FWA - Livro dos Mestres
O legado dos mestres - Cultura e tradição popular no Ceará
O legado dos mestres - Cultura e tradição popular no Ceará
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O Tutano da Tradição 31<br />
do Badzé, a entidade sagrada <strong>dos</strong> índios<br />
Cariri, reverenciada na figura do Padre<br />
Cícero Romão. Seus antepassa<strong>dos</strong> baianos<br />
lutaram ao lado de Antônio Conselheiro<br />
e sua gente em Canu<strong>dos</strong>, atesta Euclides<br />
da Cunha. No fim do cerco, quando tudo<br />
estava perdido e o arraial quase todo destroçado,<br />
os pankararus da aldeia de Rodelas,<br />
as mulheres e os homens, vieram combater<br />
com arcos, flechas e lanças contra os cinco<br />
mil solda<strong>dos</strong> arma<strong>dos</strong> de metralhadoras e<br />
canhões do Exército republicano nacional.<br />
Todo começo de ano, o sertanejo fica<br />
de olho no céu, feito o personagem Chico<br />
Bento, de Rachel de Queiroz. Os profetas<br />
da chuva do Ceará são finos observadores<br />
<strong>dos</strong> fenômenos meteorológicos, e fazem<br />
parte de uma tradição agrária das mais<br />
antigas civilizações. Guardam na memória<br />
experiências vindas de outra era, de<br />
quando a vida dependia exclusivamente da<br />
agricultura e as condições climáticas eram<br />
fundamentais à sobrevivência da comunidade.<br />
A previsão do tempo pela observação<br />
<strong>dos</strong> astros, das plantas, do comportamento<br />
<strong>dos</strong> animais está presente num livro como<br />
As geórgicas, do poeta latino Virgílio, obra<br />
do século I antes de Cristo que se popularizou<br />
nos livrinhos edita<strong>dos</strong> em Portugal<br />
desde o século XIV e que chegaram, com<br />
todas as marcas de sua longa trajetória, às<br />
tipografias populares do Nordeste brasileiro<br />
— os Lunários Perpétuos.<br />
São esses livrinhos, recria<strong>dos</strong> na encruzilhada<br />
cultural que é Juazeiro do Norte<br />
por Manoel Caboclo, as matrizes escritas<br />
que ainda orientam os profetas da chuva,<br />
reuni<strong>dos</strong> todo princípio de janeiro em<br />
Quixadá. Mais do que fazer previsões acertadas,<br />
o que se espera desses intérpretes da<br />
natureza, no fundo, seria a capacidade de<br />
aliviar a ansiedade que nunca se conforma<br />
na incerteza de invernos. E que é preciso<br />
navegar, e ter fé. Dos Inhamuns ao litoral.<br />
Da Ibiapaba ao Cariri. Pelos vales verdes do<br />
Jaguaribe, do Salgado, do Acaraú, cruza-se<br />
o encontro de gerações, entre saberes e<br />
fazeres, articulando o sertão e a cidade: a<br />
cultura é uma voracidade.<br />
O tempo passou, ou passamos pelo<br />
tempo, por ele somos sempre ultrapassa<strong>dos</strong>.<br />
Mas toda vez que a gente voltar ao sertão,<br />
este que existe mesmo confundindo-se<br />
já com a cidade, impregnado dela e nela<br />
sobrevivente e em nós, vamos constelar<br />
uma parabólica parábola aos velhos e aos<br />
jovens, imaginários to<strong>dos</strong>, músicos, dançantes,<br />
artistas, repentistas, performáticos,<br />
beatos, penitentes, ilumina<strong>dos</strong>. Doi<strong>dos</strong><br />
lúdicos lúci<strong>dos</strong>, dançando no meio da<br />
luz, ao pó da estrada, aprendizes na vida e<br />
mestres da arte.