AMERIGEN E UTOPIA: VIAGEM, CARTOGRAFIA E HUMANISMO ...
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<strong>AMERIGEN</strong> E <strong>UTOPIA</strong>: <strong>VIAGEM</strong>, <strong>CARTOGRAFIA</strong> E <strong>HUMANISMO</strong><br />
Ana Cláudia Romano Ribeiro<br />
(Universidade Vale do Rio Verde – Três Corações)<br />
Em 1516 Thomas Morus publica sua Utopia, paradigma das chamadas utopias<br />
literárias, textos em que um viajante descreve pormenorizadamente uma sociedade<br />
“ideal”, descoberta acidentalmente, e que é, essencialmente, nas palavras de Berriel,<br />
“uma discussão sobre a comunidade política” de seu autor 1 .<br />
Uma leitura atenta revela que a Utopia de Morus é obra de um humanista<br />
imbuído da tradição literária e filosófica greco-latina, ativo participante da vida política<br />
e espectador curioso da descoberta dos novos mundos revelados pelos viajantes<br />
europeus que rumavam para oeste, para além das colunas de Hércules.<br />
É sabido que Morus tomou conhecimento de mapas, relatos de viagens e outros<br />
escritos que anunciavam as recentes explorações geográficas e que esse material foi<br />
fundamental para a elaboração ficcional da sua Utopia. É possível que ele tenha tido a<br />
ocasião de consultá-los particularmente em 1515 e 1516, durante uma missão “de mais<br />
de seis meses” que o levou a Flandres, região de intenso circuito comercial de livros e<br />
mapas 2 . Esta foi uma ocasião, para Morus, de encontrar-se com vários humanistas,<br />
como Jean le Sauvage, amigo de Erasmo e um dos “patronos do Renascimento” 3 ,<br />
Willielmus de Croy Dominus de Chierne, que possuía uma preciosa coleção de<br />
manuscritos, Peter Gilles, editor e corretor de provas 4 , e Erasmo, que estava de<br />
passagem (viajava de Londres a Basiléia). Cuthbert Tunstall, bispo de Londres que o<br />
acompanhava, apresentou-o a Jeroen van Busleyden, um dos eclesiásticos do Grande<br />
Conselho de Mechlin. Morus visitou Busleyden na casa que este possuía em Mechlin,<br />
onde conservava coleções de obras de arte, de numismática e uma importante<br />
biblioteca. As coleções, os livros e manuscritos e a própria memória de Busleyden,<br />
“mais bem fornida do que qualquer biblioteca”, causaram uma forte impressão em<br />
Morus 5 .<br />
Durante os meses passados em Flandres, em contato com estudiosos,<br />
comerciantes e com a realidade política internacional, observando manobras nem<br />
sempre guiadas pela razão e pela humanidade, Morus retomou idéias que ele havia<br />
concebido quando ainda era estudante (segundo informação de Erasmo), a respeito de<br />
1 BERRIEL, Carlos E. O. Anotações feitas a partir do curso “Renascimento e utopia”, ministrado no<br />
programa de Teoria e História Literária do IEL/UNICAMP, no primeiro semestre de 2002 e no segundo<br />
semestre de 2004, acrescidas de anotações de reuniões de orientação de 2002 a 2010.<br />
2 Sobre esta missão, na qual Morus teve um papel de consultor, seus membros e sua relação com a<br />
Utopia, ver SURTZ, Edward. “St. Thomas More and his utopian embassy of 1515”. In: The Catholic<br />
Historical Review, 39, 3, oct. 1953, p. 272-297.<br />
3 Ibid., p. 275.<br />
4 Peter Gilles publicou, entre outras obras, uma compilação das cartas de Erasmo. Ele era corretor de<br />
provas da tipografia de Theodor Martens, em Lovaina.<br />
5 Em carta datada de 17 de fevereiro de 1516, Morus escreve a Erasmo a respeito de Busleyden: “And<br />
then I struck up a friendship with Busleyden, whose reception of me was very splendid, for he has a great<br />
fortune, and is very courteous, for he has a kind heart. He opened to me his house, with its exceptional<br />
decoration and remarkable contents; his great collection of antiquities, of which you know me to be very<br />
found, and lastly his nobly furnished library, and his own mind better stored than any library could be,<br />
until there was no more spirit left in me” (apud SCHROEDER, Karl G. “Jerome de Busleyden and<br />
Thomas More”. In: Moreana, 32, 121, March 1995, p. 5-6).
uma comunidade organizada platonicamente. Somadas ao seu interesse pelas leis, usos e<br />
costumes de diferentes sociedades e às informações acerca das novas descobertas<br />
geográficas, essas idéias a respeito de uma pólis bela e justa resultaram na redação do<br />
segundo livro da Utopia, ou seja, a descrição da sociedade utópica 6 . Esta Oratio seria<br />
uma espécie de “elogio da sabedoria”, de forma semelhante à do Elogio da loucura de<br />
Erasmo, com o qual comporia um díptico. Antes de retornar à Inglaterra, a Oratio<br />
tornou-se Nusquama, substantivo criado a partir do advérbio latino nusquam, “nenhum<br />
lugar”, e Morus inventou “Raphael Hytlodaeus”, o marinheiro-filósofo. Na Inglaterra,<br />
estimulado por Erasmo, ele retomou seu texto, acrescentando a crítica direta à sociedade<br />
inglesa (livro I), além de uma carta-prefácio e de uma conclusão dedicada a Peter<br />
Gilles 7 .<br />
O tema da viagem permeia a Utopia de Morus, que principia com uma<br />
referência explícita aos percursos recentemente empreendidos por naus portuguesas e<br />
espanholas nos oceanos Atlântico e Índico. Rafael Hitlodeu, o narrador que descreve a<br />
Utopia, é um marinheiro-filósofo português que acompanhara o florentino Amerigo<br />
Vespucci em três de suas viagens. Durante a terceira, decidiu não retornar e permaneceu<br />
em Nova-Castela. Em seguida, prosseguiu viagem. Conheceu uma grande quantidade de<br />
terras até chegar, por um acaso, a Taprobana (Sri Lanka). De Taprobana navegou rumo<br />
ao porto de Calecute (Kozhikode), de onde retornou a Portugal.<br />
O jogo de referências à viagem se mescla, na Utopia, ao gosto pela exegese<br />
onomástica e pelos jogos de palavras, tão caros a Morus 8 , e especialmente às derivações<br />
da língua grega, conforme atesta o próprio nome do marinheiro-filósofo. São Rafael era<br />
o nome da embarcação de Vasco da Gama que abriu a rota para as Índias em 1498 e<br />
também o nome do anjo do “Deus que cura”, e particularmente, que cura a cegueira<br />
(Tobias, 10), ou seja, que restitui a visão. A palavra Hitlodeu vem do grego hytleos<br />
(falar bobagens) e daios (hábil), o que faz do marinheiro-filósofo um hábil contador de<br />
histórias, de lorotas, “que faz brilhar invenções”, segundo Delcourt 9 , ou “especialista<br />
em disparates”, na tradução de Camargo e Cipolla 10 . Porém, daios também quer dizer<br />
destruidor, exterminador, hostil, portanto Hitlodeu seria também o “inimigo das<br />
tolices”, ou seja, sábio. Acumulando todos esses sentidos, complementares, temos “um<br />
falador de bobagens que detesta bobagens/hostil às bobagens”, “um sábio inventor de<br />
lorotas”, brincadeira lexical que remete à reflexão que fez Erasmo a respeito do nome<br />
de Morus se assemelhar ao da loucura, moria en grego, fazendo, porém uma ressalva:<br />
apesar de ter a loucura no nome, Morus era de fato sábio 11 . O mesmo raciocínio levou<br />
6 Além do livro II da Utopia, Morus também compôs quatro epigramas em homenagem a Busleyden (cf.<br />
SCHROEDER, op. cit.).<br />
7 Ver QUARTA, Cosimo. “Utopia: gênese de uma palavra-chave”. In: Morus – Utopia e Renascimento,<br />
3, 2006, p. 35-53.<br />
8 Morus tinha uma marcada predileção por Plauto, grande comediógrafo romano da época republicana,<br />
que, por sua vez, também se servia, em suas peças, dos jogos de palavras.<br />
9 In: MORE, L’Utopie ou Le traité de la meilleure forme de gouvernement. Texte latin édité et traduit par<br />
Marie Delcourt. Genève: Droz, 1983, p. 22.<br />
10 In: MORE, Thomas. Utopia. Organização G. M. Logan e R. M. Adams. Tradução Jefferson L.<br />
Camargo e Marcelo B. Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XIV.<br />
11 Em uma de suas cartas a Morus, Erasmo escreve: “Dirigindo-me à Inglaterra, não cessava de pensar em<br />
você. Então comecei a pensar sobre seu nome (Morus), que se assemelha tanto ao nome da loucura<br />
(Moria) quanto você está afastado dela...” (apud MARC’HADOUR, G. “Thomas More: les arcanes d’un<br />
nom”. In: Moreana, 1964, n. 2, p. 61). Logo em seguida, Marc’Hadour observa que “na verdade, Morus<br />
merece o nome de “louco” no sentido em que o emprega a Dona Loucura quando, ao final de seu<br />
discurso, deixando de lado ‘os vícios, as propensões e os ridículos’, de seus devotos – ou seja, todo o
Guillaume Budé a chamar Morus de “oximorus”, figura paradoxal que gera unidade de<br />
sentido a partir de uma contradição, e de “mososofos”, sábio-louco 12 (em carta datada<br />
de 9 de setembro de 1518) 13 .<br />
O gosto pela inventividade verbal e pela língua grega também caracterizava<br />
Matthias Ringmann, autor da Cosmographiae introductio 14 , que Morus pode ter<br />
consultado, juntamente com o famoso mapa-múndi de Martin Waldseemüller que a<br />
ilustrava 15 . Matthias Ringmann, como Morus, era um humanista que conhecia a língua e<br />
a literatura grega e latina. Este alsaciano de origem camponesa nasceu em Eichhoffen,<br />
um vilarejo aos pés dos Vosges, belíssima cadeia de montanhas que ele homenageou em<br />
seu pseudônimo greco-latino “Philesius Vogesigena” (“amante dos Vosges”), inventado<br />
quando estudava na Universidade de Paris. Antes disso, foi aluno da Universidade de<br />
Heidelberg 16 , centro cultural importante, onde havia lecionado Conrad Celtis, um dos<br />
primeiros a dedicar-se com afinco a difundir o espírito humanista nos territórios de<br />
língua germânica. Celtis visitara a Itália no final do século XVI, tendo freqüentado os<br />
mesmos ambientes que o estudioso Giorgio Antonio Vespucci, membro do convento<br />
dominicano de São Marco (cujas iniciativas humanísticas eram financiadas por Cosimo<br />
de’ Medici), amigo de Masilio Ficino (erudito tradutor de Platão) e preceptor dos filhos<br />
das famílias ricas de Florença, além de tio de Américo Vespúcio. Impressionado com a<br />
superioridade cultural dos italianos em relação aos alemães, e imbuído de um<br />
nacionalismo avant la lettre, Conrad Celtis retornou à sua pátria decidido a motivar os<br />
estudantes alemães a se interessarem pela história e pela geografia dos territórios de<br />
língua germânica, e a assumirem-se como herdeiros da cultura latina, dando uma nova<br />
dignidade ao seu povo, retratado como bárbaro em tantos autores clássicos. Ringmann<br />
não apenas seguiu à risca os preceitos de Celtis como foi mais longe: para ele o império<br />
germânico era um legítimo herdeiro da Grécia antiga.<br />
Começou por traduzir para o alemão os Comentários de Júlio César, que<br />
dedicavam várias páginas ao estudo da geografia e dos povos da Europa setentrional.<br />
Como Petrarca e Boccacio, Ringmann dedicou-se ao estudo das variantes dos<br />
topônimos ao longo do tempo, apoiando-se na Geografia de Ptolomeu e nos mapas que<br />
gênero humano – ela exalta o delírio dos amantes, o nobre furor da inspiração poética e, melhor ainda, a<br />
sublime desrazão da perfeição evangélica”.<br />
12<br />
A palavra morosofos (literalmente, sábio na loucura) foi cunhada por Luciano no diálogo Alexandre ou<br />
o falso profeta e usada por Morus para designar dois tipos de gente, os que querem fazer-se passar por<br />
sábios (e são ignorantes) e os que aconselham os soberanos a manter exércitos permanentes.<br />
13<br />
“Wise-foolish man” foi o epíteto usado nas crônicas que se referiam à obstinação de Morus em não<br />
aprovar as decisões de Henrique VIII, permanecendo, assim, preso e condenado à morte. Na prisão,<br />
Morus, reagindo a um comentário feito pelo novo chanceler disse “Se eu entendi bem, mylord me tem por<br />
louco; é o que eu faço: aceito a palavra grega [morus=louco] como um augúrio. Aliás, graças a Deus,<br />
tenho muitas razões para realmente me classificar nessa categoria” (apud MARC’HADOUR, op. cit., p.<br />
63). Sobre a riquíssima relação entre “More”, este “tetragrama multiforme”, todas as suas etimologias<br />
possíveis partindo do inglês, do grego e do latim, e sobre o uso que delas fizeram diversos escritores e<br />
épocas variadas, ver o artigo em duas partes de Marc’Hadour, 1964, op. cit., e “Thomas More: les arcanes<br />
d’un nom”. In: Moreana, 1965, n. 5.<br />
14<br />
[RINGMANN, Matthias & WALDSEEMULLER, Martin]. Cosmographiae introductio. globo em<br />
fusos e mapa-múndi [Saint Dié, 1507].<br />
15<br />
O mapa de Waldseemüller tinha 1,20m por 2,40, dimensões consideráveis para um mapa, ainda hoje.<br />
Para uma descrição material e um estudo tipográfico deste mapa, ver HARRIS, E. “The Waldseemüller<br />
world map: a typographic appraisal”. In: Imago Mundi, 37, 1985, p. 30-53; para uma micro e uma<br />
macro-história do mapa, ver LESTER, Toby. La mappa perduta. Milano: Rizzoli, 2010.<br />
16<br />
Em Heidelberg Ringmann conheceu Gregor Reisch, que estava redigindo sua Margarita philosophica,<br />
enciclopédia do conhecimento universal.
a ilustravam. O mundo, segundo Ptolomeu, consistia em três partes: Ásia, África e<br />
Europa, bordejadas de ilhas. Essa concepção foi largamente difundida graças ao<br />
interesse dos estudiosos e também graças à recém inventada imprensa, que tornou<br />
possível a publicação de edições ilustradas da Geografia, acompanhadas de mapas: a<br />
primeira foi publicada em Bolonha, em 1477; em seguida em Roma, em 1478<br />
(Colombo a possuía); em Florença, em 1482; em Ulm, saíram duas edições, em 1482 e<br />
1489, em Roma novamente, em 1492. No século XVI foram publicadas mais trinta<br />
edições da Geografia. É plausível imaginar que Morus tenha consultado algumas delas.<br />
Enquanto Ringmann estudava a Geografia de Ptolomeu, em 1505, aconteceu um<br />
fato decisivo: uma cópia do Mundus novus 17 chegou às suas mãos 18 . Vespúcio<br />
confirmava a notícia, já anunciada por autores antigos (como Plutarco, Platão, Virgílio,<br />
Sêneca), ainda que imprecisamente, da existência de um imenso e desconhecido<br />
continente meridional. Tomado de entusiasmo, Ringmann decidiu então publicar uma<br />
nova edição da carta de Vespúcio com o título De ora antarctica per regem Portugallie<br />
prindem inventa (“Sobre a margem antártica descoberta recentemente pelo rei de<br />
Portugal”) 19 . Na sua edição, Ringmann se apresenta com seu pseudônimo greco-latino,<br />
Philesius Vogesigena, e apresenta o mundo conhecido como se estivesse olhando desde<br />
o alto para ele. Seus colegas humanistas entenderam a referência: Philesius era outro<br />
nome dado a Apolo, o deus sol, que via a terra do alto.<br />
A última edição do mapa-múndi desenhado conforme as coordenadas de<br />
Ptolomeu datava de 1492 (Roma). Os mapas mais atualizados de que se podia então<br />
dispor, que ilustravam as descobertas geográficas dos portugueses entre os séculos XV e<br />
XVI, eram as cartas náuticas, como a de Juan de la Costa (1500) ou a de Cantino<br />
(1502). Muitos mapas e cartas náuticas se perderam, como a citada no De orbe novo<br />
(1511) de Pietro Martire d’Anghiera, que comenta com espanto a descoberta de um<br />
novo e imenso continente – obra à qual Morus teve acesso, segundo a opinião de muitos<br />
estudiosos. Pietro Martire indica ter consultado uma carta náutica portuguesa cuja<br />
realização fora orientada pelo próprio Vespúcio.<br />
Quando Ringmann publicou seu De ora antarctica não havia, portanto, nenhum<br />
mapa-múndi que compreendesse as novas descobertas geográficas. Juntamente com um<br />
grupo de humanistas liderado por Walter Lud, cosmógrafo experiente 20 , ele decidiu<br />
17<br />
Mundus novus é o título de uma carta de seis páginas endereçada a Pier Francesco de’ Medici,<br />
provavelmente redigida no outono de 1502, logo que Vespúcio voltara a Lisboa após sua terceira viagem,<br />
durante a qual, após cruzar com as naus de Pedro Álvares Cabral que retornavam a Portugal, explorou a<br />
costa brasileira do cabo do 5º ao 52º de latitude sul. Não contém informações técnicas sobre a navegação<br />
ou sobre as medidas astronômicas, objeto de um relato entregue ao rei de Portugal, do qual até hoje não<br />
se tem notícia. De 1502 a 1508 serão publicadas vinte e cinco edições do Mundus novus na Itália, França,<br />
Alemanha e Holanda; em seguida, o sucesso editorial não diminuirá e o relato de Vespúcio será também<br />
inserido em compilações (um detalhamento das edições se encontra em RONSIN, Albert. Le nom de<br />
l’Amérique. L’invention des chanoines et savants de Saint-Dié. Strasbourg: La Nuée Bleue, 2006, p. 104-<br />
107).<br />
18<br />
Ringmann conheceu o Mundus novus provavelmente em Paris, na tradução de Fra Giocondo.<br />
19<br />
Para sua edição do Mundus novus, Ringmann escreveu uma introdução poética, geográfica e não<br />
desprovida de humor, de vinte e dois versos.<br />
20<br />
Walter Lud, secretário e capelão do duque Reato II, foi nomeado cônego de Saint-Dié em 1484,<br />
conselheiro do duque em 1490, mestre geral das minas em 1504 e sonrier (na Lorena, responsável pela<br />
administração dos bens seculares da igreja colegial) em 1505. Antes de conhecer os textos de Vespúcio<br />
ele projetou uma projeção estereográfica do globo terrestre e sua relação com as esferas celestes,<br />
provavelmente inspirado pelo tratado De artificiali perspectiva, de outro membro do grupo, Jean Pélerin,<br />
conhecido como Viator. Outros geógrafos do grupo eram Nicolas Lud e Jean Basin de Sandaucourt, que<br />
traduziu para o latim a carta a Soderini.
então dedicar-se ao trabalho de atualização da Geografia de Ptolomeu, e não apenas a<br />
isso. Este grupo queria apresentar também um aparato de mapas que representasse o<br />
mundo clássico desprovido dos erros acumulados em dois séculos de reprodução à mão<br />
dos mapas da Geografia. Para isso, fundaram uma associação filosófica, literária e<br />
científica chamada Gymnasium Vosagense, em Saint-Dié 21 , apoiada financeiramente<br />
pelo duque Renato II de Lorena e de Bar. Como Ringmann não sabia desenhar, Martin<br />
Waldseemüller, outro humanista alemão foi logo recrutado para ocupar-se dos mapas<br />
que ilustrariam a edição atualizada da Geografia. Como Ringmann, Waldseemüller<br />
também tinha um pseudônimo de inspiração greco-latina, Martinus Ilacomilus (ou<br />
Hylacomylus), que tem o mesmo sentido de Waldseemüller, ou seja, “moleiro da<br />
floresta sobre o lago”.<br />
Enquanto isso, chegou às mãos do duque de Lorena, Renato II, uma carta de<br />
Vespúcio, que hoje se pensa ser uma falsificação da famosa “carta a Soderini”. Essa<br />
carta retomava o conteúdo do Mundus novus, que Ringmann conhecia bem, e<br />
acrescentava algumas novas informações que apresentavam Américo Vespúcio como<br />
um marinheiro-filósofo (como Rafael Hitlodeu), um navegante-humanista que citava<br />
Petrarca e Giorgio Antonio Vespucci, por quem os humanistas alemães tinham enorme<br />
admiração. Ringmann leu esta carta e seu entusiasmo redobrou quando estudou o mapa<br />
de Nicola Caverio (1504-1505), que, além de ilustrar, como o mapa de Cantino, as<br />
recentes descobertas portuguesas, trazia indicações de latitudes deduzidas do relato de<br />
Vespúcio, particular precioso para Waldseemüller, que estava justamente em busca de<br />
indicações que lhe permitissem traçar o mais precisamente possível a localização das<br />
novas terras.<br />
Mostrar a extensão o mais completa possível do mundo em apenas um mapa<br />
também tinha um significado simbólico para Ringmann, que vislumbrava uma Europa<br />
unificada por um novo César, Maximiliano I, chefe de um império cristão que se<br />
estenderia a todas as partes do mundo. Essa idéia frutificou e fez com que Ringmann<br />
colocasse temporariamente de lado a confecção da nova edição da Geografia de<br />
Ptolomeu e se dedicasse à realização de um novo projeto em três partes:<br />
- um enorme mapa-múndi dedicado a Maximiliano I, realizado segundo o<br />
modelo ptolemaico, fundindo todo o conhecimento cartográfico antigo e moderno de<br />
que dispunha;<br />
- uma versão reduzida deste mapa, em fusos, feita para ser colada sobre uma<br />
esfera;<br />
- um guia a estes dois mapas, intitulado Cosmographiae introductio, que<br />
incluiria a versão da carta de Vespucci que havia sido enviada a Renato II (a chamada<br />
carta a Soderini, mais conhecida pelo título Quatuor navigationes 22 ).<br />
Ainda que outros membros do Gymnasium tenham participado, tratou-se de um<br />
projeto realizado essencialmente por Ringmann e Waldseemüller, sendo que a maior<br />
parte da concepção do projeto, da redação do tratado e certos detalhes da parte<br />
cartográfica foram do próprio 23 . É plausível supor que tenha sido ele a cunhar o nome<br />
21 Saint-Dié se situa a oeste da cadeia de montanhas dos Vosges, no ducado de Lorena, na época um dos<br />
Estados do Sacro Império Romano Germânico, governado por Maximiliano I de Habsburgo. Sobre a vida<br />
intelectual em Saint-Dié, ver RONSIN, op. cit., p. 111 a 189.<br />
22 A Lettera al Soderini data de 4 de setembro de 1504 e foi escrita em Lisboa. Ela ficou conhecida como<br />
Quatuor navigationes a partir de 1507 e dela foram realizadas numerosas reimpressões (ver RONSIN, op.<br />
cit., p. 107-110).<br />
23 Cf. LESTER, op. cit., p. 421-424 e RONSIN, op. cit., p. 130-131, 142-144). Ringmann também é o<br />
autor de um poema apresentado na segunda parte da Cosmographiae, dedicada à reprodução das cartas de
“América” e que seja ele o autor da explicação a respeito da escolha deste nome, que<br />
lemos na célebre passagem do capítulo IX da Cosmographiae:<br />
Estas partes [do mundo] foram amplamente exploradas, juntamente com uma<br />
quarta parte, descoberta por Amerigo Vespucci (como explicarei em seguida).<br />
Como Ásia e África foram batizadas com nomes de mulher, não vejo porque<br />
esta não possa ser chamada de Amerigen (ou seja, “terra de Amerigo”) ou<br />
América, em homenagem ao seu descobridor, homem de agudo engenho<br />
(sublinhado meu) 24 .<br />
Em uma carta introdutória do Syntagma de Musis (1511), ensaio sobre as musas<br />
escrito por um importante humanista do século XVI, Lilio Gregorio Giraldi 25 ,<br />
Ringmann retomará a reflexão sobre a atribuição de nomes femininos a conceitos e<br />
topônimos:<br />
Porque todas as virtudes, as qualidades intelectuais e as ciências são sempre<br />
simbolizadas como se pertencessem ao sexo feminino? Qual é a origem desta<br />
tradição, hábito comum não apenas aos autores pagãos, mas também aos Pais da<br />
Igreja? [...] Até mesmo as partes do mundo antigo receberam nomes de<br />
mulheres 26 .<br />
Outra característica do nome América indica que tenha sido Ringman a cunhálo:<br />
o gosto pela inventividade verbal, característico de Ringmann, que gostava de<br />
brincar com os significados possíveis e escondidos nas palavras e com a mistura de<br />
significados de origem grega e latina – aliás, do grupo do Gymnasium, apenas ele tinha<br />
um domínio excelente da língua grega.<br />
Se analisarmos, não a palavra “América”, mas a que a antecede, “Amerigen”,<br />
praticamente ignorada na bibliografia crítica, teremos uma ponte que liga Ringmann a<br />
Morus, e o mapa de Waldseemüller à Utopia. Antes de tudo é preciso reconhecer que<br />
Vespúcio, poema este presente no seu De ora Antarctica e retomado no Speculi orbis de Walter Lud. Os<br />
últimos oito versos dizem, em tradução livre: “à direita estende-se uma terra que um mar imenso cerca,<br />
terra habitada por uma população de homens nus. Um rei, orgulho do nobre Portugal, a descobriu<br />
enviando uma frota através dos escolhos do mar. Mas por que continuar a descrição? O livreto de<br />
Américo em seu pequeno formato contém a situação e os costumes das populações descobertas. Cândido<br />
leitor, percorre-o com um espírito imparcial e sem fazer, ao lê-lo, um nariz de rinoceronte!” [o “nariz de<br />
rinoceronte” é uma referência a um epigrama de Marcial].<br />
24 “Nunc vero et hae partes sunt latius lustratae, et alia quarta pars per Americum Vesputium (ut in<br />
sequentibus audietur) inventa est quam non video cur quis iure vetet ab Americo inventore sagacis ingenii<br />
viro Amerigen quasi Americi terram, sive Americam dicendam: cum et Europa et Asia a mulieribus sua<br />
sortita sint nomina. Eius situm et gentis mores ex bis binis Americi navigationibus quae sequuntur liquide<br />
intelligidatur.” Ou ainda no capítulo VII: “[...] quarta orbis pars (quam quia Americus invenit Amerigen,<br />
quase Americi terram, sive Americam nuncupare licet [...]” que podemos traduzir por: “[...] a parte do<br />
mundo à qual se pode chamar Amerigen, ou seja, terra de Américo ou América, já que Américo a<br />
descobriu [...].<br />
25 Lilio Gregorio Giraldi editou várias obras de autores clássicos e escreveu numerosos estudos, entre eles<br />
dois volumes de história literária: um dedicado à antiguidade grega e latina (Historia poetarum tam<br />
graecorum quam latinorum dialogi decem, 1545), outro aos escritores de seu tempo (De poetis suorum<br />
temporum dialogi duo, 1551). Ver ENENKEL, K. A. E. “The making of 16 th -Century Mythography:<br />
Giraldi’s Syntagma de Musis (1507, 1511 and 1539), De deis gentium historia (ca. 1500-1548) and Julien<br />
de Havrech’s De cognominibus deorum gentilium (1541)”. In: Humanistica Lovaniensia, vol. LI, 2002, p.<br />
9-53.<br />
26 Apud LESTER, op. cit., p. 423.
Amerigo corresponde, em alemão, a Almarich, nome de muitos personagens de relevo<br />
da história alemã, fato que não deve ter escapado a Ringmann que, como dissemos, era<br />
um estudioso de história alemã. Mas Ringmann – também já dissemos – era um<br />
estudioso de grego. Ele pode ter pensado que acrescentando a palavra gen, que vem do<br />
grego “terra”, a Amerigo, chegaria a uma alusão mais direta: Ameri-gen é a “terra de<br />
Amerigo”. E não apenas. Gen em grego remete a genos, “origem”, “nascimento”, noção<br />
que se funde com a idéia de feminino, logo de fertilidade, evocada por Ringmann na<br />
Cosmographiae. As nuances de sentido não se esgotam aqui. Meros também quer dizer,<br />
em grego, “lugar” [pars, em latim]. Precedido por um alfa privativo, a, e seguido de<br />
gen, “terra”, temos A-meri-gen, “não-lugar-terra”, uma “terra de nenhum lugar”, ou<br />
seja, uma “u-topia”!! 27<br />
Fica assim evidenciada a conexão entre utopia e América, por meio de uma<br />
análise etimológica bastante informal 28 .<br />
Esta análise se reforça se pensarmos que, no século XV, a idéia de continente era<br />
pouco precisa, e que a quarta pars do mundo podia se referir, no imaginário da época, a<br />
uma ilha 29 – América e Utopia podiam ser concebidas, segundo a cosmografia da época,<br />
como duas ilhas situadas fora do orbis terrarum então conhecido (Europa, Ásia,<br />
África).<br />
Ainda que não haja evidências diretas de que Morus tenha lido a Cosmographiae<br />
e consultado o mapa de Waldseemüller, relacioná-los à Utopia acrescenta interesse a<br />
essas três obras, que tem um substrato comum: elas indicam que o mundo é inteligível,<br />
pode ser percorrido, descrito, explicado e discutido, seja na forma de um tratado de<br />
geografia, de uma sutil ficção ou de um mapa-múndi.<br />
Termino aqui esta comunicação imaginando Morus lendo a Cosmographiae 30 e<br />
admirando o mapa de Waldseemüller pendurado em uma parede (possivelmente em<br />
Meuchlin, em 1515, na biblioteca de Jeroen van Busleyden), e pretendendo que<br />
“Utopia” seja uma piscadela de olhos para os humanistas que leram “Amerigen” no<br />
texto de Ringmann.<br />
27<br />
Ver CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck,<br />
1990.<br />
28<br />
Para uma história do nome América ver também RONSIN, Albert. La fortune d’un nom: America. Le<br />
baptême du Nouveau Monde à Saint-Dié-des-Vosges. Cosmographiae introductio suivie des Lettres<br />
d’Amerigo Vespucci. Grenoble: Jerôme Millon, 1991, além de RONSIN, 2006, op. cit.<br />
29<br />
Cf. WASHBURN, W. E. “The meaning of ‘discovery’ In the Fifteenth and Sixteenth centuries”. In:<br />
The American Historical Review, 68, 1, 1962, p. 3-4; 11.<br />
30<br />
A Cosmografia foi editada seis vezes em 1507, em Saint-Dié, uma em Strasboug, em 1509, e uma em<br />
Lyon entre 1515 e 1518. Essas seis edições “foram suficientes para que o texto das quatro viagens de<br />
Vespúcio fosse divulgado no mundo erudito e a maior parte dos geógrafos do século XVI adotasse o<br />
nome América designando o Novo Mundo” (RONSIN, 2006, op. cit., p. 109).