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Edição 107 - Jornal Rascunho

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<strong>107</strong> • MARÇO de 2009<br />

ANDREA RIBEIRO • CURITIBA – PR<br />

De repente, ela acordou. Viu que estava<br />

presa no branco do papel, sem vontade, sem<br />

nome, sem alma. Viu que alguém a escrevia<br />

— se certo por linhas tortas, não conseguiria<br />

julgar. Não se sentiu bem. Tonteou e caiu<br />

quando percebeu que tudo o que pensava,<br />

tudo o que fazia, todos os seus segredos, todos<br />

os seus passos eram calculados. Que ela<br />

tinha sido, desde o momento em que apareceu<br />

ali, naquela folha em branco, um esboço<br />

em letra quase ilegível. Sentiu que era uma<br />

espécie de marionete. As cordas eram invisíveis<br />

e o titereteiro, onipresente, onisciente, insípido<br />

e inodoro. Olhou para cima e viu a<br />

ponta da caneta sobre sua cabeça. Tentou<br />

correr, mas não conseguiu. Foi então que lembrou:<br />

sua história era medíocre. Estava presa<br />

para sempre a um escritor indeciso e sem muita<br />

criatividade. Estava fadada a ser conhecida<br />

como mais uma daquelas que um dia amou<br />

demais e cujo amor foi levado no início da<br />

trama, para que seu sofrimento se estendesse<br />

até o último ponto final.<br />

Ele abriu o papel que havia segundos tinha<br />

amassado e releu: “Estava fadada a ser conhecida<br />

como mais uma daquelas que um dia<br />

amou demais e cujo amor foi levado no início<br />

da trama, para que seu sofrimento se estendesse<br />

até o último ponto final”. E pensou que<br />

ela o odiava. Que não conseguira nem mesmo<br />

o respeito de sua própria criação. Que aquela<br />

brincadeira de ser deus, de criar uma vida,<br />

não havia sido sua melhor idéia. Ser deus não<br />

é fácil. Jamais conseguiria agradar a todos: especialmente<br />

a ela. E foi aí que percebeu: não<br />

conseguiria se livrar de sua criação. Porque ele<br />

era medíocre... mas ela, não.<br />

Escrever, eu imagino, seja perder-se um<br />

pouco dentro de si e dentro de outros. E nessa<br />

perdição, tudo pode acontecer. Criador e criatura<br />

podem se fundir em um só, num pensamento<br />

único, num uníssono, até que não<br />

se saiba mais quem nasceu primeiro. Até que<br />

um deles evapore. Até que toda a tinta acabe.<br />

Ou que o nó, de alguma forma, desate.<br />

Para quem lê, é divertido (e às vezes<br />

aflitivo) tentar descobrir quem escreve e quem<br />

é o escrito, quem determina e quem sucumbe.<br />

O escritor potiguar Estevão Azevedo, em<br />

seu romance de estréia, Nunca o nome do<br />

menino, brinca exatamente com isso. Com<br />

as possibilidades da leitura, da criação, com<br />

o fantasioso, o inusitado. Visivelmente inspirado<br />

em Seis personagens à procura de<br />

um autor, de Luigi Pirandello, Nunca o<br />

nome do menino conta a história de uma<br />

mulher que se percebe uma personagem criada<br />

por um escritor que não é lá grande coisa.<br />

O leitor acompanha as aflições desta<br />

mulher, que tenta escapar da pena de seu criador<br />

e viver a vida da forma como imagina<br />

que deveria ser. E também viaja pelas memórias<br />

de sua infância e adolescência, quando<br />

descobriu o amor. Aquele amor que a<br />

marcou com felicidade e agonia.<br />

O livro inicia com um relato de impacto:<br />

O drama começou quando eu, ao perceber<br />

que era personagem de um livro, amputei o dedo<br />

mínimo da mão esquerda, imaginando com isso<br />

arrancar pelo menos algumas letras das palavras<br />

que me descreviam — o que dificultaria a<br />

leitura e me possibilitaria, talvez, morrer.<br />

Desde as primeiras palavras do livro, sabemos<br />

que a narradora é, em verdade, uma<br />

personagem insatisfeita com seu criador. E<br />

que fará de tudo o que estiver a seu parco<br />

alcance para se livrar da maldição de estar<br />

em um livro medíocre. E aí está um dos<br />

trunfos de Azevedo: a personagem é a tal<br />

ponto desesperada que o leitor se compadece<br />

dela imediatamente. Mesmo sem um<br />

dedo. Ou justamente por causa deste coto.<br />

A angústia dessa pessoa/personagem é tão<br />

grande que é impossível o leitor não querer<br />

que ela desapareça, que ela deixe de existir,<br />

que seu livro não seja jamais publicado.<br />

As memórias da personagem são intercaladas<br />

à história de desespero em sua busca<br />

por uma extinção, por uma morte rápida<br />

— diferente da morte da maioria dos<br />

livros, em que o protagonista sofre, sofre,<br />

sofre mais um pouco para, muito depois,<br />

desencarnar. Ela se lembra de quando conheceu<br />

o menino. E de como se apaixonou<br />

rascunho<br />

A voz do dono e o dono da voz<br />

NUNCA O NOME DO MENINO narra história de uma mulher que se percebe personagem em um livro medíocre<br />

quase que instantaneamente — ah, os romances<br />

são sempre assim, à primeira vista<br />

(ou, no mínimo, segunda vista).<br />

A minha história com o menino, menino que<br />

eu obviamente veria outras vezes, também foi de<br />

manual. Manual de como não se deveria ser escrita<br />

uma história, sob pena de ser tachada de piegas,<br />

banal, inverossímil de tão bem encaixada.<br />

Assim como a obra de Pirandello é um<br />

estudo do teatro dentro dele mesmo, Nunca<br />

o nome do menino também tem muita<br />

metalinguagem. A literatura, as formas de<br />

fazê-la, escritores, personagens e obras são<br />

citados constantemente nas páginas criadas<br />

por Azevedo.<br />

Um longo tempo da vida narrado desgraça a<br />

desgraça, vitória a vitória: muito menos impacto.<br />

Acostuma-se, a sensibilidade, ao sofrimento<br />

alheio. “Este nasceu para sofrer!” “Aquele tem<br />

cada vez mais sorte!” As figuras nascidas para<br />

arrancar lágrimas fáceis despencam abruptamente<br />

no bueiro aberto e esmagam a vértebra<br />

mais importante da coluna. Isso, evidentemente,<br />

no dia anterior ao casamento do príncipe do<br />

Oriente que se apaixonou pela moça pobre.<br />

As idas e vindas no tempo também são essenciais<br />

para o sucesso da obra de Azevedo.<br />

Passado e presente convivem — paralelos a um<br />

ponto, fundidos a outro. As memórias trazem<br />

à tona um tempo em que ela era feliz e ainda<br />

se acreditava dona de si. Um tempo em que se<br />

descobriu mulher e apaixonada. Por outro<br />

lado, a narrativa atual a mostra já desgastada<br />

— física e emocionalmente — e descontente<br />

com o destino pré-determinado por seu criador<br />

pouco inspirado. Em algum momento, passado<br />

e presente vão se encontrar. Assim como<br />

criador e criatura. E aí será uma batalha de<br />

nervos e frases, para descobrirmos quem é mais<br />

forte. Quem ganha esta batalha de tintas e letras,<br />

não vou dizer. E também não importa<br />

muito. Ambos são complementares. Autor e<br />

personagem são como a serpente que morde<br />

seu próprio rabo, em moto-perpétuo. Seu fim<br />

seria seu começo, e vice-versa.<br />

• r<br />

Nunca o nome do menino<br />

Estevão Azevedo<br />

Terceiro Nome<br />

182 págs.<br />

trecho • Nunca o<br />

nome do menino<br />

O suicídio era uma saída demasiado<br />

romântica, era preciso sabotar por<br />

dentro essa prisão, fazê-la desmoronar<br />

pouco a pouco, pedra a pedra, frase a<br />

frase, até que, quando a última possibilidade<br />

de leitura finalmente ruísse, eu<br />

pudesse junto com ela morrer vitoriosa.<br />

Era hora de uma nova investida. Eu não<br />

sabia qual, nem onde, nem como, mas<br />

o importante é que eu saltei da cama,<br />

tirei o jeans surrado, tomei um banho,<br />

lavando longamente o ferimento, que já<br />

começava a cicatrizar, e saí do banheiro<br />

decidida a continuar o moti, com a<br />

consciência de que cada dia em que eu<br />

apenas vivesse seria só mais um capítulo<br />

em que ele havia me vencido.<br />

o autor<br />

ESTEVÃO AZEVEDO nasceu em Natal<br />

(RN) e é formado em <strong>Jornal</strong>ismo e Letras.<br />

Em 2005, publicou o volume de contos O<br />

som de nada acontecendo (Edições K.)<br />

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