Aqueu - Jornal Rascunho
Aqueu - Jornal Rascunho
Aqueu - Jornal Rascunho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
26<br />
152 • dezembro_2012<br />
Memória e<br />
movimento<br />
a perda da memória é a impossibilidade da<br />
escrita: sem experiência, não há literatura<br />
: : vanessa Carneiro<br />
rodrigues<br />
são Paulo – sP<br />
A<br />
primeira vez que tive<br />
medo de ficar cega estava<br />
diante de um robô cor-derosa.<br />
Meu colega de trabalho<br />
finalizava uma ilustração de um<br />
personagem institucional para um<br />
cliente da agência onde trabalhávamos,<br />
até que se deu conta que tinha<br />
escolhido o lápis errado de seu estojo<br />
alemão. Era daltônico, eu soube ali.<br />
Me ofereci para legendar seus lápis<br />
com os nomes das cores, precisaríamos<br />
apenas chegar a um acordo sobre<br />
os entretons, mas a gentileza não<br />
me custaria mais que dez ou quinze<br />
minutos e ele nunca mais perderia<br />
três horas de trabalho como perdera<br />
naquela manhã. Meu colega, orgulhoso,<br />
recusou minha solidariedade<br />
e disse que continuaria a contar com<br />
seu limite e sua organização e seguiríamos<br />
a ser uma dupla estranha<br />
feita de um ilustrador daltônico e de<br />
uma revisora míope.<br />
Não sei por que ter descoberto<br />
a doença do meu colega me fez<br />
me assustar com meus próprios<br />
olhos doentes. O fato é que, mesmo<br />
confortada pela ciência óptica e<br />
pela tecnologia de correção da luz,<br />
nunca deixei de me espantar que<br />
tudo o que realmente importa para<br />
mim, a despeito das minhas limitações<br />
visuais, depende dos meus<br />
olhos e seria mesmo uma grande<br />
tragédia se um dia a maneira imperfeita<br />
como me chega a luz refletida<br />
pelas letras dos livros que<br />
amo — e os que ainda preciso ler e<br />
os que ainda nem soube — se acentuasse<br />
tanto que ler deixasse de ser<br />
a atividade com que gasto a maior<br />
parte do meu tempo e passasse a<br />
ser uma impossibilidade.<br />
Penso em Borges tocando<br />
as capas ainda indistinguíveis de<br />
sua magnífica biblioteca, as pontas<br />
dos dedos ainda insensíveis e<br />
desconhecedoras de seu novo ofício,<br />
que seria ver. Ou em Ernesto<br />
Sábato conformando-se que não,<br />
não pintarás. Ou ainda em james<br />
joyce esforçando-se para que seu<br />
Finnegans wake em vez de pelos<br />
dedos saísse pela garganta e<br />
entrasse nas orelhas atentas de<br />
Beckett, tudo isso para economizar<br />
um último fio de visão. A<br />
ironia trágica dos artistas que se<br />
deparam com a falência da específica<br />
parte do corpo que usam como<br />
instrumento de sua expressão não<br />
é rara. Beethoven debruçado sobre<br />
o piano para sentir a vibração<br />
surda de suas cordas (a música no<br />
tato). O escultor doente que no<br />
embate contra a dureza da pedra<br />
talhava também seu próprio corpo<br />
leproso, que se despedaçava.<br />
E era nesse grupo, o dos injustiçados,<br />
que me incluía nas minhas<br />
tardes mais sensacionalistas e<br />
esperava que no exame oftalmológico<br />
daquele ano os graus não aumentassem<br />
de novo. Era um drama<br />
sem sentido, nunca corri esse risco.<br />
Mas para alguém que aprendeu<br />
a receber o mundo escrito pelos<br />
olhos e também a se apaixonar por<br />
esse silêncio e esse vazio noturno<br />
portátil onde instantaneamente<br />
nos acolhemos quando o livro se<br />
abre, mesmo no trem, mesmo na<br />
padaria barulhenta, perder a visão<br />
seria o mais trágico dos acasos.<br />
Em julho deste ano, porém,<br />
soube por uma notícia de jornal que<br />
Gabriel García Márquez não mais<br />
escreveria. Continua feliz e entu-<br />
siasmado, segundo seu irmão jaime,<br />
mas infelizmente não escreveria<br />
mais, não porque tivesse se aposentado<br />
ou porque também tivesse sido<br />
vítima do mesmo problema ocular<br />
de que seus profícuos colegas padeceram.<br />
Gabriel García Márquez estava<br />
perdendo a memória e esta sim<br />
seria a grande impossibilidade para<br />
um escritor. Porque Borges ainda<br />
teria à sua disposição uma larga fatia<br />
da Biblioteca a que teve acesso.<br />
Sábato ainda guardaria finíssimas<br />
camadas de paisagem, o vermelho<br />
específico de sua infância, os entretons<br />
de verde-azul que não se perderiam<br />
nunca daquela visão do de<br />
dentro. Até mesmo joyce, apesar<br />
da dificuldade, conseguiria compor<br />
uma obra-prima em voz alta. Mas<br />
García Márquez não. Estava desligando-se<br />
de sua experiência, e não<br />
há literatura sem experiência.<br />
atiVidade física<br />
Não tive acesso a qualquer<br />
diagnóstico preciso sobre o caso<br />
do Gabo e mesmo se o tivesse, não<br />
saberia relacioná-lo com o rigor<br />
científico necessário à sua impossibilidade<br />
de escrever. Tenho apenas<br />
uma frase, a que me deixou triste e<br />
pensativa durante toda aquela tarde:<br />
Gabriel García Márquez sofre de<br />
uma doença senil e não está mais<br />
em condições de escrever. Gabriel<br />
García Márquez perdeu a memória.<br />
E me lembrei então do filósofo<br />
francês Henri Bergson, que tanto<br />
deu importância aos mistérios da<br />
memória humana. Diz, em Matéria<br />
e memória, que “não há percepção<br />
que não esteja impregnada<br />
de lembrança. Aos dados imediatos<br />
e presentes dos nossos sentidos<br />
misturamos milhares de detalhes<br />
de nossa experiência passada”. O<br />
diálogo que nosso corpo faz com o<br />
mundo só é possível porque existe<br />
memória, uma vez que isso a que<br />
chamamos presente não existe.<br />
Para Bergson, o instante presente<br />
é uma abstração matemática, o que<br />
há é uma duração, um passado que<br />
se estende ao futuro, o passado que<br />
auxilia na única verdadeira vontade<br />
humana, que é viver. Presente é<br />
sensação e movimento ao mesmo<br />
tempo. “Quando pensamos esse<br />
presente como devendo ser, ele<br />
ainda não é; e, quando o pensamos<br />
como existindo, ele já passou.”<br />
Pensemos em uma bailarina,<br />
que executa com perfeição a coreografia<br />
aprendida. Ela move o seu<br />
corpo com o auxílio de um tipo de<br />
memória cumulativa, que foi se<br />
sobrepondo a cada aula, a cada ensaio,<br />
até que só de ouvir a música<br />
do espetáculo gira-se, salta e move<br />
os braços em continuidade, automaticamente.<br />
Dessa apresentação,<br />
que acontece no presente, num<br />
presente mensurável e específico,<br />
participam também todas as aulas e<br />
todos os movimentos que aprendeu<br />
em muitas aulas no passado, desde<br />
que começou a fazer balé aos seis<br />
anos, mas está também a memória<br />
de ficar em pé, de caminhar, de sorrir.<br />
Mas se conversando com uma<br />
colega no café depois do ensaio elas<br />
comentam o quão difícil foi o dia em<br />
que o coreógrafo resolveu incluir na<br />
apresentação aquele movimento específico,<br />
é possível que se lembre da<br />
roupa que vestiam, se chovia ou fazia<br />
sol. No primeiro caso, o passado<br />
é vivido em mecanismos motores,<br />
na maneira como movemos nosso<br />
corpo pelo mundo. No segundo<br />
caso, o passado veio à conversa por<br />
meio de uma lembrança independente,<br />
uma imagem, uma representação.<br />
E essa lembrança-imagem, a<br />
que é independente, surge quando<br />
nosso corpo relaxa os ligamentos<br />
com a vida prática — é assim que<br />
vêm os sonhos.<br />
Há passado também na reação<br />
do nosso corpo aos objetos que<br />
nos rodeiam, mesmo que, inconsciente,<br />
tudo aquilo que aprendemos<br />
e tudo aquilo que forma isso<br />
que chamamos de caráter seja um<br />
passado, sejam as memórias, que<br />
ajudam a perceber o mundo. E essa<br />
nova percepção, feita de passado<br />
(mas também de “promessas e<br />
ameaças”, que se chamam futuro),<br />
virará memória e será útil para que<br />
“acrescente e complete a experiência<br />
presente, enriquecendo-a com<br />
a experiência adquirida” e assim, a<br />
cada nova experiência acumulada<br />
por meio da memória, com mais<br />
acuidade vemos o mundo.<br />
Por isso só é escritor quem<br />
foi antes (e continua a ser) um<br />
apaixonado leitor, porque nos parágrafos<br />
que compõem a obra não<br />
há originalidade nem genialidade<br />
milagrosa, mas antes memória de<br />
tudo aquilo que se leu, e que, misturados<br />
às experiências e percepções<br />
do mundo também retidas na<br />
mesma memória, se remontam em<br />
uma obra nova, mesmo que se no<br />
momento do devaneio criativo essa<br />
memória não seja consciente. Mas<br />
de todo modo, a memória estará no<br />
corpo e a escrita, dizia Gonçalo Tavares,<br />
é uma atividade física. Não<br />
há dons inatos, nenhuma sorte genética<br />
ou espiritual. Há o narrador<br />
de Benjamin, o homem que viveu<br />
e se espantou com o mundo e que<br />
volta para contar suas histórias.<br />
ilustração: theo szczepaNski<br />
Parece-me<br />
impossível que<br />
exista escrita<br />
sem memória.<br />
ainda que<br />
permaneça<br />
a memória<br />
da técnica<br />
da escrita<br />
automatizada<br />
no corpo, de<br />
nada adiantará<br />
sem a memória<br />
da experiência.