Personagens Personagens - Revista Filme Cultura
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CESAR CHARLONNE<br />
A rigorosa construção dos personagens desses dois filmes talvez comece na origem literária<br />
de ambos. Ainda que adaptados e muito modificados, romances representam uma espécie<br />
de protoprojeto antes do projeto cinematográfico, quase um pré-roteiro, o que – independentemente<br />
do valor literário dos livros – já disponibiliza um terreno alicerçado. Não estou<br />
dizendo que filmes baseados em romances são necessariamente bons, nem que filmes com<br />
roteiro original sejam ruins. Existem grandes romances universais que tiveram adaptações<br />
inferiores ou sofríveis para o cinema. Mas há também filmes adaptados que são muito<br />
superiores aos livros em que foram baseados – Hitchcock que o diga. Veja-se ainda o caso<br />
de Rastros de ódio (The Searchers, 1956), de John Ford, uma das maiores obras do cinema<br />
de todos os tempos, baseada num romance pouco expressivo.<br />
Vamos considerar em particular o caso de Lavoura arcaica, um filme que Fernando Solanas<br />
considerava fora dos padrões – o que é exato, já que o diretor (também roteirista e montador)<br />
destroçou regras, para tentar uma gramática cinematográfica própria. Partiu-se do temeroso<br />
desafio de adaptar uma obra de construção estritamente literária, como a novela de Raduam<br />
Nassar, oralizada em forma de monólogo interior. Por sua linguagem que de tão elaborada<br />
beira a transfiguração, a novela filia-se à matriz shakespeariana – apontando para outro<br />
caso raro na literatura brasileira, que é Guimarães Rosa, este numa chave mais joyceana.<br />
Era tal seu fervor e admiração pelo original literário que Luiz Fernando Carvalho usou a própria<br />
novela como roteiro, assumindo sua intenção de fazer um filme literário. Por isso, recusou<br />
desde o início a ideia de adaptação: para ele tratava-se de um diálogo, a ponto de admitir<br />
que depois de ter lido a novela já tinha o filme todo na cabeça, graças à riqueza visual do<br />
livro. A câmera seria, portanto, uma caneta escrevendo um diário – e aqui encontramos um<br />
parentesco estético com Robert Bresson e seu cinéma écriture, o cinema enquanto escrita<br />
com imagens, movimentos e sons. Pode-se entender como, a partir daí, o filme assumiu uma<br />
estrutura totalmente fragmentada, às vezes feita de retalhos imagéticos, que contemplasse<br />
as idas e vindas do drama interior do protagonista, num verdadeiro fluxo de consciência<br />
fílmico. Como espinha dorsal do roteiro, o diretor adotou a narrativa oral literária que, apesar<br />
do tom acima do real, adequou-se perfeitamente ao coloquialismo do cinema. Nesse sentido,<br />
é espantoso como o texto de Raduam, barroquizado pelo atropelo de metáforas exasperadas,<br />
flui perfeitamente na boca dos atores, em especial Selton Mello.<br />
Por sua ambiguidade entre o tom épico e o clima intimista, a narrativa se esgarça até atingir<br />
uma textura de pura poesia, o que a leva a se sobrepor ao realismo e atingir um universo<br />
ficcional próprio. Chegou-se assim a um cinema de “aventura da linguagem”. Mais ainda:<br />
no dizer do fotógrafo Walter Carvalho, um filme de linguagem arcaica, no sentido de dar vazão<br />
a misturas míticas e referências estéticas. Há claros sinais de Eisenstein e do brasileiro<br />
Limite, sobrepostos a uma estrutura de tragédia grega. Além do coro composto pelas irmãs,<br />
chega-se ao drama edipiano subjacente, depois que a ordem patriarcal é quebrada pelo<br />
filho desviante. O resultado é um filme que experimenta a linguagem cinematográfica até<br />
limites onde raramente se conseguiu chegar. Produzindo imagem poética em movimento,<br />
chega ainda mais longe do que os clássicos da vanguarda russa e, na atualidade, diretores<br />
tão radicais quanto Sergei Parajanov, Derek Jarman e Alexander Sokúrov. Então, o filme se<br />
torna personagem de si mesmo, à medida que vai se tecendo em torno de experimentações<br />
Cidade de Deus<br />
filmecultura 51 | julho 2010