06.04.2013 Views

Equivalência e aplicação de áreas na Matemática grega

Equivalência e aplicação de áreas na Matemática grega

Equivalência e aplicação de áreas na Matemática grega

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA<br />

GREGA<br />

JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

1. Introdução<br />

A geometria, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primórdios, se preocupou com medições; segundo Herôdoto (historiador grego<br />

(viveu em torno <strong>de</strong> 484 – 420 a.C.) a geometria teria <strong>na</strong>scido no Egito, porque, após cada enchente do<br />

Rio Nilo, era necessário <strong>de</strong>marcar novamente as terras. Demarcá-las para quê? Certamente para evitar<br />

disputas <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s entre visinhos, e, certamente mais importante, tambem para calcular impostos<br />

<strong>de</strong>vidos. E para isso é necessário calcular <strong>áreas</strong> <strong>de</strong> terrenos. De fato, no papiro Rhind, o mais antigo<br />

documento escrito matemático que conhecemos, datado aproximadamente <strong>de</strong> 1700 a.C., mas copiado <strong>de</strong><br />

um origi<strong>na</strong>l mais antigo, escrito entre 2000 e 1800 a.C., encontram-se problemas <strong>de</strong> cálculo <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>,<br />

e mesmo <strong>de</strong> volumes. Algumas das fórmulas usadas são corretas, outras dão resultados aproximados.<br />

Por exemplo, a área <strong>de</strong> um quadrilátero era calculada multiplicando a média dos comprimentos <strong>de</strong> dois<br />

lados opostos pela média dos comprimentos dos outros dois lados, adjacentes, o que funcio<strong>na</strong> bem se o<br />

paralelogramo for “quase”um retângulo1 .<br />

Encontram-se também, entre os habitantes da Mesopotâmia, problemas práticos <strong>de</strong> geometria, envolvendo<br />

o cálculo <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>.<br />

Na Grécia, certamente se usava geometria prática, para calcular <strong>áreas</strong> e volumes, em arquitetura e<br />

agrimensura, entre outros. No entanto, por várias razões que não serão aprofundadas aqui, ao lado <strong>de</strong>ssa<br />

geometria <strong>de</strong> caráter essencialmente utilitário, <strong>de</strong>senvolveu-se, a partir <strong>de</strong> aproximadamente 600 a.C., o<br />

pensamento geométrico especulativo, sem preocupação com aplicações imediatas. Diz-se que Tales (aprox.<br />

640 – 547 a.C.), usou semelhança <strong>de</strong> triângulos para calcular a distância <strong>de</strong> um <strong>na</strong>vio à terra. Afirma-se<br />

também que ele foi capaz <strong>de</strong> calcular a altura da gran<strong>de</strong> pirâmi<strong>de</strong> do Egito, quando visitou aquela região,<br />

usando mais uma vez semelhança <strong>de</strong> triângulos. Aos poucos, a geometria passou a ser vista mais e mais<br />

como um corpo <strong>de</strong> conhecimentos logicamente enca<strong>de</strong>ados, cultivados por seu encanto e pela força dos<br />

resultados obtidos.<br />

Platão (427–347 a.C.) ressaltou a importância da matemática para a formação do espírito, a fim <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spreendê-lo das coisas sensíveis, mutáveis, sobre as quais o conhecimento é impossível. Somente as<br />

idéias, imutáveis e eter<strong>na</strong>s, podiam realmente ser conhecidas. Em seus diálogos, abundam exemplos e<br />

a<strong>na</strong>logias utilizando conceitos e resultados matemáticos, especialmente geométricos. Embora não tenha<br />

sido um matemático, no círculo <strong>de</strong> discípulos <strong>de</strong> Platão, em sua aca<strong>de</strong>mia, havia vários matemáticos<br />

<strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za, como Teeteto (∼ 417 a.C. – ∼ 369 a.C.) e Eudoxo ( 408 a.C - 355 a.C.), entre<br />

outros. Platão provavelmente <strong>de</strong>veu muito da matemática que sabia a Árquitas <strong>de</strong> Tarento (viveu <strong>de</strong><br />

aproximadamente 428 a aproximadamente 350 a.C.), seguidor ardoroso das idéias pitagóricas, que viam<br />

<strong>na</strong> matemática a chave para a compreensão do mundo. Pitágoras (∼ 580 – ∼500 a.C.) ensi<strong>na</strong>va que tudo<br />

é número. Sua matemática estava impreg<strong>na</strong>da <strong>de</strong> misticismo numérico, provavelmente haurido em suas<br />

viagens pelo “oriente”(Mesopotâmia).<br />

Em torno <strong>de</strong> 300 a.C, encontra-se uma matemática bem sofisticada, exposta nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Alexandria (viveu aproximadamente <strong>de</strong> 325 a 265 a.C.). Um pouco <strong>de</strong>pois, Arquime<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Siracusa<br />

(287-212 a.C.) <strong>de</strong>u contribuições extremamente importantes à geometria, entre outros campos. Um pouco<br />

mais jovem, Apolônio <strong>de</strong> Perga (262-190 a.C.) escreveu um tratado sofisticado sobre as cônicas.<br />

Por que, entre os gregos, a geometria prática, usada no dia a dia, no comércio, <strong>na</strong> arquitetura, pelos<br />

administradores, comerciantes, fazen<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong>u origem à geometria como a <strong>de</strong>finimos hoje, o estudo das<br />

formas pla<strong>na</strong>s e espaciais? Não se sabe. Alguns autores estabelecem um paralelo entre o surgimento<br />

1 van <strong>de</strong>r WAERDEN, p 32.


2 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

da filosofia e o da matemática, a partir da prática <strong>de</strong> argumentação empregada nos <strong>de</strong>bates políticos <strong>na</strong>s<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>grega</strong>s. O certo é que, rapidamente, a matemática <strong>grega</strong> se <strong>de</strong>senvolveu. Já Eu<strong>de</strong>mo <strong>de</strong> Ro<strong>de</strong>s, que<br />

viveu aproximadamente <strong>de</strong> 350 a 290 a.C., escreveu uma história da matemática, dividida em uma história<br />

da aritmética, uma história da geometria e uma história da astronomia, o que mostra o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

atingido por esses campos, <strong>na</strong> Grécia. Outros estudiosos afirmam que a matemática <strong>grega</strong> adotou seu estilo<br />

abstrato, <strong>de</strong>dutivo, <strong>de</strong>vido à crise da <strong>de</strong>scoberta, pelos pitagóricos, dos números irracio<strong>na</strong>is. A <strong>de</strong>scoberta<br />

que a diago<strong>na</strong>l do quadrado é incomensurável com seu lado mostrou que os números, e as razões entre<br />

eles, são incapazes <strong>de</strong> explicar certos fatos bem simples. Já que os números se mostravam incapazes <strong>de</strong><br />

tudo explicar, era necessário refugiar-se em conhecimentos mais confiáveis. Aristóteles (384 – 322 a.C.)<br />

percebia que, <strong>na</strong> prática, baseando-se em diagramas e <strong>de</strong>senhos é impossível <strong>de</strong>cidir se dois segmentos<br />

são ou não comensuráveis. Essa percepção teria obrigado os matemáticos gregos a basear seus raciocínios<br />

em argumentos puramente <strong>de</strong>dutivos, utilizando figuras i<strong>de</strong>ais, perfeitas, e não representações gráficas<br />

imperfeitas.<br />

Qualquer que tenha sido a razão disso, a matemática <strong>grega</strong> se <strong>de</strong>senvolveu consi<strong>de</strong>ravelmente. Todo um<br />

corpo <strong>de</strong> conhecimentos, tanto geométricos quanto aritméticos, está presente nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s,<br />

escritos em torno <strong>de</strong> 300 a.C, a obra matemática <strong>grega</strong> mais antiga que nos chegou completa. Além<br />

disso, há muitos resultados matemáticos dos gregos que nos chegaram por outras vias, ou <strong>de</strong> que temos<br />

simplesmente referências. Posteriormente a Eucli<strong>de</strong>s, conhecemos mais obras, como, entre outras, as<br />

Cônicas <strong>de</strong> Apolônio, <strong>de</strong> que sobreviveram até nós 7 dos 8 livros origi<strong>na</strong>is, 4 em grego e 3 em árabe, a<br />

Coleção <strong>Matemática</strong>, <strong>de</strong> Papus <strong>de</strong> Alexandria (290–350 d.C.) e vários trabalhos <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s.<br />

Muito da matemática <strong>grega</strong> se <strong>de</strong>veu às tentativas <strong>de</strong> resolver os três problemas clássicos da geometria,<br />

a duplicação do cubo, a quadratura do círculo e a a trisecção do ângulo. Além disso, é inegável, como<br />

reconhecido hoje, a influência da música teórica <strong>grega</strong> no conteúdo dos Elementos.<br />

A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que existem pares <strong>de</strong> segmentos incomensuráveis moldou muito do <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

matemática <strong>grega</strong>. Por exemplo, hoje é fácil mostar que a área <strong>de</strong> um retângulo é igual ao produto dos<br />

comprimentos <strong>de</strong> dois lados adjacentes (“o produto da base pela altura”). A <strong>de</strong>monstração, no caso em<br />

que os dois lados são comensuráveis é feita nos livros didáticos <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong> para o ensino básico:<br />

Figura 1.<br />

Área <strong>de</strong> um retângulo<br />

Toma-se uma medida comum, u, aos lados AB e AD e <strong>de</strong>compõe-se a figura em quadrados <strong>de</strong> lado u<br />

(veja a Figura 1). Contando-se os quadrados ao longo <strong>de</strong> AB e <strong>de</strong> AD chega-se ao resultado <strong>de</strong>sejado. O<br />

caso em que os segmentos AB e AD não têm medida comum, ou, em linguagem mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>, quando um <strong>de</strong>les<br />

ou ambos são incomensuráveis, é geralmente evitado nos livros escolares. Uma <strong>de</strong>monstração encontra-se<br />

em LIMA (1997).


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 3<br />

Como os matemáticos gregos resolveram este problema? O que você faria para medir gran<strong>de</strong>zas se<br />

não houvesse os números reais? Seria realmente um problema. Qualquer que fosse a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medida<br />

escolhida, a diago<strong>na</strong>l do quadrado cujo lado fosse essa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medida seria incomensurável com o lado<br />

do quadrado!<br />

Uma solução para este problema seria, em vez <strong>de</strong> medir gran<strong>de</strong>zas, por exemplo, no caso que nos<br />

interessa, <strong>áreas</strong>, po<strong>de</strong>r transformar qualquer figura em uma outra, bem simples, que escolheríamos como<br />

padrão, e com a qual compararíamos a figura origi<strong>na</strong>l. Para os gregos, a figura padrão com qual seria<br />

comparada qualquer outra, era o quadrado. Ou seja, dada uma figura qualquer, como achar um quadrado<br />

que fosse igual a ela, isto é, que tivesse a mesma área.<br />

Veremos que os matemáticos gregos resolveram completamente este problema para figuras poligo<strong>na</strong>is,<br />

ou seja, <strong>áreas</strong> <strong>de</strong> polígonos planos. Como mostrado nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, dado qualquer polígono<br />

plano, é possível construir, usando somente régua e compasso, um quadrado cuja área é igual à área do<br />

polígono dado.<br />

Até que tivesse sido formulada a teoria das proporções <strong>de</strong> Eudoxo (viveu aproximadamente <strong>de</strong> 408<br />

a.C a 345 a.C.), a geometria <strong>grega</strong> se <strong>de</strong>parava com o problema <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r utilizar proporcio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>,<br />

como fazemos atualmente, em muitas <strong>de</strong>monstrações. Hoje, por exemplo, para <strong>de</strong>monstrar o teorema <strong>de</strong><br />

Pitágoras, po<strong>de</strong>mos proce<strong>de</strong>r como segue<br />

Teorema 1. Elementos I.47 – DEMONSTRAÇÃO USANDO SEMELHANÇA– Em um triângulo retângulo,<br />

o quadrado construído sobre o lado oposto ao ângulo reto é igual à soma dos quadrados construidos sobre<br />

os lados que compreen<strong>de</strong>m o ângulo reto.<br />

Figura 2. Elementos I.47<br />

Demonstração por semelhança <strong>de</strong> triângulos<br />

Seja o triângulo ABC, retângulo em A (Figura 2). Do vértice A, baixe a altura AD sobre a hipotenusa<br />

BC. É fácil ver que os triângulos ABC, CBA e CAB são semelhantes entre si.<br />

Da semelhança <strong>de</strong> CDA com CAB, temos que AC<br />

CB<br />

= AD<br />

AB<br />

Da semelhança <strong>de</strong> ADB com CAB, temos que AB BD = CB AB<br />

Chamemos CD <strong>de</strong> x, DB <strong>de</strong> y e CB <strong>de</strong> a. Temos então:<br />

AC<br />

CB<br />

= CD<br />

AC<br />

CD = AC .<br />

AD = AC .<br />

=⇒ ax = AC2<br />

AB BD<br />

= =⇒ ay = AB2<br />

CB AB<br />

Vemos assim que a(x + y) = AC 2 + AB 2 . Como x + y = a, chegamos ao resultado <strong>de</strong>sejado.<br />

Comparemos isso com a <strong>de</strong>monstração dada por Eucli<strong>de</strong>s nos Elementos, que utiliza somente equivalência<br />

<strong>de</strong> <strong>áreas</strong> 2 .<br />

2 Reproduziremos a <strong>de</strong>monstração dada em SIMSON (1773).


4 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Teorema 2. Elementos I.47 – Em um triângulo retângulo, o quadrado construído sobre o lado oposto ao<br />

ângulo reto é igual à soma dos quadrados construidos sobre os lados que fazem o mesmo ângulo reto.<br />

Figura 3. Elementos I.47- Demonstração <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s<br />

Seja o triângulo retângulo ABC (Figura 3), cujo ângulo reto é BAC. Digo que o quadrado feito sobre<br />

o lado BC é igual aos quadrados <strong>de</strong>scritos sobre os lados BA, AC, que formam o ângulo reto BAC.<br />

Descreva-se sobre BC o quadrado BDEC, e sobre BA, AC, os quadrados BG, HC. Pelo ponto A<br />

tire-se AL, paralela a BD ou CE, tirem-se também as retas AD, FC. Porque os ângulos BAC, BAG são<br />

retos, as duas retas CA, AG estão em direitura uma com a outra. O mesmo será a respeito das duas AB,<br />

AH. Os ângulos DBC, FBA, por serem retos, são iguais. Ajunte-se-lhes o mesmo ângulo ABC. Logo,<br />

o total DBA será igual ao total FBC. E sendo as duas AB, AC iguais às duas FB, BC, cada uma a<br />

cada uma, e o ângulo DBA = FBC, será o triângulo ABD = FBC outro triângulo. Mas o paralelogramo<br />

BL é o dobro do triângulo ABD, porque está sobre a mesma base BD, e entre as mesmas paralelas BD,<br />

AL; e o quadrado GB; e o quadrado GB é o dobro do triângulo FBC, porque tem a base comum FB, e<br />

estão entre as mesmas paralelas FB, GC. Logo, sendo iguais os dobros <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>s iguais, <strong>de</strong>ve ser o<br />

paralelogramo BL igual ao quadrado GB. Do mesmo modo, tiradas as retas AE, BK, se <strong>de</strong>monstra, que<br />

o paralelogramo CL é igual ao quadrado HC. Logo, o quadrado inteiro BDEC, feito sobre o lado BC<br />

oposto ao ângulo reto BAC, é igual aos dois quadrados GB, HC formados sobre os lados BA, AC, que<br />

fazem o mesmo ângulo reto BAC. Q.E.D.<br />

Observe que nesta <strong>de</strong>monstração não se usa proporcio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>. Todos os passos são dados utilizando<br />

equivalência <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>.<br />

Como até Eudoxo não havia uma teoria geral das proporções, que permitisse lidar com proporcio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas, comensuráveis ou não, Eucli<strong>de</strong>s, nos Elementos, até o Livro V faz suas <strong>de</strong>monstrações


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 5<br />

utilizando equivalência <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>, o que lhe permite, por exemplo, fazer sua famosa <strong>de</strong>monstração para o<br />

teorema <strong>de</strong> Pitágoras, que acabamos <strong>de</strong> ver (Teorema 2).<br />

Por que a exigência <strong>de</strong> utilizar somente a régua e o compasso? São inúmeras as tentativas <strong>de</strong> interpretação<br />

para isso. Uma <strong>de</strong>las é que os filósofos gregos consi<strong>de</strong>ravam dois tipos <strong>de</strong> movimentos “<strong>na</strong>turais”e<br />

perfeitos, o movimento retilíneo uniforme e o movimento circular uniforme.<br />

Para os primeiros geômetras gregos, uma linha era o percurso <strong>de</strong> um ponto, e a linha reta era um percurso<br />

sem asperezas e <strong>de</strong>svios [SZABO, 2000]. No entanto, aos poucos, os matemáticos gregos se distanciaram<br />

da realida<strong>de</strong> palpável, como se vê, por exemplo, em Platão:<br />

[a Geometria] tem por objeto o conhecimento do que sempre é e não do que <strong>na</strong>sce e perece.<br />

Passaram também a dar ao círculo e à reta papeis <strong>de</strong>stacados:<br />

...<br />

Aristóteles - O que não tem nem começo nem fim é portanto ilimitado.<br />

Parmêni<strong>de</strong>s- Ele é ilimitado.<br />

Aristóteles - Portanto ele não tem forma, pois não participa nem do redondo nem do reto.<br />

Além da idéia <strong>de</strong> perfeição i<strong>de</strong>al atribuída ao círculo e à linha reta, uma outra razão possível para a<br />

restrição à régua e ao compasso po<strong>de</strong> ter sido a crise <strong>de</strong>vida à <strong>de</strong>scoberta da irracio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> √ 2 ,<br />

número que po<strong>de</strong>, no entanto, ser construído com régua e compasso. Esses instrumentos eram a garantia<br />

da existência <strong>de</strong> números como este.<br />

No entanto, é falsa a crença <strong>de</strong> que os gregos, <strong>na</strong> resolução <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> construções geométricas, trabalhavam<br />

somente com a régua e o compasso. Exatamente como os matemáticos <strong>de</strong> hoje, para resolverem<br />

um problema eles usavam todas as ferramentas disponíveis ou criavam novas ferramentas apropriadas.<br />

De suas tentativas para achar soluções para os problemas clássicos, surgiram várias curvas e métodos que<br />

enriqueceram a <strong>Matemática</strong>. Encontram-se em [KNORR, 1986] e [BOS, 2001] construções geométricas, incluindo<br />

soluções dos três problemas clássicos, utilizando várias curvas e outros instrumentos. O matemático<br />

van <strong>de</strong>r Waer<strong>de</strong>n resumiu a situação como segue:<br />

A idéia por vezes expressa <strong>de</strong> que os gregos permitiam somente construções com régua e<br />

compasso é i<strong>na</strong>dmissível. Ela é negada pelas numerosas construções que nos chegaram para<br />

a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo. No entanto, é verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que tais construções<br />

[com régua e compasso] eram consi<strong>de</strong>radas mais elementares, e portanto preferíveis. Pappus<br />

afirma que se uma construção for possível com régua e compasso métodos mais avançados<br />

não <strong>de</strong>veriam ser usados. [van <strong>de</strong>r Waer<strong>de</strong>n, p. 263.]<br />

Isso parece seguir a mesma linha que o princípio da <strong>na</strong>valha <strong>de</strong> Ockham, muito posterior. Na linguagem<br />

popular, po<strong>de</strong>ríamos dizer que não se <strong>de</strong>ve usar um canhão para matar uma mosca.<br />

Neste trabalho, veremos, inicialmente, como Eucli<strong>de</strong>s, nos Elementos, consegue resolver completamente<br />

o problema <strong>de</strong> fazer a quadratura, “quadrar”, qualquer figura poligo<strong>na</strong>l, usando somente transformações<br />

<strong>de</strong> <strong>áreas</strong>, <strong>de</strong> maneira a mostrar que duas figuras têm a mesma área. Isto é, dado um polígono qualquer,<br />

construir somente com a régua e o compasso, um quadrado com a mesma área.<br />

Em seguida, estudaremos o problema <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>, uma técnica característica da matemática<br />

<strong>grega</strong>, e que posteriormente, <strong>de</strong> maneira a<strong>na</strong>crônica, serviu <strong>de</strong> apoio à tese que parte da geometria<br />

<strong>grega</strong> é uma tradução, em termos geométricos, da solução “algebrica” <strong>de</strong> equações do 2 o grau, já feita<br />

pelos babilônios, ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>fendido por van <strong>de</strong>r WAERDEN (s/d) e fortemente contestado, mais<br />

recentemente, por UNGURU (1981, 1982), entre outros.


6 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

2. <strong>Equivalência</strong> e <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s<br />

2.1. <strong>Equivalência</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>. Neste capítulo, nosso objetivo é mostrar como construir, usando somente<br />

régua e compasso, um quadrado cuja área seja igual à área <strong>de</strong> uma superfície poligo<strong>na</strong>l dada. Eucli<strong>de</strong>s faz<br />

isso nos Livros I e II, antes <strong>de</strong> ter à sua disposição a teoria das proporções <strong>de</strong> Eudoxo, exposta somente<br />

no Livro V. Assim, em todas as construções que faremos a seguir, não são utilizados argumentos baseados<br />

em proporções.<br />

Em primeiro lugar, uma advertência quanto à terminologia que empregaremos. Como faremos freqüentemente<br />

referência aos Elementos, é importante lembrar duas coisas:<br />

(1) Eucli<strong>de</strong>s emprega o termo linha reta ou reta às vezes para <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r o que <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>mos hoje<br />

segmento <strong>de</strong> reta, outras vezes para <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r linha reta. Usa também o termo reta finita para<br />

<strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r segmento <strong>de</strong> reta.<br />

(2) Para Eucli<strong>de</strong>s, afirmar que duas figuras são iguais por vezes significa dizer que elas são congruentes,<br />

outras vezes que elas têm a mesma área.<br />

O que exporemos a seguir encontra-se nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, Livros I e II. Faremos citações da<br />

Edição <strong>de</strong> Commandino, <strong>na</strong> edição inglêsa, feita em 1756, por Robert Simson (matemático escocês que<br />

viveu <strong>de</strong> 1687 a 1768), e que foi a base para inúmeras outras edições posteriores dos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s.<br />

Esta edição foi traduzida para o português, em 1773, por or<strong>de</strong>m do Marquês <strong>de</strong> Pombal Em 1944, ela foi<br />

publicada no Brasil pela Edições Cultura, São Paulo. Encontra-se atualmente disponível, gratuitamente,<br />

no site www.dominiopublico.gov.br.<br />

O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s são os critérios <strong>de</strong> congruência <strong>de</strong> triângulos (I.4, I.8, I.26), que omitiremos,<br />

para não prologarmos <strong>de</strong>masiadamente esta exposição. Em seguida, Eucli<strong>de</strong>s <strong>de</strong>monstra o resultado<br />

importante para nós, que também não <strong>de</strong>monstraremos:<br />

Teorema 3. Elementos I.34 – Os lados e os ângulos opostos dos espaços formados com lihas paralelas,<br />

ou paralelogramos, são iguais; e todo o espaço paralelogramo, fica dividido pela diago<strong>na</strong>l em duas partes<br />

iguais.<br />

Após isso, <strong>na</strong> linha <strong>de</strong> nosso trabalho, Eucli<strong>de</strong>s <strong>de</strong>monstra que<br />

Teorema 4. Elementos I.35 – Os paralelogramos, que estão postos sobre a mesma base, e entre as mesmas<br />

paralelas, são iguais.<br />

Há três casos a consi<strong>de</strong>rar, mostrados <strong>na</strong>s Figuras 4, 5 e 6, a seguir. Como sempre, Eucli<strong>de</strong>s <strong>de</strong>monstra<br />

somente um caso, <strong>de</strong>ixando o outro a cargo do leitor. Aqui, apresentaremos os 3 casos, baseando-nos <strong>na</strong><br />

tradução para o português da edição <strong>de</strong> Simson.<br />

Figura 4. Elementos I.35 - primeiro caso<br />

(1) Sejam os paralelogramos ABCD e EFCB sobre a mesma base BC, entre as mesmas paralelas AF,<br />

BC (Figura 4). Digo que o paralelogramo ABCD é igual ao paralelogramo EBCF.<br />

No paralelogramo ABCD é AB = BC, e no paralelogramo EBCF é EF = BC. Logo será<br />

AD = EF. Ajunte-se a ambas a mesma reta DE. Será AE = DF, isto é, o todo igual ao todo.


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 7<br />

Mas é AB = DC. Logo as duas EA, AB são iguais às duas FD, DC, cada uma a cada uma. Mas<br />

o ângulo externo FDC é igual ao interno EAB. Será o triângulo EAB = FDC outro triângulo.<br />

Do trapézio ABCF tire-se o triângulo FDC; e do mesmo trapézio tire-se o triângulo EAB. Logo<br />

os paralelogramos ABCD, EBCF, que são os restos, serão iguais entre si.<br />

(2) Suponhamos agora que o ponto E está entre os pontos A e D, como <strong>na</strong> Figura 5.<br />

Figura 5. Elementos I.35 - segundo caso<br />

No paralelogramo ABCD é AB = BC, e no paralelogramo EBCF é EF = BC. Logo será<br />

AD = EF. Retire-se a mesma reta DE Será AE = DF, isto é, o resto igual ao resto. Mas é<br />

AB = DC. Logo as duas EA, AB são iguais às duas FD, DC, cada uma a cada uma. Mas o<br />

ângulo externo FDC é igual ao interno EAB. Será o triângulo EAB = FDC outro triângulo. Do<br />

trapézio ABCF tire-se o triângulo FDC; e do mesmo trapézio tire-se o triângulo EAB. Logo os<br />

paralelogramos ABCD, EBCF, que são os restos, serão iguais entre si.<br />

(3) Resta a consi<strong>de</strong>rar o caso em que D = E (Figura 6).<br />

Figura 6. Elementos I.35 - terceiro caso<br />

Se os lados AD, EF dos paralelogramos ABCD, DBCF opostos à base comum BC tiverem um ponto<br />

comum, D; claro está que, sendo os paralelogramos ABCD, DBF cada um o dobro do mesmo triângulo<br />

BDC, serão iguais entre si (Figura 6). Q.E.D<br />

De posse <strong>de</strong>ste resultado, é fácil mostrar que<br />

Teorema 5. Elementos I.36 – Paralelogramos que têm bases iguais, e situados entre paralelas são iguais.<br />

Sejam os paralelogramos ABCD e EFGH. Tirem-se as retas BE, CH 3 (Figura 7). Sendo BC = FG,<br />

e FG = EH, será BC = EH. Mas BC, EH são paralelas, e entre os termos <strong>de</strong>las B, E, C, H estão<br />

tiradas as retas BE, CH; e as retas, que estão tiradas entre os extremos <strong>de</strong> duas outras iguais e paralelas,<br />

3 Estamos mais uma vez reproduzindo a versão <strong>de</strong> SIMSON (1773).


8 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Figura 7. Elementos I.36<br />

e da mesma parte, são também iguais e paralelas. Logo, EB, CH são iguais e paralelas. Logo, EBCH é<br />

um paralelogramo, igual ao paralelogramo ABCD; por ter a mesma base BC e por estar entre as mesmas<br />

paralelas BC, AD. Pela mesma razão será paralelogramo EFGH = EBCH, outro paralelogramo. Logo,<br />

os paralelogramos ABCD, EFGH serão iguais entre si.<br />

Nas proposições I.35 (4) e I.36 (5), Eucli<strong>de</strong>s utiliza pela primeira vez a noção <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> entre figuras<br />

significando igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>, e não congruência, como usado em I.4, I.8, I.26, os critérios <strong>de</strong> congruência<br />

<strong>de</strong> triângulos.<br />

Conseqüências imediatas <strong>de</strong>ssas proposições são<br />

Teorema 6. Elementos I.37 – Triângulos situados sobre a mesma base e entre as mesmas paralelas são<br />

iguais entre si.<br />

Teorema 7. Elementos I.38– Triângulos que têm bases iguais e estão entre as mesmas paralelas são iguais<br />

entre si.<br />

As <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong>sses dois teoremas <strong>de</strong>correm imediatamente dos resultados prece<strong>de</strong>ntes.<br />

Demonstraremos agora um resultado muito usado nos Elementos, o qual permite que Eucli<strong>de</strong>s possa<br />

dispensar, muitas vezes, o conceito <strong>de</strong> figuras semelhantes.<br />

Consi<strong>de</strong>re um paralelogramo ABCD, com a diago<strong>na</strong>l AC (Figura 7). Seja P um ponto qualquer sobre<br />

essa diago<strong>na</strong>l. Por P trace paralelas a AB e a BC. Sejam os pontos E, F, G e H como mostrados <strong>na</strong><br />

figura. Então, os paralelogramos KGCF e AEKH têm <strong>áreas</strong> iguais. Na palavras <strong>de</strong> Simson (1855),<br />

Teorema 8. Elementos I.43 – Em qualquer paralelogramo, os complementos dos paralelogramos que<br />

existem ao redor da diago<strong>na</strong>l, são iguais entre si.<br />

Figura 8. Elementos I.43<br />

Neste enunciado, os paralelogramos que existem ”ao redor” da diago<strong>na</strong>l AC são AEKH e KGCF. Os<br />

complementos são EBGK e KFDH (Figura 8).


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 9<br />

Seja o parallelogramo ABCD, cuja diago<strong>na</strong>l é AC; e existam ao redor da diago<strong>na</strong>l AC os parallelogramos<br />

EH, FG; e os que se chamam complementos, serão os dous paralogramos BK, KD. Digo, que o<br />

complemento BK é egual ao complemento KD.<br />

Como ABCD é um paralelogramo, e AC é sua diago<strong>na</strong>l, o triângulo ABC é igual ao triângulo ADC.<br />

Como AEKH é um paralelogramo, e AK é sua diago<strong>na</strong>l, o triângulo AEK é igual ao triângulo AHK.<br />

Pela mesma razão, o triângulo KGC é igual ao triângulo KFC. Portanto, omo o triângulo AEK é igual<br />

ao triângulo AHK, e o triângulo KGC é igual ao triângulo KFC, o triângulo AEK juntamente com<br />

o triângulo KGC é igual ao triângulo AHK juntamente com o triângulo KFC. Mas já foi mostrado<br />

que o triângulo ABC é igual ao triângulo ADC. Portanto, o que resta, o complemento BK, é igual ao<br />

complemento KD. Q.E.D.<br />

Esta proposição admite outra <strong>de</strong>monstração, conseqüência direta <strong>de</strong> I.36 (Veja a Figura 9):<br />

Pela Proposição I.36(Teorema 5), os paralelogramos HKFD e KCNH são iguais. Pela mesma razão,<br />

são iguais os paralelogramos EKBG e KCME.<br />

Como os triângulos AEKe AKH são congruentes (por quê?), eles têm alturas iguais baixadas sobre<br />

AK. Assim, as paralelas HN e EK são equidistantes <strong>de</strong> AG e assim as <strong>áreas</strong> <strong>de</strong> KHNG e <strong>de</strong> KEMC<br />

são iguais. Disso <strong>de</strong>corre que as <strong>áreas</strong> <strong>de</strong> DHDF e <strong>de</strong> EKGB são iguais.<br />

Figura 9. Demonstração alter<strong>na</strong>tiva <strong>de</strong> I.43<br />

2.2. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>. O que é, <strong>na</strong> terminologia matemática <strong>grega</strong>, aplicar uma figura (poligo<strong>na</strong>l)<br />

a uma reta dada? Esse problema consiste em construir a figura <strong>de</strong> tal maneira que o segmento <strong>de</strong> reta<br />

seja um <strong>de</strong> seus lados. Em geral, é exigido que a figura construida, preencha algumas exigências. Por<br />

exemplo, sejam ABCDE um polígono e KL um segmento <strong>de</strong> reta (Figura 10). Aplicar ao segmento KL,<br />

por exemplo, um paralelogramo, com área igual a ABDE, significa construir um paralelogramo KLRS<br />

<strong>de</strong> que KL é um dos lados, e cuja área seja igual à área <strong>de</strong> ABCDE. Po<strong>de</strong> também ser pedido que o<br />

paralelogramo atenda a outras exigências, como, por exemplo, ter o ângulo SKL igual a um ângulo dado.<br />

O primeiro passo nessa direção é dado por<br />

Problema 9. Elementos I.42– Construir um paralelogramo igual a um triângulo dado, e que tenha um<br />

ângulo igual a outro ângulo dado.<br />

Seja dado o triângulo ABC, e o ângulo retilíneo D (Figura 11). Deve-se construir um paralelogramo<br />

igual ao triângulo ABC, e com um ângulo igual ao ângulo D.<br />

Divida-se a base BC em duas partes iguais no ponto E; tire-se AE, e com a reta EC no ponto E se faça<br />

o ângulo CEF = D. Pelo ponto A conduza-se AG paralela a EC, e pelo ponto C a reta CG paralela a<br />

EF. Será FECG um paralelogramo. E sendo BE = EC, o triângulo ABE será igual ao triângulo AEC,<br />

por estarem ambos sobre as bases iguais BE, EC e entre as mesmas paralelas BC, AG. Logo o triângulo<br />

ABC é o dobro do triângulo AEC. Mas também o paralelogramo FECG é o dobro do mesmo triângulo<br />

AEC, que se acha sobre a mesma base, e entre as mesmas paralelas do paralelogramo FECG. Logo, o<br />

paralelogramo FECG é igual ao triângulo ABC, e tem o ângulo CEF = D, que é o ângulo dado. Logo,<br />

temos construido o paralelogramo que se pedia.


10 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Figura 10. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong><br />

Figura 11. ELEMENTOS I.42<br />

Em seguida, impomos mais condições sobre a figura a ser construída: que ela seja aplicada a um segmento<br />

dado.<br />

Problema 10. Elementos I.44 – Sobre uma linha reta dada, construir um paralelogramo, igual a um<br />

triângulo dado, e que tenha um ângulo igual a outro ângulo retilíneo dado.<br />

Seja dada a reta AB, o triângulo ABC e o ângulo retilíneo D (Figura 12). Deve-se construir sobre a<br />

reta dada AB um paralelogramo igual ao triângulo ABC, e que tenha um ângulo igual ao ângulo D.<br />

Faça-se o paralelogramo BEFG igual ao triângulo ABC e com um ângulo EBG igual ao triângulo D.<br />

Ponha-se BE em direitura com a reta AB, e produza-se FG para H; e pelo ponto A se tire AH paralela a<br />

BC, ou EF; e fi<strong>na</strong>lmente seja conduzida a reta HB. Porque as paralelas AH, EF são cortadas pela reta<br />

HF, os ângulos AHF HFE são menores que dois retos. Mas as retas, que com uma terceira fazem os<br />

ângulos internos, e da mesma parte menores que dois retos, produzidas ao infinito fi<strong>na</strong>lmente concorrem.<br />

Logo, as duas retas HB, FE <strong>de</strong>vem concorrer. Produza-se pois, e concorram no ponto K. Por este ponto


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 11<br />

Figura 12. Elementos I.44<br />

tire-se a reta KL paralela a EA e sejam produzidas as retas HA, GB até L, e M. Logo, HLKF é um<br />

paralelogramo, cujo diâmetro é RH, e ao redor <strong>de</strong>ste diâmetro RK existem os paralelogramos AG, ME,<br />

cujos complementos são os paralelogramos LB, BF. Logo será LB = BF. Mas o complemento BF é<br />

igual ao triângulo ABC. Logo o complemento LB será igual ao mesmo ângulo triângulo ABC. E porque<br />

o ângulo GBE é igual ao ângulo ABM, e também é igual ao ângulo D, será o ângulo ABM = D. Logo,<br />

sobre a linha reta dada AB temos construído o paralelogramo LB igual ao triângulo dado ABC, e com<br />

um ângulo ABM igual ao ângulo proposto D. Q.E.D.<br />

A diferença entre I.42 e I.44, é que no segundo caso é especificado um dos lados do paralelogramo, o<br />

segmento AB.<br />

Em I.44, apren<strong>de</strong>mos a aplicar ao segmento AB um paralelogramo igual a um triângulo dado e que<br />

tem um dos ângulos igual a um ângulo dado. Agora é fácil “transformar”qualquer polígono em um<br />

paralelogramo. Decompomos o polígono em triângulos e aplicamos repetidamente I.42 e I.44:<br />

Problema 11. Elementos I.45 – Construir um paralelogramo igual a uma figura retilínea qualquer dada,<br />

e com um ângulo igual a outro ângulo dado.<br />

Seja ABCD figura retilínea dada, e E o ângulo retilíneo dado: pe<strong>de</strong>-se para construir um paralelogramo<br />

igual a ABCD e que tenha um ângulo igual a E (Figura 13).<br />

U<strong>na</strong> D a B, e construa o paralelogramo FH igual ao triângulo ADB, e que tenha o ângulo FKH igual<br />

ao ângulo E.<br />

Aplique ao segmento GH o paralelogramo GM igual ao triângulo DBC, e com o ângulo GHM igual<br />

ao ângulo E.<br />

O polígono FKML será o paralelogramo pedido.<br />

Como o ângulo E é igual a cada um dos ângulo FKH, GHM, o ângulo FKH é igual ao ângulo GHM.


12 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Figura 13. Elementos I.45<br />

Adicione a estes dois ângulos iguais o ângulo KHG; portanto, os ângulos FKH, KHG são iguais aos<br />

ângulos KHG, GHM.<br />

Mas FKH, KHG juntos são iguais a dois ângulos retos; portanto KHG, GHM são juntos iguais a dois<br />

ângulos retos. E como no ponto H da reta GH as duas retas KH, HM, nos lados opostos a GH, formam<br />

ângulos adjacentes que juntos são iguais a dois ângulos retos, KH está sobre a reta HM.<br />

E como a linha reta HG encontra as paralelas KM, FG, os ângulos alternos MHG, HGF são iguais.<br />

Adicione a cada um <strong>de</strong>stes ângulos o ângulo HGL; portanto, os ângulos MHG, HGL são iguais aos<br />

ângulos HGF, HGL.<br />

Mas HGF,HGL são juntos iguais a dois ângulos retos; portanto HGF, HGL juntos são iguais a dois<br />

ângulos retos. Assim, FG está sobre a linha reta GL.<br />

Como KF é paralela a HG, e HG é paralela a ML, KF é paralela a ML; e KM, FL são paralelas;<br />

Portanto KFLM é um paralelogramo.<br />

E como o triângulo ABD é igual ao paralelogramo HF, e o triângulo DBC é igual ao paralelogramo<br />

GM, toda a figura retilínea ABCD é igual a todo o paralogramo KFLM.<br />

Assim, o paralelogramo KFLM foi construído igual à figura relinínea ABCD, e como o ângulo FKM<br />

igual ao ângulo dado E. Q.E.D.<br />

Os resultados anteriores nos permitem aplicar a um segmento dado um paralelogramo que tem um<br />

ângulo dado e é igual a um polígono dado:<br />

É suficiente <strong>de</strong>compor o polígono em triângulos, aplicar ao<br />

segmento dado um paralelogramo que tenha um dos ângulos igual ao ângulo dado e que seja igual ao 1 o<br />

triângulo da <strong>de</strong>composição, e repetir este processo para os outros triângulos da <strong>de</strong>composição.<br />

Em particular, se o ângulo dado for reto, o que fizemos acima nos mostra como transformar qualquer<br />

polígono em um retângulo. Se conseguirmos transformar este retângulo em um quadrado, teremos resolvido<br />

o problema <strong>de</strong> fazer a quadratura <strong>de</strong> qualquer polígono. Para isso, necessitamos <strong>de</strong> algumas proposições<br />

dos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s.<br />

Teorema 12. Elementos II.5 – Se uma linha reta for dividida em duas partes iguais, e em outras duas<br />

<strong>de</strong>siguais, será o retângulo compreendido pelas partes <strong>de</strong>siguais, juntamente com o quadrado da parte<br />

entre as duas seções, igual ao quadrado da meta<strong>de</strong> da linha proposta.<br />

Demonstração – Suponha que o segmento AB está dividido em duas partes iguais pelo ponto C e em<br />

duas partes <strong>de</strong>siguais pelo ponto D (Figura 14). Então, o retângulo AD, DB, juntamente com o quadrado<br />

sobre CD, será igual ao quadrado sobre CB.


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 13<br />

Figura 14. Elementos II.5<br />

Figura 15. Elementos II.6<br />

Com efeito, sobre CB construa o quadrado CEFB. U<strong>na</strong> os pontos B e E. Por D trace o segmento <strong>de</strong><br />

reta DHG paralelo a CE ou a BF. Por H trace KLM paralela a CG ou EF. Enfim, por A trace AK<br />

paralela a CL ou a BM.<br />

Então, o complemento CH é igual ao complemento HF. A cada um <strong>de</strong>stes complememntos adicione<br />

DM. Então CM é igual a DF. Mas CM é igual a AL, pois AC é igual a CB. Assim, AL é igual a DF.<br />

Adicione CH a AL e a DF. Então AH é igual a DF e CH.<br />

Mas AH é o retângulo contido por AD e DB, pois DH é igual a DB; e DF juntamente com CH<br />

é o gnômon CMG. Assim, o gnômon CNG é igual ao retângulo AD, DB. Adicio<strong>na</strong>ndo a ambos LG<br />

que é igual ao quadrado sobre CD, o gnômon CMG juntamente com LG é igual ao retângulo AD, DB,<br />

juntamente com o quadrado sobr CD. Mas o gnômon CMG juntamente com LG formam a figura CEFB,<br />

que é o quadrado sobre CB. Então, o retângulo AD, DB, juntamente com o quadrado sobre CD é igual<br />

ao quadrado sobre CB. Q.E.D.<br />

Teorema 13. Elementos II.6 – Se uma linha reta for dividida em duas partes iguais, e em direitura com<br />

ela se puser outra reta, será o retângulo compreendido pela reta toda e mais a adjunta, e pela mesma<br />

adjunta juntamente com o qudrado da meta<strong>de</strong> da primeira reta, igual ao quadrado da reta, que se compõe<br />

da mesma meta<strong>de</strong>, e da outra adjunta.<br />

Demonstração: Sejam C o ponto médio <strong>de</strong> AB e D, sobre o prolongamento <strong>de</strong> AB (Figura 15).<br />

Com lado CD trace o quadrado CEFD. U<strong>na</strong> D a E. Por B trace GHG paralela a CE ou a DF. Pelo<br />

ponto H, trace KLM paralela a AD ou a EF e por A trace AK paralela a CL ou a DM.<br />

Então, como AC é igual a CB, o retângulo AL é igual ao retângulo CH. Mas CH é igual a HF, e<br />

portanto também AL é igual a HF. A cada um <strong>de</strong>sses retângulos adicione CM. Assim, AM será igual<br />

ao gnômon CMG. Mas AM é o retângulo formado por AD, DB, pois DM é igual a DB.<br />

Então o retângulo AD, DB é igual ao gnômon CMG.


14 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

A cada um, adicione LG, que é igual ao quadrado sobre CB. Portanto o retângulo AD, DB, juntamente<br />

com o quadrado sobre CB é igual ao gnômon CMG e a figura LG.<br />

Mas o gnômon CMG juntamente com LG formam CEFD, que é o quadrado sobre CD.<br />

Portanto, o retângulo AD, DB, juntamente com o quadrado sobre CB é igual ao quadrado sobre CD.<br />

Q.E.D.<br />

De posse <strong>de</strong>stes resultados, po<strong>de</strong>mos dar o passo fi<strong>na</strong>l para fazer aquadratura <strong>de</strong> qualquer polígono.<br />

Isso significa construir um quadrado <strong>de</strong> área igual à área do polígono dado.<br />

Problema 14. Elementos II.14– Construir um quadrado igual a um polígono dado.<br />

Figura 16. Elementos II.14<br />

Seja A o polígono dado. Construa o retângulo BCDE igual ao polígono dado. Se os lados BE e ED<br />

forem iguais, o problema está resolvido. Se eles forem <strong>de</strong>siguais, marque F, sobre o prolongamento <strong>de</strong> B<br />

e tal que ED e EF são iguais. Divida BF ao meio pelo ponto G. Trace a semi-circunferência BHF e<br />

prolongue ED até H (Figura 16).<br />

U<strong>na</strong> G a H. Como o segmento BF está dividido ao meio por G e em duas partes <strong>de</strong>siguais por E, então<br />

o retângulo BE, EF, juntamente com o quadrado sobre GE é igual ao quadrado sobre GF.<br />

Mas GF é igual a GH. Assim, o retângulo BE, EF juntamente com o quadrado sobre GE é igual ao<br />

quadrado sobre GH.<br />

Mas o quadrado sobre GH é igual aos quadrados sobre GE e EH. Assim, o retângulo BE, EF,<br />

juntamente com o quadrado sobre GE é igual aos quadrados sobre GE e sobre EH.<br />

Retire o quadrado sobre GE, que é comum a ambos; portanto o retângulo contido por BE, EF é igual<br />

ao quadrado sobre EH.<br />

Mas o retângulo contido por BE, EF é o paralelogramo BD, pois EF é igual a ED.<br />

Mas BD é igual ao polígono dado.<br />

Portanto o quadrado sobr EH é igual ao polígono dado. Q.E.D.<br />

Uma maneira alter<strong>na</strong>tiva <strong>de</strong> construir um quadrado igual a um polígono qualquer dado envolve a utilização<br />

repetida do “teorema <strong>de</strong> Pitágoras”.<br />

Em primeiro lugar, após <strong>de</strong>compor o polígono dado em triângulos, o que já sabemos fazer, transformamos<br />

cada um dos triângulos em um retângulo com a mesma área. Em seguida, utilizando II.14, transformamos<br />

cada um dos retângulos em um quadrado. Dados dois <strong>de</strong>stes quadrados, utilizando o teorema <strong>de</strong> Pitágoras,<br />

po<strong>de</strong>mos achar um quadrado que tenha área igual à soma das <strong>áreas</strong> dos dois quadrados. De posse <strong>de</strong>ste<br />

quadrado, po<strong>de</strong>mos continuar o processo, utilizando várias vezes o teorema <strong>de</strong> Pitágoras, até obter um<br />

único quadrado cuja área será igual à área do polígono <strong>de</strong> que partimos.<br />

2.3. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>. Já vimos, por I.44, como aplicar a um segmento dado um paralelogramo igual a<br />

um polígono (figura retilínea) dado e que tem um ângulo especificado. Trata-se do que os gregos chamavam<br />

uma <strong>aplicação</strong> parabólica.<br />

Dois outros problemas, chamados <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> elíptica e <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> hiper- bólica, respectivamente, são<br />

os seguintes, em seu caso mais geral:


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 15<br />

(1) (Aplicação elíptica ou com falta)Aplicar a um segmento <strong>de</strong> reta AB, um paralelogramo, com um<br />

ângulo dado, igual a uma figura retilínea dada e <strong>de</strong> tal maneira que o que falta para completar a<br />

figura a todo o segmento AB seja um paralelogramo semelhante a um paralelogramo dado (Figura<br />

17).<br />

(2) (Aplicação hiperbólica ou com excesso)Aplicar a um segmento <strong>de</strong> reta AB, um paralelogramo, com<br />

um ângulo dado, igual a uma figura retilínea dada e <strong>de</strong> tal maneira que ele exce<strong>de</strong> o segmento AB<br />

por um paralelogramo semelhante a um paralelogramo dado (Figura 18).<br />

Figura 17. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> elíptica<br />

Figura 18. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> hiperbólica<br />

Nesta formulação mais geral, a solução <strong>de</strong>sses problemas exige conhecimentos do Livro VI dos Elementos,<br />

que trata exatamente das alicações da teoria <strong>de</strong> proporcio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas, <strong>de</strong> Eudoxo (exposta no<br />

Livro V dos Elementos), às figuras pla<strong>na</strong>s. Po<strong>de</strong>mos, por enquanto, tratar <strong>de</strong> casos particulares <strong>de</strong>sses<br />

problemas. Mostraremos como, usando somente os recursos já aprendidos sobre eqüivalência <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>,<br />

po<strong>de</strong>mos resolver este problema.


16 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Como aplicar um retângulo a um segmento, com falta? Voltemos à Proposição II.5 dos Elementos.<br />

Queremos aplicar ao segmento AB um retângulo igual à figura retilínea S <strong>de</strong> tal maneira que o que falta<br />

para termos uma figura aplicada a todo o segmento AB seja um quadrado (Figura 19).<br />

Figura 19. Aplicação <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> eliptica (com falta)<br />

É fácil fazer isso.<br />

Po<strong>de</strong>mos supor que a figura retilínea dada é um quadrado <strong>de</strong> lado b. Seja C o ponto médio do segmento<br />

AB. Trace CO perpendicular a AB e igual a b. Prolongue OC até N, <strong>de</strong> maneira que ON = CB. Com<br />

centro em O, e raio ON <strong>de</strong>screva uma circunferência que corta CD em D (Figura 20).<br />

Afirmamos que o retângulo AH resolve nosso problema.<br />

Com efeito, pela proposição II.5 dos Elementos, o retângulo <strong>de</strong> lados AD e DB, juntamente om o<br />

quadrado <strong>de</strong> lado CD é igual ao quadrado <strong>de</strong> lado CB. Ou seja, é igual ao quadrado <strong>de</strong> lado OD.<br />

Pelo teorema <strong>de</strong> Pitágoras, o quadrado <strong>de</strong> lado OD é igual à soma dos quadrados <strong>de</strong> lados OC e CD.<br />

Retirando o quadrado <strong>de</strong> lado CD, vemos que o retângulo <strong>de</strong> lados AC e DB é igual ao quadrado <strong>de</strong> lado<br />

OC.<br />

A solução <strong>de</strong>ste problema está sujeita à condição <strong>de</strong> que b não seja maior do que 1<br />

2<br />

que b2 não seja maior do que ( 1<br />

2a)2 .<br />

Figura 20. Resolução do problema <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> eliptica<br />

a, ou, equivalentemente,<br />

Esta construção resolve completamente o problema <strong>de</strong> aplicar um retângulo a um segmento, com falta,<br />

<strong>de</strong> maneira que o que falta seja um quadrado.<br />

Como resolver o problema <strong>de</strong> aplicar um retângulo, cuja área é dada, a um segmento, com excesso<br />

(Figura 21)?<br />

A proposição II.6 dos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s nos permitirá resolver este problema.


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 17<br />

Figura 21. O problema <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> hiperbólica<br />

Figura 22. Resolução do problema <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong> hiperbólica<br />

Em primeiro lugar, po<strong>de</strong>mos supor que a área dada é um quadrado <strong>de</strong> lado b. Trace BQ perpendicular<br />

a AB e igual a b. U<strong>na</strong> C a Q e com centro C e raio CQ, <strong>de</strong>screva uma circunferência que corta o<br />

prolongamento <strong>de</strong> AB em D. Afirmamos que o ponto D resolve o problema (Figura 22).<br />

Com efeito, o retângulo <strong>de</strong> lados AD e DB, juntamente com o quadrado <strong>de</strong> lado CB é igual ao quadrado<br />

<strong>de</strong> lado CD, ou seja, é igual ao quadrado <strong>de</strong> lado CQ. Pelo teorema <strong>de</strong> Pitágoras, este quadrado é igual<br />

à soma dos quadrados <strong>de</strong> lados CB e BQ. Assim, o retângulo <strong>de</strong> lados AD e DB é igual ao quadrado <strong>de</strong><br />

lado BQ.<br />

2.4. O Livro VI dos Elementos e o caso geral <strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>. Eucli<strong>de</strong>s, no Livro V dos Elementos<br />

apresenta a teoria das proporções <strong>de</strong> Eudoxo, que permite trabalhar com razões <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas, sejam<br />

elas comensuráveis ou não. Trata-se <strong>de</strong> um dos pontos altos dos Elementos, e eliminou <strong>de</strong>finitivamente a<br />

dificulda<strong>de</strong> que tinham os matemáticos gregos em trabalhar com razões <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>zas incomensuráveis. A<br />

solução que Eudoxo encontrou para o problema é um dos maiores feitos da <strong>Matemática</strong> <strong>grega</strong>.


18 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

É verda<strong>de</strong> que a formulação <strong>de</strong> Eudoxo é <strong>de</strong> leitura difícil, mas foi muito importante, no contexto<br />

da matemática <strong>grega</strong>. Hoje, para nós, que po<strong>de</strong>mos trabalhar livremente com números reais, ela nos<br />

parece <strong>de</strong>snecessariamente complicada. Contudo, para os gregos, que não tinham nem mesmo o conceito<br />

<strong>de</strong> números racio<strong>na</strong>is, pois se limitavam a falar em razão <strong>de</strong> dois números <strong>na</strong>turais, ela resolveu um<br />

problema muito sério que tinha surgido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scoberta, bem anterior a Eudoxo, que existem gran<strong>de</strong>zas<br />

incomensuráveis.<br />

Po<strong>de</strong>-se avaliar a contribuição <strong>de</strong> Eudoxo pelas palavras <strong>de</strong> De<strong>de</strong>kind, no século XIX, ao afirmar que se<br />

inspirou em Eudoxo para formular sua <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> número real – os cortes <strong>de</strong> De<strong>de</strong>kind.<br />

No livro seguinte, o Livro VI, Eucli<strong>de</strong>s aplica os resultados do Livro V ao estudo da semelhança <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>zas geométricas, especificamente as figuras pla<strong>na</strong>s.<br />

Não po<strong>de</strong>mos, aqui, estudar os Livros V e VI. Admitiremos como sabidas as noções usuais <strong>de</strong> proporcio<strong>na</strong>li<strong>de</strong>.<br />

Tudo o que fizermos <strong>de</strong> agora em diante po<strong>de</strong> se justificar usando os resultados anteriores<br />

contidos nos Elementos, do Livro I ao Livro VI. Deste livro, nos <strong>de</strong>teremos ape<strong>na</strong>s no problema mais geral<br />

<strong>de</strong> <strong>aplicação</strong> <strong>de</strong> <strong>áreas</strong>.<br />

Começaremos nosso estudo com<br />

Problema 15. Elementos VI.25 – Construir uma figura semelhante a uma figura retilínea dada e igual a<br />

outra figura retilínea.<br />

Figura 23. Elementos VI.25<br />

Seja ABC a figura retilínea dada à qual a figura que <strong>de</strong>ve ser construída tem que ser semelhante, e D a<br />

figura retilínea dada à qual <strong>de</strong>ve ser igual; assim, é pedido para construir uma figura semelhante a ABC<br />

e igual a D (Figura 23).<br />

Aplique a BC o paralelogramo BE igual ao triângulo ABC, o que po<strong>de</strong> ser feito, pela Proposição I.44,<br />

e a CE o paralelogramo CM igual a D no ângulo FCE, que é igual ao ângulo CBL. Assim, BC está em<br />

linha reta com CF, e LE com EM.<br />

Seja GH uma meia proporcio<strong>na</strong>l a BC, CF [VI.13], e sobre GH construa KHG semelhante e semelhantemente<br />

situado a ABC.<br />

Então, como GH está para CF como BC para GH, e, se três segmentos forem proporcio<strong>na</strong>is, a figura<br />

construida sobre o o primeiro está para a figura semelhante e semelhantemente situada sobre o segundo,<br />

assim o triângulo ABC está para o triangulo KGH.<br />

Mas os paralelogramos BE e EF estão entre si como BC e CF.<br />

Assim, o paralelogramo BE está para o paralelogramo EF assim como o triângulo ABC está para o<br />

triângulo KGH. Ou, equivalentemente, o triângulo ABC está para o paralelogramo BE assim como o<br />

triângulo KGH está para o paralelogramo EF.


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 19<br />

Mas o triângulo ABC é igual ao paralelogramo BE; portanto, o triângulo JGH é igual ao paralelogramo<br />

EF.<br />

Mas o paralelogramo EF é igual a D; portanto, KGH é também semelhante a ABC.<br />

Portanto, construimos uma figura KGH semelhante à figura retilínea ABC e igual a outra figura dada<br />

D.<br />

Teorema 16. Elementos VI.27 – De todos os paralelogramos aplicados a uma mesma linha reta, com falta<br />

<strong>de</strong> figuras paralelogrâmicas semelhantes e semelhantemente situadas à figura <strong>de</strong>scrita sobre a meta<strong>de</strong> da<br />

linha reta, é maior o paralelogramo aplicado à meta<strong>de</strong> da linha reta e semelhante à figura que falta.<br />

Figura 24. Elementos VI.27<br />

Seja AB uma linha reta e seja C seu ponto médio; aplique à linha reta AB o paralelogramo AD com<br />

falta da figura paralelográmica DB <strong>de</strong>crita sobre meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> AB, ou seja, CB (Figura 24).<br />

Afirmo que, <strong>de</strong> todos os paralelogramos aplicados a AB e com falta <strong>de</strong> figuras paralelográmicas semelhantes<br />

e semelhantemente situadas a DB, AD é a maior.<br />

Com efeito, aplique-se à linha reta AB o paralelogramo AF, com falta da figura paralelográmica FB e<br />

semelhantemente situada a DB. Então AD é maior do que AF.<br />

De fato, como o paralelogramo DB é semelhante ao paralelogramo FB, eles estão situados sobre a<br />

mesma diago<strong>na</strong>l. Seja DB sua diago<strong>na</strong>l, e seja traçada a figura. Então, como CF é igual a FE, e FB é<br />

comum, o todo CH é igual ao todo KE.<br />

Mas CH é igual a CG, pois AC é também igual a CB.<br />

Portanto GC é também igual a EK.<br />

Adicione CF a ambos.<br />

Assim o todo AF é igual ao gnomon LMN; <strong>de</strong> maneira que o paralelogramo DB, ou seja, AD, é maior<br />

do que o paralelogramo AF, como queríamos <strong>de</strong>monstrar.<br />

Teorema 17. Elementos VI.28– aplicar, a uma linha reta dada, um paralelogramo igual a uma figura<br />

retilínea dada com falta <strong>de</strong> um paralelogramo semelhante a um paralogramo dado; assim, a figura retilínea<br />

dada não po<strong>de</strong> ser maior do que o paralelogramo <strong>de</strong>crito sobre a meta<strong>de</strong> da linha reta e semelhante ao que<br />

falta.<br />

Sejam AB a linha reta dada e C a figura retilínea dada à qual a figura aplicada a AB <strong>de</strong>ve ser igual<br />

(Figura 25). Assim, figura C não po<strong>de</strong> ser maior do que o paralelogramo <strong>de</strong>scrito sobre meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> AB e<br />

semelhante à falta. Seja D o paalelogramo com o qual a falta <strong>de</strong>ve ser semelhante.<br />

Assim, pe<strong>de</strong>-se para aplicar à linha reta dada AB um paralelogramo igual à figura retilínea dada, C, e<br />

com falta <strong>de</strong> uma figura paralelogrâmica semelhante a D.<br />

Seja E o ponto médio <strong>de</strong> AB, e sobre EB construa EBFG semelhante a D e semelhantemente situado.<br />

Complete a figura para obter o paralelogramo AG.


20 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

Figura 25. Elementos VI-28<br />

Se AG for igual a C, o que foi pedido está feito, pois foi aplicada à linha reta dada AB, o paralelogramo<br />

AG igual à figura retilínea C e com falta <strong>de</strong> uma figura paralelogrâmica GB que é semelhante a D.<br />

No caso contrário, seja HE maior do que C.<br />

Ora, HE é igual a GB, e portanto GB é maior do que C.<br />

Construa KLMN igual por um lado ao excesso <strong>de</strong> GB em relação a C e semelhante, e semelhantemente<br />

situado a D.<br />

Mas D é semelhante a GB, e portanto KM é também semelhante a GB. Faça KL correspon<strong>de</strong>r a GE<br />

e LM a GF.<br />

Então, como GB é maior do que C, KM, GB será maior do que KM. Portanto GE é maior do que<br />

KL e GF é maior do que LM.<br />

Construa GO igual a KL, e GP igual a LM, e complete o paralelogramo OGPQ, que será igual e<br />

semelhante a KM.<br />

Portanto GQ é igual e semelhante a GB, e portanto está construída sobre a mesma diago<strong>na</strong>l que GB.<br />

Seja GBQ a diago<strong>na</strong>l. Como BG é igual a C, KM, e nestes, GQ é igual a KM, portanto, o restante,<br />

o gnômon UWV é igual ao restante C.<br />

E, como PR é igual a OS, adicione QB a ambos; portanto o todo PB é igual ao todo OB.<br />

Mas OB é igual a TE, pois o lado AE é também igual ao lado EB; portanto, TE é também igual a<br />

PB.<br />

Adicione OS a ambos; portant o todo TS é igual ao todo, o gnômon V WU.<br />

Mas já foi mostrado que o gnômon V WU é igual a C; portanto TS é também igual a C.<br />

Assim, à linha reta dada AB, foi aplicado um paralelogramo ST igual à figura retilínea dada C e com<br />

falta <strong>de</strong> uma figura paralelogrâmica QB que é semelhante a D.<br />

Teorema 18. Elementos VI.29 Aplicar a uma linha reta dada um paralelogramo igual a uma figura retilínea<br />

dada com excesso <strong>de</strong> um paralelogramo semelhante a um paralologramo dado.<br />

Seja AB a linha reta dada, C afigura retilínea à qual a figura aplicada a AB tem que ser igual, e D a<br />

figura à qual o excesso <strong>de</strong>ve ser semelhante (Figura 26).<br />

Seja E o ponto médio <strong>de</strong> AB; <strong>de</strong>screva sobre EB o paralelogramo BF semelhante a D e semelhantemente<br />

situado. Construa GH igual à soma <strong>de</strong> BF e C e semelhantemente situado a D.<br />

Sejam KH e KG correspon<strong>de</strong>ntes, respectivamente, a FL e a FE.<br />

Ora, como GH é maior do que FB, segue-se que KH é também maior do que FL e KG é maior do que<br />

FE.<br />

Prolongue FL e FE, e sejam FLM igual a KH e FEN igual a KG, e complete MN. Então MN é<br />

simultaneamente igual e semelhante a GH.


EQUIVALÊNCIA E APLICAÇÃO DE ÁREAS NA MATEMÁTICA GREGA 21<br />

Figura 26. Elementos VI.29<br />

Mas GH é semelhante a EL; portanto MN é também semelhante a EL; e portanto EL está sobre a<br />

mesma diago<strong>na</strong>l que MN.<br />

Trace a diago<strong>na</strong>l FO, e construa a figura.<br />

Como GH é igual a EL, C, enquanto que GH é igual a MN, portanto MN é também igual a EL, C.<br />

De ambos, subtraia EL; portanto o restante, o gômon XWV é igual a C.<br />

Ora, como AE é igual a EB, AN é também igual a NB [I.36], ou seja, a LP [I.43].<br />

Acrescente EO a ambos; o todo AO é igual ao gnômon V WX. Mas o gnômon V WX é igual a C;<br />

portanto AO é também igual a C.<br />

Portanto, foi aplicada à linha reta AB o paralelogramo AO igual à figura retilínea C, com sobra <strong>de</strong> uma<br />

figura paralelogrâmica QP que é semelhante a D, pois PQ é também semelhane a EL.


22 JOÃO PITOMBEIRA DE CARVALHO<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

(1) BOS, Henk J. M. - Re<strong>de</strong>fining geometrical exactness : Descartes’ transformation of the early<br />

mo<strong>de</strong>rn concept of construction. New York: Springer, 2001.<br />

(2) BKOUCHE, Rudolf et Joëlle DELATTRE - ”Pourquoi la règle et le compas”, in Comission Inter-<br />

IREM, Histoire <strong>de</strong> problèmes, Histoire <strong>de</strong>s Mathématiques. Paris: -Ellipses, 1993.<br />

(3) HEATH, T.- A history of Greek mathematics, two volumes. New York: Dover, 1981.<br />

(4) KNORR, Wilbur Richard - The ancient tradition of geometric problems. Boston, Basel, Stuttgart:<br />

Birkhäuser, 1986.<br />

(5) LIMA,Elon Lages - Medida e forma em geometria. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Matemática</strong>, 2 a ed., 1997.<br />

(6) SIMSON, Robert - Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s. Dos seis primeiros livros, do undécimo e duodécimo, da<br />

versão lati<strong>na</strong> <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Commandino, addicio<strong>na</strong>dos e ilustrados por Roberto Simson, Professor<br />

<strong>de</strong> Mathematica <strong>na</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Glasgow. Coimbra: Real Imprensa da Universida<strong>de</strong>, 1773. Com<br />

privilégio real.<br />

(7) SZABO, Arpad - L’aube <strong>de</strong>s mathématiques grecques. Paris: Vrin, 2000.<br />

(8) UNGURU, Sabetai - “Does the quadratic equation have greek roots - I”, Libertas Mathematica,I,<br />

1981, pp. 1 -39.<br />

(9) UNGURU, Sabetai - “Does the quadratic equation have greek roots - II”, Libertas Mathematica,II,<br />

1982, pp. 1 -62.<br />

(10) van <strong>de</strong>r WAERDEN, B. L.- Science Awakening I. Third edition. Gronigen: Wolters Noordhoff.<br />

Centro Técnico-Científico, Departamento <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong>, PUC - RJ.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!