A trajetória do projeto sociocultural da modernidade e da pós ...
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FFCH<br />
Porto Alegre, nº. 5, p. 87-100, dez. 2004<br />
A <strong>trajetória</strong> <strong>do</strong> <strong>projeto</strong> <strong>sociocultural</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> <strong>pós</strong>moderni<strong>da</strong>de:<br />
o caminho por uma <strong>da</strong>s mãos de<br />
boaventura. 1<br />
Ensaio sobre a transição de paradigmas epistemológicos e societais.<br />
RUTH IGNÁCIO<br />
Em algum remoto rincão <strong>do</strong> universo cintilante que se derrama em um semnúmero<br />
de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que os animais inteligentes<br />
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso <strong>da</strong><br />
“história universal”: mas também foi somente um minuto. Passa<strong>do</strong>s poucos fôlegos<br />
<strong>da</strong> natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.<br />
(Nietzsche,p. 43) 2<br />
1. PERCORRENDO O CAMINHO DA<br />
TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS<br />
EPISTEMOLÓGICOS 12<br />
A história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de é, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
a história de uma busca incessante de<br />
compreensão <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des determinantes<br />
<strong>da</strong>s relações societais em suas mais diversas<br />
manifestações. Algumas <strong>da</strong>s questões<br />
mais preeminentes estão situa<strong>da</strong>s nas seguintes<br />
esferas: como o ser humano produz<br />
sua existência material e mental? Em que<br />
princípios ele sustenta as relações econômicas,<br />
políticas e culturais com os outros seres<br />
humanos? Como os seres humanos supe-<br />
____________<br />
1 Trabalho de conclusão <strong>da</strong> disciplina de Teoria Sociológica<br />
Avança<strong>da</strong>, orienta<strong>do</strong> sob a ótica <strong>da</strong> obra de Boaventura de<br />
Souza Santos.<br />
2 Obras incompletas/ Friedrich Nietzsche. São Paulo: Abril<br />
Cultural,1983. Coleção os Pensa<strong>do</strong>res.<br />
Revista<br />
<strong>da</strong> ADPPUCRS<br />
ram os dilemas de seu tempo, construin<strong>do</strong><br />
e reconstruin<strong>do</strong> seus padrões organizacionais?<br />
Em suma, como a humani<strong>da</strong>de traduz,<br />
interpreta e sistematiza sua história<br />
cotidiana: como os animais inteligentes <strong>do</strong><br />
astro congela<strong>do</strong> de Nietzsche ou como sujeitos<br />
históricos pertencentes à natureza?<br />
Na tentativa de eluci<strong>da</strong>r essas questões,<br />
ou pelo menos encaminhar-lhes argumentações<br />
de maior solidez, acredito<br />
necessário remontar, mesmo que de forma<br />
sintética e assumin<strong>do</strong> os riscos dessa toma<strong>da</strong><br />
de decisão, a gênese <strong>da</strong>s diferenciações<br />
básicas <strong>do</strong> entendimento de como os seres<br />
humanos retratam suas relações sociais,<br />
políticas, econômicas, culturais e ideológicas<br />
e como as interpretam e sistematizam.<br />
Essa incursão ousa<strong>da</strong> remete a Sócrates.
A idéia central 3 <strong>do</strong> pensamento de<br />
Sócrates está orienta<strong>da</strong> pela discussão entre<br />
Idéia e Imagem e entre Conceito e Opinião.<br />
A passagem, a seguir, retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra<br />
de CHAUÍ (1994), parece esclarecer a<br />
questão.<br />
Diferentemente <strong>do</strong> sofista, Sócrates mantém<br />
a separação entre opinião e ver<strong>da</strong>de, entre<br />
aparência e reali<strong>da</strong>de, entre percepção sensorial<br />
e pensamento. Por isso, sua busca visa a<br />
alcançar algo muito preciso: passar <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de<br />
de opiniões contrárias, <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de<br />
de aparências opostas, <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de<br />
de percepções divergentes à uni<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
conceito ou <strong>da</strong> idéia (que é a definição universal<br />
e necessária <strong>da</strong> coisa procura<strong>da</strong>). Ao<br />
exigir de si mesmo o conhecimento de si, exigia<br />
<strong>do</strong>s outros que conhecessem a si mesmos,<br />
motivo pelo qual a primeira tarefa <strong>do</strong><br />
diálogo socrático é fazer com que ca<strong>da</strong> um<br />
descubra sozinho que aquilo que julgava ser<br />
a idéia <strong>da</strong> coisa (o saber que julgava possuir),<br />
era uma imagem dela, que aquilo que julgava<br />
ser o conceito <strong>da</strong> coisa, era apenas uma opinião<br />
sobre ela, e que aquilo que julgava ser a<br />
ver<strong>da</strong>de eram somente preconceitos sedimenta<strong>do</strong>s<br />
pelo costume". (CHAUÍ,<br />
op.cit.,p.142-3)<br />
Ao que parece, o grande divisor de<br />
águas parte justamente <strong>do</strong>s discípulos de<br />
Sócrates 4 , isto é, Platão e Aristóteles, que<br />
desenvolverão procedimentos metódicos<br />
diferencia<strong>do</strong>s para conceber mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
de entendimento de mun<strong>do</strong>.<br />
Para Platão, continua<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Dialética<br />
de Sócrates, o mun<strong>do</strong> pode ser entendi<strong>do</strong> a<br />
partir <strong>do</strong> jogo <strong>do</strong>s opostos. "Os diversos<br />
pares de opostos são os elementos a partir<br />
<strong>do</strong>s quais se constrói to<strong>da</strong>s as coisas".(Cirne<br />
____________<br />
3 Para efeitos deste trabalho a simplificação <strong>da</strong> idéia central de<br />
Sócrates não parece constituir agravo fatal a seu pensamento<br />
nem ao desenvolvimento <strong>do</strong> pensamento filosófico. A fim de<br />
evitar qualquer mal-entendi<strong>do</strong> remeto a algumas sugestões de<br />
referências bibliográficas sobre o pensamento de Sócrates.<br />
4 Platão é discípulo de Sócrates e Aristóteles é discípulo de<br />
Platão. Considera-se, to<strong>da</strong>via, pela presença marcante de Sócrates<br />
em Platão que Aristóteles também o seja, mesmo que<br />
indiretamente.<br />
Lima,1996, p.49) Esse jogo de opostos é<br />
composto de Tese e Antítese e resulta <strong>da</strong><br />
oposição de contrários na Síntese. Este<br />
princípio primeiro <strong>da</strong> Dialética demonstra<br />
um movimento <strong>do</strong> pensamento orienta<strong>do</strong><br />
pela circulari<strong>da</strong>de, mas salienta-se conforme<br />
CIRNE LIMA 5 , que esta circulari<strong>da</strong>de<br />
deve ser considera<strong>da</strong> como Boa (Círculo<br />
virtuoso), ou seja, um sistema aberto onde<br />
"Deus cria o mun<strong>do</strong> e ao mesmo tempo é<br />
cria<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong>. Esse sistema, segun<strong>do</strong><br />
Platão, constitui uma circulari<strong>da</strong>de sem os<br />
vícios <strong>do</strong> Trilema de Münchhausen (Regresso<br />
ao infinito, Dogmatismo e Circulari<strong>da</strong>de).<br />
Ain<strong>da</strong>, conforme CIRNE-LIMA<br />
(op.Cit), "(...) quem aprendeu a Dialética e<br />
sabe fazer o jogo <strong>do</strong>s opostos, pensa Platão,<br />
sabe compor o grande mosaico <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sabe fazer a explicação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
possui a grande síntese". (p.49).<br />
Para Aristóteles, mesmo ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />
discípulo de Platão, a lógica de entendimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é diferente. Ele parte de<br />
um Arkhé (começo), condição necessária<br />
para que a demonstração de algo se consolide.<br />
Nesse Arkhé encontra-se o princípio<br />
<strong>da</strong> não-contradição, pois contempla a presença<br />
<strong>do</strong> "primeiro movente imóvel" ou o<br />
"primeiro movente não-movível". Seguin<strong>do</strong><br />
a mesma idéia de Platão de que existe um<br />
Deus cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, Aristóteles afirma<br />
que esse Deus encontra-se fora <strong>do</strong> sistema,<br />
isto é, ele, ao criar o mun<strong>do</strong>, não é recria<strong>do</strong><br />
por esse mun<strong>do</strong>. Deus move o mun<strong>do</strong>, mas<br />
não é movi<strong>do</strong> por ele. Acredita, ain<strong>da</strong>, em<br />
contraposição a Platão, que to<strong>da</strong> a circulari<strong>da</strong>de<br />
é má, pois conduz ao infinito e, inevitavelmente,<br />
as idéias de Platão são porta<strong>do</strong>ras<br />
<strong>do</strong>s vícios <strong>do</strong> Trilema de Münchhausen.<br />
A proposta de Aristóteles se concentra<br />
em uma análise linear <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de até que<br />
se chegue ao começo (Arkhé).<br />
____________<br />
5 Conforme anotações realiza<strong>da</strong>s na disciplina "Ciência <strong>da</strong><br />
Lógica", ministra<strong>da</strong> pelo Prof.Dr. Cirne-Lima no Programa de<br />
Pós-Graduação de Filosofia <strong>da</strong> PUCRS no ano de 1999.
Esse momento crucial <strong>da</strong> história <strong>do</strong><br />
pensamento humano (de 427aC até 323<br />
aC) determinou as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que orientam<br />
nosso entendimento <strong>do</strong> que venha a<br />
ser o ser humano, de como se relaciona<br />
social-política-econômica e culturalmente, o<br />
que entende por ver<strong>da</strong>de, justiça, princípios,<br />
ética, em suma, como compreender a<br />
estrutura societal.<br />
Os séculos XVI e XVII, com Copérnico<br />
e Galileu, são porta<strong>do</strong>res <strong>da</strong> maior<br />
manifestação em defesa de uma <strong>da</strong>s cósmologias:<br />
a concepção de mun<strong>do</strong> de Aristóteles,<br />
ou seja, a concepção de lineari<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
A idéia de uma nova conformação <strong>da</strong><br />
concepção de entendimento <strong>do</strong> e no mun<strong>do</strong><br />
é dissemina<strong>da</strong> com base em uma lógica<br />
racional identifica<strong>da</strong> com a matematização,<br />
com a mensuração e a quantificação <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Para Galileu, o cria<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Ciência<br />
Moderna, as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> devem ser<br />
entendi<strong>da</strong>s pela razão e essa razão é, sem<br />
sombra de dúvi<strong>da</strong>s, a Razão Analítica ou<br />
ain<strong>da</strong> conheci<strong>da</strong> como a razão aristotélica.<br />
O mun<strong>do</strong> medieval havia construí<strong>do</strong><br />
uma forma de entendimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
basea<strong>do</strong> na concepção divina em que as<br />
coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> só poderiam ser interpreta<strong>da</strong>s<br />
a partir de uma visão teológica. Os<br />
fenômenos físicos eram igualmente interpreta<strong>do</strong>s<br />
com base na concepção <strong>do</strong> divino.<br />
Galileu rompe com essa lógica, pois afirma<br />
ser necessário uma divisão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em<br />
<strong>do</strong>is, isto é, de um la<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> divino<br />
e de outro la<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> físico. O mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> divino encontrará suas explicações na<br />
lógica <strong>do</strong> pensamento teológico, mas o<br />
mun<strong>do</strong> físico encontrará suas explicações<br />
com base na Razão, que é entendi<strong>da</strong> como<br />
a capaci<strong>da</strong>de humana de pensar, refletir e<br />
transformar o pensa<strong>do</strong> e o vivi<strong>do</strong>.<br />
Essa Razão encaminhará os seguintes<br />
procedimentos para o entendimento <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>: as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> só interessarão<br />
à Ciência quan<strong>do</strong> elas forem passíveis de<br />
mensuração, quantificação, objetificação ou<br />
reificação. O pensamento de Galileu, posteriormente<br />
o de Newton e Descartes serão<br />
reforça<strong>do</strong>s pelo Iluminismo, no século<br />
XVIII, quan<strong>do</strong> essa Razão passa a ser a "senhora<br />
absoluta", guia de qualquer forma de<br />
entendimento de mun<strong>do</strong> que queira se<br />
afirmar como científica. As outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
de conhecer o mun<strong>do</strong>, basea<strong>do</strong>s nos<br />
sentimentos, afetos e senti<strong>do</strong>s, são bani<strong>da</strong>s<br />
<strong>do</strong> campo <strong>do</strong> conhecimento científico. A<br />
Razão, diferentemente <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de,<br />
passa a ser entendi<strong>da</strong> no singular e com<br />
letra maiúscula. A Razão única, ou como<br />
diz ROUANET (1989), uma Razão Louca<br />
"(...) que abdica de suas prerrogativas críticas,<br />
inclusive <strong>da</strong> prerrogativa de desmascarar<br />
a pseu<strong>do</strong>-razão, a serviço <strong>do</strong> poder e <strong>do</strong><br />
desejo, e é uma razão narcísica, ingênua e<br />
arrogante ao mesmo tempo, que, por desconhecer<br />
o irracional que a cerca, torna-se<br />
presa dele". (p.13).<br />
É no decorrer <strong>do</strong> século XIX que a<br />
Ciência Moderna passa a ser um instrumento<br />
institucional de poder, pois, segun<strong>do</strong><br />
MORIN (1996), é nesse perío<strong>do</strong> que ela<br />
é introduzi<strong>da</strong> nas Universi<strong>da</strong>des, nas empresas<br />
industriais e "(...) sobretu<strong>do</strong> no coração<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que financia, controla e desenvolve<br />
as instituições de pesquisa científica"<br />
(p.126).<br />
O século XIX marca também, segun<strong>do</strong><br />
SOUSA SANTOS (1999), a expansão<br />
<strong>do</strong> campo de inserção <strong>da</strong> Ciência Moderna<br />
que deixa o espaço limita<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ciências<br />
naturais invadin<strong>do</strong> a esfera <strong>da</strong>s ciências<br />
sociais, permitin<strong>do</strong>, a elas, o <strong>do</strong>mínio de<br />
um objeto próprio de estu<strong>do</strong>, mas impon<strong>do</strong><br />
o méto<strong>do</strong> analítico, isto é, to<strong>da</strong>s deveriam<br />
utilizar o méto<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ciências naturais.<br />
A Razão que orienta a Ciência Moderna<br />
globaliza-se no universo <strong>do</strong> conhecimento<br />
humano. A citação de SOUSA SANTOS<br />
(op.Cit) revela o potencial de <strong>do</strong>minação<br />
dessa racionali<strong>da</strong>de.
(...) pode-se falar de um modelo global de racionali<strong>da</strong>de<br />
científica que admite varie<strong>da</strong>de<br />
interna mas que se distingue e defende, por<br />
via de fronteiras ostensivas e ostensivamente<br />
policia<strong>da</strong>s, de duas formas de conhecimento<br />
não-científico (e, portanto, irracional) potencialmente<br />
perturba<strong>do</strong>ras e intrusas: o senso<br />
comum e as chama<strong>da</strong>s humani<strong>da</strong>des ou estu<strong>do</strong>s<br />
humanísticos (em que se incluíram,<br />
entre outros, os estu<strong>do</strong>s históricos, filológicos,<br />
literários, filosóficos e teológicos). (...)<br />
também é um modelo totalitário, na medi<strong>da</strong><br />
em que nega o caráter racional a to<strong>da</strong>s as<br />
formas de conhecimento que não se pautarem<br />
pelos seus princípios epistemológicos e<br />
pelas suas regras meto<strong>do</strong>lógicas. (p.10-1)<br />
Essas críticas são, evidentemente, merece<strong>do</strong>ras<br />
de atenção devi<strong>do</strong> à constatação<br />
de to<strong>da</strong> a história de "poder" ao qual esteve,<br />
e em muitas vezes está, vincula<strong>da</strong> a Ciência.<br />
Essa mesma Ciência - e não se pode entendê-la<br />
desvincula<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito produtor, isto<br />
é, o cientista - que liberou a humani<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s concepções místicas sobre o entendimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é também aquela que<br />
aprisiona, naquilo que NIETZSCHE<br />
(1987) denominou de "Cubículo <strong>da</strong> Consciência",<br />
unifican<strong>do</strong> como pressuposto indissolúvel,<br />
mesmo que negan<strong>do</strong>, explicitamente,<br />
as concepções científicas como ideologia.<br />
Sen<strong>do</strong> assim, verificou-se a utilização <strong>do</strong>s<br />
pressupostos científicos como manipulação<br />
e legitimação <strong>do</strong> Status Quo.<br />
É inegável a necessi<strong>da</strong>de de a "Ciência<br />
Marginal", como designa MORIN<br />
(1996), ao fazer referência à Ciência Moderna,<br />
ter se apega<strong>do</strong> aos princípios <strong>da</strong><br />
matematização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pois precisava<br />
romper com a lógica estabeleci<strong>da</strong> pela I<strong>da</strong>de<br />
Média, ou seja, a visão teológica de<br />
mun<strong>do</strong> que defende a idéia de Deus como<br />
o Arkhé (começo), princípio único, imutável<br />
e externo ao mun<strong>do</strong>, causa primeira de um<br />
mun<strong>do</strong> determina<strong>do</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (1989),<br />
com o passar <strong>do</strong> tempo histórico, <strong>do</strong> início<br />
<strong>do</strong> século XIX até os dias atuais, a Ciência<br />
Moderna,"(...) hegemônica no pensamento<br />
ocidental, passou a ser socialmente reconheci<strong>da</strong><br />
pelas virtuali<strong>da</strong>des instrumentais <strong>da</strong> sua racionali<strong>da</strong>de"(p.28).<br />
Essa hegemonia <strong>da</strong> Ciência<br />
desvirtuou os princípios de sua matriz teórica,<br />
pois a lineari<strong>da</strong>de causa - efeito como<br />
explicativa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é supera<strong>da</strong> pela "justificação<br />
<strong>da</strong>s conseqüências". No dizer de<br />
SOUSA SANTOS (op.Cit):<br />
"(...) o conhecimento científico pôde dispensar<br />
a investigação <strong>da</strong>s suas causas como meio<br />
de justificação. Socialmente passou a justificar-se,<br />
não pelas suas causas, mas pelas suas<br />
conseqüências. (...) a reflexão epistemológica,<br />
apesar de continuar a ver-se como um pensamento<br />
de causas, passou a ser de fato, e<br />
sem que disso se desse conta um pensamento<br />
de conseqüências, deduzin<strong>do</strong> as causas <strong>da</strong>s<br />
conseqüências, ou quan<strong>do</strong> muito, pon<strong>do</strong> limite<br />
à justificação pelas conseqüências".(p.28)<br />
O pensamento hegemônico é aquele<br />
que determina a irresponsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ciência<br />
e, portanto, <strong>da</strong> forma de entendimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que o capital passa a<br />
determinar as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de desenvolvimento<br />
técnico. A elaboração <strong>do</strong> pensamento<br />
moderno está orienta<strong>da</strong> para aquilo que<br />
MORIN (1996) denomina de "Big Science",<br />
uma ciência anônima de sujeito produtor e,<br />
portanto, de destino <strong>da</strong> ação.<br />
O século XX, mesmo ten<strong>do</strong> como paradigma<br />
hegemônico aquele sustenta<strong>do</strong><br />
pela Ciência Moderna, gesta desde seu início<br />
6 as bases que irão constituir a emergência<br />
de um novo paradigma. Essa ruptura,<br />
produto <strong>da</strong> Física Quântica, está circunscrita<br />
a uma visão diferencia<strong>da</strong> sobre a natureza<br />
<strong>do</strong> Cosmos, desconstituin<strong>do</strong>, assim, a<br />
noção de harmonia, de certeza, de ordem,<br />
____________<br />
6 Albert Einstein, segun<strong>do</strong> SOUZA SANTOS (1999), "(...)<br />
constitui o rompimento rombo no paradigma <strong>da</strong> ciência moderna,<br />
um rombo, aliás, mais importante <strong>do</strong> que o que Einstein foi<br />
subjectivamente capaz de admitir"(p.24)
de previsibili<strong>da</strong>de e de constância <strong>do</strong> universo<br />
que sustentara o pensamento científico<br />
desde Galileu Galilei.<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (1999),<br />
princípio <strong>da</strong> verificabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ciência<br />
Moderna é desconstituí<strong>do</strong> por Einstein, ao<br />
afirmar que a "(...) simultanei<strong>da</strong>de de acontecimentos<br />
distantes não pode ser verifica<strong>da</strong>,<br />
pode tão-só ser defini<strong>da</strong>"(p.25); o princípio<br />
<strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de axiológica é questiona<strong>do</strong><br />
a partir <strong>da</strong>s investigações de Heisenberg<br />
e Bohr que "(...) demonstram que não<br />
é possível observar ou medir um objeto sem<br />
interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto<br />
que o objeto que sai de um processo de<br />
medição não é o mesmo que lá entrou".<br />
(p.25); o princípio <strong>da</strong> exatidão por intermédio<br />
<strong>da</strong> matematização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é posto<br />
à prova por Gödel com seu Teorema <strong>da</strong><br />
Incompletude ao afirmar que "(...) mesmo<br />
seguin<strong>do</strong> à risca as regras <strong>da</strong> lógica matemática,<br />
é possível formular proposições indecidíveis,<br />
proposições que se não podem<br />
demonstrar nem refutar"(p.26); e o princípio<br />
<strong>da</strong> ordem que é questiona<strong>do</strong> por Prigogine<br />
ao afirmar que "(...) a irreversibili<strong>da</strong>de<br />
nos sistemas abertos significa que estes são<br />
produto <strong>da</strong> sua história" (p.28).<br />
Essas descobertas, ao longo <strong>do</strong> século<br />
XX, desembocaram em possibili<strong>da</strong>des alternativas<br />
<strong>da</strong> leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> fazen<strong>do</strong><br />
com que a Ciência e seus produtores rompessem<br />
com a visão linear de mun<strong>do</strong> e se<br />
propusessem a executar uma "profun<strong>da</strong><br />
reflexão epistemológica sobre o conhecimento<br />
científico" (op.cit, p.30).<br />
O paradigma emergente, ao reconstituir<br />
as bases <strong>do</strong> conhecimento humano,<br />
aponta para concepções de mun<strong>do</strong> que<br />
contemplem a idéia de que "to<strong>do</strong> o conhecimento<br />
científico-natural é científicosocial";<br />
que "to<strong>do</strong> o conhecimento é local e<br />
total"; que "to<strong>do</strong> o conhecimento é autoconhecimento"<br />
e que "to<strong>do</strong> o conhecimento<br />
científico visa constituir-se em senso comum".<br />
Essa proposição de um paradigma<br />
emergente não se apresenta, to<strong>da</strong>via, ausente<br />
de crise haja vista que se está vivencian<strong>do</strong><br />
um momento de transição em que as<br />
"ver<strong>da</strong>des" <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> não respondem mais<br />
às perguntas <strong>do</strong> presente e em que o presente<br />
não consegue vislumbrar os prenúncios<br />
<strong>do</strong> futuro. É assim que SOUSA<br />
SANTOS (op.cit) caracteriza o tempo presente<br />
alertan<strong>do</strong> para a necessi<strong>da</strong>de de que<br />
se perceba a importância desse momento<br />
de transição, pois, como ele afirma: "Sabemo-nos<br />
a caminho mas não exactamente<br />
onde estamos na jorna<strong>da</strong>".(p.58)<br />
2. PERCORRENDO O CAMINHO DA<br />
TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS SOCIETAIS<br />
Os séculos XVI e XVII não marcam<br />
somente a ruptura com a concepção epistemológica<br />
até então vigente, mas determinam<br />
uma nova forma de concepção societal,<br />
pois o fato de as descobertas <strong>da</strong> revolução<br />
galileana terem afirma<strong>do</strong>, por exemplo,<br />
que a terra não era plana e; portanto, não<br />
terminava na linha <strong>do</strong> horizonte, fez com<br />
que se efetivasse a superação <strong>da</strong> estrutura<br />
de comércio, até então local e sazonal, para<br />
a esfera <strong>do</strong> comércio internacional com as<br />
grandes navegações. Era possível, então,<br />
aventurar-se para além-mar na busca de<br />
riquezas que haveriam de existir.<br />
Essa nova concepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> físico<br />
propiciou a possibili<strong>da</strong>de de avanços<br />
significativos no campo <strong>da</strong> Ciência levan<strong>do</strong>,<br />
assim, a descobertas científicas 7 que<br />
viabilizavam novos instrumentos de navegação<br />
e de outras instâncias <strong>da</strong> produção<br />
social, fazen<strong>do</strong> com que aflorasse uma forma<br />
de organização societal significativamente<br />
diferente <strong>da</strong> anterior à que Wallerstein<br />
(apud SOUSA SANTOS, 1996) denomina<br />
de capitalismo, se entendi<strong>do</strong> como<br />
"(...) um sistema de normas monetárias<br />
____________<br />
7 Galileu, I.Newton, Bacon, Descartes, etc...
generaliza<strong>da</strong>s". (p.78) 8 , e que a maior parte<br />
<strong>da</strong> literatura denomina pré-capitalismo.<br />
O ponto crucial <strong>da</strong> discussão supera a<br />
denominação <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de produção, pois<br />
se encontra exatamente na forma como se<br />
estrutura uma nova organização tanto epistemológica<br />
como societal, isto é, na ruptura<br />
com o padrão teocêntrico (a absoluta explicação<br />
divina para as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>) e a<br />
emergência de um padrão racional pauta<strong>do</strong><br />
em uma razão, como dito anteriormente,<br />
reificante (a absoluta explicação racional<br />
para as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>).<br />
É assim que se estabelece o paradigma<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de em meio à rigidez de<br />
uma razão explicativa de mun<strong>do</strong> absoluta,<br />
pois confere às outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de conhecimento<br />
a improprie<strong>da</strong>de de explicar o<br />
mun<strong>do</strong>, e em meio à riqueza de possibili<strong>da</strong>des<br />
de explicar, de sistematizar e de organizar<br />
o mun<strong>do</strong> não mais sob a égide <strong>da</strong><br />
perspectiva teocêntrica.<br />
O <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de se solidifica,<br />
ao longo <strong>do</strong>s séculos XVII e XVIII,<br />
sustenta<strong>do</strong>, conforme SOUSA SANTOS<br />
(op. Cit,p.77), em <strong>do</strong>is pilares, quais sejam:<br />
o "Pilar <strong>da</strong> Regulação" e o "Pilar <strong>da</strong> Emancipação",<br />
e ca<strong>da</strong> um desses pilares constituí<strong>do</strong><br />
por três princípios.<br />
Os princípios que sustentam o Pilar<br />
<strong>da</strong> Regulação são constituí<strong>do</strong>s a partir <strong>da</strong>s<br />
idéias que marcam a ruptura com o modelo<br />
anterior e que são expressas, basicamente,<br />
pelos três contratualistas: Hobbes, Locke e<br />
Rousseau. Os princípios são assim apresenta<strong>do</strong>s:<br />
o Princípio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; o Princípio<br />
<strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> e o Princípio <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de.<br />
Hobbes é a referência para a construção<br />
<strong>do</strong> Princípio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em virtude de<br />
ter assinala<strong>do</strong>, pela primeira vez, a necessi<strong>da</strong>de<br />
de um contrato de base jurídica que<br />
____________<br />
8 A diferença de periodização <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> capitalismo<br />
(entre Wallerstein e Sousa Santos) será desenvolvi<strong>da</strong> posteriormente<br />
quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> análise <strong>do</strong> padrão societal <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de produção.<br />
Para efeito ilustrativo <strong>da</strong> questão apresenta<strong>da</strong>, reporto-me à<br />
análise de Wallerstein.<br />
visasse superar a estabili<strong>da</strong>de flutuante <strong>do</strong><br />
poder <strong>do</strong> Rei no perío<strong>do</strong> medieval, e por<br />
intermédio desse contrato os súditos concederiam<br />
o poder a um terceiro (homem ou<br />
assembléia) que se responsabilizaria por<br />
estabelecer as regras que superariam o esta<strong>do</strong><br />
de natureza, marca<strong>do</strong> pela insegurança e<br />
pela violência. Salienta-se, to<strong>da</strong>via, que esse<br />
poder deveria ser pleno e aquele que o recebesse<br />
não estaria submeti<strong>do</strong> às regras pois<br />
não era sujeito assinante <strong>do</strong> contrato 9 .<br />
As idéias fun<strong>da</strong>ntes <strong>do</strong> pensamento<br />
de Locke irão alicerçar o Princípio <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong>,<br />
pois para ele "(...) a proprie<strong>da</strong>de já<br />
existe no esta<strong>do</strong> de natureza e, sen<strong>do</strong> uma<br />
instituição anterior à socie<strong>da</strong>de, é um direito<br />
natural <strong>do</strong> indivíduo que não pode ser<br />
viola<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>". (WEFFORT, 1991,<br />
p.85)<br />
Segun<strong>do</strong> Locke, o esta<strong>do</strong> de natureza<br />
gera alguns inconvenientes que devem ser<br />
supera<strong>do</strong>s pela união <strong>do</strong>s homens e pelo<br />
estabelecimento livre de um Contrato Social<br />
que possa "(...) realizar a passagem <strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong> de natureza para a socie<strong>da</strong>de política<br />
ou civil". (op.cit,p.86). As idéias de Locke<br />
irão iluminar as proposições de A<strong>da</strong>m Smith<br />
(Liberalismo Econômico) e David Ricar<strong>do</strong>.<br />
O Princípio <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de terá a<br />
orientação nas idéias de Rousseau que se<br />
transformou no mais veemente defensor <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem afirman<strong>do</strong>, em sua<br />
obra O Contrato Social, que os homens<br />
nascem livres e são constantemente aprisiona<strong>do</strong>s.<br />
Em virtude disso, Rousseau propõe<br />
um instrumento que consolide essa<br />
liber<strong>da</strong>de, pois os homens devem"(...) encontrar<br />
uma forma de associação que defen<strong>da</strong><br />
e proteja a pessoa e os bens de ca<strong>da</strong><br />
associa<strong>do</strong> com to<strong>da</strong> a força comum, unin<strong>do</strong>-se<br />
a to<strong>do</strong>s, só obedece contu<strong>do</strong> a si<br />
____________<br />
9<br />
WEFFORT, Francisco. (org.) Os clássicos <strong>da</strong> Política 1. São<br />
Paulo: Ática, 1991.
mesmo, permanecen<strong>do</strong> assim tão livre como<br />
antes”, (p.38) 10<br />
O pilar <strong>da</strong> Emancipação é constituí<strong>do</strong>,<br />
segun<strong>do</strong> SOUSA SAN-TOS (op.cit),<br />
por "(...) três lógicas de racionali<strong>da</strong>de: a<br />
racionali<strong>da</strong>de estético-expressiva <strong>da</strong> arte e<br />
<strong>da</strong> literatura; a racionali<strong>da</strong>de moral-prática<br />
<strong>da</strong> ética e <strong>do</strong> direito; e a racionali<strong>da</strong>de cognitivo-instrumen-tal<br />
<strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> técnica"<br />
(p.77).<br />
Esses <strong>do</strong>is pilares <strong>do</strong> <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de,<br />
e seus respectivos princípios e<br />
racionali<strong>da</strong>des, se articulam internamente,<br />
mas não de forma estática. Ocorre um movimento<br />
preferencial entre um princípio e<br />
uma racionali<strong>da</strong>de, mas esse movimento<br />
não impede que se efetivem outras relações<br />
internas. O esquema abaixo possibilita a<br />
visualização <strong>da</strong>s relações prioritárias entre<br />
os pilares.<br />
Projeto sócio-cultural <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
Sustenta<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is pilares<br />
Pilar <strong>da</strong> regulação Pilar <strong>da</strong> emancipação<br />
Princípio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Racionali<strong>da</strong>de estético-<br />
(Hobbes) expressiva<br />
Princípio <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> Racionali<strong>da</strong>de moral<br />
(Locke) -prática<br />
Princípio <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de<br />
(Rousseau) Racionali<strong>da</strong>de cognitivo<br />
-instrumental<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (op.cit),<br />
esses pilares se relacionam a partir <strong>do</strong> fato<br />
de estarem "(...) liga<strong>do</strong>s por cálculos de correspondência.<br />
Assim, embora as lógicas de<br />
emancipação racional visem, no seu conjunto,<br />
orientar a vi<strong>da</strong> prática <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos,<br />
ca<strong>da</strong> uma delas tem um mo<strong>do</strong> de inserção<br />
privilegia<strong>do</strong> no pilar <strong>da</strong> regulação". (p.77)<br />
Mas qual é, então, o grande dilema<br />
que enfrentou e enfrenta o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
que propiciou sua crise entendi-<br />
____________<br />
10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social I. Coleção Os<br />
Pensa<strong>do</strong>res: São Paulo: Abril Cultural,1973.<br />
<strong>da</strong> de várias formas: como uma crise de<br />
incompletude (Habermas, Ianni); como<br />
uma crise de completude limita<strong>da</strong> (Sousa<br />
Santos, Morin) ou como uma crise de superação<br />
total de seu paradigma (Lyotard, Derri<strong>da</strong>d,<br />
Mafessoli, Fukuyama) ?<br />
Na concepção de SOUSA SANTOS<br />
(op. cit), o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de encarnou<br />
uma lógica teórica que se constituiu,<br />
ao longo de sua experiência histórica, como<br />
o fun<strong>da</strong>mento de sua maior contradição,<br />
demonstran<strong>do</strong>, assim, sua incapaci<strong>da</strong>de em<br />
realizar to<strong>da</strong>s as suas aspirações ten<strong>do</strong> em<br />
vista que "(...) a dimensão mais profun<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong> défice parece residir precisamente na<br />
possibili<strong>da</strong>de de estes princípios e lógicas<br />
virem humildemente a dissolver-se num<br />
<strong>projeto</strong> global de racionalização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
social e quotidiana" (p.78).<br />
Mas onde se localiza o problema <strong>do</strong><br />
convívio entre os princípios e lógicas <strong>da</strong><br />
moderni<strong>da</strong>de? É necessário remontar à<br />
discussão sugeri<strong>da</strong> a algumas páginas atrás,<br />
referin<strong>do</strong> ao nascimento <strong>do</strong> capitalismo e<br />
ao nascimento <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Segun<strong>do</strong><br />
SOUSA SANTOS (op.cit), o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong><br />
moderni<strong>da</strong>de, em seu âmbito <strong>sociocultural</strong>,<br />
inicia sua constituição entre os séculos XVI<br />
e XVIII, evidentemente por força <strong>do</strong> redimensionamento<br />
<strong>da</strong> Razão como fator de<br />
entendimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
O que parece significativo na análise<br />
<strong>do</strong> autor é que ele relaciona a consoli<strong>da</strong>ção<br />
ao nascimento <strong>do</strong> capitalismo que ocorre<br />
em finais <strong>do</strong> século XVIII e início <strong>do</strong> século<br />
XIX. Essa discussão, e principalmente com<br />
Wallerstein (op.cit) sobre o perío<strong>do</strong> que<br />
encarna o surgimento <strong>do</strong> capitalismo, é<br />
posta por SOUSA SANTOS (op.Cit) <strong>da</strong><br />
seguinte forma: "(...) a especifici<strong>da</strong>de histórica<br />
<strong>do</strong> capitalismo reside nas relações de<br />
produção que instaura entre o capital e o<br />
trabalho e são elas que determinam a emergência<br />
e a generalização de um sistema<br />
de trocas caracteriza<strong>da</strong>mente capitalista"<br />
(p.78-9).
As relações sociais sofreram alterações<br />
significativas a partir <strong>do</strong> momento em<br />
que o potencial transforma<strong>do</strong> de racionali<strong>da</strong>de<br />
aprimora as técnicas de <strong>do</strong>minação e<br />
opressão, atingin<strong>do</strong>, fun<strong>da</strong>mentalmente, a<br />
subjetivi<strong>da</strong>de humana através <strong>do</strong> processo<br />
de reificação, em que o trabalho humano<br />
se transforma em merca<strong>do</strong>ria, poden<strong>do</strong> ser<br />
vendi<strong>do</strong>, compra<strong>do</strong> e substituí<strong>do</strong> conforme<br />
a oscilação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. A Razão passa a ser<br />
sinônimo de poder e <strong>do</strong>minação de uma<br />
parcela reduzi<strong>da</strong> sobre a grande massa <strong>da</strong><br />
população.<br />
A proprie<strong>da</strong>de continua sen<strong>do</strong> o pólo<br />
que determina as relações de poder na socie<strong>da</strong>de,<br />
ten<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong> capitalismo, um<br />
novo perfil que extrapola em muito seu<br />
papel na I<strong>da</strong>de Antiga e na Medieval, pois,<br />
enquanto na socie<strong>da</strong>de medieval a terra,<br />
como referencial de proprie<strong>da</strong>de, determinasse<br />
a diferenciação social entre senhor e<br />
servo ou entre senhor e escravo e a produção<br />
<strong>da</strong> riqueza estivesse calca<strong>da</strong> no trabalho<br />
humano escravo, o nível de ren<strong>da</strong> "(...) era<br />
determina<strong>do</strong> pela capaci<strong>da</strong>de que tinha a<br />
classe feu<strong>da</strong>l de exercer sobre os camponeses<br />
formas não econômicas de coerção para<br />
a extração <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>" (Bottomore, 1988, p.<br />
353).<br />
O capitalismo estabelece um patamar<br />
de conceituação de proprie<strong>da</strong>de distinto,<br />
pois os sujeitos envolvi<strong>do</strong>s nas relações de<br />
produção estão polariza<strong>do</strong>s entre aqueles<br />
que detêm os meios de produção e aqueles<br />
que vendem a força de trabalho, e a forma<br />
de coerção que se estabelece é profun<strong>da</strong>mente<br />
de cunho econômico. É sob esse<br />
ângulo que SOUSA SANTOS desenvolve<br />
sua análise, perceben<strong>do</strong> que o grande diferencial<br />
<strong>do</strong> capitalismo é sem dúvi<strong>da</strong> a relação<br />
estabeleci<strong>da</strong> entre capital e trabalho e<br />
que o <strong>projeto</strong> <strong>sociocultural</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
vem a legitimar essa forma de organização<br />
societal.<br />
Em que senti<strong>do</strong> ocorre essa legitimação?<br />
A concepção de proprie<strong>da</strong>de se transforma<br />
com o desenvolvimento <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de<br />
produção capitalista e com ela to<strong>da</strong> a forma<br />
de organização social. O ideário liberal,<br />
fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s revoluções burguesas <strong>da</strong><br />
França, Inglaterra e Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, declarava<br />
a necessi<strong>da</strong>de de “liber<strong>da</strong>de” e “igual<strong>da</strong>de”<br />
entre os homens. Faz-se necessário<br />
identificar, além <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> desses <strong>do</strong>is<br />
conceitos, a concepção significante deles<br />
para a burguesia.<br />
É evidente que o significante <strong>do</strong>s<br />
conceitos proclama<strong>do</strong>s não estava em consonância<br />
com a estrutura significante <strong>do</strong>s<br />
demais membros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, haja vista<br />
que liber<strong>da</strong>de significava a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
ausência de intervenção nos <strong>projeto</strong>s que<br />
efetivariam o potencial de orientação <strong>da</strong>s<br />
políticas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e, conseqüentemente, o<br />
potencial de acumulação de riqueza com<br />
base na exploração <strong>do</strong> trabalho humano.<br />
Significava, ain<strong>da</strong>, a livre concorrência,<br />
tanto na produção como na comercialização<br />
<strong>da</strong> produção, ten<strong>do</strong> como respal<strong>do</strong> o<br />
conceito de “Igual<strong>da</strong>de”.<br />
Esse ideário foi amplamente divulga<strong>do</strong><br />
na socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XVIII e<br />
início <strong>do</strong> século XIX, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> origem ao<br />
perío<strong>do</strong> de industrialização que, utilizan<strong>do</strong>se<br />
de uma racionali<strong>da</strong>de específica, consoli<strong>da</strong>va<br />
os mecanismos <strong>do</strong> liberalismo econômico<br />
alicerça<strong>do</strong>s nas diretrizes <strong>do</strong> liberalismo<br />
político. A lógica <strong>do</strong> lucro, <strong>do</strong> poder<br />
e <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio organizava a estrutura <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de que se desenvolvia com base na<br />
tecnificação, fortalecen<strong>do</strong> o processo de<br />
reificação <strong>do</strong> trabalho humano.<br />
O desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo<br />
pode ser entendi<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> SOUSA<br />
SANTOS (op.cit,p.79), a partir de três<br />
momentos históricos que complexificam os<br />
postula<strong>do</strong>s elementares de sua formação,<br />
acompanha<strong>do</strong> por uma seqüência histórica<br />
e semântica <strong>do</strong> conceito. O quadro a seguir<br />
sintetiza essa idéia.
Três perío<strong>do</strong>s de desenvolvimento <strong>do</strong><br />
capitalismo:<br />
Perío<strong>do</strong> Denominação <strong>do</strong><br />
tipo de capitalismo<br />
1º) to<strong>do</strong> o Capitalismo libe-<br />
século XIX ral<br />
2º)final <strong>do</strong><br />
século XIX<br />
até 1ª déca<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong><br />
<strong>pós</strong>-guerras<br />
3º)final <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de 60<br />
até hoje.<br />
Capitalismo<br />
Organiza<strong>do</strong><br />
Capitalismo<br />
Desorganiza<strong>do</strong><br />
Seqüência histórica<br />
e semântica <strong>do</strong><br />
conceito<br />
Moderni<strong>da</strong>de –<br />
racionali<strong>da</strong>de<br />
Modernismoracionalismo<br />
Modernização-<br />
racionalização<br />
Como fica o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
com a sucessão desses três perío<strong>do</strong>s históricos<br />
<strong>do</strong> capitalismo?<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (op.<br />
cit,p.80), "(...) à medi<strong>da</strong> que se sucedem os<br />
três perío<strong>do</strong>s históricos <strong>do</strong> capitalismo, o<br />
<strong>projeto</strong> de moderni<strong>da</strong>de, por um la<strong>do</strong>, afunila-se<br />
no seu âmbito de realização e, por<br />
outro, adquire uma intensi<strong>da</strong>de total e até<br />
excessiva nas realizações em que se concentra".<br />
Veja-se, mesmo que de mo<strong>do</strong> breve,<br />
como se articulam os pilares de Regulação e<br />
Emancipação, tanto internamento como<br />
entre si, nos três perío<strong>do</strong>s de desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> capitalismo aludi<strong>do</strong>s por<br />
SOUSA SANTOS.<br />
O primeiro perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> capitalismo<br />
designa<strong>do</strong> de capitalismo liberal é caracteriza<strong>do</strong><br />
pela mais violenta contradição <strong>do</strong><br />
<strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, pois, em virtude<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento ímpar <strong>do</strong> Princípio <strong>do</strong><br />
Merca<strong>do</strong>, ocorre uma atrofia <strong>do</strong> Princípio<br />
<strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de, isto é, a incompatibili<strong>da</strong>de<br />
entre as bases <strong>do</strong> <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
está, mais <strong>do</strong> que nunca, visível, pois<br />
como equilibrar soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de;<br />
justiça e autonomia; e igual<strong>da</strong>de e liber<strong>da</strong>de<br />
quan<strong>do</strong> a lógica reinante está centra<strong>da</strong> no<br />
princípio <strong>do</strong> “laissez faire” ?<br />
A concepção a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong> para o Princípio<br />
<strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de demonstra a desvir-<br />
tualização <strong>da</strong>s premissas que sustentaram as<br />
idéias de Rousseau, pois ela é reduzi<strong>da</strong> a<br />
<strong>do</strong>is elementos abstratos, isto é, a socie<strong>da</strong>de<br />
civil como o suporte <strong>da</strong> esfera pública e o<br />
indivíduo como suporte <strong>da</strong> esfera priva<strong>da</strong>.<br />
O nível <strong>da</strong> Emancipação apresenta<br />
deformações no âmbito <strong>do</strong> equilíbrio entre<br />
as três lógicas que denotam as características<br />
<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Se o Princípio <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong><br />
assume uma posição de destaque frente aos<br />
demais princípios, é evidente que a lógica<br />
emancipatória possui uma identi<strong>da</strong>de íntima<br />
com ele, e a racionali<strong>da</strong>de cognitivoinstrumental<br />
terá um poder de organização<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de significativamente substancial.<br />
O que isso quer dizer?<br />
O processo de industrialização, nesse<br />
primeiro perío<strong>do</strong>, é intenso não só em termos<br />
quantitativos como também em termos<br />
qualitativos. SOUSA SANTOS (op.cit)<br />
alude a WEBER para demonstrar que o<br />
processo de "especialização e diferenciação<br />
funcional" traz, ao mesmo tempo, um movimento<br />
de maior autonomia entre as lógicas,<br />
mas acaba por dificultar a articulação<br />
entre elas. Como o Princípio <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong><br />
necessitará de maior desenvolvimento tecnológico,<br />
é evidente que os avanços <strong>da</strong> Ciência<br />
serão fun<strong>da</strong>mentais para a sua consoli<strong>da</strong>ção.<br />
O Esta<strong>do</strong> será reduzi<strong>do</strong> a legitima<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento econômico <strong>do</strong> capitalismo<br />
e para tanto desenvolverá uma racionali<strong>da</strong>de<br />
moral-prática que produzirá a<br />
individualização <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de moral<br />
através <strong>da</strong> "(...) consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> microética<br />
liberal". (op.cit,p.82). Se o Princípio <strong>da</strong><br />
Comuni<strong>da</strong>de separa indivíduo de socie<strong>da</strong>de<br />
civil, a fim de viabilizar esse modelo de<br />
desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo, é evidente<br />
que a racionali<strong>da</strong>de que lhe tem identi<strong>da</strong>de,<br />
isto é, a lógica estético-expressiva, construirá<br />
e será construí<strong>da</strong> por esse modelo.<br />
Essas contradições endógenas ao sistema<br />
produzem não somente crises internas,<br />
mas são motores de críticas contun-
dentes que se constituem para além <strong>do</strong><br />
sistema como, por exemplo, os movimentos<br />
contestatórios que surgem nesse perío<strong>do</strong><br />
por intermédio, dentre um <strong>do</strong>s exemplos,<br />
<strong>do</strong> socialismo científico.<br />
O que chama a atenção nesse perío<strong>do</strong><br />
é que tanto as críticas internas ao sistema<br />
como as críticas externas a ele possuem<br />
basicamente o mesmo objetivo, qual seja,<br />
reivindicar a realização <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s que<br />
sustentam o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.<br />
O segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> capitalismo, denomina<strong>do</strong> de<br />
capitalismo organiza<strong>do</strong>, é caracteriza<strong>do</strong><br />
como um momento em que se busca "(...)<br />
distinguir no <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de o<br />
que é possível e o que é impossível de realizar<br />
numa socie<strong>da</strong>de capitalista em constante<br />
processo de expansão, para de segui<strong>da</strong> se<br />
concentrar no possível, como se fosse o<br />
único" (op.cit,p.83).<br />
Para SOUSA SANTOS, esse momento<br />
utiliza, estrategicamente, uma redefinição<br />
<strong>do</strong> <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, constituin<strong>do</strong>,<br />
assim, aquilo que o autor denomina<br />
"ilusionismo histórico" (p. 84), pois, a fim<br />
de se livrar <strong>da</strong>s tarefas não cumpri<strong>da</strong>s pelo<br />
<strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, os ideólogos desse<br />
momento as desconsideram e, a fim de<br />
iniciar um "novo" movimento, alargam a<br />
dimensão de entendimento <strong>do</strong> possível e<br />
denominam essa etapa de "modernismo".<br />
To<strong>da</strong>s as "(...) transformações ao nível <strong>da</strong><br />
regulação tiveram por objectivo ou conseqüência<br />
redefinir o projecto <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
em termos <strong>do</strong> que era possível na<br />
socie<strong>da</strong>de capitalista, atiran<strong>do</strong> para o lixo<br />
<strong>da</strong> história tu<strong>do</strong> o mais" (p.85).<br />
Quais foram essas transformações ao<br />
nível <strong>da</strong> Regulação?<br />
No final <strong>do</strong> século XIX, a<strong>pós</strong> os avanços<br />
significativos advin<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong><br />
Revolução Industrial, inicia-se um processo<br />
de reestruturação <strong>do</strong> capitalismo na tentativa<br />
de superar sua primeira crise orgânica.<br />
Para isso era necessário redimensionar os<br />
mecanismos utiliza<strong>do</strong>s para a acumulação<br />
de capital; o papel <strong>da</strong>s regulamentações e<br />
gestões <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e o nível de participação<br />
<strong>do</strong>s não detentores <strong>do</strong>s meios de produção<br />
que não só como substrato de enfraquecimento<br />
<strong>da</strong>s lutas exerciam um poderio de<br />
ataque frontal ao capital, mas também de<br />
cooptação de um merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r de<br />
grandes proporções. Essa forma revisa<strong>da</strong> de<br />
capitalismo atenuaria as contradições gera<strong>da</strong>s<br />
no estágio anterior. É nesse cenário que<br />
surgem três figuras de importância fun<strong>da</strong>mental<br />
ao capitalismo, no plano econômico-político:<br />
Taylor, Ford e Keynes.<br />
A Teoria <strong>da</strong> Administração Científica<br />
de Taylor uni<strong>da</strong> à produção em série de<br />
Ford e impulsiona<strong>da</strong>s pela Teoria Geral de<br />
Keynes 11 redimensionaram o padrão de<br />
produção <strong>do</strong> capitalismo tanto na esfera<br />
econômica como também nas esferas política,<br />
social, cultural e ideológica. Para que<br />
se possa ter uma idéia <strong>da</strong> real dimensão<br />
desse <strong>projeto</strong>, vale a pena lembrar uma<br />
citação de Keynes sobre os princípios no<br />
capitalismo. "Para um governo capitalista, é<br />
fatal ter princípios. Ele deve ser oportunista<br />
no melhor senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> palavra, viven<strong>do</strong> pela<br />
acomo<strong>da</strong>ção e pelo bom senso. Se um governo<br />
monárquico, plutocrático ou outro<br />
análogo tiver princípios, ele cairá". (Skidelsky,<br />
1999, P. 55)<br />
É essa a idéia que norteará as bases<br />
desse segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, buscan<strong>do</strong> as possibili<strong>da</strong>des<br />
de convívio harmônico entre os<br />
três pilares <strong>da</strong> Regulação como apresenta<br />
SOUSA SANTOS na citação a seguir:<br />
"(...)o Esta<strong>do</strong> é, ele próprio activo <strong>da</strong>s transformações<br />
ocorri<strong>da</strong>s na comuni<strong>da</strong>de e no<br />
merca<strong>do</strong> e, ao mesmo tempo, transforma-se<br />
constantemente para se a<strong>da</strong>ptar a essas transformações.<br />
A sua articulação ca<strong>da</strong> vez mais<br />
compacta com o merca<strong>do</strong>, nas ligações com<br />
____________<br />
11 O presente trabalho não tem por objetivo exaurir questões<br />
referentes às teorias de Taylor, Ford e Keynes. Elas foram<br />
cita<strong>da</strong>s somente como base ilustrativa para a discussão apresenta<strong>da</strong><br />
por SOUSA SANTOS.
os aparelhos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> aos grandes monopólios,<br />
na condução <strong>da</strong>s guerras e de outras<br />
formas de luta política pelo controle imperialista<br />
<strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, na crescente intervenção<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na regulação e institucionalização<br />
<strong>do</strong>s conflitos entre capital e trabalho. Por outro<br />
la<strong>do</strong>, o adensamento <strong>da</strong> articulação <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> com a comuni<strong>da</strong>de está bem patente<br />
na legislação social, no aumento <strong>da</strong> participação<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na gestão <strong>do</strong> espaço e nas<br />
formas de consumo colectivo, na saúde e na<br />
educação, nos transportes e na habitação, enfim<br />
na criação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Providência".<br />
(op.Cit,p.84-5)<br />
Como se apresentam as transformações<br />
no pilar <strong>da</strong> emancipação na fase <strong>do</strong><br />
capitalismo organiza<strong>do</strong>, orienta<strong>do</strong> pela égide<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> racionalismo?<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS, "(...) o<br />
pilar <strong>da</strong> emancipação torna-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />
semelhante ao pilar <strong>da</strong> regulação. A emancipação<br />
transforma-se ver<strong>da</strong>deiramente no<br />
la<strong>do</strong> cultural <strong>da</strong> regulação, um processo de<br />
convergência e de interpenetração que<br />
Gramsci caracteriza eloqüentemente através<br />
<strong>do</strong> conceito de hegemonia" (op.cit,p.86).<br />
A relação entre as três lógicas <strong>do</strong> pilar<br />
<strong>da</strong> emancipação passa a ser determina<strong>da</strong><br />
pela racionali<strong>da</strong>de estético-expressiva em<br />
que ocorre a "(...) oposição irreconciliável<br />
entre a alta cultura e a cultura de massa",<br />
(op.cit,p.85) e esta determina a lógica <strong>da</strong>s<br />
demais racionali<strong>da</strong>des.<br />
É possível visualizar essa idéia a partir<br />
<strong>do</strong> modelo de desenvolvimento a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />
pela Teoria <strong>do</strong> Desenvolvimento, que postulava<br />
ser a modernização um fenômeno<br />
universal; um estágio social que to<strong>do</strong>s os<br />
povos deveriam atingir e que correspondia<br />
ao pleno desenvolvimento <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />
democráticas. Para que determina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
alcançasse os patamares <strong>do</strong> desenvolvimento,<br />
era necessário que a<strong>do</strong>tasse as<br />
normas de comportamento, atitudes e valo-<br />
res identifica<strong>do</strong>s com a racionali<strong>da</strong>de econômica<br />
moderna. 12<br />
A idéia <strong>da</strong> padronização de costumes,<br />
crenças e hábitos na socie<strong>da</strong>de capitalista<br />
não ocorre isenta de duras críticas principalmente<br />
por focos de resistência vincula<strong>do</strong>s<br />
à arte. Salienta-se, também, o potencial<br />
crítico reflexivo <strong>da</strong> escola de Frankfurt e<br />
especialmente nas figuras de A<strong>do</strong>rno, Hokheimer<br />
e Walter Benjamin, que se dedicam<br />
exaustivamente ao entendimento <strong>da</strong><br />
lógica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de no capitalismo e<br />
sua expressão através <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />
artísticas.<br />
O terceiro perío<strong>do</strong> de desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> capitalismo é denomina<strong>do</strong> por<br />
SOUSA SANTOS (op.cit) de capitalismo<br />
desorganiza<strong>do</strong> em virtude <strong>da</strong> dicotomia<br />
entre o pilar <strong>da</strong> regulação e o pilar <strong>da</strong> emancipação<br />
13 . Ele é marca<strong>do</strong>, muito mais<br />
significativamente <strong>do</strong> que o perío<strong>do</strong> anterior,<br />
na supremacia <strong>do</strong> Princípio <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong>,<br />
que passa a determinar tanto o princípio<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pela exigência de seu enfraquecimento<br />
na esfera <strong>do</strong> campo econômico<br />
mas de sua atuação forte no que diz respeito<br />
ao processo de desregulamentação, de<br />
subsídios ao capital internacional, de enfraquecimento<br />
<strong>da</strong>s conquistas sociais adquiri<strong>da</strong>s<br />
ao longo <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
capitalismo e até mesmo agente promotor<br />
de sua auto-liqui<strong>da</strong>ção mas jamais entendi<strong>do</strong><br />
como destruição.<br />
O Princípio <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de sofre<br />
um processo regressivo em relação às conquistas<br />
construí<strong>da</strong>s a partir <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong>. O processo de reestruturação produtiva<br />
que segun<strong>do</strong>, BRAGA (1997), é<br />
fruto <strong>da</strong> crise orgânica <strong>do</strong> capitalismo con-<br />
____________<br />
12 Essa análise é realiza<strong>da</strong> por Thetônio <strong>do</strong>s Santos em referência<br />
aos 30 anos <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Dependência na USP- material<br />
mimeografa<strong>do</strong>.<br />
13 O autor salienta a dificul<strong>da</strong>de em analisar o "capitalismo<br />
desorganiza<strong>do</strong>", pois ele inicia na déca<strong>da</strong> de 60 e ocorre ain<strong>da</strong><br />
hoje. É difícil porque somos protagonistas desse perío<strong>do</strong> e mais<br />
<strong>do</strong> que isso, porque ele está em processo de execução. Mesmo<br />
ten<strong>do</strong> em conta essas dificul<strong>da</strong>des, SOUSA SANTOS aponta<br />
para as principais discussões que são trava<strong>da</strong>s nesse momento.
duziu a um redirecionamento <strong>da</strong>s relações<br />
de trabalho, fazen<strong>do</strong> com que as formas de<br />
organizações construí<strong>da</strong>s ao longo <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> capitalismo deixassem de<br />
ser referencial de identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> classe trabalha<strong>do</strong>ra.<br />
Instrumentos como o modelo<br />
Toyotista de produção de Ohno Toyo<strong>da</strong> e a<br />
Reengenharia de Peter Druck desestabilizaram<br />
essas formas de identi<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> proclama<strong>do</strong>s<br />
até o fim <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Trabalho<br />
Assalaria<strong>do</strong> (André Gorz, Ropbert<br />
Kurz, Domênico de Masi) ou até mesmo o<br />
fim <strong>da</strong> História (Fukuyama).<br />
Quais são as diretrizes orienta<strong>do</strong>ras<br />
<strong>do</strong> pilar <strong>da</strong> Emancipação nesse turbilhão de<br />
desconexões e fragmentações ?<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (op. cit.<br />
p, 90), "(...) ao contrário <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> anterior,<br />
em que se tentou uma contabili<strong>da</strong>de<br />
apazigua<strong>do</strong>ra entre excessos e défices, neste<br />
perío<strong>do</strong> vive-se com igual intensi<strong>da</strong>de uns e<br />
outros".<br />
A lógica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de cognitivoinstrumental<br />
desenvolve, em virtude <strong>do</strong><br />
fantástico aprimoramento <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong><br />
Técnica, um potencial de eliminação <strong>da</strong><br />
autonomia de países de periferia ou semiperiferia<br />
que não se encontram enquadra<strong>do</strong>s<br />
nos princípios determina<strong>do</strong>s como<br />
"desenvolvimento". Eles estão forçosamente,<br />
por intermédio de políticas econômicas<br />
internacionais, ou por meio de vigilância<br />
militar ou até mesmo por meio <strong>da</strong> competição<br />
nos merca<strong>do</strong>s internacionais, compeli<strong>do</strong>s<br />
a aceitar as regras estabeleci<strong>da</strong>s pelos<br />
países <strong>do</strong> centro hegemônico 14 .<br />
Esses fatores combina<strong>do</strong>s conduziram<br />
ao agravamento <strong>da</strong> injustiça social, por<br />
intermédio <strong>da</strong> excessiva concentração de<br />
____________<br />
14 Recentemente, em agosto de 2000, o Brasil foi condena<strong>do</strong><br />
pela OMC (Organização Mundial <strong>do</strong> Comércio) a pagar uma<br />
indenização de 1bilhão e 400 milhões de dólares ao Canadá por<br />
ter comercializa<strong>do</strong> o avião Brasília, com empresários canadenses,<br />
a um preço inferior ao <strong>da</strong> indústria canadense. Outro fato<br />
que merece destaque é o processo impetra<strong>do</strong> pelo governo <strong>do</strong>s<br />
EUA, acusan<strong>do</strong> Brasil, Rússia e Japão de terem vendi<strong>do</strong> aço a<br />
empresas esta<strong>do</strong>-unidenses com preço inferior ao <strong>da</strong> indústria<br />
siderúrgica <strong>do</strong> mesmo país.<br />
ren<strong>da</strong> e a outros fenômenos que aprofun<strong>da</strong>m<br />
e espraiam as contradições desse terceiro<br />
perío<strong>do</strong>. Essa situação tem leva<strong>do</strong>,<br />
segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (op.cit,p.91)), a<br />
um "(...) inconformismo [...] combinan<strong>do</strong><br />
uma crítica aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> epistemologia<br />
<strong>da</strong> ciência moderna" contribuin<strong>do</strong>, assim,<br />
para "(...) a emergência de um novo paradigma<br />
(...) o paradigma de um conhecimento<br />
prudente para uma vi<strong>da</strong> decente".<br />
No que diz respeito à lógica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de<br />
moral-prática, SOUSA SANTOS<br />
(op.cit,p.91) faz referência aos dilemas que<br />
o terceiro perío<strong>do</strong> apresenta.<br />
(...) os valores <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de tais como a<br />
autonomia e a subjectivi<strong>da</strong>de estão ca<strong>da</strong> vez<br />
mais divorcia<strong>do</strong>s tanto <strong>da</strong>s práticas políticas,<br />
como <strong>do</strong> nosso quotidiano (...) a regulamentação<br />
jurídica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social alimenta-se de si<br />
própria (...) ao mesmo tempo que o ci<strong>da</strong>dão<br />
esmaga<strong>do</strong> por um conhecimento jurídico especializa<strong>do</strong><br />
e hermético e pela sobrejuridificação<br />
<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> é leva<strong>do</strong> a dispensar o bom<br />
senso ou o senso comum com que a burguesia<br />
no século XVIII demonstrou à aristocracia<br />
que também sabia pensar (...) a moderni<strong>da</strong>de<br />
confinou-nos numa ética individualista.<br />
Mas, segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS<br />
(op.cit,p.92), to<strong>da</strong> essa gama de contradições<br />
ocasiona<strong>da</strong>s pelo capitalismo desorganiza<strong>do</strong>,<br />
no que diz respeito à lógica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de<br />
moral-prática tem provoca<strong>do</strong><br />
reações que podem desembocar em um<br />
"novo jusnaturalismo" pauta<strong>do</strong> em uma<br />
nova concepção de direitos humanos e de<br />
vi<strong>da</strong>. Talvez seja essa a idéia que SOUSA<br />
SANTOS possui de "vi<strong>da</strong> decente".<br />
A lógica <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de estéticoexpressiva<br />
tem demonstra<strong>do</strong>, ao longo desse<br />
terceiro perío<strong>do</strong>, um ver<strong>da</strong>deiro potencial<br />
revolucionário em relação ao <strong>projeto</strong> <strong>da</strong><br />
moderni<strong>da</strong>de, pois verifica-se em muitos<br />
setores, mas principalmente na arquitetura,<br />
o rompimento com as máximas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.<br />
A discussão que se apresenta nesse<br />
momento, a<strong>pós</strong> ter percorri<strong>do</strong> a densa his-
tória <strong>do</strong> capitalismo em suas fases características,<br />
é saber como a socie<strong>da</strong>de mundial,<br />
e especialmente aquela orienta<strong>da</strong> pela lógica<br />
<strong>do</strong> capitalismo, estará superan<strong>do</strong> o paradigma<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Para isso é necessário<br />
remontar a uma problemática aponta<strong>da</strong><br />
inicialmente neste segun<strong>do</strong> ponto, qual<br />
seja, o <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de se esgotou<br />
por completo? Ele ain<strong>da</strong> tem algo a cumprir?<br />
O que ele não cumpriu deve ser esqueci<strong>do</strong><br />
e se deve partir para outros momentos,<br />
ou seja, apostar naquilo que ele<br />
poderá cumprir? Está-se ruman<strong>do</strong> para outro<br />
<strong>projeto</strong> ou se está somente revisitan<strong>do</strong> o<br />
<strong>projeto</strong> já existente?<br />
Segun<strong>do</strong> SOUSA SANTOS (op. cit,<br />
p.102) os traços de uma socie<strong>da</strong>de pauta<strong>da</strong><br />
na <strong>pós</strong>-moderni<strong>da</strong>de não são fáceis de serem<br />
descritos pois, como dito anteriormente,<br />
o fato de se estar viven<strong>do</strong> a transição<br />
não possibilita a ante-visão, isto é, a visão<br />
<strong>do</strong> que poderá acontecer. Mas é possível<br />
apontar algumas saí<strong>da</strong>s com base em to<strong>da</strong> a<br />
discussão de ruptura epistemológica que já<br />
vem sen<strong>do</strong> desenvolvi<strong>da</strong> desde a déca<strong>da</strong> de<br />
20 por Albert Einsten quan<strong>do</strong> inicia o processo<br />
de conhecimento <strong>do</strong>s princípios <strong>da</strong><br />
Física Quântica.<br />
A idéia central parece estar localiza<strong>da</strong><br />
na discussão desenvolvi<strong>da</strong> no primeiro item<br />
deste ensaio, qual seja, a ruptura <strong>da</strong> concepção<br />
absoluta de uma Razão única, no<br />
singular e com letra maiúscula, típica <strong>da</strong><br />
Ciência Moderna e o florescimento de inúmeras<br />
razões que contemplem to<strong>da</strong>s as<br />
esferas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em to<strong>do</strong> os locais e em to<strong>da</strong><br />
a gama de conhecimentos possíveis de serem<br />
desenvolvi<strong>do</strong>s pelos sujeitos , ou o que<br />
SOUSA SANTOS chama de "miniracionali<strong>da</strong>des"<br />
(op.cit, p. 102).<br />
A interpretação <strong>da</strong><strong>da</strong> a essa ruptura<br />
de paradigma societal é apresenta<strong>da</strong> por<br />
SOUSA SANTOS a partir de seis guiões 15<br />
____________<br />
15 O significa<strong>do</strong> de guiões, segun<strong>do</strong> Aurélio Buarque de Holan<strong>da</strong><br />
(Rio de Janeiro, 1980,p.884), alude a estan<strong>da</strong>rtes que seguem<br />
à frente de uma procissão ou estan<strong>da</strong>rtes leva<strong>do</strong>s por sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s à<br />
frente <strong>da</strong> tropa. SOUSA SANTOS não fala em princípios<br />
justamente para diferenciar <strong>do</strong>s modelos a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pelo <strong>projeto</strong><br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de que concebia neles uma rigidez consistente.<br />
que trazem, em sua estrutura, a ruptura <strong>do</strong><br />
paradigma epistemológico. Esses guiões são<br />
assim apresenta<strong>do</strong>s: "o saber e a ignorância";<br />
"o desejável e o possível"; "o interesse e<br />
a capaci<strong>da</strong>de"; "o alto e o baixo ou o solista<br />
e o coro"; "as pessoas e as coisas" e "as miniracionali<strong>da</strong>des<br />
não são racionali<strong>da</strong>des mínimas".<br />
Os seis guiões apresentam uma visão<br />
analítica <strong>do</strong>s modelos que foram apresenta<strong>do</strong>s<br />
pelo <strong>projeto</strong> <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e aqueles<br />
que são defendi<strong>do</strong>s como prerrogativas<br />
para a construção de um novo paradigma,<br />
ou pelo menos, como orientação <strong>do</strong> paradigma<br />
emergente. O cerne <strong>da</strong> discussão<br />
está justamente no fato de que a moderni<strong>da</strong>de<br />
desconstituiu o sujeito como indivíduo<br />
porta<strong>do</strong>r de vontades particulares e<br />
ações, igualmente particulares, que articula<strong>da</strong>s<br />
em redes de relações constroem a<br />
socie<strong>da</strong>de. Ele foi concebi<strong>do</strong> como um "indivíduo"<br />
adestra<strong>do</strong> e subordina<strong>do</strong> incontestavelmente<br />
às máximas universais <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de,<br />
entendi<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong>des absolutas<br />
que não iriam variar em tempo ou<br />
lugar e nem em situações. O senso comum<br />
se perde na Ciência; o desejo se perde no<br />
interesse e na capaci<strong>da</strong>de; as ver<strong>da</strong>des locais<br />
se perdem nas ver<strong>da</strong>des globais; a pessoa se<br />
perde no consumo e as razões se perdem na<br />
Razão.<br />
A proposta de SOUSA SANTOS<br />
(op.cit) é constituir uma nova forma de<br />
entender a vi<strong>da</strong> e as relações que se estabelecem<br />
a partir dessa vi<strong>da</strong>, recu-peran<strong>do</strong> a<br />
potenciali<strong>da</strong>de criativa <strong>do</strong> senso comum<br />
fazen<strong>do</strong> com que "(...) o conhe-cimento<br />
científico se transforme em senso comum"<br />
(p.104); abdicar <strong>do</strong> isolamento <strong>do</strong> sujeito<br />
em relação ao objeto, pois a Física Quântica,<br />
como visto no primeiro tópico deste<br />
ensaio, demonstra, através <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s de<br />
Heisenberg e Bohr, que a interferência <strong>do</strong><br />
sujeito no objeto altera o objeto a tal ponto<br />
que ele se altera <strong>do</strong> início <strong>da</strong> medição até o<br />
término; formular necessi-<strong>da</strong>des radicais em<br />
que se desenvolva a "consciência <strong>do</strong> exces-<br />
Preferi, mesmo corren<strong>do</strong> alguns riscos de interpretação, deixar a<br />
palavra guião ao invés de utilizar estan<strong>da</strong>rte ou princípio.
so" que significa "(...) aprender a não desejar<br />
tu<strong>do</strong> o que é possível só porque é possível"<br />
e a "cons-ciência <strong>do</strong> défice" que significa<br />
"(...) aprender a desejar também o impossível<br />
(p.106); compreender que somos<br />
subje-tivi<strong>da</strong>des construin<strong>do</strong> redes com outras<br />
subjetivi<strong>da</strong>des; <strong>da</strong>r-se conta de que as<br />
ver<strong>da</strong>des interpretativas não podem estar<br />
nas mãos de grupos de inicia<strong>do</strong>s e sim devem<br />
estar em processo de construção por<br />
aqueles que as vivem; entender-se como<br />
pessoas superan<strong>do</strong> a visão caótica de sermos<br />
coisas e por fim construir mini-racionali<strong>da</strong>des<br />
que, por estarem conscientes <strong>da</strong><br />
"(...) irracionali<strong>da</strong>de global (...), também<br />
estão conscientes de que só a podem combater<br />
localmente".(p.111)xxxxxxxxxx<br />
A questão mais preeminente que fica<br />
no final deste ensaio é a seguinte: a ruptura<br />
no âmbito <strong>do</strong> universo epistemológico parece<br />
estar consoli<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se a passos largos,<br />
pois talvez se constitua em algo aparentemente<br />
mais acessível haja vista que se trata<br />
de concepções teóricas de mun<strong>do</strong>. Mas,<br />
como proceder na ruptura de um paradigma<br />
societal?<br />
As obras de SOUSA SANTOS não<br />
nos deixam sem possibili<strong>da</strong>des concretas de<br />
ação, pois ele desenvolve proposições 16 ,<br />
extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, que parecem ser o<br />
fio condutor de tais transformações. Gostaria<br />
de finalizar, de forma pouco orto<strong>do</strong>xa,<br />
este ensaio fazen<strong>do</strong> referência a uma citação<br />
<strong>do</strong> autor: "Não é tarefa fácil nem é uma<br />
tarefa individual. Mas se é ver<strong>da</strong>de que a<br />
paciência <strong>do</strong>s conceitos é grande, a paciência<br />
<strong>da</strong> utopia é infinita" (op. cit, p. 346).<br />
REFERÊNCIAS<br />
BRAGA, Ruy. A restauração <strong>do</strong> capital - um estu<strong>do</strong><br />
sobre a crise contemporânea. São Paulo: Xamã,<br />
1997.<br />
____________<br />
16 Por mais entusiasmante que venha a ser essa parte <strong>da</strong> obra de<br />
SOUSA SANTOS, para este ensaio se tornou impossível desenvolvê-la,<br />
pois a idéia originária era desenvolver somente um <strong>do</strong>s<br />
tópicos de sua obra.<br />
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História <strong>da</strong> Filosofia<br />
- <strong>do</strong>s pré-socráticos a Aristóteles. Volume I. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1994.<br />
CIRNE-LIMA, Carlos Roberto. Dialética para Principiantes.<br />
Porto Alegre<br />
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de<br />
Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.<br />
NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. São<br />
Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção os Pensa<strong>do</strong>res).<br />
ROUANET, Sérgio Paulo: As razões <strong>do</strong> Iluminismo.<br />
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social I.<br />
São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensa<strong>do</strong>res).<br />
SKIDELSKY, Robert. Keynes. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar, 1999.<br />
SANTOS, Theotônio. A Teoria <strong>da</strong> Dependência 30<br />
anos depois. São Paulo: USP,1998. Mimeo.<br />
SOUSA SANTOS, Boaventura. Introdução a uma<br />
ciência Pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989<br />
_____. Pela Mão de Alice - o social e o político na<br />
<strong>pós</strong>-moderni<strong>da</strong>de. São Paulo: Cortez, 1996.<br />
_____. Um discurso sobre as Ciências. Porto:<br />
Afrontamento,1999.<br />
WEFFORT, Francisco (org.). Os clássicos <strong>da</strong> Política<br />
1. São Paulo: Ática, 1991.