28.02.2013 Views

09 - José d'Encarnação.pdf - Universidade de Coimbra

09 - José d'Encarnação.pdf - Universidade de Coimbra

09 - José d'Encarnação.pdf - Universidade de Coimbra

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A BUSCA DO ANTIGO<br />

Claudia Beltrão da Rosa<br />

Juliana Bastos Marques<br />

Adriene Baron Tacla<br />

Norma Musco Men<strong>de</strong>s<br />

VII ENCONTRO NACIONAL DO GRUPO DE TRABALHO<br />

DE HISTÓRIA ANTIGA (GTHA/ANPUH)<br />

30 <strong>de</strong> agosto a 3 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2010<br />

organizadoras<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO


© GTHA/ANPUH<br />

Grupo <strong>de</strong> Trabalho <strong>de</strong> História Antiga da Associação Nacional <strong>de</strong> História<br />

Coor<strong>de</strong>nação Nacional<br />

07/20<strong>09</strong> – 07/2011<br />

Claudia Beltrão da Rosa<br />

Juliana Bastos Marques<br />

© NAU Editora<br />

Rua Nova Jerusalém, 320<br />

CEP. 21042-235 Rio <strong>de</strong> Janeiro RJ<br />

FONE [55 21] 3546 2838<br />

contato@naueditora.com.br<br />

www.naueditora.com.br<br />

Editoras: Angela Moss e Simone Rodrigues<br />

Revisão:Miro Figueiredo<br />

Projeto gráfico: Mariana Lobo<br />

Capa: Medéia e as Pelia<strong>de</strong>s. Relevo em mármore. Cópia romana <strong>de</strong> original grego, ca. 420/10<br />

a.C. Museu Pergamon, Berlim.<br />

Conselho editorial: Alessandro Ban<strong>de</strong>ira Duarte, Claudia Saldanha,<br />

Cristina Monteiro <strong>de</strong> Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara,<br />

Pedro Hussak, Vladimir Menezes Vieira<br />

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ<br />

A Busca do Antigo / (org.) Claudia Beltrão da Rosa... [et al.]. - Rio <strong>de</strong> Janeiro : Trarepa :<br />

Nau, 2011.<br />

280p. : il. ; 21 cm<br />

“VII Encontro Nacional do Grupo <strong>de</strong> Trabalho <strong>de</strong> História Antiga (GTHA/ANPUH) - 30<br />

<strong>de</strong> agosto a 3 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2010, <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro -<br />

UNIRIO”<br />

Inclui bibliografia e índice<br />

ISBN 978-85-85936-92-1<br />

1. História antiga - Congressos. 2. Brasil - Antiguida<strong>de</strong>s - Congressos. 3. Arte e história<br />

- Congressos. I. Rosa, Claudia Beltrão da. II. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Grupo <strong>de</strong> Trabalho <strong>de</strong> História Antiga.<br />

11-2104. CDD: 981.01 CDU: 94(81)<br />

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte <strong>de</strong>sta obra po<strong>de</strong> ser<br />

reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,<br />

incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora.<br />

1ª edição: 2011 - Tiragem: 1000 exemplares


ROMA E IBÉRIA OCIDENTAL:<br />

DUAS MUNDIVIDÊNCIAS EM CONTATO 1<br />

<strong>José</strong> d’Encarnação • CEAUCP – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong><br />

Introdução: a História é objetiva?<br />

Foi-me lançado um <strong>de</strong>safio pela doutora Norma Musco Men<strong>de</strong>s: “O<br />

amigo ministraria um minicurso sobre a religiosida<strong>de</strong> celta e o impacto<br />

da conquista romana na Lusitânia, ou algo parecido?”.<br />

Respondi que po<strong>de</strong>ria fazer, mas algumas dúvidas me assaltavam<br />

acerca do verda<strong>de</strong>iro significado da expressão “religiosida<strong>de</strong><br />

celta” e, por isso, proporia uma reflexão sobre o tema.<br />

“A sua i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> dar uma forma interativa ao minicurso é excelente”<br />

– retorquiu-me aquela investigadora do Laboratório <strong>de</strong> História Antiga<br />

da UFRJ, entida<strong>de</strong> coorganizadora do Encontro, que acrescentou:<br />

“Procure sempre exemplificar com questões que envolvam a<br />

cultura celta. Há muito interesse sobre os celtas. Está, também, muito<br />

em moda por aqui a análise <strong>de</strong> questões ‘nativistas’ no âmbito <strong>de</strong> uma<br />

experiência imperialista, <strong>de</strong> um mundo pós-colonial e globalizado.”<br />

Ligado a um projeto <strong>de</strong> investigação li<strong>de</strong>rado por investigadores<br />

da Europa Central, uma Europa ainda saudosa (diria eu…) daqueles<br />

tempos idos em que – reza a História – cavaleiros errantes se lançaram<br />

1 Integrei neste texto, em síntese, alguns dos temas abordados no minicurso que,<br />

a convite da Comissão Organizadora, tive o privilégio <strong>de</strong> proferir, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> agosto a<br />

3 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2010, na <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UNI-<br />

RIO), integrado no VII Encontro Nacional do Grupo <strong>de</strong> Trabalho em História Antiga<br />

da ANPHU – A Busca do Antigo. Uma ativida<strong>de</strong> enquadrada, portanto, na investigação<br />

por mim levada a efeito como membro do grupo “Epigraphy and Iconology of Antiquity<br />

and Medieval Ages”, do Centro <strong>de</strong> Estudos Arqueológicos das <strong>Universida<strong>de</strong></strong>s <strong>de</strong><br />

<strong>Coimbra</strong> e Porto (Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Investigação 281 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia).<br />

Agra<strong>de</strong>ço às doutoras Cláudia Beltrão e Norma Musco Men<strong>de</strong>s tão amável convite<br />

então formulado e, agora, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verter para as atas estes apontamentos.<br />

99


100<br />

sobre a pesada estrutura organizada e florescente do Império romano<br />

e a lograram dominar pela força das armas, projeto que se <strong>de</strong>signa<br />

precisamente FERCAN – Fontes Epigraphici Religionum Celticarum<br />

Antiquarum – em que se procura esmiuçar o que há <strong>de</strong> “céltico” nos<br />

cultos e nos teônimos pré-romanos, compreendi o que se pretendia.<br />

Na verda<strong>de</strong>, tendo nascido num país, Portugal, cuja população e cuja<br />

mentalida<strong>de</strong> resulta da mistura, ao longo <strong>de</strong> milênios, <strong>de</strong> gentes das<br />

mais ‘<strong>de</strong>svairadas partes’ – para usar uma expressão cara a Fernão<br />

Lopes 2 – eu tenho, por educação, alguma dificulda<strong>de</strong> em atribuir a<br />

uma ‘raça’ o predomínio sobre a outra. E, em resposta, procurei timidamente<br />

saber se po<strong>de</strong>ria analisar esse ‘embate’ entre os romanos e<br />

os outros povos com que eles entraram em contato, referindo-me à<br />

política, à socieda<strong>de</strong> e às manifestações religiosas, <strong>de</strong>strinçando, neste<br />

último parâmetro, as divinda<strong>de</strong>s indígenas das divinda<strong>de</strong>s ‘clássicas’.<br />

A proposta foi bem aceita:<br />

“Será ótimo exemplificarmos com dados concretos aquilo que os<br />

‘gran<strong>de</strong>s’ cientistas sociais ficam somente no blá, blá, blá! Sim, nativos<br />

ou indígenas ou locais x colonialistas. Analisaremos a mistura, a ambiguida<strong>de</strong>,<br />

a formação <strong>de</strong> culturas híbridas, ou seja, um ‘terceiro espaço’<br />

ou uma cultura global.”<br />

O <strong>de</strong>safio era enorme para a minha capacida<strong>de</strong>, tanto mais<br />

que acabara <strong>de</strong> ser publicada uma síntese do que se conhece sobre a<br />

Península Ibérica ao tempo dos romanos, fruto da longa investigação<br />

levada a efeito por Patrick Le Roux. O livro é sugestivamente intitulado<br />

La Péninsule Ibérique aux Époques Romaines, 3 significando o uso<br />

<strong>de</strong>ste plural a atitu<strong>de</strong> metodológica adotada pelo autor e que assim se<br />

resume no texto <strong>de</strong> apresentação da contracapa:<br />

“Attentif aux progrès <strong>de</strong>s recherches dans toutes les disciplines<br />

concernées et aux évolutions historiographiques, le contenu essaie <strong>de</strong><br />

se tenir à distance <strong>de</strong>s notions telles que conquête, impérialisme, unité,<br />

2 No prólogo da Crônica <strong>de</strong> D. Fernando, ao referir-se a Lisboa e ao seu porto, escreve<br />

o cronista: “E por tanto vinham <strong>de</strong> <strong>de</strong>svairadas partes muitos navios a ela, em guisa<br />

que, com aqueles que vinham <strong>de</strong> fora e com os que no reino havia, jaziam muitas vezes<br />

ante a cida<strong>de</strong> quatrocentos e quinhentos navios <strong>de</strong> carregação.”<br />

3 LE ROUX, Patrick. La Péninsule Ibérique aux Époques Romaines. Paris: Armand<br />

Colin, 2010.


omanisation, régionalismes, métissage, romanité, i<strong>de</strong>ntité provinciale,<br />

autoreprésentation”, 4 noções que o autor consi<strong>de</strong>ra ina<strong>de</strong>quadas nesta<br />

análise, porquanto po<strong>de</strong>m refletir (e refletem!) esquemas mentais que<br />

certamente não estavam presentes nessas recuadas épocas.<br />

Mas é curioso também que dê gran<strong>de</strong> importância à cronologia,<br />

pois escreve: “L’histoire narrée et commentée ici épouse le temps, la chronologie<br />

pour mieux dissocier les phases et les pério<strong>de</strong>s, pour mieux souligner<br />

la richesse et le polycentrisme <strong>de</strong> passés péninsulaires toujours renouvelés,<br />

pour mieux rendre compte <strong>de</strong>s décalages et <strong>de</strong>s discontinuités.” 5<br />

Confesso que me invadiu uma certa perplexida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

haver estudado noções como a importância da análise a longo prazo, a<br />

diferença entre o tempo real, o tempo psicológico e o tempo das multidões;<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>, no observado quotidiano das gentes das mais variadas<br />

partes do mundo e a influência das modas e dos media (que outros<br />

seriam em tempos recuados, mas que existiriam também)… Afastar<br />

ou ter em menor conta noções como “romanização”, enten<strong>de</strong>ndo<br />

muito embora que o termo po<strong>de</strong> significar o domínio do “romano”<br />

sobre o “não romano”… não há meio <strong>de</strong> sairmos daí a não ser aplicando<br />

um vocábulo que reúne as minhas preferências, “aculturação”,<br />

para significar a permeabilida<strong>de</strong> entre os hábitos, os modos <strong>de</strong> pensar<br />

e <strong>de</strong> agir, uma palavra que aprendi nos estudos <strong>de</strong> Etnologia Geral,<br />

na linha da pesquisa pioneira <strong>de</strong> Jorge Dias (1907-1973) e na sequência<br />

do que, em terras brasileiras, ao falar-se <strong>de</strong> índios e <strong>de</strong> colonos,<br />

o gran<strong>de</strong> Gilberto Freyre (1900-1987) preconizava também. Equiparava-se,<br />

então, a miscigenação à mestiçagem, embora essas se situem<br />

no campo antropológico, digamos assim, <strong>de</strong> mescla <strong>de</strong> raças, enquanto<br />

aculturação se enquadra no ambiente mais vasto <strong>de</strong> todo o universo<br />

mental e suas manifestações.<br />

4 Traduzindo: “Atento aos progressos das investigações em todas as disciplinas concernentes<br />

e às evoluções historiográficas, o conteúdo procura manter-se à distância<br />

<strong>de</strong> noções tais como conquista, imperialismo, unida<strong>de</strong>, romanização, regionalismos,<br />

mestiçagem, romanida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> provincial, autorrepresentação.”<br />

5 “A História aqui narrada e comentada <strong>de</strong>sposa o tempo, a cronologia, para melhor<br />

dissociar as fases e os períodos, para melhor sublinhar a riqueza e o policentrismo <strong>de</strong><br />

passados peninsulares continuadamente renovados, para melhor dar conta das rupturas<br />

e das <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s.”<br />

101


102<br />

Interroguei-me, pois: será a História uma disciplina objetiva?<br />

Terá direito a figurar, como vimos preconizando, no domínio das “ciências”,<br />

enten<strong>de</strong>ndo por essas um conjunto <strong>de</strong> normas que, aplicadas em<br />

<strong>de</strong>terminadas circunstâncias, produzem sempre os mesmos efeitos?<br />

Não estão os investigadores à mercê das i<strong>de</strong>ologias dominantes? E,<br />

<strong>de</strong> caminho, outra questão – velha <strong>de</strong> décadas… – se põe: “A História<br />

repete-se?” como que obe<strong>de</strong>cendo às leis da Física? Não, não há, <strong>de</strong><br />

fato, repetibilida<strong>de</strong> possível, como eu não sou capaz <strong>de</strong> dar duas aulas<br />

iguais, porque teria sempre presente (mais não fosse) a i<strong>de</strong>ia clara <strong>de</strong><br />

que me estava a repetir…<br />

Por exemplo, as visões da História Antiga, “a busca do Antigo”,<br />

tema do nosso encontro <strong>de</strong> reflexão, foram sempre norteadas pelos<br />

mesmos princípios norteadores?<br />

Na Ida<strong>de</strong> Média, período em que, no Oci<strong>de</strong>nte, predominava uma<br />

mentalida<strong>de</strong> judaico-cristã, gregos e romanos, idólatras e politeístas,<br />

teriam <strong>de</strong> ser encarados como antagônicos. As esculturas, <strong>de</strong>capitadas;<br />

os livros, ‘censurados’ no que ferisse suscetibilida<strong>de</strong>s da moral cristã…<br />

No Renascimento, ao contrário, os i<strong>de</strong>ais estéticos e, até, políticos,<br />

tiveram enorme repercussão. E, então, no período neoclássico,<br />

todos os cânones romanos foram aceitos sem reservas. Não nos admiramos<br />

que o pe<strong>de</strong>stal da estátua a D. Maria I, em Queluz, da segunda<br />

meta<strong>de</strong> do século XVIII, tenha legenda em latim e a rainha se apresente<br />

como PIA · FELIX · AVGVSTA, à imitação das <strong>de</strong>dicatórias aos<br />

imperadores romanos do século III, on<strong>de</strong> esses adjetivos constituíam<br />

saudação normal, quase propiciatória, porque <strong>de</strong>signações assim<br />

seriam sempre <strong>de</strong> muito bom agouro. E não nos admiramos também<br />

que, em Perúgia, uma placa <strong>de</strong> 1780 assinale a <strong>de</strong>dicatória <strong>de</strong> uma<br />

cúria aere conlato, como rezavam as inscrições romanas, ou seja, “por<br />

subscrição pública”, numini maiestatique Pii VI pont(ificis) max(imi), “ao<br />

númen e à majesta<strong>de</strong> do sumo pontífice Pio VI”, terminologia perfeitamente<br />

copiada das <strong>de</strong>dicatórias aos imperadores romanos do século III<br />

em diante, a partir do momento em que o Imperador <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser o<br />

primus inter pares para se arvorar em dominus, “senhor”, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r recebido<br />

do Além, porque outras justificativas não po<strong>de</strong>ria invocar, dado


que havia sido a força das armas que no trono o haviam colocado: a<br />

religião servia, pois, <strong>de</strong> excelente apoio. Uma inscrição <strong>de</strong> Ossonoba,<br />

atual Faro, no sul do território português, 6 ao imperador Aureliano<br />

(214-275), exemplifica claramente o uso <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> formulário:<br />

IMP ♥ CAES<br />

L ♥ DOMITIO<br />

AVRELIANO<br />

PIO ♥ FEL ♥ AVG<br />

P♥M♥T♥P♥P♥P♥<br />

II ♥ COS ♥ PROC<br />

R ♥ P ♥ OSSONOB<br />

EX DECRETO<br />

ORDIN<br />

D ♥ N ♥ M ♥ EIVS<br />

D ♥ D<br />

A respublica Ossonobensis <strong>de</strong>clara-se, aqui, <strong>de</strong>vota numini maiestatique<br />

eius e o uso <strong>de</strong> siglas evi<strong>de</strong>ncia ser essa uma fórmula habitual,<br />

bem compreensível para o comum dos leitores. E o Imperador, além<br />

<strong>de</strong> pontifex maximus (título que também surge em siglas, na linha 5), é<br />

pius felix augustus!.<br />

O terremoto <strong>de</strong> 1755 em Lisboa tivera, na verda<strong>de</strong>, também<br />

repercussões culturais importantes, porque a Europa – e o mundo –<br />

rapidamente percebeu que, <strong>de</strong> um momento para o outro, relevantes<br />

legados e monumentos estavam ao sabor dos elementos e po<strong>de</strong>riam<br />

<strong>de</strong>saparecer num ápice. Os movimentos <strong>de</strong> recuperação e salvaguarda<br />

do passado, inclusive do passado mais antigo – urgia não <strong>de</strong>scurar as<br />

“raízes” para que a árvore das nações e dos impérios não viesse a soçobrar…<br />

–, surgiram por toda a parte, consubstanciados na criação <strong>de</strong><br />

aca<strong>de</strong>mias, por exemplo. Em Portugal, o Marquês <strong>de</strong> Pombal, ministro<br />

<strong>de</strong> el-rei D. <strong>José</strong> I, para além do esforço <strong>de</strong> reconstrução da capital,<br />

or<strong>de</strong>nou a todos os párocos que respon<strong>de</strong>ssem a minucioso inquérito,<br />

6 Cf. ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’. Inscrições Romanas do Conventus Pacensis – Subsídios<br />

para o Estudo da Romanização ( = IRCP). <strong>Coimbra</strong>, 1984, inscrição nº 4.<br />

103


104<br />

em que se <strong>de</strong>veria escrever com a maior minúcia tudo o que <strong>de</strong> significativo<br />

havia na história e na tradição locais. As chamadas Memórias<br />

Paroquiais, hoje publicadas e comentadas em praticamente todos os<br />

concelhos 7 portugueses, revelam-se fecundo manancial informativo.<br />

Recor<strong>de</strong>-se que é em 1772 que se inicia, pela mão <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot<br />

e d’Alembert, aquela que é consi<strong>de</strong>rada a primeira enciclopédia<br />

mo<strong>de</strong>rna, a Encyclopédie, concebida precisamente como um “dictionnaire<br />

raisonné <strong>de</strong>s sciences, <strong>de</strong>s arts et <strong>de</strong>s métiers”, síntese organizada<br />

<strong>de</strong> todos os saberes. E não admira que um quadro a óleo mostre<br />

o marquês Cipião Maffei que, em visita a Nîmes em 1732, contempla<br />

com enorme curiosida<strong>de</strong> os monumentos epigráficos romanos em que<br />

a cida<strong>de</strong> era muito rica.<br />

Em meados do século XIX, assume a História o estatuto <strong>de</strong><br />

ciência e os romanos ganham novo relevo, até porque, no Centro<br />

da Europa, sempre houvera a pretensão <strong>de</strong> se assumir a herança do<br />

Império Romano e a criação do Sacro Império Romano-Germânico<br />

consubstancia esse <strong>de</strong>sejo, aliando-o a aspectos <strong>de</strong> Antropologia<br />

Física, raciais, <strong>de</strong> confronto. Daí tinham vindo os valorosos celtas,<br />

altos, loiros, <strong>de</strong> olhos azuis… e a Aca<strong>de</strong>mia das Ciências <strong>de</strong> Berlim não<br />

hesitou em mandar estudar os aspectos institucionais dos Romanos,<br />

<strong>de</strong> certo modo para respon<strong>de</strong>r à pergunta “Como é que se manteve<br />

durante tanto tempo tão gran<strong>de</strong> Império?”, e como é que nós, agora,<br />

po<strong>de</strong>remos ressuscitá-lo?<br />

As duas guerras misturaram motivações, puseram em causa<br />

teorias e, passadas as maiores consequências da segunda, nos anos<br />

1950 e 1960, preferiu-se uma análise mais globalizante da História,<br />

os processos <strong>de</strong> longa duração, recuperando-se o preconizado pela<br />

chamada “Escola dos Annales”, que, embora fundada por Lucien<br />

Febvre e Marc Bloch em 1929, só então começa a ganhar foros <strong>de</strong><br />

maior projeção, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> parte a visão positivista da história como<br />

narrativa sequencial <strong>de</strong> acontecimentos (histoire événementielle), para<br />

melhor tudo se compreen<strong>de</strong>r.<br />

7 “Concelho” é uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> divisão territorial e administrativa semelhante a<br />

“município”. Nota do Editor.


Lucien Fèbvre (1878-1956), 8 Henri-Irénée Marrou (1904-1977), 9<br />

Jacques Pirenne (1891-1972) e a sua História Universal (1945-1956)<br />

consagram-se como alguns dos vultos por que se pautaram os estudos<br />

históricos do Oci<strong>de</strong>nte europeu até meados da década <strong>de</strong> 1970, quando o<br />

espírito <strong>de</strong> síntese, a perspectiva <strong>de</strong> uma História e <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> em<br />

ciclos, como o dos seres vivos – com nascimento, crescimento, apogeu,<br />

morte e renascimento… – inspiraram, por exemplo, a obra Um Estudo <strong>de</strong><br />

História (A Study of History), <strong>de</strong> Arnold Toynbee (1889-1975).<br />

Veio a gloriosa (permitam-me que assim a <strong>de</strong>signe) década <strong>de</strong><br />

1960, com todo o seu cortejo revolucionário, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o Povo<br />

não são os gran<strong>de</strong>s homens e estes nada são sem aquele, a “equipe” é<br />

fundamental. E os meios <strong>de</strong> comunicação introduzem a ‘globalização’,<br />

vivemos num mundo que ultrapassa a nossa rua, a região, o País… E<br />

essa globalização – o Gran<strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r, o Big Brother sublimemente profetizado<br />

por Georges Orwell (1903-1950), 10 as armas e a sua força… –,<br />

se <strong>de</strong>termina i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s a nível geral (as calças jeans são usadas no<br />

mundo inteiro…), provoca, por outro lado, o incremento das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

locais e o consequente apoio à História Local e Regional, o surgimento<br />

das teorias “nativistas” atrás referidas. Ao “todos os animais<br />

são iguais, mas há uns que são mais iguais que outros” 11 suce<strong>de</strong> o<br />

slogan “Todos iguais todos diferentes”.<br />

Teremos, assim, uma História fragmentada, qual manta <strong>de</strong> retalhos?<br />

Creio que não, pois é a partir <strong>de</strong>sses ‘retalhos’ locais que melhor<br />

se vai compreen<strong>de</strong>ndo o contexto geral e, hoje, é mais curto o ciclo<br />

análise-síntese, <strong>de</strong>mora-se menos na trilogia hipótese/tese/antítese<br />

da dialética hegeliana…<br />

E assim somos chegados ao tema que nos alicia: “Roma e Ibéria<br />

oci<strong>de</strong>ntal: duas mundividências em contato”, na certeza <strong>de</strong> que a<br />

forma como o vamos abordar é <strong>de</strong>vedora <strong>de</strong> todas as tendências histó-<br />

8 Combates pela História (1952).<br />

9 Histoire <strong>de</strong> l'éducation dans l'Antiquité. Paris, 1948; De la connaissance historique.<br />

Paris, 1954; Déca<strong>de</strong>nce romaine ou antiquité tardive?. Paris, 1977.<br />

10 No romance 1984, publicado em 1949, mas <strong>de</strong> que só há pouco tempo se compreen<strong>de</strong>u<br />

o seu real alcance.<br />

11 É ainda Georges Orwell, no seu Animal Farm (em português, A Quinta dos Porcos), 1945.<br />

105


106<br />

ricas atrás mencionadas, filha, portanto, da mentalida<strong>de</strong> hodierna,<br />

<strong>de</strong> um português perante a realida<strong>de</strong> do Brasil e, <strong>de</strong> um modo geral,<br />

dos PALOPS, “o mundo que o Português criou”, para nos revermos, <strong>de</strong><br />

novo, em Gilberto Freyre (1940).<br />

A política ‘territorial’ romana<br />

Vamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado os aspectos políticos da conquista romana<br />

da Península Ibérica, já muito contados; até porque a fonte exclusiva<br />

é, quase sempre, a das narrações transmitidas pelos historiadores <strong>de</strong><br />

então, boa parte <strong>de</strong>les <strong>de</strong>sconhecedores da realida<strong>de</strong>, ecos mais ou<br />

menos fiéis do que ouviam dizer.<br />

Interessar-nos-ia mais, nesse âmbito, a luta <strong>de</strong> guerrilha entre<br />

romanos e lusitanos, seja quando foram chefiados por Viriato, 12 seja<br />

<strong>de</strong>pois, por Sertório. 13 Contudo, também esses aspectos militares têm<br />

sido bem escalpelizados e não vêm ao caso, uma vez que as “mundividências”<br />

bélicas se regem por parâmetros a que, geralmente, apenas os<br />

fatores econômicos não são alheios, todo o resto o é.<br />

Assim, um olhar sobre a política territorial é suscetível <strong>de</strong> melhor<br />

nos fazer compreen<strong>de</strong>r como o relacionamento se <strong>de</strong>u. Os marcos indicadores<br />

<strong>de</strong> limites <strong>de</strong> povos, por exemplo. Não dos povos com letra<br />

maiúscula, que vêm nos livros; mas os povos ‘miúdos’, dos territórios<br />

pequenos da sua sobrevivência, que lutam pelos pastos, pelo usufruto<br />

<strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong> água… Aí se vê – e temos já boa documentação a esse<br />

respeito 14 – como a administração romana minuciosamente se <strong>de</strong>bruçava<br />

sobre as comunida<strong>de</strong>s locais e lhes respeitava os interesses.<br />

12 Veja-se uma das últimas biografias <strong>de</strong>ste chefe militar: PASTOR MUÑOZ, Mauricio.<br />

Viriato (O herói lusitano que lutou pela liberda<strong>de</strong> do seu povo). Lisboa: A Esfera<br />

dos Livros, 2006.<br />

13 Ver, entre outros, ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’. Sertório, general romano: guerrilheiro e<br />

mito?. CEAMA [Almeida] 3, p. 98-105, 20<strong>09</strong> (versão inglesa: p. 106-1<strong>09</strong>), com bibliografia<br />

atualizada. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/10763.<br />

14 Citemos dois: FATÀS, Guillermo. Contrebia Belaisca (Botorrita, Zaragoza) – II –<br />

Tabula Contrebiensis. Zaragoza, 1980 [recensão em Conimbriga, 23, p. 221-223, 1984];<br />

BELTRÁN LLORIS, Francisco. An irrigation <strong>de</strong>cree from Roman Spain: The Lex Rivi<br />

Hiberiensis. The Journal of Roman Studies, XCVI, 2006, p. 147-197.


Quando numa penedia (fig. 4) lemos, 15 em letras datáveis do século I:<br />

PAISICAICOI<br />

HAC FINIS<br />

e percebemos que ali se registra o limite – hac finis, “esta é a fronteira”<br />

– <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> que, até ao momento, ainda não ouvíramos falar,<br />

ainda por cima i<strong>de</strong>ntificado numa língua latina que diríamos ter ecos<br />

do grego (pela terminação em -oi), enten<strong>de</strong>mos o que foi a inteligente<br />

sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um contato em que as regras preexistentes <strong>de</strong>veriam<br />

ser preservadas, acauteladas e garantidas.<br />

Figura 4: Inscrição rupestre, em Corgas, concelho <strong>de</strong> Vouzela, indicativa <strong>de</strong> um terminus.<br />

Nesse âmbito, temos também documentos mais oficiais,<br />

como este:<br />

15 Ver, por exemplo, para esse tema em geral, ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’. Mesurer le<br />

temps, mesurer l’espace dans la Lusitania romaine. In: ANGELI BERTINELLI, Maria<br />

Gabriela e DONATI, Angela (Coords.). Misurare il Tempo Misurare lo Spazio (Atti <strong>de</strong>l<br />

Colloquio AIEGL – Borghesi 2005) [Bolonha, 20-23.10.2005], Faenza, 2006, p. 79-95<br />

[Acessível em: http://hdl.handle.net/10316/12757]. Para esta inscrição em particular,<br />

cuja leitura e interpretação têm sido alvo <strong>de</strong> polêmica, cf. uma versão ligeiramente diferente<br />

da que eu apresento: VAZ, João L. Inês. Epigrafia rupestre e populi da Serra do<br />

Caramulo na época romana. In: PACI, Gianfranco (Coord.). EΠΙΓΡΑΦΑΙ – Miscellanea<br />

Epigraphica in Onore di Lidio Gasperini. Roma, 2000, p. 479-486 [p. 482-484].<br />

107


108<br />

IMP CAESAR AVG PONTIFEX<br />

MAX TRIB POTEST XXIIIX COS XIII<br />

PATER PATRIAE TERMINVS AVGVSTALIS<br />

INTER LANCIENSES ET IGAEDITANOS<br />

ESTE LETREIRO ESTAVA FEITO NO AN...<br />

A última linha (compreen<strong>de</strong>-se) mostra que estamos perante a<br />

cópia <strong>de</strong> um letreiro original romano e houve a preocupação (era habitual<br />

no século XVIII) <strong>de</strong> indicar que o letreiro fora encontrado (“estava<br />

feito”) em ano cuja i<strong>de</strong>ntificação os maus tratos infligidos à pedra,<br />

mormente quando da sua reutilização, acabaram por <strong>de</strong>struir. Trata-se,<br />

porém, <strong>de</strong> uma intervenção oficial do imperador Augusto, na fixação da<br />

fronteira entre os Lancienses e os Igaeditanos, certamente por via do seu<br />

legado provincial (não mencionado), no período 4-5 d.C., precisamente<br />

quando se inicia a organização do território recém-conquistado. 16<br />

O culto imperial em Salacia<br />

Cabem no âmbito da política o que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>signar <strong>de</strong> “os<br />

subterfúgios do culto imperial”, aten<strong>de</strong>ndo, <strong>de</strong> modo especial, ao fato<br />

<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, esse culto ter assumido uma orgânica local. Po<strong>de</strong>rá<br />

sempre discutir-se se a iniciativa partiu dos locais ou se foi inspirada<br />

por personalida<strong>de</strong>s influentes a nível provincial, por exemplo. Nunca o<br />

saberemos; e mesmo que haja indícios <strong>de</strong> que, aqui e além, uma personalida<strong>de</strong><br />

marcante usou dos seus ‘pergaminhos’ para o conseguir, tal<br />

atitu<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar-se, sem mais, generalizada.<br />

Atentemos no bloco arquitetônico, muito provavelmente <strong>de</strong>stinado<br />

a lintel <strong>de</strong> templo, em Salacia (a atual Alcácer do Sal). A inscrição<br />

que ostenta (IRCP 184) diz que foi consagrado (o templo, subenten<strong>de</strong>se)<br />

por Vicano, filho <strong>de</strong> Búcio, um indígena, ao imperador Augusto,<br />

cujas “qualida<strong>de</strong>s” religiosas aí vêm i<strong>de</strong>ntificadas por extenso. Nada<br />

mais se sabe <strong>de</strong>sse Vicano, cujo nome também não é significativo <strong>de</strong><br />

16 Ver GUERRA, Amílcar. Sobre o território e a se<strong>de</strong> dos Lancienses (Oppidani e Transcudani)<br />

e outras questões conexas. Conimbriga, XLVI, 007, p. 161-206, com mais bibliografia.


qualquer importância em nível local: vicano é, na linguagem corrente,<br />

o habitante do vicus, pequeno aglomerado populacional comparável<br />

a uma al<strong>de</strong>ia, nada mais. Ora, acontece que a palavra final do texto<br />

epigrafado é sacrum, “consagrado”, po<strong>de</strong>ndo nós sempre imaginar<br />

que, juntamente com o templo que mandou erigir, o promotor simbolicamente<br />

se consagrou também. E cá está um caso em que, por se<br />

encontrar isolado, não permite pensar que há uma influência anterior,<br />

<strong>de</strong> alguém, ou o propósito <strong>de</strong> vir a obter proventos socioeconômicos<br />

futuros. Certo é que Salacia, pela sua excelente localização nas<br />

margens do Sado, próxima <strong>de</strong> importantes fornos cerâmicos, constituiu,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios da época romana, relevante empório comercial;<br />

e a circunstância <strong>de</strong> ali se registrar um elegante ex-voto a Júpiter<br />

Óptimo Máximo (IRCP 183) mandado lavrar por Flavia Rufina, emeritensis<br />

que se i<strong>de</strong>ntifica como flaminica provinciae Lusitaniae, honrada,<br />

ainda por cima, com o título <strong>de</strong> flaminica (quiçá perpetua) municipii<br />

Salaciensis, é sintoma <strong>de</strong> que, também aí, política, economia e prestígio<br />

social andavam <strong>de</strong> mãos dadas, numa ligação estreita com a<br />

capital da Lusitânia. 17<br />

E, na verda<strong>de</strong>, esses dois documentos po<strong>de</strong>m servir-nos para uma<br />

reflexão mais alargada acerca da realida<strong>de</strong> que neles está subjacente.<br />

De um lado, nos primórdios da aculturação religiosa da cida<strong>de</strong>,<br />

um indígena, que como tal se i<strong>de</strong>ntifica, ou seja, que disso faz gala<br />

ou, pelo menos, não oculta, diligencia no sentido <strong>de</strong> ser erguido um<br />

templo em honra do imperador Augusto, em cuja i<strong>de</strong>ntificação são<br />

realçados os aspectos que mais se pren<strong>de</strong>m com o caráter sagrado do<br />

seu po<strong>de</strong>r. A escolha da palavra sacrum, in<strong>de</strong>finida, possibilitando uma<br />

interpretação ambígua – consagra-se o lugar, consagra-se o edifício,<br />

consagra-se o <strong>de</strong>dicante?... –, embrenha-nos numa mundividência<br />

(para usarmos a palavra que escolhemos para título <strong>de</strong>stas reflexões)<br />

que, do local, se integra num outro mundo, que até ali lhe seria alheio,<br />

mas plenamente aceita. Trata-se <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> individual? Pelo<br />

que está gravado na pedra, sim; suspeitamos, porém, que Vicanus se<br />

17 Ver também o texto da conferência que apresentei no 1º Encontro <strong>de</strong> Arqueologia e<br />

História, em Alcácer do Sal, realizado em maio <strong>de</strong> 20<strong>09</strong>, com o título Salacia Imperatoria<br />

Urbs (no prelo).<br />

1<strong>09</strong>


110<br />

assume não como um <strong>de</strong>votus singular, agindo por impulso íntimo,<br />

seu, mas em representação mais não seja do seu agregado familiar, dos<br />

seus patrícios, da “sua gente” (diríamos hoje).<br />

Por outro lado, Flavia Rufina é emeritense; veio para ali <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a capital<br />

da Lusitânia, certamente em companhia dos seus, movida por intuitos a<br />

que não será alheia uma motivação econômica sob a capa do exercício <strong>de</strong><br />

um cargo político-religioso. Gozava <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prestígio em Emerita, pois<br />

ali fora eleita flamínia provincial (e sabemos quanto isso significaria para<br />

uma família) e a cida<strong>de</strong> outorgara-lhe a honra <strong>de</strong> flamínia perpétua, o que<br />

também diz muito do seu po<strong>de</strong>r local. Vem para o municipium Salaciensis;<br />

e aí é também eleita flamínia, sem que o texto da epígrafe seja suficientemente<br />

explícito para se compreen<strong>de</strong>r se, além <strong>de</strong> uma primeira eleição<br />

como flamínia – função a exercer apenas uma vez e anual –, terá havido<br />

<strong>de</strong>pois uma eleição honorífica como “perpétua”, pois a construção da frase<br />

(item coloniae Emeritensis perpetua et municipii Salaciensis) po<strong>de</strong> ser entendida<br />

como se também <strong>de</strong> Salacia fora perpetua.<br />

Segundo sei, não parece haver objeções à proveniência, que advoguei<br />

em 1984, <strong>de</strong>sse monumento da capela <strong>de</strong> São João dos Azinhais,<br />

já na freguesia do Torrão, nos arredores do núcleo urbano <strong>de</strong> Salacia.<br />

Haveria aí, <strong>de</strong>certo, um santuário rural, <strong>de</strong> enorme <strong>de</strong>voção da população<br />

local <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos anteriores à criação da cida<strong>de</strong> romana e cuja<br />

sacralida<strong>de</strong> se manteve ao longo dos séculos, como se sabe. 18 Não terá<br />

sido, portanto, casual essa escolha para a solene colocação do monumento<br />

a Júpiter. Penso, como escrevi em 1984, que po<strong>de</strong>rá ter sido uma<br />

ara “a que falta o capitel e a parte superior do fuste”, aten<strong>de</strong>ndo a que,<br />

explicito-o agora, os baixos-relevos laterais po<strong>de</strong>riam substituir uma<br />

escultura, que, pelas dimensões da pedra (78 x 58,5 x 52 cm), haveria<br />

<strong>de</strong> ter alguma imponência e seria dispendiosa, portanto. Ora, essa integração<br />

do culto ao <strong>de</strong>us maior dos romanos, muito presumivelmente<br />

18 Cf. ALMEIDA, D. Fernando <strong>de</strong> e PAIXÃO, Judite e António Cavaleiro. Monumentos<br />

arqueológicos e visigóticos <strong>de</strong> Arranas (S. João dos Azinhais, Torrão, Alcácer do Sal).<br />

Setúbal Arqueológica, IV, 1978, p. 215-226. Jorge Feio tem-se <strong>de</strong>dicado a estudar alguns<br />

monumentos do sítio, cujo interesse realça a sua importância multissecular. Veja-se,<br />

por exemplo: FEIO, Jorge, “Vestígios da cristianização em torno do rio Sado: o caso <strong>de</strong><br />

São João dos Azinhais”, In: Actas do II Congresso <strong>de</strong> História do Alentejo Litoral, Sines,<br />

Centro Cultural Emmerico Nunes, 2010, p. 35-51.


na época flávia, num local <strong>de</strong> forte tradição religiosa local, por iniciativa<br />

<strong>de</strong> alguém que, embora vindo <strong>de</strong> fora, aí ganha prestígio e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

iniciativa, reveste-se <strong>de</strong> amplo significado cultural: logo nos primeiros<br />

anos do Império, em pleno centro urbano (supõe-se), um indígena<br />

manda erguer um templo (ou, mais verossimilmente, um templete);<br />

umas décadas mais tar<strong>de</strong>, o processo <strong>de</strong> aculturação é tal que culmina,<br />

digamos assim, numa cerimônia ritual (não o duvido) num local do ager<br />

Salaciensis pleno <strong>de</strong> simbolismo, impregnado <strong>de</strong> tradição. Po<strong>de</strong>rá sempre<br />

pensar-se que o D · D final não é suscetível <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sdobrar em <strong>de</strong>creto<br />

<strong>de</strong>curionum – a implicar uma ação oficial, “por <strong>de</strong>creto dos <strong>de</strong>curiões” –<br />

mas sim em dono <strong>de</strong>dit ou <strong>de</strong>dit <strong>de</strong>dicavitque, “ofereceu, <strong>de</strong>u e <strong>de</strong>dicou” – a<br />

mostrar uma atitu<strong>de</strong> individual; mas, <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong> outro, po<strong>de</strong>rá<br />

a <strong>de</strong>dicatória feita por uma flamínia ser… um ato individual? Casam-se,<br />

pois, aqui as duas mundividências. E a águia imperial (fig. 5) 19 com o<br />

raio <strong>de</strong> Júpiter a dominar o mundo lá está para recordar a mais íntima<br />

ligação ao panteão romano e… a Roma, com todo o seu cortejo <strong>de</strong> idiossincrasias<br />

políticas, sociais, econômicas e religiosas!<br />

Figura 5: Baixo-relevo, representando a<br />

águia imperial, que <strong>de</strong>cora a face lateral<br />

esquerda <strong>de</strong> IRCP 183.<br />

19 IRCP 183. Sobre o baixo-relevo da águia, po<strong>de</strong> ver-se: ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’; e TRIN-<br />

DADE, Luísa. A águia numa epígrafe romana do Museu Regional <strong>de</strong> Évora. A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Évora (Boletim <strong>de</strong> Cultura da Câmara Municipal), II série, 1, 1994-1995, p. 171-177.<br />

111


112<br />

Fig. 6: Téssera <strong>de</strong> bronze,<br />

proveniente <strong>de</strong> lugar incerto<br />

do Nor<strong>de</strong>ste alentejano,<br />

no termo do ager Emeritensis.<br />

A téssera <strong>de</strong> uma outra mundividência<br />

Já tive ocasião <strong>de</strong> dar a conhecer um<br />

pequeno documento epigrafado, <strong>de</strong> bronze, que<br />

ostenta estranha inscrição. 20<br />

I<strong>de</strong>ntifiquei as premissas que me inclinam<br />

a consi<strong>de</strong>rá-lo passível <strong>de</strong> ser autêntico, mau<br />

grado a incorreção gramatical da frase (uma<br />

concordância ad sensum) e a incapacida<strong>de</strong> que<br />

temos, por enquanto, em captar o verda<strong>de</strong>iro<br />

significado histórico <strong>de</strong>ssa téssera. Mais fácil<br />

seria, <strong>de</strong> fato, atirá-la para o número das falsificações;<br />

contudo, não só as análises feitas21 como,<br />

sobretudo, a i<strong>de</strong>ntificação – nada corrente, mas<br />

verossímil – do agente levam-me a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r,<br />

até prova em contrário, a forte possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

estarmos diante <strong>de</strong> um documento autêntico.<br />

O texto nele gravado diz o seguinte (fig. 6):<br />

CABVRIVS<br />

TANGINI · F(ilius) ·<br />

TESSERAM<br />

POPVLO · QVI ·<br />

CONVENIVNT<br />

ARTICA · CAPVD<br />

DE · SVO · DONAVIT<br />

20 ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’. Da invenção <strong>de</strong> inscrições romanas, ontem e hoje: a propósito<br />

<strong>de</strong> uma téssera <strong>de</strong> bronze. Revista Portuguesa <strong>de</strong> Arqueologia, 12/1 20<strong>09</strong>, p. 127-<br />

138. Acessível em: http://hdl.handle.net/10316/13556.<br />

21 Em anexo à comunicação “Dos minérios e das epígrafes em tempo <strong>de</strong> Romanos”,<br />

apresentada em Vila Velha <strong>de</strong> Ródão, a 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010, ao VI Simpósio sobre<br />

Mineração e Metalurgia Históricas do Sudoeste Europeu, que aguarda publicação nas<br />

respectivas atas, juntei brevíssima <strong>de</strong>scrição dos exames laboratoriais levados a efeito<br />

por Sara Leite Fragoso e Solange Muralha.


Po<strong>de</strong>ríamos traduzi-lo assim:<br />

“Cabúrio, filho <strong>de</strong> Tangino, <strong>de</strong>u, a expensas suas, a téssera ao<br />

povo que se congregou em Ártica capital.”<br />

Se Tanginus constitui nome <strong>de</strong>veras comum no contexto lusitano,<br />

o certo é que <strong>de</strong> Caburius poucos exemplos se conhecem e não<br />

acredito que um falsário pegue em nome <strong>de</strong> tão escassa representação<br />

para fazer crer que a téssera que forjara era verda<strong>de</strong>ira. Além disso,<br />

uma falsificação visa a um objetivo econômico ou científico. Nesse<br />

caso, nem econômico 22 – porque sei da possibilida<strong>de</strong> da peça vir a ser<br />

doada ao Museu Nacional <strong>de</strong> Arqueologia –, nem científico, porque<br />

não estamos aqui para dar brilho histórico a <strong>de</strong>terminada localida<strong>de</strong>,<br />

pois <strong>de</strong> uma eventual Artica Capud nada se sabe, nem o texto em si –<br />

caso o datemos, como sugiro, <strong>de</strong> finais do século I a.C. – aponta para<br />

episódio importante da luta entre romanos e lusitanos. Po<strong>de</strong>rá, um<br />

dia, trazer acerca disso alguma luz; mas será uma luz ‘histórica’ <strong>de</strong> que,<br />

aparentemente, não resultarão louros para ninguém.<br />

E por que razão, nesse caso, trazer esse documento à colação<br />

num texto em que se analisam mundividências – a indígena e a romana<br />

– em confronto? Precisamente por isso! Porque, qualquer que venha a<br />

ser a interpretação mais cabal a dar a esse singelo texto, temos aqui,<br />

<strong>de</strong>sse prisma <strong>de</strong> análise, alguns dados a merecer reflexão.<br />

Primeiro, o uso <strong>de</strong> uma téssera <strong>de</strong> bronze, tipologia e material<br />

muito próprios dos romanos, como outros achados o têm agora<br />

documentado; 23 <strong>de</strong>pois, o uso atabalhoado da língua latina, reflexo<br />

claro (a meu ver) <strong>de</strong> uma linguagem oral ainda não suficientemente<br />

22 Pelo que sei das mãos pelas quais a peça tem passado, pese muito embora ter sido<br />

adquirida num antiquário, resultante, muito provavelmente, <strong>de</strong> uma pesquisa com<br />

<strong>de</strong>tectores <strong>de</strong> metais em zona não i<strong>de</strong>ntificada do Nor<strong>de</strong>ste alentejano, ager <strong>de</strong> Emerita<br />

Augusta, verossimilmente.<br />

23 No referido texto <strong>de</strong> 20<strong>09</strong>, aludo a dois estudos recentes: GÓMEZ-PANTOJA, Joaquín.<br />

No siempre la inscripción es lo más importante. Un bronce <strong>de</strong> Gallur (Zaragoza)<br />

y las tesserae pagi. In: Juan Francisco RODRÍGUEZ NEILA, Juan Francisco (Ed.). Hispania<br />

y la Epigrafía Romana: Cuatro Perspectivas. Faenza, 20<strong>09</strong>, p. 83-131; BELTRÁN<br />

LLORIS, Francisco. Rural communities and civic participation in Hispania during<br />

the Principate. In: MARCO SIMÓN, Francisco; F. PINA POLO, Francisco e REMESAL<br />

RODRÍGUEZ, <strong>José</strong> (Eds.). Repúblicas y ciudadanos: mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> participación cívica en el<br />

mundo antiguo. Barcelona, 2006, p. 257-272.<br />

113


114<br />

bem captada para uma transcrição escrita; finalmente, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

do significado mais profundo, do ponto <strong>de</strong> vista histórico, que<br />

haja sido atribuído a essa entrega, a expensas suas, <strong>de</strong> um documento<br />

i<strong>de</strong>ntificativo ao representante <strong>de</strong> um povo que acorreu ao chamamento<br />

e se reuniu, para efeitos <strong>de</strong> estratégia militar, <strong>de</strong> organização<br />

territorial, <strong>de</strong> concilium… há, aqui, o incipiente entrecruzar <strong>de</strong> duas<br />

mundividências, caso consi<strong>de</strong>remos, como parece ser razoável, que se<br />

trata <strong>de</strong> uma iniciativa da população indígena, a agir à semelhança do<br />

que viu por parte dos romanos com quem contatou ou do que estes lhe<br />

disseram que se <strong>de</strong>veria fazer.<br />

Tenho a certeza <strong>de</strong> que esse documento, pelo seu teor, vai<br />

<strong>de</strong>spertar muita reflexão, mormente no que concerne à sua autenticida<strong>de</strong>;<br />

contudo, creio que ele atesta bem o que almejamos aqui sublinhar:<br />

as duas mundividências não entraram em conflito, adaptaram-se.<br />

As divinda<strong>de</strong>s<br />

Tem sido bastante focada a gradual assunção, por parte dos<br />

indígenas, da onomástica latina, pelo que ora me dispenso <strong>de</strong> voltar<br />

ao tema. 24 Aí se manifesta também que, no quotidiano, não só a língua<br />

latina se vulgariza como, por outro lado, os indígenas acabam por latinizar<br />

os seus nomes ou adotar para seus filhos aqueles que <strong>de</strong>têm um<br />

significado concreto, mais suscetível <strong>de</strong> apreensão imediata: Avitus, o<br />

mais velho; Maximus, o gran<strong>de</strong>; Amoena, a bonitinha e meiga; Primus,<br />

o que nasceu em primeiro lugar; Rufus, o <strong>de</strong> cabelo ruivo… O sistema<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar alguém com nome e patronímico, como seria comum<br />

nas pequenas comunida<strong>de</strong>s pré-romanas, mantém-se durante muitos<br />

24 Ver, a título <strong>de</strong> exemplo, o que sobre o assunto escrevi em: Epigrafia – As Pedras<br />

que Falam. 2ª. ed. Imprensa da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>, 2010, p. 88-92; Roma e as<br />

primeiras culturas epigráficas da Lusitânia Oci<strong>de</strong>ntal. In: BELTRÁN, Francisco (Ed.).<br />

Roma y el Nacimiento <strong>de</strong> la Cultura Epigráfica en Occi<strong>de</strong>nte. Saragoça, 1995, p. 255-269. E<br />

também ÉTIENNE, Robert; FABRE, Georges; LE ROUX, Patrick e TRANOY, Alain. Les<br />

dimensions sociales <strong>de</strong> la romanisation dans la Péninsule Ibérique <strong>de</strong>s origines à la fin<br />

<strong>de</strong> l’Empire. Assimilation et Résistance à la Culture Gréco-Romaine dans le Mon<strong>de</strong> Romain<br />

(Travaux du VI e Congrès International d’Étu<strong>de</strong>s Classiques, Madrid, 1974). Bucareste-<br />

Paris, 1976, p. 95-107.


anos, <strong>de</strong> forma que temos inscrições datáveis <strong>de</strong> até meados do século<br />

I da nossa era, em que não é raro encontrar Coelius Maelonis ou uma<br />

Amoena Silonis filia, por exemplo. E mesmo quando se começam a adotar<br />

os tria nomina à maneira romana (praenomen, nomen e cognomen), esse<br />

modo <strong>de</strong> mencionar a filiação po<strong>de</strong> manter-se (C. Curius Pulli filius<br />

Firmanus – fig.7) e não raro o nome pré-romano vai permanecer como<br />

cognomen: C. Iulis Letondo.<br />

Figura 7: Inscrição <strong>de</strong> uma suntuosa placa a inserir num mausoléu, proce<strong>de</strong>nte da civitas<br />

Igaeditanorum (Idanha-a-Velha, concelho <strong>de</strong> Idanha-a-Nova).<br />

Sendo a onomástica – pela sua visceral ligação à pessoa e às<br />

famílias – um dos aspectos culturais em que a tradição mais arreigada<br />

se mostra, o que acaba <strong>de</strong> referir-se mostra como as duas mundividências<br />

também nesse domínio se entrecruzam.<br />

É, contudo, no quadro da idiossincrasia religiosa que tal<br />

tolerância – para usarmos uma palavra usual nos nossos dias – mais se<br />

manifesta.<br />

Sirvam-nos, para o <strong>de</strong>monstrar, dois testemunhos: o <strong>de</strong> colonos<br />

que chegam e veneram as divinda<strong>de</strong>s locais; e o <strong>de</strong> um grupo étnico<br />

115


116<br />

pré-romano que faz gala da divinda<strong>de</strong> sua protetora, ainda que a<br />

homenageie segundo os mo<strong>de</strong>los estéticos e formais romanos.<br />

Assim, na penedia existente num castro, Decimus Manlius, da<br />

tribo Aemilia, grava o seu preito <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção Diis Peinticis. 25 Não conhecemos<br />

outro testemunho do culto a essas divinda<strong>de</strong>s; todavia, cremos<br />

não estar longe da verda<strong>de</strong> se imaginarmos que, recém-chegado ao<br />

local que achou bom para nele se instalar, este colono26 haja seguido os<br />

preceitos hauridos <strong>de</strong> seus antepassados e não tenha querido abrir sulco<br />

no ventre da terra-mãe sem obter prévio consentimento das divinda<strong>de</strong>s<br />

locais, oferecendo-lhes sacrifícios <strong>de</strong> propiciação, que <strong>de</strong>cidiu eternizar<br />

na pedra através da inscrição. Decerto procurou enten<strong>de</strong>r-se com os<br />

indígenas e terá sido essa estranha palavra Peinticis que <strong>de</strong>les percebeu.<br />

Ato <strong>de</strong> mera superstição? Talvez. Mas… não po<strong>de</strong>ria Decimus ter queimado<br />

essências em honra a Júpiter ou a Cíbele? Po<strong>de</strong>ria. Preferiu,<br />

porém, os <strong>de</strong>uses locais, integrando-se, assim, na mundividência das<br />

gentes com as quais passaria doravante a conviver.<br />

Noutro local, Quinto Sabínio Floro acabou por ser menos feliz<br />

(diríamos) ou menos solícito (também po<strong>de</strong>rá ter sido…). Em vez <strong>de</strong><br />

procurar saber que divinda<strong>de</strong> protegia o local on<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberara instalarse,<br />

optou por levantar altar ao Gênio, subenten<strong>de</strong>ndo-se que seria o<br />

númen tutelar do sítio, sem qualquer adjetivo. Uma divinda<strong>de</strong> romana,<br />

sim, mas, por conseguinte, <strong>de</strong> atribuições locais, em simbiose. 27<br />

Tivemos ocasião <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>bruçar recentemente28 sobre dois<br />

altares achados no mesmo local e que, pelos textos que ostentam,<br />

provam, <strong>de</strong> forma insofismável, o que temos afirmado: cada entida<strong>de</strong><br />

populacional pré-romana29 <strong>de</strong>tinha as suas divinda<strong>de</strong>s protetoras,<br />

25 Vi<strong>de</strong> ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’. Divinda<strong>de</strong>s Indígenas sob o Domínio Romano em Portugal<br />

(Subsídios para o Seu Estudo). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1975, p. 257-258.<br />

26 A sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colono <strong>de</strong>duz-se não apenas da onomástica, não corrente na epigrafia<br />

local, mas sobretudo por se dizer cidadão inscrito na tribo Aemilia, até agora não<br />

registrada como pertencendo a alguma cida<strong>de</strong> peninsular, mas sim <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s itálicas.<br />

27 Tanto Sabinius como Florus são antropônimos invulgares na epigrafia peninsular,<br />

daí ter-se concluído pela sua origem alheia à península Ibérica. Cf. http://www.eda-bea.<br />

es/ registo nº 6946 (com mais bibliografia).<br />

28 Vi<strong>de</strong> ASSUNÇÃO, António; ENCARNAÇÃO, <strong>José</strong> d’; e GUERRA, Amílcar. Duas aras<br />

votivas romanas em Alcains. Revista Portuguesa <strong>de</strong> Arqueologia, v. 12 (2), 20<strong>09</strong>, p. 177-189.<br />

29 Desconhecemos que nome lhe <strong>de</strong>vemos dar, ainda que, na sequência do que Maria


cujo nome <strong>de</strong>rivava ou do local (característica tópica) ou do ‘povo’ seu<br />

protegido (característica etnonímica).<br />

Num dos altares, Lucius Attius Vegetus venera Asidia Poltucea,<br />

utilizando uma fórmula bem latina: votum<br />

libens solvit, “cumpriu o voto <strong>de</strong> livre vonta<strong>de</strong>”.<br />

No outro, o <strong>de</strong>dicante é coletivo, a gentilitas<br />

Polturiciorum, que age, porém, não por iniciativa<br />

própria, mas em consequência do voto <strong>de</strong><br />

Polturício, filho <strong>de</strong> Cenão (fig. 8). Vegetus i<strong>de</strong>ntifica-se<br />

com os tria nomina, mas suspeitamos<br />

que se trata <strong>de</strong> um indígena romanizado, pois<br />

não menciona o patronímico e porque Vegetus<br />

é um daqueles cognomina que, apesar <strong>de</strong> etimologicamente<br />

latino, se relaciona muito com o<br />

universo concreto da Península Ibérica, a<br />

ponto <strong>de</strong> Iiro Kajanto, que fez o balanço das<br />

ocorrências dos cognomina latinos no Império<br />

Romano, ter assinalado que, em 67 testemunhos<br />

que encontrou, 28 estão registradas nessa<br />

península. 30 Por consequência, no campo que ora<br />

nos pren<strong>de</strong>, o das mundividências em confronto,<br />

estamos aqui no âmago da questão: os <strong>de</strong>dicantes são indígenas (<strong>de</strong><br />

primeira e segunda geração) e latinizaram os seus nomes; a divinda<strong>de</strong><br />

tem <strong>de</strong>signação que resulta claramente <strong>de</strong> uma fonética pré-romana; à<br />

unida<strong>de</strong> suprafamiliar <strong>de</strong>u-se o nome <strong>de</strong> gentilitas e, sem um respeito<br />

estrito pelas regras gramaticais – que, logicamente, eram <strong>de</strong>sconhecidas<br />

– o antropônimo Polturius, que i<strong>de</strong>ntifica seguramente o fundador<br />

Figura 8: Ex-voto à divinda<strong>de</strong><br />

indígena Asídia, i<strong>de</strong>ntificado<br />

em Alcains, no termo da civitas<br />

Igaeditanorum.<br />

<strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Albertos preconizou, optermos amiú<strong>de</strong> pela expressão, vaga mas elucidativa,<br />

“unida<strong>de</strong>s suprafamiliares”, pois se parte do princípio que esses grupos <strong>de</strong>rivam,<br />

como é normal, <strong>de</strong> um antepassado comum… Castellum, gens, gentilitas, populus, centuria,<br />

civitas… são algumas das <strong>de</strong>signações por que, <strong>de</strong> vez em quando, se terçam armas,<br />

alinhando argumentos a favor <strong>de</strong> uma contra outra. Em meu enten<strong>de</strong>r, trata-se, com<br />

frequência, <strong>de</strong> discussão acadêmica: primeiro, porque <strong>de</strong> poucos elementos dispomos<br />

para se alcançarem certezas; <strong>de</strong>pois, porque, i<strong>de</strong>ntificando grupos populacionais cujo<br />

elo <strong>de</strong> ligação terá sido, muito provavelmente, os laços familiares, a <strong>de</strong>signação afigurase-me<br />

aleatória, <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> conteúdo administrativo.<br />

30 KAJANTO, Iiro. The Latin Cognomina. Roma, 1982 (reimp.), p. 247.<br />

117


118<br />

da gentilitas, a esta <strong>de</strong>u o seu nome, os Polturícios; e quando se esperaria<br />

que o epíteto da divinda<strong>de</strong> seguisse o mesmo caminho, encontramos<br />

idêntico radical, sim, mas um sufixo inesperado -cea, para dar<br />

Poltucea. Tudo se passa, portanto, num mundo em que a língua latina<br />

e o falar indígena, a idiossincrasia local e a idiossincrasia vinda <strong>de</strong> fora<br />

se casam <strong>de</strong> forma admirável, sem <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s.<br />

Conclusão<br />

Retomo, a concluir, as consi<strong>de</strong>rações iniciais e a pergunta: é<br />

a História objetiva? Po<strong>de</strong>ria, há três décadas atrás, raciocinar <strong>de</strong>ssa<br />

forma e sublinhar uma pacífica coexistência cultural entre romanos e<br />

indígenas, mostrando que ambos ganharam com o encontro?<br />

Teria mais dificulda<strong>de</strong>, creio. Não é que a História tenha<br />

mudado, que os fatos tenham sido outros! O que mudou foi a forma<br />

<strong>de</strong> os interpretar e analisar, mercê da mentalida<strong>de</strong> que, pouco a pouco,<br />

fomos formando – <strong>de</strong>vedora, repito porque não tenho dúvida, da ‘revolução’<br />

<strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>s dos anos 1960, da maior abertura da Europa<br />

às culturas nativas doutras paragens. A luta pelos direitos do índio;<br />

o grito universal pelo direito à diferença, hoje por todos assumido…<br />

levaram-nos a ter outro olhar para um período que, afinal, se revelou<br />

riquíssimo e <strong>de</strong>veras enriquecedor, pois <strong>de</strong>le acabaram por surgir as<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais europeias e outras.<br />

Compreendo a posição metodológica <strong>de</strong> Patrick Le Roux, <strong>de</strong><br />

que repudia i<strong>de</strong>ias feitas, como a <strong>de</strong> “romanização”, “romanida<strong>de</strong>”,<br />

“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”… São, na verda<strong>de</strong>, conceitos sobre os quais permanentemente<br />

temos <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>bruçar, para lhes captar, em cada momento,<br />

o verda<strong>de</strong>iro conteúdo – que não é sempre o mesmo, nem no local<br />

nem no tempo.<br />

De algo temos a certeza, porém, e o tema <strong>de</strong>ste Encontro advertenos<br />

precisamente para isso: “a busca do Antigo”, no que o “antigo” tem<br />

<strong>de</strong> “raízes”, tradição, seiva original (chame-se-lhe o que se quiser),<br />

constitui agora, como em todos os tempos, algo que está visceralmente<br />

ligado ao Homem. Daí que a História sempre tenha <strong>de</strong> existir!

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!