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“Impulsos irracionais em decisões econômicas”. - Eliana Cardoso

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Valor Econômico, 11/02/2011<br />

<strong>Eliana</strong> <strong>Cardoso</strong>. Caleidoscópio.<br />

Impulsos <strong>irracionais</strong> <strong>em</strong> <strong>decisões</strong> econômicas<br />

1<br />

O “Frankenstein” de Mary Shelley começa com uma carta. De seu navio encalhado<br />

na região ártica, Robert Walton escreve para a irmã. Avistara um gigante e, depois,<br />

um hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> socorrera. O hom<strong>em</strong> era Victor Frankenstein, cientista suíço,<br />

que construíra uma enorme criatura com pedaços de cadáveres e dera vida ao<br />

monstro.<br />

Victor conta para Robert Walton que ficara apavorado com a própria criação.<br />

Pouco depois de terminada a obra, Justine, uma jov<strong>em</strong> adotada por sua família,<br />

fora acusada e condenada pela morte do irmãozinho. Victor acreditava que o<br />

monstro tinha sido o assassino e, sentindo-se culpado, se refugiara nas montanhas,<br />

onde voltara a encontrar sua criatura. O monstro se queixava de enorme solidão e<br />

extraíra de Victor a promessa de criar um companheiro para ele.<br />

Ao tentar satisfazer sua criatura, Victor Frankenstein se dá conta do perigo e<br />

destrói o projeto. Para se vingar, o monstro mata o melhor amigo e a mulher do<br />

cientista que, decidido a castigar o monstro, o persegue até a região ártica. No<br />

final, o médico morre e o monstro chora.<br />

O livro virou um filme com Boris Karloff <strong>em</strong> 1935 e, mais recent<strong>em</strong>ente, uma<br />

comédia dirigida por Mel Brooks. Nessa última versão, Victor Frankenstein está<br />

convencido de que o amor pode salvar o pobre monstro e decide se trancar com<br />

ele. Diz aos seus assistentes: “Vou convencê-lo de que o amo, n<strong>em</strong> que perca a


2<br />

própria vida. Não importa o que vocês ouvir<strong>em</strong>, não importa quão<br />

desesperadamente eu implorar e gritar, não abram a porta do laboratório ou tudo<br />

aquilo a que dediquei minha vida estará perdido.” Um minuto depois de trancado,<br />

Victor Frankenstein estava urrando pelo amor de Deus para que lhe abriss<strong>em</strong> a<br />

porta e o deixass<strong>em</strong> sair.<br />

Nosso herói sabia que era exatamente isso que iria acontecer. Ao se ver trancado<br />

com o monstro, seu impulso seria fugir, apesar do seu desejo de convencê-lo de<br />

seu amor. Para conseguir cumprir sua missão, o jeito tinha sido usar a técnica do<br />

“precommitment” (comprometimento prévio). Esse recurso é mais batido que<br />

milk-shake. Ulisses dele se valeu ao pedir para ser amarrado ao mastro do navio a<br />

fim de escapar das sereias. Os generais lançam mão da mesma tática ao queimar as<br />

pontes depois de atravessá-las, para tornar a retirada impossível.<br />

O governo nos obriga a fazer algo parecido com o recolhimento compulsório dos<br />

impostos devidos ao INSS na nossa folha de salários. Nos braços de nossos<br />

próprios conflitos entre consumir hoje ou investir para o futuro, corr<strong>em</strong>os o risco<br />

de gastar além da medida <strong>em</strong> vez de poupar para garantir uma renda na velhice.<br />

“Poupar? Começo amanhã...” é título de matéria (Valor, 25/1) mostrando que a<br />

maioria dos brasileiros não t<strong>em</strong> o hábito de guardar dinheiro, mesmo entre as<br />

classes mais altas. No mesmo dia, outra matéria do Valor informava que 60% de<br />

17,8 mil famílias entrevistadas estão endividadas e que 8% delas alegam que não<br />

terão como quitar seus débitos.<br />

Alguma coisa irracional parece estar envolvida nas <strong>decisões</strong> econômicas de<br />

pessoas que contra<strong>em</strong> dívidas impossíveis de pagar ou se aposentam com uma


3<br />

renda tão baixa que são forçadas a abandonar velhos hábitos de conforto. Não ter<br />

renda na velhice (porque deixamos de poupar durante os anos <strong>em</strong> que trabalhamos)<br />

e ir à bancarrota por excesso de dívidas são atentados ao nosso próprio interesse.<br />

São, entretanto, fatos observados comumente. Muitas vezes o controle nos escapa e<br />

postergamos o que gostaríamos de fazer. Essas atitudes e <strong>decisões</strong> contradiz<strong>em</strong> a<br />

teoria de que somos indivíduos capazes de escolher nosso próprio b<strong>em</strong>-estar de<br />

forma consistente.<br />

Por que abusamos do chocolate durante a s<strong>em</strong>ana só para nos arrependermos da<br />

gula ao subir na balança? Recusar o chocolate (como poupar para a aposentadoria)<br />

envolve escolhas intert<strong>em</strong>porais. Os economistas tentam explicar essas escolhas<br />

recorrendo à noção da taxa de desconto. Mas o modelo da “utilidade descontada” –<br />

introduzido por Paul Samuelson, um prêmio Nobel –, apesar de sua coerência e<br />

elegância, não resiste ao teste da realidade.<br />

Ao resumir todos os fatores que afetam as preferências no t<strong>em</strong>po num único<br />

parâmetro (a taxa de desconto), esse modelo contradiz comportamentos comuns.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo, as pessoas aplicam uma taxa de desconto maior aos ganhos do que às<br />

perdas. Algumas pessoas prefer<strong>em</strong> sofrer uma perda hoje do que esperar por ela no<br />

futuro (o que implicaria uma taxa de desconto nula).<br />

Além disso, as pessoas aplicam uma taxa de desconto maior a valores pequenos.<br />

Em experiências de laboratório, as mesmas pessoas que se mostram indiferentes<br />

entre receber R$ 15 hoje ou R$ 60 dentro de um ano (o que implica uma taxa de<br />

desconto de 139%) se mostram indiferentes entre receber R$ 3000 hoje ou R$<br />

4000 dentro de um ano (o que implica uma taxa de desconto de 29%).


4<br />

É possível incorporar essas anomalias num modelo alternativo: o da “taxa de<br />

desconto hiperbólico”. Nesse modelo da “Economia do Comportamento”, a taxa de<br />

desconto não é constante, mas cai ao longo do t<strong>em</strong>po. Ao escolher entre consumir<br />

algo agora ou amanhã, o indivíduo dá muito valor ao agora. Ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

atribui pouca importância à diferença entre a s<strong>em</strong>ana que v<strong>em</strong> e o ano que v<strong>em</strong>. A<br />

importância atribuída aos custos e benefícios imediatos explicaria as compras por<br />

impulso e o adiamento da poupança.<br />

Exist<strong>em</strong> várias histórias que racionalizam o uso do desconto hiperbólico na<br />

modelag<strong>em</strong> das escolhas intert<strong>em</strong>porais. O professor Richard Thaler levanta a<br />

hipótese de que dispomos de dois centros de decisão. Nosso cérebro seria como a<br />

<strong>em</strong>presa <strong>em</strong> que o administrador-planejador (o “principal”) tenta maximizar a<br />

utilidade de longo prazo enquanto o trabalhador-executante (o “agente”) tenta<br />

maximizar a utilidade de curto prazo. Às vezes o “principal” domina o “agente” e<br />

ganha o conflito, garantindo o comportamento de b<strong>em</strong>-estar no longo prazo.<br />

Noutras ocasiões, o controle cai nas mãos do “agente”, que mira o curto prazo.<br />

Assim se explicaria o abuso do chocolate, mesmo quando quer<strong>em</strong>os perder peso.<br />

Outros economistas e psicólogos suger<strong>em</strong> que “influências viscerais” – fome, dor,<br />

sexo, medo e outras <strong>em</strong>oções – influenciam nossas <strong>decisões</strong>. Essas influências<br />

aumentam na presença de certos estímulos, como o cheiro do chocolate, e anulam<br />

o objetivo de longo prazo de perder peso.<br />

O r<strong>em</strong>édio seria o "precommitment", como fizeram Ulisses, o Frankenstein de Mel<br />

Brooks e muitos generais. Trata-se de uma técnica que qualquer um pode utilizar<br />

se quiser se amarrar ao seu interesse de longo prazo para resolver o probl<strong>em</strong>a da<br />

falta de autocontrole no curto prazo. Por ex<strong>em</strong>plo, toda quinta-feira, seu melhor


5<br />

amigo telefona e o convida para almoçar na sexta-feira naquela churrascaria que<br />

t<strong>em</strong> a melhor caipirinha da cidade. Se você aceita, sabe que vai tomar três<br />

caipirinhas, dormir no escritório, levar bronca do chefe e ficar com medo de perder<br />

o <strong>em</strong>prego. Como garantir que isso não aconteça? Antes de receber o convite na<br />

quinta para o almoço na sexta, você, na quarta-feira, marca consulta no dentista<br />

exatamente na hora do almoço da sexta. Claro que quando chega a sexta-feira,<br />

você pode dar o bolo no dentista e ir à churrascaria com o amigo, porque, <strong>em</strong> geral,<br />

as técnicas do “precommitment” são fáceis de burlar e as tentações de curto prazo,<br />

mais sedutoras. E qu<strong>em</strong> vai trocar churrascaria por dentista?<br />

Mas, se você precisa mesmo de ajuda para se controlar, existe um website que se<br />

chama www.stickK.com, onde você entrega o número de seu cartão de crédito,<br />

escolhe um juiz e faz um contrato legal com um amigo, pelo qual se compromete a<br />

lhe entregar certo valor se você deixar de fazer o que prometeu a si mesmo. A<br />

cobrança é automática e tão impiedosa quanto o desconto do INSS <strong>em</strong> seu salário.<br />

Vale a pena entregar seu cartão de crédito a www.stickK.com? Duvido. Mas do<br />

INSS – esse sist<strong>em</strong>a gigantesco de “precommitment” (onde nos sujeitamos a<br />

impostos para evitar a penúria futura) – você não pode escapar. Mesmo que você<br />

acredite que a previdência social interfere <strong>em</strong> sua liberdade de escolher se você<br />

quer ou não morrer de fome quando ficar velho.

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