Revista Lavoura n.3
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2 3<br />
_NÓS<br />
_ENTÃO<br />
Nicanor Parra<br />
Tradução: Heitor Ferraz Mello<br />
A revista <strong>Lavoura</strong> é uma publicação concebida em janeiro de 2017<br />
com o objetivo de fomentar e divulgar a cena literária contemporânea<br />
em todas as suas expressões.<br />
não estranhem<br />
se me virem simultaneamente<br />
em duas cidades distintas<br />
EDITORES<br />
André Balbo, Anna Brandão, Arthur Lungov e Lucas Verzola<br />
CAPA, PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E ARTES<br />
Anna Brandão<br />
CONTATO<br />
revistalavoura@gmail.com<br />
SITE<br />
www.revistalavoura.com.br<br />
ouvindo missa numa capela do Kremlin<br />
ou comendo um hot-dog<br />
no aeroporto de Nova York<br />
em ambos os casos sou exatamente o mesmo<br />
mesmo que pareça absurdo sou o mesmo.
_SUMÁRIO<br />
6<br />
EDITO-<br />
RIAL<br />
8PAPÉIS<br />
AVULSOS<br />
16MÁQUINA<br />
DO MUNDO<br />
22 O SENTIDO<br />
ENQUADRADO<br />
32 BABA<br />
ANTROPOFÁGICA<br />
40HERÓIS<br />
SEM NENHUM<br />
CARÁTER<br />
42 RÚTILO NADA
6 7<br />
_EDITORIAL<br />
Quando Chico Buarque lançou o single “Tua<br />
Cantiga”, faixa inicial de Caravanas (2017), abundaram<br />
reações negativas nas redes sociais. A despeito de<br />
seu conteúdo, a maioria das sentenças demonstrava<br />
precocemente uma confusão em torno de um dilema ainda<br />
não superado no imaginário comum: a não identidade<br />
entre compositor e eu lírico.<br />
Não rara na arte é essa má compreensão da<br />
separação entre o autor e sua obra. Existe uma tendência,<br />
sem dúvida afervorada pela fluidez da contemporaneidade,<br />
de interpretar a produção artística como extensão da<br />
pessoalidade de sua mente criadora.<br />
Exemplo recente se vê em torno de A Resistência<br />
(Companhia das Letras, 2015), de Julián Fuks, romance<br />
ganhador do prêmio Jabuti no ano seguinte. Em algumas<br />
entrevistas e mesas de debate, o escritor narra uma<br />
verdadeira obsessão entre os leitores de identificar os<br />
trechos do livro que seriam baseados em fatos reais,<br />
quando não apógrafos da própria realidade. Disposição<br />
similar é possível verificar também entre os leitores<br />
e críticos dos livros da Trilogia do Adeus (Alfaguara,<br />
2016), de João Anzanello Carrascoza, para citar apenas<br />
um.<br />
Em que medida, contudo, a apreciação da<br />
biografia de um autor pode ser pertinente para a leitura<br />
de uma obra de ficção? Afinal, esse pendor carrega um<br />
óbice essencial: a desconsideração do tratamento irreal,<br />
imaginoso, constitutivo da própria ideia de ficção.<br />
Uma obra de arte opera a partir de uma lógica<br />
interna, cujo desvelamento não acha estofo em elementos<br />
externos; antes, depende de sua própria estrutura,<br />
seu projeto estético e seus princípios. Não se trata de<br />
desconsiderar a experiência como gatilho autêntico da<br />
exploração da linguagem e sua decorrente construção do<br />
conhecimento. A ideia é lançar um ponto de vista sobre a<br />
necessidade de compreender que a vivência não é a única<br />
ou a mais importante fonte de inventividade literária.<br />
Em texto publicado no site da <strong>Lavoura</strong>, a<br />
editora Flávia Iriarte resenhou o romance mais recente<br />
de Maria Valéria Rezende, Outros Cantos (Alfaguara,<br />
2016), e, malgrado sua razoável repercussão, passou<br />
praticamente despercebido um dos seus argumentos<br />
centrais: a estratégia da indústria de explorar a figura da<br />
autora aspirando à venda de livros, valorizando aspectos<br />
extrínsecos em prejuízo das leis internas da obra. “Até<br />
que ponto dados biográficos podem ser tomados como<br />
atestado de qualidade do que Maria Valéria ou qualquer<br />
outro autor escreve?”, contesta.<br />
Não outro nos parece ser o embaraço<br />
velado sob a maior aposta do primeiro semestre<br />
da Companhia da Letras neste ano: o ótimo livro<br />
de contos Sol na Cabeça, de Geovani Martins,<br />
apresentado como “o novo fenômeno literário<br />
brasileiro vendido para 8 países”. Preocupa que<br />
a voz artística e o potencial do projeto estético<br />
de um jovem escritor sejam abafados pelo<br />
expediente mercadológico de exploração de sua<br />
biografia.<br />
Não é uma charada de extremos,<br />
todavia. Ainda que questionemos a identidade<br />
e confusão entre a obra e a biografia do artista,<br />
não se nega a latente comunicação entre os<br />
registros. A matéria de capa desta edição é<br />
exemplar. Trata-se de um ensaio de Thiago Mio<br />
Salla, que se debruça sobre o aparente paradoxo<br />
na colaboração de Graciliano Ramos, durante<br />
a primeira metade da década de 1940, para a<br />
imprensa getulista, instrumento do mesmo<br />
regime que o havia mantido encarcerado por<br />
motivos políticos por quase um ano.<br />
Logo, não se propõe que a criação literária<br />
deve se exonerar da experiência e dos traquejos<br />
pessoais adquiridos na vida dos autores – e, nesse<br />
sentido, inatacável a importância das discussões<br />
sobre representatividade no mercado editorial<br />
e, de modo geral, nos círculos de produção<br />
cultural. Antes, um alerta: o empobrecimento<br />
de uma obra de arte quando sua interpretação se<br />
reduzir (ou se basear unicamente) a uma leitura<br />
biográfica.<br />
Não obstante a inabalada convicção<br />
daqueles que os executam, são significativas as<br />
perdas ocasionadas por desvios desse gênero.<br />
No caso do romance de Fuks, a impossibilidade<br />
de traçar o passado de forma fidedigna e as<br />
armadilhas em que o leitor pode cair por<br />
acreditar que as coisas aconteceram exatamente<br />
do modo como o narrador se lembra delas. De<br />
semelhante modo na trilogia de Carrascoza: os<br />
efeitos da “intromissão” do autor na constituição<br />
da psicologia e da voz de três personagens<br />
diferentes da família para reconstruir memórias<br />
afetivas. Já no caso de Maria Valéria Rezende, a<br />
superexposição de sua impressionante biografia<br />
como recurso consumerista pode culminar<br />
na negligência sobre seu excelente<br />
trabalho, o que esperamos que não ocorra<br />
também com Geovani Martins.<br />
A apropriação de narrativas – pelo<br />
mercado, pela imprensa, pela política – é<br />
preocupante tendo em vista que reflete na<br />
assepsia não apenas do prazer da leitura<br />
e do exame crítico, mas também da<br />
própria criação. Se há pessoas e grupos<br />
que manipulam o universo da arte a<br />
partir de artifícios meta-artísticos, natural<br />
que as obras sejam instrumentalizadas<br />
por interesses terceiros. Assim, o fator<br />
extrínseco prevalece, ainda que revestido<br />
pelo véu da neutralidade da técnica<br />
interpretativa que, a olho nu, se passa por<br />
literária.<br />
Uma vez que a literatura é uma<br />
modalidade de manifestação técnica<br />
humana, inegável que o fenômeno da<br />
disputa pela narrativa permeie os demais<br />
campos. Nesse sentido, a proximidade<br />
da literatura com a política e o direito<br />
é evidente na medida em que a lógica<br />
linguística que atua no primeiro âmbito se<br />
repete nos demais. Permitir esse cenário na<br />
literatura nada mais é do que a repetição da<br />
lógica da estrutura de poder dominante em<br />
nossa sociedade mediante o refreamento<br />
da construção de narrativas livres a partir<br />
da imposição de uma narrativa forjada à<br />
razão de interesses verticais.<br />
O fenômeno se camufla sob as mais<br />
diversas fardas – a burocracia superlativa,<br />
o aparato jurídico-institucional, os ritos<br />
chamados legais. Em todos os casos, a<br />
irrefreável vitória, quase sempre violenta,<br />
de uma mesma narrativa, revigorada pelo<br />
assenhoramento de elementos externos à<br />
sua elaboração. Sombrios os tempos em<br />
que, nos universos da ficção artística e da<br />
ficção jurídica, o exercício interpretativocondenatório<br />
dependa do nosso apego ou<br />
desapego à biografia de uma pessoa.
8<br />
9<br />
-<br />
PAPÉIS<br />
PAPÉIS<br />
AVUL-<br />
SOS<br />
AVUL-<br />
SOS<br />
PROSA BREVE<br />
Erick Bernardes<br />
Carla Bessa<br />
Caio Augusto Leite<br />
Antonio Mammi<br />
Henrique Fanini Leite
10 11<br />
A PUNHALADA<br />
Erick Bernardes<br />
Xoxó ganhava a vida matando porco.<br />
Era uma tradição familiar na qual ele era<br />
o melhor, o mais certeiro, escolhiam-no<br />
todo domingo de sangria. Adivinhava o<br />
lugar exato em que o músculo cardíaco se<br />
encontrava e jamais errava a estocada fatal<br />
em qualquer suíno bravo. Sim, certeiro, no<br />
alvo, bem ali no coração. Depois dos animais<br />
abatidos, toda a família se reunia para, ao fim<br />
e ao cabo, esquartejarem os membros dos<br />
porcos, virarem tripas, separarem miúdos a<br />
serem vendidos na feira da pequena cidade<br />
de São Brás. Negavam-se a fazer do sangue<br />
chouriço, isto não configurava bom agouro.<br />
Dizia a lenda que emaranhar o líquido rubro<br />
com temperos e depois degustá-lo provocava<br />
os espíritos maus. Havia outro destino<br />
ao sangue: oferendar. Porém, sem antes<br />
encharcar com fluído sanguíneo a garganta<br />
do matador. Garganta extremamente<br />
acostumada a fundir poderes com o macabro.<br />
Quando criança Xoxó gostava de<br />
acompanhar seu avô Antenor. Filho de<br />
caboclo do mato, o pai do pai do jovem<br />
abatedor ensinou ao menino a fortalecer o<br />
ânimo e chamar proteção do além. Impossível<br />
não reconhecer no ritual medonho a evocação<br />
da entidade primitiva quase extinta. Entidade<br />
de que Antenor fizera do neto ainda bebê<br />
o herdeiro, prometendo-o a Kureaçu. Sim,<br />
uma promessa. Kureaçu, era este o nome do<br />
demônio protetor.<br />
Eu mesmo vi e apavorei. A cada<br />
domingo de morte suína coletiva, o fluído<br />
dos bichos destinados a compor as mesas<br />
das famílias da cidade servia de chamamento<br />
ao invisível, sobrenatural. Só Xoxó bebia<br />
da cuia cheia de sangue do primeiro animal<br />
abatido, exato, somente do p-r-i-m-e-i-r-o<br />
animal abatido. Constituía-se um ritual. A<br />
cada repetição do ato de oferenda, com o<br />
recipiente já esvaziado e apontado ao céu,<br />
rezava-se o trecho proibido da cultura pagã:<br />
“Kiruê Kiçá n’uá”. Um quase cântico<br />
trevoso. Assim, bem empapado ficava<br />
o chão, saturado do visco vermelho, em<br />
vias de coagulação. Pequenos poços<br />
rubros no terreiro, impossível não notar.<br />
Nojento, inegavelmente nojento. E então<br />
o transe. Movimentos horrorosos de<br />
jararaca enfurecida, animalescos bailados,<br />
sacolejos terrificantes saíam dele. Não,<br />
não era mais o rapaz que abatia porcos<br />
aquele ali a minha frente. Sim, era, não,<br />
não era. Bem, melhor dizer que apenas<br />
o corpo assemelhava. A cena revelavase<br />
terrificante para quem não pertencia<br />
ao clã do caboclo. Imaginem o pavor<br />
cujos gritos diabólicos imprimiam-me no<br />
espírito. Incrível! Jamais presenciei ação<br />
tão tenebrosa. Xoxó se aproximou de<br />
mim, mirou-me atravessado. Havia ainda<br />
gotas de sangue borrocando-lhe os lábios,<br />
sorriso duvidoso, olhar de outro mundo,<br />
tremi. Sim. Não resta dúvida que tremi,<br />
tive medo. O possuído rodopiou duas vezes<br />
antes de agarrar-me o pescoço, apertoume<br />
forte, força descomunal cerrandome<br />
a glote: impossível gritar. Sufocando<br />
e desfalecendo lembrei-me do punhal<br />
guardado junto à cintura dele. Salvação,<br />
juntei forças, não hesitei. Emitiu-se um som<br />
impronunciável. Som de pele perfurando<br />
e marcando o compasso do inevitável.<br />
Fez-se um quase nada de barulho, os<br />
olhares circunstantes falaram, pessoas<br />
murmuram ao redor, eram murmúrios sem<br />
choro. Haveriam os familiares de Xoxó<br />
previsto isto? Corpo deitado aos meus pés,<br />
instrumento cravado em cheio no coração<br />
do rapaz, família embasbacada. Kureaçu<br />
o abandonou. Ao menor sinal de reação<br />
cristã o diabo do troço ruim picou a mula,<br />
botou sebo nas canelas. Pois bem, meu<br />
santo é que é maior.<br />
Boa, a maçã, falou com a voz, mas<br />
a cara dizia outra coisa. Fez um muxoxo<br />
colando no tampo da mesa a etiqueta que<br />
tinha acabado de arranhar da fruta. Alisou<br />
repetidamente por cima com a palma da mão<br />
retesada. As paredes ressoavam o chiado<br />
da esfregação compulsiva, chu chu chu. O<br />
autocolante já colado, ela não precisava<br />
exagerar, o neto pensou. Os nervos devem<br />
estar à flor da pele. E de repente ele achou<br />
que não devia ter oferecido a maçã, não tinha<br />
pensado que trazia à tona a lembrança do ritual<br />
da avó com o avô. Quarenta anos o marido<br />
descascou a fruta pra ela depois do almoço,<br />
ela queria esquecer. Quarenta anos ela tirava<br />
o autocolante com a ponta da unha, prensava<br />
no tampo da mesa e chu chu chu, a mão<br />
ficando dura. Quarenta anos de convivência<br />
de frustração de fastio sedimentados ali em<br />
camadas de etiquetas cada vez mais grossas.<br />
Se aquele tampo de mesa falasse. Contaria<br />
do desamor escorrendo nos silêncios fatiados<br />
das maçãs. Agora que ele morreu – Deus o<br />
guarde – ela queria esquecer. Agora a hora<br />
sonhada há quarenta anos.<br />
VULCÕES<br />
Carla Bessa<br />
De repente deu um soco na mesa, anunciou,<br />
a voz estridente: esses autocolantes, tem<br />
gente que coleciona, eu li no jornal. Sorriu<br />
para abrandar o susto do neto, o rapaz<br />
tinha aberto uns olhão. A avó sempre tão<br />
calma tão controlada, não era de erupções.<br />
Mas a lava agora forçava caminho e ela<br />
assim sem motivo aparente gargalhou.<br />
Mas logo, envergonhada, colou o sorriso<br />
amarelo no tampo da mesa por cima das<br />
etiquetas.<br />
Num reflexo enfiou uma fatia grossa<br />
na boca, engoliu sem morder. Engasgouse<br />
com a fruta e com a lembrança do velho<br />
e de toda uma não-vida uma escolha mal<br />
feita, que burrice dobrei a esquina errada.<br />
Asfixiou com aquela certeza atrasada,<br />
trambolho fechando a garganta ainda mais<br />
que a maçã. Queria esquecer, mas era<br />
muita acumulação.<br />
Resfolegando foi até a copa pra<br />
cuspir no tanque, caiu no goto, ela se<br />
desculpou. Junto com engasgo veio um<br />
soluço alto ou grito sufocado, não sei dizer.<br />
Então, chorou o que se poderia chamar de
12<br />
copiosamente. Nas barbas do choro, a fala<br />
abafada de há séculos resolveu brotar.<br />
Era magma engrossado querendo sair por<br />
todos os buracos. O neto, plantado com o<br />
prato de maçã fatiada na mão lembrou da<br />
aula na Faculdade, era Geofísica, estavam<br />
dando vulcões. As erupções podem ser<br />
divididas em explosivas e efusivas. Enfiou<br />
uma fatia na boca e mastigou ruminou.<br />
As erupções explosivas são causadas pela<br />
acumulação de vapor e gases sob elevadas<br />
pressões, que são libertados de forma<br />
violenta. Pensou em pedir ajuda à vizinha<br />
e já foi saindo bater na porta ao lado, era<br />
um prédio dois por andar.<br />
Esta já veio entrando, veio<br />
abraçando, sei bem o que sente, o meu<br />
falecido também morreu. E nisso a avó<br />
desenfreia uma risada desvairada e a outra,<br />
meu Deus qual a graça. O neto pondera,<br />
a avó estava nervosa estava desfeita<br />
por causa da perda do avô. As erupções<br />
vulcânicas podem ser extremamente<br />
ruidosas, elucidou. A vizinha fez cara de<br />
tacho. Mas Aparecida, só ela sabia, estava<br />
aliviada, botando para fora os quarenta<br />
anos.<br />
E num rompante, meu filho eu<br />
queria que você jogasse essa mesa fora!<br />
E já! O grito saído entre olhos inchados e<br />
ânsias de vômito. E também, quer saber,<br />
não gosto de maçã! E nem suportava<br />
o cheiro do velho, Set Maçã Verde Da<br />
Brasil Nativo - Deo Colônia e Sabonete,<br />
mas isso só pensou, não falou. E dá um<br />
tapa nas mãos do neto, assim do nada, e o<br />
prato voa num arco, e as maçãs espalhadas<br />
para todo lado. As erupções vulcânicas<br />
podem lançar blocos de rocha a centenas<br />
de metros ou mesmo alguns quilómetros<br />
de distância. A vizinha balança a cabeça,<br />
está alterada, haja paciência. Aparecida<br />
na mesma hora pede desculpas e o neto<br />
tem certeza, agora surtou de vez, a represa<br />
estourou. E como se ela tivesse ouvido,<br />
jorra um último grito um grunhido um<br />
urro de lá de dentro, uma coisa que eu<br />
nunca vi. Vem das funduras em agudo<br />
esganiçado, o derradeiro soluço. Então,<br />
acalma. Encerra o espetáculo tão de<br />
repente como começou. A cortina fecha,<br />
ela repõe a máscara e ouve a voz do rapaz<br />
que é mais um eco, senta vó. A erupção<br />
finaliza com um fluxo de lava viscosa.<br />
Depois desse episódio, meio<br />
Lexotan três vezes por dia, a vida continua.<br />
A vizinha perdoou e seguiu abraçando,<br />
seguiu ajudando, magina, estamos aí pra<br />
isso. Não tardou, Aparecida foi morar<br />
com o neto. Agora a maçã é raspadinha,<br />
não engasga.<br />
CAIO AUGUSTO LEITE<br />
Aproxima-se de nós o latino-americano. O que traz do<br />
continente além? Traz pedra tornada ouro? Traz cobre retorcido,<br />
ressignificado. Toda arte é alquímica. Em seu bojo traz beijo<br />
e escarro: alforria e escravo: riso e escárnio. Traz o latinoamericano<br />
o espanhol que entendo intuitivamente: embora não<br />
saiba a língua. O que me escapa é a sombra do que não vejo: as<br />
coisas têm nome em todos os lugares: todos os nomes serão falsos.<br />
Quando não entendo, o homem aponta e sei o que é: o que vejo é<br />
universalmente nomeado pela própria imagem da coisa: o signo<br />
se é. Materialmente tudo se pertence: cobre, ouro, lata são cascas<br />
depositadas sobre elementos sem motivos. Pela boca também<br />
se faz magia: união de opostos ou termos distantes montes. O<br />
aço dos olhos, o coração de ouro, a cara de bronze. Tudo é bom.<br />
Tudo é mau. Tudo suspira e se reverte no seu avesso: osseva.<br />
Tem sentido o contrário do que existe? Tem sentido o que existe?<br />
O homem nos oferece seu artesanato: o cobre que só tinha valor<br />
monetário se torna, pela mão mágica, símbolos com misticismo:<br />
rosa de Saron, estrela-de- davi, cruz de malta. Agora, o que era<br />
valor em metal somente se tornava valor sentimental também.<br />
Quase sou tentado a levar o gato por lebre. Mas penso e paro e<br />
reparo que não preciso de símbolos que me justifiquem, embora<br />
esteja cheio deles: roupas, colares, discursos me vestem. Se eu<br />
despisse tudo, se eu cuspisse na civilização, esbofeteando minha<br />
cara de prata, o que restaria? Tenho a impressão de que nada.<br />
Só o sedimento último: o barro de que viemos: dia após dia nos<br />
envolvemos nos sonhos de capa roxa e nos cobrimos mais e mais<br />
do que não somos. Fervemos o corpo na medida certa: o barro<br />
vira tijolo; o carbono, diamante; a morte, vida. Assim permaneço:<br />
só com pudor se pode atravessar o tempo, infelizmente. Só com<br />
este rosto de argila e palma resisto ao tempo que quer tirar de nós<br />
toda essa construção; se o edifício ruir, será o silêncio eterno. Por<br />
isso continuo dizendo, por isso continuo gritando, ainda quando<br />
não falo, penso e o pensamento é um dizer tão íntimo que me<br />
ergue das minhas próprias sombras e reverte todo o caos em nova<br />
ordem, sempre e sempre, toda vez que se ameaça a queda. Cai-se<br />
toda vez. E levanta-se como novo o morto envolto de sudário.<br />
Mais uma vez, mais uma vez, mais uma vez. A maçã se projeta<br />
infinita no cenário. A expulsão e a volta: não há ponto de descanso,<br />
se eu parar pra respirar um ar mais puro: estatelo no chão, duro.<br />
Duríssimo por fora, até rachar a casca e do casulo brotaria o mel<br />
e o leite que se esparramaria pela noite em direção ao horizonte<br />
onde já não existe visão que me vista e nem nome que me minta.<br />
13
14<br />
SANTA IFIGÊNIA<br />
Fios caem das prateleiras feito cipós,<br />
emaranhando-se sem tocarem o chão.<br />
Monitores, celulares, torradeiras, tevês,<br />
câmeras filmadoras, aparelhos de som,<br />
projetores, roteadores e afins povoam todos<br />
os cantos do cubículo, todos com etiquetas<br />
adesivas grafadas à caneta esferográfica.<br />
Debruçado sobre um desses eletrônicos, no<br />
pequeno espaço livre da bancada de trabalho,<br />
Evandro tricota uma placa de vídeo com um<br />
alicate.<br />
“Disseram que aqui tem um baiano<br />
que conserta qualquer coisa”, diz uma voz<br />
vinda do corredor, os éles, êmes e érres<br />
pronunciados com cuidado. Um velho entra<br />
na oficina. Tem olhos de um azul quase<br />
leitoso, uma calva circundada por cabelos<br />
brancos ensebados que lhe cobrem as orelhas,<br />
a barba de três ou quatro dias. Carrega nas<br />
mãos um objeto metálico, similar a uma<br />
pequena balança dessas de ponteiros, e o<br />
deposita na bancada.<br />
“O senhor sabe o que é isto?”, aponta,<br />
com um ar triunfal. Evandro levanta seu par<br />
de óculos telescópicos no começo da testa,<br />
o que lhe confere uma aparência de lesma.<br />
Seus olhos brilham.<br />
“Isso mesmo, meu amigo. É um<br />
voltímetro. Muito melhor do que qualquer<br />
coisa que você já viu” prossegue o velho.<br />
“Acontece que ele está com defeito e ninguém<br />
consegue dar jeito. Me disseram lá embaixo<br />
que, se o Evandro não resolvesse, eu deveria<br />
desistir. Sei que tem conserto, nessa época<br />
não se fazia coisas para quebrar”.<br />
Evandro manuseia o objeto, gira<br />
os botões, descobre suas entradas. Enfialhe<br />
plugues e cabos, encosta o ouvido na<br />
superfície e chacoalha: “É do tempo do<br />
Einstein isso aqui, é?”.<br />
O velho ri. “Mil novecentos e<br />
cinquenta e sete. Trabalho com ele desde que<br />
comecei”.<br />
Evandro continua a examinar o<br />
voltímetro, curioso. Irrompe uma buzina na<br />
Antonio Mammi<br />
sala que imediatamente desvia sua atenção:<br />
“Viaaaaaaaaaado!”. O velho se espreme<br />
contra uma estante para dar passagem ao<br />
autor do grito, dono de uma barriga maciça<br />
e de um cavanhaque grisalho. “Um cliente<br />
trouxe um transistor e preciso que você dê<br />
uma olhada rapidinho”. O dono da oficina<br />
recebe o homem com um tapa nuca e pede<br />
um minuto para o velho. Desaparece pela<br />
porta rumo a outro conjunto, em algum<br />
andar qualquer do prédio.<br />
A altivez dá lugar a um certo<br />
abatimento e o velho se senta na cadeira<br />
de rodinhas de Evandro. Abre um botão<br />
da camisa bege e finalmente descobre a<br />
minha presença. “Também é eletricista?”,<br />
pergunta, empertigando-se. Digo que não;<br />
estou esperando que arrumem meu som,<br />
tem quase uns cinquenta minutos. “Meu<br />
Deus...” escorrega na cadeira, arrimase<br />
em seus braços e deixa a cabeça cair<br />
sobre as mãos, massageando as têmporas.<br />
Adormece.<br />
“... nunca mais compro café em<br />
grãos. Comprei um moedor, paguei quase<br />
duzentos reais, uns primos meus foram lá<br />
em casa e perguntaram se eu tinha moído<br />
merda. E o pior é que tinha gosto de merda<br />
mesmo. Agora estou com essa máquina<br />
encostada, minha mulher não sai do meu<br />
pé por causa disso, diz que eu regulo<br />
até dinheiro do mercado e compro essas<br />
porcarias sem perguntar” a voz cantada de<br />
Evandro ressoa pelo corredor e acorda o<br />
velho, que abotoa a camisa e se levanta.<br />
“E então?”, pergunta. Evandro<br />
senta-se na cadeira, coloca seus óculos<br />
telescópicos e se ocupa do voltímetro. O<br />
velho se abana e dirige-se ao intruso, que<br />
veio junto: “Também é eletricista?”. Diante<br />
da afirmativa, limpa a garganta: “Imagino<br />
que esteja acompanhando o programa<br />
sobre a história da eletricidade que passa<br />
às terças no canal dois”. Fala sozinho.<br />
“Não? Pois deveria. Nossa profissão tem<br />
muito lastro, sabe. Benjamin Franklin, Thomas<br />
Alva Edison...”.<br />
“O Pelé chama Edison por causa dele,<br />
Nivaldo” complementa Evandro, sem tirar os<br />
olhos do voltímetro.<br />
“Pois é, mas aparentemente ele não era isso<br />
tudo. Roubou os descobrimentos de um cientista<br />
chamado Tesla”. Nivaldo grunhe, por respeito.<br />
“Está resolvido aqui, alemão. Eu preciso<br />
que você compre esses materiais lá embaixo, passe<br />
aqui para me entregar e volte na quinta”. O velho<br />
não gosta: “Minha ideia era que o senhor fizesse<br />
o serviço completo. Tenho cem adaptadores para<br />
entregar hoje”. Evandro aponta para a massa<br />
eletrônica disforme que cobre as paredes e abre os<br />
braços. Vira-se para mim e comunica: “Seu som<br />
está em ordem. Essa peça aqui estava solta. Nem<br />
vou cobrar”.<br />
O velho e eu tomamos o elevador juntos.<br />
Ele resmunga e encosta a cabeça na parede, de<br />
olhos fechados, sacolejando enquanto descemos<br />
aos solavancos.<br />
15
16 17<br />
DIA DOS MORTOS<br />
Henrique Fanini Leite<br />
Agora tinha fé na supremacia dos<br />
processos químicos. Era isso que a Dra.<br />
explicou: que as sinapses não funcionavam<br />
muito bem fazia um ano, já. Exatamente um<br />
ano, hoje, que os receptores de noradrenalina<br />
e serotonina apresentaram desajustes advindos<br />
de um evento traumático, que a Dra. falou que<br />
se chamava STPD – Síndrome Trans-algumacoisa,<br />
que não é pra pensar em “Ser Traída Por<br />
Defunto”, mesmo sendo exatamente isso que<br />
aconteceu, por que não tem lógica ter raiva<br />
de morto, que agora Iolanda era uma pessoa<br />
lógica.<br />
Que era lógico também que, além do<br />
processo medicamentoso, o tratamento incluía<br />
eliminar os gatinhos, ou melhor, os gatilhos,<br />
embora aquilo envolvesse eliminar gatinhos<br />
também, já que o principal gatilho era um<br />
gatinho preto, o Jarbas e, portanto, que o Jarbas<br />
precisava morrer para que se restaurassem as<br />
conexões do cérebro. Era óbvio, mas ela tinha<br />
tomado só mais metadinha hoje, pra evitar que<br />
as sinapses desequilibrassem na hora errada e<br />
que ela não conseguisse mais pensar daquele<br />
jeito racional, o que seria, necessariamente,<br />
a consequência de matar o Jarbas sem tomar<br />
mais metadinha. O que era óbvio, óbvio que<br />
não tinha como não ter tomado a metadinha<br />
extra.<br />
Que era óbvio também que era<br />
engraçado que tudo tivesse acontecido naquele<br />
dia, porque era dia dos mortos e morrer no dia<br />
dos mortos é irônico, com certeza, e agora o<br />
Jarbas ia morrer também. Iam os dois pra a<br />
puta que o pariu, ou melhor, iam voltar para a<br />
base do ciclo do carbono, que é como a matéria<br />
orgânica do Planeta Terra se recicla, e portanto<br />
não era como se Jarbas realmente fosse morrer,<br />
mas apenas renascer em outras formas, assim<br />
como aquele canalha do Vladimir, que já foi<br />
tarde, e aquela puta que ela não conhecia o<br />
nome. O carro não, porque o carro não faz<br />
parte do ciclo do carbono, lógico, portanto<br />
o carro não morreu porque não estava vivo<br />
e também não vai voltar a vida porque é<br />
um carro. Morto mesmo só o triplo canalha<br />
do Vladimir, canalha não por ter morrido,<br />
porque ninguém quer morrer, mas canalha<br />
por ter morrido sem ela e canalha por ter<br />
morrido com outra, naquele carro, esse que<br />
não morreu, e canalha uma terceira vez,<br />
que ela sabia que o Vladimir bebeu aquela<br />
noite, como bebia toda noite, então lógico<br />
que ele próprio tinha escolhido o risco de<br />
matar alguém – no caso ele mesmo, e a<br />
puta, óbvio, mas puta não é gente, nem o<br />
Jarbas que também não é gente mas vai<br />
morrer igual.<br />
Que tinha também que ser ali, na<br />
cova do maldito do Vladimir, já que o<br />
gato era dele e ela nem gostava do Jarbas,<br />
que claro que ela não precisava ficar triste,<br />
porque tem lugar que as pessoas comemoram o dia dos mortos com<br />
a cara pintada e fazem festa, que portanto era só coisa de brasileiro<br />
ficar triste por gente morta, mesmo triplo canalha morto, mesmo<br />
gato preto, mesmo puta, tudo morto aqui, tudo embaixo da terra. Que<br />
era lógico que ela não ia ficar triste quando tem gente aqui do lado<br />
pulando de felicidade, no México, na Argentina, em todos os países,<br />
cara pintada de caveirinha, e mesmo aqui, quem é que vai no cemitério<br />
chorar por triplo canalha? Quem é que vai? Por que que ela ia? Por<br />
que que ela chorava pelo triplo canalha do Vladimir e aquele gato<br />
puto preto, morto na geladeira, morto no congelador, o gato, o Jarbas<br />
morto, morto faz tempo, Vladimir. Lógico que morto que nem você,<br />
Vladimir, morto que nem você, porque você morreu, Vladimir. Toma<br />
teu gato, Vladimir, que eu matei, toma aqui o Jarbas morto que agora<br />
eu trouxe, morto que eu trouxe aqui pra deixar na tua cova, Vladimir,<br />
morto aqui com você, com a puta, e se Deus quiser morto comigo um<br />
dia.
t<br />
17<br />
MÁQUINA<br />
DO MUN-<br />
DO<br />
MÁQUINA<br />
DO MUN-<br />
DO<br />
POESIA<br />
Stella Paternianit<br />
Rafaela Ferrari<br />
Marcus Groza<br />
Felipe Ribeiro<br />
Eliza Caetano<br />
Eduarda Vaz<br />
Clarissa Macedo
18<br />
VELÓRIO<br />
MARCUS<br />
19<br />
Stella Paterniani<br />
GROZA<br />
minha avó quebrou pratos<br />
nas paredes e me emprestava enciclopédias<br />
preu fazer no papel almaço trabalho<br />
de escola sobre carro-de- boi<br />
aquela casa tinha enciclopédias um piano<br />
um segundo pavimento proibido bonecas<br />
assassinas<br />
por isso não podia correr nem<br />
colocar o pé no sofá<br />
e a copa era muito iluminada a copa era quase<br />
um quintal de tanta luz e a mesa era<br />
a maior mesa do mundo e o queijo<br />
o melhor queijo do mundo e o cheiro do leite<br />
me dava revertério<br />
e meu tio comia o filão e tirava o miolo<br />
acumulava uma montanha de miolo por onde<br />
seus dedos o arrancavam ficava<br />
amarelado como a nata do leite<br />
puxada com cautela e enroscada num<br />
pontinho de cerâmica feito anzol<br />
da xícara<br />
e eu comia às vezes só<br />
um pão que a casca me espetava a gengiva<br />
mas dois cinco sete miolos<br />
SISTEMA<br />
três quintos do que você chama<br />
de inferno<br />
ela se refere como sendo<br />
tristezas orvalhadas<br />
angústia é marca de ferro<br />
ela diz<br />
você pensa no<br />
cosmético antirrugas<br />
que ela comprou e não usa<br />
a etimologia é só uma desculpa nobre<br />
para o fracasso<br />
prataria turva<br />
pela fumaça do cigarro<br />
DRAMA<br />
QUEEN<br />
Felipe Ribeiro<br />
ah! como gostaria de comer<br />
minhas próprias tripas e<br />
sentir o corpo agonizando,<br />
ao mesmo tempo que se sacia<br />
da fome de mim mesmo.<br />
ego<br />
de sorriso<br />
e dança!<br />
quem me lê agora<br />
provavelmente<br />
se desfaz<br />
no sobrevoo de labirintos epistêmicos.<br />
AUDITIVO<br />
Rafaela Ferrari<br />
Pelas trompas de eustáquio caminho<br />
chacoalhando o espaço<br />
batendo meu corpo contra as paredes<br />
escorregando pelas curvas da Cóclea<br />
tentando excitar a textura mais sensível do orifício auditivo<br />
A materialização do som eletromagnético em movimentação celular seria uma bela tradução<br />
do velho diálogo de adão e eva
20 21<br />
A ROSEIRA<br />
QUE<br />
ENVELHECE<br />
Eliza Caetano<br />
os tijolos que colocamos<br />
uns sobre os outros<br />
criando<br />
labirintos simétricos e<br />
hipnotizantes de cimento<br />
cinza preenchendo<br />
as imperfeições da cerâmica quebrada<br />
nos cantos<br />
a parede que se ergue à espera<br />
do reboco<br />
da cal<br />
do telhado<br />
das janelas<br />
da cortina branca<br />
do lado de dentro<br />
do piso<br />
dos móveis<br />
do lado de fora<br />
da terra<br />
da roseira que envelhece e abre novos botões depois da poda<br />
do cachorro que mija e<br />
da fileira<br />
de formigas que encontram<br />
um buraco para buscar açúcar<br />
os tijolos que colocamos<br />
esperam<br />
que os pés descalços sobre o ladrilho<br />
vermelho se cansem<br />
rachem inchem envelheçam<br />
e morram e a roseira<br />
esquecida aguarde também a morte<br />
muitos anos depois<br />
os tijolos aguardam as trincas,<br />
a ação das intempéries<br />
a falta de quem<br />
capine o mato que ameaça a cal<br />
o reboco e o cimento.<br />
os tijolos se lembram das mãos que os colocaram<br />
uns sobre os outros<br />
do fio de onde<br />
pendia o prumo<br />
da gravidade<br />
que definia a retidão da parede<br />
os tijolos que colocamos<br />
uns sobre os outros<br />
têm a memória que as mãos não terão<br />
se lembram da comida<br />
preparada do fogo levantado e dos gatos<br />
circulando entre janelas e portas<br />
os tijolos guardam primeiro<br />
a pele viçosa e os pés<br />
frescos a profusão de vozes<br />
e pequenos sorrisos de gente silenciosa<br />
que surge entra sai trabalha serve café<br />
guardam fotografias<br />
ou apenas os pregos onde<br />
foram penduradas<br />
os buracos deixados pelos pregos<br />
guardam por último o corpo<br />
sobre a mesa da sala<br />
o silêncio<br />
até que ele seja levado e ainda<br />
depois<br />
os tijolos esperam<br />
o corpo inerte<br />
(ao voltar à casa<br />
arruinada, o mato<br />
tinha tomado conta,<br />
as janelas pendiam, as telhas<br />
não impediam mais o sol.<br />
apenas intuí o corpo inerte<br />
de um descendente<br />
guardado pelos<br />
tijolos os tijolos<br />
não vão embora.)<br />
CARTA<br />
CAVERNA<br />
Eduarda Vaz<br />
Clarissa Macedo<br />
Também fui puta desde o amanhecer.<br />
Hoje me cultivam girassóis que não saram<br />
e doem roturas no meu corpo.<br />
A minha cinta nunca festejou um braço;<br />
Queria mesmo a febre que a pele não realça<br />
Mas as pedradas que me arranharam<br />
os traços de mil trapaças<br />
... estes não subsistiram<br />
Daí,<br />
eu escrevi trinta mil sobrevivências<br />
e cruzei a valsa livre dos cabelos cortados,<br />
das irmãs inocentes e violadas<br />
o movimento aqui não é para fora da caverna<br />
você estava errado, Platão<br />
o movimento é para dentro da caverna<br />
cadenciado é sopro<br />
subindo descendo subindo descendo<br />
ainda é luz, Platão<br />
mas aquela de olhos fechados<br />
a cavidade é úmida<br />
antecipação olfativa e tátil<br />
da gruta transparente escondida<br />
daquelas madalenas.<br />
o encostar em cada uma das formas geométricas<br />
o encontrar de<br />
lados rochas paredes lábios rochas paredes lados<br />
libera-se<br />
rompe-se<br />
tudo então, Platão<br />
se expande e toca a verdade<br />
na forma que se perde<br />
que é forma sem forma<br />
inflada e ampliada<br />
já não é vida<br />
mas sim partida<br />
desague<br />
para outra dimensão<br />
e o corpo, Platão,<br />
levita
22 23<br />
O SENTI-<br />
DO EN-<br />
QUADRA-<br />
DO: o caso dos quadros sertanejos<br />
de Graciliano Ramos publicados<br />
na revista getulista Cultura<br />
Política<br />
Neste ensaio, adaptado do livro Graciliano<br />
Ramos e a Cultura Política (2016), Thiago Mio<br />
Salla apresenta as linhas gerais de sua pesquisa<br />
que mostra como o suporte editorial participa<br />
ativamente dos significados gerados por um texto
24 25<br />
De março de 1941 a agosto de 1944,<br />
o já consagrado Graciliano Ramos, escritor historicamente associado à<br />
esquerda, colaborou com o a revista Cultura Política, principal veículo de<br />
doutrinação política e ideológica do Departamento e Imprensa e Propaganda<br />
(DIP) do Estado Novo brasileiro. Sobretudo nos dois primeiros anos de sua<br />
passagem por tal publicação, seu trabalho foi árduo. Cabia a ele revisar os<br />
originais de outros articulistas e escrever uma crônica mensal para uma<br />
seção fixa do periódico intitulada inicialmente como “Quadros e Costumes<br />
do Nordeste”. Em tais textos, por meio da ficcionalização de lembranças,<br />
recupera a vida prosaica e interiorana que deixara para trás desde que,<br />
“sem pagar passagem” (como ele mesmo ironicamente debocha) fora<br />
transferido forçadamente para o Rio de Janeiro como preso político após a<br />
intentona comunista de 1935. Como se sabe, o romancista das Vidas Secas<br />
ficou encarcerado por quase um ano, entre março de 1936 e janeiro de<br />
1937. E detalhe: o regime autoritário que, sem acusação formal, o prendeu<br />
era o mesmo para o qual ele, cinco anos depois de sua soltura, passava a<br />
colaborar.<br />
Em linhas gerais, a historiografia e a crítica literária apresentam<br />
duas leituras recorrentes da colaboração de Graciliano com o veículo<br />
estadonovista. A primeira delas procura enxergar seus quadros nordestinos<br />
como textos carregados de ambiguidade, como se o autor alagoano,<br />
identificado com a esquerda, tivesse de, necessariamente, criticar o regime<br />
autoritário, instaurado em 1937. Trata-se de uma leitura de orientação<br />
romântica, que, ao identificar o artista a certo ideal abstrato de pureza e<br />
heroísmo, tenta desvinculá-lo da ditadura varguista, como se sua função<br />
nas páginas da revista fosse apenas conspirar sorrateiramente contra<br />
a ordem estabelecida. Sua participação é vista como uma concessão,<br />
sobretudo em razão de o periódico governista pagar o dobro do que as<br />
demais publicações num momento de incertezas e dificuldades econômicas<br />
advindas da Segunda Guerra Mundial.<br />
A segunda, a partir de um viés incriminatório, acusa Graciliano de<br />
ter se vendido ou ter sido cooptado, simplesmente pelo fato de ele haver<br />
escrito para uma publicação de cunho oficial. Em seTntido inverso, tal<br />
perspectiva também guarda traços idealísticos, pois considera que o<br />
escritor se distanciou de certa essência, abstrata e ideal, do “verdadeiro”<br />
homem de letras: aquele que não se submete ao sistema. A constatação de<br />
que outros intelectuais renomados também atuaram na tentacular máquina<br />
burocrática estadonovista sem compactuarem com as diretrizes autoritárias<br />
do regime já rechaça, de alguma maneira, essa observação.<br />
Diante de matéria tão espinhosa,<br />
no livro Graciliano Ramos e a Cultura<br />
Política: Mediação Editorial e Construção<br />
do Sentido (Edusp/Fapesp, 2016) proponho<br />
algo diferente para análise e compreensão<br />
dos gestos artístico e político depreendidos da<br />
publicação dos quadros nordestinos do autor<br />
de Angústia no periódico oficial. Mais do que<br />
partir de ideias preconcebidas do que seria a<br />
função do escritor em sentido abstrato, faz-se<br />
necessário examinar a fundo a especificidade<br />
da colaboração de Graciliano na revista<br />
direitista. Assim, ao invés de se partir do<br />
autor, ou mesmo do homem para se produzir<br />
sentido sobre sua obra, mostra-se mais efetivo<br />
realizar um movimento inverso: tomar como<br />
base os textos gracilianos propriamente ditos,<br />
ou melhor, a materialidade destes textos, ou<br />
seja, o fato de eles terem sido publicados num<br />
suporte editorial e num tempo específicos,<br />
para, então, chegar-se às relações estabelecidas<br />
entre o artista alagoano e o Estado Novo, de<br />
acordo com o repertório do período.<br />
Não por acaso, por meio de tal<br />
abordagem que se propõe a aproximar as<br />
áreas de Editoração e Estudos Literários, os<br />
“Quadros e Costumes do Nordeste” passam a<br />
ser examinados como textos em permanente<br />
interação com o habitat jornalístico para o<br />
qual foram originariamente concebidos. Em<br />
meio a essa espécie de ecologia discursiva,<br />
o suporte acaba por conferir aos escritos<br />
em questão um conjunto de circunstâncias<br />
editoriais e históricas que, por sua vez,<br />
participam diretamente do sentido por eles<br />
produzido. Desse modo, sem prescindir da<br />
análise intrínseca (linguística e literária)<br />
das produções de Graciliano publicadas em<br />
Cultura Política, também ganha destaque, na<br />
pesquisa realizada, o estudo dos significados a<br />
elas agregados no processo de sua transmissão<br />
e difusão.
26<br />
OS "QUADROS E COSTUMES<br />
DO NORDESTE"<br />
No momento em que começa a<br />
colaborar com o periódico getulista, o<br />
artista alagoano já se apresentava como<br />
um escritor consagrado, assinando seus<br />
textos jornalísticos com o nome pelo<br />
qual se tornara literariamente conhecido.<br />
Não por acaso, até então, havia publicado<br />
Caetés (1933), S. Bernardo (já com<br />
duas edições: 1934 e 1938), Angústia<br />
(1936), Vidas Secas (1938) e A Terra dos<br />
Meninos Pelados (1939), além de um<br />
conjunto de mais de 130 crônicas, contos<br />
e artigos em jornais e revistas de todo o<br />
país, sobretudo, da capital federal.<br />
Ao todo, entre 1941 e 1944,<br />
Graciliano publicou 25 textos em Cultura<br />
Política, sua participação mais intensa,<br />
sistemática e duradoura num único<br />
veículo: 18 colaborações nos primeiros 18<br />
números quando a seção ainda se chamava<br />
“Quadros e Costumes do Nordeste”<br />
e as narrativas eram identificadas,<br />
não por títulos individualizados, mas<br />
por numerais romanos em sequência<br />
crescente; quatro no momento em que<br />
seus escritos passaram a ser enquadrados<br />
como “Quadros e Costumes Regionais”;<br />
outros dois após nova abreviatura do<br />
nome da seção, quando ela reduziu-se a<br />
“Quadros Regionais”; e um no segmento<br />
“Literatura”, quando os quadros deixam<br />
de existir.<br />
Quando se examinam, de maneira<br />
detida, tal conjunto de os quadros,<br />
comparando-os com os textos de outros<br />
articulistas também publicados na revista<br />
estadonovista, sobressaem diferenças<br />
entre uns e outros. Em linhas gerais,<br />
sobretudo quanto ao gênero e o modo de<br />
elocução empregados, as colaborações<br />
do autor de Vidas Secas afastavam-se<br />
tanto da ladainha laudatória às realizações<br />
governamentais, como de artigos e estudos<br />
de caráter mais dissertativo e analítico, que<br />
se debruçavam sobre diferentes aspectos da<br />
vida e cultura nacionais. Ao mesmo tempo,<br />
guardavam distância de certas crônicas<br />
propriamente ditas, tais como os relatos de<br />
viagem de Marques Rebelo, reunidos na<br />
seção análoga a sua “Quadros e costumes<br />
do Centro e do Sul”.<br />
Por outro lado, tais diferenças não<br />
significavam o isolamento dos quadros<br />
nordestinos de Graciliano do ambiente<br />
editorial de Cultura Política, como se<br />
eles aí estivessem, apenas sorrateira e<br />
ironicamente, para questionar o governo<br />
nas páginas de sua principal publicação,<br />
assim como sugere determinada parcela da<br />
crítica. Muito pelo contrário, tais textos,<br />
ao trabalharem, de maneira inconclusa<br />
e alegórica com certos lugares-comuns<br />
norteadores da retórica oficial, tornavamse<br />
passíveis de serem apropriados pelo<br />
discurso legitimador veiculado pela revista<br />
getulista.<br />
Esta última, mediante um<br />
amplo conjunto de textos e paratextos,<br />
fornecia toda uma ambiência discursiva<br />
estadonovista aos textos do autor, que, a<br />
um só tempo, enquadrava-os, disciplinavaos<br />
e dirigia-lhes o sentido. Ao mesmo<br />
tempo, vale lembrar que tal adequação<br />
das narrativas gracilianas aos pressupostos<br />
propagandeados por Cultura Política era<br />
favorecida pela própria especificidade do<br />
periódico do DIP, que admitia artigos menos<br />
assertivos, sem um viés doutrinário aparente,<br />
ao contrário de outros órgãos oficiais, de caráter<br />
predominantemente apologético, nos quais a<br />
colaboração do autor de Vidas Secas tornar-seia<br />
menos provável.<br />
27
28 29<br />
29<br />
Em resumo, esse processo,<br />
incongruente a princípio, de uma participação<br />
escrita aparentemente como linha de<br />
fuga, que, contudo, revelava-se ajustável<br />
às coordenadas traçadas pelo periódico,<br />
viabilizava-se mediante as estratégias textuais<br />
empregadas pelo autor para colaborar sem<br />
se comprometer de maneira direta com os<br />
postulados oficiais. Seja num retrato social,<br />
num retrato individual (veja, ao lado, o texto<br />
sobre a personagem D. Maria Amália) ou<br />
num conto de enredo, Graciliano produz<br />
relatos a um só tempo críticos, portadores<br />
de um sentido negativo, mas adaptáveis<br />
aos propósitos legitimadores da publicação<br />
propagandística.<br />
Neste texto, o segundo a ser<br />
publicado por Graciliano em Cultura<br />
Política, o escritor retrata, em chave<br />
crítica, uma coronela sertaneja<br />
cujas as ações eram pautadas<br />
pelas mais nefastas práticas<br />
políticas: clientelismo, parasitismo<br />
e nepotismo. Em certo sentido,<br />
ela acabaria por personificar o<br />
alegado individualismo da Primeira<br />
República (tema recorrente ao<br />
longo dos “Quadros e Costumes<br />
do Nordeste”). Como se pode<br />
perceber pelo texto, Graciliano<br />
deixa em aberto se essa figura<br />
fora eliminada pelo Estado que se<br />
dizia Novo ou se ela continuava<br />
atuante na vida local brasileira. O<br />
romancista não responde à questão.<br />
Ele apenas a coloca, deixando a<br />
resposta ao leitor. A revista, por<br />
outro lado, tomando às rédeas do<br />
sentido, ajuizava tão somente a<br />
primeira leitura como a correta,<br />
considerando o passado como<br />
algo superado. No parágrafo que<br />
antecede imediatamente a crônica,<br />
os editores explicitam de modo<br />
categórico que depois de novembro<br />
de 1937 as coisas teriam mudado<br />
de rumo: figuras como D. Maria<br />
Amália “caíram, se apagaram, se<br />
dissolveram na onda revolucionária<br />
que introduziu novos costumes<br />
e novos métodos de conduzir a<br />
vida regional”. Nesse sentido,<br />
segundo a ótica governamental,<br />
o texto do autor seria visto como<br />
contraponto para exaltar a suposta<br />
novidade da ditadura varguista que,<br />
supostamente, teria posto fim aos<br />
mandões regionais, em proveito do<br />
império do bem coletivo.<br />
Reprodução das páginas do segundo número de Cultura<br />
Política (abril de 1941) nas quais foi publicada crônica de<br />
Graciliano Ramos sobre a personagem D. Maria Amália<br />
(Fonte: CPDOC/FGV)
30 31<br />
Entre os procedimentos compositivos<br />
utilizados pelo artista para atingir tal<br />
propósito e, assim, mover-se em meio ao<br />
terreno minadíssimo no qual se encontrava,<br />
destaca-se o trabalho por meios encobertos<br />
(em enredos ficcionais e figurativos) com<br />
certas tópicas que foram incorporadas e<br />
amalgamadas ao ideário do regime de 1937,<br />
mas que não se restringiam a este.<br />
Destaque para a crítica ao liberalismo,<br />
ao internacionalismo, ao desprezo pela<br />
“realidade nacional”, ao individualismo<br />
político e ao federalismo descentralizador<br />
da Primeira República, itens recorrentes<br />
nos debates intelectuais desde os anos de<br />
1920, que o Estado Novo se apropria como<br />
estratégia para construir, por oposição, sua<br />
legitimidade. Por mais que o artista dirigisse<br />
suas críticas a problemas estruturais, que não<br />
se restringiam à “República Velha”, tal como<br />
o discurso getulista fazia crer, elas abriam<br />
a possibilidade para a veiculação de um<br />
elogio implícito ao governo, tendo em vista,<br />
sobretudo, a mediação editorial exercida por<br />
Cultura Política.<br />
Conexa a tal estratégia textual,<br />
está também a adoção de certo tom de<br />
problematização, somado ao uso preferencial<br />
da terceira pessoa e à localização, ainda<br />
que imprecisa, dos textos no passado, mais<br />
especificamente num período anterior a<br />
1930. A conjugação de tais fatores permitia<br />
que o artista mantivesse uma postura<br />
questionadora, recorrente ao longo de toda<br />
sua produção literária anterior, sem, no<br />
entanto, confrontar-se abertamente contra<br />
o statu quo getulista. Ao mesmo tempo, as<br />
críticas contidas em seus textos apresentam<br />
um caráter aberto e inconcluso: em nenhum<br />
momento, Graciliano especifica se os<br />
problemas situados no pretérito, durante<br />
a vigência da Primeira República, teriam<br />
sido solucionados pelo Estado que se dizia<br />
“novo”. Se por um lado, tal postura fugia<br />
dos habituais encômios ao regime de 1937,<br />
por outro, por oposição, a recuperação<br />
desabonadora dos tempos idos servia de<br />
contraponto para a glorificação das ações<br />
governamentais de seu momento de presente.<br />
Ainda no que diz respeito ao modo<br />
particular de elocução de Graciliano, o autor<br />
deixa de lado a composição de crônicas<br />
tradicionais, segundo a tradição instituída<br />
sobre o gênero até aquele momento,<br />
aproximando seus textos de outros registros,<br />
com destaque para o conto e para o retrato.<br />
Em regra, o efeito ficcional presente nessas<br />
composições seria reforçado, sobretudo, pela<br />
indeterminação das coordenadas actanciais<br />
e espaciais destas, bem como pela ênfase<br />
manifestada pelo artista na construção de<br />
personagens, ambientes e ações específicas.<br />
Tais procedimentos, como se viu, acabavam<br />
instaurando a ambivalência e a polissemia,<br />
o que, por sua vez, facilitava o tratamento<br />
indireto e alegórico de lugares-comuns de<br />
interesse do regime sem a necessidade de<br />
discorrer abertamente sobre estes, evitando,<br />
assim, adesões, como as manifestas pela<br />
grande maioria dos outros colaboradores,<br />
entre eles Marques Rebelo.<br />
Não se pode também desconsiderar<br />
a opção do romancista alagoano pela<br />
construção de textos com percursos<br />
figurativos bem-definidos, geradores do<br />
efeito de “real”. De maneira geral, essa<br />
iniciativa tornava-os passíveis de serem<br />
enquadrados pela revista como documentos<br />
sobre a vida sertaneja, como se Graciliano<br />
não produzisse discursivamente as realidades<br />
retratadas, mas sim as captasse com sua<br />
“kodak literária”. Paralelamente, a pretensão<br />
de verdade dos escritos seria reforçada pela<br />
própria postura de especialista, didática,<br />
assumida pelo artista, que tomava o espaço<br />
e os habitantes do interior nordestino como<br />
objetos de saber privilegiados, a serem<br />
apresentados a seus leitores presumidos da<br />
capital federal. Ao governo convinha tal<br />
perspectiva, tendo em vista suas propostas<br />
centralistas e autoritárias de composição<br />
de um amplo painel do país, com ênfase na<br />
valorização de certas particularidades locais<br />
e na execução do ideal de unidade nacional.<br />
Ao privilegiar o exame de tal conjunto<br />
de estratégias textuais, bem como dos efeitos<br />
de sentido por elas produzidos no contexto<br />
histórico e editorial getulista, recuperamse<br />
as relações estabelecidas entre artista e<br />
governo a partir da própria ficcionalidade<br />
dos “Quadros e Costumes do Nordeste” e<br />
do debate cultural do qual eles participaram<br />
no interior da maquinaria propagandística<br />
do Estado Novo, entre o final da década de<br />
1930 e início da de 1940. E, conforme se viu,<br />
ao adotar os procedimentos compositivos<br />
apresentado acima em meio à discursividade<br />
de Cultura Política, Graciliano, a um só<br />
tempo, produziu narrativas ajustáveis à<br />
retórica oficial, habilitando- se a receber<br />
os pagamentos por seu longo e sistemático<br />
trabalho no periódico, como também<br />
preservou sua autonomia e singularidade<br />
literárias, ausentando-se de maiores<br />
compromissos tcom o regime ditatorial. Pelo<br />
contrário, o maior compromisso do autor de<br />
Vidas Secas seria com a ficção, pois por meio<br />
dela conseguiu equilibrar-se sobre o fio da<br />
navalha de emprestar sua arte ao regime de<br />
1937, sem banalizar ou mesmo comprometer<br />
sua pena.<br />
Para mais informações ver: SALLA,<br />
Thiago Mio. Graciliano Ramos e a Cultura<br />
Política: mediação editorial e construção<br />
do sentido. São Paulo: Edusp; Fapesp,<br />
2016.
POFÁGICA<br />
BABA<br />
BABA<br />
ANTRO-<br />
ANTRO-<br />
POFÁGICA<br />
ARTES VISUAIS<br />
Pedro Fonseca<br />
Paulo Barbosa<br />
Ina Gouveia
34 35<br />
PEDRO<br />
FONSECA<br />
25 anos<br />
Juiz de Fora - MG<br />
Nasceu em outubro de 1992 e<br />
reside em Juiz de Fora, Minas<br />
Gerais, onde é mestrando em<br />
Artes, Cultura e Linguagens pela<br />
UFJF. Sua produção autoral mescla<br />
possibilidades experimentais<br />
em escrita, como o ensaio e o<br />
poema, para criar trabalhos híbridos<br />
em mescla com desenhos,<br />
registros fotográficos e autobiográficos,<br />
numa trama em que<br />
arte e vida se alinhavam.<br />
contato: psfonsec@gmail.com
36 37<br />
PAULO<br />
BARBOSA<br />
50 anos<br />
Belo Horizonte - MG<br />
Começou como ilustrador, publicando<br />
em jornais como o Suplemento<br />
Literário de Minas Gerais,<br />
aos 14 anos. Graduado em Artes<br />
Plásticas pela Escola de Belas Artes<br />
da UFMG, trabalhando então<br />
como ilustrador e cartunista na<br />
imprensa sindical e alternativa.<br />
Recebeu diversos prêmios em<br />
salões de humor gráfico pelo Brasil<br />
afora, reunindo seus principais<br />
trabalhos de humor e quadrinhos<br />
em duas coletâneas. Fez<br />
também Mestrado e Doutorado<br />
em Artes Visuais. Entre 2012 e<br />
2015, incursionou pela docência,<br />
ministrando cursos de História<br />
do Cinema e História da Arte.<br />
Atualmente, é professor de Artes<br />
Visuais na Escola de Design da<br />
Universidade do Estado de Minas<br />
Gerais onde leciona disciplinas<br />
sobre História da arte, História do<br />
cinema e Estudo da cor.
38 39<br />
38 39<br />
22 anos<br />
Belo Horizonte - MG<br />
Artista e designer gráfica.<br />
Graduanda em Artes Visuais<br />
com Habilitação em Artes<br />
Gráficas na Universidade<br />
Federal de Minas Gerais e<br />
estudante de Comunicação<br />
Visual no SENAI MG. Trabalha<br />
com artes gráficas e ilustração<br />
dentro de temáticas feministas.<br />
Participa de exposições e feiras<br />
gráficas, como a Faísca em Belo<br />
Horizonte, teve seu trabalho<br />
em quadrinhos publicado na<br />
Coletânea FIQ Jovem 2016.<br />
Busca explorar possibilidades<br />
gráficas por meio de desenho<br />
e artes digitais, e sua pesquisa<br />
artística percorre o campo<br />
da representatividade do<br />
corpo feminino e de questões<br />
feministas.<br />
INA<br />
GOUVEIA
40 41<br />
RESENHA<br />
Sérgio Tavares<br />
A ARTE DE CRIAR FANTASMAS EM<br />
PEDAÇOS<br />
HERÓIS<br />
SEM NEN-<br />
HUM CARÁ-<br />
TER<br />
Fazendo de conta que a estrutura<br />
literária é uma placa de vidro, ao soltá-la da<br />
altura de trinta andares temos “Felicidade”, de<br />
Wellington de Melo.<br />
O romance são os estilhaços ocasionados<br />
pela queda; o produto de uma ruptura que<br />
preserva tênues sinais de sua configuração<br />
original, mas, de maneira prática, não passa<br />
de fragmentos distantes e desproporcionais,<br />
incapazes de empreender sentido.<br />
Não que a literatura deva ser um<br />
compósito harmônico de forma e conteúdo,<br />
tampouco se submeter a um formato leniente e<br />
convencional. Porém, a literatura deve sempre<br />
estar para o leitor. Oferecer-lhe um ponto de<br />
conjuntura, um eixo onde este possa atrelar sua<br />
linha de raciocínio. E isso falta aqui.<br />
O que pode se apreender sobre o enredo<br />
é o seguinte: Ademir faz parte de um grupo<br />
de ativistas denominado Movimento Cidade<br />
Plana, que se utiliza de meios digitais para<br />
protestar contra a verticalização urbana. Para<br />
chamar atenção para a causa, os integrantes<br />
pretendem saltar dos prédios mais altos da<br />
cidade e transmitir tudo ao vivo.<br />
Ocorre que o ato político acortina<br />
um pacto de suicídio em massa. O circuito<br />
ainda é atravessado por dramas pessoais e/ou<br />
familiares, envolvendo traumas de infância,<br />
mortes, invasão de privacidade, rede de<br />
mentiras e indução de emoções fabricadas.<br />
Há de se convir que os assuntos<br />
abordados são interessantes e bem oportunos<br />
para a atualidade.<br />
A gentrificação provocada pela<br />
especulação imobiliária, a corrupção que se<br />
expande do senso particular para o coletivo,<br />
o extremismo de pensamentos, a manipulação<br />
da consciência a serviço de uma missão<br />
(supostamente) de guerrilha, quando de<br />
fato se dispara rumo ao vazio; neste caso,<br />
“a queda, um abismo”.<br />
O problema está na maneira escolhida<br />
para dispor o texto. A despeito de uma voz<br />
subjetiva que delineia toda a história, uma<br />
mixórdia de outras vozes se atropelam<br />
na montagem de cenas que subvertem<br />
qualquer noção de tempo e de espaço no<br />
conduto de uma cacofonia renitente que<br />
atordoa e incomoda.<br />
Fica claro que, através de uma<br />
linguagem frenética, disparatada, o autor<br />
busca o efeito de confusão, de representar<br />
as inquietações dos personagens nos<br />
diálogos e no descompasso da narrativa.<br />
Até consegue. Mas é sobremaneira<br />
desordenado que, a certa altura, o leitor<br />
perde completamente o foco, por não<br />
entender quem é quem, quem está falando<br />
com quem, onde estão e qual, afinal, é o<br />
propósito de tudo aquilo.<br />
No meio disso, a elevação de um<br />
subtexto aponta ainda para um debate<br />
sobre criação versus realidade, e como<br />
discussões da ordem do dia – raça, gênero,<br />
igualdade social – são usadas para a defesa<br />
de interesses suspeitos, na condição de<br />
peça de manobra. Não fica claro, contudo,<br />
se é uma crítica ou um panfleto.<br />
Resta a constatação de que<br />
Wellington de Melo se perdeu na criação<br />
desse universo de personagens perdidos.
43<br />
LO NADA<br />
RÚTI-<br />
RÚTI-<br />
LO NADA<br />
PROSA DE FÔLEGO<br />
Santana Filho
44 45<br />
CATECISMO<br />
Às cinco da manhã do domingo<br />
ele já adivinha o dia ensolarado e quente.<br />
A primavera implodiu o inverno, não<br />
havendo dificuldade em se levantar da<br />
cama, necessário inclusive expurgar essas<br />
duas manchas úmidas profanando o lençol.<br />
Em algumas noites é quase seco o prazer,<br />
o sumo escasso produzido agora só serve<br />
para conspurcar os antigos períodos de<br />
inundação, maculando os panos, simulando<br />
alguma virilidade renitente. Levanta e puxa<br />
o lençol numa tacada só.<br />
Lá fora os afazeres. Na cabeceira, gibis<br />
antigos do Fantasma, Bolinha e um Homem<br />
Aranha escalando as paredes do arranha-céu<br />
num Brooklyn que não conhece, mas sabe<br />
onde está.<br />
Ainda de pijama, começa os<br />
exercícios no quarto em penumbra. O<br />
corpo redondo responde mal às tentativas<br />
de alongar, esforça-se para atingir e depois<br />
manter a vertical, são exercícios breves, ele<br />
quer o dia lá fora. Abre a janela no térreo<br />
do convento em frente ao claustro, e seus<br />
olhos ultrapassam as folhas respingadas pelo<br />
orvalho, alcançando a calçada do lado de lá<br />
do jardim, onde a cidade também se ergue.<br />
Liga o rádio, rapsódias húngaras na<br />
Cultura, caminha até o banheiro e abre o<br />
chuveiro com as duas mãos, deslocando o<br />
corpo para trás, esquivando-se da ducha.<br />
Enquanto espera a água aquecer se volta<br />
para o espelho, a cara amarfanhada e gorda,<br />
a barba desalinhada e rala, o sábado inteiro<br />
às voltas com a mecânica da paróquia,<br />
o trabalho braçal, onde foram parar as<br />
prometidas maravilhas da contemplação?<br />
Vem desde criança a atração pela santidade.<br />
Quando menino, palavras como mosteiro,<br />
genuflexório e turíbulo removiam as cinzas<br />
das tardes sonolentas, borrifando algum<br />
ímpeto pelos corredores da casa, e a alma.<br />
Cerzia sacos de estopa depois de lavá-los, e<br />
os vestia, amarrando a cintura com a corda<br />
da rede, saindo à rua, pés descalços no chão<br />
e a cabeça no céu de carneiros e banjos,<br />
habitantes de nuvens e do santuário particular.<br />
O céu. Lugar bom de ficar, feito o colo do<br />
pai e as pernas dele, cavalo esquipando a<br />
marcha enquanto folheiam juntos, e à sua<br />
própria insistência, o catecismo de imagens<br />
vibrantes, dividindo a dois o silêncio,<br />
ungidos por ele – o pequeno dedo indicador<br />
do menino apertando o indicador maciço do<br />
papai.<br />
“Santo?!”, zombou o primeiro a quem<br />
confiou o projeto. “Quanto maior a consciência<br />
do pecado, mais altas as pretensões em<br />
contrário, a cada ação corresponde uma<br />
reação de igual magnitude”, insistiu o<br />
sacristão que não chegou a sacerdote, nos<br />
preparativos conjuntos da Semana Santa,<br />
aos primeiros anos do noviciado. Ele não<br />
entendeu o comentário, ou não considerou,<br />
apertou entre os dedos a pequena imagem do<br />
São Francisco de madeira, inquilino do bolso<br />
desde que o recebeu da mãe no aniversário<br />
de oito anos, após ela o flagrar de bruços na<br />
cama se esfregando no colchão.<br />
A água demora a esquentar, o chão está<br />
frio, essa barriga não para de crescer, ele se<br />
coloca de perfil diante do espelho, deslizando<br />
a mão pelo abdome túmido, como fazem as<br />
grávidas. Embaixo da ducha abre as pernas<br />
para lavar as junções, a assadura inevitável<br />
pelo entrechoque das coxas grossas e os<br />
pelos enrodilhados, observa a água escorrer<br />
carregando a fuligem do corpo e redemoinhar<br />
pelo ralo entre os seus pés. Enxuga as coxas e a virilha, quase<br />
agachando, formando com as pernas um losango flácido,<br />
testemunhando mais uma vez as incorrigíveis misérias de<br />
existir. Foi o dermatologista da televisão quem orientou manter<br />
secas as dobras, celeiro de fungos e bactérias. Os gordos e seus<br />
criadouros deveriam ser expurgados, as banhas, incineradas<br />
no fogo do inferno, eliminadas as incorreções, cabendo a um<br />
sonoro Ângelus abençoar o que é belo, longilíneo e são.<br />
O novo sacristão é belo, longilíneo e são. E tem olhos<br />
de amêndoa, onde se movimentam cavalos-marinhos em tons<br />
de verde e corredeiras azuis – isso é Deus. ‘Uma fagulha do<br />
Vosso amor pode abrasar a terra’, passam-lhe pela cabeça<br />
estes louvores, enquanto acompanha o adagietto da Quinta<br />
Sinfonia de Mahler, e a lembrança de Morte em Veneza, o<br />
filme que assistiu na reprise do Cinema Geral, o entusiasma –<br />
é quando exala dos poros uma esperança renitente.<br />
Veste o hábito sobre o corpo nu, gosta das sandálias<br />
gastas e da genitália livre. Penteia o cabelo molhado cada dia<br />
mais ralo tentando alinhar fios contraditórios. Oresultado é<br />
cruel, ele sabe, como sabe também que o ridículo é inevitável<br />
quando se tem calvícies a disfarçar, e ele as possui pelo corpo<br />
todo. Tenta alinhar a sobrancelha grossa, na qual os fios são<br />
membros divergentes de uma mesma Ordem; nada nele é<br />
concêntrico. Não desliga o som antes de sair, apenas abaixa o<br />
volume, é necessário aprisionar esse Deus de belezas.<br />
Os corredores são largos e sólidos como sonhava na<br />
cama dos oito anos, entretanto não é incenso de cravo o que<br />
respira, mas a fornada de pão na cozinha próxima, e não há<br />
órgão no meio do pátio brandindo a Ave Maria, apenas dois<br />
ou três passarinhos cantarolando, enquanto se molham na<br />
fonte de azulejos brancos e azuis.<br />
Depois do café – tomou o achocolatado com açúcar<br />
– começa a preparar a igreja para a missa das sete. A mãe<br />
informou que no convento das Capuchinhas, onde foi Filha<br />
de Maria, as meninas postulandas é que se encarregavam da<br />
limpeza e do trabalho pesado. Ele é leitor de Santo Agostinho,<br />
Flaubert e Teresa D’Ávila, quando vai assumir a homilia<br />
de domingo? O Eclesiastes joga água na fervura: ‘Vaidade<br />
das vaidades, tudo são vaidades’, aperta na mão de ferro o<br />
crucifixo pendente da cintura, fecha os olhos, abre, segue.<br />
Ajuda a distribuir a eucaristia entre os fiéis, conduzindo a
46 47<br />
patena de ouro, a igreja lotada apesar do<br />
horário. A disciplina forjada pela constatação<br />
do abandono vai salvar o mundo, essa gente<br />
desconhece a miséria na qual foi urdida, por<br />
isso se lustra nos incensos, quando deveria<br />
se lavar nos adstringentes. O sacristão recém<br />
chegado sorri framboesa da boca, não para<br />
ele, para a vida, os dentes são puro cálcio,<br />
morangos nas bochechas. O outro, do interior<br />
de Minas, tem unhas de marfim, é tão jovem –<br />
são deuses, são deuses. Lá fora, proseia com<br />
os paroquianos, tendo o zelo de se manter<br />
externo, o semblante miúdo, embora as<br />
mãos estendidas. A menina de dona Rosário<br />
está uma moça, já tem peitinhos e suor no<br />
buço, decerto sangra. O irmão caçula aflorou<br />
os maneirismos anunciados na infância, o<br />
mesmo jogo de pernas magras, o pulso que<br />
não se firma no antebraço e uma cabeça<br />
móvel demais sobre o pescoço.<br />
O adro da igreja, o domingo, as<br />
bengalas, os meninos e este azul aqui,<br />
tudo desliza e se movimenta devagar,<br />
ocupando espaço numa moldura acrílica,<br />
até se acomodar. Ele tocaria na moldura se<br />
estendesse o braço, mas tudo o que quer agora,<br />
e já está na calçada, é exatamente escapulir<br />
da moldura e deslizar por parede, muros e<br />
assoalhos. Sobe cinco quarteirões embaixo<br />
de um sol civilizado que não fomenta suor. A<br />
banca de revista é mais vibrante do que esta<br />
luz de primavera, encharcada de cores e as<br />
delícias, feito o verão logo mais. Recorda os<br />
santinhos de papel da infância, igualmente<br />
intensos: Sebastião amarrado no tronco do<br />
carvalho ostentando as chagas vermelhas,<br />
vermelho no cetim atado à cintura e nos beiços<br />
crispados, em torno da cabeça a auréola<br />
de puro ouro, braços erguidos expondo as<br />
axilas, e ainda as flechas perfurando tórax e<br />
abdome, a virilha, todo soldado.<br />
“Bom dia, seu Nestor! Recebeu a<br />
revista?”<br />
“A bênção, padre! Vende mais do que<br />
pipoca, mas a sua está reservada”.<br />
Seus olhos se acendem e ele permite à<br />
boca o sorriso camuflado pelos interstícios.<br />
Ela está de volta, usando o vestido vermelho,<br />
agora motorista de um táxi de madeira –<br />
abençoada a idéia de relançar a Luluzinha,<br />
ele balança o gibi entre os dedos, feito<br />
flâmula, talvez escudo de templários. Desce<br />
a rua, na concentração de quem carrega o<br />
Menino. Ele mesmo menino, nove anos,<br />
talvez dez, retornando do armazém onde o<br />
Russo presenteava a criançada com esses<br />
gibis distribuídos pelos cestos de frutas e<br />
guloseimas. Encontrá-los era como descobrir<br />
ovos de chocolate entre touceiras de capim<br />
em meio à tempestade.<br />
Avista o pai estacado no portão do<br />
convento, empunhando um guarda-chuva<br />
desnecessário. Aperta a revista na mão<br />
fechada. A poucos passos de onde está, o<br />
sacristão recém-chegado o chama, reduzindo<br />
seu nome ao monossílabo da intimidade,<br />
e ele se volta, porque a camaradagem o<br />
surpreendeu, são as ventanias. A revista<br />
escapa-lhe por entre os dedos, não é que se<br />
distraiu com o domingo?, e feito as matrioscas<br />
russas em folhos superpostos, Luluzinha dá à<br />
luz outra revista menor ainda mais colorida,<br />
e ela vai descendo pela calçada na direção<br />
do pai, escorregando, dando cambalhotas,<br />
requebrando, rebolindo, até esbarrar na<br />
mureta do meio-fio aos pés dele, revelando<br />
os closes. Quando cavalgava em sua perna e<br />
as folheavam juntos, ungiam-se aos louvores<br />
desse catecismo.