Edição 99 - Jornal Rascunho
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8 rascunho <strong>99</strong> • JULHO de 2008<br />
Sem glamour<br />
Joel Rufino dos Santos<br />
despe a literatura, a expõe,<br />
examina sua função e<br />
suposta utilidade<br />
LUIZ HORÁCIO • PORTO ALEGRE – RS<br />
Quem ama literatura não estuda literatura<br />
— ensaios indisciplinados é um livro<br />
despretensioso, porém de suma importância,<br />
com uma mínima ressalva. O autor<br />
parte da literatura para o cotidiano e também<br />
faz o caminho inverso sem atropelos,<br />
um deleite para o leitor. O título Quem ama<br />
literatura não estuda literatura pode, num<br />
primeiro momento, parecer estratégia de<br />
marketing, objetivo principal: chamar atenção<br />
e depois, quem sabe, entrar no mérito.<br />
A publicidade, é importante dizer, não entra.<br />
Joel Rufino dos Santos soube montar<br />
sua equipe, reuniu personagens, reais ou<br />
imaginários: Darwin, Marx, Napoleão, o<br />
Dr. Cláudio de O ateneu e o Ismael de Anjo<br />
negro e deu um nó no senso comum acadêmico,<br />
literário ou o que quer que remeta<br />
à repetição de informações, terreno onde<br />
os professores universitários, a maioria,<br />
adoram se movimentar. É nesse lodaçal que<br />
eles “brilham”, analisando obras que só eles<br />
leram e definem o que é bom e o que é<br />
execrável. Sim, execrável, para eles não existe<br />
meio termo. Quem ama... é a despedida<br />
de Joel Rufino das salas de aula. No entanto,<br />
no transcorrer da leitura (da aula?)<br />
o leitor atento perceberá não uma despedida,<br />
mas um convite ao conhecimento.<br />
Diferentemente do que costuma ocorrer<br />
com seus colegas, Rufino não puxa a brasa<br />
apenas para o seu assado, não faz da literatura<br />
algo sublime, muito pelo contrário, mas<br />
a expõe, examina sua função e suposta utilidade,<br />
eliminando assim qualquer possibilidade<br />
de glamour em torno dessa arte. Fez<br />
com que recordasse de recente entrevista de<br />
nosso colega Luiz Paulo Faccioli: “o compromisso<br />
primordial que o escritor tem para<br />
com a sociedade é o de produzir literatura”.<br />
Quem ama literatura<br />
não estuda literatura<br />
Joel Rufino dos Santos<br />
Rocco<br />
1<strong>99</strong> págs.<br />
Mas isso é óbvio, você pode pensar, apressado<br />
leitor das superfícies. Lógico, ainda não<br />
sabe que o óbvio é o mais difícil de ser explicado<br />
e, no seu caso, assimilado. É tão óbvio o<br />
rigor de Luiz Paulo para com a literatura que<br />
nos leva a lamentar que tal obviedade não<br />
ocorra em outras profissões, como a medicina,<br />
os profissionais do futebol, para não nos<br />
alastrarmos pelo vasto terreno dos charlatões.<br />
Mas voltemos a Quem ama... e sua singela<br />
abordagem das relevâncias literárias e<br />
culturais de modo geral.<br />
Ainda me socorrendo da frase de Luiz<br />
Paulo e diante da quantidade cada vez maior<br />
da rala literatura contemporânea onde<br />
os pseudo-escritores não produzem literatura<br />
e sim frágeis boletins de ocorrência,<br />
meu amor se faz a cada dia mais frágil.<br />
Não sei ao certo se amo a literatura, antes<br />
preciso definir se é ela que me faz sofrer<br />
ou se é por meio dela que extravaso meus<br />
sofrimentos. O certo é que para amar literatura<br />
é necessário que “neguinho” tenha um<br />
quê acentuado de masoquismo. No cenário<br />
atual em que os escritores conseguem fazer<br />
literatura sem que o pensamento seja refém<br />
da emoção, amar significa correr risco ou a<br />
certeza do aborrecimento. Estranhou, inculto<br />
leitor, pensamento e emoção? Saiba então<br />
que o pensamento que atua na literatura<br />
é a emoção sistematizada, emoção que foge<br />
ao habitual, até alcançar dignidade e convicção.<br />
Entendeu? Não? Quer dizer que a<br />
razão não é o bastante para escrever um grande<br />
romance. Ah, agora foi! É isso, e quando<br />
amar se torna difícil, estudar passa a ser castigo.<br />
Em nosso ofício de resenhista e o particular<br />
de professor, somos forçados a estudar.<br />
E o caminho único é aprofundar a leitura<br />
dos clássicos, sempre. Joel Rufino traz<br />
Dostoiévski, Nelson Rodrigues, Lima<br />
Barreto, Freud, Balzac, Raul Pompéia, Alejo<br />
Carpentier, e fura o cânone ao não justificar<br />
seus pontos de vista com Machado de Assis.<br />
No entanto, dispensa a Lima Barreto atenção<br />
mais que merecida e exagera ao creditar<br />
a Nelson Rodrigues responsabilidades sociológicas<br />
e antropológicas. Atenção novamente<br />
você apressado e espírito suíno leitor,<br />
as conclusões acima são de inteira responsabilidade<br />
e risco deste aprendiz.<br />
Aproveitando a deixa, impossível não destacar<br />
o esclarecedor e imperdível estudo sobre<br />
a análise do trabalho a partir de O capital do<br />
imprescindível Marx. Didatismo na dosagem<br />
exata, estímulo à curiosidade de todo universitário<br />
não tão alienado. Vale o livro.<br />
Fio condutor<br />
Quem ama... traz quatro ensaios —<br />
Perturbadores do sono do mundo; Madalena, ou<br />
a falsidade da literatura; Quem ama mata e Nos<br />
arredores do NorteShopping — de fio condutor<br />
comum, porém com temática bastante diversa,<br />
o que dispersa a atenção do leitor. Se<br />
no primeiro Rufino é muito mais sociólogo<br />
(dos melhores é bom que se diga), no segundo<br />
faz uma análise (distanciada até onde o<br />
possível lhe permite) da literatura e do fazer<br />
literário. No terceiro, ele parte do parricídio<br />
cometido por Suzane von Richthofen e segue<br />
por detalhada exegese da peça Anjo negro<br />
do superestimado Nelson Rodrigues,<br />
deixando clara a perda de fôlego do autor<br />
que fecha o volume com seu quarto ensaio,<br />
o mais frágil, apesar da imperdível e irônica,<br />
no que isso possa ter de melhor, abordagem<br />
da obra de Lima Barreto.<br />
Quem ama literatura não estuda literatura,<br />
o título que despertou a atenção do<br />
curioso leitor ao final da leitura, se tornará<br />
algo de menor importância tamanha a qualidade<br />
de informações que o autor apresenta,<br />
principalmente, ao longo dos três primeiros<br />
ensaios. O quarto, se não chega a<br />
manchar o volume, também pouco acrescenta<br />
e faz com que o autor sucumba a<br />
execrável norma vigente de a tudo relacio-<br />
nar com a contemporaneidade, com o pósmoderno<br />
e aí cabe tudo, Collor, TV, a frase<br />
preferida do tosco de nove dedos: “nunca<br />
na história desse país...”, a nefasta e gasta<br />
questão: novela de TV é literatura? A essa<br />
pergunta que Joel Rufino formulou como<br />
provocação a seus alunos, peço licença para<br />
agregar uma outra tão relevante quanto:<br />
novela de rádio é literatura?<br />
Antes de encerrar, permita, quase comovido<br />
leitor, uma breve reflexão suscitada por<br />
Rufino após leitura das páginas iniciais em<br />
que ele aborda a utilidade da literatura.<br />
O que, de fato, constitui a literatura? Se o<br />
que constitui uma coisa é, basicamente, a sua<br />
função, a literatura se constitui, em primeiro<br />
lugar, de inutilidades. Muitos escritores — entre<br />
eles Jorge Luis Borges — deram esta definição de<br />
seu ofício: a literatura não serve para nada.<br />
Depois de reler o trecho hoje pela manhã,<br />
recebi o telefonema de uma mulher,<br />
querida deste aprendiz, se despedindo... para<br />
sempre. Olhei minha montanha de livros e<br />
chorei. Não sei quem desligou o telefone.<br />
A literatura tem um compromisso com o<br />
trágico, gostaria que pelo menos servisse<br />
para destruir a dor, a solidão e o nada que<br />
me invadiram após o telefonema.<br />
Seja o que for, sou forçado a concordar<br />
com George Steiner quando diz que “a crítica<br />
de literatura procede da falta de amor”.<br />
E esvaziado de amor, enveredei pela leitura<br />
de Quem ama literatura não estuda literatura<br />
e cheguei ao seu final apaixonado pela<br />
busca de um conhecimento cada vez maior.<br />
Encerramos lembrando Quixote, surrado<br />
e apedrejado por persistir em suas ilusões<br />
— porque ele nos comove até as lágrimas,<br />
porque ele nos acompanha, porque nos<br />
sugere que esta vida faz sentido no final das<br />
contas, a despeito de tudo.<br />
Obrigado, Joel Rufino; perdoe-me, Luiz<br />
Paulo, por me apropriar da frase sem pedir<br />
licença.<br />
• r<br />
o autor<br />
JOEL RUFINO DOS SANTOS é doutor<br />
em Comunicação e Cultura pela Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro (URFJ),<br />
onde leciona literatura. Historiador e<br />
romancista, publicou Crônicas de indomáveis<br />
delírios e Quando eu voltei,<br />
tive uma surpresa, entre outros.