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SEMINÁRIO/ENTREVISTA COM HELDER MACEDO<br />
O escritor realista é aquele supostamente ‘objetivo’, que vai contar a realidade<br />
tal como ela é. Os teóricos do Realismo gostavam de dizer que o romance devia<br />
ser como um espelho a passar numa estrada. Quem o disse primeiro foi aliás Stendhal,<br />
que nunca fez tal coisa e ainda bem. Mas a idéia dos realistas era mostrar sem<br />
comentários a realidade tal qual ela existe. Exceto que isso é impossível. Mesmo que<br />
um romance fosse um espelho, você direciona o espelho para onde quer. E, portanto,<br />
está escolhendo a sua perspectiva. E, com ela, a significação que pretende projetar.<br />
Fiz com meus alunos em Londres uma experiência para eles entenderem<br />
como isso funciona. Pedi, num pequeno seminário de seis pessoas da pós-graduação,<br />
que todos fôssemos para a janela observar o que se passava na rua. A rua era, portanto,<br />
a mesma, a janela é a mesma, o tempo o mesmo. E pedi para que cada um deles,<br />
passados cinco minutos, me contassem aquilo que tinham visto. É claro que me<br />
contaram coisas diferentes. Uma moça falou de um cachorro que havia passado, um<br />
rapaz notou as botas e a mini-saia de uma moça. Cada um contou uma estória diferente<br />
a partir dos mesmos acontecimentos no mesmo tempo e espaço, sem alguém<br />
omitir ou falsear fatos. Quer isto dizer que o significado dos fatos varia consoante a<br />
perspectiva autoral. Dos mesmos fatos. Mais: a técnica realista é uma técnica de corte<br />
e montagem, tal como a do cinema. A arte cinematográfica aliás derivou, conceitualmente,<br />
do romance realista. Ora, o modo como se corta e se justapõe qualquer seqüência<br />
narrativa pode levar a significações totalmente diferentes. Imaginemos um<br />
exemplo fácil: um livro, ou filme, que começa com uma grande festa de casamento<br />
muito bonita, com piscina, champagne, todo o mundo contente, até os mendigos<br />
bem alimentados. E depois continua com uma lua-de-mel feliz num hotel de luxo,<br />
os noivos cada vez mais contentes. Mas suponhamos que se insere entre a primeira e<br />
a segunda cena uma cena de miséria, de brutalidade, de droga, de crimes que beneficiam<br />
a família dos noivos. A significação muda. As palavras podem ser as mesmas.<br />
A simples justaposição da miséria com essa riqueza feliz transforma a riqueza em<br />
criminalidade. A atitude do narrador passa a ser crítica, em vez de ser complacente.<br />
Sem ter de mudar as cenas que já estavam prontas. Tudo mudou de significado.<br />
Isso, de algum modo, está na base da técnica de corte e montagem que uso,<br />
dos grandes saltos que faço. Não só em Partes de África. Em Pedro e Paula, que alguns<br />
de vocês ainda não leram, há dois saltos de vinte anos na narrativa. Criam-se,<br />
assim, espaços intervalares, nesses silêncios. Essa é uma técnica derivada da poesia.<br />
A poesia é a arte da justaposição e do silêncio. Tal como a música, funciona tanto<br />
através de sons quanto de silêncios. E eu, escrevendo uma prosa que é tudo menos<br />
poética, utilizo essas técnicas na ficção. Não é por acaso que os dois escritores com<br />
quem mais aprendi são Camões e Machado de Assis.<br />
400 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, p. 377-402, 1º sem. 2001