11.04.2013 Views

RADIOGRAFIA DE MACHADO DE ASSIS - Universidade de Coimbra

RADIOGRAFIA DE MACHADO DE ASSIS - Universidade de Coimbra

RADIOGRAFIA DE MACHADO DE ASSIS - Universidade de Coimbra

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

996 GLADSTONE CHAVES <strong>DE</strong> MELO<br />

Machado não atentou bem no epílogo. Certamente sentiu algo do seu<br />

peso, porque, numa carta à noiva Carolina, <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1868, lhe diz:<br />

Depois... <strong>de</strong>pois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verda<strong>de</strong>iramente<br />

senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das<br />

suas ambições estéreis.<br />

Na verda<strong>de</strong>, a obra do mestre, após a crise existencial dos quarenta<br />

anos, reduz-se a uma longa, variada, por vezes chistosa, não raro trágica e<br />

dolorida glosa da mensagem do Eclesiastes. A análise que faz do «<strong>de</strong>s­<br />

concerto do mundo», das consequências do pecado, do império da injusti­<br />

ça, do infinito teatro das vaida<strong>de</strong>s, do segredo dos corações, neles <strong>de</strong>sdo­<br />

brando as últimas fibrilas — essa análise põe <strong>de</strong> manifesto a raiz do mal:<br />

o amor-próprio, a auto<strong>de</strong>ificação. «Eu sou eu, legislo para mim mesmo, e<br />

não sofro contestação <strong>de</strong> minha soberania» — eritis sicut dii, scientes<br />

bonum et malum. (Gen., 3,5).<br />

Neste sentido, ouso dizer que, para quem o radiografou, a leitura <strong>de</strong><br />

Machado <strong>de</strong> Assis torna-se leitura espiritual, no sentido religioso do<br />

termo. Sobretudo hoje em dia, quando se nos propõe um cristianismo<br />

temporalizado, reformista das «estruturas» da socieda<strong>de</strong>, ao mesmo passo<br />

que nos inculcam a idéia <strong>de</strong> que, mudadas as estruturas, transformado<br />

ficará o homem. Sobretudo hoje, quando nunca se fala em amor-próprio e<br />

se <strong>de</strong>ixa transparecer claro que o único pecado é a injustiça social.<br />

Essa confiança na força mágica da «mudança das estruturas» é tipica­<br />

mente marxista e, portanto, anticristã. Machado repeliu tal receita barata,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou das reformas, riu-se a valer do jogo das ambições políticas,<br />

vendo nelas simples «perseguição do vento». Todo o romance Esaú e<br />

Jacó está assente nesta pauta. Bastaria lembrar o episódio do confeiteiro<br />

Custódio; recordar a maneira como o Conselheiro Aires noticia a procla­<br />

mação da República («na Rua do Ouvidor soube que os militares fizeram<br />

uma revolução»); ou <strong>de</strong>itar olhos para este passo:<br />

Foi em Caracas, on<strong>de</strong> ele [o Conselheiro Aires] servira na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

adido <strong>de</strong> legação. Estava em casa, <strong>de</strong> palestra com uma atriz da moda, pessoa<br />

chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor gran<strong>de</strong>, vozes tumultuosas,<br />

vibrantes, crescentes...<br />

— Que rumor é este, Carmen? perguntou ele entre duas carícias.<br />

— Não se assuste, amigo meu: é o governo que cai.<br />

— Mas eu ouço aclamações...

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!