Meia-volta, volver - Vozes silenciadas pela ditadura militar no Paraná
Livro-reportagem sobre a história da ditadura militar brasileira, contada a partir dos relatos de pessoas perseguidas pelo regime. Produzido por Ian Batista como requisito à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Vinicius Martins Carrasco de Oliveira. Curitiba, 2023.
Livro-reportagem sobre a história da ditadura militar brasileira, contada a partir dos relatos de pessoas perseguidas pelo regime. Produzido por Ian Batista como requisito à disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Vinicius Martins Carrasco de Oliveira. Curitiba, 2023.
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Meia
Meia×volta,
volver
livro-reportagem
volta,
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Vozes silenciadas pela ditadura
militar no Parana
Ian Batista
Meia×volta
1
volver
MEIA-VOLTA, VOLVER
Vozes silenciadas pela
ditadura militar no Paraná
Ian Batista
Prefácio: José Carlos Fernandes
Curitiba
2023
Copyright 2023 by Ian Batista. Todos os direitos reservados.
Copyright do prefácio 2023 by José Carlos Fernandes.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título
Meia-volta, volver - Vozes silenciadas pela ditadura
militar no Paraná
Capa
Bruno Aguiar
Diagramação
Davi de Sousa
Preparação e revisão
Ian Batista
Livro-reportagem produzido como requisito à disciplina
de Trabalho de Conclusão de Curso do curso de
Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal
do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. Vinicius Martins
Carrasco de Oliveira.
Curitiba, 2023.
CONTEÚDO
Prefácio.................................................................................9
Apresentação.....................................................................13
A Quinta República..............................................................16
Que bom te ver viva...........................................................24
A arte que cura...................................................................42
Arquivos vivos....................................................................62
Considerações finais..........................................................89
PREFÁCIO
PECAR PELO ESQUECIMENTO
José Carlos Fernandes
Um amigo me escreveu. Pedia desculpas. Nos últimos
tempos – em meio ao surto de bipolaridade que tomou conta
da Nação – decidiu se calar. Nada de postagens nas redes sociais.
Nenhum bate-boca com parentes e amigos. Pouco mais
velho do que eu, imagina que as pessoas próximas estejam
se perguntando por que diabos não se posicionou. Nenhum
brado contra os autoritários. Nem sombra de protesto contra
as ofensas gritantes a negros, mulheres e LGBTs. Nem um
pio contra os caretas. “Estou quieto, pois conheço os fascistas
mais de perto do que gostaria”, registrou, sem mais. Ele não
esquece – ou não se permitiu esquecer.
9
10
Há quem diga – com uma pá de argumentos – que o
Brasil anda condescendente com certos discursos bárbaros
por sofrer de amnésia. Nosso dom de esquecer, qual uma
falha de fabricação sem direito a recall, é ao mesmo tempo
nosso maior defeito e nossa maior qualidade. Das vantagens
do esquecimento, todo mundo sabe. Sofre-se menos.
Dentre as desvantagens, o esquecer vira “ignorar”, “desdenhar”,
ou qualquer outro verbo pretensioso e arrogante
fadado a nos livrar da obrigação de pensar e de sentir.
Não é a única hipótese. Alguns defendem que não esquecemos
coisíssima nenhuma. O que fizemos foi não
construir uma narrativa robusta sobre a ditadura civil-militar,
daí a desgraça. Ao contrário de nossos hermanos argentinos,
chilenos e uruguaios – que beiram a histeria ao
defenderem seu direito de nunca esquecer – nós, grosso
modo, contamos mal essa história, deixando que versões
se sobrepusessem aos fatos.
Falou-se pouco da ditadura na escola, nos púlpitos, nos
clubes, nas mesas – em família. De modo que tantos e tantos
brasileiros nascidos depois da abertura, em meados da década
de 1980, se mostram capazes de falar de tortura, do Doi-
Codi, do acordo MEC-Usaid, do exílio, do empastelamento
das instituições com a mesma fluidez com que tratam das
Guerras Púnicas ou as do Peloponeso. Ou seja, sem nenhuma.
De conversa mal costurada, os 21 anos de privação de
direitos viraram conversa de maluco.
Meu amigo – por ironia – se encaixa não entre os que
não se lembram de nada, mas entre os que se lembram
muito bem do que aconteceu. Daí preferir o silêncio, por
temer a sanha dos esquecidos. Formam uma categoria bem
particular. Sofrem de patologia própria: são autoconfiantes,
adotam explicativas simples para problemas complexos,
mostram-se pouco afáveis à dor dos outros. E por outros se
entenda, sobretudo, os que sentiram a ditadura lhes escorrer
pela pele, chegando aos ossos, depois de lhes consumir
os nervos. A ditadura iniciada em 1964 não foi igual para
todo mundo. E enxergá-la na perspectiva do outro, outra
coisa não é senão um exercício de humanidade.
Esse livro quer que mexamos os músculos atrofiados,
para – numa expressão tão cara aos anos 1960 – liberar a
mente. Só assim para reler a página já amarelada do passado,
mas que tanto diz sobre nós. O convite está feito.
Lembro do que ouvi, dia desses, numa entrevista, da jornalista
Miriam Leitão, presa política do regime militar. Disse
algo assim: “Não nos damos conta da importância do oxigênio,
a não ser que nos falte”. A frase é sua metáfora dos
“anos do chumbo”. Foi quando milhares de jovens entenderam
que oxigênio não era abstração. A falta de ar figura
entre as piores agonias. É acordar de noite assustado.
É olhar da janela e não saber aonde ir. Talvez se imaginar
sem ar seja uma boa brincadeira antes de ler as narrativas
que se seguem nesta obra. E depois dos pulmões reclamarem
– e todo o corpo pedir liberdade – teremos elementos
para fazer juízos. Poderemos até não nos lembrar de tudo
o que nos disseram sobre aquele tempo, mas nunca há de
nos faltar esforço para, como se diz, “puxar pela memória”.
É a maior das coragens.
José Carlos Fernandes é jornalista
e professor universitário.
11
APRESENTAÇÃO
“Estar sobre os ombros de gigantes” é uma expressão comumente
relacionada ao âmbito científico, trazendo a noção
de que avanços e descobertas apenas tornam-se possíveis a
partir do trabalho realizado por aqueles que nos antecederam.
À história política da humanidade o mesmo conceito
pode ser aplicado. Contudo, diferentemente das ciências
– sobretudo as exatas –, este ramo carece de linearidade à
medida que disputas de poder carregam consigo a ameaça
de retrocessos na ordem vigente, de modo a perpetuar ou
restabelecer ciclos de opressão e injustiça. Daí a fragilidade
de direitos obtidos em meio a regimes democráticos e a necessidade
constante de vigilância sobre tais conquistas.
“Olhar com atenção para o passado a fim de não repetir
os mesmos erros futuramente.” A essa altura, essa frase é envolta
por um inevitável ar de clichê. Porém, ouvi certa vez
que clichês são clichês por um motivo, e, às vezes, tentar desviar
deles é renunciar às descrições que nos trazem o mundo
como ele é. Na qualidade de construtor social da realidade, o
jornalismo se envolve intimamente com a história humana a
partir de seu potencial de manter vivas as narrativas pertinentes
à sociedade e refletir o mundo em sua essência.
13
“Meia-volta, volver” é uma voz de comando utilizada
para orientar a marcha militar em sentido contrário, um
giro em 180º. Nas páginas que seguem, escreve-se com o
intuito de olhar para trás, de lançar novos olhares sobre os
anos de chumbo a partir das histórias de gigantes que lutaram
pela democracia da qual desfrutamos hoje em dia. A
produção deste livro-reportagem construído com entrevistas
de personagens marcados pela ditadura militar brasileira
busca, por meio desses perfis, não apenas explicitar os horrores
sofridos durante o regime de exceção, mas também
serve de alerta e lembrete a respeito dos riscos que pairam
sobre um povo sujeito ao autoritarismo.
Poder dar meia-volta e aprender sobre contextos sombrios
a partir de lembranças “terceirizadas”, em vez das
próprias, é um privilégio inestimável. Uma valiosa herança
deixada por aqueles cujas feridas nunca irão cicatrizar – não
completamente. Para o leitor que, assim como eu, regozija
de uma vista relativamente confortável nos ombros daqueles
que vieram antes, fica o aviso a respeito do incômodo
trazido pelas linhas a seguir. Certificar-se de que tais memórias
sejam honradas, ao mesmo tempo em que sirvam de
combustível para que não se aceitem retrocessos, exige um
esforço ativo. Essa obra busca fazer parte desse exercício.
O autor.
14
CAPÍTULO 1
A Quinta
República
Breves considerações sobre a
ascensão do regime militar brasileiro.
A Quinta República
Em 2023, o Brasil completa 37 anos de uma democracia
ininterrupta. No período entre 1964 e 1985, o país vivenciou
uma ditadura com sucessivos governos militares marcados,
sobretudo, pelos traços nacionalistas e anticomunistas que implicaram
o cerceamento de direitos e garantias fundamentais
de sua população. Em relatório apresentado pela Comissão
Nacional da Verdade em 2014, 434 mortes e desaparecimentos
de responsabilidade estatal foram registrados oficialmente,
além dos milhares casos de repressão e tortura ocorridos.
Inserido em um contexto geopolítico de embate ideológico
devido à Guerra Fria, o Brasil possuía setores sociais
receosos por ideais vinculados, no espectro político, à esquerda,
como a reforma agrária e a nacionalização de setores
industriais. A tensão política alcançou novos níveis quando
Jânio Quadros, eleito presidente em 1960, condecorou
Ernesto Che Guevara, um dos líderes da revolução cubana,
ato que não foi bem recebido por grande parte da população
agravou ainda mais a pressão em seu mandato, do qual
renunciou no mesmo ano em que foi empossado.
19
Meia-volta, volver
Com o cargo vago, João Goulart, vice de Jânio, deveria
assumir o posto. No entanto, estava em viagem à China e
enfrentou a expedição de um veto à sua posse, articulado
por ministros militares. A manobra, que sustentava a ideia
de que “Jango” defendia preceitos de esquerda, violava a
Constituição e não foi aceita por vários setores da população,
que passaram a se mobilizar com manifestações e greves.
Diante da iminência de uma guerra civil, ocorreram negociações,
e o Congresso Nacional estabeleceu a proposta
de Emenda Constitucional nº 4, que instituiu o parlamentarismo
no Brasil. Dessa forma, permitiu-se a posse de Jango,
em 1961, ainda que com poderes limitados.
Em 1963, um plebiscito pôs fim ao sistema parlamentarista
republicano, e Goulart adquire plenos poderes presidenciais
para decretar suas medidas. Já no ano seguinte, Jango
anuncia reformas de base, a exemplo da desapropriação de
terras, da nacionalização das refinarias de petróleo e da taxação
de grandes fortunas. Somadas aos altos índices de inflação
e instabilidade econômica, herdadas do governo Juscelino
Kubitschek, tais medidas não foram bem vistas por setores
conservadores da sociedade brasileira, especialmente pelas
Forças Armadas, Igreja Católica e organizações da sociedade
civil, as quais temiam, mais do que nunca, a instauração de
um regime socialista similar ao praticado em Cuba.
Manifestações como a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade mobilizaram a população, e o discurso de
intervenção militar, a fim de depor Jango, ganhava cada vez
mais adeptos na sociedade. Na madrugada de 31 de março
de 1964, tropas militares marcharam para o Rio de Janeiro,
onde se encontrava o presidente, para destituí-lo.
20
A Quinta República
Viaturas, carros e blindados tomaram conta das ruas das
principais cidades do país. Sindicatos, associações e partidos
políticos que apoiavam as reformas do governo tiveram suas
sedes destruídas e tomadas por militares. Não demorou para
que Jango se exilasse no Uruguai. O Senado Federal declarou
vaga a presidência da república e empossou o presidente
da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, no cargo, ainda
que de maneira decorativa: quem passou a governar o país,
dali em diante, foi o Exército.
O regime começou com a perseguição aos políticos
opositores, cassando mandatos e suspendendo seus direitos
políticos. Os partidos foram dissolvidos e o bipartidarismo
instituído. Só existiriam, então, dois grandes partidos. O
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que seria considerado
como uma oposição, apesar de ter atuação limitada;
e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), dos próprios
militares. Essas medidas foram implantadas por meio dos
Atos Institucionais de número 1 e 2, que faziam modificações
que a Constituição Federal de 1946 não permitia.
Entre 1964 e 1967, o governo Castello Branco também
editou o Ato de número 3, para instaurar a eleição indireta de
governadores, e o de número 4, que convocou o Congresso
Nacional para votar a favor de uma nova Constituição, que
regulamentou e institucionalizou de vez o governo militar.
Foram criados órgãos de inteligência e controle social,
como o Serviço Nacional de Informações (SNI) e suas subdivisões,
o Centro de Informações do Exército (Ciex) e o
Cenimar, Centro de Informações da Marinha. Subordinados
ao SNI, estavam o Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS), Departamento de Operações e Informações (DOI)
21
Meia-volta, volver
e o Centro de Operação e Defesa Interna (CODI). Os nomes
formavam o aparelho repressor do regime e se tornaram conhecidos
por concentrarem ações de perseguição política,
prisões e torturas. Ser convocado a depor no Departamento
de Ação Política e Social significava, para muitos, a incerteza
de sair de lá com vida.
Quando, em 1968, o Ato Institucional número 5 foi
aprovado e promulgado pelo então presidente da república,
Artur Costa e Silva, inicia-se o que seria considerado o momento
mais duro da ditadura militar brasileira — os chamados
anos de chumbo. O dirigente do estado passou a gozar
de plenos poderes, o habeas corpus para prisioneiros políticos
foi abolido, entre outras medidas autoritárias.
No governo de Costa e Silva, a violência institucional entrou
em uma crescente. Ele aposentou juízes, cassou mandatos
políticos, acabou com a garantia do habeas corpus, legitimou
a repressão e intensificou as censuras aos veículos
de comunicação, que não podiam publicar conteúdos que
não passassem por análise prévia do governo. Para cobrir
os espaços vazios da diagramação do jornal, alguns veículos
optavam pela publicação de receitas de bolo. Assim, quem
comprasse o jornal na banca no dia seguinte sabia que ali
onde estava a receita era uma notícia que havia sido censurada
pelo governo.
O período deixou um marco na vida de muitas pessoas e
famílias que foram separadas com as vidas prematuramente
interrompidas de seus integrantes. A repressão e perseguição
dos opositores se intensificou, e ainda hoje a lista de pessoas
que foram declaradas desaparecidas soma centenas de nomes.
Um dos mais conhecidos casos é o de Stuart Angel Jones,
22
A Quinta República
filho da estilista Zuzu Angel. Existem dados sobre sua prisão e
tortura, em 1971, mas seu corpo nunca foi encontrado e, por
isso, ele figura, oficialmente, como um desaparecido.
Zuzu passou a denunciar as arbitrariedades do regime
militar e a cobrar o governo por um corpo que pudesse sepultar.
Em seus desfiles internacionais, levava criações com
elementos que representavam o contexto brasileiro, com canhões,
meninos amordaçados e pássaros engaiolados. Zuzu
morreu em um suspeito acidente de carro em São Conrado
(RJ), em 1976. Em 1998, a Comissão Especial Sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos, criada em 95, reconheceu o regime
militar como o responsável pelo “acidente”, provocado,
na verdade, por um carro pilotado por agentes do governo
que a jogou para fora da pista. Hoje, o viaduto em que ocorreu
a colisão leva seu nome.
As marcas existem, mas muitos não sabem ou preferem
esquecer. Diferente de outros países que passaram por regimes
autoritários, a exemplo da Alemanha ou do Chile, o
Brasil optou por seguir em frente sem seu passado e virar a
página da ditadura sem antes mesmo escrevê-la.
23
CAPÍTULO 2
Que bom
te ver viva
A história de Clair da Flora Martins, advogada e
militante pelas causas democráticas, que levou
sua luta pela liberdade às últimas instâncias ao
longo da ditadura e até os dias de hoje.
Meia-volta, volver
A justificativa formal era de que nós participávamos
de um partido que tinha intenção de derrubar a ditadura.
A acusação era essa"
26
Foto: Acervo Pessoal Clair da Flora Martins
Que bom te ver viva
CLAIR DA FLORA MARTINS
I) Uma líder nata
“Ilustre” e “brilhante” são as definições dadas ao nome
Clair, de origem latina. Destina-se à pessoa que, em momentos
difíceis, traz luz a si mesma e às pessoas à sua volta.
Flora, por sua vez, na antiga mitologia, está intimamente
ligada à deusa romana das flores e da Primavera, representante
do recomeço da vida e da capacidade de renascer após
estações adversas à sua própria essência. Também vindo do
latim é o sobrenome Martins, cuja significação está atrelada
a pessoas guerreiras, inclinadas a lutar pelo que acreditam.
27
Meia-volta, volver
Coincidência ou não, foi com essa combinação de nomes
que viria a ser chamada a filha de Waldomiro e Paulina
Martins, nascida em 10 de julho de 1945. Recepcionada
ao mundo na pequena cidade catarinense de Porto União,
distante 430 km da capital Florianópolis e na divisa com o
Paraná, Clair da Flora Martins não demoraria a fazer jus ao
seu nome logo nos seus tempos de escola — o que ela, nem
ninguém, provavelmente jamais imaginou é a extensão a
que chegaria a correspondência entre os títulos de sua certidão
de nascimento e a sua história de vida.
No Brasil dos anos 1960, das repressões e revoluções
culturais, a jovem Clair, já no início da década, exercia liderança
no Centro Acadêmico na escola de sua cidade, com
população de 30 mil habitantes à época. Embora rudimentar,
a organização era puxada pelos traços de influência da
estudante. Sua turma visitava favelas e possuía participação
social incomum para crianças e adolescentes da metade do
século XX. Eleita por toda a classe como representante,
apesar de sequer ter se candidatado, Clair já demonstrava
os atributos que viriam a ser indissociáveis de sua narrativa.
Em grande parte impregnadas em sua personalidade,
as características de comando e de ideais progressistas também
foram herdadas das lembranças que tinha de seu pai
ao ouvir Leonel Brizola, líder da esquerda brasileira, no
rádio, bem como João Goulart, presidente destituído pelo
Golpe Militar de 1964, cujos princípios foram moldando as
particularidades de Clair.
Em meio aos acontecimentos que conturbavam a política
brasileira e antecederam o Golpe de Estado da madrugada do
dia 1º de abril de 1964 pelos militares, Clair mudou-se para
28
Que bom te ver viva
Curitiba no início do mesmo ano, a fim de cursar o ensino superior.
Aos 18 anos, a catarinense havia sido aprovada nas faculdades
de Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR)
e de Direito, na Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Apesar de sua carga de engajamento político adquirido desde
os tempos de adolescente, Clair não tinha, em um momento
inicial, muita consciência do que significara a ação encabeçada
pelas forças armadas no Congresso Nacional.
O movimento estudantil, entretanto, não deixou que a
“caloura” demorasse a se inteirar a respeito da nova situação
na política nacional. Após morar em alguns pensionatos,
mudou-se para a Casa da Estudante Universitária de
Curitiba (CEUC), cuja ligação com a UFPR, forte até os dias
atuais, já era muito marcante nesse período. Clair almoçava
no Restaurante Universitário, participava de debates políticos
sobre as lutas pelas liberdades democráticas, organizava
assembleias e em alguns meses tornara-se aquilo que parecia
estar destinada a ser desde criança: uma referência política
e mobilizadora das ideias democráticas.
Sua participação política ficaria ainda mais acentuada
com sua filiação, em 1966, ao organização política Ação
Popular. Voltado para a discussão sobre um novo projeto
para o Brasil, que envolveria não apenas o restabelecimento
da democracia, mas também preceitos como a distribuição
de renda, o partido foi uma importante plataforma para dar
voz aos estudantes que tinham cada vez mais força por meio
de seus movimentos, inspirados principalmente pelas grandes
mobilizações que ocorreram em 1968, na França.
No berço dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,
estudantes e operários se uniram na maior greve geral da
29
Meia-volta, volver
Europa. Embora não estivessem inseridos em um contexto
ditatorial, os estudantes franceses exigiam reformas no sistema
educacional e acabaram alavancando setores trabalhistas
ao ponto de dois terços das forças de trabalho da nação
terem cruzado os braços diante dos abusos cometidos pelos
governantes na ocasião, sobretudo nas repressões policiais.
No Brasil, à mesma época, o panorama era mais sombrio.
Em 1969, após a instauração do Ato Institucional
Número Cinco (AI-5), a opressão ditatorial chegara ao seu
auge nos aparelhos estatais. Não à toa denominado de “anos
de chumbo”, o período durante o qual vigorou o AI-5 (de
1968 até 1978, com a revogação dos atos institucionais no
governo Ernesto Geisel) foi marcado pelo cerceamento de
liberdades individuais, do direito de reunião, bem como foi
dada, ao presidente, a prerrogativa de intervir nos Estados e
Municípios de maneira ilimitada e de ter controle total sobre
os recessos do Congresso Nacional.
Poucos meses após o estabelecimento do Ato, no início
de 1969, estava marcada a cerimônia de formatura de Clair
no Câmpus Reitoria da UFPR. Formaturas são, de maneira
geral, um momento muito aguardado pelos formandos e,
com Clair, a história não era diferente. Sua vida, certamente,
mudou a partir daquele dia, mas não da maneira com
que estava acostumado ou podia esperar qualquer estudante
que havia concluído o ensino superior.
II) Diploma de foragida
Em 24 de outubro de 1975, o jornalista naturalizado brasileiro
Vladimir Herzog foi convocado pelo governo militar
30
Que bom te ver viva
para depor, perante a sede do Destacamento de Operações
de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna
(DOI-CODI), em São Paulo, acerca de seu envolvimento
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), clandestino na
época. No dia seguinte, compareceu de maneira espontânea
ao local. Para quem já havia saído de seu país de origem
devido ao antissemitismo — seus pais eram judeus na
Iugoslávia — durante a Segunda Guerra, haveria de se pensar
que o pior de uma vida de opressão ficara para trás.
Assim, Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura,
chegou a ser informado de que seria preso, mas não fugiu.
No mesmo dia em que se apresentou, o Serviço Nacional
de Informações recebeu a notícia, em Brasília, de que “cerca
de 15h, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI-
CODI”. Como averiguado não muito depois, em um caso
que se tornou emblemático e gerou muita comoção popular,
Vladimir foi assassinado asfixiado pelos militares, não sem antes
sofrer sessões de tortura com choques elétricos e outros
instrumentos. A cena de sua morte, além do mais, havia sido
forjada pelos seus interrogadores como se o jornalista de 38
anos tivesse se enforcado.
Seis anos antes, quando a repressão estava ainda mais intensa
do que na metade dos anos 70, Clair recebeu, no dia de
sua formatura, uma intimação do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) - mais um órgão governamental com
a incumbência de “manter a ordem pública” durante a ditadura
- para comparecer à delegacia e prestar depoimento.
“No começo de 1969 foi o ato da formatura na Reitoria.
Nessa noite, logo ao sair do evento, recebi uma intimação do
DOPS para comparecer e prestar depoimento. Mas era uma
31
Meia-volta, volver
insegurança muito grande para qualquer cidadão ir a uma
delegacia de política social.” Por seu trabalho junto aos movimentos
estudantis, bancários e operários que se iniciavam na
capital paranaense, Clair tornou-se uma pessoa visada pelo
controle militar e suas “subversões” trouxeram a repressão à
sua face em uma noite que havia sido reservada para a alegria.
Por estar ciente dos riscos que seu comparecimento implicaria,
a recém-formada não atendeu ao chamado e, a partir
dessa data, adquiriu o status de foragida perante os órgãos de
segurança pública nacional. A atenção voltada a Clair fez com
que a militante não permanecesse por mais muito tempo em
Curitiba, onde era conhecida e poderia facilmente ser presa
por policiais a qualquer instante.
Os perigos de permanecer na capital paranaense, aliados ao
seu reconhecimento dentro do partido como ativista de grande
articulação social, fizeram com que fosse transferida para a
capital paulista na clandestinidade. Sua missão em São Paulo,
além da preservação da própria vida, seria a atuação junto aos
setores operários e camponeses, entendidos pelo Ação Popular
como áreas com um déficit de engajamento social. Por meio
da conscientização coletiva, a ideia do partido era organizar os
trabalhadores para reivindicações da categoria no tocante às relações
trabalhistas e às liberdades democráticas.
Uma das dirigentes do partido, Clair também participava
da coordenação de associações de moradores, com o objetivo
de discutir a situação política do país e criar novos focos
de resistência. Grande parte dos ideais do grupo eram distribuídos
pelo jornal “Libertação”, e a comunicação dos militantes
do partido com a sociedade se deu de maneira mensal
por meio do impresso, de 1968 a 1975, sem nunca ter sido
32
Que bom te ver viva
apreendido pelo regime. O trabalho de divulgação também
era realizado via pichações públicas com palavras libertárias,
ou pelas panfletagens nas fábricas, mas da maneira mais cautelosa
possível, pois poderiam ser reconhecidos a qualquer
momento e denunciados.
“Alguém iria chamar a polícia e nós iríamos ser presos.
Então nós fazíamos os panfletos em mimeógrafos clandestinos.
Colocávamos esses panfletos no arame furado e de
madrugada nós íamos nas portas das fábricas colocar esses
arames com os panfletos. Aí, a pessoa que entrava pegava o
panfleto na entrada. Não havia ninguém distribuindo, mas
os panfletos estavam lá. Era a forma de comunicação.”
Entre os ativistas, a comunicação era feita de modo ainda
mais minucioso com um sistema sofisticado de informações.
As reuniões clandestinas, por exemplo, dificilmente seriam
na casa de algum militante. Quando eram, marcava-se um
ponto de encontro em determinado lugar e os participantes
eram levados vendados, sem saber a exata localização.
O cuidado também dizia respeito à mais íntima particularidade
de uma pessoa: o próprio nome. Perseguidos pelos
órgãos policiais, os militantes viam como imprescindível a
utilização de codinomes. A partir da obtenção do status de
foragida, Clair passou a ser conhecida inicialmente como
Olga. Todo cuidado era pouco. Dessa forma, evitava-se que
uma pessoa fosse presa e acabasse delatando as outras.
Toda a cautela, entretanto, não foi suficiente para proteger
Olga das garras da repressão, sobretudo a partir do dia
21 de novembro de 1971. A fim de se reunir com outros militantes,
sua ida ao Largo Paissandu, no centro de São Paulo,
viria a mudar sua vida para sempre.
33
Meia-volta, volver
III) Temperada a aço
Na chegada ao Largo, acompanhada do companheiro
de partido Hasiel da Silva Pereira, Clair foi pega de surpresa
pela traição. Um dos militantes, de nome Hugo, havia
sido preso há algum tempo. Também era do comitê da direção
do partido, e por isso conhecia muitos militantes e
tinha pontos de encontro combinados com eles. O encontro
havia sido proposto por Hugo, que, descobriria Clair,
havia mudado de lado. No Paissandu, aguardavam-nos os
agentes do DOPS, que não se fizeram de rogados — os espancamentos
começaram ali mesmo, em via pública, diante
dos olhares dos transeuntes.
A partir do ano de 1968, o Departamento de Ordem
Política e Social era comandado por Sérgio Paranhos
Fleury, o delegado Fleury. Perseguidor implacável, ele era
considerado um dos mais notáveis agentes da manutenção
do regime ditatorial. Participou da ação de captura do
guerrilheiro Carlos Marighella e foi acusado de chefiar os
esquadrões da morte, organizações paramilitares de perseguição
e extermínio de militantes e perseguidos políticos.
Também foi apontado como um dos comandantes da
Chacina da Lapa, em São Paulo, e da Chacina da Chácara
São Bento, no Recife, operações de execução de opositores
do regime e dirigentes de partidos.
O cotidiano brutal dos prisioneiros políticos foi conhecido
de perto por Clair. Forçados a socos e pontapés a entrar
no carro, ela e Hasiel foram levados para as dependências
do DOPS. Dos militantes presos nos últimos dias, era a
que tinha um cargo mais importante, e foi imediatamente
34
Que bom te ver viva
conduzida a uma cela solitária. Os próximos quarenta dias
foram marcados pela tensão, dor e violência às que foi submetida
nas sessões de interrogatório e tortura. Privada de
alimentação, Clair foi espancada, atada ao pau de arara, recebeu
choques elétricos e teve os órgãos genitais tocados
pelos agentes. Os interrogatórios eram divididos entre integrantes
do DOPS e do Centro de Informações da Marinha
(Cenimar). Os últimos adotavam um método que alternava
as agressões físicas com um profundo estudo da atuação dos
militantes, que muitas vezes excedia o conhecimento que os
próprios presos tinham a respeito do paradeiro e das ações
de seus companheiros de partidos. Diante das vozes exaltadas
que exigiam saber onde morava um e qual era o nome
usado por outro, era comum que o torturado nem mesmo
soubesse a resposta. O fluxo de informações entre os opositores
da ditadura era segmentado: reuniões não eram marcadas
nas residências, e, se alguém mudasse de endereço,
era melhor que não o informasse a ninguém.
“Eu me lembro de um dia em que eu estava em um pau
de arara e já não aguentava mais ficar naquela posição, os
choques elétricos. Eu disse, ‘Fulano mora em tal lugar, tal
rua’. Então me tiraram. Logicamente não era verdade o que
eu havia dito. Mas eu já tinha saído da posição, dei uma respirada.
‘Não, não são verdadeiras essas informações’. Por
quê? Porque você jamais poderia dar o endereço de alguma
pessoa. Eles entravam na casa das pessoas, mesmo que não
fosse uma militante. Iam invadir, levar aquela pessoa presa.
E poderiam até torturar.”
Clair sempre repetia a mesma história: tinha chegado a
São Paulo no dia anterior à prisão, não era dali, não tinha
35
Meia-volta, volver
parentes que morassem na cidade. Ao cabo dos quarenta
dias, as torturas cessaram. Não sabe dizer com exatidão
quanto tempo permaneceu presa; talvez seis, talvez oito meses.
Era ré em dois processos, em São Paulo e em Curitiba, e
foi então transferida à cidade onde havia iniciado as atividades
de militância pelas liberdades democráticas para prestar
depoimento. O juiz responsável por seu caso era, por sorte,
segundo suas palavras, um liberal. Acusada de associação
com mobilizações populares com intenção de derrubar o
governo, sua prisão preventiva não havia sido decretada, o
que tornava irregular sua permanência na prisão.
A partir dali, tudo aconteceu em questão de horas. Se fosse
para a casa dos pais, seria facilmente localizada. Foi ajudada
pelo irmão médico, que a internou em um hospital da capital
paranaense por uma noite. Clair acordou na manhã seguinte,
mais uma vez como uma fugitiva. Estava novamente na clandestinidade.
A prisão preventiva foi enfim decretada, mas já
era tarde: a dirigente do Ação Popular já ia longe, e buscaria
refúgio na casa de parentes no interior. Iniciava-se uma nova
fase de sua vida de resistência, uma que não era tão entusiasmante
como os trabalhos de panfletagem e mobilização operária
que havia realizado em São Paulo, antes da prisão.
A militante passou a viver de forma reservada. Permanecia a
maior parte do tempo dentro de casa, onde não podia ser vista.
Os familiares que lhe ofereceram abrigo não eram exatamente
opositores do regime. Segundo ela, não tinham realmente
consciência do que significava sua necessidade de se esconder.
Nas cidades do interior, era comum que os habitantes não
sentissem os efeitos do cerceamento das liberdades que traz
uma ditadura como os moradores dos centros de mobilização
36
Que bom te ver viva
política. Aceitaram-na em consideração a seus pais, e Clair viveu
escondida os próximos anos de sua vida até que ocorreu
sua absolvição, pouco tempo antes da promulgação da Lei da
Anistia — em 1979. Mais tarde, conseguiu emprego em uma
fábrica de caixas de papelão em Canoas, no Rio Grande do Sul,
e mudou-se para um pensionato em Porto Alegre.
“Você está começando uma vida, não tem muita estrutura
e tem todos os impedimentos para você trabalhar, além
do medo da sociedade e das pessoas de se relacionarem com
pessoas que eram visadas. Então essas pessoas tinham um
temor de se aproximar das pessoas que eram perseguidas
pelos agentes da ditadura, mesmo que tivessem sido absolvidas,
porque eu era uma pessoa ingrata do regime”.
No trabalho, era discreta, e os colegas de fábrica não
imaginavam seu passado ou sua situação política. Naqueles
anos, as relações sociais tinham que ser conduzidas com
máxima cautela. Não pôde visitar nenhum companheiro de
partido, e o medo de colocar as pessoas com quem convivia
em perigo era uma constante. As ruas exibiam cartazes com
as fotos de militantes procurados pelos órgãos de segurança.
Em geral, eram aqueles que participavam de sequestros
e troca de reféns pela liberação de estudantes e ativistas. O
clima de insegurança pairava sobre aqueles que resistiam:
ônibus e mesmo carros particulares eram vistoriados, pessoas
eram paradas e revistadas a todo momento nas ruas.
Em 1975, aumentaram as discussões sobre as possibilidades
de uma anistia e a mobilização popular pelo fim do
regime militar. Quando a Lei 6.683, mais conhecida como
Lei da Anistia Política, foi promulgada em 1979, João
Baptista Figueiredo era o presidente — o último do período
37
Meia-volta, volver
ditatorial. Os direitos políticos dos perseguidos pela repressão
foram restituídos, suas condenações revertidas e os funcionários
públicos excluídos puderam voltar ao serviço, e as
vítimas puderam entrar com pedidos de indenização.
Segundo relatório da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados do ano de 2018, cerca
de 16 mil brasileiros recebem atualmente, por meio da Lei,
algum tipo de reparação. Mas a ditadura deixou marcas que
a anistia nunca foi capaz de apagar. Muitos dos que foram
presos e torturados não se livrarão nunca das sequelas psicológicas.
Não foi o caso de Clair, que avalia os dias passados
na prisão em São Paulo como um episódio marcante de sua
vida que teve um lado ruim e um lado bom.
“Um lado é negativo porque se conheceu e se vivenciou
uma situação diferenciada de prisão, tortura. Do outro lado,
significa uma experiência de vida que se pode levar para os
outros, levar uma mensagem de que nós não podemos admitir
a tortura, esse tipo de regime autoritário. São lições
que a vida nos dá, e isso nos tempera, acho que essas pessoas
que sofreram esse tipo de arbitrariedades estão mais calejadas,
estão temperadas a aço”.
IV) Doutora Clair
Clair da Flora Martins não se arrepende de nada.
Considera-se, acima de tudo, uma militante social, incapaz de
deixar a frente de uma luta. Com o fim da ditadura, começou
a exercer a profissão para a qual tinha se formado, antes de seu
primeiro contato com a ação da repressão. É hoje uma renomada
advogada trabalhista. Depois de Olga e Tânia, assumiu
38
Que bom te ver viva
seu terceiro codinome: Doutora, como é chamada pelos milhares
de trabalhadores que já defendeu nos tribunais. Conta
que, quando se apresenta como Clair, muitas vezes não é reconhecida.
O título, afirma, “ficou impregnado”.
Ela presidiu a Associação Brasileira dos Advogados
Trabalhistas (ABRAT), de 1998 a 2000, e fundou a Associação
Latino–Americana de Advogados Trabalhistas. Naquele ano,
foi eleita vereadora de Curitiba pelo Partido dos Trabalhadores
(PT). Em 2002, elegeu-se deputada federal com 50.109 votos
e tornou-se a primeira mulher a representar o Paraná na
Câmara dos Deputados.
Também reencontrou Hasiel, companheiro de partido
preso na mesma ocasião, no Largo do Paissandu. Tiveram
três filhos e, hoje divorciados, têm sete netos, o mais novo
de apenas um ano de idade.
Sobre as perspectivas políticas para o Brasil, Clair é categórica
ao afirmar que vivemos tempos difíceis. Lamenta
que a ditadura como parte da história do país não tenha,
nunca, sido discutida com a profundidade necessária. A perda
de milhares de vidas e o patrulhamento político e ideológico
de toda uma geração necessitam, conta, estar vivos na
memória. Mas ela também acredita no que chama de roda
dialética da história: anos após ser torturada pelos agentes
do Cenimar, foi homenageada pela Marinha pelos serviços
prestados como deputada. Não apenas ela, mas diversas pessoas
perseguidas e torturadas por defenderem ideias democráticas
vieram a ocupar cargos políticos com a redemocratização,
inclusive o de presidente.
“Eu acho que isso faz parte da história da minha vida. Um
episódio marcante em que há os dois lados. Um é negativo
39
Meia-volta, volver
por ter experienciado a tortura. Mas também do outro há
uma experiência de vida da qual se pode contar uma história,
levar adiante uma mensagem”, revela.
Para o futuro, mobilização. A advogada espera que o
Brasil encontre a capacidade de se organizar e promover uma
real discussão de ideias no campo político. O atual apoio nostálgico
de setores da sociedade a uma ditadura militar assusta,
mas não se engane: Clair não pensa nunca em desistir.
“Tenho 73 anos e espero fazer muita coisa pelo meu país
e pelos meus netos ainda”.
40
Que bom te ver viva
PARA SEMPRE
ATIVISTA:
Clair construiu seu próprio
escritório de advocacia,
com renomada atuação
em Curitiba.
Foto: Ian Batista
41
CAPÍTULO 3
A arte
que cura
Os impactos da repressão a partir da perspectiva de Júlio
Manso Vieira, hoje artista plástico, a quem foi renegada
uma infância comum e foi obrigado a ver sua estrutura
familiar ser devastada pelo implacável autoritarismo.
Meia-volta, volver
“
Eu não pensava em outra coisa a não ser
soltar meu pai. Olha, o tempo da minha vida...
É o tempo de lutar pela democracia, pela
liberdade do meu pai."
44
Foto: Acervo Pessoal Júlio Manso Vieira
A arte que cura
JÚLIO MANSO VIEIRA
I) Filho de Revolucionário
Nascido na pequena cidade de Alfenas, Minas Gerais, em
maio de 1961, Júlio Manso Vieira não possui muitas memórias
de uma infância “comum”. Seu pai, Ildeu Manso Vieira,
desde moço tinha no sangue um processo de mudança social
muito forte. Em busca da igualdade social, ainda estudante,
filiou-se ao Partido Comunista (PCB) e considerava a
democracia um imperativo muito forte.
A construção da memória de Júlio no período em que
se deu o Golpe de Estado passa muito por sua mãe, Nair
Fernandes, que lhe descrevia a fuga de Furnas-MG rumo ao
Rio de Janeiro como algo tão espetacular quanto traumático.
A companheira de um revolucionário vive como revolucionária
e experimenta as consequências do sonho do outro.
Devido à sua militância marcante na época, Ildeu era muito
visado e teve de driblar as forças estatais imediatamente.
Com uma charrete puxada a cavalo, o casal segue rumo à
capital fluminense onde Nair havia nascido e possui parentes
que poderiam ajudá-los naquele momento. Acompanhados
de seus quatro filhos, entre eles o pequeno Júlio, com apenas
45
Meia-volta, volver
3 anos na época, viajaram durante cerca de 50 horas até chegarem
ao destino. Vivendo escondidos, a atmosfera era de
tensão não apenas pelo que poderia acontecer com o núcleo
familiar caso descobertos, mas também com aqueles que
lhes ajudaram no momento de necessidade.
A fim de melhor articular a resistência, Ildeu foge rumo
a Maringá, onde ficaria 6 meses sozinho antes de organizar
a transferência da família para perto de si. Em uma comunidade
rural a cerca de 20 quilômetros da cidade, a família, enfim,
se instala. As lembranças mais nítidas de Júlio começam
a vir pouco depois, por volta de 1966 e, de imediato, tinha a
noção de que havia algo errado em sua rotina. Ao mesmo
tempo em que percorria as estradas de chão anexas ao sítio
rumo à escola rural que frequentava, ouvia seu pai usando
codinomes para se relacionar na comunidade e o percebia
muito assustado, num eterno “olhar por cima dos ombros”.
Júlio também ficava confuso quando chegavam ao sítio
pessoas desconhecidas e que lhe eram apresentadas como
primos de Alfenas, mas que ele e seus irmãos nunca antes
haviam visto ou ouvido falar. Jovens em seus 20 anos, vindos
de Minas Gerais e que estavam por ali a passeio, fazendo
uma visita. Ildeu sempre fez questão de os introduzir como
parentes. A curiosidade de criança fazia com que Júlio constantemente
se questionasse a respeito desses parentes que
por anos frequentavam sua residência por períodos curtos
de tempo. Famílias grandes eram muito comuns no Brasil
do século XX, mas algo não parecia certo naquela dinâmica.
Anos mais tarde, os irmãos viriam a perceber que, na
verdade, seus “primos” de Alfenas eram foragidos do
DOPS e outros órgãos de repressão que possuíam atuação
46
A arte que cura
implacável em Curitiba, sobretudo em 1968 a partir do AI-5.
Essas pessoas precisavam sair do Brasil e a rota de fuga para
o Chile passava pelo Paraguai, mas também pelo norte do
Paraná. Ildeu fazia questão, mesmo contrariando as ordens
do Partido Comunista, de abrigar refugiados em um ato humanitário
que ficou conhecido entre os militantes ao ponto
de recorrerem ao sítio quando necessário.
Júlio tem a convicção do homem prestativo e idealista
que seu pai era, um homem para quem a família e a luta
pela democracia estavam acima de tudo, tão importantes
quanto a educação. As limitações da escola rural que seus
filhos tinham de frequentar se acentuavam com o passar do
tempo e o irmão mais velho de Júlio estava prestes a entrar
no ensino médio, mas a instituição mais próxima que oferecia
o segundo grau estava em Maringá, a 20 quilômetros de
distância. As estradas de chão, que tanto guiaram necessitados
ao sítio de Ildeu e lhe representavam luta e humanidade,
passaram a se tornar um empecilho para a formação cidadã
de seus próprios filhos. A demanda por um lugar maior era
evidente; manter os filhos naquela situação de precariedade
simplesmente não era opção para um homem que tinha na
família um de seus mais importantes pilares.
É com essa motivação que Ildeu organiza as malas e
traz Júlio e toda a família para Curitiba em 1971. Apesar do
enorme perigo que um grande centro representava à clandestinidade,
sobretudo quando comparado a uma área rural
afastada no interior do estado, Ildeu compreendia que
prover uma qualidade de vida melhor aos filhos era sua
obrigação. Na capital, conseguiu um emprego de promotor
de vendas de imóveis com a experiência adquirida após
47
Meia-volta, volver
vários anos trabalhando, em paralelo com a militância, na
área agropecuária e comercializando os produtos que fabricava,
atuando como representante.
Júlio o acompanhara de perto nesses negócios ao longo
da infância. “Era um homem batalhador. Ao mesmo tempo,
não abandonou a militância”, comenta. O filho não conseguia
entender por que, em certas visitas, o pai conversava muito e
fechava bons negócios, mas em outros momentos o seu contato
era breve, entregando à pessoa envelopes que retirava do
fundo do banco traseiro do carro. Mais tarde, viria a saber que
eram exemplares do jornal proibido “Voz Operária” e documentos
com informações dos comunistas na resistência.
Secretário do Partido Comunista do Paraná, Ildeu possuía
enorme importância no estado para articular forças
capazes de combater a opressão e organizar a resistência
democrática. Entretanto, ao mesmo tempo, os órgãos de
repressão do regime também se articulavam fortemente e
possuíam um alvo muito específico em mente: o PCB. Esse
enfoque ficou evidenciado quando, em setembro de 1975, o
DOPS e DOI-CODI deflagraram a Operação Marumbi no
Paraná, uma caça sem precedentes às pessoas acusadas de
envolvimento com o PCB.
A ofensiva militar abrangeu pelo menos 12 cidades no
estado e prendeu mais de 100 cidadãos, dos quais 65 viriam
a ser indiciados. Embora tenha conseguido manter a clandestinidade
por 11 anos, Ildeu foi detido na ocasião. A imagem
da prisão do pai geram uma ruptura em Júlio e os anos
seguintes lhe trazem um novo propósito à sua existência,
bem como as feridas de quem sentiu na pele a tortura de ter
alguém sob tortura.
48
A arte que cura
II) O militante preso do lado de fora
Devido à pouca idade, a fuga para o Rio de Janeiro, em
1964, não firmou lembranças muito sólidas em Júlio, que teve
que ouvir da mãe os principais relatos sobre a saga. Em contrapartida,
as memórias do que viria a ocorrer 11 anos depois estão
gravadas para sempre em sua mente. Praticamente saindo
de casa, agentes da repressão sequestraram Ildeu e seu irmão,
que foram imediatamente levados para um quartel militar na
Praça Rui Barbosa em setembro de 1975. A deflagração da
Operação Marumbi varreu o estado paranaense em busca de
integrantes do Partido Comunista e as lideranças, ainda que
clandestinas, foram alvo certo da operação.
Júlio viu seu pai e irmão serem raptados pela opressão
estatal com capuzes em suas cabeças. Ao chegarem no centro
de tortura, os militares fizeram o filho assistir à sessão à
qual submeteram Ildeu por meio de um vidro que separava
as salas em que cada um se encontrava. Socos, tapas, sessões
de choque. Foram usados muitos artifícios para que o revolucionário
revelasse o que os torturadores queriam saber:
nomes de outros envolvidos nas atividades do Partido, informações
sobre o funcionamento, detalhes das mobilizações
e próximos planos. Além do tormento físico, ameaçavam
Ildeu psicologicamente ao dizerem que seu filho mais velho,
de apenas 17 anos na época, e que era obrigado a visualizar
a o martírio, passaria pelo mesmo.
Ao mesmo tempo, a casa de Júlio foi ocupada por cinco
agentes do DOPS, que vasculhavam e remexiam em tudo
que encontravam pela frente em busca de documentos que
comprovassem a atuação de Ildeu frente ao PCB. A família
49
Meia-volta, volver
permaneceu sob sua custódia e sofreu ameaças ao longo das
agonizantes horas que se passaram naquele fatídico dia. Ao
amanhecer seguinte, Júlio viu seu irmão aparecer em casa,
acompanhado pelos agentes de tortura. Em um primeiro momento,
a mãe procura desesperada por sinais de espancamento
e machucados pelo corpo; no entanto, após alguns momentos,
a família pôde perceber que as suas feridas eram internas: o rosto
apavorado de quem vira o pai pular e gritar em uma cadeira
com choques elétricos revelava tudo que se precisava saber.
Embora seu irmão tenha sido liberado no dia seguinte,
Júlio ficou semanas sem receber novas notícias a respeito do
pai. A rotina era apavorante: constantemente se viam perseguidos
e vigiados por agentes da repressão, de fácil reconhecimento
em seu bairro. “Quando se prende um revolucionário,
prende-se também a sua família”, afirma Júlio. Com a liberdade
cerceada, buscavam informações sobre o sequestro junto
à Polícia Militar, que não se mostrava nada prestativa. Sem
ninguém a quem recorrer, foram longos e apavorantes os
dias sem saber o paradeiro do pai. Ainda estava sendo torturado?
Teria sido transferido para São Paulo por sua liderança?
Estaria vivo? Ao mesmo passo em que odiava ter de se deparar
com essas perguntas, não conseguia deixar de fazê-las. No
vigésimo dia após o sequestro, enfim, chega um comunicado
à sua casa: seu pai estava vivo, preso no DOI-CODI e visitas
estavam sendo agendadas com as famílias dos reclusos. Júlio
teria a chance de rever seu pai novamente.
As memórias cultivadas na adolescência costumam dizer
respeito a festas, encontros com amigos, descobertas sobre o
corpo, a respeito dos sentimentos; não para um filho de revolucionário:
as lembranças que Júlio traz desse período de
50
A arte que cura
sua vida são as de um garoto com o pai detido pela repressão.
Coincidentemente, a visita realizada a Ildeu não foi familiar para
Júlio apenas pelo laço sanguíneo compartilhado. Estudante no
Colégio Dr. Xavier da Silva desde que chegou na capital paranaense,
Júlio tinha que andar um quarteirão para realizar as aulas
de educação física que aconteciam em uma cancha pertencente
ao quartel da Polícia Militar. Ele e seus amigos sempre adoraram
aquele espaço, pois representava o momento de descontração
quando podiam jogar bola pelas manhãs. “A gente era
moleque e adorava a Polícia Militar, porque ia jogar bola dentro
da quadra deles, sempre tratavam a gente muito bem. Então eu
conhecia bem aquele lugar”. Naquele mesmo quartel em que
conseguia ter alguns momentos que mais se aproximavam do
que devem ser a infância e a adolescência, Júlio viria a se reencontrar
com seu pai.
A relativa ambientação com o local, contudo, não serviu
para amenizar a ansiedade que sentia. A demora para a aparição
dos presos causava aflição a todos os familiares presentes.
Júlio se perguntava o que poderia estar acontecendo. A dúvida
se transformava em ansiedade; a ansiedade, em aflição; a
aflição, em atitude. Júlio decide descer até a quadra em que
jogava bola para saber onde estavam os presos. Com o quartel
mapeado em sua cabeça, sabia da existência de um pavilhão
enorme e de uma grande sala, onde acreditava que os presos
poderiam estar. Pela grade, consegue escalar até uma parede
na altura do terceiro andar em que, através de uma janela,
consegue visualizar os cerca de 60 presos detidos.
Entre alguns outros conhecidos, Júlio finalmente avista
Ildeu. A memória da ocasião lhe é muito nítida e marcante até
hoje, e é definida por ele de maneira categórica: a percepção
51
Meia-volta, volver
que teve foi de um campo de concentração. Estavam todos
“semimortos”, com dificuldades de levantar para falar, com a
dignidade arrancada e suprimida até o limite do que poderiam
permanecer respirando. Ainda atônito com a cena que estava
diante de seus olhos, Júlio percebeu que foi avistado por um dos
presos que sinaliza ao amigo Ildeu: “aquele não é o seu filho?”.
Rapidamente, desce correndo com medo de que algum oficial
também se desse conta de sua presença e volta para junto da
mãe, a quem compartilha o que viu, causando-lhe choque.
Cerca de uma hora depois, os presos começam a subir
para a visita. A impressão que Júlio teve ao observá-los de
longe se acentua frente a frente, com as cicatrizes externas e
internas dando novas feições àqueles homens que há pouco
tempo lutavam em liberdade e com enorme ímpeto pela democracia
no Brasil. Para Júlio, o impacto do encontro não se
deu apenas pelas sequelas que Ildeu visivelmente carregara
ao longo das semanas de tortura, mas por passar a compreender
mais profundamente sobre o lado revolucionário do
pai. Ao longo dos 30 minutos em que puderam conversar,
Ildeu demonstrou, sobretudo, preocupação com a família
e os filhos. Se estavam estudando, se estavam conseguindo
dinheiro. “Aqui tem uma lista de pessoas que vocês podem
procurar. Precisam de dentista? Tem esse Doutor aqui.”
Para o revolucionário, o outro tem muita importância.
Após o impactante encontro, os presos são condenados e
transferidos para a Prisão Provisória do Ahú, que serviu como
o cárcere privado dos presos políticos no Paraná dos anos 70.
Foram três anos de encarceramento para Ildeu, três anos de visitas
todos os sábados para Júlio. Era um dia de alegria e choradeira
para os presos e seus familiares. Levavam pão, levavam frutas.
52
A arte que cura
Apesar das nítidas e crescentes debilitações físicas e mentais, os
militantes recepcionavam suas visitas de braços abertos e com
muita felicidade. A quadra de futebol do presídio tornou-se local
certo de encontro ao passo em que eram organizadas partidas
entre os familiares contra o time dos presos. “A gente jogava bola
bem, fazia gol, mas também deixava eles ganharem. Eles ficavam
muito felizes, me lembro de muitas partidas”.
A mesma atividade desportiva que trazia uma fuga momentânea
da realidade, contudo, também não lhes deixava
esquecer de onde estavam. Para chegarem à cancha, era necessário
passar pelos corredores internos do presídio, em que
se encontravam os presos das alas-comuns: ladrões, assassinos,
estupradores e traficantes. Em sua maioria adolescentes,
os visitantes que jogavam bola com os presos políticos eram
constantemente assediados sexualmente pelos outros detentos,
ouvindo comentários sobre seus corpos, sobre atos sexuais.
Não era atípico que alguns detentos se masturbassem em
cima das grades ao verem os meninos de shorts. A situação alcançou
tamanha tensão que, em certo momento, os garotos
foram proibidos de jogar de calção pelo diretor do presídio.
Ao atestar todas as situações adversas pelas quais seu
pai passara, Júlio não teve outra escolha a não ser abraçar a
militância, inspirado pelo espírito revolucionário de Ildeu.
Durante a adolescência, sempre foi representante de suas
turmas, integrava e organizava agremiações, era o escolhido
para hastear a bandeira no hino nacional. Com a prisão de
seu pai, o fervor de atuar na luta pela democracia alcançou
novos patamares dentro de Júlio. Em certo momento passou
a ter suas ações monitoradas no Xavier da Silva, sendo
impedido de atuar na representação de sua classe.
53
Meia-volta, volver
Em 1976, já no Colégio Estadual do Paraná (CEP), Júlio estava
sedento em lutar pela democracia e pela liberdade de seu
pai. Na 8ª série, passou a integrar comissões e chapas visando a
modificar o Grêmio Estudantil, que tradicionalmente era mais
alinhado à direita na época. Com a transformação da organização,
sua atuação política–estudantil constantemente lhe rende
chamadas à direção da escola e ameaças vindas de agentes infiltrados.
Nada disso o fazia diminuir o ritmo, entretanto. Pelo
contrário: as represálias serviam de combustível para o jovem
militante, que não tardou a organizar passeatas e manifestações
que reivindicavam a redemocratização no país, o que influenciou
movimentos e grêmios estudantis por todo o Paraná.
A agitação de uma recém-adquirida vida pública era compartilhada
com o caos familiar que passara a viver desde a prisão do
pai. No primeiro ano após a condenação, sua mãe se separa de
Ildeu. A separação foi algo muito forte para a família, sobretudo
quando a mãe sai de casa. Coube a Júlio, com apenas 15 anos, a
incumbência de encorajá-la a buscar uma vida melhor caso fosse
o que desejava, tamanho o sofrimento que via nos olhos da mulher
que passou a cuidar sozinha de quatro filhos. Apesar da dor
da ruptura, Júlio e seus irmãos carregam a noção de que a mãe
fez o que deveria ter feito: “A relação deles estava muito difícil. A
mulher que se dispõe a viver com o revolucionário, vive como
revolucionária. Você vive o sonho do outro.”
No entanto, mesmo com a saída de casa, Nair buscou ser
presente, levando comida e dinheiro para os filhos sempre
que possível, apesar das objeções de Ildeu, a quem a separação
trouxe ferimentos irreparáveis. Júlio atesta que a saída
da mãe do lar doeu mais ao pai do que a sua própria prisão,
uma vez que o socialista busca dar conta da humanidade e,
54
A arte que cura
para isso, precisa primeiramente dar conta da família. As batidas
de seu pai com a cabeça na parede, chorando e gritando
quando soube da notícia foram a mais nítida demonstração
do trauma que estava vivendo, e mostraram a Júlio como o
revolucionário entende que precisa segurar sua família.
Após a saída da mãe, os irmãos passaram a alugar quartos
na casa para conseguirem pagar o aluguel e transformaram sua
residência em um pensionato. Recebiam muitas pessoas de esquerda
que necessitavam de um lugar para morar, com as quais
possuem contato até os dias de hoje e que viriam a se tornar
professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sociólogos
e militantes envolvidos com a luta pela democracia até
os dias de hoje. Também passaram a receber ajuda da Anistia
Internacional que, ciente da situação no país, buscava dar suporte
às famílias dos presos políticos. Duas mulheres representando
a entidade passaram a deixar cestas de comida semanalmente
na casa dos irmãos. Pães, batatas, ovos: era possível
perceber o zelo das funcionárias credenciadas que passavam no
mercado para montar o auxílio que representava enorme alívio
para os irmãos que agora se encontravam órfãos.
O Colégio Estadual passou a ser a casa de Júlio. Embora
sua residência tenha recebido um bonito significado ao serem
alugados os quartos para militantes que abraçavam as
mesmas causas, não era mais o lar no qual havia (relativamente)
boas lembranças com os pais e irmãos. O que deveria
ser um lugar de refúgio físico e emocional passou a
representar uma doída pintura da destruição que a ditadura
militar causara em sua estrutura familiar. Alguns irmãos criticavam
o pai por deixar a mãe ir embora; outros se mostravam
profundamente magoados com o fato de Nair ter
55
Meia-volta, volver
buscado uma outra vida para além da repressão. A escassez
de recursos e a incerteza financeira não ajudavam a tranquilizar
o ambiente. Apesar das eventuais ajudas da mãe e do
dinheiro da Anistia, o montante mal era suficiente para ir
além de pagar o aluguel e comprar comida.
Diante desse cenário, Júlio passou a encontrar na arte
uma maneira de não apenas se expressar e tentar curar as
feridas de tudo que passava cotidianamente, mas também
de lhe fornecer proventos para uma vida mais digna. Tinha
como passatempo fazer pinturas de paisagens: montanhas,
rios, praias, fazendas. Todo sábado de manhã, ia até a feirinha
na Praça Tiradentes para vendê-las e sempre conseguia
uma quantia razoável em retorno, que lhe permitia comprar
itens básicos para um jovem de sua idade, como roupas e sapatos.
Também guardava parte do dinheiro para realizar viagens
pelo Paraná e Brasil na sua luta pela liberdade do pai. A
militância realizada no Colégio Estadual ecoava por todo o
país, e foi seu Grêmio Estudantil, encabeçado por Júlio, que
organizou um Congresso Nacional para a reconstrução da
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, UBES, além
de inúmeros outros atos políticos e manifestações a favor da
democracia nos anos que se sucederam.
III) Mutilado internamente
Após cumprir seus três anos de prisão, Ildeu é finalmente
um homem livre. Apesar do alívio ao ver acabar
o encarceramento de seu pai, Júlio entende que ainda há
muito pelo que lutar e não cessa seu envolvimento em movimentos
populares mesmo após concluir o ensino médio
56
A arte que cura
no CEP. Nos anos de 1980, o militante articulava-se ativamente
junto ao Diretório Central dos Estudantes (DCE)
da UFPR no planejamento de greves estudantis, encontros
entre lideranças políticas e todo tipo de atos contrários
ao regime. Sua atuação havia sido tão extensa que parte
de seus atos só lhe voltaram à memória quando obteve
acesso em 2000, via requerimento, à sua ficha na Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), a qual Júlio ostenta com
orgulho até os dias de hoje.
Depois do meio estudantil e em paralelo à sua militância,
a vida de Júlio passou a se direcionar para as artes. Além
de sua participação no Grêmio do CEP, Júlio frequentava
uma escolinha de artes na instituição, demonstrando desde
cedo aptidão para executar as técnicas que eram passadas
pelos professores. Organizava exposições com os alunos e
professores e se sentia muito bem ao trabalhar com uma forma
de expressão diferente de sua vigorosa atuação política.
No início da década de 1980, marcava presença no Centro
de Criatividade da Prefeitura no Parque São Lourenço, onde
eram ministradas oficinas de cerâmica, pintura e escultura.
Como possuía habilidade na área, Júlio possuía uma bolsa
para frequentar todas as aulas e sempre era destaque no desenvolvimento
das tarefas.
Na mesma época, Júlio viria a se tornar pai de Carolina
aos 20 anos, fato que fez com que “despertasse para o trabalho”
e passasse a buscar uma maneira de prover para sua
família por meio das habilidades artísticas. Entre as áreas
nas quais demonstrou talento, a serigrafia viria a ditar os
próximos passos de sua vida. A técnica é um processo de impressão
à base de estêncil na qual a tinta é forçada por meio
57
Meia-volta, volver
de um rodo ou espátula para a superfície abaixo. Em 1983,
é aberto um concurso público na Fundação Cultural para
professor de gravura de serigrafia, no qual Júlio é aprovado
e começa a trabalhar a partir do ano seguinte. A iminente
redemocratização no Brasil e um emprego com estabilidade
não significaram descanso para Júlio, no entanto. Já no
primeiro ano de funcionário, organiza junto a militantes do
Partido dos Trabalhadores (PT) a Associação dos Servidores
Municipais de Curitiba, visto que sindicatos ainda eram vedados
na época.
Após cinco anos, se separa da primeira esposa com quem
teve mais uma criança, Gabriel. Atualmente Júlio é casado
com Marisa Vieira, que conheceu ao cursar Artes Plásticas
na Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Desse novo relacionamento,
nasceram Catarina e Natália, hoje com 30 e 22
anos, respectivamente. A consolidação de uma família e a
empregabilidade na sua área de maestria significaram o primeiro
indicador de estabilidade que Júlio conhecera desde
que se entende por gente, uma vez nascido já em fuga da
ditadura militar.
Algum tempo depois, contudo, os anos de chumbo viriam
a cobrar um novo preço de Júlio. A liberdade de Ildeu
fez com que o ex-preso se deparasse com um mundo do
avesso. A casa estava ocupada por estudantes que alugavam
quartos de seus filhos. Desempregado, solteiro e com uma
dor inenarrável, tanto física quanto psicológica, foi atrás de
um amigo de confiança em Mandaguari, interior do estado.
O Dr. Osvaldo Alves se certificou que Ildeu fosse atendido
por uma enfermeira que tratou de seus ferimentos, da carne
e do coração, e que mais tarde seria sua esposa. O pai
58
A arte que cura
de Júlio tocava uma pequena loja de roupas, sem capital de
giro, levando as coisas com muita dificuldade. Dedicava boa
parte de seu tempo a escrever para o jornal da cidade e à
publicação de seus livros, além de representar o Paraná na
Associação Brasileira de Anistiados Políticos.
Durante anos, Ildeu pesquisou a trajetória de dezenas de
militantes que haviam passado por torturas e seu levantamento
apontou como maior causa de doenças e óbitos entre as vítimas
de tortura os males do aparelho digestivo. Devido ao incessante
sofrimento e stress causados pelas práticas do militares, o
sistema digestório dos presos para de trabalhar e começa, aos
poucos, a apodrecer por dentro. Ildeu Manso Vieira morre de
câncer de intestino, preso por 29 dias, dessa vez a tubos e aparelhos
em uma UTI em Maringá, em maio de 2000.
Após tudo que havia enfrentado em sua adolescência,
Júlio se vê novamente diante da opressão militar, ainda que
há 15 anos os homens de farda já tenham deixado o comando
do país. O falecimento de seu pai revive as dolorosas memórias
de uma vida que poderia ter sido diferente; deveria
ter sido diferente. Contudo, não seria dessa vez que o Artista
Plástico e Arte Educador deixaria de combater a tirania do
passado e suas tão vívidas consequências.
Em 2007, organiza sua própria exposição na Casa João
Turin em Curitiba, junto ao Governo do Estado e à Secretaria
de Estado da Cultura, chamada “Interna Mutilação”. Nela,
Júlio traz a público suas esculturas – criadas com materiais
como cera de abelha, parafina e outros objetos naturais e industrializados
– que servem como canal para relatar a prisão
de seu pai por longos 36 meses. A amostra foi um sucesso e
rendeu excelente repercussão na época.
59
Meia-volta, volver
Hoje em dia, as obras que ajudaram a narrar o sofrimento
de toda uma família compõem o ateliê pessoal do artista,
em sua casa na capital paranaense. Com muito carinho,
cuidado e orgulho, as peças estão armazenadas longe dos
holofotes que um dia lhes cercaram, mas ainda têm muito a
dizer para quem está disposto a ouvir. Para sempre com as
marcas da ditadura, Júlio acredita ser essencial que se faça
luz sobre esse obscuro capítulo da história brasileira: “há
muito lastro pela frente. A história desses homens ainda não
foram contadas devidamente.”
60
A arte que cura
A DOR EXPOSTA:
Artista plástico, Júlio transformou
os traumas vividos em obras de
lembrança e resistência contra o
regime.
61
Foto: Acervo Pessoal Júlio Manso Vieira
CAPÍTULO 4
Arquivos
vivos
Dono de um acervo incomparável sobre a história
do regime no Paraná, Antônio Narciso Pires de
Oliveira passou a dedicar toda a sua vida após a
redemocratização para que os horrores sofridos por ele
jamais se façam presentes na sociedade novamente.
Meia-volta, volver
“
A gente não achava que o fuzil era a
grande ferramenta de luta. A grande arma do
revolucionário era a tribuna, a interlocução,
a capacidade de entender e passar pra frente
o entendimento."
64
Foto: Acervo Pessoal Antônio Narciso Pires
Arquivos vivos
ANTÔNIO NARCISO PIRES DE OLIVEIRA
I) Papai Noel veste vermelho?
“Eu sou um personagem que trabalha para manter o resgate
da história. A memória é uma disputa ideológica, e a sua
construção depende da educação e da luta dos oprimidos.”
Entre as frases que poderiam sintetizar a experiência de
conversar com Antônio Narciso Pires de Oliveira, mais conhecido
por Narciso, talvez essa seja a que melhor faz jus à
sua essência e que remeta com mais fidedignidade às raízes
de sua criação. Apesar de não vir de uma família de militantes
e de, no futuro, ser tido como a “ovelha negra” por
seus familiares ao se envolver com política, o paranaense de
73 anos nascido em Cornélio Procópio, no norte do estado,
sempre teve a educação muito estimada no convívio do lar.
O valor extraordinário dado aos estudos ainda lhe é fresco
na memória, com o tradicional ritual de chegar da escola,
sentar numa mesa e ter os seus deveres — bem como de
seus três irmãos — verificados pelos pais.
65
Meia-volta, volver
No Brasil dos anos 50 e 60, não era comum que se desse
tanto valor à formação acadêmica de crianças, sobretudo
nas áreas rurais. Ajudar no lar, seja com afazeres domésticos
ou com complemento de renda via trabalho braçal era uma
realidade muito presente para as famílias não pertencentes
à elite daquela época. Em sua realidade, entretanto, Narciso
diariamente tinha a tabuada tomada pelo pai, funcionário
público pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), e as lições de português acompanhadas pela mãe,
que, embora focasse na criação dos filhos e nos cuidados da
casa, possuía uma capacidade de escrita muito boa.
Após o cumprimentos das tarefas, em seu tempo livre o
garoto tinha liberdade para ser criança. Narciso considera-
-se privilegiado pela infância que viveu, farta de brincadeiras
nas ruas das cidades interioranas pelas quais passou. Devido
ao cargo público de seu pai, teve que se mudar algumas vezes,
passando por São Jerônimo da Serra antes de se estabelecer
em Apucarana para a maior parte de sua vida escolar.
As memórias que pôde construir nesses tempos mais simples
ainda lhe vêm à mente como se tivessem acontecido
ontem. O sorriso leve e fácil que marca seu rosto durante os
relatos carrega informações tão ricas e pertinentes quanto as
minuciosas descrições que faz de quando era criança.
A sensação de que certas lembranças são construídas
por aqueles que as detém talvez seja um privilégio subvalorizado.
Há uma ideia de autonomia e de controle sobre o
próprio destino — ou de que este, pelo menos, não trouxe
fardos traumáticos consigo — que se mostram intrínsecos
a essa análise sobre o passado. Em sua infância e primeira
adolescência, Narciso acumulou recordações que nutre até
66
Arquivos vivos
hoje de maneira completamente distinta às que sucederam
o Golpe. Se os relatos não fossem suficientes, a mudança
instantânea em seu semblante ao se transportar alguns anos
para o futuro demonstra que as memórias referentes aos
anos de chumbo não foram por ele construídas, mas sim
duramente impostas às custas de sua própria humanidade.
Seu envolvimento com a política não se deve à tomada
do poder pelos militares, entretanto. Narciso lembra estar à
mesa com a família, jantando, quando receberam a notícia
da queda de Jango e o olhar de profunda tristeza com que
seu pai olhou para toda a família. “Isso não é bom mesmo”.
A pesada expressão, que não estava habituado a ver, definitivamente
indicou que algo de grave havia tomado curso, mas
o fato de seus pais não serem civis militantes não fez com
que aquele episódio desencadeasse um impacto tão imediato
na sua vida cotidiana, como fez na daqueles que estavam
no olho do furacão e possuíam certa reputação na militância
de esquerda à época do golpe.
Paralelamente à conturbada cena política brasileira, o
estudante demonstra protagonismo dentro de seu colégio,
tomado por um espírito de liderança que carrega consigo
desde que consegue se lembrar. Integrante do grêmio estudantil,
idealizou a criação do Clube do Livro para organizar
as leituras e orientar a distribuição das obras da biblioteca,
promovendo a aquisição de novos exemplares para o acervo
sempre que possível. Embora ainda não se identificasse necessariamente
como um indivíduo de esquerda, Narciso recorda
que sempre teve o pensamento alinhado a esse espectro
ideológico. Quando via a Igreja perto de sua casa abrigar
pessoas em situação precária, começava a estabelecer suas
67
Meia-volta, volver
primeiras ideias sobre as desigualdades sociais. A vivência
escolar com seus amigos, aliada à leitura espontânea de algumas
das obras de Marx e Engels, fez com que fosse formando
suas convicções com o passar do tempo.
“Ninguém fez minha cabeça para ser um cara de esquerda.
Eu simplesmente me encontrei. Meus amigos e eu nos encontramos
porque todos nós tínhamos uma característica em
comum: éramos leitores vorazes de livros, bons estudantes.”
A consciência política que acumulara tão cedo na vida
se manifestava em ocasiões diversas. Enquanto muitos adolescentes
da mesma idade se divertiam no Natal, por exemplo,
Narciso havia estabelecido uma relação bem diferente
com a data comemorativa desde que tinha 13 anos. O emprego
público do pai não lhe permitira uma vida luxuosa,
mas em comparação ao resto de seus amigos, havia conforto
e o acesso a certas regalias, como ter um presente embrulhado
debaixo da árvore na última semana de dezembro.
Contudo, aquelas noites festivas não são marcadas em sua
cabeça pela emoção de abrir a caixa, mas sim do triste olhar
que via em muitos daqueles que lhe eram próximos e queridos.
“O Papai Noel não veio pra mim”, diziam. Ainda que
fosse muito novo à época, assumia a dor de quem não tinha
condições de ser presenteado e encarava a data com certa
depressão, em detrimento da alegria. Tão indignado quanto
interessado pela situação dos colegas, buscou estudar sobre
o assunto e sobre as problemáticas do capitalismo.
Narciso sempre teve a busca por conhecimento e os
estudos como seus pilares. Mais do que ferramentas para
compreender o mundo à sua volta, representavam parte
indissociável de sua essência como ser humano e passaram
68
Arquivos vivos
a guiar o caminho que viria a trilhar. De fato, Narciso não
começou a lutar contra a ditadura imediatamente após os
rumos políticos do país mudarem drasticamente, mas a sua
formação pessoal e social já indicavam uma inevitável rota
de colisão que marcaria a vida do estudante e a transformaria
para sempre.
II) Diamantes lapidados ao acaso
O gosto que Narciso tomou pelas páginas em decorrência
de sua criação transcendeu o ato da leitura para virar
ações práticas. Já com 17 anos, acumulara milhares de horas
em dezenas de artigos que tratavam sobre o subdesenvolvimento
brasileiro e as discrepâncias de cunho social evidentes
no país. Em 1967, arquiteta a fundação do Clube Cultural de
Apucarana junto com seus amigos, fomentando o estabelecimento
de um acervo de obras tal qual havia feito na biblioteca
de sua escola, porém ainda mais ambicioso. Além dos livros,
fez questão de originar um clube de oratória dentro da
instituição. “Sempre tive a ideia de que a oratória é a grande
ferramenta revolucionária. Falar bem, ter ideias claras, não
ser confuso. Queríamos fazer a defesa de algo com clareza.”
A estrada que o estudante começou a trilhar ainda na
adolescência se tornou, enfim, uma via de mão única quando
chega 1968, “O ano que não terminou’’, para citar a publicação
de Zuenir Ventura. O autor do livro é categórico ao
afirmar que a “geração de 68’ foi a que mais caro pagou por
sua rebeldia, através de prisões, tortura, exílio e até morte”.
Zuenir traça o paralelo do contexto brasileiro em relação ao
que se via ao redor do mundo na mesma época: protestos
69
Meia-volta, volver
contra a Guerra do Vietnã, movimentos de viés identitário,
reivindicações de contracultura. Também é o ano em que
Narciso decide integrar a dissidência do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Com o novo contexto de socialização e de
contatos estabelecidos, passou a ter uma uma compreensão
muito mais profunda e crua a respeito do Regime Militar.
Além dos aspectos cruéis que mais rapidamente vêm à
mente quando se pensa na ditadura — a exemplo das perseguições,
censuras, torturas e afins —, Narciso também começou
a compreendê-la como um grande instrumento de
manutenção das disparidades sociais, da exploração exacerbada
do homem pelo homem, da miséria no campo; representava
um impedimento para que mesmo reformas admissíveis
no próprio sistema capitalista, como a agrária, fossem
discutidas via instrumentos democráticos, agora mais suprimidos
do que nunca.
Contudo, Narciso não se encontra dentro (do que restou)
do movimento. Ingressante no grupo em janeiro de
1968, logo em outubro deixaria, junto com seus principais
amigos, de participar das reuniões e buscaria novos rumos
dentro da militância. Organizava reuniões secretas na zona
rural nos arredores de Apucarana, mas tanto a notoriedade
que começou a juntar com o passar do tempo na pequena
cidade, quanto a intensificação da repressão militar, tornavam
essa missão cada vez mais árdua. Com a implementação
do Ato Institucional número 5 em dezembro do mesmo
ano, Narciso vê seu tempo na região se esgotar. A mesa do
lar que, há poucos anos, lhe servira como símbolo de acolhimento
e porto-seguro no dia a dia, agora havia se transformado
em um local onde se mantinha atento às janelas e
70
Arquivos vivos
aos barulhos externos para verificar se forças armadas não
viriam bater à sua porta. As histórias de pessoas arrancadas
de suas casas e que não voltariam tão cedo eram muitas.
Em março do ano seguinte, muda-se para Curitiba com
os camaradas mais próximos. Ao mesmo tempo em que havia
mais efetivo policial na capital, existia maior área para
dispersão. Era mais fácil manter a discrição, ou o mais próximo
disso, em um grande centro do que em uma região
onde o alvo de perseguição seria mais certeiro, onde o boca
a boca da vizinhança possui menos margem de erro. A despedida
dos pais e das terras apucaranenses, difícil na mesma
proporção que necessária, abriu um novo capítulo que fez
com que Narciso se articulasse na luta contra a ditadura em
um outro patamar.
Já na capital paranaense, envolve-se rapidamente com
frentes estudantis e não demora a construir contatos sólidos
com representações estudantis secundaristas e universitárias.
Aprovado no vestibular de Jornalismo na Universidade
Federal do Paraná e bolsista no curso do Teatro Guaíra, começou
a ser reconhecido rapidamente naquele meio devido
à sua marcante atuação na propagação das ideias contrárias
ao regime autoritário. Organizava e executava pichações
com frases contrárias à ditadura, responsabilizava-se pela
organização de reuniões e, sobretudo, fazia uso da oratória
para mobilizar e informar estudantes e militantes a respeito
do que estava acontecendo. Sua vida girava em torno da
luta pela democracia no Brasil, do primeiro minuto em que
acordava ao último antes de dormir.
Entretanto, tamanha atuação faria com que não tardasse
a se encontrar na mira das forças da repressão. Certo dia
71
Meia-volta, volver
estava chegando na pensão em que morava, ao lado do Passeio
Público, quando pôde avistar de longe uma movimentação
fora do ordinário. Não era incomum que aquela região tivesse
grande tráfego de pessoas, sobretudo na hora do almoço, mas
os inúmeros carros do exército e o sinal de invasão no edifício
eram o claro e inequívoco alerta de que sua hora enfim havia
chegado: “vieram me buscar”, pensou. Pela obtenção de
documentos e testemunhos, haviam descoberto seu nome e
o endereço onde morava. Entretanto, o fichamento não era
completo: os militares ainda não sabiam como era seu rosto,
pois simplesmente não havia fotografias suas.
Devido a essa vantagem, Narciso conseguiu manter a
calma e passou andando normalmente, como se não tivesse
nada a ver com a pensão. Se corresse, seria o indicativo para
os guardas que permaneciam no nível da rua de que estava
escondendo algo. Com o coração pulsando rapidamente, não
deu meia-volta, seguiu no mesmo lado da calçada em linha
reta e virou a esquina sem olhar para trás. A partir desse momento,
estava oficialmente na clandestinidade. Narciso entendia
que permanecer em Curitiba não era mais uma opção e
buscou fugir da capital o mais rápido possível, mas pegar um
ônibus, não importando o destino, era muito arriscado em razão
da alta probabilidade de que a rodoviária estivesse sendo
vigiada. Dessa forma, precisava desesperadamente conseguir
uma carona com algum conhecido, mas que não soubesse
que estava sendo procurado pelo Dops, para evitar hesitações
ou, no pior cenário possível, ser traído e entregue ao Estado.
Consegue fugir de Curitiba alguns dias depois, partindo
rumo a Apucarana em um Simca Esplanada, sedã de luxo
que carrega consigo o clássico charme dos carros produzidos
72
Arquivos vivos
na década de 1960. Conhecia um estudante de medicina da
UFPR chamado Daniel, que estava de saída para o norte paranaense
e com quem acertou os detalhes para conseguir a
fundamental carona em direção ao interior, sem que o colega
soubesse que qualquer minuto a mais em Curitiba significava
um grande risco à sua vida. O relativo alívio assim
que caem na estrada acabaria imediatamente ao fim da jornada
de quase 400 km. Quando chegam ao destino, Narciso
vê a cidade repleta de policiais em um verdadeiro “sufoco”,
como define. Após ser deixado por Daniel, evita ir diretamente
à casa dos pais, pois certamente estavam sendo vigiados
naquele contexto. Esconde-se nos arredores da entrada
da cidade e espera o anoitecer para, a pé, vagar pela região
em busca de seus companheiros militantes da adolescência.
Com as ruas amplamente iluminadas pela lua, não estava
nas condições perfeitas para se locomover sorrateiramente,
mas ainda era uma opção melhor do que sob a luz do dia. Os
policiais estavam em menor número e suas rondas menos frequentes,
então Narciso acreditou não obter chances melhores
do que essa tão cedo e passou a trilhar a região pela qual cansara
de correr e brincar com os amigos quando adolescente.
Sua tensão chegou ao ápice quando ouviu, por suas costas,
alguém dizer “psiu, ei, você!”. Em uma rua aberta, não teria
para onde correr e fugir, e a probabilidade de saberem a sua
aparência em Apucarana, onde sua família possuía inúmeras
fotografias em álbuns, era mais do que certa. Conformado
com a captura, virou-se para a voz que surgiu na escuridão,
mas para sua surpresa não era para ser conduzido à traseira
de uma viatura: Ita, participante esporádico de algumas reuniões
entre militantes de esquerda, reconheceu Narciso.
73
Meia-volta, volver
“Eu te reconheci quando você passou ali naquela casa há
umas quadras. Você deveria estar procurando alguém que
morava naquela esquina. Está todo mundo preso, você precisa
sair da cidade imediatamente”. Apesar de já suspeitar
em algum nível, a notícia de que todos seus colegas estavam
presos acendeu um novo alerta em Narciso, que comentou
não possuir nenhum lugar para ficar. Lembrou-se,
contudo, que possuía conhecidos aliados em Londrina que
poderiam lhe ajudar. No momento, era sua melhor opção.
Como a cidade dista apenas 55 km de Apucarana, conseguiu
uma carona de Ita naquele exato momento para obter auxílio,
e foi exatamente o que encontrou: recebeu abrigo na
casa do jornalista Edilson Leal, que escrevia para a Folha de
Londrina na época. Embora estivesse extremamente grato
pelo acolhimento, Narciso entendia que aquela situação não
era sustentável e buscava articular uma fuga para São Paulo,
destino comum de militantes perseguidos pelas autoridades
nas proximidades da divisa no norte do Paraná.
Na miséria, sem estrutura e passando fome, Narciso
completou 21 anos na clandestinidade em 8 de outubro.
Poucas semanas depois, recebeu notícias de que seus companheiros
presos em Apucarana e levados até Curitiba haviam
sido soltos. Exausto, compreendeu que não poderia
mais fugir sozinho e como seus colegas — com quem compartilhava
história similar — não estavam mais sob cárcere
privado, decidiu se apresentar perante às autoridades para
ter sua situação passada a limpo. Entregou-se e imediatamente
foi transferido para a capital paranaense, algemado
em um carro da Polícia Federal no banco de trás. Quis o destino
sorrir para Narciso naquele momento, pois, ao longo
74
Arquivos vivos
da viagem, um dos agentes, reconhecendo seu sobrenome
“de Oliveira”, virou-se e perguntou:
- Você é de Apucarana, né? Por acaso conhece um farmacêutico
chamado Álvaro Gentil de Oliveira?
- Sim, ele é meu tio.
Com espanto, o agente continuou:
- Seu tio? Não vai me dizer que você é filho do Zequinha?
Esperando pelo pior, Narciso confirmou. Zequinha era
o apelido de seu pai durante a infância na Bahia. O que
estava acontecendo?
- O seu pai morou no Rio de Janeiro trabalhando com
lapidação de diamantes mais tarde?
- Sim, isso mesmo.
O agente, virado para o banco de trás com surpresa em seus
olhos, revelou para Narciso que era muito amigo de seu outro
tio, Enéas, com quem criou laços profundos na capital carioca.
- Nós éramos tão amigos que naquela época eu fui junto
à Bahia para visitar os pais dele. Conheci seu avô, acabei conhecendo
seu pai na época, mas era muito amigo mesmo do
seu tio Enéas, era meu melhor amigo.
Com aquilo na cabeça, Narciso enfim chega a Curitiba.
O preso com quem compartilhara o banco traseiro, militante
do PCB, foi levado enquanto ele permaneceu no carro.
O agente Rios (enfim pôde ver o nome na farda) passou um
tempo conversando dentro da sede militar e, após alguns
minutos, voltou ao carro para assegurar a Narciso:
- Pode ficar tranquilo. Não vai lhe acontecer absolutamente
nada.
Narciso foi levado para o DOPS Departamento de
Ordem Política e Social, onde ficou preso durante 15 dias,
75
Meia-volta, volver
sendo submetido a interrogatório. Nada de tortura. Em
nenhum momento vivenciou as horripilantes histórias das
quais se sabia acerca de esquerdistas capturados. Contava
histórias fantasiosas aos militares: dizia que fugiu porque ficou
com medo, que rodou o Brasil fazendo uso de caronas,
que não recebeu ajuda de ninguém. Em sua ficha oficial, não
havia nada que indicasse que houvesse organizado algo de
fato, ou conspirado contra a nova ordem estabelecida. Tudo
que tinham era seu nome e proximidade com os militantes
de Apucarana. Muito convincente, foi liberado ao fim desse
processo sem nenhum problema. Nunca havia ouvido falar
sobre histórias de bondade ou clemência por parte dos militares,
pelo contrário: conhecia relatos de torturas de meros
familiares de suspeitos; quem diria dos próprios capturados.
Narciso nunca mais viu o Agente Rios, mas não lhe resta
dúvidas de que sua primeira passagem ilesa pela prisão teve
algo a ver com a amizade que o militar havia estabelecido
há muitos anos com seu tio. “Fui tratado como se fosse um
acidente de percurso, não como um militante. Cinco anos
depois, seria preso novamente. E a história seria outra, completamente
diferente.”
III) Militantes, militantes… panfletos à parte
Liberado da prisão em 1971, Narciso encontra-se diante
de um cenário com o qual ainda não havia se deparado em
sua vida: desamparo completo na esfera educacional. Após
sua prisão provisória, perdeu a bolsa de estudo no Teatro
Guaíra e a vaga no curso de Jornalismo da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Sem as mínimas condições de
76
Arquivos vivos
sustento, sozinho, em uma capital, decide voltar a Apucarana
para tentar retomar a sua vida sob a pressão dos anos de
chumbo. Com as organizações destruídas pelo regime e inúmeros
companheiros desaparecidos e/ou mortos (com posterior
confirmação na redemocratização), optou por tocar
a vida dentro da maior normalidade que conseguisse. A fim
de sobreviver, conseguiu se estabelecer como professor em
um colégio no pequeno município de Mamborê, a 30km de
Campo Mourão.
Lá, pôde encaminhar uma sequência relativamente tranquila
em sua conturbada vida ao lecionar português durante
3 anos. Se em Apucarana já havia um perceptível abismo em
relação a Curitiba no que diz respeito aos seus tamanhos,
em Mamborê era quase como viver em um mundo paralelo,
sobretudo naquela época. Foi ao longo desses anos em que
conheceu sua primeira esposa, Maria Helena, com quem se
casou em 1973 e viria a ter dois filhos mais adiante. A tentativa
de estabelecer a normalidade passou a ser a única opção
viável àqueles cuja vida já havia sido tocada pelas ríspidas
mãos do regime, visto que os órgãos de repressão obtinham
muito êxito em devastar os grupos de resistência dos quais
tomavam ciência.
Assim como em outros momentos na vida de Narciso,
contudo, tudo viria a mudar de maneira muito repentina.
A exigência da prestação de antecedentes políticos para
ministrar aulas chegou até a realidade de Narciso, e ele
teria que se apresentar perante ao Dops para retirar a certidão.
Talvez os últimos anos sem atuação na militância
e a sua passagem sem maiores problemas pela prisão fossem
suficientes para que não lhe fosse imposta mais essa
77
Meia-volta, volver
barreira, mas não foi o que aconteceu: teve os registros
negados pelo órgão e passou a estar impossibilitado de
seguir dando aulas na escola. Novamente sem maiores
opções, buscou o regresso a Apucarana em 1974, pois lá,
pelo menos, possuía conhecidos. Em meio ao anonimato,
pois o DOI-CODI estava mais estabelecido do que nunca
no município, conseguiu abrir uma empresa de serigrafia,
com a qual pôde ganhar um bom dinheiro antes de
sua nova prisão.
O local que alugava para sediar o novo negócio pertencia
a Arnaldo Ramos, integrante do Partido Comunista
e responsável por organizar sua atuação política em
Apucarana. Como conhecia a história de Narciso, Arnaldo
buscou sua ajuda, em 1975, para coordenar a organização.
Narciso chegou a hesitar, visto que tinha planos de ir para
a França no ano seguinte a fim de cursar ciências políticas
na Universidade Paris Nanterre, próximo à capital do
país. Mesmo assim, Narciso aceitou o chamado e ajudou
o militante a deixar o partido nos conformes antes de sua
ida ao exterior. Porém, Narciso não viajaria para a Europa
tão cedo. No contexto da implacável Operação Marumbi,
as autoridades tomaram notícia de que estava novamente
atuando ativamente na mobilização contra a ditadura, e
dessa vez sua família veio a sofrer danos colaterais com a
prisão e tortura de um de seus irmãos. Os militares sabiam
que não havia nada ali para ser descoberto, mas o recado
para Narciso foi dado claramente: “ou você aparece, ou
toda a sua família será presa e torturada”.
Escondido até então desde sua volta à cidade, viu-se
obrigado a se apresentar aos militares; não havia mais outra
78
Arquivos vivos
alternativa. Não disposto a ver nenhum outro membro de
sua família torturado pelas autoridades, procura seu amigo
advogado e presidente do MDB, Michel Soni. No dia 16 de
outubro de 1975, Michel, acompanhado de Narciso em seu
escritório, telefona para o quartel para comunicar que o militante
procurado se apresentaria dentro de alguns instantes.
A decisão havia sido tomada e não havia mais como voltar
atrás. Mesmo com a iniciativa de informar as forças armadas
de sua entrega, logo perceberam uma viatura em frente ao
local para levar Narciso à prisão. Imediatamente, colocaram
um capuz em sua cabeça, puseram-no no carro e o levaram
até um suposto local clandestino, mas Narciso não tinha dúvidas
de que era o próprio quartel do exército, pois já havia
ficado naquela mesma cela.
Torturado durante a noite, no dia seguinte foi imediatamente
transferido, com um óculos escuro que tapava
toda sua visão, ao centro de tortura na capital paranaense.
Diferentemente de sua primeira viagem sob custódia 5 anos
antes, dessa vez não foi acompanhado por integrantes da
Polícia Federal: agentes do DOI-Codi conduziram Narciso,
em um fusca, ao local clandestino de torturas, conhecido
como Clínica Marumbi. De difícil localização precisa até os
dias atuais — visto que os presos políticos entravam e saíam
de lá vendados, na clandestinidade —, Narciso atesta que
quem por lá passou acreditava ficar em uma sede destinada
à veterinária do exército, na rua Dr. Pedrosa, no centro da
cidade. O recinto era um casarão de madeira velha, assim
como suas celas, e lá dentro os militantes conheceram e sentiram
de perto o lado mais sombrio e perturbador da repressão
militar. “Eu passei… um tempo difícil”, sintetiza Narciso
79
Meia-volta, volver
com uma pausa e pesar em sua voz.
Após mais de uma semana na Clínica, apesar de não saber
dizer ao certo por quantos dias foi detido e torturado no
lugar, Narciso é levado ao Quartel General da Polícia Militar,
no cruzamento da Avenida Marechal Floriano Peixoto com
a Avenida Presidente Getúlio Vargas, onde oficialmente esteve
sob a prisão do regime. Ao todo, foram 24 meses em
cárcere: 9 meses no Quartel General, seguidos de mais 7 no
Quartel da Tropa de Choque, localizado no bairro Tarumã.
Durante o resto da pena, cumpriu a punição no Presídio do
Ahú. A experiência adquirida ao testemunhar e sentir na pele
os métodos truculentos do Estado fez com que compreendesse
que, para os torturadores, “torturar também cansa.”
Narciso foi um dos últimos presos trazidos pela Operação
Marumbi, e acredita que, quando chegou seu momento de
interrogatório, os oficiais já não estavam com a mesma disposição
em relação ao início do processo.
Em certa ocasião na capital paranaense, estava sendo
questionado sobre as suas atuações junto a Arnaldo ainda em
Apucarana. Alguns dias antes, na noite em que passou preso
antes de ser transferido para Curitiba, foi usado como exemplo
pelo capitão do departamento presente, a fim de demonstrar
a outros agentes presentes como se extrai a confissão de
um preso político. Por mais que fosse perguntado, não respondia
de jeito nenhum. O sentimento de vergonha acometido
pelo oficial fez com que, durante a madrugada antes de
sua transferência, o capitão se descontrolasse e espancasse
Narciso, dando-lhe algumas das informações que os militares
tinham a seu respeito, sem querer. “Seu filho da p…, então
quer dizer que você não esteve na reunião com Arnaldo? Não
80
Arquivos vivos
foi você que ajudou na publicação do jornal tal, na casa de
fulano?.” Já em Curitiba, Narciso passou a jogar com as informações
obtidas para fornecer ao interrogador uma história
que batesse com o que constava em sua ficha, passando a percepção
de credibilidade e cooperação para o agente.
A estratégia funcionou até que se viu diante de um panfleto:
“construir a unidade dos operários camponeses para
decepar a cabeça do Geisel”. Naquele momento, a confiança
obtida por Narciso nas etapas anteriores deu lugar a um
semblante pálido, sem reação. Em Apucarana, conhecera
um jovem chamado Paulo da Silva, ingênuo e que sonhava
em ser revolucionário. Com apenas 17 anos, Paulo certo dia
chegou entusiasmado no escritório de Narciso com o dito
panfleto, sendo prontamente repreendido em seguida: “Que
bobagem, não é assim que tem que fazer as coisas. A luta
não é por aí. Vai distribuir um panfleto besta desses a troco
de quê?”. Narciso tinha a certeza de que o jovem havia levado
o panfleto embora consigo, mas viria a descobrir no pior
momento possível que Paulo havia deixado no meio de um
de seus livros. “Quem escreveu isso?”, ouviu em aflição.
O militante havia feito uma limpa completa em seu
escritório, mas não poderia limpar aquilo que não sabia
existir. A investigação da repressão não havia encontrado
nada condenável no nome de Narciso em suas dependências
em Apucarana, com exceção daquele informativo.
Sem a mínima intenção de entregar o jovem, assumiu a
culpa para o interrogador.
Isso aí é meu, fui eu quem escrevi.
Não foi você. Você é muito intelectual, jamais escreveria
uma besteira dessas.
81
Meia-volta, volver
Fui eu sim, estava fazendo um exercício bobo em casa.
Conta isso para outro, pra mim não.
“Comi o pão que o diabo amassou por conta daquela
b…. daquele panfleto”, recorda com lamentação. Contudo,
o militante compreende que, caso tivesse sido detido no começo
da Operação Marumbi, sua experiência poderia ser
muito pior, como a de alguns de seus colegas presos meses
antes. Após sofrer muito nas mãos do interrogador devido
ao panfleto, e mantendo-se firme à sua versão da história,
escutou algo inesperado: “Preste atenção. Vou fazer de conta
que acredito. Preste atenção: vou fazer de conta.” Narciso
tinha a compreensão de que os agentes, ao menos os daquela
sede específica, não estavam com o mesmo ímpeto que há
algumas semanas para conduzir as sessões mais pesadas de
tortura. “Eles estavam esgotados. Nunca mais esqueci aquela
frase: ‘vou fazer de conta’. Ele estava cansado demais para
continuar”, recorda.
A distinção de tratamento entre os locais de encarceramento
também foi algo que marcou a experiência de Narciso
ao longo dos dois anos em que esteve preso. Enquanto no
Quartel General precisava fazer greve de fome para ser
tratado em condições mínimas de dignidade, sua vivência
foi menos traumática no Presídio do Ahú, consideradas as
devidas proporções e o contexto de um preso político. No
seu aniversário de 1976, foi chamado pelo comandante do
quartel para receber os parabéns pessoalmente, assim como
palavras de incentivo, desejando-lhe um retorno à sua família
e que pudesse restabelecer sua vida em breve após superar
aquele momento difícil. Em outra ocasião, recebeu
ajuda de um tenente do presídio, que assumiu como oficial
82
Arquivos vivos
responsável em um dia específico de visitação, para que pudesse
passar um tempo com sua esposa. “Essa é a minha
chave. Você é jovem como eu, tem necessidades. Fica lá dentro
daquela sala com a sua esposa, fecha a porta, fica uns 45
minutos”. Narciso entende que algumas das peças da engrenagem
Estatal estavam naquela posição por circunstâncias
da vida. “Você tem os nazistas, os fascistas, mas você tem
pessoas decentes também. Mesmo na época da ditadura militar.
É preciso resgatar isso.”
IV) Nunca mais
Apenas na reta final de sua experiência prolongada de
prisão é que finalmente viria o veredicto de sua sentença:
condenação no Artigo 43 na Lei de Segurança Nacional
(Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969), a dois anos
de reclusão. Lia-se na legislação vigente à época:
Art. 43. Reorganizar ou tentar reorganizar de fato ou de
direito, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido
político ou associação, dissolvidos por fôrça de disposição
legal ou de decisão judicial, ou que exerça atividades prejudiciais
ou perigosas à segurança nacional, ou fazê-lo funcionar,
nas mesmas condições, quando legalmente suspenso:
Pena: reclusão, de 2 a 5 anos.
“Dois anos? Dois anos é daqui a 8 dias!” Em 16 de outubro
de 1976, Narciso seria um homem livre novamente.
Apadrinhado pela Anistia Internacional, recebeu auxílio de
um grupo formado por pastores, professores, estudantes e
donas de casa que reuniam recursos para lhe prestar solidariedade,
fato que Narciso estima como fundamental para
83
Meia-volta, volver
sua saúde mental na ocasião, visto que não tinha planos de
buscar a calmaria após tantos anos de turbulência. Ao contrário
de muitos presos que, uma vez postos em liberdade,
fugiam o mais longe possível, Narciso compreendeu que a
melhor maneira de se proteger era tornando-se uma figura
publicamente conhecida, um ex-presidiário que lutou contra
a ditadura e agora procurava emprego.
No entanto, rapidamente ficou claro para o militante
que a repressão não cessaria simplesmente por não estar
mais atrás das grades. Em uma ferrenha busca de trabalho,
batia perna e distribuía seu currículo pelos colégios particulares
e públicos da cidade, mas sem obter sucesso. Em certa
ocasião, no Colégio Camões, foi informado que, de fato, havia
aulas disponíveis na instituição — assim como em todas
as outras —, mas que não seria possível contratá-lo devido
ao seu histórico. “Se eu fizer isso, eu vou ser perseguido pelo
Ministério da Educação, nós dependemos muito do MEC”,
lhe informou o diretor. “Se eu tiver um ex-preso político no
meu corpo docente, acredito que vão cortar as verbas.”
Diante de uma encruzilhada, viu-se obrigado a tomar a
difícil decisão de abandonar definitivamente a carreira letiva,
pois sabia que enquanto a ditadura existisse, não teria a mínima
chance de êxito profissional. Apesar da barreira imposta,
Narciso continuou envolvido com a militância nos anos
que se passaram, superando-se o fim do regime até a redemocratização.
Foi eleito coordenador do Comitê Curitibano
pela Anistia e futuramente ocuparia a presidência do Comitê
Brasileiro pela Anistia. Nas décadas seguintes, seguiu atuando
firme na luta democrática e assumiu para si o papel de um
personagem que trabalha para manter o resgate da história.
84
Arquivos vivos
Em 1995, por exemplo, o ativista criou a Organização Não
Governamental (ONG) “Tortura Nunca Mais”, cuja finalidade
era registrar e denunciar os casos ocorridos ao longo do
regime. Entre as centenas de depoentes que o procuravam,
havia um número considerável daqueles cujas feridas ainda
estavam frescas, visto que nem o cessar da ditadura, nem a
Anistia, nem a instauração da Constituição Cidadã, conseguiram
pôr fim completo às práticas desumanas de interrogamento
nas delegacias pelo Brasil. A percepção de que havia
travado, e vencido, uma batalha homérica certamente lhe enchia
de orgulho, mas nem de longe significava contemplação.
Assumiu para si a tarefa de não cessar na luta pela construção
de um mundo melhor. “Não pretendo me aposentar”, brinca.
Ao longo dos anos, consolidou-se como detentor do
maior e mais completo acervo de arquivos com depoimentos
de ex-presos políticos e torturados. No Edifício Asa, da
Praça Osório, no centro da capital paranaense, encontra-se
a sede do “Tortura Nunca Mais”. Apenas a coleção em vídeos
ultrapassa as 150 unidades. Quaisquer historiadores,
jornalistas e estudiosos sobre o tema possuem em Narciso
uma referência, na concepção mais pura da palavra. Um
“arquivo vivo”, como a si mesmo se refere. Em 2014, lançou
junto a colegas o livro “Depoimentos para a História – A
resistência à ditadura militar no Paraná”, pois entende que a
reconstrução da verdade histórica depende da luta dos oprimidos
pelas narrativas e suas disputas ideológicas.
“O Brasil é um país sem memória. Nós não somos um
povo acostumado a resgatá-la. É importante contar essas
histórias para que a mentira não se sobreponha à verdade”.
Narciso compreende a democracia hoje vivida no país como
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Meia-volta, volver
resultado da luta daqueles que se sacrificaram no passado,
que ousaram desafiar a tirania, os poderosos, e que pagaram
um preço por isso. Durante toda a conversa de aproximadamente
3 horas para a composição desta obra, a oratória
impecável foi capitaneada por um tom firme e articulação
invejável nas palavras. Sua energia só foi alterada ao falar sobre
as torturas: o raciocínio até então ininterrupto era substituído
por hesitações e desvios nos olhares; a voz eloquente
deu lugar a suspiros e pausas reflexivas, sendo possível reconhecer
em sua feição o tremendo esforço físico realizado
para revisitar lugares tão sombrios da própria memória.
Apesar disso, o militante contempla a vida e ressalta sua
finitude, enxergando-a como uma junção de todas as escolhas
que ao longo dela tomamos, pois somos constantemente
convidados a fazê-las. “A minha proposta é lutar até o último
sopro de vida. Isso não me faz mais do que ninguém,
é apenas uma opção. É uma opção para que eu possa me
sentir bem comigo mesmo.”
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Arquivos vivos
LUZ A MEMORIA `
DOS OPRIMIDOS:
`
Mobilizado até os dias de hoje,
Narciso busca contar as histórias
da ditadura para que a mentira
não se sobreponha à verdade.
Foto: Acervo Pessoal Antônio Narciso Pires
Considerações finais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Um dos mais cruéis exercícios da opressão é a espoliação
das lembranças”. Essa citação trazida pela psicóloga
Ecléa Bosi (1979), apesar de curta, carrega consigo um
enorme peso para as discussões a respeito da repressão e da
construção de suas memórias. O esquecimento, motivado
por negligência ou conveniência, que pode pairar sobre momentos
sombrios do passado não representa apenas afronta
às experiências vividas individual e coletivamente, mas articula-se
como uma segunda onda opressora, capaz de perpetuar
os ciclos de violência e usurpar o direito à resolução e à
reparação histórica que cabe às vítimas.
89
Meia-volta, volver
As disputas ideológicas incessantemente empregadas
sobre acontecimentos políticos evidenciam que a consciência
humana está constantemente sujeita a revisões a
respeito de fatos que, embora já pertençam às páginas da
história oficial, ainda orientam a identificação social dos
indivíduos no presente. Nesse sentido, lutar para que essas
narrativas não sejam distorcidas e maliciosamente ressignificadas
exige vigilância constante e um esforço ativo.
Para cada Clair, para cada Júlio e para cada Narciso
que sentiu na própria pele as consequências de se lutar
pela justiça social e contra o autoritarismo institucionalizado,
existe um segmento assustadoramente vocal de pessoas
crentes na ideia de que “a ditadura não foi tudo isso”,
que “só bandido foi perseguido”, que “o Brasil era melhor
naquela época” e tantas outras falácias que ainda se veem
sendo propagadas no país, particularmente alinhadas a um
espectro político e suas inerentes visões de mundo. Essas
ações do discurso, problemáticas e ultrajantes por si só, tornam-se
ainda mais danosas quando se nota sua capacidade
de orientar a ação social de grupos que, indubitavelmente,
querem a volta dos militares ao poder.
Com base nos depoimentos das fontes que compuseram
o livro com o objetivo de trazer um recorte específico
sobre o regime de exceção, é realizado um exercício de embate
direto a essas declarações revisionistas. A partir dos distintos
panoramas sociais de cada entrevistado, ofertam-se
diferentes leituras do mesmo contexto macro: a perseguição
ideológica existiu e se articulou de maneira coordenada
por todo o país, configurando uma implacável política de
Estado. Desse modo, as particularidades de cada existência
90
Considerações finais
oprimida pelo regime não apenas reforçam a versão ampla
da história, mas permitem a expansão do conhecimento que
se tem sobre o período relatado e sinalizam para a existência
de tantas outras realidades que sofreram silenciamento e
nunca foram trazidas à luz.
Ao longo da distopia política vivenciada no Brasil,
em sua mais nova forma, a partir de 2013 com as notáveis
“Jornadas de Junho”, inúmeros episódios poderiam ser
resgatados a fim de se ilustrarem os ininterruptos ataques
à nossa jovem e instável democracia. Poucos deles seriam
tão emblemáticos, entretanto, quanto os atentados terroristas
realizados no Congresso Nacional, Supremo Tribunal
Federal (STF) e Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023,
a mando de grupos de empresários e colecionadores armamentistas
ligados ao bolsonarismo. Ao todo, mais de 1,4 mil
apoiadores do ex-Presidente Jair Bolsonaro foram detidos
em flagrante 1 por depredarem as sedes dos três poderes da
República e causarem uma avassaladora destruição do patrimônio
público, cujo prejuízo ainda não foi oficialmente
revelado por auditoria federal, mas que passará das dezenas
de milhões de reais 2 .
Para além dos danos materiais, os bolsonaristas
serão indiciados no artigo 359-M do Código Penal, que versa
sobre a tentativa de deposição, por meio de violência ou
grave ameaça, do governo legitimamente constituído, cuja
pena é de quatro a doze anos de reclusão. Na invasão a
Brasília, os manifestantes golpistas clamavam, entre outras
coisas, pela intervenção militar, anulação das eleições, fechamento
dos tribunais e das câmaras legislativas. Tudo “pelo
bem do país”. O país deles, para eles.
91
Meia-volta, volver
Resgatar a memória da ditadura, por conseguinte,
não é apenas relevante a fim de ampliar as narrativas que
versam sobre essa mancha em nossa trajetória, mas se torna
um movimento inestimável para oferecer resistência frente
ao negacionismo e à relativização de um passado marcado
por torturas, perseguições, exílios e assassinatos pelo Brasil.
O Brasil dos outros, para os outros.
Essa obra traz consigo a singela intenção de contribuir,
no que puder, para que esses relatos não sejam omitidos
de nossa trajetória; para que as vivências de quem resistiu à
tirania não se tornem meras notas de rodapé nesse tenebroso
capítulo da história brasileira; para que o passado não seja
submetido ao perverso mecanismo da deslembrança ou, ainda
pior, substituído por uma versão desleal dos fatos.
Como jornalista, entendo ser irrenunciável a responsabilidade
social que – assim como outros profissionais
de comunicação – carrego na construção da realidade, não
importando a escala e o alcance. O viés sócio-responsável
do jornalismo é trabalhado por diversos autores, dentre os
quais se destaca Goodwin (1993), ao salientar a imprescindibilidade
da ética na função de se noticiar. Segundo a perspectiva
do autor, à população pertence a prerrogativa de
ter conhecimento sobre as ações governamentais e os seus
possíveis desdobramentos e implicações para a sociedade,
delegando-se aos veículos de comunicação, portanto, um
caráter de instituição de utilidade pública crucial para o pleno
funcionamento da democracia.
Esse dever profissional tem sua relevância elevada
a novos patamares em uma conjuntura na qual se percebe
uma escalada vertiginosa nos casos de violência contra a
92
Considerações finais
imprensa no Brasil, visto que, consoante dados da Federação
Nacional dos Jornalistas (Fenaj), repórteres e veículos de comunicação
brasileiros sofreram uma agressão por dia durante
2022 3 . Outro levantamento, realizado pela Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), apurou 801
ataques à imprensa promovidos por Jair Bolsonaro e seus
filhos 4 , todos em exercício de cargo político, em um recorte
de apenas 16 meses entre 2021 e 2022.
Certamente, não configura coincidência que o político
entusiasta e defensor da ditadura militar – assim como
seus ferrenhos seguidores – incentive e reproduza a mesma
retórica de hostilidade contra os jornais, colocando-os na posição
de inimigos a serem combatidos pelo Estado. Assim,
demonstra-se que o abuso de poder e o flerte com o autoritarismo
devem ser prontamente enfrentados pelo jornalista,
tanto para benefício da sociedade como um todo quanto para
fazer jus aos preceitos éticos de sua categoria profissional.
Negar esse compromisso significa abdicar do aspecto mais
intrínseco ao ofício da notícia, uma vez que, nas palavras de
Eliane Brum (2013), “o repórter luta contra o esquecimento.
Transforma em palavra o que era silêncio. Faz memória.”
Que sempre se honre o corajoso ato de nunca esquecer.
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Meia-volta, volver
NOTAS
1. CNJ diz que há 1.418 presos por ataques às sedes dos
três poderes. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.
com/politica/noticia/2023/01/11/cnj-diz-que-ha-1418-
presos-por-ataques-as-sedes-dos-tres-poderes.ghtml>.
Acesso em: 30 jan. 2023.
2. Veja o custo estimado de itens destruídos em atos
terroristas por bolsonaristas radicais. G1, 2023. Disponível
em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/
noticia/2023/01/09/veja-o-custo-estimado-de-itensdestruidos-em-atos-terroristas-por-bolsonaristas-radicais.
ghtml>. Acesso em: 30 jan. 2023.
3. CAMPOS, Ana Cristina. Fenaj: Brasil registra uma
agressão a jornalista por dia em 2022. Agência Brasil,
2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2023-01/fenaj-brasil-registra-uma-agressaojornalista-por-dia-em-2022>.
Acesso em: 30 jan. 2023.
4. Bolsonaro e seus filhos fizeram 801 ataques à imprensa
desde 2021, diz estudo da Abraji. Valor, 2023. Disponível
em: <http://glo.bo/3YoVAoc>. Acesso em: 30 jan. 2023
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Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI. Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de
Velhos. São Paulo, TA Queiroz, 1979.
BRUM, Eliane. Os loucos somos nós. IN: ARBEX,
Daniela. Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil
mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo, Geração
Editorial, 2013.
GOODWIN, H. Eugene. Procura-se ética no jornalismo.
Rio de Janeiro, Nórdica, 1993.
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Meia-volta, volver
Um amigo me escreveu. Pedia desculpas.
Nos últimos tempos - em meio ao surto de bipolaridade
que tomou conta da Nação - decidiu se calar. Nada de
postagens nas redes sociais. Nenhum bate-boca com
parentes e amigos. [...] Nenhum brado contra os
autoritários. Nem sombra de protesto contra as ofensas
gritantes a negros, mulheres e LGBTs. Nem um pio contra
os caretas. "Estou quieto pois conheço os fascistas mais
de perto do que gostaria", registrou, sem mais. Ele não
esquece - ou não se permitiu esquecer.
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