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Leia um trecho do livro - Ficções Editora

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me ocupava também de ler o jornal. Ele se pôs a “zapear” e ei-lo diante de <strong>um</strong><br />

jogo de futebol por mim esqueci<strong>do</strong> para aquela noite. Considerei debaixo <strong>do</strong><br />

meu manto: “Ora, vejam, está aí o que me apraz, o futebol, e certamente<br />

empolga esse singelo tipo inculto, corintiano por herança de pai e avô”.<br />

Embora também corintiano, vejo arte no esporte, vejo paixões a<br />

revelar-se no correr da partida. O futebol, dizia Anatol Rosenfeld, mestre<br />

judeu-alemão de estética refugia<strong>do</strong> no Brasil, traduz a habilidade de pernas e<br />

pés, partes vistas como elementares <strong>do</strong> corpo h<strong>um</strong>ano. Quan<strong>do</strong> o homem<br />

quer manifestar ódio ou desprezo por outra pessoa agride-a com o pé, com<br />

pontapé, sen<strong>do</strong> isso mais hostil <strong>do</strong> que o soco ou o tapa que a mão dá. O<br />

jornalista iraquiano que arremessou <strong>do</strong>is sapatos no presidente Bush gritava-lhe<br />

“cachorro!”, ou seja, queria dar-lhe pontapés. Porque <strong>um</strong> ser inferior, <strong>um</strong><br />

cachorro, reprime-se com o pé; <strong>um</strong>a barata mata-se com o pé na falta de tubo<br />

espirrante, mesmo que esteja na parede ao fácil alcance da mão. (Quan<strong>do</strong> se<br />

está com chinelo prefere-se erguer o pé a chinelar com a mão, menos <strong>um</strong><br />

amigo meu que nunca pisa no bicho porque o estalo esmigalhante lhe atrapalhará<br />

o sono.)<br />

Enfim, mestre Anatol, cujo rigoroso pensamento espero não falsear e<br />

que naturalmente disse isso muito antes <strong>do</strong>s sapatos em Bush, teorizava que o<br />

futebol dá aos pés nobreza de mãos, ideia reafirmada pelo poeta João Cabral.<br />

Mas ao que quero chegar é a este despropósito: Murilo, o belo rapaz de<br />

origem plebeia, quan<strong>do</strong> surgiu na tela <strong>um</strong> jogo de estádio cheio e locutor<br />

apoteótico bandeou-se ou zapeou-se para <strong>um</strong> programa de auditório da pior<br />

espécie, desses que emburrecem os já burros que os procuram. Não digo que<br />

riu, que se embalou com as músicas, nem mesmo que pôs atenção no<br />

mostrengo, mas digo e repito que nele ficou, depositan<strong>do</strong> no braço <strong>do</strong> sofá o<br />

controle como quem alcança seu desiderato.<br />

Ficamos os quatro ali ven<strong>do</strong> a porcaria; ou melhor, os três, pois Maria<br />

Laura logo <strong>do</strong>rmiu e n<strong>um</strong> arranque se foi. Quanto a mim, que suspirava pelo<br />

futebol, estaria de fato aborreci<strong>do</strong>, entedia<strong>do</strong>, puto nas calças? Não: estava<br />

feliz. Feliz na certeza de que o rapaz era <strong>um</strong>a bela besta.<br />

Quan<strong>do</strong> afinal ele resolveu ir-se nessa noite que era das primeiras na<br />

casa de Fi e Mari e devolveu-me o controle, esperei que saíssem para a despedida<br />

ao portão da rua e fiz <strong>um</strong> zape r<strong>um</strong>o ao futebol, suficiente para ver o<br />

árbitro levantar os braços no apito derradeiro. O Corinthians tinha perdi<strong>do</strong><br />

quase de goleada e, dada a minha condição de corintiano, não ter visto tal<br />

vexame deveria ser <strong>um</strong> consolo ao suplício <strong>do</strong> programa burrifica<strong>do</strong>r. Ocorre<br />

porém que gosto de ver meu time perder, pois atiço a raiva recolhida <strong>do</strong>s<br />

dirigentes, <strong>do</strong> técnico e <strong>do</strong>s joga<strong>do</strong>res que tornam possível o fracasso. São<br />

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