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Edição 98 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

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8 rascunho <strong>98</strong> • JUNHO de 2008<br />

OUTRO OLHAR<br />

Uma <strong>do</strong>utrina falsa não se pode contradizer, já<br />

que se baseia na convicção de que o falso é verdadeiro.<br />

(Goethe)<br />

Mentir exige alguma habilidade. Há<br />

bons e maus mentirosos, e apesar <strong>do</strong> que<br />

dizem alguns pós-modernos, há bons e<br />

maus artistas. Diz o dita<strong>do</strong> que a “mentira<br />

tem perna curta”, pretenden<strong>do</strong> nos garantir<br />

que o mentiroso não vai longe, é<br />

logo desmistifica<strong>do</strong>. Sabemos, no entanto,<br />

que isso não é bem verdade. Há mentiras<br />

que resistem por muito tempo. E, não<br />

entanto, são mentiras.<br />

Um <strong>do</strong>s itens mais conheci<strong>do</strong>s da lógica<br />

e da sofística é o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> mentiroso. Como<br />

acreditar no mentiroso? Quan<strong>do</strong> é que ele<br />

diz a verdade? Se alguém diz “eu estou mentin<strong>do</strong>”,<br />

tal afirmativa “só será verdadeira se<br />

o autor não estiver mentin<strong>do</strong>”. Ou como<br />

diz Lawrence Goldstein estudan<strong>do</strong> conceitos<br />

chaves da Lógica: “Considere o enuncia<strong>do</strong><br />

— ‘Este enuncia<strong>do</strong> é falso’. Se ele é verdadeiro,<br />

então o que ele diz é verdade, a saber:<br />

que ele é falso. Se ele é falso, então uma<br />

vez que isso é exatamente o que ele declara a<br />

respeito de si mesmo, ele é verdadeiro. Logo,<br />

quer seja verdadeiro, quer falso, ele é tanto<br />

verdadeiro quanto falso”.<br />

Daí, a crítica ficar indecisa e paralisada di-<br />

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA<br />

Duchamp e o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> mentiroso<br />

O farsante artista que tenta disfarçar sua mediocridade num irônico jogo verbal<br />

ante de afirmações como essas <strong>do</strong> mentiroso<br />

paradigmático Marcel Duchamp: “Quanto<br />

mais convivo com artistas, mais convenci<strong>do</strong><br />

fico de que eles são uns farsantes depois que<br />

começam a ter um mínimo de sucesso”. Aí há<br />

um silogismo que pode ser assim des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>:<br />

Duchamp é um artista<br />

To<strong>do</strong> artista é um farsante quan<strong>do</strong> tem sucesso<br />

Duchamp teve sucesso<br />

Logo, Duchamp é um farsante<br />

Mas se o farsante chama os demais de<br />

farsantes, então ele não é farsante? Ou será<br />

que é tão farsante que engana os farsantes<br />

exercen<strong>do</strong> uma metafarsa mais refinada que<br />

a <strong>do</strong>s seus parceiros?<br />

E no mesmo texto, Duchamp, esse nosso<br />

dândi, histrião, sedutor e sofista, continua<br />

“to<strong>do</strong>s os cachorros ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s artistas<br />

são vigaristas”. Noutro texto ele vai dizer<br />

que “este século é um <strong>do</strong>s mais baixos<br />

na história da arte, mais baixo até que o<br />

século XVIII, quan<strong>do</strong> não havia uma arte<br />

maior, mas apenas frivolidades”.<br />

Então, pode-se perguntar: quan<strong>do</strong> o<br />

“anartista” reconheci<strong>do</strong> responsável direto “por<br />

um <strong>do</strong>s mais baixos níveis da história da arte”<br />

diagnostica esse baixo nível, torna-se ele automaticamente<br />

absolvi<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> o que fez?<br />

Aqui, tiran<strong>do</strong> os nós das contradições<br />

aparentes, chegamos a configurar o que em<br />

estu<strong>do</strong> chamei de falso neutro. O mentir sobre<br />

a mentira não torna a mentira necessariamente<br />

mais verdadeira. E até mesmo os melhores<br />

biógrafos de Duchamp, tanto Jean Clair,<br />

quanto Calvin Tomkins e Judith Housez, tiveram<br />

que admitir, em meio ao encantamento<br />

que o personagem lhes desperta, que ele é<br />

que abriu a entrópica “caixa de pan<strong>do</strong>ra” da<br />

modernidade. Mas não basta aceitar isso atonitamente.<br />

É necessário analisar o conteú<strong>do</strong><br />

dessa “caixa”, o que há dentro dela e o que<br />

ela abre ou entreabre. Estou enfim fazen<strong>do</strong><br />

avançar a questão da paralisia <strong>do</strong> conhecimento.<br />

E por isso é instrutivo retomar também<br />

aquela conhecida frase de Goethe que tem<br />

algo a ver com o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> mentiroso.<br />

Dizia ele que “uma <strong>do</strong>utrina falsa não se<br />

pode contradizer, já que se baseia na convicção<br />

de que o falso é verdadeiro” 1 .<br />

Pois essa é exatamente a questão central<br />

nas afirmativas de Duchamp quan<strong>do</strong> toma o<br />

falso pelo verdadeiro. Seus axiomas podem e<br />

devem ser desmonta<strong>do</strong>s, e não é se esconden<strong>do</strong><br />

atrás da artimanha irônica que resistirão.<br />

Lembremos que nosso mentiroso<br />

paradigmático dizia: “cada palavra que eu<br />

lhes digo é estúpida e falsa”. As pessoas<br />

ouviam ou liam isso e ficavam com o juízo<br />

a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> a frase simplesmente<br />

como humor. Tal tipo de pensamento<br />

encontra correspondência nos sofistas gregos,<br />

que diziam coisas como: “durante<br />

muito tempo me espantei com minha própria<br />

sabe<strong>do</strong>ria e não acredito nela”. É engraça<strong>do</strong>.<br />

Mas Groucho Marx também era<br />

engraça<strong>do</strong>, mas nem por isso está nos livros<br />

de filosofia, e sim na história <strong>do</strong> humor.<br />

Teríamos, portanto, que começar a ler<br />

menos ingenuamente uma série de jogos<br />

verbais (engraça<strong>do</strong>s e inócuos) que inundaram<br />

o pensamento da modernidade. E<br />

nisso Duchamp é de novo paradigmático,<br />

ao dizer tolices como essas, que alguns consideram<br />

como verdades magistrais:<br />

A idéia de julgamento deveria desaparecer.<br />

Sou totalmente um pseu<strong>do</strong>.<br />

Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?<br />

A palavra não tem a menor possibilidade de expressar<br />

alguma coisa.<br />

Por que nunca ninguém se interessou em<br />

examinar essas proposições?<br />

notas<br />

1 Lasky, Malvin J. “Utopia y revolution”. Fon<strong>do</strong> de Cultura<br />

Económica. Mexico 1<strong>98</strong>5, p. 92.<br />

• r

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