versão do projeto: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa <strong>de</strong> Filmes Blaise Cendrars.<br />
9 No comércio cinematográfico, a Receita Bruta fica com o exibidor do filme. Desse<br />
212 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
213<br />
Brasileiro um terço, reservando para si o segundo terço, cabendo o terceiro<br />
terço ao sr. Blaise Cendrars pessoalmente.<br />
25. Aporte Brasileiro<br />
O Aporte Brasileiro será <strong>de</strong> Dois Milhões <strong>de</strong> francos franceses. Ele<br />
po<strong>de</strong> concretizar-se segundo duas fórmulas:<br />
Fórmula A: O Governo (ou diversos Governos Estaduais) participa<br />
com Dois Milhões <strong>de</strong> francos <strong>da</strong> Realização <strong>de</strong> um Gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Pro -<br />
pa gan<strong>da</strong> do Brasil.<br />
Esta participação é uma subvenção.<br />
Nesse caso, a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa assume exclusivamente a comercialização<br />
do filme no mundo inteiro, incluído o Brasil e a América do Sul.<br />
Ela se compromete em compensação a remeter ao ou aos Estados participantes<br />
o número <strong>de</strong> cópias do filme necessárias à Propagan<strong>da</strong> no interior do<br />
país. Ela remeterá igualmente a Receita Líqui<strong>da</strong> Integral <strong>da</strong> Comercia li -<br />
zação do filme no Brasil e na América do Sul, mais o terço previsto no<br />
parágrafo 24 sobre a receita líqui<strong>da</strong> <strong>da</strong> comercialização do referido filme<br />
em todos os países do mundo.<br />
Esses valores po<strong>de</strong>rão ser aplicados pela Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa nas<br />
Obras Sociais ou Públicas do ou dos Estados participantes (hospitais, Ins -<br />
ti tuto <strong>de</strong> Radiologia etc., etc.), segundo fórmula a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e prazos<br />
fixados em Contrato.<br />
Fórmula B: O Governo (ou diversos Governos Estaduais) participa<br />
com Um Milhão <strong>de</strong> francos na realização <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> Filme <strong>de</strong> Pro pa -<br />
gan <strong>da</strong> do Brasil.<br />
Este valor <strong>de</strong> Um Milhão é uma subvenção que o ou os Governos<br />
conce<strong>de</strong>m a uma Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira priva<strong>da</strong> que se constituiria segundo<br />
o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa, em participações equivalentes ao Capital<br />
<strong>de</strong> Um Milhão <strong>de</strong> francos.<br />
Nesse caso, o sr. Blaise Cendrars participaria igualmente <strong>da</strong> Socie -<br />
<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira e seu aporte pessoal nessa Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> seria representado<br />
por seus conhecimentos técnicos, seu trabalho, suas relações comerciais,<br />
com os quais contribui para a realização <strong>da</strong> obra comum.<br />
(Esta Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira po<strong>de</strong>ria ser a Firma Cinematográfica Brasileira<br />
menciona<strong>da</strong> no parágrafo 12 <strong>da</strong> presente proposta e que colocaria<br />
o seu reduzido pessoal à disposição do sr. Blaise Cendrars para fazer um<br />
estágio.)<br />
valor ele retira as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> manutenção <strong>da</strong> sua sala e obtém a Receita Líqui<strong>da</strong>. Normalmente<br />
meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> Receita Líqui<strong>da</strong> constitui a ren<strong>da</strong> do exibidor; a outra meta<strong>de</strong> cabe<br />
então ao distribuidor do filme e ao seu produtor. Dessa meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> Receita Lí qui<strong>da</strong>, um<br />
quinto correspon<strong>de</strong> à remuneração do distribuidor e o restante é <strong>de</strong>vido ao produtor.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
À Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira caberia então fornecer ao ou aos Governos<br />
participantes o número <strong>de</strong> cópias necessárias à sua propagan<strong>da</strong> no interior<br />
do país; esta mesma Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> comercializaria o filme no Brasil e na<br />
América do Sul e seria ela a distribuir ao ou aos Governos participantes os<br />
lucros e a sua parte <strong>de</strong> um terço <strong>da</strong> receita líqui<strong>da</strong> <strong>de</strong> comercialização do<br />
filme nos outros países do mundo, menciona<strong>da</strong> no parágrafo 24.<br />
Estes valores seriam repartidos entre a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira e o ou<br />
os Estados participantes, segundo condições a <strong>de</strong>finir em um Contrato,<br />
ficando a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa completamente libera<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse encargo.<br />
Qualquer que seja a fórmula adota<strong>da</strong>, os Dois Milhões <strong>de</strong> francos<br />
franceses do Aporte Brasileiro não sairão do país; servirão para cobrir as<br />
<strong>de</strong>spesas <strong>da</strong> execução do Filme no Brasil, viagens, <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> hotel, hos -<br />
pe <strong>da</strong>gem do sr. Blaise Cendrars e <strong>de</strong> seu estado-maior técnico (10 pessoas)<br />
no Brasil pelo período <strong>de</strong> um ano, salários dos intérpretes e dos artistas<br />
bra sileiros, do numeroso quadro <strong>de</strong> atores secundários, <strong>da</strong> figuração, custo<br />
<strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s cenas sensacionais, aquisição dos inumeráveis a<strong>de</strong>reços, confecção<br />
dos figurinos, construção dos cenários, aquisição do Roteiro Ro manceado,<br />
do Roteiro Sinótico e <strong>da</strong> Música etc., etc.<br />
N.B. To<strong>da</strong>s estas <strong>de</strong>spesas po<strong>de</strong>m ser reduzi<strong>da</strong>s em um terço se, com<br />
o concurso do Governo, todo o material do filme for <strong>de</strong>sonerado dos im -<br />
postos <strong>de</strong> importação, se o transporte ferroviário do pessoal e do material<br />
for gratuito etc., etc.<br />
26. Direitos <strong>de</strong> Autor<br />
Fica a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa <strong>de</strong> Comercialização do Filme em todos os<br />
países do mundo incumbi<strong>da</strong> <strong>de</strong> tratar diretamente dos direitos para as traduções<br />
e publicação do Roteiro romanceado, assim como para a Edição e a<br />
comercialização em Concertos <strong>da</strong> Música especial do Filme. Para tal, ela se<br />
enten<strong>de</strong>rá com a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> dos Autores (Convenção Internacional <strong>de</strong> Ge -<br />
nebra) e pagará diretamente os direitos <strong>de</strong>vidos ao Autor e ao Compositor.<br />
Os direitos do Diretor são <strong>de</strong>terminados por sua participação pessoal,<br />
segundo os contratos firmados com a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Francesa ou, no caso<br />
previsto na Fórmula B, com a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira.<br />
27. Participação dos principais Colaboradores<br />
É justo que os principais Colaboradores, Autor, Compositor, Con ti -<br />
nui<strong>da</strong><strong>de</strong>, Atores, Fotógrafo, o Eletricista-chefe, participem, eventualmente<br />
segundo um pro rata a ser estabelecido, dos lucros <strong>de</strong>ste empreendimento,<br />
cujo sucesso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> tudo <strong>da</strong> estreita colaboração <strong>de</strong> todos.<br />
São Paulo, 1 o . <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1924.<br />
Blaise CENDRARS<br />
214 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
217<br />
Prêmio Marta Rossetti Batista <strong>de</strong><br />
História <strong>da</strong> Arte e <strong>da</strong> Arquitetura e<br />
Acervo Marta Rossetti Batista<br />
Em outubro <strong>de</strong> 2007, foi criado pelo IEB o Prêmio Bianual Marta<br />
Rossetti Batista <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Arte e <strong>da</strong> Arquitetura, que em sua primeira<br />
edição contemplou a monografia Quimeras <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> na obra <strong>de</strong><br />
Mar celo Grassmann (Volumes I e II), <strong>de</strong> Priscilla Rossinetti Rufinoni.<br />
O IEB passou a sediar, em <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2008, o acervo <strong>da</strong> professora<br />
e pesquisadora Marta Rossetti Batista, ex-diretora do <strong>Instituto</strong>. Esse<br />
acervo totaliza aproxima<strong>da</strong>mente dois mil volumes <strong>de</strong> livros, algumas re -<br />
vistas e jornais. A documentação está conti<strong>da</strong> em quarenta pastas. Livros,<br />
<strong>revista</strong>s e jornais, assim como a documentação pessoal, dizem respeito<br />
aos temas <strong>de</strong> interesse <strong>da</strong> pesquisadora, a saber: a arte popular e do Brasil<br />
colonial; a história <strong>da</strong> arquitetura e do mo<strong>de</strong>rnismo e, finalmente, os<br />
museus — com <strong>de</strong>staque para o repertório <strong>de</strong> livros voltados para o tema<br />
<strong>da</strong> construção dos museus e a coleção <strong>de</strong> catálogos <strong>de</strong> museus brasileiros.<br />
Marta Rossetti Batista cultivou uma biblioteca sobre artistas plásticos como<br />
Rebolo, Galvez, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Gomi<strong>de</strong>, Anita Malfatti, Alei -<br />
jadinho e uma mostra significativa <strong>de</strong> títulos sobre a arte colonial brasileira.<br />
A incorporação do acervo <strong>da</strong> intelectual, que <strong>de</strong>senvolveu parte <strong>de</strong><br />
sua trajetória intelectual junto ao acervo do IEB, já foi inicia<strong>da</strong> e a ela se<br />
seguirá a disponibilização dos livros e documentos, quando serão abertas<br />
novas perspectivas <strong>de</strong> pesquisa a partir <strong>da</strong>s lições por ela <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s.<br />
Do acervo <strong>da</strong> professora Marta Rossetti Batista, a Revista do IEB<br />
seleciona o texto <strong>da</strong> palestra <strong>de</strong> Sergio Miceli, apresenta<strong>da</strong> no Seminário<br />
Coleção Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>: Religião e Magia. Música e Dança. Coti dia no,<br />
realizado pelo IEB em 2 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004, por ocasião do lançamento<br />
do catálogo <strong>de</strong> objetos <strong>da</strong> coleção Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> 1 .<br />
1 BATISTA, M. R. (Org.). Coleção Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>: religião e magia, música e <strong>da</strong>nça,<br />
cotidiano. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado <strong>de</strong> São Paulo, 2004.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Feição e Circunstância <strong>de</strong><br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> 2<br />
Sergio Miceli 3<br />
Tanto o polígrafo autodi<strong>da</strong>ta Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> como o próprio mo -<br />
vimento mo<strong>de</strong>rnista somente se tornam inteligíveis à luz do complexo <strong>de</strong><br />
mu<strong>da</strong>nças acarreta<strong>da</strong>s pela aceleração <strong>da</strong> crise do po<strong>de</strong>r oligárquico. As<br />
transformações conducentes à radical renovação do campo <strong>de</strong> produção<br />
cultural em São Paulo, nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1920 e 1930, tiveram lugar num<br />
contexto <strong>de</strong> acirra<strong>da</strong> débâcle econômica, social, política e i<strong>de</strong>ológica. As<br />
rebeliões tenentistas, os movimentos reivindicativos dos trabalhadores, as<br />
numerosas facções dissi<strong>de</strong>ntes empenha<strong>da</strong>s em organizar frentes e partidos<br />
“oposicionistas”, ocorreram em meio ao impressionante rearranjo <strong>da</strong><br />
estrutura social <strong>de</strong>terminado pelas correntes imigratórias, impulsiona<strong>da</strong>s<br />
pelos processos <strong>de</strong> urbanização e industrialização.<br />
O mo<strong>de</strong>rnismo constituiu, portanto, o canto <strong>de</strong> cisne <strong>da</strong> cultura oligárquica,<br />
o sopro renovador às vésperas <strong>da</strong> <strong>de</strong>rrota política em 1930, que<br />
tomaria o rumo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sforra construtiva após 1932. O movimento conheceu<br />
dois fôlegos bem distintos <strong>de</strong> “construção mental e institucional”: o<br />
primeiro ao longo dos anos 20, quando seus principais integrantes elaboraram<br />
um feitio novo <strong>de</strong> linguagem expressiva para <strong>da</strong>r conta do país, que<br />
buscavam enxergar com outras lentes, ain<strong>da</strong> otimistas, algo nostálgicas e<br />
enevoa<strong>da</strong>s num esforço apaixonado <strong>de</strong> recuperação histórica ditado pelos<br />
estouros <strong>de</strong> libertação, que atendiam pelos motes <strong>de</strong> “inconfidência”, “bar -<br />
roco”, “nação”, “liber<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “povo”, entre outros; o segundo entre 1932 e<br />
1937, quando as li<strong>de</strong>ranças intelectuais do movimento em São Paulo a<strong>de</strong>rem<br />
<strong>de</strong> cabeça à montagem <strong>de</strong> um cinturão institucional <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa cultural,<br />
como que antevendo a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> urgente <strong>de</strong> resguardo para rebotes fulminantes<br />
em futuro oportuno.<br />
O surto <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais em São Paulo, nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1920<br />
e 1930, esteve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo atrelado ao dinamismo <strong>da</strong>s organizações<br />
políticas — a criação <strong>da</strong>s ligas nacionalistas e <strong>de</strong> um partido <strong>de</strong> “oposição”<br />
— e, por conseguinte, às oscilações nas relações <strong>de</strong> força no interior do circuito<br />
dirigente oligárquico, ora ten<strong>de</strong>nte à segmentação <strong>de</strong> seus quadros,<br />
2 Texto apresentado no Seminário Coleção Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>: Religião e Magia. Música<br />
e Dança. Cotidiano, dia 2 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004, <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>Brasileiros</strong>, Uni ver -<br />
si <strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />
3 Professor Titular <strong>de</strong> Sociologia na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e autor, entre outros, <strong>de</strong><br />
Nacional estrangeiro, história social do mo<strong>de</strong>rnismo artístico em São Paulo. São Paulo:<br />
Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2003.<br />
218 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
219<br />
com a fun<strong>da</strong>ção do Partido Democrático em 1926, ora acolhendo alguma<br />
perspectiva <strong>de</strong> conciliação <strong>de</strong> interesses, como no episódio emblemático<br />
do revi<strong>de</strong> a Vargas em 1932.<br />
Entre 1901 e 1926, a concorrência político-partidária entre os grupos<br />
dirigentes em São Paulo resumiu-se aos embates e às cisões em torno <strong>da</strong><br />
condução do único partido oligárquico (Partido Republicano Paulista — PRP),<br />
dissensões quase sempre atiça<strong>da</strong>s pelos interesses do grupo Mesquita, maior<br />
acionista do jornal O Estado <strong>de</strong> S. Paulo, em momento <strong>de</strong> plena expansão,<br />
e cujos empreendimentos estavam ocorrendo no setor cultural mais promissor<br />
em termos comerciais: a primeira edição vespertina/ o Estadinho, a<br />
Revista do Brasil, a editora Revista do Brasil. A Liga Nacionalista, o movimento<br />
mo<strong>de</strong>rnista, a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> facção Mesquita e, por fim, a oposição<br />
“<strong>de</strong>mocrática”, configuram lances do remanejamento em curso na coalizão<br />
<strong>de</strong> forças dominante no estado. Ca<strong>da</strong> uma à sua maneira, tais iniciativas<br />
foram mo<strong>de</strong>lando o processo <strong>de</strong> diversificação <strong>de</strong> interesses por conta <strong>da</strong><br />
posição reforça<strong>da</strong> que as frações especializa<strong>da</strong>s no trabalho político e cultural<br />
passaram a <strong>de</strong>sfrutar no espaço <strong>da</strong> classe dirigente, bem como do tipo<br />
<strong>de</strong> contribuição peculiar que traziam à divisão do trabalho <strong>de</strong> dominação.<br />
Nessas condições, a mobilização dos integrantes <strong>da</strong> frente mo<strong>de</strong>r -<br />
nis ta, em especial <strong>da</strong>queles, como Mário, que iriam militar nas organizações<br />
políticas e culturais dominantes, suce<strong>de</strong>u numa tumultua<strong>da</strong> conjuntura<br />
<strong>de</strong> crise. De repente, viram-se acossados pela refrega <strong>de</strong> entusiasmos doutrinários,<br />
prensados entre o <strong>de</strong>sassossego existencial e i<strong>de</strong>ológico provocado<br />
pela Primeira Guerra, as lutas acadêmicas que continuavam a inspirar<br />
arroubos literários <strong>de</strong> moci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e os <strong>de</strong>safios em prol <strong>da</strong> regeneração moral<br />
e pública alar<strong>de</strong>ados pelas campanhas nacionalistas, toa<strong>da</strong> que se havia<br />
convertido em palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> agen<strong>da</strong> política dita reformista. Era o<br />
sinal <strong>de</strong> que estava por um fio a reprodução social do pessoal político e<br />
intelectual <strong>da</strong> oligarquia. Assim, a a<strong>de</strong>são ao núcleo mo<strong>de</strong>rnista adquiriu<br />
certo lampejo contestatário, que se traduzia na procura e um caminho pró -<br />
prio <strong>de</strong> afirmação geracional, nos campos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> política e intelectual,<br />
<strong>de</strong>stoante do receituário que obrigava galgar os escalões e instâncias probatórias<br />
do perrepismo.<br />
Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> era o exemplo acabado <strong>de</strong> um jovem postulante à<br />
carreira intelectual, cuja ascensão já não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u <strong>da</strong>s prerrogativas inerentes<br />
ao sistema <strong>de</strong> reprodução direta, ancorado na passagem forçosa pela<br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, estágio <strong>de</strong> familiarização com os mo<strong>de</strong>los masculinos<br />
<strong>da</strong> classe dirigente, na freqüência dos clubes e eventos <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> oli -<br />
gárquica, em meio à aprendizagem dos modos <strong>de</strong> integração afetiva e con ju -<br />
gal na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> seus familiares e aliados. O mo<strong>de</strong>rnismo contri buiu<br />
<strong>de</strong> modo patente para a crescente diferenciação do campo <strong>de</strong> produção<br />
cultural, ao ampliar oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> investimento caracteriza<strong>da</strong>mente<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
intelectual, entre as quais se <strong>de</strong>stacam as <strong>revista</strong>s literárias, as colaborações<br />
regulares na imprensa, os empreendimentos na produção editorial <strong>de</strong> livros.<br />
Tais negócios suce<strong>de</strong>ram em paralelo à importância crescente que foi<br />
adquirindo a conquista <strong>de</strong> uma voz autoral na poesia, na ficção, no ensaio,<br />
na crônica jornalística, na crítica <strong>de</strong> livros e <strong>de</strong> arte, para mencionar apenas<br />
os gêneros típicos do intelectual pré-mo<strong>de</strong>rnista.<br />
Decerto, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> estava a par <strong>da</strong>s clivagens i<strong>de</strong>ológicas,<br />
sem falar dos <strong>de</strong>scompassos e <strong>da</strong>s tensões perceptíveis no plano <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong> que se alimentava a competição entre o situacionismo perrepista<br />
e os movimentos dissi<strong>de</strong>ntes. Além <strong>de</strong> haver esposado as ban<strong>de</strong>iras<br />
“liberais” <strong>da</strong> facção Mesquita, como bem o sinalizam os prenúncios <strong>de</strong>ssa<br />
mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos versos <strong>de</strong> otimismo cristão em seu livro <strong>de</strong> estréia (1917),<br />
ele <strong>de</strong>ve ter enxergado o Partido Democrático (PD) como uma alternativa<br />
viável <strong>de</strong> fazer carreira na diagonal do stablishment, po<strong>de</strong>ndo-se talvez correlacionar<br />
tamanha sintonia programática ao entusiasmo com que se <strong>de</strong> -<br />
dicou mais tar<strong>de</strong> à reunificação <strong>da</strong>s forças oligárquicas em 1932. A mágoa<br />
<strong>de</strong>le foi tanto mais doí<strong>da</strong> ao assistir à dissidência “<strong>de</strong>mocrática” paulista<br />
ser alija<strong>da</strong> do mando político nos planos fe<strong>de</strong>ral e estadual, apesar do<br />
apoio <strong>de</strong> seus próceres ao movimento revolucionário vitorioso em 1930.<br />
Ao longo dos primeiros quinze anos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual, Mário<br />
viveu dos rendimentos auferidos em empregos públicos, em instituições<br />
culturais manti<strong>da</strong>s pelo mecenato oligárquico. O segundo momento do<br />
envolvimento político-partidário <strong>de</strong> Mário também se esclarece por inteiro<br />
em função <strong>da</strong> nova conjuntura política estadual após o revés imposto ao<br />
movimento constitucionalista em 1932. A frente única paulista (PRP e PD),<br />
que incluía ain<strong>da</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s representativas dos profissionais liberais, buscou<br />
recobrar a iniciativa política com a montagem <strong>de</strong> uma chapa eleitoral<br />
<strong>de</strong> aliança (“Por São Paulo Unido”), vitoriosa nas eleições <strong>de</strong> 1933 e 1934,<br />
sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Armando <strong>de</strong> Sales Oliveira, genro do velho Mesquita.<br />
Em síntese, os her<strong>de</strong>iros <strong>da</strong>s antigas dissidências foram justamente os<br />
prin cipais animadores <strong>da</strong> frente paulista e, ao mesmo tempo, os patronos<br />
responsáveis pelos empreendimentos culturais <strong>de</strong> monta na primeira me -<br />
ta<strong>de</strong> <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930.<br />
Em vez <strong>de</strong> atinar com a emergência <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s sociais represa<strong>da</strong>s<br />
por falta <strong>de</strong> canais apropriados <strong>de</strong> expressão e participação, os dirigentes<br />
<strong>da</strong> contra-ofensiva paulista atribuíam as <strong>de</strong>rrotas em 1930 e 1932 à carência<br />
<strong>de</strong> pessoal especializado no trabalho político e cultural. Ancorados nesse<br />
diagnóstico, eles passaram a condicionar suas pretensões <strong>de</strong> mando à ma -<br />
turação <strong>de</strong> um ambicioso projeto <strong>de</strong> “construção institucional” <strong>de</strong> novas<br />
enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> formação cultural <strong>de</strong> alto nível: a Escola <strong>de</strong> Sociologia e Po lí -<br />
tica (1933), a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Ciências e Letras, no âmbito <strong>da</strong> nova<br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (1934), e o Departamento Municipal <strong>de</strong> Cultura,<br />
entre as principais.<br />
220 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
221<br />
A exemplo <strong>de</strong> outros integrantes do estado-maior intelectual do<br />
Partido Democrático, a carreira pública e intelectual <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
sofreu uma guina<strong>da</strong> <strong>de</strong>cisiva por conta dos reveses <strong>de</strong> 1930 e 1932.<br />
Enquanto alguns contemporâneos perrepistas <strong>da</strong> mesma geração intelectual<br />
se filiaram aos movimentos radicais <strong>de</strong> direita (integralisino, etc.) e <strong>de</strong><br />
esquer<strong>da</strong> (PCB, ANL, etc.), os então, se <strong>de</strong>ixaram cooptar para cargos <strong>de</strong><br />
cúpula no governo central, <strong>de</strong>staques <strong>da</strong> inteligência “<strong>de</strong>mocrática”, Mário<br />
inclusive, se engajavam a fundo nas iniciativas <strong>de</strong>slancha<strong>da</strong>s em nível<br />
estadual e, <strong>de</strong>sse modo, protelaram a toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência quanto às<br />
chances <strong>de</strong> sobrevivência política <strong>de</strong>les mesmos, dos grupos dirigentes<br />
vinculados ao antigo regime e <strong>da</strong> classe social a que pertenciam e em cujo<br />
universo mental se moviam.<br />
Talvez se possa esclarecer o projeto criativo <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />
no qual se insere sua dimensão <strong>de</strong> colecionador, ao confrontá-lo com o <strong>de</strong><br />
Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, dois lí<strong>de</strong>res incontestes, envolvidos a<br />
fundo no círculo mais ativo e empreen<strong>de</strong>dor <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> dirigente em seus<br />
respectivos estados. Apesar <strong>de</strong> terem assumido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo um papel protagonista<br />
no interior do círculo local <strong>de</strong> escritores e <strong>de</strong> artistas — Drum -<br />
mond tendo sido ungido como lí<strong>de</strong>r antes mesmo <strong>de</strong> seu livro <strong>de</strong> estréia<br />
poética em 1930 —, o grupo mo<strong>de</strong>rnista mineiro manteve-se coeso e imantado<br />
pelo carisma <strong>de</strong> Drummond, e a primeira geração <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnistas<br />
paulistas logo se fracionou entre os aliados <strong>de</strong> Oswald e os <strong>de</strong> Mário, cisão<br />
que correspondia, grosso modo, ao confronto entre simpatizantes do perrepismo<br />
e do movimento <strong>de</strong>mocrático.<br />
Entretanto, a diferença cultural <strong>de</strong> fato significativa entre esses estados,<br />
e que teria efeitos duradouros e relevantes sobre o perfil <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
interesses, investimentos e toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> posição <strong>de</strong> seus lí<strong>de</strong>res, tinha a ver<br />
com a existência, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, <strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural febril,<br />
expansiva, dinâmica, com uma imprensa competitiva, editoras atira<strong>da</strong>s,<br />
um emergente mercado <strong>de</strong> arte, dotado <strong>de</strong> galerias, exposições, colecionadores,<br />
museus, escolas <strong>de</strong> formação, em suma <strong>de</strong> um ambiente extremamente<br />
estimulador <strong>da</strong> iniciativa cultural. Nesse momento, os jovens<br />
mineiros, hesitantes entre velei<strong>da</strong><strong>de</strong>s literárias e uma carreira pública,<br />
oscilação que se manteve intacta ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>les,<br />
dispunham <strong>de</strong> cardápio bem mais restrito em matéria <strong>de</strong> instituições culturais<br />
e <strong>de</strong> acontecimentos artísticos.<br />
Esse diferencial estava na raiz <strong>da</strong>s frentes diversifica<strong>da</strong>s <strong>de</strong> investimentos<br />
intelectuais <strong>de</strong> Mário, ain<strong>da</strong> que não se possa <strong>de</strong>strinçar as feições <strong>de</strong><br />
seu projeto criativo apenas por esse contexto propício, o qual se revelou<br />
condição necessária mas, por si só, insuficiente para ajuizar a voltagem <strong>de</strong><br />
ambição e o apetite <strong>de</strong> sua fenomenal ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> produtiva. A inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
inteiriça <strong>de</strong>sse facho criativo requer o concurso <strong>de</strong> veios biográficos, <strong>da</strong> sua<br />
condição <strong>de</strong> celibatário, <strong>da</strong>s agruras associa<strong>da</strong>s à sua posição no universo<br />
doméstico e familiar, bem como dos rasgos mais ousados <strong>de</strong> sua formação<br />
como autodi<strong>da</strong>ta pronto a correr riscos no acanhado mercado intelectual<br />
<strong>da</strong> época.<br />
Os mo<strong>de</strong>rnistas mineiros pertenciam a uma geração <strong>de</strong> interioranos<br />
proce<strong>de</strong>ntes do mesmo estrato social <strong>de</strong> “fazen<strong>de</strong>iros do ar”, os quais se<br />
mostraram sensíveis às premências <strong>de</strong> renovação <strong>da</strong> oligarquia regional em<br />
termos <strong>de</strong> idéias e quadros nessa “ci<strong>da</strong><strong>de</strong> estagna<strong>da</strong> e sufocante” que era<br />
então Belo Horizonte, conforme o retrato vívido elaborado pela boemia<br />
letra<strong>da</strong> <strong>de</strong> cafés, leiterias e <strong>da</strong> sólita Livraria Alves. Já os paulistas não se<br />
podiam furtar às transações em curso nos salões emproados do mecenato<br />
perrepista, conforme inúmeros registros ácidos nos testemunhos <strong>de</strong> Mário.<br />
Foram bem distintos os padrões <strong>de</strong> afirmação <strong>da</strong> li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Drum -<br />
mond e <strong>de</strong> Mário, nas Alterosas e em São Paulo. O poeta mineiro intentou<br />
<strong>de</strong>cantar as vivências dos companheiros escritores, por ora impossibilitados<br />
<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sgarrarem do pedágio imposto pelo trabalho político, no partido<br />
oficial, no jornal do partido, nas repartições do governo, nos postos <strong>da</strong> ma -<br />
gistratura, como material expressivo <strong>de</strong> uma reinvenção memorialística<br />
<strong>da</strong> condição <strong>de</strong> escritor, num transe <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e obra atravancado por multas<br />
“pedras no caminho”. Do seu lado, Mário logrou extrair o máximo <strong>de</strong> vantagens<br />
do surto cultural na Paulicéia <strong>de</strong>svaira<strong>da</strong>, ao viabilizar, a seu modo,<br />
as diferentes frentes <strong>de</strong> empenho nas quais foi imprimindo as pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />
um baita projeto, nunca se contentando em confinar suas explorações literárias<br />
a um gênero exclusivo, <strong>de</strong>sdobrando-se como poeta, ensaísta, cronista,<br />
crítico musical, contista, folclorista, pesquisador <strong>de</strong> campo, estudioso<br />
<strong>de</strong> assuntos brasileiros, carteador inveterado, administrador <strong>da</strong> cultura,<br />
maioral <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> literária, legislador ousado, colecionador e consultor <strong>de</strong><br />
política cultural.<br />
Drummond se revelou o categorizado porta-voz <strong>da</strong> experiência exis -<br />
tencial, social, intelectual e política, <strong>de</strong> to<strong>da</strong> uma geração <strong>de</strong> escritores,<br />
educa<strong>da</strong> e amadureci<strong>da</strong> nos estertores <strong>da</strong> república oligárquica, transitando<br />
<strong>de</strong>ssa inserção regional sem futuro, num estado assolado pela crise econômica,<br />
para um horizonte <strong>de</strong> sobrevivência subvenciona<strong>da</strong>, em espaços<br />
conquistados em re<strong>de</strong>s por esses anéis <strong>de</strong> promoção político-burocrática<br />
enquistados no serviço público fe<strong>de</strong>ral.<br />
Des<strong>de</strong> logo promovido ao papel <strong>de</strong> condutor <strong>da</strong> política cultural em<br />
nível local, ao ser nomeado como diretor do Departamento Municipal <strong>de</strong><br />
Cultura em 1935, Mário teve condições <strong>de</strong> esboçar políticas setoriais afina<strong>da</strong>s<br />
com seus <strong>de</strong>sígnios intelectuais, como que ensaiando em São Paulo<br />
um símile institucional <strong>da</strong> gestão Capanema. O a<strong>de</strong>rido sensível <strong>de</strong> Mário<br />
222 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
223<br />
era a priori<strong>da</strong><strong>de</strong> concedi<strong>da</strong> à difusão dos acervos e à franquia generaliza<strong>da</strong><br />
do acesso aos bens culturais. Embora esse experimento tenha sido truncado<br />
pela reviravolta do Estado Novo, durante o curto período <strong>da</strong> estadia no Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, quando exerceu funções <strong>de</strong> confiança no alto escalão <strong>da</strong> inteligência<br />
atuante no Ministério <strong>da</strong> Educação, Mário não abdicou <strong>da</strong>s inúmeras<br />
frentes <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, buscando tocá-las quase to<strong>da</strong>s a um só tempo.<br />
A leitura <strong>da</strong>s cartas evi<strong>de</strong>ncia alguns procedimentos <strong>de</strong> fatura intelectual,<br />
ao explorar continui<strong>da</strong><strong>de</strong>s e ligamentos no seu <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> criação<br />
e <strong>de</strong> intervenção nos planos literário, artístico, musical, editorial, <strong>de</strong> preservação<br />
do patrimônio erudito e popular, valendo-se dos empréstimos<br />
e <strong>da</strong> reciclagem <strong>de</strong> materiais entre esses diversos domínios. Po<strong>de</strong>r-se-ia<br />
rastrear os lances <strong>de</strong>ssa empreita<strong>da</strong> no sentido <strong>de</strong> compatibilizar, misturar,<br />
confluir, contrastar, fundir, ao mesclar experiências, linguagens e repertórios<br />
<strong>de</strong>rivados <strong>de</strong>ssa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pulsões intelectuais.<br />
Por conta <strong>de</strong>ssa abertura às diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural,<br />
bem como <strong>de</strong> sua proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com figuras intelectuais novas na<br />
cena cultural brasileira — como, por exemplo, os integrantes <strong>da</strong> missão <strong>de</strong><br />
docentes estrangeiros contratados pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, em es -<br />
pecial o casal Lévi-Strauss e Roger Basti<strong>de</strong>, com os quais conviveu e a cujas<br />
influências ficou exposto —, Mário sentiu-se encorajado a peitar outras leituras<br />
e a se enfronhar nos contenciosos <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> disciplinas<br />
recém constituí<strong>da</strong>s, como a antropologia e a sociologia, a envere<strong>da</strong>r por<br />
itinerários pouco explorados <strong>de</strong> pesquisa e conhecimento, ao confrontar,<br />
por exemplo, o culturalismo etnográfico norte-americano ao evolucionismo<br />
ain<strong>da</strong> imperante.<br />
Sua prática fotográfica é a senha <strong>de</strong>ssa disposição pessoal para uma<br />
viagem aventurosa pelos feitiços dos grupos populares, uma travessia análoga<br />
àquela empreendi<strong>da</strong> pela etnografia européia em busca <strong>de</strong> culturas<br />
frementes na África e na Polinésia. Sob o impacto <strong>de</strong>ssa tardia reiniciação<br />
intelectual, ele amplificou os focos <strong>de</strong> investimento, interessando-se pela<br />
cultura material <strong>da</strong>s classes populares, pelas “coisas <strong>de</strong> índio”, pelas artes do<br />
período colonial, pelos ritos folclóricos, pelos acervos <strong>de</strong> práticas religiosas<br />
e culturais do povo, num an<strong>da</strong>mento mo<strong>de</strong>lar e generoso <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
etnográfica, como que fazendo ver e <strong>de</strong>monstrar a riquíssima complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> experiência histórica e civilizatória <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira.<br />
Consciente <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se reconverter num quadro intelectual<br />
segundo as feições do que viriam a ser os integrantes <strong>da</strong> primeira<br />
geração <strong>de</strong> acadêmicos formados pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Mário<br />
fez valer os trunfos <strong>de</strong> sua legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> na montagem <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> trocas<br />
e alianças com figuras intelectuais representativas <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária,<br />
artística, musical, etnográfica, incentivando o intercâmbio <strong>de</strong> experiências,<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
<strong>de</strong> acervos, a circulação <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> idéias e <strong>de</strong> obras. A leitura <strong>de</strong> sua<br />
correspondência po<strong>de</strong> atestar essa trama <strong>de</strong> relacionamentos e colaborações,<br />
a qual proporciona um retrato fi<strong>de</strong>digno <strong>da</strong> inteligência brasileira<br />
nessas déca<strong>da</strong>s tão <strong>de</strong>cisivas <strong>da</strong> 1920 e 1930, <strong>de</strong> transição entre o apagar <strong>da</strong>s<br />
luzes <strong>da</strong> cultura oligárquica, nuclea<strong>da</strong> num corpus predominantemente<br />
literário, pulsante nas trajetórias e obras dos mo<strong>de</strong>rnistas, e as balizas <strong>de</strong><br />
uma cultura universitária profissionaliza<strong>da</strong>.<br />
Por to<strong>da</strong>s essas razões atinentes aos fios complexos <strong>de</strong> sua inserção<br />
na cena cultural paulistana, então em meio a mu<strong>da</strong>nças estruturais <strong>de</strong> sua<br />
morfologia institucional, Mário foi a gran<strong>de</strong> figura intelectual <strong>de</strong>sse<br />
momento-chave <strong>de</strong> transição <strong>da</strong> história cultural brasileira, representado<br />
pelo estouro mo<strong>de</strong>rnista. Ain<strong>da</strong> que tenha investido suas expectativas <strong>de</strong><br />
máxima realização intelectual em obras literárias, fez questão <strong>de</strong> não se<br />
<strong>de</strong>ixar alhear <strong>da</strong>s experiências, artefatos, ritos, linguagens e expressões<br />
<strong>da</strong>s classes <strong>de</strong>spossuí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cultura. Tal postura lhe permitiu uma visa<strong>da</strong><br />
intelectual mo<strong>de</strong>rna ao questionar, do seu jeito <strong>de</strong>sempenado e sentimental,<br />
as cila<strong>da</strong>s classistas. E inspira até hoje o respeito pela diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />
expressões culturais por força <strong>de</strong>ssa empatia sem fita com os <strong>de</strong>stituídos, a<br />
qual jamais apelou ao alar<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação postiça e <strong>de</strong>magógica.<br />
Ele praticou uma etnografia autodi<strong>da</strong>ta <strong>da</strong> cultura material, <strong>da</strong>s festas<br />
e ritmos populares, <strong>da</strong>s manifestações religiosas, empreen<strong>de</strong>ndo viagens<br />
para trabalho <strong>de</strong> campo, com registro e coleta <strong>de</strong> acervos representativos<br />
em todos os domínios <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural, e se <strong>de</strong>ixando impregnar por<br />
antídotos reflexivos, no exercício <strong>de</strong> seu trabalho intelectual, que lhe permitiram<br />
circun<strong>da</strong>r as saí<strong>da</strong>s livrescas <strong>da</strong> cultura literária <strong>de</strong> feitio tradicional.<br />
Num momento em que a maioria <strong>de</strong> seus contemporâneos mo<strong>de</strong>rnistas<br />
continuava apega<strong>da</strong> a <strong>de</strong>finições convencionais <strong>da</strong> condição <strong>de</strong> escritor,<br />
Mário reinventou uma figura <strong>de</strong> intelectual mais ajusta<strong>da</strong> às circunstâncias<br />
<strong>da</strong> crise <strong>de</strong> transição, a meio caminho entre o universo letrado dos grupos<br />
dirigentes e os novos territórios disciplinares <strong>da</strong>s humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s, afeiçoado<br />
à magia <strong>de</strong> outros tesouros <strong>de</strong> vivência, mobilizando len<strong>da</strong>s e personagens<br />
<strong>da</strong> cultura indígena em suas ficções, apalpando as feições inusita<strong>da</strong>s e<br />
cativantes <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> extração popular, e buscando <strong>de</strong>slin<strong>da</strong>r esses fluxos<br />
<strong>de</strong> sentidos entre os registros crus e a dicção eleva<strong>da</strong>. Seu maior feito foi o<br />
<strong>de</strong> haver talhado essa posição social quase improvável <strong>de</strong> um intelectual<br />
<strong>de</strong>mocrático que intentava situar-se no ponto car<strong>de</strong>al <strong>da</strong>s intersecções<br />
entre expressões simbólicas e artísticas provenientes <strong>de</strong> todos os espaços<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, um porta-voz alerta à sincronia <strong>de</strong> sedimentos<br />
históricos contraditórios, um mago mulato <strong>da</strong> cultura brasileira <strong>de</strong> seu<br />
tempo.<br />
224 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
225<br />
Implantação do<br />
setor <strong>de</strong> educação do IEB<br />
Elly Apareci<strong>da</strong> Rozo Vaz Perez Ferrari 1<br />
O <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> <strong>Brasileiros</strong> inaugurou, em outubro <strong>de</strong> 2006,<br />
o setor Educação IEB responsável pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> programas <strong>de</strong><br />
visitação ao <strong>Instituto</strong>. O formato <strong>de</strong>sses programas é totalmente voltado às<br />
especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos acervos <strong>da</strong> instituição que agrega Arquivo, Biblioteca e<br />
Coleção <strong>de</strong> Artes Visuais para o atendimento a grupos organizados e ao<br />
público em geral.<br />
Assim, ao oferecer ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s educativas, o Educação IEB objetiva<br />
também introduzir outros segmentos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ao público já fre -<br />
qüen tador do <strong>Instituto</strong>, a fim <strong>de</strong> garantir a sua efetiva integração na vi<strong>da</strong><br />
universitária.<br />
Para tanto preten<strong>de</strong>-se:<br />
aten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma qualifica<strong>da</strong>, o público que visita as exposições realiza<strong>da</strong>s<br />
pelo IEB;<br />
<strong>de</strong>senvolver oficinas temáticas, visitas orienta<strong>da</strong>s e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s edu cativas<br />
relaciona<strong>da</strong>s aos conteúdos e temas explorados pelas diversas<br />
exposições;<br />
<strong>de</strong>senvolver, em parceria com os <strong>de</strong>mais setores do IEB — e assessora<strong>da</strong><br />
por seus docentes — projetos <strong>de</strong> exposições itinerantes que<br />
<strong>de</strong>verão circular pelos diversos campi <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
(<strong>USP</strong>) e por bibliotecas e escolas <strong>da</strong> re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> ensino médio e<br />
fun<strong>da</strong>mental;<br />
<strong>de</strong>senvolver ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s volta<strong>da</strong>s para alunos <strong>da</strong> <strong>USP</strong> mostrando as<br />
várias possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa e profissionalização relaciona<strong>da</strong>s<br />
aos acervos existentes;<br />
articular ações e projetos com outras áreas educativas <strong>de</strong> museus e<br />
órgãos <strong>da</strong> <strong>USP</strong> consoli<strong>da</strong>ndo um padrão <strong>de</strong> excelência e inovação;<br />
aprofun<strong>da</strong>r o programa A4, que consiste na reflexão sobre a impor tância<br />
<strong>da</strong> pesquisa e dos acervos sob a guar<strong>da</strong> do IEB para transformá-los<br />
em tema do cotidiano e ampliar o comprometimento institucional.<br />
1 Educadora do IEB com graduação (Centro Universitário Belas Artes — Febasp) e mestrado<br />
(Escola <strong>de</strong> Comunicações e Artes <strong>da</strong> <strong>USP</strong>) em artes plásticas, cursando, atualmente<br />
doutorado na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação <strong>da</strong> <strong>USP</strong>. Possui especializações em<br />
Didática do Ensino Superior (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural do Rio <strong>de</strong> Janeiro — UFRRJ)<br />
e Organização <strong>de</strong> Arquivos (IEB-<strong>USP</strong>).<br />
E-mail: elly@usp.br.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
Plano <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s educativas<br />
As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s educativas são <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por programas que estão<br />
vinculados aos acervos e suas diversas tipologias, ou seja: arquivo-educação<br />
para a documentação textual, iconográfica e áudio-visual; arte-educação<br />
para a coleção <strong>de</strong> artes visuais; e educação, no sentido amplo, para as áreas<br />
<strong>de</strong> concentração temática tais como biblioteca, geografia, literatura, música,<br />
museologia e outras.<br />
Estes programas comporão os ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> educação, isto é, um ma -<br />
terial impresso para fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>s áreas <strong>de</strong> atuação dos titulares dos<br />
fundos, que compõem o conjunto <strong>de</strong> acervos do IEB, propiciando a com -<br />
preensão <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do titular como um universo a ser relacionado<br />
com a área <strong>de</strong> atuação, <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> contexto.<br />
Em termos educacionais, o trabalho se apresenta como uma construção<br />
transversal do conhecimento complexo, não se pautando pela lógica<br />
linear e cronológica dos conteúdos. Trata-se <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s relacionais <strong>de</strong><br />
atualização dos conteúdos <strong>da</strong> cultura material e imaterial a partir do referencial<br />
do visitante.<br />
Programas educativos já <strong>de</strong>senvolvidos<br />
Oficinas temáticas<br />
Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> volta<strong>da</strong> para ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tratem <strong>de</strong> assuntos e conteúdos<br />
<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s áreas do <strong>Instituto</strong> — ou seja, Arquivo, Biblioteca e<br />
Coleção <strong>de</strong> Artes Visuais — com a preocupação básica <strong>de</strong> inter-relacionar<br />
esses conteúdos. Po<strong>de</strong>m tratar <strong>de</strong> temas dos mais amplos aos mais técnicos,<br />
sempre para entendimento do contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado acervo pessoal ou<br />
coleção.<br />
Macunaíma, para crianças<br />
Volta<strong>da</strong> para o público infantil (<strong>de</strong> 6 a 10 anos), esta ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> compõe-se<br />
<strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> uma <strong>da</strong> muitas aventuras <strong>de</strong> Macunaíma, apontando<br />
as diferenças entre o conceito corrente <strong>de</strong> herói veiculado pelas diversas<br />
mídias, como história em quadrinhos, mangás, <strong>de</strong>senhos animados e filmes,<br />
e o proposto por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando sua linguagem e suas<br />
ca racterísticas <strong>de</strong> composição. Trabalha-se ain<strong>da</strong> o vocabulário <strong>da</strong>ndo ên -<br />
fase às questões regionais expostas.<br />
A princípio, foi uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> férias, que passou a ser ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ofereci<strong>da</strong> regularmente.<br />
226 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
227<br />
Macunaíma, para todos<br />
Oficina dirigi<strong>da</strong> para educadores e interessados, na qual são explora<strong>da</strong>s<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s pe<strong>da</strong>gógicas do trabalho direto com o texto <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> e outras linguagens artísticas, a partir do referencial <strong>da</strong>s pessoas<br />
envolvi<strong>da</strong>s na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> um herói sem caráter (2008)<br />
Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pelos estagiários Raphael Yanes e William<br />
Ra phael do Programa <strong>de</strong> finais <strong>de</strong> semana nos museus e acervos <strong>da</strong> <strong>USP</strong>.<br />
Oficinas liga<strong>da</strong>s às exposições <strong>de</strong> longa duração<br />
Exposição: A arte mo<strong>de</strong>rna pelo olhar <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Oficina: A paisagem pelo olhar do geógrafo e do escritor<br />
Oficina elabora<strong>da</strong> para a Semana <strong>de</strong> Ciência e Tecnologia <strong>de</strong> 2007,<br />
tra tando <strong>da</strong>s questões <strong>de</strong> observação <strong>da</strong> natureza, sua conceituação e seus<br />
respectivos recortes nas artes (e suas linguagens) e na ciência.<br />
Exposição: A arte mo<strong>de</strong>rna pelo olhar <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Oficina: Paisagem na pare<strong>de</strong> — como po<strong>de</strong> algo tão parado mu<strong>da</strong>r?<br />
Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção fotográfica a partir <strong>de</strong> obras expostas. Tra -<br />
ba lha-se a mu<strong>da</strong>nça do ponto perspecto em relação ao observador <strong>da</strong> obra<br />
Exposição: Obras raras em acervos públicos<br />
Oficina: Escrevendo com formas<br />
Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> análise literária e produção gráfica <strong>da</strong> obra La fin du<br />
mon<strong>de</strong> filmée par l’Ange N. D., <strong>de</strong> Blaise Cendrars e Fernand Léger.<br />
Oficinas liga<strong>da</strong>s às exposições <strong>de</strong> curta duração itinerantes<br />
Exposição: Osman Lins: vi<strong>da</strong> e obra<br />
Oficina: Osman Lins e o cui<strong>da</strong>do com a palavra<br />
Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária cria<strong>da</strong> para divulgação do acervo <strong>de</strong> Osman Lins<br />
no XI Congresso Internacional <strong>da</strong> Abralic — Associação Brasileira <strong>de</strong> Lite ratura<br />
Compara<strong>da</strong>. Esta oficina realizou-se em julho <strong>de</strong> 2008 na <strong>USP</strong>. Além <strong>da</strong><br />
exposição <strong>de</strong> painéis sobre a vi<strong>da</strong> e obra do escritor, houve a leitura co -<br />
menta<strong>da</strong> do conto O vitral pela pesquisadora Elisabete Ribas, mestran<strong>da</strong> em<br />
Letras na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> <strong>USP</strong>.<br />
<strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008
A4<br />
O programa A4 nasceu <strong>da</strong> observação dos espaços <strong>de</strong> circulação<br />
(externos aos espaços expositivos) e sua relação com as informações que<br />
ali são afixa<strong>da</strong>s.<br />
A pare<strong>de</strong>, a coluna, o chão são o veículo para a criação <strong>de</strong> um hiato<br />
<strong>de</strong> escape <strong>de</strong> pensamentos, <strong>de</strong> percepção e estranhamento. Aditar voz à<br />
dimensão vertical <strong>da</strong> exposição e do prédio como um todo, com perguntas<br />
ou frase instigantes, proporciona àquele que passa intervenções, a<strong>de</strong>ndos ou<br />
subtraendos.<br />
Na primeira etapa fizemos duas intervenções no espaço expositivo:<br />
Paisagem em transformação — o olhar mo<strong>de</strong>rnista nas artes plásticas e Os<br />
suportes <strong>da</strong> escrita. Agora estamos em processo <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> mais duas<br />
intervenções já se esten<strong>de</strong>ndo para outros espaços que não só expositivo:<br />
As licocós do Mário e A baleia e o criador.<br />
Programas contínuos<br />
Finalmente, temos um programa voltado especialmente ao educa dores<br />
em geografia: Ensinando geografia no IEB, que visa trabalhar pe<strong>da</strong>gogicamente<br />
os acervos dos geógrafos como fonte <strong>de</strong> pesquisa e ensino. Este<br />
programa é feito em parceria com Profª Drª Van<strong>de</strong>rli Custório.<br />
228 <strong>revista</strong> ieb n47 setembro <strong>de</strong> 2008