MISCELÂNEA CÉLTICA - Adigal
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“DE PÉS A CABEÇA” OU “DE CABO A RABO”?<br />
(cabo “fim”, “corda”, “grau militar; chefe” e “entrada de terra no mar”, Finisterrae, capa, pé “princípio”, pé “caule; planta”)<br />
1. Cabo ilustra o substrato. Vem do lat. vulg. *capu, capi (por caput, capitis), mesmo<br />
cabo “corda” (Coromines). O valor românico básico é “fim, extremo final”. Por que<br />
éa voz que em latim era “cabeça” em românico passou a “fim”, sem no latim se ver o<br />
elo que o explique? Certo que a cabeça é extremo da pessoa, e daí pouco resta para<br />
atribuir-lhe condiçom de extremo final. Mas o que no latim se vê som derivações diametrais:<br />
“fonte”, “origem”, “princípio”. Mesmo “chefe” nom acorda com “fim”, sim<br />
com “princípio”, cf. príncipe. Dos valores latinos vem cabo “grau militar; chefe” e a<br />
locuçom de cabo a rabo, onde cabo é “cabeça”, e também “princípio” (“de princípio<br />
a fim; de extremo inicial a extremo final”). É estrutura de ideias latina. Em latim nom<br />
há jeito de sair daí sem forçar os dados.<br />
Mais comum é o inverso: cabo “extremo final, fim”, de família grande: cabal “completo;<br />
que chega ao fim, acabado, perfeito”; acabar “completar, finalizar, aperfeiçoar”;<br />
e outros. Nom é novo (mas pouco salientado) que tal estrutura vem do substrato<br />
céltico. O célt. *K W ENNOS-PENNOS “cabeça” era a par “fim, extremo final”. O gaulês<br />
Pennelocos, no fim do lago de Genebra, prova-o: é o célt. *PENNO-LOKOUS “fim do<br />
lago”. O irlandês ceann ainda é “cabeça” e “fim”, como o galês pen.<br />
2. Nom acaba aí. Além de “fim” e “cabeça, chefe”, cabo é um acidente geográfico, éa<br />
entrada da terra no mar. Aí tem-se visto o sentido direto latino: “cabeça de terra”, sem<br />
deixar-se de sentir o valor “extremo”. Nom sei como nom se tem captado a precisa<br />
noçom envolvida, constante nas línguas neocélticas. Cabo “acidente geográfico” dizse<br />
em irlandês ceann tíre, em galês pen tir, e assim foi em córnico (Pentire Point em<br />
Cornualha). Qual a acepçom envolvida? Vemo-lo nas traduções latinas, a revelar a<br />
acepçom de ceann-pen: FINIS TERRAE! Mas os Finisterres som mais que puros cabos.<br />
Forom sacros desde o sentido simples? Ostentam o valor já antes existente? Talvez<br />
isto. A numinosidade do Fim do Mundo atlântico era parte inescusável dos cabos.<br />
3. *Capu explica o enigma de capa, do vulgar cappa, como vira Ernout. Pasma nom<br />
ter-se-lhe dado mais atençom. É forma hipocorística (daí a geminaçom expressiva) do<br />
feminino de *capu. *Capa nom apresenta dificuldades morfológicas. Cappa era “cabecinha”<br />
ou “a pequena parte superior”. Lembre-se a capa antes ter sido “capuz; roupa<br />
que cobre cabeça e ombros”. Só mais tarde foi a roupagem longa. Da antiguidade<br />
latina do vulg. cappa dá testemunho *excappāre, comum a toda a România, donde é<br />
escapar. Descreio haver aqui um celtismo. É sim exemplo interessante dos jeitos de<br />
derivaçom no latim vulgar. Interessa ver mais éa vez a funçom hipocorística da geminaçom,<br />
ainda no latim imperial.<br />
4. É notável o viço da estrutura semântica cifrada em cabo “fim”. Vimos a estrutura<br />
sobrancear a latina, também presente. De pés a cabeça responde à primeira; de cabo a<br />
rabo à segunda. Confronto similar há em castelhano, mas aqui o balanço é inverso. O<br />
castelhano cabo é um pouco mais arcaico, e al fin mais frequente do que al cabo.<br />
5. Enfim, éa noçom complementar. Do sentido céltico aderido ao vulg. *capu vêm<br />
para pede- valores inversamente proporcionais. Daí pé “princípio, início”. Como o<br />
princípio cresce, ao invés do que acaba, daí também ũa amplificaçom do valor “sustento,<br />
coluna”, já latino, mas que na nossa língua progrediu ao ponto de levar rapidamente<br />
o pé dos vegetais para “caule”, e por sinédoque mesmo para “planta”.