Edição 123 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo
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vaidade revelada<br />
o romance ChÁ dAs CINCo Com o VAmPIRo, de miguel Sanches neto, supera a polêmica que criou<br />
o autor<br />
miGueL<br />
sanches neto<br />
nasceu em 1965, em belo<br />
vista <strong>do</strong> paraíso (pr). em<br />
1969, mu<strong>do</strong>u-se para<br />
peabiru (pr), onde passou<br />
a infância. <strong>do</strong>utor em letras<br />
pela unicamp, é autor de<br />
romances como chove<br />
sobre minha infância,<br />
um amor anarquista e a<br />
primeira mulher, e <strong>do</strong> livro<br />
de contos hóspede secreto.<br />
desde 1994, é colunista<br />
<strong>do</strong> jornal <strong>Gazeta</strong> <strong>do</strong> povo.<br />
recebeu o prêmio Cruz e<br />
Sousa (2002) e o binacional<br />
das artes e da Cultura brasilargentina<br />
(2005). vive em<br />
ponta Grossa (pr).<br />
chÁ das cinco<br />
Com o VAmPIRo<br />
miguel Sanches neto<br />
objetiva<br />
236 págs.<br />
: : mauríCio melo Júnior<br />
braSília – df<br />
A<br />
polêmica chegou antes <strong>do</strong><br />
romance. Há muitos anos<br />
circulava pelos basti<strong>do</strong>res<br />
literários, em tom de fofoca,<br />
que Miguel Sanches Neto, se valen<strong>do</strong><br />
da proximidade que teve com<br />
o escritor Dalton Trevisan, escrevia<br />
um romance revelan<strong>do</strong> todas as inconfidências<br />
<strong>do</strong> Vampiro de Curitiba.<br />
E não eram poucos os protestos, as<br />
indignações, os debates sobre ética,<br />
caráter, defesa da individualidade.<br />
romance pronto e publica<strong>do</strong>,<br />
morrem as polêmicas, pelo menos<br />
para quem o ler. Chá das cinco<br />
com o vampiro, antes de ser uma<br />
invasão velada à privacidade de Dalton<br />
Trevisan, um livro oportunista<br />
na esteira das comemorações ocultas<br />
e desautorizadas <strong>do</strong>s 85 anos <strong>do</strong><br />
escritor, se amolda como uma reflexão<br />
sincera sobre a vaidade.<br />
Partamos <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>.<br />
roberto Nunes Filho passa a<br />
infância e a a<strong>do</strong>lescência em Peabiru,<br />
no interior <strong>do</strong> Paraná, assistin<strong>do</strong><br />
às bebedeiras <strong>do</strong> pai, à passividade<br />
da mãe e à solidão de uma tia solteira,<br />
Ester, que mora cercada de livros.<br />
To<strong>do</strong>s vivem <strong>do</strong> arrendamento das<br />
terras deixadas como herança pelo<br />
avô e, para fugir <strong>do</strong> tédio da cidade de<br />
vidinha besta, o moço lê os livros empresta<strong>do</strong>s<br />
pela tia. Daí decorre tu<strong>do</strong>.<br />
Depois de brigar com o pai e sofrer<br />
uma desilusão amorosa, roberto<br />
muda-se para Curitiba, banca<strong>do</strong> pela<br />
tia, para estudar jornalismo. Envolvi<strong>do</strong><br />
com os literatos da cidade, aban<strong>do</strong>na<br />
o curso e torna-se colunista literário<br />
de um jornal e romancista.<br />
Durante dez anos, o moço circula<br />
nesse ambiente e dele tira seus<br />
prazeres. No entanto, paulatinamente,<br />
descobre a superficialidade<br />
que envolve tal círculo social. To<strong>do</strong>s<br />
parecem representar personagens<br />
de livros que sequer chegam a escrever,<br />
to<strong>do</strong>s carregam indiscutíveis<br />
certezas da própria genialidade,<br />
mesmo diante de textos medíocres,<br />
incompreensíveis ou mesmo ilegíveis.<br />
To<strong>do</strong>s arrotam o cadinho de<br />
intimidade que dizem ter com o escritor<br />
Geral<strong>do</strong> Trentini, a encarnação<br />
literária de Dalton Trevisan.<br />
Aliás, quem tiver maiores intimidades<br />
com o cenário cultural de<br />
Curitiba poderá descobrir cada um<br />
<strong>do</strong>s homens, cada uma das mulheres<br />
que se escondem nos personagens de<br />
Miguel Sanches. Os que ganharam<br />
dimensão nacional com seu trabalho<br />
são facilmente identifica<strong>do</strong>s, como<br />
valter Marcondes, um espelho onde<br />
se reflete Wilson Martins, e o contista<br />
Geral<strong>do</strong> Dalton Trentini Trevisan.<br />
Posta de la<strong>do</strong> esta base, digamos,<br />
de inspiração, o romance se<br />
dimensiona por <strong>do</strong>is pressupostos<br />
bem modernos. O primeiro é a reflexão<br />
que deita sobre a vaidade. O segun<strong>do</strong><br />
se pauta pela inquieta e também<br />
lírica condição que envolve os<br />
grupos familiares. Claro que se trata<br />
de temas recorrentes, motes excessivamente<br />
explora<strong>do</strong>s por escritores<br />
em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e daí o perigo<br />
<strong>do</strong> pastiche. Sanches consegue sair<br />
ileso, ou quase, <strong>do</strong> caminho. Sua trama,<br />
embora traga certa morosidade<br />
inicial, ganha fôlego à medida que se<br />
desenvolve e termina como um texto<br />
profundamente belo e consistente. E<br />
o apoio para se chegar a tal proeza<br />
está nos tais pressupostos bem modernos<br />
anteriormente menciona<strong>do</strong>s.<br />
Dizen<strong>do</strong> um pouco mais sobre<br />
a vaidade, o Geral<strong>do</strong> Trentini de Mi-<br />
guel Sanches é a representação dela.<br />
É um personagem complexo, que<br />
criou em torno de si uma áurea mítica<br />
bem conveniente. Por uma determinação<br />
da timidez, no inicio da<br />
carreira de escritor, optou por deixar<br />
sua obra caminhar com independência,<br />
liberta da vida de seu autor. Esta<br />
condição o ensinou o quanto isso poderia<br />
favorecê-lo. Assim se mostrou<br />
sempre como alguém de difícil relacionamento,<br />
com amigos de ocasião,<br />
avesso à publicidade, mas que está<br />
sempre disposto a quebrar tal privacidade<br />
diante de uma mulher jovem<br />
e bela, diante de alguém que possa<br />
trazer sangue novo, novas tramas,<br />
novos personagens para sua literatura<br />
cada vez mais lida e comentada.<br />
Naturalmente, aí se desenvolve<br />
o limo da vaidade. Tu<strong>do</strong> que gira em<br />
torno <strong>do</strong> escritor passa por um estranho<br />
e imprevisível mecanismo de<br />
seleção. As ruas por onde caminha,<br />
os lugares que freqüenta, as opções<br />
pessoais. A aproximação de roberto<br />
com Trentini nasce daí. O jovem vagabun<strong>do</strong><br />
o aborda dizen<strong>do</strong> ter escrito<br />
um estu<strong>do</strong> sobre sua obra. Trentini<br />
se interessa em ler e, diante <strong>do</strong>s elogios,<br />
manda o texto para um jornal.<br />
Nasce aí o crítico roberto Nunes.<br />
Estas obsessões levam Trentini<br />
a fabricar uma vida familiar difícil,<br />
opressiva. Ele tem péssima relação<br />
com os vizinhos — só se pacifica com<br />
o <strong>do</strong>no de uma sauna na vizinhança<br />
quan<strong>do</strong> isso ajuda sua escrita —,<br />
despreza a esposa de anos, só abre<br />
as portas da casa para uma mulher<br />
bonita e jovem provocan<strong>do</strong> a irritação<br />
da única filha que conserva à<br />
distância. Ou seja, Trentini é uma<br />
espécie de personagem própria, e<br />
isso tu<strong>do</strong> o liga ainda mais a roberto,<br />
com quem termina brigan<strong>do</strong>.<br />
Julho de 2010<br />
As relações familiares <strong>do</strong> jovem<br />
roberto não são também nada fáceis.<br />
O pai vive bêba<strong>do</strong>, frustra<strong>do</strong> por ter<br />
fracassa<strong>do</strong> como joga<strong>do</strong>r de futebol.<br />
A mãe se refugia nos afazeres <strong>do</strong>mésticos,<br />
não tem qualquer perspectiva.<br />
Ester, a tia, foi arrastada de volta a<br />
Peabiru depois de tentar viver uma<br />
grande paixão em Curitiba. A partir<br />
daí passou a viver entre seus livros,<br />
com sua solidão. um quadro de frustrações<br />
e mediocridades, enfim.<br />
O a<strong>do</strong>lescente roberto, neste<br />
ambiente, vive duas intensas paixões.<br />
A primeira, meio impossível,<br />
pela tia e a segunda, em parte correspondida,<br />
por Marta, que prefere se<br />
casar com um fazendeiro próspero.<br />
Tanto a Curitiba de Trentini<br />
quanto a Peabiru de Ester são microcosmos<br />
que refletem as impossibilidades<br />
e as conveniências humanas.<br />
Há uma busca velada pelo<br />
sucesso — que pode vir em forma<br />
de prestígio, poder, prazer ou mera<br />
vaidade — e quem não consegue de<br />
alguma forma atingi-lo é excluí<strong>do</strong> de<br />
qualquer senti<strong>do</strong>. Chá das cinco<br />
com o vampiro poderia ser mais<br />
um romance a refletir sobre isso, o<br />
que seria banal. Sua diferença está<br />
na forma como o autor embaralha<br />
suas cartas. Nada é dito de maneira<br />
direta, apenas a trama vai abrin<strong>do</strong><br />
janelas para reflexões e conclusões.<br />
Destarte, antes de sugar o sangue<br />
e a vida de um vampiro, Miguel<br />
lhe dá humanidade, o fotografa pela<br />
rica complexidade que oferece como<br />
matéria literária, afinal como homem,<br />
o vampiro, nasci<strong>do</strong> <strong>do</strong> barro tal qual<br />
Lair ribeiro, se move por vaidades e<br />
obsessões em busca de sucesso e prazer.<br />
Então melhor ficar mesmo com<br />
seus contos e com a inspiração que<br />
provocou em Miguel Sanches Neto.<br />
9