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Pensando o ritual - Sexualidade, Morte, Mundo

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<strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong><br />

sexualidade, morte, mundo


Coordenação Editorial<br />

Carla Milano<br />

Edição de Texto<br />

Martha Assis de Almeida Kuhl<br />

Tradução<br />

Maria do Rosário Toschi<br />

Preparação<br />

Carlos Alberto Inada<br />

Revisão<br />

Cláudia Jorge Cantarin Domingues<br />

Revisão Técnica<br />

Mariarosaria Fabris<br />

Agradecimento<br />

Prof. João Angelo Oliva Neto (pela revisão dos termos em latim)<br />

Capa<br />

João Baptista da Costa Aguiar<br />

Composição<br />

CompLaser Studio Gráfico<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />

Perniola, Mario<br />

<strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo / Mario Perniola;<br />

tradução Maria do Rosário Toschi; (colaboração Mariarosaria Fabris). —<br />

São Paulo: Studio Nobel, 2000.<br />

ISBN 85-85445-92-0<br />

1. Filosofia italiana 2.Perniola, Mario I. Fabris, Mariarosaria.<br />

II. Título<br />

CO-2675 CDD-295<br />

Índices para catálogo sistemático:<br />

1. Filosofia italiana 195


Apoio<br />

Programa de Pós-graduação em<br />

Língua e Literatura Italiana (USP)<br />

“Obra publicada com a contribuição do<br />

Ministério das Relações Exteriores da Itália”


Mario Perniola<br />

<strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong><br />

sexualidade, morte, mundo<br />

Tradução<br />

Maria do Rosário Toschi


© 2000 Livros Studio Nobel Ltda.<br />

Livros Studio Nobel Ltda.<br />

Rua Maria Antônia, 108<br />

01222-010 — São Paulo — SP<br />

Fone/Fax: (11) 257-7599<br />

e-mail: studionobel@livrarianobel.com.br<br />

Distribuição / Vendas<br />

Livraria Nobel S.A.<br />

Rua da Balsa, 559<br />

02910-000 — São Paulo — SP<br />

Fone: (11) 3933-2822<br />

Fax: (11) 3931-3988<br />

e-mail: ednobel@livrarianobel.com.br<br />

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO<br />

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a permissão<br />

por escrito dos editores por qualquer meio: xerox, fotocópia, fotográfico,<br />

fotomecânico. Tampouco poderá ser copiada ou transcrita,<br />

nem mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações. Os infratores<br />

serão punidos pela lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973,<br />

artigos 122-130.<br />

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Sumário<br />

Apresentação ............................................................................... 9<br />

Introdução ................................................................................ 23<br />

Capítulo I — O charme venusiano<br />

1 Sedução, amor, charme .......................................................... 39<br />

2 O “venus” como veneração.................................................... 42<br />

3 O “venus” como “venia” ...................................................... 47<br />

4 O “venus” como “venerium” ................................................. 51<br />

5 O “venus”como veneno......................................................... 54<br />

Capítulo II — A erótica do trânsito<br />

1 O “eros”como intermediário ................................................. 62<br />

2 O “carmen” erótico ............................................................... 65<br />

3 A erótica do uso .................................................................... 68<br />

4 A arte amatória ..................................................................... 72<br />

5 A provocação amatória .......................................................... 76<br />

6 O emprego amatório ............................................................. 79<br />

Capítulo III — Entre a veste e o nu<br />

1 Magnificência da veste e verdade do nu ................................. 84<br />

2 A erótica do despir: o nu e o véu ........................................... 91<br />

3 A erótica de revestir: veste e corpo......................................... 97<br />

4 O nu eletrônico e a veste de carne........................................ 122<br />

Capítulo IV — Ícones, visões e simulacros<br />

1 Iconofilia e iconoclastia ...................................................... 127<br />

2 A imagem como simulacro ................................................. 134


Capítulo V — Fenômeno e simulacro<br />

1 A recusa do conceito metafísico de aparência ....................... 143<br />

2 Fenômenos e simulacros ...................................................... 146<br />

3 Lógos e eterno retorno ........................................................ 151<br />

4 Fenomenologia hermenêutica e semiótica pulsional ............. 154<br />

5 A meditação reveladora e a operação simuladora ................. 159<br />

Capítulo VI — O ser-para-a-morte e o simulacro da morte<br />

1 Diversão e recalque da morte............................................... 164<br />

2 O ser-para-a-morte .............................................................. 170<br />

3 O simulacro da morte.......................................................... 176<br />

4 <strong>Morte</strong>, tempo, história ........................................................ 183<br />

5 A intratemporalidade e a economia política ......................... 190<br />

Capítulo VII — O reino intermédio<br />

1 Ser-para-a-morte ou renascer?.............................................. 198<br />

2 <strong>Morte</strong> e renascimento no pensamento <strong>ritual</strong> ........................ 200<br />

3 O “Troiae lusus” ................................................................... 207<br />

4 O rito do rito ...................................................................... 216<br />

Capítulo VIII — A arte de Mamúrio<br />

1 A arte como “opus” ............................................................. 221<br />

2 A arte como “artus”............................................................. 226<br />

3 A arte como “ritus” ............................................................. 230<br />

4 A arte como “ops” ............................................................... 234<br />

Capítulo IX — Decoro e cerimônia<br />

1 O resplandecente ................................................................. 241<br />

2 O conveniente ..................................................................... 243<br />

3 O decoro ............................................................................. 252<br />

4 A cerimônia......................................................................... 255


Apresentação<br />

Na espiral do simulacro<br />

Annateresa Fabris<br />

No prefácio à edição francesa de L’ alienazione artistica<br />

(1977), P. Sansot destacava, como uma das características principais<br />

de Mario Perniola, sua qualidade de “maravilhoso<br />

genealogista”. Sansot referia-se à relação de Perniola com a<br />

história, guiada por um “materialismo fino”, longe tanto de<br />

reconstruções arriscadas quanto de esquemas simplistas. “Materialismo<br />

fino” era sinônimo de uma análise histórica enunciada<br />

com cautela e fundamentada em bases precisas e sutis,<br />

atenta antes aos incidentes de percurso e às curvas mais sinuosas<br />

da história do que às grandes reconstruções teóricas.<br />

Uma outra característica destacada por Sansot dizia respeito<br />

à relação do autor com seu objeto de estudo, marcada<br />

por uma mistura de elã juvenil e cultura ampla, crítica radical<br />

e imaginação positiva. 1<br />

Por que evocar, mais de vinte anos depois, uma leitura<br />

do segundo livro de Perniola, publicado na Itália em 1971?<br />

Porque as hipóteses propostas por Sansot parecem estar na<br />

base do método do autor italiano, como poder perceber o leitor<br />

de <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo. 2


Se dúvidas houvesse sobre tal coerência de percurso,<br />

bastaria atentar para o interesse cada vez mais acentuado de<br />

Perniola pelo neo-antigo e pelo neobarroco, que reponta a<br />

cada página de <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo.<br />

No caso do neo-antigo, trata-se de um longo percurso que<br />

vem da comunicação “Lógica da sedução”, publicada, em<br />

1980, em La società dei simulacri, passa por boa parte de<br />

Transiti (1985) e Del sentire (1991), é um dos eixos de Piúche<br />

sacro, piú-che profano (1992) e Enigmi (1994). 3 Quanto ao<br />

neobarroco, seus pontos fundamentais acompanham de perto<br />

a teorização do neo-antigo — alguns capítulos de La società<br />

dei simulacri (“O ser-para-a-morte e o simulacro da morte”,<br />

“Simulacros do poder e poder dos simulacros” e “Lógica da<br />

sedução”), Transiti, Del sentire e Enigmi —, numa clara demonstração<br />

daquela genealogia de que falava Sansot.<br />

O que designa o conceito de neo-antigo? Partindo da<br />

constatação de que a arte, a literatura, a música e a filosofia<br />

contemporâneas desenvolveram uma dimensão meta-artística<br />

e metafilosófica, que as levou a fechar-se num “microambiente<br />

artificioso e asfixiante”, o autor propõe como saída para<br />

aquilo que denomina um “estado de mal-estar”, uma “situação<br />

de angústia”, “um narcisismo cultural” a retomada do conceito<br />

hegeliano de “arte simbólica”, própria da Antiguidade<br />

pré-clássica e extra-européia. Uma vez que a arte contemporânea,<br />

acossada pelo avanço dos meios de comunicação de<br />

massa e da ciência, se retirou do mundo, dissolvendo o conceito<br />

que a regia, Perniola acredita ser possível reencontar esse<br />

conceito num caminho às avessas, que remonte aos primórdios<br />

da criação artística.<br />

Propor a hipótese da existência de uma correspondência<br />

entre o momento contemporâneo e o mundo pré-arcaico


significa deixar de lado as noções de eu, sujeito, espírito (mundo<br />

romântico) e os ideais de equilíbrio e sobriedade formal<br />

(mundo clássico) em favor da aceitação da confusão e inversão<br />

entre vivo e morto, do choque com uma exterioridade difícil<br />

de ser dominada, do confronto com um enigma impossível<br />

de ser resolvido.<br />

A hipótese de um “efeito egípcio” na sociedade contemporânea,<br />

tal como apresentado na reflexão hegeliana — processo<br />

de osmose entre o ser e as coisas —, está na base da<br />

formulação neo-antiga de Perniola. O neo-antigo apresentase,<br />

finalmente, como um abandono de qualquer veleidade universalista<br />

e metafísica por parte da cultura ocidental, em busca<br />

daquela metodologia etnológica e etnofilosófica que havia<br />

sido aplicada até pouco tempo atrás ao estudo das culturas<br />

primárias e marginais.<br />

Que tipo de Antiguidade desperta, então, o interesse de<br />

Perniola? A Antiguidade helenística, sobretudo em sua versão<br />

estóica, ancorada num conhecimento sensualista e materialista,<br />

e a da Roma antiga, na qual são centrais as noções<br />

de simulacro e de mito sem rito.<br />

Desse quadro de referências deriva um conjunto de<br />

pluralizações, que torna obsoleta qualquer estrutura maniqueísta<br />

e convida, entre outras operações, a reintroduzir a noção<br />

de sagrado na cultura contemporânea pela retomada das<br />

idéias de repetição e derivação, em detrimento daquelas de<br />

originariedade e pureza. 4<br />

Para definir o neobarroco, que deita raízes na década<br />

de 60, Perniola esposa a idéia de barroco proposta por José<br />

Antonio Maravall: coincidência entre racionalidade e irracionalidade,<br />

técnica e possessão, tonalidades emotivas muito<br />

frias e muito quentes. É a partir desses opostos não exclu-


dentes que o autor italiano analisa o neobarroco social em<br />

manifestações como o moralismo religioso, o pacifismo, o<br />

ecologismo, a estratégia das aparências; o neobarroco artístico,<br />

estribado na perspectiva “inexpressionista” postulada por<br />

Germano Celant, da qual seriam representações emblemáticas<br />

o desaparecimento do sujeito, a importância crescente das coisas,<br />

a poética do enigma e da beleza estratégica, o luxo técnico,<br />

o fascínio pela morte e pela oralidade; o neobarroco filosófico,<br />

que estabelece uma identificação entre o ponto de vista<br />

filosófico e o ponto de vista enciclopédico, na retomada de<br />

uma tradição que vai do século XVII a Hegel, e cujos eixos<br />

fundamentais são o estudo da relação entre filosofia e línguas<br />

e filosofia e instituições, numa abordagem extra-européia e<br />

anti-hierárquica. 5<br />

Simulacro, neo-antigo e neobarroco encontram-se lado<br />

a lado no ensaio Lógica da sedução (1979), no qual Perniola<br />

deixa de lado o conceito teológico-libertino para aderir à idéia<br />

sofística da apáte. Afirmando a existência de uma lógica da<br />

sedução, que se impõe ao seduzido e ao sedutor, alheia a qualquer<br />

vontade subjetiva, por estar em estreita relação com o<br />

kairós, a ocasião, o autor traça sua genealogia, desde a sofística<br />

até o momento atual, dominado pela holografia social.<br />

Passa, desse modo, pela seductio latina, subtração de<br />

algo do contexto originário, que, no plano político-militar,<br />

vem acompanhada pelo <strong>ritual</strong> religioso da evocatio. Nesse <strong>ritual</strong>,<br />

que consistia na acolhida, em Roma, das divindades dos<br />

inimigos, e cujo êxito dependia da designação da cidade e<br />

dos deuses com seu verdadeiro nome, Perniola detecta o caráter<br />

essencial do simulacro como dissolução entre aparência<br />

e realidade, em favor de uma terceira dimensão que se<br />

sobrepõe a ambas. Para compreender tal afirmação, é neces-


sário lembrar que a evocatio romana era diferente daquela praticada<br />

com os demais povos. Para evitar que Roma fosse objeto<br />

do mesmo <strong>ritual</strong>, os romanos ocultavam o nome do deus<br />

protetor e a designação latina da cidade, evocando, desse<br />

modo, a lógica do sedutor: não ser um sujeito, e sim um<br />

puro espaço vazio ocupado pelos deuses e pelos nomes dos<br />

seduzidos.<br />

Prossegue com Baltasar Gracián, que faz do sedutor<br />

uma figura sem identidade para poder estar aberta à ocasião,<br />

às determinações do seduzido, que é quem lhe atribui qualidades.<br />

Gracián confere uma dimensão política à sedução,<br />

transformando-a em condição essencial da arte de governar,<br />

por ser, como escreve Perniola “auto-supressão da identidade<br />

do poder e repetição simulada das identidades dos seduzidos.<br />

A lógica da sedução é solidária com o processo de desrealização<br />

e culturalização radical que investe o mundo barroco”.<br />

Outra imagem barroca da sedução é localizada no<br />

convidado de pedra do drama de Tirso de Molina, que<br />

consegue inverter a relação entre sedutor e seduzido. Don<br />

Juan é seduzido por um simulacro, que determina sua ruína,<br />

uma vez que a lógica da sedução se impõe acima das subjetividades<br />

individuais.<br />

Detém-se, finalmente, no momento atual, que denomina<br />

sociedade dos simulacros, na qual se restabelece a relação<br />

entre poder e sedução. O poder político, que deixou de ser ideológico,<br />

é comparado com um holograma, cuja sedução deriva<br />

do fato de ser vazio, de não justificar nenhuma ilusão ou<br />

aparência e de ser, assim mesmo, passível de experiência e de<br />

apreciação por aquilo que mostra. A única alternativa que<br />

Perniola detecta para a sociedade hodierna não escapa da lógica<br />

do holograma: só resta escolher entre considerá-lo um “ob-


jeto real” ou vê-lo enquanto tal. O simulacro de sociedade que<br />

a holografia delineia seduz justamente por sua indeterminação,<br />

pela disponibilidade em assumir formas múltiplas de acordo<br />

com o ponto de vista do observador. Com ele caem por terra<br />

categorias velhas e novas: a estética, como teoria geral de uma<br />

sedução poderosa e de um poder sedutor, toma o lugar da política<br />

ideológica; a lógica da ocasião sucede à racionalidade<br />

dialética; o intelectual é substituído pelo operador cultural; a<br />

sociedade do espetáculo cede seu espaço à holografia social. 6<br />

Conceito fundamental na teorização de Perniola, o simulacro<br />

não pode ser dissociado da leitura que ele faz de<br />

Pierre Klossowski, releitor de Nietzsche desde a década de 50.<br />

Simulacro e eterno retorno possuem uma relação íntima no<br />

pensamento do filósofo francês, como demonstra um dos capítulos<br />

de <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo:<br />

“(...) O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a partir<br />

do momento em que Deus está morto, nada mais existe de<br />

originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski<br />

como o ‘acontecimento dos acontecimentos’, está estritamente<br />

ligada à ‘necessidade circular do ser’, expressa na teoria nietzschiana<br />

do eterno retorno. As ‘coisas mesmas’ já são desde sempre<br />

cópias de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a<br />

morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de simulacros,<br />

não de fenômenos. (...) Os conceitos metafísicos de aparência<br />

e de realidade, portanto, são recusados (...) em nome de algo<br />

que anuncia e remete infinitamente a uma cópia.” 7<br />

Imagem sem identidade, o simulacro tem sua história<br />

retraçada pelo autor que, em <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade,<br />

morte, mundo, enfatiza os momentos romano e contra-refor-


mista. O ferreiro Mamúrio Vetúrio, que forja onze escudos<br />

idênticos ao que havia caído do céu para salvar Roma de uma<br />

pestilência, é a própria encarnação da concepção romana de<br />

arte, alheia a qualquer distinção entre verdadeiro e falso, original<br />

e cópia. Nem criação original, nem imitação falsificadora<br />

do modelo divino, a operação de Mamúrio Vetúrio constitui<br />

para Perniola “uma repetição tão exata que anula o protótipo<br />

ao mesmo tempo que o preserva. A sua arte não se<br />

opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita<br />

um papel subordinado ou dependente, mas se põe ao lado<br />

de tudo o que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, introduzindo-o<br />

num trânsito do mesmo para o mesmo. O triunfo<br />

da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado<br />

pelos deuses, porque nenhuma variação é admitida; mas esta<br />

fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar<br />

único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso da atividade<br />

humana é por isso destituído de arrogância e de orgulho,<br />

é sem culpa, inocente”. 8<br />

Outro momento nuclear para a história do simulacro enquanto<br />

imagem sem protótipo é situado pelo autor no século<br />

XVI. Roberto Bellarmino e santo Inácio de Loyola são os principais<br />

interlocutores de Perniola, pois em ambos estão presentes<br />

as condições fundamentais para a existência do simulacro:<br />

“renúncia à afirmação metafísica da identidade das coisas e do<br />

mundo” e “reconhecimento de seu valor histórico”. 9<br />

Em <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo, Perniola<br />

propõe, embora rapidamente, outro momento para o simulacro,<br />

que corresponde à presença dos meios de comunicação de<br />

massa. Não se trata de um salto histórico, e sim de uma evidente<br />

explicitação da idéia neobarroca: o autor estabelece uma<br />

continuidade lógica entre a concepção seiscentista do simula-


cro como construção artificiosa, destituída de uma origem e<br />

incapaz de ser um original, com as técnicas industriais de reprodução<br />

da imagem e com os meios de comunicação de massa.<br />

Ao simulacro dos meios de comunicação de massa não<br />

parece aplicar-se, contudo, a idéia de negação aventada por<br />

Perniola. Eles parecem estar muito mais sob o signo do “puro<br />

simulacro de si”, proposto por Baudrillard, que assim analisa<br />

o realismo e o hiper-realismo de que são portadores:<br />

“(...) Produção frenética de real e referente, paralela e superior<br />

ao frenesi da produção material: assim aparece a simulação<br />

na fase que nos diz respeito — uma estratégia do real,<br />

de neo-real e hiper-real, que duplica por toda parte uma estratégia<br />

de dissuasão.” 10<br />

O que Perniola detecta na sociedade contemporânea é o<br />

fenômeno da “socialização do imaginário”, conseqüência direta<br />

da reprodução técnica das imagens que dissolve qualquer aura,<br />

qualquer valor de culto, qualquer especificidade. A integração<br />

entre sociedade e cultura não se sustenta mais em princípios,<br />

idéias e representações emanadas de um sujeito, e sim em simulacros<br />

que se movem num espaço que anula toda<br />

originariedade, toda autenticidade e toda subjetividade. É a passagem<br />

da aculturação à culturalização: se na primeira existia a<br />

mediação do jornalismo, da escola, da política, a segunda é produto<br />

da duplicidade, da “repetitividade imediata” do simulacro.<br />

A estética assume um papel determinante nessa nova ordem.<br />

Mesmo tendo uma estruturação filosófica, independe da<br />

gnosiologia, da ética e da política. Seu novo objeto não consiste<br />

mais na arte ou no prazer, mas na operação cultural e na socialização<br />

do imaginário, que transforma o “real” em simulacro. 11


Outra noção central no pensamento de Perniola é a de<br />

trânsito, definido como passagem do presente para o presente,<br />

da presença para a presença, do mesmo para o mesmo. Presente<br />

e presença são a condição própria do homem contemporâneo,<br />

destituído de memória e de expectativas, o qual conseguiu<br />

espacializar o tempo num movimento horizontal que<br />

confere historicidade a qualquer lugar do mundo. 12<br />

O trânsito, embora seja um conceito autônomo, parece<br />

não poder prescindir da dimensão do simulacro. É o que<br />

demonstra Perniola quando, por intermédio de Klossowski,<br />

estabelece uma relação intrínseca entre erotismo e arte: ambos<br />

“fornecem uma veste, um invólucro, um simulacro ao que<br />

é destituído de realidade”, propõem “uma imitação que nunca<br />

pode ser verificada porque o original, o fantasma, o demônio<br />

nunca aparecem como tais”. 13<br />

Trânsito e simulacro aparecem claramente relacionados<br />

em algumas das melhores páginas de Perniola, dedicadas à análise<br />

da arte barroca e, mais particularmente, a duas de suas<br />

estratégias — o uso erótico do panejamento e a apresentação<br />

do corpo como despojo vivo. O encanto erótico apontado na<br />

dissolução do corpo da santa Teresa de Bernini no panejamento<br />

do hábito poderia ser multiplicado se se escolhesse<br />

como outro referencial uma das obras mais significativas do<br />

barroco napolitano, o Cristo velado, de Giuseppe Sammartino.<br />

Se o barroco é essencialmente corpo e forma, e, antes de mais<br />

nada, encarnação e dramaturgia corporal, o Cristo da Capela<br />

Sansevero de Nápoles é uma das representações mais significativas<br />

de uma teatralização, na qual o véu oculta e exibe uma<br />

“substantia indeterminata”, graças a um trompe-l’oeil luminoso<br />

e cambiante. O véu que exibe escondendo pode ser considerado<br />

uma cena, a evocação e a manifestação de uma presença


que não pode ser afirmada e significada diretamente. É próprio<br />

da mentalidade barroca explorar a metáfora da máscara,<br />

pela qual uma coisa pode ser ao mesmo tempo coisa e signo<br />

— esconder como coisa aquilo que desvela como signo. 14<br />

Se tais considerações remetem àquela materialização do<br />

irreal de que fala Lacan, ao trompe-l’oeil levado a seu grau máximo<br />

enquanto fusão de artifício e natureza, é a isso que<br />

Perniola se refere quando propõe a idéia dos nus barrocos<br />

como “túnicas de pele”, do corpo como veste. O desenho<br />

anatômico barroco é analisado por esse mesmo prisma: não<br />

deixa de ser significativo que o tratado de Bidloo, ilustrado<br />

por De Lairasse, seja considerado “um dos vértices do erotismo<br />

barroco” e seja comparado com a santa Teresa de Bernini.<br />

Em ambos, o sujeito não existe mais, dissolvido no êxtase ou<br />

na morte: no conjunto escultórico, há “uma veste que é tão<br />

viva e vibrante quanto um corpo”; no tratado anatômico, há<br />

“um corpo que é tão externo e magnífico quanto uma veste”.<br />

Do corpo inteiro ao corpo dissecado há um trânsito do<br />

mesmo para o mesmo, há uma fusão completa entre artifício<br />

e natureza.<br />

“(...) Os cachos dos cabelos, os pêlos do púbis, as asas da<br />

mosca que acidentalmente se demora no ventre, o mamilo<br />

túrgido, o pênis esfolado que se ergue majestoso, enquanto<br />

pequenos pregos prendem a pele do escroto na mesa... tudo<br />

é veste, pano, tecido. Os tendões assemelham-se às fibras da<br />

corda que segura o cadáver pela garganta ou ao laço que mantém<br />

unidos os pulsos. Até mesmo os ossos são representados<br />

como tecidos com a trama um tanto carcomida. Tudo<br />

agora está reduzido aos mínimos termos, feito em pedacinhos<br />

e desenhado de todos os lados, como os minúsculos ossos


dos pés ilustrados na última lâmina: tudo permanece, até o<br />

fim, tecido, veste. Tudo se reduz a pó, mas o pó é ainda uma<br />

extrema cobertura, que tudo envolve.” 15<br />

Embora o autor trace um rápido paralelo com os dias<br />

de hoje através do nu eletrônico e do transe, a problemática<br />

da veste poderia ser evocada graças a um artista como Arnulf<br />

Rainer, que, num primeiro momento, sobrepõe à imagem fotográfica<br />

do próprio corpo intervenções pictóricas de caráter<br />

informal que transfiguram a aparência e criam uma inquietante<br />

contraposição entre autovisão e máscara social.<br />

A estética neobarroca, que já se configurava no final dos<br />

anos 60, ganha contornos claros posteriormente, quando o<br />

artista passa a pintar para “recobrir a pintura”, acentua a concepção<br />

de auto-retrato como espelho sinistro, numa metamorfose<br />

que leva o eu a despojar-se de si mesmo, demonstra um<br />

interesse cada vez maior por todas as linguagens do corpo (cadáver,<br />

múmia, máscara), transforma a própria atitude perante<br />

a arte num “teatro da paixão”. 16<br />

Se o presente é a dimensão efetiva do homem contemporâneo,<br />

isso não significa que Perniola se torne um arauto do<br />

fim da história. A história pode ser explicitada naquele “rito sem<br />

mito”, que caracterizava a religião romana, que suprime toda<br />

relação com uma ação primigênia e se orienta para uma repetição<br />

exteriormente perfeita dos textos sagrados, esvaziados de seu<br />

significado. A separação entre mito e rito está enraizada na diferença<br />

entre milagre e história. Se o mito remete ao originário,<br />

ao arquetípico, ao excepcional, o rito, ao contrário, designa a<br />

repetição, a continuidade. Trata-se, contudo, de uma continuidade<br />

que é “diferente e outra em relação a si mesma”, para a<br />

qual só pode ser evocada a imagem da espiral: dependendo do<br />

ângulo de visão ela poder sugerir permanência ou diferença.


A composição em mosaico, própria da sociedade romana,<br />

que despedaçava toda unidade para convertê-la em multiplicidade,<br />

é parte integrante do afastamento do mito.<br />

“... nenhuma ‘ordem’ política e civil, nenhuma ordenação urbana,<br />

nenhuma possibilidade de ação histórica é consentida<br />

aos homens até que o maravilhoso e o prodigioso irrompam<br />

e perturbem a trama, a rede que forma a sociedade.” 17<br />

Neo-antigo e momento contemporâneo encontram-se<br />

lado a lado. O cotidiano hodierno, marcado pela transmissão<br />

<strong>ritual</strong> de usos, sem identidade e sem origem, por ações exteriores<br />

realizadas por atores opacos, é um dos aspectos daquela<br />

“holografia social” proposta por Perniola. É, portanto, mais<br />

uma manifestação daquela vertigem simulatória, daquela repetição<br />

diferente, próprias de uma sociedade que perdeu toda<br />

a noção originária (e original), que se espelha num sentir distanciado<br />

e impessoal, mas nem por isso negativo. É a genealogia<br />

de alguns aspectos dessa situação que Perniola analisa<br />

em <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo.


Notas<br />

1. P. Sansot, Préface, in Mario Perniola, L’ aliénation artistique. Paris, Union Générale<br />

d’Editions, 1977, p. 7, 12, 14.<br />

2. Este livro é integrado por ensaios extraídos de La società dei simulacri e Transiti.<br />

3. Para uma cronologia completa da questão neo-antiga, ver: Federico De Donato,<br />

Mario Perniola e il neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico. Milão,<br />

Mimesis, 1995, pp. 119-22. Entre os títulos citados, dois foram traduzidos em Portugal<br />

— Do sentir (Lisboa, Presença, 1993) e Enigmas (Lisboa, Bertrand, 1994) —,<br />

e um no Brasil — Mais-que-sagrado mais-que-profano (in Maria Amélia Bulhões &<br />

Maria Lúcia Bastos Kern, org. As questões do sagrado na arte contemporânea da América<br />

Latina. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1997).<br />

4. Perniola, Sul neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico, op. cit.,<br />

pp. 7-15. A problemática do momento egípcio é analisada em profundidade pelo<br />

autor em Enigmas.<br />

5. Perniola, Barocco, espressionismo, inespressionismo, in Enigmi. Gênova, Costa & Nolan,<br />

1990, pp. 103-23.<br />

6. Perniola, “Logica della seduzione”, in La società dei simulacri. Bolonha, Cappelli,<br />

1983, pp. 177-89.<br />

7. Perniola, “Fenômeno e simulacro”, in <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo.<br />

São Paulo, Studio Nobel, 2000, p. 143.<br />

8. Perniola, “A arte de Mamúrio”, em: <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo,<br />

op. cit., pp. 221.<br />

9. Perniola, “Ícones, visões, simulacros”, in <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade, morte, mundo,<br />

op. cit., p. 109.<br />

10. Baudrillard, La precessione dei simulacri, in Simulacri e impostura, op. cit., p. 52.<br />

11. Perniola, Socializzazione del pensiero, socializzazione dell’immaginario, in La società<br />

dei simulacri, op. cit., pp. 51-6.<br />

12. Perniola, Il transito, in Transiti. Bolonha, Cappelli, 1985, pp. 8-9.<br />

13. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, in <strong>Pensando</strong> o <strong>ritual</strong>: sexualidade,<br />

morte, mundo, op. cit., p. 89.<br />

14. Sobre a dramaturgia corporal e o Cristo velado, ver Buci-Glucksmann, La folie du<br />

voir. Paris, Galilée, 1986, pp. 96-7; Marino Niola, Sui palchi delle stelle. Roma,<br />

Meltemi, 1995, pp. 46-7, 49 (nota 25).<br />

15. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, op. cit., p. 91.<br />

16. Sobre Arnulf Rainer posterior à década de 60, ver Buci-Glucksmann, op. cit.,<br />

pp. 217, 220, 222, 224. A problemática da veste, aliás, poderia ser aplicada a muitos<br />

praticantes da body-art e a várias experiências fotográficas contemporâneas, como<br />

as de Cindy Sherman e Andres Serrano, por exemplo.<br />

17. Perniola, “A arte de Mamúrio”, op. cit., p. 221.


Introdução<br />

“Pensamento mítico”, “pensamento pré-lógico”, “pensamento<br />

simbólico”... com essas e outras expressões semelhantes<br />

foi definida a atividade intelectual dos membros das<br />

sociedades primárias, em oposição ao pensamento racional,<br />

lógico e discursivo das culturas históricas. A expressão “pensamento<br />

<strong>ritual</strong>” parece somar-se ao primeiro conjunto com<br />

o intuito específico de chamar mais a atenção sobre a ação<br />

e os comportamentos do que sobre o conhecimento e as funções<br />

mentais. Ao pensamento projetivo, instrumental e pragmático<br />

da cultura ocidental se oporia o pensamento <strong>ritual</strong>,<br />

repetitivo e codificado das sociedades primárias. Entretanto,<br />

não é esse o sentido que eu atribuo à expressão “pensamento<br />

<strong>ritual</strong>”: não se trata de modo algum de comparar o<br />

caráter tradicional e estático das sociedades primárias com<br />

o caráter inovador e progressivo da civilização ocidental, mas<br />

de apresentar uma mentalidade, uma forma de pensar, uma<br />

maneira de se comportar que ultrapassa a distinção entre tradição<br />

e inovação, entre sociedade primária e sociedade histórica,<br />

entre primitivismo e civilização.


Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber<br />

que o mundo contemporâneo oferece um panorama no<br />

qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e profano,<br />

entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional.<br />

Assistimos, de um lado, ao surgimento de comportamentos<br />

tribais nas metrópoles e, de outro, ao profundo impacto da<br />

racionalidade tecnológica e econômica nas situações menos desenvolvidas.<br />

Tudo isso dá lugar a misturas inéditas e surpreendentes<br />

de arcaísmo e modernidade, de passado e futuro, para<br />

cuja compreensão as categorias habituais se mostram totalmente<br />

inadequadas. A minha reflexão está orientada exatamente<br />

para a localização e a determinação das noções que se situam<br />

além das dicotomias e das polaridades até o momento vigentes<br />

na maioria dos estudos antropológicos. Os conceitos de<br />

“trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito”, que constituem a<br />

articulação do presente volume, satisfazem perfeitamente a essa<br />

exigência, que nasce tanto da observação da realidade<br />

sociocultural quanto da dinâmica interna da pesquisa teórica.<br />

Assim, a noção de “trânsito” parece-me estar estritamente<br />

ligada com essa experiência de simultaneidade, de disponibilidade<br />

e de dilatação do presente, que caracteriza a vida contemporânea.<br />

Essa noção, de fato, parece manter-nos freqüentemente<br />

em um estado de provisoriedade e de indefinição, no qual o<br />

aspecto estático e o aspecto dinâmico da existência tendem paradoxalmente<br />

a coincidir. Mesmo sem ver no refugiado e no<br />

exilado a figura emblemática do nosso tempo, o afrouxamento<br />

dos laços com o lugar de origem já não é mais compensado<br />

pela busca de uma terra prometida. A ausência de um<br />

enraizamento que confira uma identidade não é mais percebida<br />

como uma falta a ser preenchida: somos estrangeiros na nossa<br />

terra e, vice-versa, sentimo-nos em casa em qualquer lugar.


Ao mesmo tempo, a noção de “trânsito” responde a exigências<br />

que surgem do desenvolvimento da terminologia e do<br />

pensamento filosófico. Como é sabido, Hegel tinha visto na<br />

“superação” (Aufhebung) o movimento da realidade, a qual<br />

prossegue conservando e abolindo simultaneamente as suas<br />

determinações precedentes. A palavra-chave da obra de<br />

Nietzsche é, em contrapartida, “ultrapassagem” (Überwindung):<br />

ela rompe os laços com o passado, e é animada por<br />

uma irreprimível vontade de ir além do existente. Enfim, todo<br />

o pensamento de Heidegger pode ser considerado uma meditação<br />

sobre o empedimento da metafísica e do niilismo: para<br />

designar tal experiência — que é ao mesmo tempo apropriação,<br />

aceitação e aprofundamento do passado —, Heidegger<br />

criou o termo Verwindung, que contém simultaneamente as<br />

idéias opostas de vitória e de resignação. A noção de trânsito<br />

nasce da continuação por esse caminho e se diferencia das noções<br />

precedentes por dar maior destaque ao presente e à presença.<br />

Sob esse aspecto, ela se insere no debate sobre a relação<br />

entre tradição e inovação, encaminhado segundo perspectivas<br />

divergentes tanto por Hans Georg Gadamer como por<br />

Ernst Bloch: o primeiro, como é sabido, realiza uma reforma<br />

da noção de tradição que chega a um presente fora do tempo,<br />

entendido como “classicismo”, enquanto o segundo leva<br />

a cabo uma reforma da noção de inovação que conduz à idéia<br />

de “uma utopia concreta”, entendida como vontade de presente,<br />

antecipação e pré-aparição de uma pátria reencontrada.<br />

O trânsito diverge dessas duas direções opostas não só<br />

porque mantém um caráter essencialmente dinâmico e itinerante,<br />

mas também porque implica um deslizamento para<br />

a dimensão espacial, para a experiência do deslocamento, da<br />

transferência, da descentralização.


A segunda noção, a de “simulacro”, é alternativa em relação<br />

à tradicional oposição entre original e cópia. O simulacro<br />

não é o resultado de uma reprodução mais ou menos fiel<br />

do original, mas o ponto de chegada de um processo de emancipação<br />

da cópia de sua dependência em relação a um original.<br />

Chega-se ao simulacro não por imitação, mas por um<br />

mimetismo vertiginoso graças ao qual o que é espúrio, derivado,<br />

replicado, se liberta do autêntico, do originário, do único.<br />

Por isso, é sobretudo na sociedade contemporânea que o<br />

conceito de simulacro adquire relevância: nela, de fato, os processos<br />

de repetição, transmissão e mistura desempenham um<br />

papel essencial. O desenvolvimento dessa dimensão é particularmente<br />

favorecido por dois fatores, um de caráter<br />

“tecnológico” e outro de caráter “antropológico”: são eles a<br />

informatização e o sincretismo, isto é, a disponibilidade imediata<br />

de acesso não só às notícias, como aos comportamentos,<br />

aos estilos de vida, às mentalidades do mundo inteiro,<br />

bem como a mistura desses comportamentos, estilos de vida<br />

e mentalidades em combinações surpreendentes e autônomas.<br />

A noção de “simulacro” também, assim como a de<br />

“trânsito”, não nasce apenas de uma consideração fenomenológica<br />

do mundo contemporâneo — ela cria raízes nos<br />

acontecimentos do pensamento filosófico. Na filosofia moderna,<br />

pelo menos a partir de Nietzsche, está ocorrendo uma tendência<br />

antiplatônica de revalorização da aparência ante a substância<br />

metafísica. Por exemplo, Heidegger, na sua obra<br />

Nietzsche, sustenta que a mimese artística não é nada inferior<br />

nem à idéia nem ao objeto, mas se coloca ao lado deles sem<br />

inserir-se em uma hierarquia: a idéia do espelho, o próprio<br />

objeto espelho e a imagem do espelho são três maneiras de<br />

manifestação do ser não subordinadas umas às outras. Mais


adical, Gilles Deleuze, no seu livro Logique du sens, considera<br />

o simulacro o contrário do “fictício”, o propulsor de um<br />

movimento que vai contra a ordem estabelecida das representações,<br />

dos modelos e das cópias.<br />

A terceira noção, a do “rito sem mito”, também surge<br />

da sociedade em que os comportamentos não parecem mais<br />

orientados nem pelo costume nem pela consciência individual:<br />

tanto a ética — entendida como conjunto de hábitos que contêm<br />

em si mesmos um significado — quanto a moral — entendida<br />

como vontade subjetiva e privada do bem e do útil<br />

—parecem impotentes para orientar a ação e a conduta do<br />

homem contemporâneo. Parece que os comportamentos não<br />

são escolhidos com base em um projeto de vida nem seguem<br />

um desenvolvimento coerente que se possa descrever, mas<br />

acontecem segundo dinâmicas que ficam na superfície e se desenvolvem<br />

através de interações sociais imprevisíveis e opacas<br />

para os próprios atores nelas envolvidos. Dessa forma, o<br />

único elemento certo é o aspecto exterior das ações, o qual<br />

não é funcional em relação à vida social nem está ligado à vida<br />

íntima do sujeito. Em outras palavras, já não existem gestos<br />

nem comportamentos que sejam mais familiares, mais próprios,<br />

mais nossos do que outros. A <strong>ritual</strong>idade consiste no<br />

fato de que todos os gestos provenham do exterior, de fora,<br />

sejam aqueles que pertencem à nossa herança cultural, à nossa<br />

classe social, à nossa história pessoal, sejam aqueles que pertenceram<br />

a outros povos, a outras classes e a outras pessoas.<br />

Assim, parece que, na ausência de qualquer critério e de qualquer<br />

possibilidade de escolha racional, toda ação é imotivada;<br />

cai o fundamento metafísico das ações, que eram fixadas, imobilizadas<br />

pela identidade coletiva dos costumes ou pela identidade<br />

pessoal da moralidade. A transmissão <strong>ritual</strong> dos usos


já tende a caracterizar a cotidianidade: todos os gestos e todos<br />

os comportamentos estão implicados numa circulação que<br />

os subtrai à identidade e à origem.<br />

No plano filosófico foi Wittgenstein quem examinou<br />

o significado de uma palavra no seu uso (Gebrauch). Como<br />

se deduz do seu livro Notas sobre o “Ramo de Ouro” de Frazer,<br />

ele atesta a autonomia dos comportamentos, dos gestos e dos<br />

rituais em relação às crenças, às explicações, aos mitos: a sua<br />

definição do homem como “animal cerimonial” liberta a noção<br />

de “uso” de toda dimensão acanhadamente funcional e<br />

utilitária. As ações repetidas e institucionalizadas não são, em<br />

absoluto, tão óbvias e conhecidas como parecem à primeira<br />

vista; mesmo nelas está presente um elemento insuprimível<br />

de estranheza e de inaturalidade, que é bem difícil de ser detectado.<br />

O outro filósofo para quem a noção de “uso”<br />

(Brauch) desempenha um papel importante é Heidegger. Para<br />

ele também o termo perde completamente toda referência à<br />

utilidade e está próximo à palavra latina fruitio, “fruição”. Fazer<br />

uso de uma coisa quer dizer, para Heidegger, não violentála<br />

e remetê-la à sua essência. O uso é um comportamento não<br />

direcionado para o alcance de um objetivo e, portanto, ancorado<br />

na experiência do presente; ele implica um abandono,<br />

um estado de serenidade, que não é, entretanto, renúncia<br />

quietista, e sim abertura àquilo que vem ao nosso encontro e<br />

à riqueza das ocasiões.<br />

“Trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito” são conceitos<br />

cujas definições parecem, à primeira vista, enigmáticas,<br />

quando não paradoxais. O trânsito é um “movimento do mesmo<br />

para o mesmo”, onde, porém, “mesmo” não quer dizer<br />

“igual”, porque implica a introdução de uma diferença, de uma<br />

mudança, que é tanto mais profunda quanto menos cha-


mativa. O simulacro é uma “copia qua copia”, uma cópia enquanto<br />

cópia, que, exatamente em virtude dessa reivindicação<br />

de autonomia, deixa de depender do original e se liberta<br />

de toda imitação. Por fim, o rito sem mito é uma espécie de<br />

“rito do rito”, uma emancipação dos gestos e dos comportamentos<br />

em relação à sua funcionalidade e às suas motivações,<br />

o qual, no entanto, não é de forma alguma “irracional” nem<br />

“insensato”; ao contrário, pressupõe uma mentalidade, um<br />

modo de pensar, uma filosofia implícita. De um ponto de vista<br />

bastante genérico, aquilo que une essas três noções é uma espécie<br />

de intensificação pleonástica, de redundância, de mise en<br />

abîme, quase como se a experiência e o pensamento contemporâneos<br />

fossem arrastados em um vórtice paroxístico de duplicações<br />

e de auto-espelhamentos ao qual não conseguem se esquivar.<br />

Provavelmente, não estão errados os que consideram<br />

a filosofia contemporânea uma “metafilosofia”, isto é, um discurso<br />

da filosofia sobre si mesma: sob esse aspecto, o “pensamento<br />

<strong>ritual</strong>” representa um passo subseqüente nesse caminho.<br />

Todavia, a importância de tais processos de auto-referência<br />

depende do fato de a auto-representação da sociedade<br />

ter se tornado parte essencial da sua realidade.<br />

O pensamento <strong>ritual</strong> tem motivações profundas, de outra<br />

espécie, que lançam as próprias raízes nos acontecimentos<br />

da filosofia contemporânea, na reflexão psicanalítica e na história<br />

pessoal de quem escreve. No que diz respeito ao primeiro<br />

aspecto, o ponto de partida pode ser considerado a experiência<br />

de uma “repetição diferente”, que se delineia na obra de<br />

Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger. Em particular, é no<br />

texto Gientagelsen (A repetição), de 1843, que Kierkegaard expõe<br />

a intuição fundamental do pensamento <strong>ritual</strong>. A repetição<br />

se distingue da recordação e da esperança: na primeira, o cen-


tro de gravidade encontra-se no passado, de forma que leva à<br />

infelicidade; na segunda, o centro de gravidade está no futuro<br />

e, portanto, gera o tédio da espera. Só a repetição possui a segurança<br />

serena do presente: com a repetição, a existência anterior<br />

passa a existir agora, mas, exatamente por isso, contém um<br />

elemento essencial de diferença que torna a experiência, ao mesmo<br />

tempo, determinada e única. Repetição, portanto, não quer<br />

dizer de modo algum reiteração do idêntico. Em Kierkegaard,<br />

a repetição desempenha a mesma função que a “mediação” na<br />

filosofia de Hegel: se a novidade se apresentasse no seu espontâneo<br />

imediatismo, seria imóvel ou indeterminada. Pode-se alcançar<br />

uma novidade efetiva só através do caminho indireto da<br />

repetição. Não obstante o apelo à experiência do indivíduo e o<br />

estilo narrativo de muitos dos seus textos, o pensamento de<br />

Kierkegaard não implica absolutamente o apelo aos dados imediatos<br />

da consciência: ao contrário, viver é um repetir, um retomar,<br />

um voltar a buscar algo que já tenha ocorrido.<br />

Da mesma forma, pode provocar surpresa o fato de<br />

Nietzsche se encontrar entre os filósofos do pensamento <strong>ritual</strong>,<br />

pois a sua filosofia está eivada de uma ênfase vitalista que<br />

mal se concilia com a <strong>ritual</strong>idade. Entretanto, exatamente o<br />

destaque que ele confere à afirmação do presente o leva a atribuir<br />

um significado essencial à repetição. O problema do qual<br />

ele parte é o da atitude diante do passado: na medida em que<br />

eu experimento em relação ao passado uma dolorosa aversão,<br />

um ressentimento, dependo dele, tenho para com ele uma disposição<br />

meramente reativa. Não há senão um modo de se libertar<br />

do passado, um modo paradoxal que aposta na sua<br />

apropriação e assimilação: o l’amor fati, ou seja, a escolha da<br />

repetição infinita, do eterno retorno. Contudo, isso não deve<br />

ser entendido como renúncia, nem mesmo como uma lei do


tempo contra a qual é impossível rebelar-se, mas como um<br />

ato de vontade. O passado deixa de ser um obstáculo intransponível<br />

diante do qual a vontade deve abaixar a cabeça a partir<br />

do momento em que eu desejo a sua repetição, que será<br />

obviamente diferente. A repetição em Nietzsche assume assim<br />

um valor fortemente propulsivo e energético: o l’amor fati<br />

é vontade de eterno retorno. Eu posso me apropriar do passado<br />

apenas se o amo. A ultrapassagem não pode ser uma fuga<br />

ingênua para a frente: podemos ser fortes apenas se sempre<br />

o fomos, apesar das derrotas e das frustrações.<br />

O terceiro pensador da “repetição diferente” é Heidegger.<br />

Como se sabe, a repetição (Wiederholung) é considerada, em<br />

Ser e tempo, uma característica da existência autêntica; entretanto,<br />

ela não deve ser entendida apenas como fidelidade a uma decisão<br />

passada. A repetição não cai na armadilha do passado, reproduzindo-o<br />

tal e qual: não é restauração, nem reiteração do<br />

idêntico. O foco da repetição é o presente. Esse aspecto está<br />

ainda mais claro em Ser e tempo, no qual é dado particular destaque<br />

à noção de presença (Anwesenheit). O passado não conta<br />

enquanto passado, nem o futuro enquanto futuro. Isso não<br />

exclui a recordação, nem a antecipação, mas a primeira deve<br />

ser entendida como recordar-se de algo que nunca foi pensado,<br />

e a segunda adianta-se à maneira do “passo atrás”.<br />

É no entanto no pensamento de Freud que a “repetição<br />

diferente” conquista um lugar de absoluto destaque, porque<br />

está estritamente ligada com a terapia psicanalítica, baseada<br />

na transferência (Übertragung). Ela consiste na transferência<br />

de impulsos psíquicos, afetos, sentimentos, esquemas de<br />

comportamento, tipos de relações objetais, cargas libidinosas...<br />

de uma pessoa conhecida antes do médico: o paciente identifica<br />

no analista um retorno, quase uma reencarnação de uma


pessoa importante do seu passado, e transfere para ele aqueles<br />

sentimentos e aquelas reações que estavam destinados ao<br />

modelo. Essa relação não é, entretanto, mediada pela recordação;<br />

o paciente não se lembra de nada daquilo que transfere<br />

para o analista, mas o exterioriza na ação. Ele realiza uma<br />

repetição, ignorando que seja assim. A transferência não é,<br />

portanto, um movimento do presente para o passado (como<br />

a recordação), e sim o movimento que se realiza inteiramente<br />

no presente: a carga psíquica libidinosa que se transfere para<br />

o médico já está presente, está pronta, à espera, disponível.<br />

O paciente age, por assim dizer, teatralmente diante do médico,<br />

sem perceber. Sua repetição é uma “repetição diferente”,<br />

porque não possui a imobilidade e o estatismo do instinto,<br />

mas o dinamismo e a fluidez da pulsão (Trieb), e esta última<br />

não tem, por definição, uma meta ou um objeto fixo.<br />

Ambos são variáveis, contingentes, e são escolhidos em função<br />

das vicissitudes da vida do indivíduo. O instaurar-se de<br />

fenômenos de repetição na vida do indivíduo é algo essencialmente<br />

diferente da repetição instintiva: a transferência é o<br />

movimento de uma diferença, de algo diferente e indeterminável,<br />

que todavia acontece, por assim dizer, “do mesmo<br />

para o mesmo”. A repetição é possível exatamente porque há<br />

uma liberdade de movimento, um deslocamento, um fluir da<br />

pulsão, porque esta pode se distanciar da representação original<br />

e correr em direção a uma outra, análoga. Tal circulação<br />

é consentida exatamente pela plasticidade das pulsões que<br />

permanecem sempre capazes de mudar os seus objetos e as<br />

suas metas: para explicar a dinâmica das pulsões, Freud recorre<br />

à imagem de uma rede de vasos comunicantes cheios<br />

de líquido. Quando o movimento, a livre mobilidade da libido<br />

é bloqueada, torna-se impossível a transferência, não é mais


possível uma “repetição diferente”. Isso acontece, por exemplo,<br />

nas psicoses e nas neuroses narcisistas; nestas, segundo<br />

Freud, a libido se retira dos objetos externos, não transita mais<br />

através deles e se volta exclusivamente para o Eu. Tal paralisação<br />

obstrui a instituição da relação com o analista e torna<br />

tais doentes inacessíveis à cura. Dessa maneira, a “repetição<br />

diferente” é vista por Freud não só como benéfica, mas como<br />

condição de cura.<br />

As considerações até agora expostas legitimam o pensamento<br />

<strong>ritual</strong> no plano da teoria. Existem, entretanto, motivações<br />

de caráter mais pessoal e autobiográfico que, segundo alguns,<br />

não deveriam entrar em um texto filosófico. Certamente<br />

a mudança literária impressa à linguagem filosófica por Descartes,<br />

por Kierkegaard e, em tempos mais recentes, pelo chamado<br />

“pós-estruturalismo” poderia consentir algumas exceções.<br />

Todavia, se eu me arrisco nesse terreno escorregadio e<br />

tomo a liberdade de dizer alguma coisa a meu respeito, é porque<br />

me sinto impelido, acima de tudo, pelo interesse objetivamente<br />

antropológico naquilo que estou por narrar. Émile<br />

Benveniste, no seu estudo sobre termos relativos ao substantivo<br />

neto, mostra que, em inúmeras sociedades indo-européias<br />

do passado mais remoto, o menino é visto como a encarnação<br />

de um antepassado: o “neto” seria, portanto, uma “repetição<br />

diferente” de alguém que viveu antes. Ora, a experiência infantil<br />

de quem escreve reproduz exatamente o modelo delineado<br />

por Benveniste. Por circunstâncias bastante singulares, eu<br />

tomei o nome, o lugar, as roupas e as brincadeiras de um filho<br />

do meu avô, falecido tragicamente algum tempo antes, e<br />

fui morar com meu avô em vez de morar com meus pais. A<br />

idéia de que os recém-nascidos sejam cópias, simulacros de crianças<br />

desaparecidas, foi, por conseguinte determinante para a


formação de minha identidade. Não se tratou de uma reencarnação<br />

espi<strong>ritual</strong>, mas de um processo <strong>ritual</strong>; ao nascer, encontrei<br />

um relicário de exterioridades: trajes com iniciais, talheres<br />

de prata com o meu nome gravado, soldadinhos e balizas<br />

de boliche um pouco amassados, modelos de comportamento<br />

que pediam para ser vestidos, animados, repetidos.<br />

Nada mais distante da chamada criatividade espontânea da infância:<br />

o novo não nasce senão através de imperceptíveis transformações<br />

do velho, mínimos desvios do conhecido, trânsitos<br />

“do mesmo para o mesmo”. Disso me ficou a impressão de<br />

que a vida é um tênue sopro que só pode existir se encontra e<br />

toma posse de algum espólio a ser animado, alguma veste a<br />

ser envergada, alguma conduta a ser assumida; quando não<br />

se depara com nada ou, então, rejeita tudo, talvez esteja condenada<br />

a evaporar-se. Por isso, eu me senti sempre completamente<br />

estranho à idéia da vida como fonte inexaurível, como<br />

infinita força produtiva, como potência irresistível. Ao contrário,<br />

pareceu-me que a vida fosse algo extremamente pobre, delicado<br />

e frágil, que deve se alienar nas coisas, na realidade, no<br />

mundo, para se manter e se desenvolver. No âmbito de tal perspectiva,<br />

os ritos, as cerimônias, as instituições não constituem<br />

em absoluto um obstáculo à manifestação e ao crescimento da<br />

vida, mas, bem ao contrário, são uma condição da sua existência.<br />

A revolta e a transgressão também são ritos que já se<br />

encontram prontos: um bisavô (herói da unificação da Itália,<br />

condenado a trinta anos de prisão pelos Bourbons) e um outro<br />

bisavô (incitador de uma revolta popular contra a fundação<br />

do novo reino, em uma aldeia do sul da Itália) desempenharam<br />

na minha imaginação a função de um esquema <strong>ritual</strong>.<br />

O pensamento <strong>ritual</strong> pode ser considerado o desenvolvimento<br />

de problemáticas e de tendências presentes e ativas na fi-


losofia e nas ciências humanas. Não é difícil, de resto, encontrar<br />

assonâncias entre a sua dinâmica teórica e alguns aspectos do pósestruturalismo<br />

contemporâneo. O nomadismo de Gilles Deleuze,<br />

a crítica do platonismo realizada por Jacques Derrida, a recusa<br />

dos mitos teorizada por Jean-François Lyotard constituem um<br />

cenário no qual se situam os seus caminhos especulativos. De<br />

resto, as três noções sobre as quais se articula o presente volume<br />

— trânsito, simulacro e rito sem mito — aparecem à primeira<br />

vista como os respectivos desenvolvimentos do pensamento nômade,<br />

pós-metafísico e pós-moderno dos autores acima citados.<br />

Entretanto, essa impressão de consonância se atenua assim que<br />

se contemplam as áreas culturais para as quais se volta a atenção<br />

do meu trabalho. Quais são essas áreas culturais? Não a Grécia<br />

antiga, que constitui o ponto de referência por excelência do pensamento<br />

filosófico contemporâneo, mas a Roma antiga, que, na<br />

literatura filosófica do século XX, é objeto de uma arraigada hostilidade;<br />

não a Reforma, que freqüentemente é vista como o berço<br />

da filosofia moderna, mas o Barroco, que só em tempos muito<br />

recentes foi merecedor de uma consideração filosófica; enfim, não<br />

a Europa mais genuína e secreta, mas a Europa mais híbrida e<br />

mais replicada, aquela Europa fora de si mesma, que já ocupa a<br />

maior parte do mundo e que, através dos enxertos mais ilegítimos<br />

e das combinações mais espúrias, é artífice de um cotidiano<br />

carente de bases nos mitos e nas tradições.<br />

O segundo elemento que confere uma especificidade particular<br />

à minha pesquisa é o interesse por aqueles “tempos fortes”<br />

da existência, em torno dos quais desde sempre giram os<br />

ritos: a sexualidade, a morte e o mundo. <strong>Sexualidade</strong> e morte<br />

constituem o “cerne” da experiência, porque são realidades opacas<br />

e impenetráveis, indiferentes e estranhas às intenções subjetivas<br />

e aos bons propósitos. Elas aparecem-nos como “coisas”


irredutíveis à vida do espírito e às suas aspirações ideais. Como<br />

pode a filosofia fazer frente a essas realidades? Na minha opinião,<br />

ela deveria pôr de lado não só toda espi<strong>ritual</strong>idade desencantada,<br />

como também todo naturalismo organicista. De fato,<br />

a sexualidade com que se depara não é aquela orgânica, articulada<br />

sobre a polaridade do masculino e do feminino, e sim aquela<br />

neutra e perversa, que prescinde de tal distinção. Nos ensaios<br />

contidos neste volume, sobre o venus, pensado como algo<br />

neutro, sobre eros, pensado como intermediário entre a paz e a<br />

guerra, e sobre o corpo, pensado como véu e veste, delineiamse<br />

exatamente as premissas de um “sex appeal do inorgânico”,<br />

do qual tratei recentemente de forma mais extensa e exaustiva.<br />

Com a morte, a filosofia se confrontou desde sempre.<br />

No entanto, o aspecto inquietante da hodierna experiência da<br />

morte não consiste apenas na angústia da finitude e nas tentativas<br />

de superá-la; no imaginário coletivo e na pesquisa científica,<br />

está cada vez mais presente a atenção dirigida aos estados<br />

intermediários entre a vida e a morte, que se configuram<br />

já como formas de vida artificial (os replicantes da ficção científica<br />

ou os fenômenos de A Life), já como estados limítrofes<br />

entre uma e outra (os vampiros da literatura e dos filmes de<br />

horror ou os pacientes terminais mantidos vivos pela tecnologia<br />

médica). De uma forma mais geral, assiste-se em muitos âmbitos<br />

a uma mistura entre o orgânico e o inorgânico, entre a<br />

corporeidade e as coisas, o que suscita perturbação e apreensão.<br />

Os ensaios, contidos neste volume, sobre o simulacro da<br />

morte, sobre o “reino intermediário” e sobre o eterno retorno<br />

do mesmo constituem uma introdução àquilo que antes<br />

chamei o “efeito egípcio”, para indicar exatamente o processo<br />

graças ao qual parece que as coisas adquirem faculdades humanas<br />

e, vice-versa, os homens são excluídos do sentir.<br />

36


Quanto ao terceiro objeto da minha reflexão — o mundo<br />

—, este também, não menos do que a sexualidade e a morte,<br />

é âmbito de inquietantes interrogações: de fato, dele depende<br />

o sucesso ou o fracasso dos nossos empreendimentos. É a partir<br />

do Renascimento que a noção de “mundo”adquire, na reflexão<br />

teórica, um destaque sempre maior, tomando o lugar da<br />

“providência”, da “vontade de Deus”. No curso dos últimos<br />

trinta anos, esse processo de secularização, de desmitificação e<br />

de desencanto parece ter adquirido uma aceleração e uma<br />

radicalização que atingem não só as representações religiosas,<br />

como também as representações ideológicas consideradas uma<br />

continuação das primeiras. Nasce disso uma atenção totalmente<br />

profana e mundana no que se refere à imagem e à sua relação<br />

com a realidade — o ensaio sobre a iconofilia e a iconoclastia,<br />

aqui incluído, se insere exatamente nessa trama de reflexões. Na<br />

idéia de mundanalidade está implícita uma referência à obtenção<br />

de um resultado; os ensaios sobre a arte como operação<br />

mimética e sobre a cerimônia estudam precisamente a<br />

vinculação entre repetição e efetividade. Em um livro recente,<br />

defini com o neologismo sensologia, cunhado a partir do modelo<br />

de “ideologia”, a modalidade completamente distanciada,<br />

impessoal e mundanizada da experiência: ela caracteriza o sentir<br />

contemporâneo. Tudo isso, porém, não deve induzir a um<br />

estado depressivo ou prejudicialmente negativo. Como diz<br />

Quevedo: “Nada me desilude! O mundo me encantou!”.<br />

37<br />

Mario Perniola<br />

Os textos reunidos neste livro foram extraídos de La società dei simulacri (Bolonha,<br />

Cappelli, 1980) e de Transiti (Bolonha, Cappelli, 1985). Os capítulos “Ícones, visões<br />

e simulacros”, “Fenômeno e simulacro” e “O ser-para-a-morte e o simulacro da<br />

morte” integram o primeiro volume; os demais, o segundo.


Capítulo I<br />

O charme venusiano<br />

1 Sedução, amor, charme<br />

Romper os laços entre o erotismo e o mal, entre a<br />

pulsão sexual e o negativo, entre a dinâmica do prazer e o<br />

pecado, que o mito de Don Juan instituiu e mantém há pelo<br />

menos três séculos, sem restaurar a ilusória positividade<br />

transfiguradora do amor, parece, à primeira vista, uma empresa<br />

impossível. Os recentes esforços de reconsiderar a vida<br />

erótica através do conceito de sedução, 1 ou através do conceito<br />

de amor, 2 movem-se em direções opostas, mas convergem<br />

pelo menos em um ponto: no desencorajar a busca de um<br />

caminho que seja independente da tradição libertina ou da tradição<br />

romântica. Ambos reagem energicamente à banalização<br />

e à perda de significado da sexualidade na sociedade contemporânea,<br />

repensando de maneira original e aguda os dois conceitos<br />

fundamentais pelos quais o Ocidente deu um sentido<br />

à própria vida erótica. Exatamente por isso, permanecem, não<br />

obstante as modificações que trazem às noções de sedução e<br />

39


de amor, no âmbito de uma tradição que a sociedade contemporânea<br />

parece ter descartado: porque podemos tirar da<br />

sedução o seu aspecto subjetivo e submetê-la às regras do jogo,<br />

mas ela permanece sempre desafio e negação; pode-se tornar<br />

o amor mais anárquico e desordenado, multiplicando ao infinito<br />

as suas manifestações, porém, ainda assim, ele tende sempre<br />

à transcendência. Ora, é uma característica dos tempos em<br />

que vivemos que se esteja precisamente acima do bem e do<br />

mal, de apenas suportar um comportamento verdadeiramente<br />

imoral ou verdadeiramente moral, de torná-lo o seu contrário<br />

e, enfim, de anular tanto um como outro, numa<br />

indiferenciação na qual tudo é reversível em tudo, tudo se confundindo<br />

com tudo.<br />

De resto, na civilização erótica dos últimos dois séculos,<br />

sedução e amor são dimensões complementares que qualificam<br />

respectivamente o comportamento masculino e feminino<br />

mais comum: para cada Don Juan que seduz há uma<br />

Dona Ana (ou mais) que o ama. Certamente pode-se trazer<br />

a esse paradigma uma modificação muito significativa invertendo<br />

os papéis. Pode-se dizer que a sedução é, como estratégia<br />

das aparências, antes e sobretudo feminina — o feminino<br />

não seria aquilo que se opõe ao masculino, mas aquilo que<br />

seduz o masculino. Igualmente, pode-se encontrar a solução<br />

da crise que atualmente atravessa a sexualidade masculina em<br />

uma desordem amorosa, na qual o erotismo masculino, tendo<br />

abandonado o código da virilidade, possa abrir-se para uma<br />

intensidade emotiva até agora por ele desconhecida. Tanto a<br />

primeira orientação como a segunda tendem para uma superação<br />

da distinção entre masculino e feminino, para a transexualidade;<br />

contudo ambas, exatamente porque permanecem<br />

prisioneiras das noções de sedução e de amor, podem no má-<br />

40


ximo inverter as atribuições tradicionais, sem conseguir ir além<br />

da civilização erótica que criou o mito de Don Juan e que<br />

fez a apologia do poder redentor do amor feminino. O centro<br />

do problema não é sexual, mas filosófico: o declínio da<br />

masculinidade e da feminilidade depende da dissolução dos<br />

conceitos de sedução e de amor e da busca de um erotismo<br />

independente da negação libertina tanto quanto da transcendência<br />

romântica.<br />

Essa nova erótica deve, portanto, reger-se por noções<br />

independentes de uma prejudicial crítica ou metafísica. Entre<br />

estas, melhor que a noção de fascínio, muito ligada à magia<br />

sedutora do olhar e aos seus poderes maléficos, chama a atenção<br />

a palavra charme, suscetível de um uso muito variado e<br />

apta a designar tanto as emoções divinas 3 como a atração sexual.<br />

Tal polivalência do termo encontra maior determinação<br />

se posta em relação com a noção impessoal de venus, assim<br />

como foi entendida na religião romana arcaica, antes que designasse<br />

a deusa homônima e se confundisse com a Afrodite<br />

grega. O interesse que a idéia arcaica de venus desperta hoje<br />

deriva não de uma atualidade genérica daquilo que parece mais<br />

inatual, mas de razões específicas ligadas à pesquisa histórica<br />

e à experiência contemporânea. A pesquisa histórica, de fato,<br />

pode mostrar que essa noção não se dissolveu com a<br />

helenização da religião romana, mas ficou viva e operante no<br />

Ocidente em formas mais ou menos subterrâneas. No final<br />

da civilização erótica dominada pela figura de Don Juan e do<br />

amor romântico, emerge de novo a idéia de um charme<br />

venusiano, livre de embaraçosas mitologias: ele é articulado<br />

mediante a análise das quatro palavras fundamentais deduzidas<br />

por Robert Schilling no estudo lingüístico do termo venus:<br />

veneratio, venia, venerium e venenum. 4<br />

41


2 O “venus” como veneração<br />

Se a sedução é desafio, transgressão, negação, o charme<br />

venusiano implica uma atitude oposta: é acolhimento do dado,<br />

é afirmação do presente. Não é, porém, aceitação resignada e<br />

forçada, obtorto collo, como parece implícito no verbo colere,*<br />

nem o bondoso consentir, como em placare,** mas consenso<br />

pleno, disposição da vontade para dizer sim, venerar, entregar-se<br />

sem reservas. Raymond Radiguet, que foi um dos<br />

maiores intérpretes do charme venusiano no século XX, captou<br />

muito bem a essência da veneratio: “Significa depreciar<br />

as coisas e desconhecê-las, querê-las diferentes daquilo que são,<br />

até mesmo quando se quer que sejam mais belas”. 5<br />

A veneratio é um movimento silencioso porque suspende<br />

e faz calar os desejos subjetivos, as paixões individuais, as<br />

afeições desordenadas que pretendem impor-se rumorosamente<br />

contra o dado divino, mundano, humano, que exigem a sua<br />

realização sem ver e compreender a realidade, que correm em<br />

direção à utopia e à destruição, oscilando entre arrogância e<br />

desolação, entre exaltação e depressão. A deusa romana<br />

Angerona, deusa da vontade e da oportunidade, parece personificar<br />

bem a premissa silenciosa de toda veneração: o seu<br />

simulacro com um dedo sobre os lábios ordenava o silêncio. 6<br />

Veneratio é dizer sim acima de tudo aos deuses, e, portanto,<br />

abandono total de todo prometeísmo, de toda hýbris,<br />

de toda presunção diante do divino. O homem deve agradar<br />

aos deuses; é necessário que fiquem encantados, seduzidos,<br />

fascinados por quem se dirige a eles. A captatio benevolen-<br />

* Cultuar. (N. do T.)<br />

** Acalmar. (N. do T.)<br />

42


tiae* é o ponto de partida dessa erótica. Mas os deuses, para<br />

poderem ser venerados, devem calar.<br />

Parece que os romanos, no mesmo momento em que<br />

introduzem a veneração, tiram a palavra dos deuses, privamnos<br />

do mito, da narração de suas empresas. Georges Dumézil<br />

demonstrou que os deuses da religião romana são os mesmos<br />

do panteão indo-europeu, mas desmitificados, silenciosos. À<br />

diferença da religião etrusca, a romana não possui revelação:<br />

os livros sibilinos são uma simples compilação dos rituais de<br />

expiação do prodígio. A injunção favete linguis,** que convidava<br />

os participantes de uma cerimônia a favorecer com o<br />

silêncio o seu desenvolvimento, era, assim, dirigida aos próprios<br />

deuses.<br />

Veneratio é dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono<br />

de toda atitude de ressentimento, de crítica preconcebida ou de<br />

negação sistemática do presente. É impossível ser charmoso se<br />

não se estiver em paz com o mundo, com o espírito do próprio<br />

tempo, com aquilo que está à volta. Venerar Vênus no<br />

mundo quer dizer estar disposto a reconhecer a variedade das<br />

suas manifestações e a desejá-las conforme a ocasião: castidade<br />

e orgia, matrimônio e prostituição, monogamia e poligamia,<br />

homossexualidade e heterossexualidade... não são realidades<br />

incompatíveis entre as quais é obrigatório escolher de<br />

uma vez por todas, mas situações a ser apreciadas no momento<br />

oportuno. Entretanto, a condição da sua apreciação continua<br />

sendo o seu silêncio, a sua discrição, a sua desmitificação<br />

— é charmoso não só quem está disposto, com a mesma in-<br />

* Termo da retórica: “conquista”, aquisição do favor, da benevolência (do juiz, do<br />

público). (N. do T.)<br />

** “Calai”; literalmente, “sede favoráveis por meio de vossas línguas”, isto é, “sede<br />

favoráveis naquilo de ruim que iríeis falar”. (N. do T.)<br />

43


diferença, para o contrário, mas quem na ação mais decisiva<br />

conserva uma distância que o torna capaz de respeitar-lhe a<br />

cadência e o ritmo. Vênus se apresentava à veneração dos romanos<br />

sob duas formas aparentemente incompatíveis: como<br />

Venere Verticordia* e como Venere Ericina.** O culto da primeira<br />

tinha a função de levar o ânimo das jovens e das mulheres<br />

à pudicícia; o culto da segunda, de origem siciliana, mas<br />

elevada à hierarquia de divindade romana e venerada com a<br />

edificação de um templo no capitólio, estava, ao contrário, estritamente<br />

ligado ao exercício da prostituição. A atribuição de<br />

qualidades tão diferentes à mesma deusa não deriva em absoluto<br />

de um comportamento niilista — que não quer comprometer-se<br />

e por isso está ora de um lado ora de outro, favorecendo<br />

ambos —, e sim de uma profunda intuição que se<br />

manifesta na qualidade do culto. Conta Diodoro Sículo que<br />

os magistrados romanos, cada vez que iam à Sicília, nunca<br />

deixavam de honrar o santuário de Érice com sacrifícios e homenagens,<br />

e, “para comprazer a deusa, esqueciam a gravidade<br />

do seu compromisso para divertir-se alegremente em companhia<br />

de mulheres”. 7 Esses magistrados eram, portanto, mais<br />

charmosos aos olhos da deusa do que aos olhos das suas sacerdotisas,<br />

exatamente porque tinham em relação ao prazer<br />

um interesse distanciado, uma participação não participante.<br />

Giovan Battista Marini notou com perspicácia essa indistinção<br />

venusiana entre castidade e libidinagem quando mostrou, em<br />

Adone, “que as obras obscenas/ Vênus não mais que as contrárias<br />

aplaude”. 8<br />

* A Vênus que abranda os corações. (N. do T.)<br />

** A Vênus que era adorada no monte Érix ou Érice, na Sicília, onde atualmente há<br />

a cidade italiana de Érice. (N. do T.)<br />

44


Veneratio, enfim, é dizer sim a si mesmo. Naturalmente,<br />

não aos próprios desejos, aos próprios sonhos e aos próprios<br />

ideais: todas essas coisas estão muito impregnadas de<br />

negação e de ausência, são muito abstratas e inconsistentes<br />

para poderem ser tomadas de verdade como elementos ou aspectos<br />

de si mesmos. A sedução pode ser definida justamente<br />

como uma magia da ausência, 9 mas o venus é, bem ao contrário,<br />

inseparável do presente, da própria situação, daquilo<br />

que nos é oferecido. Venerar quer dizer estar em paz consigo<br />

mesmo, saber exercer a vontade retroativamente, querer aquilo<br />

que aconteceu, transformar — como diz o Zaratustra<br />

nietzschiano — cada “foi assim” em um “assim quis que fosse”.<br />

A veneração é amor fati,* vontade de querer aquilo que<br />

foi e aquilo que é, entretanto não mais para ficar fechado no<br />

círculo de um retorno infinito do igual, mas, ao contrário, para<br />

poder querer o presente sem estar condicionado pelo seu conteúdo.<br />

Portanto, ao contrário do quietismo, que se abandona<br />

por completo ao destino, na veneração é a adesão humana que<br />

transforma qualquer acontecimento em destino, mesmo porque<br />

todo o passado já foi marcado por ele.<br />

Contudo, a repetição, a dedicação implícita na veneratio<br />

não é uma verdadeira fidelidade. Fazendo calar os deuses, o<br />

mundo e a nós mesmos, a veneração é a premissa de um<br />

mimetismo que, quanto mais altera, mais se torna formalmente<br />

idêntico ao modelo. “Nada se assemelha menos com as coisas<br />

em si”, diz Radiguet, “do que aquilo que lhes está muito<br />

próximo.” 10 Isso é evidente sobretudo nas conseqüências que<br />

o <strong>ritual</strong> romano da evocatio** implicava: por meio dele os ro-<br />

* Amor ao destino. (N. do T.)<br />

** Convocação. (N. do T.)<br />

45


manos convidavam as divindades dos inimigos a deixar as cidades<br />

de origem e a vir a Roma; para “evocar” os deuses estrangeiros<br />

usava-se justamente a fórmula “veneror veniamque<br />

peto”.* Ora, é evidente que a veneração dos deuses estrangeiros<br />

comportava a instauração de um rito romano a eles dedicado,<br />

o qual era mais deslocamento e desvio, déplacement e<br />

détournement, do que respeitoso prosseguimento. Na raiz do<br />

sincretismo religioso romano e da sua extraordinária capacidade<br />

de assimilar os cultos mais diversos está exatamente uma<br />

atitude de veneração, de acolhimento, que não é mera benevolência,<br />

mas esconde uma originalíssima estratégia erótica,<br />

um pensamento filosófico e político sutil. Seria um grave erro<br />

considerar a veneração fraqueza ou mansuetude; ela é, ao contrário,<br />

a arma de um pium bellum,** de uma boa guerra<br />

conduzida sem ressentimento. A associação de Vênus com<br />

Marte, que os romanos provavelmente emprestaram do casal<br />

grego Afrodite-Ares, revela assim um significado mais profundo,<br />

tipicamente romano. A ligação entre a veneração e a<br />

guerra resulta, por outro lado, da devotio,*** o rito com o<br />

qual, em situações particularmente difíceis, o comandante,<br />

para alcançar a vitória, recitava uma fórmula, um carmen,****<br />

que o consagrava aos deuses Manes e à Terra: oferecendo-se<br />

ao além, ele revelava uma relação entre o charme venusiano e<br />

a morte, que é de tipo radicalmente diferente daquele que liga,<br />

na sedução, Don Juan à estátua do comendador ou, no amor,<br />

Tristão ao sofrimento e à catástrofe. Enquanto Don Juan é<br />

obrigado a aceitar o convite fatal da estátua 11 e o amor de<br />

* Venero e peço benevolência. (N. do T.)<br />

** Guerra piedosa, justa. (N. do T.)<br />

*** Oferecimento, entrega da própria vida. (N. do T.)<br />

**** Canto solene e mágico. (N. do T.)<br />

46


Tristão é, por definição, oposto à realidade mundana, 12 o comandante<br />

romano se consagra espontaneamente à morte para<br />

vencer — para ele, estar do lado dos Manes é mais uma vez<br />

uma maneira de dizer sim ao presente.<br />

3 O “venus” como “venia”<br />

Se a hýbris, a arrogância implícita na sedução, suscita<br />

a áte, a punição, se o sofrimento amoroso é resgatado por<br />

uma redenção moral, por uma salvação espi<strong>ritual</strong>, a veneratio<br />

do charme venusiano pede, ao contrário, a venia, a benevolência,<br />

a graça dos deuses, do mundo, do homem. Ora, a<br />

venia não é propriamente perdão, porque nenhum pecado<br />

foi cometido, nem mesmo indulgência, um dar tempo e lugar<br />

ao arrependimento, porque não aconteceu nenhum desvio<br />

ou erro: na dimensão venusiana, o homem é inocente.<br />

Certamente a sua inocência não é ingênua, espontânea, natural<br />

— é uma inocência que se coloca além, não aquém,<br />

do bem e do mal, porque a veneratio instaura um novo início.<br />

Tito Lívio conta que, depois da devotio do cônsul Décio<br />

Mure, os romanos “retomaram o combate como se o sinal<br />

fosse dado pela primeira vez”. 13<br />

Grande parte do charme que a perspectiva venusiana<br />

exerceu sobretudo nos poetas deriva exatamente do caráter de<br />

uma repetição que se apresenta como diferente, outra, não<br />

idêntica ao que a precede, ao modelo, ao original. Não é banal<br />

a explicação que encontra aqui a ligação entre Vênus e a<br />

primavera, que é freqüentemente explicada como uma referência<br />

genérica ao “encanto e florescimento na natureza”. 14<br />

Mas a volta da primavera é encantadora porque realiza um<br />

47


trânsito, uma passagem do mesmo para o mesmo. O refrão<br />

do poema Pervigilium Veneris* põe em evidência exatamente<br />

a anulação da experiência, a indiferença diante da experiência<br />

erótica passada: “Cras amet qui numquam amavit quique<br />

amavit cras amet” (“Amanhã ame quem nunca amou, quem<br />

amou ame amanhã”).<br />

Venia é a resposta condescendente da divindade que<br />

foi objeto de veneração. Na mútua relação veneratiovenia**<br />

que se estabelece entre o homem e a divindade,<br />

Vênus reúne em si os dois pólos da relação: ela responde<br />

sim a quem, inspirado por ela, já disse sim. Portanto, é<br />

propiciadora por excelência, sugere o obsequium*** e é<br />

obsequens, é favorável e complacente com quem já se move<br />

em um horizonte de propiciação e de condescendência. As<br />

divindades romanas são dotadas de venia e Vênus é por definição<br />

obsequens porque o consentimento e a afirmação estão<br />

implícitos na própria noção de numen, de poder divino.<br />

Numen vem de nuo, que quer dizer “fazer sim com a<br />

cabeça”. O que, naturalmente, não exclue que os deuses<br />

possam às vezes estar irados ou ser hostis, mas existe sempre<br />

um rito expiatório ou propiciatório que restabelece a<br />

pax deorum.**** É essa fé na natureza substancialmente favorável<br />

do divino e do presente que permite aos romanos<br />

divinizar, para grande escândalo de santo Agostinho e de<br />

Hegel, até as forças mais prejudiciais, como a febre, mais<br />

secundárias e risíveis, como aquelas indicadas nos Indigita-<br />

* “Vigília de Vênus”, poema anônimo, atribuído na Antiguidade a Virgílio. (N. do T.)<br />

** Veneração, graça. (N. do T.)<br />

*** Obséquio, favor. (N. do T.)<br />

**** Paz dos deuses, calma entre os deuses. (N. do T.)<br />

48


menta,* mais nocivas, como a deusa Lua,** símbolo da<br />

desordem e da destruição. Porque todas elas existem de alguma<br />

maneira, participam de algum modo da presença.<br />

Nessa confiança se alicerça a possibilidade de assimilar as<br />

religiões mais diversas em um sincretismo tolerante com<br />

os cultos mais estranhos, característica do desenvolvimento<br />

da religião romana: a única coisa que é mesmo<br />

inassimilável ao panteão romano é o radicalismo moral, exatamente<br />

porque nega o presente em nome do dever-ser, do<br />

Sollen,*** da utopia.<br />

Na venia está implícito o conceito de ajuda. É curioso<br />

que o verbo nuo (consinto) se confunda com um nuo arcaico,<br />

que quer dizer “aleito” (de onde, justamente, nutrix****).<br />

A idéia de benevolência e de vênia aparece assim ligada com<br />

a idéia da ajuda prestada à primeira infância, ao estado de extrema<br />

necessidade. Por mais que isso possa induzir à tentação<br />

de considerar Vênus uma das tantas manifestações do arquétipo<br />

mediterrâneo da Grande Mãe, tal identificação deixaria<br />

escapar o essencial. Certamente os leitores da Eneida recordam<br />

o episódio descrito por Virgílio no livro XII, no qual<br />

Venus Genitrix corre em ajuda de seu filho Enéias, que ficou<br />

ferido na batalha contra Turno. Da mesma forma, a literatura<br />

venusiana é rica em exemplos que entendem a ajuda de<br />

Vênus no sentido erótico, de Camões de Os lusíadas (para os<br />

quais ela faz surgir do mar uma deliciosa ilha habitada por<br />

* Conjuntos de formas religiosas romanas que permitiam invocar os deuses com ritos<br />

e orações apropriadas às diversas circunstâncias da vida. (N. do T.)<br />

** Divindade itálica que presidia às expiações e à qual se consagravam as armas tomadas<br />

do inimigo. (N. do T.)<br />

*** Dever. (N. do T.)<br />

**** Ama-de-leite. (N. do T.)<br />

49


ninfas muito complacentes que se entregam a eles do modo<br />

mais voluptuoso) a Radiguet, para quem ironicamente Vênus<br />

“nous livre ses secrets, ses fruits”,* de forma inconsciente, durante<br />

o sono. 15 Mas a noção de ajuda, implícita em venia, é<br />

muito mais ampla do que a implícita na maternidade ou na<br />

rendição sexual: ela deve ser entendida em toda a sua latitude<br />

material e espi<strong>ritual</strong>. Venus é obsequens não apenas como<br />

mãe que aleita ou como as matronas que, multadas pelos seus<br />

adultérios, financiaram a edificação de seu primeiro templo<br />

em Roma, em 295 a. C. A caraterística da sua venia é de ordem<br />

filosófica, e isso implica sobretudo uma disponibilidade<br />

mais ampla e geral.<br />

Se a veneratio é dizer sim aos deuses, ao mundo, a si<br />

próprio, primeiro silenciosamente e, depois, segundo os carmina<br />

rituais, a venia é receber um sim dos deuses, do mundo<br />

e de si mesmo, primeiro mediante um anuir tácito, um<br />

sinal de aprovação, um consenso íntimo, e depois mediante<br />

uma palavra que é quase “independente de quem a profere”,<br />

que interessa “não pelo que significa, mas porque existe”.<br />

É esse o significado que Émile Benveniste atribui à raiz<br />

*bha — da qual provêm for (falar) e seus derivados fas,**<br />

fama*** e fabula. 16 **** Certamente, a idéia de um fas entendido<br />

como palavra divina, num panteão mudo como o<br />

romano, levanta algumas dificuldades; 17 o importante, porém,<br />

consiste em pôr em evidência o caráter afirmativo implícito<br />

na palavra fas e o seu aspecto <strong>ritual</strong>, desmitificado.<br />

* Entrega-nos seus segredos, seus frutos (N. do T.)<br />

** Aquilo que é justo, segundo a lei dos deuses, ou seja, o que, por revelação, é<br />

declarado ser justo. (N. do T.)<br />

*** O que se diz, o que se fala; a fama, a reputação. (N. do T.)<br />

**** O que se fala como boato ou fabulação. (N. do T.)<br />

50


Assim, o termo fama parece ter originariamente, acima de<br />

tudo, uma intenção afirmativa. Enfim, fabula, isto é, a<br />

fabulação de si mesmo, pode criar uma persona (no sentido<br />

romano de máscara), mas não um sujeito: a dúvida sobre<br />

sua credibilidade impede desde o início que ao indivíduo falte<br />

pietas* e se torne arrogante.<br />

Assim como a veneratio, o dar aprovação, se resolve em<br />

um mimetismo que dissolve o significado daquilo que aprova,<br />

também a venia, o receber aprovação, no fundo anula o<br />

conteúdo daquilo que é aprovado.Faz parte, por exemplo, do<br />

charme venusiano a facilidade com a qual, na vida contemporânea,<br />

somos aceitos como parceiros sexuais. Isso, no entanto,<br />

não justifica nenhuma autocomplacência especial e não autoriza<br />

nenhuma intimidade. Esses encontros que se realizam<br />

sem páthos e sem que ninguém lhes atribua nenhuma importância<br />

têm um encanto profundo: são cerimônias apreciáveis<br />

exatamente porque vazias. Estão sob o signo de Vênus — a<br />

venia que nelas se exercita anula toda vaidade.<br />

4 O “venus” como “venerium”<br />

A jogada de maior sorte nos dados (que se obtinha<br />

quando os quatro dados mostravam, cada um, um número<br />

diferente) era chamada venerium pelos romanos. Isso mostra<br />

a relação que existe entre Vênus e o sucesso. Enquanto a sedução<br />

parece ligada a um destino infeliz 18 e o amor correspondido<br />

foi definido argutamente por Beckett como um cur-<br />

* O sentimento de obrigação e dever a qualquer tipo de pacto; daí, “respeito”, “piedade”.<br />

(N. do T.)<br />

51


to-circuito 19 , o charme venusiano é inseparável do bom êxito,<br />

da vitória. Por isso, ficar prisioneiro da metáfora fornecida pelo<br />

jogo dos dados pode nos desviar do principal: Venus não tem<br />

nada a ver com o acaso. O seu protegido se assemelharia antes<br />

a um jogador que, “ao executar cem lances, obtém cem<br />

vezes o venerium”, 20 * mas tal pretensão é, aos olhos dos deuses<br />

romanos, a expressão daquela insolência que é exatamente<br />

o contrário do espírito venusiano.<br />

Por presunção — iactantia,** a chama Tito Lívio 21 —<br />

pecavam os habitantes de Preneste, os quais achavam que podiam<br />

vencer sempre porque eram protegidos pela Fortuna<br />

Primigênia que é — como mostrou Angelo Brelich 22 — estranha<br />

ao espírito das religiões romanas. A sorte, o mero acaso<br />

não ocupa em absoluto um lugar de destaque no universo religioso<br />

romano, e a idéia de um caráter originário, essencial e<br />

absoluto, se opõe à experiência de uma cidade que nasceu e<br />

se desenvolveu através de operações simuladoras e de violentas<br />

mudanças.<br />

Assim, não é por acaso que as fontes revelam vestígios<br />

de uma atitude polêmica dos romanos no que diz respeito ao<br />

culto prenestino da Fortuna,*** que se manifestava na proibição<br />

de consultar o oráculo. A suspeita romana diante do<br />

conceito de sorte tem uma base filosófica: depende da oposição<br />

entre a fortuna volúvel e insegura e a felicitas****<br />

venusiana, “sólida e sincera”. 23 O fato de Sérvio Túlio — filho<br />

de uma escrava e protetor de escravos, concebido e tor-<br />

* O lance de Vênus. (N. do T.)<br />

** Jactância, presunção. (N. do T.)<br />

*** Fortuna: sorte, acaso. (N. do T.)<br />

**** Felicidade, abrangendo a idéia de “prosperidade”, “opulência” e do que é favorável.<br />

(N. do T.)<br />

52


nado rei de modo fortunoso — ter dedicado, segundo a tradição,<br />

um templo à Fortuna coincide perfeitamente com tal<br />

colocação. A Fortuna é em Roma — como observa Brelich<br />

— a deusa dos escravos e daqueles que vivem de expedientes<br />

(“sine arte aliqua”), daqueles a quem não resta senão esperar,<br />

em um lance da sorte. A deusa Esperança está de fato associada<br />

à Fortuna no santuário prenestino.<br />

O sucesso do protegido de Vênus não provém de fatores<br />

aleatórios; por isso, ele não está sob o signo da esperança,<br />

que aguarda por acontecimentos que podem ou não ocorrer.<br />

Nem deve ser manchado pela arrogância; por isso não depende<br />

da presunção de que determinados eventos favoráveis<br />

aconteçam necessariamente. A felicitas está em considerar favorável<br />

qualquer coisa que aconteça. Essa idéia, que está implícita<br />

na noção de charme venusiano, parece ter sido cultivada<br />

por Sila, a quem se deve o culto à Venus Felix: Sila demonstrava<br />

dar mais importância à própria imagem de homem felix<br />

que ao efetivo poder político e, em qualquer caso, fazia derivar<br />

o segundo da primeira. Segundo Plutarco, ele conservou<br />

até o fim essa opinião de si mesmo, embora fosse afetado por<br />

uma horrenda úlcera no intestino que lhe consumia as carnes,<br />

transformando-as em pasto para os piolhos, e o sujava<br />

com um fluxo de podridão irrefreável. Não obstante essa enfermidade<br />

que o obrigava a imergir na água muitas vezes por<br />

dia, sem obter nenhum resultado, não deixou nunca de considerar-se<br />

felix e, dois dias antes de morrer, terminou as suas<br />

memórias afirmando que “teria morrido no auge da felicidade<br />

depois de uma vida gloriosa” 24 .<br />

Pompeu também se pôs sob a proteção de uma Venus<br />

Victrix, associando o conceito de felicitas ao de victoria e inaugurando<br />

cultos e templos a essa nova deusa. Mas tal escolha<br />

53


não lhe foi favorável, porque se chocou com César, que punha<br />

Vênus em pessoa entre os seus antepassados distantes!<br />

Conta Apiano que, na noite anterior à batalha de Farsalo,<br />

Pompeu sonhou estar enfeitando o templo de Vênus sob os<br />

aplausos do povo; acordando de repente, percebeu que o sonho<br />

não lhe era favorável e, tomado de um profundo desconforto,<br />

foi ao encontro da derrota, substituindo o grito de batalha<br />

“Venus Victrix” pelo de “Hercules Invictus”. 25 O episódio<br />

mostra que o charme venusiano não é redutível à esperança<br />

de uma vitória militar — ele transcende o bom ou mau<br />

resultado de um único conflito. Não é o sucesso em si mesmo<br />

que torna charmoso, mas é o charme que predispõe ao<br />

sucesso. Além disso, na ótica venusiana o próprio conceito de<br />

sucesso perde suas características objetivas e torna-se um atributo<br />

do encantamento. Os romanos sabiam bem que existem<br />

vitórias que são piores que uma derrota e, vice-versa, derrotas<br />

mais providenciais que uma vitória. A decisão de César de erguer<br />

um templo não à Venus Victrix,* que o havia ajudado<br />

na batalha de Farsalo, mas à Venus Genitrix** é esclarecedora:<br />

ele mostra considerar a vitória apenas uma conseqüência da<br />

proteção venusiana. 26<br />

5 O “venus” como veneno<br />

A palavra venenum, assim como o termo grego phármakon***<br />

que a ela corresponde, apresenta uma duplicidade<br />

* Vênus vencedora. (N. do T.)<br />

** Vênus geradora, Vênus mãe. (N. do T.)<br />

*** Droga (isto é, que serve para matar, “veneno”, e para curar, “remédio”).<br />

(N. do T.)<br />

54


de significado, podendo ser usada quer no bom sentido, quer<br />

no mau; por isso, originariamente parece indicar a potência<br />

do charme venusiano na multiplicidade das suas manifestações.<br />

Ainda assim tal afinidade com o termo grego não esclarece<br />

por completo a sua dimensão conceitual, que é essencialmente<br />

latina e se determina na oposição ao horizonte aberto<br />

pelo substantivo pharmakós, afim de phármakon. Chamava-se<br />

pharmakós, na Grécia, o bode expiatório sacrificado<br />

(morto ou expulso) para purificar a cidade dos males que a<br />

afligiam. Com tal objetivo, um certo número de indivíduos<br />

degradados e inúteis era regularmente mantido em Atenas, por<br />

conta do Estado. 27 René Girard vê em tal costume uma manifestação<br />

do sacrifício, cuja essência, na sua opinião, consiste<br />

exatamente no exercício de uma violência <strong>ritual</strong>izada que<br />

purifica e protege a comunidade do desencadeamento de uma<br />

violência ilimitada e total; na raiz dessa teoria está o pressuposto<br />

de que só a repetição <strong>ritual</strong> da violência, ao provocar<br />

um efeito catártico e benéfico, afasta e preserva a sociedade<br />

da barbárie. O sacrifício humano ou animal (enfim, o que<br />

implica derramamento de sangue) é o único phármakon-remédio<br />

ao phármakon-veneno da violência generalizada: “A<br />

não-violência aparece como um dom gratuito da violência”. 28<br />

Como foi mostrado, 29 essa perspectiva permanece atuante no<br />

interior da filosofia grega, em particular na platônica.<br />

Embora na história religiosa de Roma também haja algum<br />

caso esporádico de sacrifício humano e de expulsão <strong>ritual</strong><br />

da cidade, a palavra venenum encaminha a pesquisa para<br />

uma direção totalmente diferente. “Veteres vinum venenum<br />

vocabant”,* diz Isidoro de Sevilha; tal testemunho, unido ao<br />

* Ao vinho os antigos chamavam de “veneno”. (N. do T.)<br />

55


estudo das festas romanas das Vinalia,* destaca não só o caráter<br />

sagrado do vinho, entendido como bebida venusiana por<br />

excelência, 30 mas, do mesmo modo, o significado da substituição<br />

do sangue pelo vinho nos sacrifícios. A sacralização do<br />

vinho assume na religião de Vênus uma função totalmente<br />

diferente da que ela desempenha na religião de Dioniso —<br />

na tradição dionisíaca mais antiga não há nada que faça referência<br />

ao vinho, 31 e tal relação só é estabelecida posteriormente.<br />

A embriaguez dionisíaca é a que provém da fúria homicida<br />

do sparagmós, da dilaceração da vítima, do consumo das<br />

suas carnes e do seu sangue. 32 O sacrifício cruento do dionisismo<br />

é o phármakon que restaura a paz e a ordem social.<br />

Na religião de Vênus, ao contrário, o vinum-venenum, significativamente<br />

considerado “o sangue da terra”, toma logo o<br />

lugar do sangue humano e implica uma recusa da violência,<br />

mesmo no seu uso profilático e terapêutico: o fato de que a<br />

pax deorum seja restabelecida mediante a libação do conteúdo<br />

dos vasos da vindima em lugar de sacrifícios cruentos é<br />

um dado de enorme relevância antropológica. O charme venusiano<br />

se coloca assim no extremo oposto do da embriaguez<br />

orgíaca. Enquanto a atração exercida por Dioniso deriva da<br />

imitação <strong>ritual</strong> e controlada de uma violência originária e criadora,<br />

a exercitada por Venus, ao contrário, está ligada a uma<br />

espécie de deslocamento, de déplacement, de trânsito — ao oferecer<br />

vinho em vez de sangue, ela instaura um mimetismo astuto<br />

que exalta a graça dos détournements. Venenum quer dizer<br />

também matéria corante, tintura, cor e, por extensão, cosmético,<br />

maquiagem. Assim, o culto de Vênus interpreta uma<br />

* Vinálias, festas celebradas pelos romanos duas vezes por ano, em 23 de abril<br />

(Vinálias de Primavera) e em 19 de agosto (Vinálias de Verão). (N. do T.)<br />

56


orientação profundamente enraizada no espírito romano, atribuída<br />

pela tradição ao segundo rei de Roma, Numa Pompílio:<br />

a Júpiter, que lhe pedia sacrifícios humanos, Numa não opõe<br />

uma recusa, mas desloca o significado das palavras, oferecendo-lhe<br />

cabeças de cebola em vez de cabeças humanas, cabelos<br />

e sardinhas em vez de homens. 33 É bem significativo que<br />

Júpiter tenha apreciado muito a tradução de Numa, diferentemente<br />

do Zeus grego, que — como conta Hesíodo — não<br />

perdoa Prometeu por ter-lhe dado em sacrifício ossos cobertos<br />

de gordura em vez de carne. Nessa perspectiva deve também<br />

ser interpretado o caso daquele Papírio que, em uma época<br />

em que era costume prometer templos inteiros como voto<br />

aos deuses, prometeu a Júpiter um “pocillum mulsi”, um<br />

copinho de vinho com mel, e obteve uma total satisfação dos<br />

seus pedidos! 34<br />

O charme venusiano está certamente ligado com a aparência,<br />

embora não necessariamente com a “boa” aparência:<br />

a existência de um culto dedicado à Venus Calva, seja qual for<br />

a sua origem, é mais um testemunho de uma disposição religiosa<br />

orientada para um déplacement inocente que não suscita<br />

a ira dos deuses, mas o seu sorriso. A desmitificação é também<br />

não-dramatização — a religião romana é alheia a exageros<br />

e fanatismos, repele as pretensões de absoluto implícitas<br />

nas experiências delirantes do dionisismo. 35 A religião de<br />

Dioniso conhece a alegria estática, porém é totalmente destituída<br />

do humorismo benévolo e astuto, prosaico e arguto, que<br />

é um aspecto essencial do charme venusiano: disso foram intérpretes<br />

os poetas, desde o incomparável Giorgio Baffo (que<br />

Apollinaire considera o maior poeta erótico de todos os tempos)<br />

até Radiguet. A Vênus de Baffo, “num delicioso/ jardim<br />

com seu amante,/ deitada na grama”, solicita sexualmente<br />

57


o companheiro com estas palavras: “Vamos lá, pois, meu querido,/<br />

de teu caralho bendito/ dá-me o suco preferido,/ que<br />

muito mais que o moscatel/ prefiro do teu pinto o mel”. E<br />

conclui: “Que vá para o diabo/ quem não trepar,/ que marmota<br />

irá virar./ Em vez disso, louvemos, celebremos,/ coroemos/<br />

o primeiro que foi enfiar”. 36 Essa Vênus pertence à mesma<br />

intuição erótica da qual nasce a Vênus Calva e o vinumvenenum.<br />

A desmitificação que troca nos sacrifícios o sangue<br />

pelo vinho e as cabeças humanas pelas cabeças de cebola não<br />

é, no entanto, mera banalização ou trivialidade: o desencanto<br />

não tira o encanto, a exteriorização conserva uma pureza<br />

própria. O charme venusiano não nasce da dialética de ocultação<br />

e desvelamento; ele pressupõe uma realidade já toda descoberta<br />

e disponível. O encanto não depende daquilo que se<br />

mostra ou que se esconde, e sim da transformação à qual é<br />

submetida a realidade mais “crua” ou “obscena”. Se há ainda<br />

algum segredo a revelar, ele está no âmbito da sedução — o<br />

charme começa quando não há mais segredos. Por isso, existiram<br />

os mistérios de Dioniso, mas Vênus nunca teve mistérios:<br />

“Dans son rôle d’epouvantail”, diz Radiguet, “Venus<br />

manque d’autorité”!*<br />

Tudo isso leva a crer que na origem do charme venusiano<br />

(e talvez de toda a religião romana) subsista uma noção<br />

de pureza completamente diferente daquela implícita na<br />

religião grega. Na Grécia, kathárma,** além de sacrifício<br />

purificatório, queria dizer pharmakós, isto é, bode expiatório,<br />

o que remete — segundo Girard — a uma concepção da purificação<br />

como purgação, como evacuação da cidade de tudo<br />

o que for considerado danoso, mediante o exercício de uma<br />

* Em seu papel de espantalho, falta autoridade a Vênus. (N. do T.)<br />

** Nos rituais de purificação, ao objeto rejeitado, a vítima da expiação. (N. do T.)<br />

58


violência análoga àquela da qual se quer libertar a sociedade;<br />

o phármakon pressupõe a identidade entre o mal e o remédio.<br />

37 Em Roma, ao contrário, a substituição pelo vinumvenenum<br />

do sangue parece implicar um conceito de pureza<br />

como operação simuladora, deslocamento, trânsito, alheio às<br />

paixões e às exclusões traumáticas. O venenum poderia também<br />

ter sido apenas água tingida de vermelho ou vinho de<br />

mirto, como o que usavam as matronas para lavar-se nas festas<br />

Veneralia de 1 o de abril dedicadas à Venus Verticordia! Castus<br />

é definido como aquele que se atém aos ritos, que segue escrupulosamente<br />

as cerimônias; o rito sem mito romano abandona<br />

os conteúdos fixos, que têm uma identidade precisa. A<br />

purificação parece tornar-se exatamente o contrário daquilo<br />

que era na Grécia: não a localização e a expulsão de alguma<br />

coisa que se considera impura, mas o esvaziamento <strong>ritual</strong> de<br />

todos os aspectos da vida. Todo ano, em 1 o de abril, castae*<br />

eram tanto as matronas romanas que celebravam o rito de<br />

Vênus como as prostitutas que honravam a Fortuna Viril!<br />

Não se pode concluir o assunto venenum sem fazer referência<br />

ao significado de bebida mortal que prevaleceu na história<br />

da palavra. Mas mesmo aqui é difícil não ter a impressão<br />

de que os romanos visavam a um deslocamento da própria<br />

morte. Um culto antiqüíssimo era dedicado em Roma à<br />

Venus Libitina, deusa dos ritos fúnebres, cuja instituição é atribuída<br />

por Plutarco a Numa Pompílio. A propósito disso, ele<br />

observa que os romanos teriam confiado argutamente a uma<br />

única deusa o controle do nascimento e da morte dos homens.<br />

38 Um tal culto não parece realmente inspirado em uma<br />

concepção trágica da existência, como a grega, mas quando<br />

* Mulheres castas, puras. (N. do T.)<br />

59


muito, na aspiração a fazer coincidir o aspecto cultural da morte<br />

com o do nascimento. Nada permanece, assim, estranho ao<br />

encanto venusiano dos ritos e das cerimônias.<br />

A própria origem etimológica de charme, que vem de<br />

carmen, remete a essa perspectiva. Carmen tem o sentido geral<br />

de fórmula cadenciada, dotada de caracteres formais regulados<br />

de modo artificioso e mantidos até mesmo independentemente<br />

do seu significado original. Chamava-se carmen<br />

tanto à forma religiosa como ao texto da lei. No <strong>ritual</strong>ismo<br />

do carmen a religião romana talvez encontre a própria unidade;<br />

39 no charme do cotidiano a crise contemporânea talvez<br />

encontre sua própria solução.<br />

Notas<br />

1. J. Baudrillard, Della seduzione. Bolonha, Cappelli, 1980.<br />

2. P. Bruckner e A. Finkielkraut, Il nuovo disordine amoroso., Milão, Rizzoli, 1979.<br />

3. A. Vergote, Charmes divins et déguisements diaboliques, in M. Olender e J. Sojcher<br />

(org.), La séduction. Paris, Aubier, 1980.<br />

4. R. Schilling, La religion romaine de Vénus depuis les origines jusqu’au temps de Auguste.<br />

Paris, De Boccard, 1954. Cf. também os artigos dedicados a Vênus reunidos em R.<br />

Schilling, Rites, cultes, dieux de Rome. Paris, Kliencksieck, 1979, bem como G.<br />

Dumézil, Idées romaines. Paris, Gallimard, 1969, que acrescenta o termo venustas aos<br />

indicados por Schilling.<br />

5. R. Radiguet, Le gote in fiamme. Parma, Guanda, 1960.<br />

6. G. Dumézil, Déesses latines et mythes védiques. Paris, Gallimard, 1956.<br />

7. Diodoro Sículo, Biblioteca storica, IV, 83, 6.<br />

8. G. B Marini, L’Adone, canto XX, estância, 92.<br />

9. M. Olender, Une magie de l’absénce, in M. Olender e J. Sojcher (org.). La séduction,<br />

op. cit.<br />

10. R. Radiguet, Il diavolo in corpo. Milão, Bompiani, 1964, p. 180.<br />

11. Permito-me remeter ao meu La società dei simulacri, Bolonha, Cappelli, 1980,<br />

pp. 180-3. Uma interpretação da relação entre Don Juan e a estátua, muito próxima<br />

da minha, está em J.-N. Vuarnert, Le séducteur malgré lui, in M. Olender e J. Sojcher<br />

(org.), La séduction, op. cit., p. 72. A importância da ligação entre Don Juan e a<br />

morte, que geralmente escapa aos intérpretes, está sublinhada por J. Rousset, Il mito<br />

di don Giovanni, Parma, Pratiche, 1980.<br />

60


12. D. De Rougemont, L’amour et l’Occident, Paris, U.G.E., 1963, p. 27.<br />

13. Tito Lívio, VIII, 9, 13. Sobre esse assunto, cf. H. Fugier, Recherches sur l’expression<br />

du sacré dans la langue latine. Paris, Les Belles Lettres, 1963, e Temps et sacré dans le<br />

vocabulaire religieux des Romains, in “Archivio di filosofia”, Roma, Mito e Fede, 1966.<br />

14. G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer. Munique, Beck, 1912, p. 289.<br />

15. R. Radiguet, Le gote in fiamme, op. cit.<br />

16. E. Benveniste, Il vocabolario delle istituzioni indoeuropee. Turim, Einaudi, 1976,<br />

vol. II, p. 384 e seguintes.<br />

17. P. Cipriani, Fas e nefas. Roma, Istituto di Glottologia dell’Università di Roma,<br />

1978, p. 19.<br />

18. É um tema recorrente no livro de J. Baudrillard, citado acima. Por exemplo: “A<br />

sedução é um destino: para que ele se cumpra é necessário que toda a liberdade esteja<br />

lá, mas esteja também por inteiro, como se estivesse voltada sonambulicamente<br />

para a própria ruína”.<br />

19. Um eco dessa definição se encontra na frase de P. Bruckner e A. Finkielkraut,<br />

no livro citado acima: “Curtos-circuitos eróticos emergem e perturbam por dentro<br />

as classificações adquiridas” (p. 286).<br />

20. M. T. Cicerone, De divinatione, I, 23.<br />

21. Tito Lívio, VI, 28.<br />

22. A. Brelich, Tre variazioni sul tema delle origini. Roma, 1955.<br />

23. Valerio Massimo, VII, 1.<br />

24. Plutarco, Vita di Silla, pp. 36-7.<br />

25. Appiano, De bellis civibilus, II, 69.<br />

26. R. Schilling, La religion romaine de Vénus..., op. cit., p. 315.<br />

27. E. Harrison, Prolegomena to the Study of Greek Religion. Cambridge, 1903, p. 95.<br />

28. E. Girard, La violence et le sacré. Paris, Grasset, 1972, p. 358.<br />

29. J. Derrida, La pharmacie de Platon, in La dissémination. Paris, Seuil, 1972.<br />

30. R. Schilling, op. cit., p. 133 e seguintes.<br />

31. H. Jeanmaire, Dionysos. Paris, Payot, 1951, p. 23.<br />

32. R. Girardi, op. cit., pp. 188-9.<br />

33. Ovídio, Fasti, III, 345, e Plutarco, Vita di Numa, 15.<br />

34. Tito Lívio, X, 42, 7.<br />

35. A. Bruhl, Liber pater. Origine et expansion du culte dionysiaque à Rome et dans le<br />

monde romain. Paris, De Boccard, 1953, parte II, cap. 3.<br />

36. G. Baffo, Venere e Adone, in Poesie, s. l. p., s. d.<br />

37. R. Girard, op. cit., p. 408.<br />

38. Plutarco, Vita di Numa, 12.<br />

39. Um tal sucesso contrasta claramente com a tese na qual se baseia o livro de<br />

Schilling (op.cit.). Para ele, o venus implica uma dedicação total à divindade que está<br />

no pólo oposto da fides, isto é, na contratação paritária entre o homem e o sobrenatural.<br />

Na sua opinião o primeiro se exprime na atitude religiosa de Rômulo, a segunda,<br />

na de Numa Pompílio; o primeiro é de caráter emocional e mágico-místico,<br />

a segunda, de caráter racional e jurídico; o primeiro tem a dimensão da interioridade<br />

e da súplica, a segunda, da exterioridade e do formalismo. Mas o caráter peculiar da<br />

religião romana não consiste exatamente na ultrapassagem dessas oposições?<br />

61


Capítulo II<br />

A erótica do trânsito<br />

1 O “eros” como intermediário<br />

Parece ter sido Platão o primeiro a intuir que o eros seja<br />

algo de intermédio entre os opostos: em O Banquete, de fato,<br />

Diotima,* uma mulher de Mantinéia, versada em coisas eróticas,<br />

define o eros como algo entre o mortal e o imortal, um intermediário<br />

entre o humano e o divino, um grande demônio que<br />

garante as relações entre os homens e os deuses. Essa definição<br />

de eros, entretanto, ficou, seja no tempo de Platão, seja na reflexão<br />

neoplatônica que veio a seguir, como algo um tanto marginal<br />

e substancialmente não pensado, porque prevaleceu o conceito<br />

de amor como conciliação, união, harmonia, o que O Banquete<br />

platônico a maioria dos outros interlocutores defende. Se<br />

a conciliação deve ser pensada como consonância entre elemen-<br />

* Diotima, sacerdotisa lendária de Martinéia e mestra de Sócrates. Platão, em sua<br />

obra O Banquete (201, d), a faz discorrer sobre a sua metafísica do amor (O. C. D.,<br />

p. 355). (N. do T.)<br />

62


tos semelhantes ou elementos dessemelhantes, ou como uma<br />

composição harmoniosa do idêntico consigo mesmo, esse é um<br />

problema que pertence precisamente à história da noção de<br />

amor, a qual tem pouco a ver com a idéia do eros como intermediário,<br />

como metaxú; não por acaso, tanto para a maior parte<br />

dos outros interlocutores de O Banquete platônico, como para<br />

Plutarco, o amor não é um demônio, mas um deus.<br />

De resto, que a noção de eros, como intermediário, seja<br />

impensável no quadro do pensamento platônico, e mais amplamente<br />

no âmbito da metafísica ocidental, resulta evidente<br />

das sucessivas significações que a própria Diotima lhe atribui:<br />

o fato de o eros ser algo entre o belo e o feio, entre o bom e o<br />

mau, entre a sabedoria e a ignorância, tem uma função precisa<br />

— a de “preencher o intervalo de maneira que o universo<br />

resulte intrinsecamente relacionado”. 1 Dessa maneira, a sua<br />

ação de intermediário não consegue manter-se, mas está<br />

correlacionada com uma unidade ao mesmo tempo mais sintética<br />

e articulada do que a garantida pelas outras concepções.<br />

Por isso, o discurso de Diotima conclui com a descrição do<br />

movimento ascensional do amor, que, partindo da beleza dos<br />

corpos, vai pouco a pouco cada vez mais para o alto, em direção<br />

às belas instituições, às belas ciências, chegando à contemplação<br />

do belo em si. A dimensão do trânsito, implícita<br />

na noção de intermediário, dissolve-se assim em favor daquela<br />

tendência a transcender, a superar, a ir além, que constitui um<br />

dos aspectos essenciais da metafísica ocidental.<br />

A reflexão de Georges Bataille sobre o erotismo parece,<br />

à primeira vista, o oposto da teoria platônica do amor.<br />

De fato, ela é caracterizada por um movimento descendente<br />

em direção às formas mais baixas e carnais da experiência<br />

sexual, em direção à prostituição e à orgia, à transgressão<br />

63


das regras e à profanação da beleza, à abertura de fendas<br />

impreenchíveis. Entretanto, a bem da verdade, o erotismo<br />

de Bataille é antes uma retomada às avessas do eros platônico<br />

do que uma dimensão radicalmente alternativa. Do modelo<br />

platônico ela reproduz até a atenção à dimensão intermédia<br />

do erotismo.<br />

Para Bataille, o erotismo seria uma função intermediária<br />

entre a vida e a morte, entre a paz e a violência: a regra<br />

— que impõe ordem e disciplina à vida humana, separandoa<br />

da animalidade — e a sua transgressão nascem e mantêmse<br />

juntas. A transgressão do tabu, que está essencialmente ligada<br />

ao erotismo, não é a sua abolição, mas o seu complemento:<br />

o tabu existe para ser violado. 2 A transgressão erótica<br />

parece, por isso, algo de diferente e irredutível, tanto à obediência<br />

da tradição como à inovação revolucionária; ela é uma<br />

passagem do momento profano do trabalho e da fadiga cotidiana<br />

ao momento sagrado do sacrifício e da festa. A sociedade<br />

é composta simultaneamente por ambos os momentos:<br />

a suspensão do tabu na experiência erótica configura-se portanto<br />

como um trânsito do mesmo para o mesmo.<br />

Entretanto, como já aparece em Platão, essa concepção<br />

do eros como intermediário não consegue manter-se. Na obra<br />

de Bataille prevalece ora um impulso em direção à unidade, à<br />

totalidade, à fusão — que se manifesta na identificação entre o<br />

erotismo e a tendência para a perda da própria individualidade<br />

—, ora um impulso oposto, em direção à profanação, ao<br />

pecado, ao mal, ao qual são reconhecidos uma dignidade e um<br />

valor autônomos. Bataille também, em última análise, não escapa<br />

à metafísica, limitando-se a inverter a direção do seu movimento.<br />

O eros não conduz mais à vida eterna das idéias, mas<br />

à experiência da morte; não falta, contudo, a sua tendência a<br />

64


superar, a transcender, a ir além; esta se exprime em Bataille na<br />

dépense, no excesso, no prosseguimento de uma experiência-limite.<br />

Como em Platão, a noção de um intermediário erótico<br />

assoma para ser logo rejeitada; o erotismo de Bataille é ora o<br />

amor, a santidade, a ascese, ora a libertinagem, o deboche, a<br />

obscenidade, porém não consegue permanecer entre esses termos<br />

opostos, sem identificar-se nem com uns nem com outros.<br />

2 O “carmen”* erótico<br />

Na tradição da metafísica ocidental, de Platão a Bataille,<br />

faltam condições que possam garantir a possibilidade de pensar<br />

no eros como intermediário, como metaxú, como Zwischen,<br />

como termo que fica no meio, mantendo os opostos como<br />

tais. Essas condições parecem ser fundamentalmente duas:<br />

uma estrutura sociolingüística que garanta a circulação do eros<br />

e uma prática erótica regida por critérios de discernimento<br />

independentes de avaliações ético-metafísicas. Ambas as condições<br />

estão presentes no mundo romano do século I a. C.<br />

Do seu encontro nasce a Ars amatoria de Ovídio, que representa,<br />

na cultura ocidental, uma alternativa radical à moral<br />

metafísica.<br />

Em primeiro lugar, é impossível pensar o trânsito erótico<br />

enquanto se considerar o eros a experiência de um sujeito<br />

que tende a um objetivo, seja este a contemplação da beleza<br />

em si, como no discurso de Diotima, seja este a profanação<br />

* O uso do termo na obra de Virgílio é freqüente e é identificado em muitos aspectos<br />

da sua extensão semântica. Na maioria das vezes é entendido como “composição<br />

em versos” ou, em sentido mais restrito, como “inspiração poética” ou “composição<br />

musical”.<br />

65


da beleza, como em Bataille. Ora, é verdade que a “experiência<br />

interior”, que Bataille identifica com o erotismo, não é um<br />

caminho de afirmação de si mesmo, mas, ao contrário, de perda<br />

de si, de aniquilamento, de desapropriação; entretanto, o caráter<br />

negativo de tal experiência inverte apenas a direção do<br />

percurso, mas não é suficiente para criar uma dimensão<br />

estruturadora, impositiva, conectiva, na qual o eros possa circular.<br />

Essa dimensão é a linguagem da poesia, do carmen erótico.<br />

Certamente O Banquete platônico e L’expérience interieure<br />

de Bataille também são obras de linguagem, todavia elas se<br />

baseiam no pressuposto de que o essencial não seja lingüístico,<br />

de que ele possa prescindir da linguagem porque, como diz<br />

Platão, o pensar é “um discurso que acontece no interior da<br />

alma, feito pela alma consigo mesma, sem voz”, 3 ou porque,<br />

como diz Bataille, o extremo excede, vai além, ultrapassa a linguagem,<br />

pois “ele nunca é literatura”, ele permanece diferente<br />

da poesia, mesmo quando a tem por objeto. 4<br />

O eros não é independente e separado da linguagem erótica,<br />

não é uma experiência da alma, um sentimento, um desejo,<br />

uma aspiração ou uma faculdade que exista anteriormente<br />

à linguagem. O seu caráter intermediário não consiste em<br />

ligar a experiência subjetiva com a palavra, em dar corpo<br />

lingüístico a uma alma apaixonada, mas sim em relacionar termos<br />

que já são dados, presentes, efetivos. Por isso, o erotismo<br />

é fundamentalmente diferente, seja do amor, seja da violência,<br />

e não pode identificar-se nem com um, nem com a outra:<br />

o amor pode muito bem prescindir da existência de uma<br />

situação sexual e a violência será tanto mais ela própria quanto<br />

mais for muda. O erotismo, ao contrário, pressupõe parceiros<br />

sexuais — que, de alguma maneira, ainda que secreta e<br />

implícita, já se dão e que, de alguma maneira, ainda que se-<br />

66


creta e implícita, ainda se negam —, além da existência de<br />

um universo lingüístico amplo e articulado que cobre, ainda<br />

que potencialmente, todos os principais topoi eróticos.<br />

Esses pressupostos encontram-se na elegia erótica romana,<br />

que, como mostrou admiravelmente Paul Veyne, 5 surge do<br />

encontro entre uma rede social, formada por cavaleiros destituídos<br />

de ambições políticas e por libertas de costumes livres, e uma<br />

rede mitológica, fornecida pela mitologia grega e pela poesia<br />

helenística. A poesia de Propércio, de Catulo, de Tibulo estabelece<br />

a relação do humano com o divino: de um lado, um mundo<br />

(ou melhor, um demi-monde) do qual fazem parte mulheres<br />

interessadas no dinheiro e no poder, mas que não são insensíveis<br />

ao charme do carmen, e homens que se dizem seus escravos,<br />

mas que se preocupam acima de tudo em assumir e manter<br />

o papel público de poeta; de outro, um céu (ou talvez um meiocéu)<br />

em cuja existência ninguém, na verdade, acredita, mas que,<br />

não obstante, constitui objeto de um saber sublime universalmente<br />

respeitado. Entre esse mundo e esse céu, a poesia erótica<br />

funciona como intermediária, mantendo ao mesmo tempo a distância.<br />

Comparar manteúdas como as heroínas dos nossos poetas,<br />

as Cíntias, as Délias, as Corinas, às grandes deusas da mitologia<br />

grega significa estabelecer a relação entre homens e deuses<br />

e, ao mesmo tempo, conservar a diferença. Ora, é verdade que<br />

os deuses se comportam sexualmente e falam na poesia erótica<br />

romana tal como a mauvaise societé dos poetas e das libertas, no<br />

entanto é exatamente essa afinidade que revela a natureza do<br />

trânsito erótico — eles fazem e dizem as mesmas coisas que os<br />

homens, mas essas coisas não são iguais. Elas parecem iguais, contudo<br />

na realidade estão distantes e são incomparáveis, essencialmente<br />

diferentes. A essência do erotismo consiste logo na manutenção<br />

da linha mediana, do espaço intermediário, do Zwischen.<br />

67


Seria impossível manter esse Zwischen se a linguagem,<br />

a poesia, o carmen, fosse alguma coisa de não essencial. O poeta,<br />

diz Heidegger, “mantém-se no Zwischen, entre os deuses<br />

e os homens. Mas é em primeiro lugar e unicamente nesse<br />

Zwischen que se decide quem é o homem e onde ele estabeleceu<br />

o seu ser-aí (Dasein)”. 6 O confronto entre os homens e<br />

os deuses não implica, em absoluto, igualdade. Ao contrário,<br />

o poeta mantém a desigualdade (das Ungleiche). “Ser este Desigual”,<br />

continua Heidegger, “voltado para o céu e para a terra,<br />

eis o que exige a essência que lhe foi atribuída; zelar por ela<br />

é o seu dever [...]. O acordo (Ausgleich) [...] não consiste em<br />

igualar pela ausência de diferenças, mas sim em deixar reinar<br />

os diferentes na sua diferença, sem desequilíbrios.” 7 Se o essencial<br />

fosse o sujeito e não o carmen, o êxito não seria erótico,<br />

mas ridículo ou blasfemo. O erotismo pressupõe que não<br />

seja a subjetividade do poeta a falar, que não seja a subjetividade<br />

individual da sua amante a interlocutora da sua poesia,<br />

mas que ambos estejam envolvidos numa linguagem que implique<br />

a comparação dos homens com os deuses e comporte<br />

toda uma série de gestos e de comportamentos rituais, convencionais,<br />

prefixados, típicos, amaneirados.<br />

3 A erótica do uso<br />

A segunda condição fundamental da possibilidade de pensar<br />

no eros como intermediário consiste na elaboração de uma<br />

“moral do meio”, que trate de um âmbito intermédio de ações<br />

e comportamentos que prescindam tanto do bem como do mal.<br />

Ora, nem Platão, que é por excelência o fundador da moral<br />

metafísica na qual o verdadeiro e o bem estão estritamente uni-<br />

68


dos, nem Bataille, que, pela sua atenção ao lado negativo dessa<br />

tradição metafísica, representa a inversão, podem fornecer sólidos<br />

pontos teóricos de referência a uma erótica que seja por<br />

definição irredutível à oposição entre o bem e o mal. Enquanto<br />

o eros for considerado um intermediário que ora pende para<br />

um lado, ora para o outro, fica-se no âmbito de uma dialética<br />

que oscila entre o termo positivo e o termo negativo, que pode<br />

inclusive identificá-los, mas que não chega nunca a pensar o entremeio,<br />

o Zwischen, na sua essencialidade.<br />

Foram os estóicos que teorizaram, mediante a sua definição<br />

das “coisas indiferentes” (adiáfora), a existência de um<br />

campo intermédio, que é, ainda assim, completamente autônomo<br />

e independente em relação aos extremos; dessa forma,<br />

o intermédio perde a sua dependência dos opostos e, como<br />

observa criticamente Plutarco, 8 “passa do centro para a extremidade”,<br />

constituindo um âmbito essencialmente diferente<br />

do aberto pelos pólos extremos. Ao dualismo dialético da<br />

tradição metafísica segue-se assim o monismo topológico do<br />

pensamento estóico. Entre as “coisas indiferentes”, não vigora,<br />

entretanto, uma igualdade que torna impossível a escolha;<br />

ao contrário, exercita-se uma discriminação que procede caso<br />

por caso, examinando as situações concretas a fim de determinar<br />

o que deve ser preferido e o que deve ser repudiado.<br />

Essa moral antimetafísica é um saber-fazer, uma prática de<br />

moderação, um comportamento que implica uma contínua<br />

adequação às circunstâncias, às ocasiões, ao dado, um balanceamento<br />

do mais e do menos, um discernimento sempre alerta<br />

e atento, um uso sábio de si, do prazer, das coisas.<br />

Michel Foucault mostrou 9 que as origens dessa erótica<br />

do uso são identificáveis já no pensamento grego da idade clássica,<br />

o qual elaborou uma série de prescrições dietéticas, de<br />

69


conselhos e de avaliações, orientada para a contenção das paixões.<br />

O aspecto mais importante da sua pesquisa sobre a sexualidade<br />

antiga consiste em ter evidenciado o significado essencialmente<br />

erótico da pederastia grega. Esta, de fato, não<br />

pode ser reduzida nem ao amor nem à violência: entre erastés,<br />

o amante, e erómenos, o amado, se instaura uma relação problemática,<br />

ao mesmo tempo amigável e conflitiva. Tal problemática<br />

depende não só da diferença de idade, porque o amante<br />

pertence a uma geração diferente da do amado, que apenas<br />

entrou na adolescência, não só da dimensão pedagógica, da<br />

paideía, da iniciação na vida adulta, que confere ao amante um<br />

papel análogo ao do pai, do mestre, do professor, mas também<br />

e sobretudo do fato paradoxal de que aquele que está destinado<br />

a desempenhar, quando adulto, um papel masculino e<br />

sexualmente ativo seja introduzido na sexualidade como objeto<br />

de um prazer passivo, do qual é até duvidoso que participe<br />

ou que possa participar. Todos esses elementos criam uma situação<br />

que é erótica no sentido mais profundo da palavra, isto<br />

é, inauguram uma relação intermediária em comparação aos<br />

pólos opostos da amizade e da inimizade, do acordo e do desacordo,<br />

da união e da luta. Aliás, segundo Foucault, a relação<br />

pederástica é o único tipo de relação sexual que conquistou<br />

na Grécia antiga essa densidade erótica: o menino não devia<br />

comportar-se passivamente, tornar-se o parceiro condescendente<br />

da volúpia do outro, ceder de modo incondicional aos<br />

seus caprichos, mas, embora forçado a um papel sexual objetivamente<br />

passivo, aprender a fazer-lhe frente, a manter a vigilância,<br />

a recusar no exato momento em que se entregava.<br />

Por mais que o período helênico marque uma profunda<br />

transformação da relação pederástica, que perde a sua dimensão<br />

erótica intermediária para adequar-se ao modelo da<br />

70


elação amorosa heterossexual, nele a erótica do uso transforma-se<br />

em uma verdadeira arte de viver, na qual a noção estóica<br />

de conveniente toma o lugar da ação moral perfeita, embasada<br />

metafisicamente. Das numerosas obras dedicadas pelos estóicos<br />

à erótica, nada restou; o essencial, porém, não é tanto a<br />

opinião deles sobre este ou aquele assunto referente à vida sexual,<br />

mas a possibilidade de generalizar — muito além do caso<br />

historicamente específico do amor pederástico grego — um<br />

comportamento que é irredutível tanto à conciliação como à<br />

oposição, orientado para a transformação do presente, do<br />

dado, da ocasião, em circunstância oportuna, mediante o exercício<br />

de um discernimento mais do que nunca atento às situações<br />

concretas e alheio às paixões.<br />

De resto, a atenção ao que é intermédio, à linha mediana,<br />

ao intervalo, possui no pensamento estóico raízes muito<br />

profundas que penetram na sua concepção de mundo e de<br />

tempo. O presente é para eles um presente vasto, que ocupa<br />

um intervalo (diástema), uma extensão na qual se realiza uma<br />

passagem, um trânsito do mesmo para o mesmo. 10 A vida humana<br />

se desenvolve num intervalo: o essencial não é o ponto<br />

de chegada, o objetivo, o fim a ser alcançado, e sim a maneira<br />

como o homem se movimenta, no entremeio. Como dirá<br />

Marco Aurélio: “Tudo aquilo que esperas alcançar depois de<br />

um longo período, podes obtê-lo logo, se não recusares a ti<br />

mesmo”. 11 A erótica do uso está exatamente nessa oíkesis, nesse<br />

permanecer no intervalo, nessa apropriação do dado, nesse demorar-se<br />

no Zwischen.<br />

71


4 A arte amatória<br />

A Ars amatoria de Ovídio é o ponto de confluência da<br />

elegia erótica romana com a erótica do uso de ascendência<br />

estóica, a obra onde a alternativa paradoxal na qual essas duas<br />

experiências tinham encerrado o erotismo antigo encontra solução:<br />

ou servir, mesmo que com distanciamento humorístico<br />

e com ironia — movimentos passionais que a filosofia e a<br />

opinião corrente da época julgavam inconvenientes —, ou fechar-se<br />

numa disciplina que, nascida da exigência de um uso<br />

moderado dos prazeres, acabava por levar à mais rigorosa austeridade<br />

e à negação do eros. Para Ovídio, a paixão deve ser<br />

vencida mediante a sua aceitação e apropriação, e não eludida<br />

humoristicamente, nem transcendida e sublimada na castidade.<br />

O intuito de Ovídio ao propor-se como praeceptor Amoris 12<br />

implica, portanto, uma passagem, um trânsito do amor<br />

incontrolado e selvagem (ferus) ao amor sustentado com arte<br />

terna (placida arte). Assim, com Ovídio o amor torna-se objeto<br />

de uma arte, de uma técnica, que o transforma profundamente,<br />

respeitando, entretanto, a sua essência: o amor não<br />

deve ser considerado mero instrumento de produção literária<br />

(como às vezes acontecia com o eros da tradição elegíaca), nem<br />

um instrumento de educação política (como às vezes acontecia<br />

com o eros pederástico grego). A passagem garantida pela<br />

arte é do mesmo para o mesmo — o leitor do poema, ao tornar-se<br />

um conhecedor, colherá novos amores. O sentimento<br />

e o desejo subjetivo não são de modo algum suficientes à plenitude<br />

do amor; ao contrário, são às vezes contraproducentes.<br />

A ars amatoria torna o amor intermediário de si mesmo,<br />

porque o libera da paixão. O amor descobre a própria essência<br />

através de um deslocamento que o torna diferente em re-<br />

72


lação a si mesmo, e no entanto, indiscernível em relação a si<br />

mesmo. A ars amatoria consiste exatamente nesse deslocamento<br />

que, contudo, deve permanecer imperceptível: “Si latet ars,<br />

prodest; adfert deprensa pudoren/ Atque adimit merito<br />

tempus in omne fidem” (II 313-4) (“É útil a arte, é verdade,<br />

mas só se escondida; quando ela aparece, traz vergonha e depois<br />

tira para sempre toda confiança nas tuas palavras”).<br />

O domínio de si mesmo, o autocontrole, a vigilância nunca<br />

devem faltar. Deixar-se levar pela espontaneidade quer dizer<br />

auto-excluir-se imediatamente do sucesso, da vitória, da posse,<br />

que se tornam, assim, elementos essenciais do amor regido pela<br />

ars. “Si vox est, canta; si mollia bracchia, salta/ Et quacunque<br />

potes dote placere, place/ Ebrietas, ut vera nocet, sic ficta,<br />

iuvabit” (I 593-5) (“Canta, se tens voz; se tens vontade, dança;/<br />

com tudo aquilo que possas agradar, agrada./ A verdadeira<br />

embriaguez pode causar-te dano,/ a simulada ajudar-te”).<br />

A ars amatoria constitui a culminação da elegia erótica.<br />

Para Ovídio, como para os poetas elegíacos que o precederam,<br />

o amor e o carmen estão estreitamente ligados. Ovídio<br />

também convida a celebrar com a poesia e com os modelos<br />

mitológicos tanto as mulheres cultas, que são rarissima turba,<br />

como as outras, que querem fazer crer que são cultas (II,<br />

283). Mas ele não limita o amor a uma estrutura sociolingüística<br />

fechada no mundo dos poetas e das suas amantes,<br />

abrindo-o para todos: o amor é uma arte que todos podem e<br />

devem aprender. Os preceitos de Ovídio dirigem-se a todos<br />

os homens e a todas as mulheres. Essa extensão da erótica<br />

elegíaca realiza-se mediante a adoção de uma escolha técnica<br />

prévia que lhe garanta uma circulação universal. O ingresso<br />

em tal circuito é, de resto, mais importante que a realização<br />

do ato sexual em si e constitui o verdadeiro sucesso: tanto<br />

73


assim que o próprio Ovídio será, mais tarde, autor de outro<br />

tratado, Remedia amoris, que se propõe a um objetivo aparentemente<br />

oposto ao de Ars amatoria — curar as feridas produzidas<br />

pelo insucesso amoroso. No entanto, esse segundo tratado<br />

também é muito significativamente colocado sob a proteção<br />

do Amor, que exorta Ovídio a concluir a obra. A identificação<br />

entre amor e carmen levada a cabo pelos poetas<br />

elegíacos que precederam Ovídio se enriquece assim com um<br />

terceiro termo, a ars, a técnica, que introduz uma duplicação,<br />

um deslocamento, os quais apenas asseguram uma vitória, independentemente<br />

do caso. A ars amatoria baseia-se na crença<br />

de que não existe uma mulher que lhe possa resistir (I, 270);<br />

é possível encontrar uma, entre tantas, que se negue, mas essa<br />

recusa é tutus, sem perigos, porque a ars traz o remédio.<br />

A Ars amatoria constitui também o coroamento da erótica<br />

do uso. “Usus opus movet hoc (I, 29) (“A ditar-me o poema<br />

está a experiência”). Para Ovídio, também a erótica tem<br />

um significado político-didático. De um lado, a relação entre<br />

o amante e a amada, entre o homem e a mulher, é comparado<br />

a uma militia (II, 223), os preceitos são arma (III, 1), o<br />

êxito é sempre semelhante a uma vitória militar. De outro<br />

lado, entretanto, está claro que o amor implica uma convergência<br />

de intentos pelo menos na recíproca de dar e receber<br />

prazer. As batalhas — diz Ovídio (II, 175-6) — travam-se com<br />

os partos,* não com a dileta amiga. Sob esse aspecto, a relação<br />

erótica revela-se, pois, afim com a relação política, entendida<br />

no sentido muito geral de relação intermédia entre guerra<br />

e paz, de capacidade de tratar com os próprios semelhantes,<br />

de usus rerum. Essa afinidade, portanto, não se baseia, como<br />

* Habitantes da Pártia. (N. do T.)<br />

74


na pederastia grega, no desenvolvimento de um autocontrole<br />

que visa ao domínio sobre outros, porém é mais essencial e<br />

intrínseca. A erótica não é uma propedêutica na qual são iniciados<br />

os adolescentes destinados à vida política, mas já é ela<br />

mesma a técnica política completa, arte do conveniente e da<br />

oportunidade. Ora, considerar a erótica uma aplicação particular<br />

do usus rerum estóico à sexualidade, ou considerar a política<br />

uma generalização da ars amatoria a todas as relações,<br />

é, no fundo, a mesma coisa — erótica e política revelam uma<br />

pertinência recíproca pelo fato de serem ambas práticas<br />

intermédias entre oposição e conciliação, entre polêmica e estética.<br />

Nesse caso, também, a obra de Ovídio constitui uma<br />

generalização e uma universalização. Não é mais um único<br />

indivíduo que é introduzido privadamente na erótica do uso:<br />

a Ars amatoria pretende ensinar a todos o usus rerum, a técnica<br />

erótico-política que permite a disponibilidade dos corpos<br />

alheios e dos espíritos alheios. Disponibilidade não quer dizer<br />

monopólio, muito menos poder absoluto. Ovídio é muito<br />

liberal e convida o amante a tolerar pacientemente os rivais,<br />

a deixar que a amada vá e venha como e onde queira<br />

(II, 544), tampouco quer condenar o amante a uma vida inteira<br />

ao lado de uma única mulher (II, 387). O importante é<br />

pôr em circulação os corpos e os espíritos, o seu trânsito, não<br />

a sua imobilização em relações de poder e de domínio fixos e<br />

exclusivos. A erótica do uso não é um segredo; ao contrário,<br />

é necessário que todos a aprendam. Ovídio, depois dos dois<br />

primeiros livros da Ars amatoria, dedicados aos homens, escreve<br />

um terceiro livro dedicado às mulheres, a fim de que<br />

estas possam entrar em batalha com igualdade de armas. O<br />

que importa é a ampliação do quadro, da rede, do Gestell erótico-político,<br />

e tal ampliação é feita em benefício de todos.<br />

75


5 A provocação amatória<br />

A arte amatória consta de duas partes essenciais: a provocação<br />

— ou seja, como se aproximar e conquistar aquela a<br />

que se quer amar —, à qual é dedicado o primeiro livro da<br />

Ars, e o emprego — ou seja, como manter o amor por muito<br />

tempo — ao qual é dedicado o segundo livro da obra. O ponto<br />

de partida de Ovídio é a comparação entre o amante e o<br />

caçador. Não obstante essa semelhança se repita freqüentemente<br />

no poema, ela é inadequada, como parece reconhecer<br />

o próprio Ovídio, não apenas porque o amante tem à mão o<br />

que procura, uma vez que Roma oferece tantas mulheres e<br />

de tal variedade quantas estrelas há no céu (I, 59), mas principalmente<br />

porque o confronto entre o amante e a presa esconde<br />

o verdadeiro significado da provocação, da rogatio, do<br />

Heraus-forderung — é ao mesmo tempo um pedir, exigir, pretender,<br />

desafiar... mas também um favorecer, promover, extrair,<br />

transportar... A provocação baseia-se no pressuposto de<br />

que a vontade do amante e a vontade da amada sejam<br />

secretamente a mesma: “Pugnando vinci se tamen illa volet”<br />

(I, 664), a recusa esconde o desejo da amada de ser vencida<br />

resistindo, porque “quod iuvat, invitae saepe dedisse volunt”<br />

(I, 672), aquilo que a elas agrada é dar à força aquilo que<br />

querem dar. Enquanto o adepto da ars pode esperar para si<br />

todas as mulheres (I, 343), à proporção que a demanda se<br />

encontra com a oferta, a súplica se espelha no acolhimento.<br />

A passagem é enfim do mesmo para o mesmo — a mulher<br />

cede e cede ainda mais quando demonstra não querer (I, 274).<br />

Quando nega, tem medo de ser ouvida e “quer aquilo que<br />

não pede”, “ut instes”, que tu insistas (I, 484). Certamente,<br />

tudo isso não deve ser entendido como uma justificação para<br />

76


a violência, para a rusticitas, ou, pior, para o estupro; essa passagem<br />

nem sempre é simples: “Nec semper Veneris spes est<br />

profitenda roganti”* (I, 717) “Muitas cobiçam o que foge, a<br />

quem as assedia oferecem desdém”. Ovídio, portanto, aconselha<br />

igualmente moderação e silêncio, calma e cortesia.<br />

Freqüentemente a passagem para o amor vem através da amizade:<br />

“Qui fuerat cultor, factus amator erat”** (I, 720). O<br />

importante é saber adaptar-se aos inumeráveis casos particulares,<br />

como Proteu, que “ora será um leão, ora uma planta,<br />

ora um javali eriçado” (I, 759). “Mille animos excipe mille<br />

modis”*** (I, 754), conclui Ovídio.<br />

A provocação amatória implica o conhecimento dos lugares<br />

e de tempos oportunos, baseia-se em um saber do tópos<br />

e do kairós articulado e complexo, desenvolve-se mediante deslocamentos<br />

feitos de improviso e oportunidades que não se<br />

devem deixar escapar. Ovídio demora a falar dos lugares propícios<br />

para aproximar-se das mulheres e dirigir-lhes a palavra.<br />

Esses lugares já estão todos determinados, são comuns, pertencem<br />

à vida cotidiana: os pórticos, os templos, os teatros,<br />

os jogos, os hipódromos, os triunfos, as refeições, os banquetes,<br />

a praia de Baia, o bosque sagrado de Nemos... O que fica<br />

mais difícil é agir com destreza entre os deslocamentos e as<br />

substituições indispensáveis à aproximação e à conquista.<br />

Onde há multidão é lei (lex) tocar a puella.**** Mas a provocação<br />

pressupõe toda uma série de duplicações que envolvem<br />

muitos problemas. Por exemplo, é oportuno possuir, além<br />

da senhora, a escrava? E em que ordem de precedência? Ou,<br />

* Nem sempre a expectativa de Vênus é um convite declarado. (N. do T.)<br />

** Quem fora amigo, torna-se amante. (N. do T.)<br />

*** Para mil almas diferentes, emprega mil meios para prendê-las. (N. do T.)<br />

**** Mulher jovem. (N. do T.)<br />

77


então, que tipo de relacionamento manter com o marido da<br />

mulher que se corteja? Ou, ainda, como substituir o amante<br />

que a mulher perdeu? Se depois passamos aos presentes, às<br />

trocas, à medida do dar e receber, é necessário o exercício de<br />

um grande “esprit de finesse”. De fato, não é fácil, pensa Ovídio,<br />

oferecendo só palavras, invocações ou versos, sair-se vitorioso<br />

sobre quem compra com dinheiro ou com presentes caros<br />

as graças femininas; e, no entanto, “hoc opus, hic labor est,<br />

primo sine munere iungi” (I, 451) — “este é o trabalho, esta<br />

a fadiga: chegar até ela sem nenhum presente”. A provocação,<br />

portanto, contém também um aspecto de desafio — é o<br />

desafio que o poder lança à riqueza. “Non ego divitibus venio<br />

praeceptor amandi”* (II, 161), “pauperibus vates ego sum,<br />

quia pauper amavi”** (II,165). Esse desafio baseia-se na secreta<br />

cumplicidade entre o carmen e o amor, entre o saber e o<br />

erotismo, entre a literatura e a ars amatoria.<br />

A provocação amatória é uma combinação de audácia e<br />

de prudência; é necessário ousar ou retrair-se, falar ou calar,<br />

tentar ou renunciar no momento oportuno. Reconhecer a<br />

oportunidade (o kairós) é o mais difícil, porque a esse respeito<br />

não vigora nenhuma regra fixa — as mesmas situações nunca<br />

são iguais, e um “mesmo assalto alcança maior vantagem<br />

porque desferido no momento justo” (I, 402). O tratado<br />

ovidiano aconselha evitar de todas as maneiras os dias nos quais<br />

se dão presentes, os aniversários e datas semelhantes, e aconselha<br />

ater-se a uma repetição escrupulosa dos gestos da amada:<br />

“Quando ela se levanta, levanta-te; fica sentado enquanto<br />

ela estiver sentada; por um capricho dela consome todo o teu<br />

* Não me apresento aos ricos como preceptor na arte amatória. (N. do T.)<br />

** Sou o poeta dos pobres, pois enquanto pobre amei. (N. do T.)<br />

78


dia” (I, 501-2). O mesmo conselho é dado às mulheres: “Olha<br />

quem te olha; tenha quem te sorri o teu sorriso; se te faz um<br />

sinal, devolve-lhe o sinal” (III, 513-4). Se o amor é pela sua<br />

natureza algo de intermédio, que vive de pequenas mutações<br />

e de imperceptíveis deslocamentos, de trânsitos, nem por isso<br />

reclama uma conduta indecisa ou confusa. Ao contrário,<br />

Ovídio sublinha exatamente a necessidade de agir com a máxima<br />

energia, uma vez que se tenha decidido: “Aut numquam<br />

temptes aut perfice” ( I, 389) (“Nem tentar ou ir a fundo!”).<br />

A provocação implica nunca deixar as coisas pela metade: “Se<br />

tu a tentaste deves possuí-la; deixa-a, se quiseres, mas depois<br />

de possuí-la” (I, 394). No tempo da provocação nada é de fato<br />

irreversível e estável; uma situação favorável pode repentinamente<br />

transformar-se em hostil e em todo caso não pode ser<br />

conservada indefinidamente: “Quem, tendo beijado, não usufruiu<br />

o resto, que perca também os beijos” (I, 667).<br />

6 O emprego amatório<br />

Manter a disponibilidade de uma conquista amorosa é,<br />

segundo Ovídio, tão difícil quanto alcançá-la. A segunda parte<br />

da Ars amatoria reclama capacidade não inferior à primeira<br />

— “Manter a conquista não vale menos do que tê-la alcançado:<br />

esta é às vezes um mero acaso; mantê-la é fruto de arte<br />

refinada” (II, 13-4). No emprego, no Bestellen, na manutenção<br />

culmina a arte, porque isso implica um presente completamente<br />

expandido, no interior do qual seja possível moverse.<br />

Não se trata tanto de acorrentar o amor, que parece “sempre<br />

errante pela terra” (II,18), nem de fazer dele a fundação<br />

(Grund) sobre a qual construir o edifício da própria vida, mas<br />

79


de fazê-lo remanere, como algo presente e disponível, como<br />

um fundo (Bestand), uma reserva, um estoque. Ovídio recorda<br />

a respeito disso a lenda de Dédalo e Ícaro; o pai aconselha<br />

o filho a não voar muito alto, porque o sol derreteria as asas<br />

de cera, nem muito baixo, porque a água do mar ensoparia<br />

as penas, mas inter utrumque, entre um e outro, no entremeio.<br />

Para tenere puellam é necessária a virtude da obediência diante<br />

do presente. Ovídio a descreve nos termos de uma militia<br />

estóica: “Faz sempre o que ela desejar” (II, 198); “seja ela a<br />

impor suas leis aos traços do teu rosto” (II, 202). Só assim,<br />

cedendo, será possível sair vencedor; por isso, jogue fora o<br />

orgulho, o fastus, quem quiser manter o usus.<br />

O espaço intermédio do erotismo, o entremeio, não<br />

ocorre só entre o belo e o humano, entre o dissídio e a harmonia,<br />

mas também entre o bonito e o feio. Ambos devem<br />

ser deslocados, mudados, detournés, do seu lugar natural, se<br />

se deseja que o amor continue sendo algo de presente, sempre<br />

disponível. De fato, o belo é algo de muito efêmero, instável,<br />

precário — ele anuncia o próprio fim. Para ser amável não bastam<br />

o rosto (facies) e a beleza (forma): “Forma bonum fragile<br />

est”* (II, 113). A beleza deve ser deslocada para alguma coisa<br />

mais sólida, mas ao mesmo tempo mais indeterminada, por<br />

exemplo, para a facundia, a capacidade de contar as mesmas<br />

coisas (idem) de maneiras diferentes (aliter), como Ulisses fazia<br />

com Calipso; ou a indulgentia, que nutre o amor de doçura,<br />

de vênia, de benevolência, ou o obsequium, o dizer sim, o<br />

ser conciliatório, que “doma até os tigres e os leões numídicos”<br />

e “curva o touro sob a rústica canga” (II, 183-4).<br />

* A beleza é um bem frágil. (N. do T.)<br />

80


Se o belo deve ser removido para “aliquid corpore pluris”,<br />

algo mais estável em sua presença do que o corpo, o feio, ao<br />

contrário, deve ser deslocado mediante estratagemas técnicos<br />

de caráter físico. Aqui, Ovídio inverte a opinião geral, segundo<br />

a qual o feio se remedia com as qualidades do espírito, enquanto<br />

o belo basta a si mesmo. A sua atenção à cosmética não<br />

é portanto fatuidade, mas nasce dessa singular inversão. Igualmente<br />

importante é um saber topológico que saiba pôr em evidência<br />

os aspectos mais belos do corpo e ocultar os feios: a<br />

que tiver um belo rosto deite de costas; quem tiver um ventre<br />

cheio de rugas cavalgue no amplexo, como em fuga usam fazer<br />

os partos, e assim por diante (III, 775 e seguintes). Onde<br />

os estratagemas cosméticos e topológicos falham, paradoxalmente<br />

tem sucesso a repetição — “Àquilo que desagrada, habitua-te:<br />

aos poucos não lhe darás mais importância” (II, 674);<br />

“pouco a pouco o tempo (dies) faz desaparecer do corpo todo<br />

defeito; aquilo que assim foi não o é mais” (II, 653-4). A mora,<br />

a multiplicação do mesmo, o seu deslocamento repetido apaga<br />

o negativo: “Assim, narinas desacostumadas não suportam a<br />

podridão do couro; depois, pouco a pouco não a percebem<br />

mais, acostumadas” (II, 655-6). O que é repetido deixa de ser<br />

feio: a cópia indiscernível do original é essencialmente diferente<br />

deste, exatamente porque anula sua negatividade.<br />

O feio é, além disso, objeto de um terceiro tipo de deslocamento<br />

amatório, que se baseia na proximitas entre defeitos<br />

e qualidades: “Nominibus mollire licet mala”* (II, 657). Podese<br />

chamar morena àquela que tem a pele mais escura do que o<br />

breu ilírico, pode-se comparar a estrábica a Vênus, pois tal defeito<br />

lhe era atribuído pelo mito, a sem graça será semelhante a<br />

* Os males podem ser mitigados com palavras apropriadas. (N. do T.)<br />

81


Minerva, que tinha os olhos claros, de esbelta será chamada a<br />

magra, de cheia de carnes a gorda... Esse deslocamento se baseia<br />

em um pressuposto estóico, na pronoia, segundo a qual, contrariamente<br />

ao que pensam epicuristas e céticos, é necessário<br />

dar valor positivo ao que nos circunda. De resto, a presença mais<br />

insatisfatória é sempre melhor do que a ausência, que é apenas<br />

ideal — o trânsito é possível apenas no interior daquilo que está<br />

presente. Sem presença, não há diferença alguma.<br />

Enfim, quando esses três deslocamentos não bastam,<br />

porque a juventude vai fenecendo e a velhice já avança com<br />

passos silenciosos, é a operum prudentia, o saber, a habilidade,<br />

a prática nos trabalhos da carne, que transforma o feio.<br />

O usus, a experiência, “aquilo que faz o artista” (II, 676), desloca<br />

e multiplica infinitamente as uniões carnais; as que se tornam<br />

expertas pela idade, “venerem iungunt per mille figuras”*<br />

(II, 679), sentem e provocam uma “non inritata voluptas”**<br />

(II, 681). O belo e o feio estão ligados à forma, facies, figura,<br />

species, ao aspecto, à estética, enquanto a ars amatória é feita<br />

de sinais, de gestos, de movimentos. Esta dissolve a forma na<br />

voluptas, no gaudium, no trânsito da voluptas e do gaudium<br />

de um amante para outro. A passagem é do mesmo para o<br />

mesmo: ambos devem colaborar ex aequo. Eis, segundo<br />

Ovídio, o primado da sua ars amatoria sobre a erótica pederástica,<br />

que não garante a circulação do prazer, a resolutio das<br />

subjetividades individuais dos amantes, exatamente porque —<br />

pelo menos na sua forma pedagógica grega — impede que o<br />

jovem participe do prazer: “Esta é a razão pela qual não me<br />

seduz o amor dos meninos” (II, 684). O ponto de chegada<br />

* Realizam o ato caro a Vênus de mil maneiras. (N. do T.)<br />

** Um prazer que não precisa de estímulos. (N. do T.)<br />

82


da arte amatória não é, entretanto, a unidade, a fusão, a harmonia<br />

neoplatônica, e sim a transmissão do prazer, o seu transitar<br />

pelos corpos, o seu suscitar sinais e gestos — “quero que<br />

ela me diga para ir mais depressa (morer) ou mais devagar<br />

(substineam)” (II, 690). Assim o auge da arte se realiza no<br />

trânsito do prazer de um corpo para o outro.<br />

Notas<br />

1. Platão, Simposio, 202 e, Bari, Laterza, 1946, p. 122.<br />

2. G. Bataille, L’erotismo. Milão, Sugar, 1962, p. 74.<br />

3. Platão, Sofista, 263 e, Bari, Laterza, 1965.<br />

4. G. Bataille, L’expérience intérieure, in Oeuvres complètes, vol. V, Paris, Gallimard,<br />

1973, p. 64.<br />

5. P. Veyne, L’élégie érotique romaine. L’amour, la poésie et l’occident. Paris, Seuil, 1983.<br />

6. M. Heidegger, Erläuterungen in Hölderlins Dichtung. Frankfurt, Klostermann,<br />

1971, p. 47.<br />

7. Ib., p. 105.<br />

8. Plutarco, De communibus nititiis adversus Stoicos, XII.<br />

9. M. Foucault, Storia della sessualità. L’uso dei piaceri. Milão, Feltrinelli, 1984.<br />

10. V. Goldschmidt, Le système stoïcien et l’idée de temps. Paris, Vrin, 1977, 3º, p. 96.<br />

11. Marco Aurelio, Ricordi, XII, 1. Milão, Rizzoli, 1975.<br />

12. P. Ovídio Nasone, L’arte di amare. Milão, Rizzoli, 1977.<br />

83


Capítulo III<br />

Entre a veste e o nu<br />

1 Magnificência da veste e verdade do nu<br />

O erotismo se manifesta nas artes figurativas como relação<br />

entre o vestido e o nu. A sua condição é, portanto, a<br />

possibilidade de um movimento, de um trânsito de um para<br />

o outro: se a um dos dois termos for atribuído um significado<br />

primário e essencial em prejuízo do outro, faltará a própria<br />

possibilidade do trânsito e, logo, do erotismo. Nesse caso,<br />

à veste ou ao nu é atribuída uma dimensão absoluta.<br />

À veste é atribuída uma primazia onde quer que se<br />

considere a figura humana essencialmente vestida, onde quer<br />

que se pense que o homem se torna tal, distinguindo-se dos<br />

animais, exatamente graças ao fato de estar vestido: a veste<br />

é o que confere ao homem a sua identidade antropológica,<br />

social, religiosa — em uma palavra, o seu ser. Disso deriva<br />

o fato de a nudez ser tida como uma situação negativa, como<br />

privação, perda, espoliação: os adjetivos nu, despido, desnudo<br />

qualificam exatamente o estado de quem está privado de al-<br />

84


guma coisa que deveria ter. No âmbito de tal concepção, que<br />

foi muito difundida entre os povos do Oriente Médio (egípcios,<br />

babilônios, hebreus), o estar despido significa achar-se<br />

em uma condição aviltante e vergonhosa, típica do cativeiro,<br />

da escravidão, da prostituição, da demência, da maldição,<br />

da impiedade.<br />

No Antigo Testamento, a primazia da veste adquire um<br />

significado metafísico, indo ao encontro da noção de kãbôd,<br />

que quer dizer “magnificência”, “honra”, e que etimologicamente<br />

se refere a algo pesado, grave, importante. A veste magnífica<br />

(bègèd kãbôd), da qual fala o Siracide, refere-se à veste<br />

sacerdotal de Aarão, a quem a tradição bíblica atribui a instituição<br />

do sacerdócio (Si 45, 9), e aos paramentos solenes do<br />

sumo sacerdote Simão, que, “quando revestia os mais belos<br />

ornamentos, subindo os degraus do santo altar dos sacrifícios,<br />

enchia de glória todo o santuário” (Si 50, 11-2). 1 A conexão<br />

entre veste e sacerdócio, entre cobertura e serviço de Deus,<br />

baseia-se no fato de que o próprio Deus “vestiu” a terra com<br />

a obra da criação e ele mesmo se manifesta “revestido de majestade<br />

e esplendor/ envolto em luz como em um manto” (Sal<br />

104, 1-2). A magnificência da veste sacerdotal não é mais do<br />

que um reflexo da magnificência do kãbôt de Jeová: 2 o seu<br />

caráter só pode ser entendido com referência ao transcendente,<br />

que está essencialmente “vestido”, que em todas as relações<br />

com os homens vela, cobre, veste o seu poder, porque os homens<br />

não podem suportar a visão direta de Deus. Diz o Senhor<br />

a Moisés: “Tu não poderás ver a minha face, porque nenhum<br />

homem pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33, 20).<br />

Estreitamente relacionada com a veste está a morada de Deus,<br />

o lugar coberto, a habitação, a Tenda de Reunião que Moisés<br />

institui junto com o sacerdócio de Araão — a Tenda é edi-<br />

85


ficada ao mesmo tempo em que são feitas as vestes sacerdotais<br />

(Ex 39). A construção do Templo por obra de Salomão<br />

representa o coroamento dessa perspectiva — a casa estável<br />

de Deus está associada ao seu kãbôd, à sua glória. 3<br />

No pólo oposto dessa primazia metafísica da veste está<br />

a experiência grega da nudez, que, mesmo antes de manifestar-se<br />

na arte, se expressa como ideal ético-estético da kalokagathía*<br />

nos jogos das festas pan-helênicas. Aqui a figura<br />

humana na sua dimensão ideal se apresenta essencialmente<br />

nua. Nessa celebração da nudez os gregos consideravam-se<br />

diferentes de todos os outros povos. Para eles, a nudez não<br />

é mais uma coisa vergonhosa, ridícula e desonrosa; ao contrário,<br />

ela assume um significado paradigmático no qual se<br />

encontram uma experiência religiosa que atribui à clareza do<br />

ver um papel determinante e uma concepção agonística da<br />

vida, de origem aristocrática, que considera a vitória e a sua<br />

gloriosa celebração um fim a ser perseguido com a máxima<br />

energia.<br />

Com Platão, a primazia da clareza da visão adquire um<br />

significado metafísico: no mito da caverna, o caminho que<br />

leva à verdade conduz progressivamente da visão de sombras<br />

e de imagens especulares à contemplação das idéias. Dessa<br />

concepção da verdade como exatidão do olhar e da substância<br />

eterna como objeto de uma visão intelectual nasce a metáfora<br />

da verdade “nua”: sobre a base dessa metáfora, todo o<br />

processo do conhecimento é considerado uma retirada dos<br />

véus do objeto, um despojá-lo totalmente, iluminando-o em<br />

todas as suas partes. 4 Por isso, o próprio corpo é pensado<br />

como um obstáculo, um túmulo da alma, a qual só quando<br />

* O caráter de conduta de um homem, honestidade perfeita, probidade escrupulosa.<br />

(N. do T.)<br />

86


está nua — psichè gumnè toû sómatos* (Crat. 403 b) — adquire<br />

total liberdade. Ligada a essa primazia do ver a olho nu<br />

está a própria noção de theoría, que tanta importância tem<br />

no pensamento grego — 5 segundo uma hipótese etimológica,<br />

a palavra theoría, derivada da fusão de theá, “visão”, “olhar”,<br />

com ora, “desvelo”, “custódia”, “solicitude”, “cuidado”, implicaria<br />

o cuidado do ver, a potencialização metafísica de ver,<br />

para além de todas as vestes, trajes, invólucros, a coisa nos<br />

seus detalhes precisos. 6 Em tais premissas metafísicas baseiase<br />

a representação do nu na estatuária grega clássica: ela é concebida<br />

como a forma ideal da figura humana, da qual os corpos<br />

fenomênicos são as réplicas. 7<br />

Tanto no judaísmo como no helenismo, portanto, parecem<br />

profundamente arraigadas concepções da figura humana que<br />

nada têm de erótico, exatamente porque não instauram entre veste<br />

e nu nenhum trânsito, mas tornam absoluto metafisicamente<br />

um dos dois termos, excluindo o outro. Metafísica da veste e<br />

metafísica do nu constituem perspectivas que têm exercido na<br />

cultura ocidental uma influência constante até os nossos dias. Elas<br />

retornam onde quer que o problema seja posto em termos absolutos,<br />

como conflito entre a dignidade e a liberdade do corpo.<br />

Todavia, nem o judaísmo no seu conjunto é redutível a<br />

uma metafísica da veste, nem o helenismo a uma metafísica<br />

do nu. Já na Antiguidade, pensadores de origem hebraica,<br />

como Fílon de Alexandria, lêem episódios do Antigo Testamento<br />

segundo uma mentalidade grega e atribuem ao nu pelo<br />

menos a possibilidade de um significado positivo. “O grande<br />

sacerdote”, escreve Fílon, “não entrará no Santo dos Santos<br />

com uma túnica; mas, depois de ter liberado a sua alma do<br />

* Alma despida do corpo. (N. do T.)<br />

87


invólucro da opinião e da imaginação e depois de tê-la deixado<br />

aos que amam as coisas exteriores e estimam a aparência<br />

mais do que a verdade, entrará nu, sem cores, nem sons.” 8 *<br />

De resto, o relato bíblico da nudez originária de Adão e Eva<br />

constituirá o ponto de referência dos que desejarem enxertar<br />

o platonismo na Bíblia, como os sete adamitas medievais, os<br />

Irmãos e as Irmãs do Livre Espírito, nos quais se inspirou<br />

Hieronimus Bosch. 9 Esse enxerto, entretanto, permanece implícito<br />

e não consegue ultrapassar os limites da metafísica da<br />

verdade nua.<br />

Ao contrário, o hermetismo neopitagórico e gnóstico<br />

repensa a tradição cultural e a filosofia helênicas segundo uma<br />

concepção da verdade “vestida”, que se torna visível, na sua<br />

inefável magnificência, apenas a poucos iniciados. A verdade<br />

é vestida não só para os profanos que não têm acesso ao conhecimento,<br />

mas no fundo também para os eleitos. Ela se<br />

mostra aos eleitos na sua glória, na sua dóxa,** não na sua<br />

nudez teórica: “Quando não puderes dizer nada da beleza do<br />

Bem, só então o verás”, está escrito no Corpus hermeticum (X,<br />

5-6), “porque o conhecimento supremo é silêncio divino e<br />

descanso de todas as sensações”. As almas, as idéias, os eones<br />

do pensamento gnóstico se liberam da nudez impura da carne<br />

e são pensados como dotados de uma veste espi<strong>ritual</strong>: “Eles<br />

serão revestidos com vestes reais/ e serão envoltos em vestidos<br />

resplandecentes”, diz a propósito disso um hino gnóstico<br />

citado nos Atos de são Tomé. 10 *** Por mais que seja atribuí-<br />

* Neste trecho, Fílon refere-se à nudez da alma que o oficiante deve ostentar diante<br />

de Jeová. (N. do T.)<br />

** Opinião, julgamento. Na linguagem bíblica significa “manifestação da glória e<br />

poder de Deus”. (N. do T.)<br />

*** Livro apócrifo, gnóstico, atribuído ao apóstolo Tomé. (N. do T.)<br />

88


da às seitas gnósticas a prática de uma licenciosidade sexual<br />

ilimitada, na qual encontraram objeto de inspiração escritores<br />

do nosso século indubitavelmente eróticos, como Lawrence<br />

Durrell, a dimensão erótica parece, entretanto, excluída<br />

da Gnose exatamente pelo dualismo rigoroso entre um corpo<br />

nu, destinado à perdição, e um espírito vestido, destinado<br />

à salvação; esse dualismo impede a possibilidade de pensar em<br />

um estado intermédio, em um trânsito.<br />

A descoberta da possibilidade desse trânsito no interior<br />

da cultura judaica e da cultura helênica pertence ao pensamento<br />

contemporâneo e é obra de Hans Uns von Balthasar e de<br />

Martin Heidegger, respectivamente. Metafísica da veste e<br />

metafísica do nu concordam em atribuir à visibilidade — embora<br />

pensada e experimentada de maneiras opostas — uma dimensão<br />

absoluta. De fato, Balthasar mostra precisamente como<br />

na noção hebraica de kãbôd está implícita não só a magnificência<br />

visível, mas, além disso, a referência a algo de diferente, de invisível.<br />

Segundo a sua interpretação, o kãbôd não é uma noção<br />

estática, e sim dinâmica, que se apóia na tensão entre uma glória<br />

“informe” e uma imagem revestida de forma. 11 Ela implica<br />

um ver-não-ver, uma imagem-não-imagem; é ao mesmo tempo<br />

luz ofuscante e treva profunda. O kãbôd, portanto, ultrapassa<br />

o contexto litúrgico-cultual e estende-se a toda a criação, envolvendo,<br />

antes de mais nada, o homem, que foi criado à imagem<br />

e semelhança de Deus. Existe, pois, um trânsito entre o<br />

visível e o invisível, entre a veste e aquilo que ela cobre. Balthasar<br />

defende a possibilidade de uma erótica bíblica independente do<br />

platonismo; ele sustenta uma interpretação literal e profana do<br />

Cântico dos Cânticos — aqui, o eros não é um símbolo, nem<br />

uma alegoria. Ele apresenta só a si próprio e se manifesta “no<br />

travestimento do jovem e da jovem em rei e rainha”, no “jogo<br />

89


de designar veladamente aquilo que não deve ser mencionado<br />

e que, entretanto, deve ser absolutamente indicado”. 12<br />

Igualmente, Heidegger mostra como a noção grega de<br />

alétheia* tem um significado originário que ultrapassa a noção<br />

teórica de exatidão do olhar. Segundo Heidegger, a palavra<br />

alétheia implica tanto uma ocultação como um desvelamento,<br />

e, de fato, ela é caracterizada por um a privativo,<br />

que exprime privação diante de qualquer coisa que esteja<br />

oculta, isto é, encerrada, posta em custódia, mascarada, encoberta,<br />

velada, falsificada... Heidegger propõe traduzi-la<br />

com o termo Unverbogenheit, não-ocultação, exatamente porque<br />

a dimensão do ocultar é essencial: este, “entendido como<br />

um esconder-se, domina a essência do Ser e determina desse<br />

modo até o ente na sua presença e no seu ser acessível”. 13<br />

A alétheia grega não implicaria de modo algum a primazia<br />

da nudez, mas um trânsito entre esconder e desvelar,<br />

irredutível à concepção platônica de um esclarecer e de um<br />

iluminar puros e completos. Da mesma forma, Marcel<br />

Detienne sustenta que, na era arcaica, as noções religiosas<br />

de Alétheia e Léthe formam uma dupla de compostos<br />

antitéticos e complementares. 14 De fato, as Kórai, as jovens<br />

da escultura grega arcaica, com sua draperie mouillée** e seu<br />

sorriso ambíguo e indecifrável, abrem um espaço erótico incomparavelmente<br />

mais amplo e profundo do que a nudez<br />

calipígia das Afrodites clássicas. O déhanchement,*** o meneio<br />

do quadril no qual se baseia o sex-appeal do nu femini-<br />

* Verdadeiro, verídico, dito de coisas e acontecimentos que não estão ocultos. (N.<br />

do T.)<br />

** Panejamento molhado que, portanto, mostra o tecido pregado ao corpo, denunciando-lhe<br />

as formas. (N. do T.)<br />

*** Posição de figura na qual o peso do corpo é transferido para uma das pernas,<br />

acentuando e destacando a curva do quadril. (N. do T.)<br />

90


no clássico, e a cuirasse esthétique,* na qual se funda o sexappeal<br />

do nu masculino do período, são tão evidentes quanto<br />

as idéias platônicas. “Evidência”, em grego — afirma<br />

Heidegger —, diz-se eîdos ou idéa. 15 Contudo, é exatamente<br />

essa evidência, isto é, o fato de o olhar estar livre para<br />

enxergar a nudez masculina e feminina no seu aspecto ideal<br />

e eterno, que torna a experiência estática e para sempre fechada<br />

ao trânsito erótico.<br />

2 A erótica do despir: o nu e o véu<br />

Nas artes figurativas, foi o cristianismo que tornou possível<br />

uma completa representação do erotismo, porque introduziu<br />

uma dinâmica não suficientemente desenvolvida pela<br />

Antiguidade judaica e clássica. A direção de tal movimento<br />

pode ser orientada para o despir ou para o revestir. De fato,<br />

diz São Paulo: “Vós vos despistes do homem velho com as<br />

suas ações e vos vestistes do novo, que se renova para um pleno<br />

conhecimento à imagem do seu criador” (Col. 3, 9-10).<br />

Da primeira ação, o despir-se, nasce a erótica da Reforma e<br />

do Maneirismo; da segunda ação, o revestir-se, nasce a erótica<br />

da Contra-Reforma e do Barroco. O mais agudo intérprete<br />

contemporâneo da erótica do despir foi Georges Bataille,<br />

que une de modo inseparável o desejo erótico com a pulsão<br />

para despir-se e despir, para transgredir o tabu da nudez. “A<br />

ação decisiva”, escreve, “é o desnudamento. A nudez é a negação<br />

do ser fechado em si, a nudez é um estado de comunicação<br />

[...]. Obscenidade quer dizer desequilíbrio, que desor-<br />

* Representação do tronco masculino. (N. do T.)<br />

91


ganiza um estado dos corpos correspondente à posse de si<br />

mesmo, ao domínio do próprio eu entendido como individualidade<br />

durável e afirmada.” 16 Bataille movimenta-se dentro<br />

de uma tradição que atribui ao desnudamento um grande<br />

valor espi<strong>ritual</strong>; este, depois de Paulo, encontrou uma manifestação<br />

importante no propósito expresso por São<br />

Jerônimo, de nudus nudum Christum sequi,* e teve um enorme<br />

desenvolvimento na Idade Média. Com a Reforma ele é<br />

entendido em uma acepção ainda mais radical: a cruz, o suplício,<br />

a agonia de Cristo são considerados o ponto mais alto<br />

e importante da experiência cristã. Daí deriva que a perdição,<br />

a dilaceração, o aniquilamento, o abismo, a confusão, a desordem,<br />

o estupor, o tremor, a vertigem, a morte se imponham<br />

também como modelo de experiência erótica. 17<br />

A afinidade fundamental entre a pulsão sexual e a morte<br />

reside para Bataille no movimento iconoclasta que as anima.<br />

Ambas dissolvem a forma, destroem a imagem, violam a<br />

bela aparência, à procura de uma verdade mais essencial, de<br />

uma pureza mais radical, de um absoluto. Por isso, esse movimento<br />

não se detém no nu, mas vai além — as superfícies<br />

nuas dos corpos ainda são apenas a aparência, a imagem, a<br />

máscara. A sexualidade e a morte, para Bataille, levam o movimento<br />

de desnudamento a uma conseqüência extrema: ser<br />

traspassado, exposto, aberto, esfolado, ou trespassar, expor,<br />

abrir, esfolar significa perder-se em um abismo que despedaça<br />

a redondeza enganosa dos corpos.<br />

O ponto de chegada dessa experiência, entretanto, não<br />

é mais o trânsito; no fundo, é muito duvidoso que ela possa<br />

ser verdadeiramente definida como erótica. O desnudamento<br />

* Nu, sigo o Cristo nu. (N. do T.)<br />

92


até as últimas conseqüências, descrito por Bataille, não volta<br />

atrás em direção à veste, mantendo-a na sua oposição ao nu;<br />

ele almeja encontrar descanso, paz, repouso, na comunhão<br />

com a totalidade do ser, na fusão ilimitada da orgia, em uma<br />

nova unidade metafísica. Falta a própria possibilidade da representação,<br />

porque o iconoclasmo se dirige acima de tudo<br />

contra a imagem, contra qualquer representação do nu. O próprio<br />

Bataille, todavia, não se ateve a esse extremismo metafísico:<br />

no volume As lágrimas de Eros, ele reproduz e comenta<br />

de maneira extraordinariamente eficaz as obras-primas da<br />

pintura erótica de todos os tempos. 18 Como resolver esse paradoxo?<br />

Na realidade, o movimento de pôr a nu tem limites<br />

além dos quais perde toda a tensão erótica e cai em uma imobilidade<br />

metafísica. Constituem as provas mais eloqüentes disso<br />

aqueles quadros do século XVI, de Cranach, o Velho, de<br />

Hans Baldung Grien e dos maneiristas, aos quais Bataille dá<br />

tanto destaque na sua história do erotismo. Estes são eróticos<br />

não só porque tornam própria a tendência iconoclasta,<br />

mas também porque põem um limite à iconoclastia.<br />

Observou-se que a partir do fim da Idade Média se difunde<br />

nos países nórdicos a imagem de um novo tipo de nu<br />

feminino que apresenta características profundamente diferentes<br />

do nu grego: enquanto no nu clássico o ritmo dominante<br />

é dado pela curva do quadril, no nu nórdico o ritmo fundamental<br />

é dado pela curva do ventre. 19 Foi dito também que<br />

esse nu nórdico deve ser ligado à tendência do cristianismo<br />

de recuperar o significado espi<strong>ritual</strong> da feiúra, representando<br />

os corpos na sua realidade “despida”, mais do que na sua<br />

idealidade nua. Todavia, a verdadeira inovação do cristianismo<br />

não consiste tanto em ter revalorizado o feio e muito me-<br />

93


nos em ter introduzido como modelo exemplar um nu traspassado,<br />

o crucificado, e sim em ter mantido a possibilidade da<br />

imagem depois de ter posto em jogo a sua possibilidade. A<br />

pintura levou muitos séculos para chegar a representar o Cristo<br />

nu, traspassado, morto na cruz; somente com Grünewald<br />

e Holbein, praticamente na véspera da Reforma, ela ousa<br />

representar Cristo como um cadáver em putrefação. 20 O fato<br />

é que só com a Reforma o problema da imagem da morte de<br />

Cristo se apresenta como solução do problema da morte da<br />

imagem. Cristo, entretanto, pode ser representado nu, crucificado,<br />

morto e putrefato, na medida em que essa imagem é<br />

só um véu sob o qual transparece a sua natureza divina,<br />

irrepresentável. Representar Cristo como um Apolo, segundo<br />

a proposta renascentista, significa cair na idolatria, no paganismo.<br />

Não representá-lo de modo algum quer dizer, porém,<br />

supor que a figura humana assumida por Cristo pode,<br />

através da ascese iconoclasta, identificar-se metafisicamente<br />

com aquele Deus que, ao contrário, permanece — como ensina<br />

Lutero — essencialmente diferente; significa, em suma,<br />

aspirar a uma santidade que é por definição vedada ao homem.<br />

21 Os pintores da Reforma resolvem esses problemas<br />

atribuindo ao véu uma importância semelhante à atribuída ao<br />

nu e instaurando entre véu e nu um trânsito de enorme relevância<br />

erótica. O véu não é mero obstáculo à visão a olho nu,<br />

mas, justamente ao contrário, condição de toda visão possível.<br />

A expressão típica da teologia luterana da cruz, Deus<br />

obsconditus, quer dizer que Deus se manifesta, se revela sob<br />

formas veladas, e tirar esses véus quer dizer impedir a possibilidade<br />

da própria revelação.<br />

Para a pintura da Reforma existem dois perigos, a<br />

iconofilia e a iconoclastia, o nu clássico e o misticismo meta-<br />

94


físico. 22 Trata-se de criar um espaço intermediário. No interior<br />

desse espaço nascem, na primeira metade do século XVI,<br />

algumas dezenas de quadros que são as obras-primas da erótica<br />

ocidental do despir. As numerosas Lucrécias de Cranach,<br />

de Dürer (que Melacton considera, junto com Grünewald, os<br />

pintores da Reforma), de Baldung Grien têm um duplo significado:<br />

colhidas no ato de lacerar ao mesmo tempo o próprio<br />

nu e a tela, a carne e o quadro, salvam ambos da destruição,<br />

preservam-nos como véus indispensáveis de uma verdade<br />

que permanece diferente e irrepresentável na sua nudez.<br />

O seu erotismo consiste em se terem despido, em não oporem<br />

obstáculos ao deixar-se despir, em se autocontestarem<br />

como imagens, em não oporem obstáculos à própria destruição<br />

e em apresentarem ao mesmo tempo, entretanto, a própria<br />

nudez como um véu que não pode ser tirado, em representarem<br />

o iconoclasmo como uma ação que não pode ser<br />

completada. A pulsão que leva ao desnudamento e à verdade<br />

deve ser assumida sem reservas porque só assim se pode descobrir<br />

o elo íntimo que une o nu com o véu, a verdade com<br />

a sua ocultação. No quadro Vênus e Amor, de Cranach, o Velho,<br />

guardado na Galeria Borghese de Roma, a erótica do despir<br />

alcança seu ápice. Essa Vênus institui e acompanha com<br />

um olhar que infinitamente consome e infinitamente concede<br />

uma série ininterrupta de trânsitos, na qual o espectador<br />

se perde. Do corpo da Vênus, que repete com extraordinária<br />

graça o clichê do nu nórdico, a atenção se desloca para a árvore<br />

que ela toca docemente: a árvore é por certo a cruz-árvore, o<br />

xylon,* a madeira na qual foi pregado o corpo nu de Cristo,<br />

o fundamento da erótica da Reforma, e, entretanto, esta se<br />

* Madeira, madeira em pé, especialmente tronco de árvore. (N. do T.)<br />

95


abre, se divide, se escancara para baixo, enquanto o corpo de<br />

Vênus tem uma flexuosidade vegetal que evoca o straurós, a<br />

estaca fincada reta, a cruz. Penetrante e penetrado trocam de<br />

lugar: o que deveria abrir-se, fecha-se e é coberto pelo véu; o<br />

que deveria permanecer compacto se fende e é suavemente<br />

acariciado. O nu de Vênus é o véu da Cruz — nele é preciso<br />

ver além daquilo que se vê e se entrevê; nele se esconde o<br />

corpo do Redentor. Vice-versa, a árvore, a cruz, é o véu do<br />

nu de Vênus — nela é preciso ver além daquilo que se vê e<br />

se suspeita; nela se esconde o nu de Vênus.<br />

O trânsito estabelecido por Cranach entre sujeito mitológico<br />

e sujeito religioso é desenvolvido de uma maneira<br />

diferente por Parmigianino na Virgem da rosa: lá, há uma<br />

Vênus que se assemelha a Cristo; aqui, uma Madona que se<br />

assemelha a Vênus. Tal troca tem, no entanto, um significado<br />

completamente diferente daquele instaurado pelo humanismo<br />

renascentista neoplatônico, para o qual, como diz<br />

Spencer no seu Hino em louvor da beleza, “a alma é forma e a<br />

alma faz o corpo”. Na origem do quadro de Parmigianino<br />

está a experiência da iconoclastia que ele conhecera no terrível<br />

saque de Roma de 1527, do qual saíra miraculosamente<br />

ileso. 23 Na pintura renascentista, Vênus e Madonas se assemelhavam<br />

porque ambas participavam da idéia metafísica de<br />

beleza. A iconoclastia, ao contrário, ao pôr o divino além de<br />

toda forma, em uma diferença irrepresentável, tornou possível<br />

o movimento, a deslocação, o trânsito de uma forma a<br />

outra. Nada mais permanece estático em sua identidade<br />

metafísica — tudo circula e se transforma. O Maneirismo é<br />

precisamente a experiência artística dessa circulação unida ao<br />

conhecimento, de que qualquer forma pode ser o véu da diferença.<br />

O extraordinário erotismo do quadro de Parmi-<br />

96


gianino não consiste simplesmente no véu que cobre o belo<br />

seio da Madona, nem na impudica beleza do menino, mas<br />

no trânsito que ele estabelece entre a rosa e os genitais de<br />

Jesus. O primeiro movimento que inspira é iconoclasta: pegar,<br />

agarrar, violar com uma mão a rosa, com a outra o botão<br />

de carne. Contudo, essa pulsão é refreada. O ato não se<br />

realiza; o olhar da Madona não se concentra em um único<br />

alvo, ele se dispersa sobre ambos; as suas mãos, deslocadas<br />

em relação ao objetivo, parecem incapazes de pegar aquilo<br />

que lhes é oferecido. O ato frustrado tem a mesma função<br />

do véu que cobre o púbis da Vênus de Bronzino ou os nus<br />

da École de Fontainebleau. Há um limite no despir-se e no despir;<br />

superado este, cessa todo movimento; o ato frustrado,<br />

como o véu, abre e mantém o espaço intermediário entre vestido<br />

e nudez, entre judaísmo e helenismo, que a cruz, ponto<br />

de encontro entre diversas metafísicas, abriu.<br />

3 A erótica do revestir: veste e corpo<br />

Ao lado de uma erótica do despir, existe na cultura cristã<br />

uma erótica do revestir, que mostra um charme e uma riqueza<br />

de articulação não inferior à primeira. Ela se baseia<br />

na comparação bíblica entre o corpo e a veste (Si, 14, 18) e<br />

estabelece entre esses dois termos um trânsito passível de<br />

vários êxitos.<br />

O mais agudo intérprete contemporâneo da erótica do<br />

revestir é Pierre Klossowski, para o qual o erotismo não pode<br />

ser desvinculado da experiência da encarnação. Disso deriva<br />

que a nudez dos corpos não é concebida de modo algum<br />

como o ponto de chegada de um processo de despojamento,<br />

97


de desnudamento, de violação, mas, bem ao contrário, como<br />

a conseqüência de um processo de vestição, de materialização,<br />

de personificação. A mesma noção de nudez, tanto<br />

na sua acepção greco-clássica, de modelo ideal, como na sua<br />

acepção cristã-reformista de corpo despido, torna-se sem sentido.<br />

O que conta não é o estar nu, mas o ser corpo, carne,<br />

matéria. A origem dessa concepção deve ser procurada ainda<br />

na patrística dos primeiros séculos do cristianismo. Foi<br />

Tertuliano o autor que sustentou categoricamente que “tudo<br />

aquilo que é, é corpo de um determinado gênero; nada é<br />

incorpóreo, senão aquilo que não é”. 24 Portanto, o ponto<br />

de referência fundamental não é o suplício de Cristo, o nu<br />

traspassado e martirizado da cruz: é, ao contrário, a encarnação<br />

de Jesus, o revestimento do espírito em corpo e<br />

enfim a sua ressurreição gloriosa em carne e osso. O demoníaco<br />

— diz Klossowski — não é o carnal, mas o espi<strong>ritual</strong>. 25<br />

A doença do mundo moderno não consiste na prevalência<br />

da exterioridade sobre a interioridade, da veste falsificadora<br />

sobre a verdade nua, e sim no fato de o espi<strong>ritual</strong> não poder<br />

mais encarnar-se, na falta da possibilidade de possessão. 26<br />

O fenômeno da possessão, portanto, não é absolutamente<br />

uma manifestação do demoníaco: é, em vez disso, já o seu<br />

exorcismo — pelo simples fato de ter-se encarnado, o demônio<br />

deixa de ser demônio.<br />

Daí o significado libertador que aproxima o erotismo<br />

e a arte: ambos fornecem uma veste, um invólucro, um simulacro<br />

ao que é destituído de realidade, obrigam à presença<br />

o que está ausente, tornam visível o que é meramente espi<strong>ritual</strong>.<br />

Corpos e obras participam de uma mesma obra de<br />

salvação, conferindo forma e resgatando aquilo que por si<br />

mesmo é só não-ser, negação, contradição; tanto o corpo<br />

98


como a obra de arte são a atualização de algo incomunicável<br />

e irrepresentável. Esse algo — que Klossowski define como<br />

“demoníaco” — não provém do interior, da subjetividade, do<br />

eu, e sim do exterior; por isso não é expressão, mas semelhança.<br />

Erotismo e arte movem-se numa dimensão mimética. Tratase,<br />

entretanto, de uma imitação que nunca pode ser verificada,<br />

porque o original, o fantasma, o demônio, nunca aparecem<br />

como tais.<br />

O erotismo do revestir considera o corpo uma veste:<br />

“Habita o corpo dos outros como se fosse o seu e da mesma<br />

maneira atribui o próprio aos outros”. 27 A essência do erotismo<br />

é, portanto, a hospitalidade, um vestir o alheio como se<br />

fosse seu e o seu como se fosse alheio. Essa transitividade do<br />

corpo revela-se, sobretudo na trilogia narrativa As leis da hospitalidade,<br />

de Klossowski, como um dar ao hóspede a própria<br />

esposa; tal ato, que não pode ser reduzido nem ao banal<br />

adultério nem à prostituição libertina, acentua ao máximo a<br />

dimensão do corpo como vestimenta: só dando para outros<br />

vestirem um corpo que nos pertence é que podemos continuar<br />

a vê-lo na sua exterioridade indumentária.<br />

Essa concepção do corpo como semelhança leva Klossowski<br />

a reavaliar o nu estatuário da pintura tradicional e acadêmica,<br />

o nu como objeto pictórico dos velhos mestres. Ele,<br />

portanto, critica a vanguarda, que a partir de Klee opõe à anatomia<br />

dos corpos “a anatomia do quadro em si”, e com isso<br />

emancipando-se de todo modelo, de todo original externo. Assim,<br />

diz Klossowski, a “bela nudez” pouco a pouco é desarticulada<br />

e dissociada da imposição das leis autônomas do quadro.<br />

28 A decadência do nu a partir do início do século XX, a<br />

seu ver, é uma manifestação da iconoclastia moderna, que leva<br />

a uma produção arbitrária na qual não opera mais nenhuma<br />

99


possessão. Entretanto, é legítimo perguntar-se se o nu acadêmico<br />

do século XIX pode ser na verdade definido como erótico.<br />

O processo de revestimento defendido por Klossowski conduz<br />

em última análise a um resultado neoclássico e ultraformal<br />

no qual tudo se abranda na contemplação de belas superfícies,<br />

sem que seja possível ativar nenhum trânsito entre veste e<br />

corpo.<br />

Há, portanto, um limite no revestir, além do qual a própria<br />

noção de veste perde o sentido e se bloqueia numa imobilidade<br />

sepulcral. As cortesãs da antiga Roma — descritas por<br />

Klossowski no seu livro As mulheres romanas — não oferecem<br />

corpos semelhantes a estátuas, mas simulacros de carne que se<br />

agitam, se debatem entre os braços dos espectadores. As escravas<br />

industriais, de que fala Klossowski em outro belíssimo texto<br />

(A moeda viva), referindo-se às modelos fotográficas, às divas<br />

do espetáculo, às pin-up, subtraem o seu corpo à condição de<br />

mercadoria na medida em que o transformam em equivalente<br />

geral do valor de troca, em moeda viva, em meio circulante.<br />

Por isso os grandes intérpretes do erotismo do revestir<br />

não devem ser procurados na pintura acadêmica do século<br />

passado, mas na arte barroca, que considera o movimento um<br />

fator essencial. O trânsito que ela estabelece entre veste e corpo<br />

manifesta-se de duas maneiras fundamentais: no uso erótico<br />

do panejamento, como acontece em Bernini, e na ilustração<br />

do corpo como despojo vivo, como acontece no desenho<br />

anatômico.<br />

Na história da pintura, o panejamento conquista a sua<br />

autonomia muito lentamente. Alberti, na primeira metade do<br />

século XV, em seu tratado De pictura, defende a dependência<br />

do panejamento em relação àquilo que ele cobre: “Nasçam as<br />

dobras como do tronco da árvore, os seu ramos. Nelas, por-<br />

100


tanto, registram-se todos os movimentos, de tal forma que nenhuma<br />

parte do pano fique sem movimento vazio”. 29 É no ateliê<br />

de Verrocchio, entre 1470 e 1480, que o panejamento alcança<br />

uma feição autônoma e se impõe figurativamente como<br />

elemento determinante da representação, sobretudo, graças à<br />

obra de Leonardo. Entretanto, o próprio Leonardo, no seu Tratado<br />

da pintura, recomenda não fazer com o pano “confusão<br />

de muitas dobras”, mas deixá-lo cair simplesmente. 30<br />

É, portanto, só na segunda metade do século XVI que,<br />

sob a influência do Concílio de Trento, são lançadas as premissas<br />

para uma consideração diferente do panejamento que<br />

o emancipe das preocupações realistas. As representações da<br />

Ressurreição e mais ainda da Ascensão de Cristo e da Assunção<br />

da Virgem tiveram um papel determinante nesse processo:<br />

31 o lugar ocupado na espi<strong>ritual</strong>idade reformista pelo corpo<br />

nu da crucificação é agora tomado pelo corpo vestido da<br />

ressurreição triunfante. Nasce, assim, uma nova sensibilidade<br />

erótica, que considera a veste um novo corpo, remido do pecado<br />

e finalmente inocente. Nesse processo insere-se a obra<br />

promovida pelas ordens religiosas, as quais, através da celebração<br />

iconográfica dos seus santos, impõem como modelo<br />

a figura humana inteiramente envolta no hábito.<br />

É necessário ter presentes tais premissas se quisermos<br />

entender totalmente o extraordinário encanto erótico da obraprima<br />

de Bernini, A transverberação do coração de Santa Teresa,*<br />

criada para a Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria da<br />

Vitória, em Roma. Esse encanto não depende apenas do esplendor<br />

do anjo, do evidente simbolismo sexual da flecha, do<br />

* O autor optou por essa forma para nomear a obra conhecida como “O êxtase de<br />

Santa Teresa”. (N. do T.)<br />

101


também evidente desvanecimento expresso pelo belíssimo rosto<br />

da santa, mas sobretudo do fato do corpo de Santa Teresa<br />

ter se dissolvido no panejamento do hábito, sofrendo uma transformação<br />

que o emancipou da forma humana, ainda que mantendo<br />

todo o frêmito impetuoso e vibrante de um corpo em<br />

êxtase. Por isso, o esboço mutilado em terracota, guardado no<br />

museu Hermitage de São Petersburgo, parece ainda mais significativo<br />

do que o grupo marmóreo. 32 De fato, fazendo concessões<br />

menores à completitude formal, ele acentua o essencial:<br />

o trânsito do corpo para a veste, o deslocamento daquilo<br />

que está sob o panejamento.<br />

As profundas cavidades formadas pelo tecido do hábito<br />

repetem as dobras de um corpo que se oferece ilimitadamente,<br />

que convida a rebuscar, a abrir, a fender. Na obra realizada,<br />

o anjo segura com uma mão a flecha e com a outra<br />

prepara-se para descobrir o peito da santa; mas a sua pose,<br />

muito mais estática do que no esboço, mostra a incongruência<br />

do ato que ele se prepara para executar: na verdade, a forma<br />

do corpo já está completamente dissolvida e transitou para<br />

o hábito.<br />

A passagem do corpo natural de Santa Teresa para o<br />

corpo glorioso do hábito é um trânsito do mesmo para o mesmo,<br />

que recorda a transubstanciação eucarística. No catolicismo,<br />

de fato, a experiência por excelência do corpo e do sangue<br />

de Cristo não ocorre na contemplação da cruz, mas na<br />

comunhão eucarística. Na hóstia Cristo está presente, assim<br />

como no hábito de santa Teresa está presente o seu corpo.<br />

Não tem sentido procurar alguma coisa sob o hábito: “Teresa<br />

vive essencialmente no hábito”. 33 Tudo já está dado aqui e<br />

agora na sua triunfante inocência, em um invólucro que é<br />

substância, em uma cobertura autônoma e auto-suficiente.<br />

102


Figura 1 - Lucas Cranach il Veccchio, Lucrécia.<br />

103


104


Figura 2 - Lucas Cranach il Veccchio, Vênus e<br />

Amor.<br />

105


106


Figura 3 - Francesco Mazzola il Parmigianino, Madonna della rosa.<br />

107


108


Figura 4 - Gian Lorenzo Bernini, O êxtase de Santa Teresa (esboço em<br />

terracota).<br />

109


110


Esse novo corpo não é, porém, uma forma imóvel. A presença<br />

sacramental é viva, é “um movimento sempre recomeçado...<br />

que vê claramente como a forma é apenas um aspecto<br />

daquilo que existe”. 34 Ela não encontra paz, descanso ou repouso<br />

em uma bela superfície ou em um matrimônio espi<strong>ritual</strong><br />

ou em uma teatralidade em si, 35 mas se desloca, se movimenta,<br />

se transfere incansavelmente.<br />

A erótica barroca, porém, não se esgota no hábito de<br />

santa Teresa — ela percorre o caminho que leva da veste ao<br />

corpo. Os nus barrocos não são mais o ponto de chegada<br />

de um desnudamento: eles resplandecem como “túnicas de<br />

pele” que em nada se distinguem das “túnicas de luz” das<br />

quais falam os pais da Igreja. Isso já se torna evidente nos<br />

nus de Bernini, no grupo marmóreo Apolo e Dáfnis ou na<br />

Verdade revelada pelo tempo, em que o nu e o drapeamento<br />

são postos um ao lado do outro em uma completa e surpreendente<br />

autonomia. O corpo como veste celebra os seus<br />

triunfos em alguns pintores celebérrimos, que são intérpretes<br />

excepcionais da erótica do revestir. Basta pensar em<br />

Rubens, que exalta com efeitos incomparáveis a textura da<br />

epiderme e estabelece trânsitos eróticos entre a pele humana<br />

e as peles animais, como no notável quadro Het pelske;<br />

ou em Poussin, que orquestra grandes composições onde<br />

nudez e drapeados são tratados com o mesmo distanciamento<br />

indiferente; ou Velázquez, pintor de magníficas vestes<br />

e de uma serícea Vênus no espelho. O coroamento dessa<br />

maneira de entender o corpo seja talvez Boucher, pintor de<br />

“túnicas de pele” que nem parecem nus e de um quadro que<br />

representa Vênus desarmando Amor, no qual é simbolicamente<br />

representada a suspensão da pulsão iconoclasta.<br />

111


Essa pulsão é suspensa não porque é deixada para mais<br />

tarde, nem porque é guardada através do véu, mas porque é<br />

tornada inútil pela consciência de que os corpos são despojos<br />

e não estátuas, vestes e não formas substanciais. Desse<br />

conhecimento é portador o desenho anatômico barroco, que<br />

passa a lâmina da faca, o fio da navalha sobre as belas “túnicas<br />

de pele” de Poussin, abrindo-lhes e desdobrando-lhes<br />

as bordas, pondo à mostra as belas superfícies dos músculos<br />

e dos órgãos internos, exaltando ao máximo o seu encanto<br />

erótico. A obra mais significativa sob esse ponto de<br />

vista é provavelmente o tratado Anatomia do corpo humano,<br />

do holandês Gottfried Bidloo, publicada em 1685, em Amsterdã,<br />

e ilustrada por estupendas lâminas de Gérard de<br />

Lairesse, artista de gosto e de formação poussiniana. Essa<br />

obra, que foi considerada inútil tanto para os médicos como<br />

para os artistas, 36 constitui um dos vértices do erotismo barroco<br />

e fornece um extraordinário pendant à santa Teresa de<br />

Bernini. Naquela, uma veste que é tão viva e vibrante quanto<br />

um corpo; nesta, um corpo que é tão externo e magnífico<br />

quanto uma veste. Em ambas, o sujeito não mais existe, está<br />

fora de si, no êxtase ou na morte.<br />

A representação do corpo como uma veste não é, certamente,<br />

uma novidade barroca; ela pertence ao desenho<br />

anatômico do século XVI. A começar pela Fábrica de Vesalius,<br />

publicada em 1543, há toda uma série de obras anatômicas,<br />

no início destinadas aos médicos e depois expressamente realizadas<br />

para os artistas, que representam esfolados com a pele<br />

na mão. 37 Elas, evidentemente, têm relações com a pintura<br />

da época (sobretudo com Ticiano e Michelangelo), mas em<br />

sua enorme maioria não escapam à categoria estética do horrendo.<br />

38 Deve-se estabelecer um trânsito entre a vida e a mor-<br />

112


Figura 5 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano.<br />

Amsterdã, 1685.<br />

113


114


Figura 6 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã,<br />

1685.<br />

115


116


Figura 7 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã,<br />

1685.<br />

117


118


Figura 8 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano.<br />

Amsterdã, 1685.<br />

119


120


te, para que o cadáver objeto da dissecação seja visto e representado<br />

na sua indiscernibilidade de corpo objeto de atenção<br />

erótica. É exatamente isso que acontece nas lâminas do tratado<br />

de Bidloo que representam os corpos sem vida e esfolados<br />

de um jovem homem e de uma jovem mulher. Nada nessas<br />

lâminas leva a pensar na decomposição, na matança, no<br />

esquartejamento. Os órgãos internos são tão belos quanto a<br />

curva do seio, a abertura dos glúteos, a cavidade da vulva. A<br />

erótica do revestir vai além da pele e atinge também o interior<br />

do corpo. Até mesmo a parte interna da pele, que é suavemente<br />

dobrada para fora, não é um resto sanguinolento:<br />

parece uma pele de animal ou um veludo, um tecido de qualidade<br />

superior à mortalha na qual o corpo foi envolvido ou<br />

ao pano que mantém presos os cabelos, embora não essencialmente<br />

diferente destes.<br />

À primeira vista, nada distingue o cadáver desenhado<br />

— como diz a página de rosto — ad vivum pelo pintor de<br />

um corpo vivo simplesmente abandonado a si mesmo, talvez<br />

entregue ao sono — a mão da morta às vezes acompanha com<br />

malícia a borda da pele em um gesto de extrema doçura. Ela<br />

parece quase descobrir-se sozinha para oferecer à vista não um<br />

interior, mas tecidos, só que mais finos, mais preciosos. Estes<br />

são posteriormente seccionados nas lâminas seguintes do<br />

tratado sem que nunca se chegue a perceber algo de íntimo<br />

ou de secreto. Do corpo humano sadio e inteiro, desenhado<br />

nas primeiras lâminas do tratado, ao esqueleto, desenhado nas<br />

últimas, transitamos através de 105 ilustrações do mesmo para<br />

o mesmo. Os cachos dos cabelos, os pêlos do púbis, as asas<br />

da mosca que acidentalmente se demora no ventre, o mamilo<br />

túrgido, o pênis esfolado que se ergue majestoso, enquanto<br />

pequenos pregos prendem a pele do escroto na mesa... tudo<br />

121


é veste, pano, tecido. Os tendões assemelham-se às fibras da<br />

corda que segura o cadáver pela garganta ou ao laço que mantém<br />

unidos os pulsos. Até mesmo os ossos são representados<br />

como tecidos com a trama um tanto carcomida. Tudo agora<br />

está reduzido aos mínimos termos, feito em pedacinhos e desenhado<br />

de todos os lados, como os minúsculos ossos dos pés<br />

ilustrados na última lâmina — tudo permanece, até o fim, tecido,<br />

veste. Tudo se reduz a pó, mas o pó é ainda uma extrema<br />

cobertura, que tudo envolve.<br />

4 O nu eletrônico e a veste de carne<br />

No nosso século, a erótica do despir e a erótica do revestir<br />

se manifestam como espetáculos no strip-tease e no teatro<br />

erótico. Entretanto, só muito raramente eles conseguem<br />

alcançar um trânsito erótico efetivo. No strip-tease isso acontece<br />

quando a strip-teaser consegue, com o olhar, inverter uma<br />

relação de mão única. A partir do momento em que o espectador,<br />

por sua vez, é olhado com intensidade, é como se a<br />

nudez que se oferece funcionasse como um espelho: o espectador<br />

é convidado a defrontar-se com a sua nudez potencial.<br />

O peep show, que permite olhar sem ser visto, restabelece a perspectiva<br />

metafísica grega, os direitos da pura atividade cognitiva,<br />

e trunca toda possibilidade de trânsito.<br />

No teatro erótico, no qual se vêem atores copulando,<br />

o trânsito pode estabelecer-se só quando a barreira do tato é<br />

quebrada. A mulher que pede ao espectador que a deixe sentar<br />

no seu colo, que a segure pelos pulsos enquanto seu parceiro<br />

a possui, às vezes consegue fazer-se sentir como uma veste,<br />

um invólucro, uma coberta. Mas esse trânsito não conse-<br />

122


gue manter-se; na cultura ocidental, de fato, a experiência tátil<br />

se anuncia como o prelúdio de uma posse que flui para o<br />

orgasmo como sua conclusão natural. 39 Assim, toda tensão<br />

desaparece e tudo se apazigua.<br />

Na realidade, a erótica dos nossos dias se encaminha para<br />

perspectivas muito mais novas e inquietantes do que o striptease<br />

ou o teatro erótico, isto é, o nu eletrônico realizado pela<br />

computação gráfica e a veste de carne dos ritos de possessão<br />

das religiões afro-americanas. A computação gráfica parece<br />

poder construir a imagem absolutamente realista de um corpo<br />

que na realidade não existe. À diferença da fotografia, que<br />

remete a um modelo real, ela prescinde por completo da existência<br />

de um original. O nu realizado eletronicamente não tem<br />

mais nada a ver com o corpo: ele levou ao extremo, de modo<br />

positivo, a pulsão de despir da Reforma e do Maneirismo. Em<br />

tese, nada impede a realização eletrônica de imagens perfeitamente<br />

realistas de nus de madeira, de ferro ou de vidro. Assim,<br />

despe-se o corpo até mesmo da aparência da carne. A subversão<br />

no mundo das formas vem acompanhada por uma produção<br />

potencialmente ilimitada de imagens.<br />

No pólo oposto, o fenômeno do transe, sobre o qual<br />

se fundam os ritos das religiões afro-americanas (candomblé,<br />

macumba, vodu, entre outras), oferece a imagem de corpos<br />

colocados à disposição, possuídos, “cavalgados” pela divindade.<br />

A pulsão de vestir da Contra-Reforma e do Barroco se<br />

radicaliza: nesses ritos não vemos estátuas, quadros ou desenhos,<br />

e sim corpos desapossados de sua subjetividade, animados<br />

por uma força que se manifesta mediante e através deles.<br />

A possessão é assim irredutível tanto à iconofilia como à<br />

iconoclastia. O corpo do possuído está presente em carne e<br />

osso, no entanto isso não conta por si, e sim pelo fato de dar<br />

123


uma imagem a uma divindade que não se contenta em ser<br />

desenhada ou representada teatralmente mediante uma máscara,<br />

mas pede para vestir um rosto, um corpo.<br />

Os nus de luz da eletrônica e as vestes de carne das religiões<br />

afro-americanas parecem, portanto, abrir novos caminhos<br />

ao trânsito erótico. Entretanto, mesmo nesse âmbito, o<br />

risco de uma recaída na metafísica está sempre presente. Permanece-se<br />

no âmbito da metafísica inaugurada por Platão até<br />

que os produtos da computação gráfica sejam considerados<br />

superformas, cujo significado se esgota na visibilidade. Não<br />

é por acaso que uma das primeiras propostas para o uso da<br />

nova tecnologia diz respeito à possibilidade de criar imagens<br />

que reúnam em si as melhores partes de várias atrizes, que<br />

tenham, por exemplo, os olhos de Greta Garbo, a boca de<br />

Brigitte Bardot, os seios de Rachel Welch... Decalca-se assim<br />

a idéia neoclássica de uma beleza ideal construída com as partes<br />

mais belas de diversos corpos. Porém, o erotismo não tem<br />

nada a ver com tais colagens.<br />

Permanece-se igualmente no âmbito do pensamento<br />

metafísico na medida em que se pensa o transe como a unidade<br />

mística entre o homem e Deus, finalmente conciliados<br />

entre si em um âmbito de supra-elevação espi<strong>ritual</strong>. A veste<br />

de carne, bem ao contrário, está ligada com a diferença do<br />

corpo, que não é mero instrumento da vontade subjetiva, mas<br />

elemento de uma <strong>ritual</strong>idade cerimonial, a qual finalmente está<br />

livre de sua subordinação para com o mito. O transe não eleva<br />

à visão teofânica, nem precipita no delírio da sobreexcitação<br />

patológica: é “uma liturgia corporal admiravelmente regulada”,<br />

40 muitas vezes indistinguível da cotidianidade da dança.<br />

124


Notas<br />

1. Remeto à editio princeps do texto bíblico, estabelecido pela CEI (Conferência Episcopal<br />

Italiana) e traduzido em La Bibbia di Gerusalemme, org. por F. Vattoni, Bolonha,<br />

EDB, 1974.<br />

2. E. Haulotte, Symbolique du vêtement selon la Bible. Paris, Aubier, 1966.<br />

3. M.J. Congar, Le mystère du temple. Paris, Les Éditions du Cerf, 1963, 2º, p. 115 e<br />

seguintes.<br />

4. H. Blumenberg, La metaforica della “nuda” verità, in Paradigmi di una metaforologia.<br />

Bolonha, Il Mulino, 1969, p. 57 e seguintes.<br />

5. J. Ritter, Origine e senso della “theoria”, in Metafisica e politica. Marieti, Casal<br />

Monferrato, 1983, p. 3 e seguintes.<br />

6. Cf. verbete sraw in G. Kittel, Grande lessico del nuovo Testamento. Brescia, Paideia,<br />

1965 e seguintes, vol. VIII, c. 893.<br />

7. K. Clark, Il nudo. Uno studio della forma ideale. Milão, Martello, 1967.<br />

8. Fílon de Alexandria, Le allegorie delle leggi, II, 56. Milão, Rusconi, 1978, p. 229.<br />

9. W. Fraenger, Il regno millenario di Hieronimus Bosch. Milão, Guanda, 1980.<br />

10. Apud H. Leisegang, La gnose. Paris, Payot, 1951, p. 29.<br />

11. H.U. von Balthasar, Gloria. Un’estetica teologica, vol. 6, L’antico patto. Milão, Jaka<br />

Book, 1980, p. 20.<br />

12. Ib., p. 116.<br />

13. M. Heidegger, La dottrina di Platone sulla verità. Turim, Sei, 1975, p. 55.<br />

14. M. Detienne, I maestri di verità nella Grecia Arcaica. Bari, Laterza, 1977, p. 112.<br />

15. M. Heidegger, op. cit., p. 43.<br />

16. G. Bataille, L’erotismo. Milão, Sugar, 1962, p. 19.<br />

17. Sobre esse assunto, permito-me remeter ao meu artigo “Bataille e l’Italia”, in<br />

L’Erba Voglio, n os 29-30, setembro-outubro de 1977.<br />

18. G. Bataille, Les larmes d’Eros. Paris, Pauvert, 1961. As ilustrações são só parcialmente<br />

reproduzidas na edição italiana, Le lacrime d’Eros.<br />

19. K. Clark, op. cit. de D. Ritti, Roma, Arcana, 1979, que é acompanhada da minha<br />

apresentação, L’iconoclasma erotico di Bataille.<br />

20. L. Reau, Iconographie de l’art chrétien. Paris, P. U. F., 1957, vol. II, 2, p. 462 e<br />

seguintes.<br />

21. A posição de Lutero sobre esse assunto é completamente diferente daquela de<br />

Meister Eckhart e da mística renana (Taulero, Suso): enquanto estes miram uma união<br />

da alma completamente espolhada com um Deus cuja essência é destituída de imagem<br />

e de forma, Lutero exclui essa possibilidade. Cf. Dépouillement, in Dictionnaire<br />

de spi<strong>ritual</strong>ité, ascetique et mystique. Paris, Beauchesne, 1937, e G. Miegge, Lutero<br />

giovane. Milão, Feltrinelli, 1977, p. 105, nota 37.<br />

22. Sobre a relação arte—Reforma, cf. C. C. Christensen, Art and Reformation in<br />

Germany. Athens, Ohio University Press, 1959, e M. Pianzola, Peintress et vilains.<br />

Les articles de la Renaissance et la grande guerre des paysans de 1525. Paris, Cercle d’Art,<br />

1962.<br />

125


23. A. Chastel, Il sacco di Roma. Turim, Einaudi, 1983.<br />

24. Tertuliano, De carne Christi, XI, 4., Paris, Éditions du Cerf, 1975, p. 258.<br />

25. P. Klossowski, Un si funeste désir. Paris, Gallimard, 1963, p. 41.<br />

26. P. Klossowski, La rassemblance. Marselha, Ryôan-ji, 1984, p. 107.<br />

27. P. Klossowski, “La moneta vivente”, in Il Piccolo Hans, nº. 13, janeiro-março de<br />

1977, p. 83.<br />

28. P. Klossowski, La rassemblance, op. cit., p. 63.<br />

29. L. B. Alberti, De pictura, livro II, cap. 45, in Opere volgari, Bari, Laterza, 1973.<br />

30. Apud G. Dalli Regoli, “Il ‘piegar de’ panni”, in Critica d’arte, ano XXII (1976),<br />

nº 150, p. 35 e seguintes.<br />

31. E. Mâle, L’art religieux après le Concile de Trente. Paris, Colin, 1932.<br />

32. G. Matzulevitsch, “Tre bozzetti di G. L. Bernini all’Ermitage di Leningrado”, in<br />

Bollettino d’arte, 1963, p. 67 e seguintes.<br />

33. R. Kuhn, “Die Unio mystica der Hl. Therese von Avila von Lorenzo Bernini in<br />

der Cornakoppelle in Rom”, in Alte und moderne Kunst XII (1967), nº 94, p. 5.<br />

34. Assim escreve Y. Bonnefoy a propósito de Bernini, in Roma 1630, Roma, Instituto<br />

Editoriale Italiano, 1970, p. 18.<br />

35. R. Wittokower (in G.L. Bernini, The sculptor of the Roman Baroque. Londres,<br />

The Phaidon Press, 1955, p. 32) observa com justiça que a obra de Bernini não pode<br />

ser reduzida a uma vazia teatralidade.<br />

36. L. Choulant, Geschichte und Bibliographie des anatomischem Abbildung. Lipsia,<br />

Weigel, 1852, p. 93.<br />

37. L. Premuda, Storia dell’iconografia anatomica. Milão, Martello, 1957, e M. Duva<br />

e E. Cuyer, Histoire de l’anatomie plastique. Paris, Societé Françasise d’Édition d’Art,<br />

1898.<br />

38. J. Guillerme, “Sur l’esthétique du décharnement”, in Revue d’Esthétique, 1969,<br />

nº 2, p. 139 e seguintes.<br />

39. Isso se dá de modo diferente na cultura oriental. Cf. R. Van Gulik, La vie sexuelle<br />

dans la Chine ancienne. Paris, Gallimard, 1961.<br />

40. R. Bastide, Le rêve, la transe et la folie. Paris, Flammarion, 1972, p. 56.<br />

126


Capítulo IV<br />

Ícones, visões e simulacros<br />

1 Iconofilia e iconoclastia<br />

A discussão contemporânea sobre a imagem social que<br />

os meios de comunicação de massa produzem parece não conter<br />

nenhuma referência direta à religião ou à metafísica. Na<br />

realidade, o debate atual, precisamente em face da amplitude<br />

adquirida pelo conceito moderno de imagem, 1 que tende a<br />

abranger toda a experiência contemporânea, por um lado, ilumina<br />

com novos significados as discussões passadas e, por outro,<br />

reproduz e herda as suas premissas filosóficas.<br />

A batalha em torno às imagens, o Bilderstreit entre<br />

iconófilos e iconoclastas, constitui um tema recorrente em nosso<br />

passado. Em Bizâncio, defensores e destruidores das imagens<br />

enfrentaram-se de forma cruel durante mais de um século. Posteriormente,<br />

o iconoclasmo encontrou partidários em várias seitas<br />

heréticas, como os bogomilos e os cátaros. No início da Idade<br />

Moderna, no século XVI, a questão das imagens tornou-se<br />

motivo de profunda divisão entre católicos e reformados.<br />

127


O conflito entre iconofilia e iconoclastia confunde-se<br />

com freqüência com a luta entre politeísmo e monoteísmo.<br />

Em geral, o iconoclasmo reivindica uma idéia mais pura de<br />

Deus, cuja representação parece sempre inadequada ou até<br />

mesmo blasfema. A discussão sobre a licitude das imagens não<br />

é, portanto, apenas um problema do culto e de suas modalidades,<br />

mas uma questão filosófica de suma importância que<br />

envolve a relação entre matéria e espírito, entre ficção e realidade,<br />

entre o mundo e Deus.<br />

O problema teórico fundamental da imagem é a sua relação<br />

com o original. Para os iconófilos, entre a imagem e o<br />

original, entre a forma e o espírito, entre o ícone e a divindade,<br />

existe uma relação de identidade ou, pelo menos, uma relação<br />

de ligação metafísica. O arcipreste russo Pavel Florenski,<br />

que, nos anos 20, retomou e recapitulou as teses da iconolatria<br />

ortodoxa, afirma que o conteúdo espi<strong>ritual</strong> do ícone não é<br />

algo de novo com relação ao original, mas o próprio original: 2<br />

a imagem não deve, portanto, ser considerada uma simples<br />

representação do original, e sim uma evocação, uma “porta”<br />

através da qual Deus entra no mundo sensível. Negar a imagem,<br />

para ele, equivalia a negar a encarnação do espírito, ou<br />

seja, a abandonar todo o mundo físico às trevas do mal e da<br />

corrupção. O original, a idéia platônica, é, para os iconófilos,<br />

passível de evidência sensível: a deles é uma metafísica concreta,<br />

uma teologia visual, que vê no ícone a conjunção do<br />

mundo invisível com o mundo visível. Para Florenski, somente<br />

a Igreja do Oriente soube guardar o espírito dessa tradição<br />

que remonta à pintura das múmias do antigo Egito e que encontrou<br />

o seu maior florescimento na obra dos pintores de<br />

ícones dos séculos XIV e XV, tais como Andrei Rubiev. A Igreja<br />

Romana, ao contrário, foi deformada na própria estrutura<br />

128


de sua vida espi<strong>ritual</strong> pela experiência renascentista, cuja<br />

mundanalidade a Igreja jamais conseguiu superar de fato. As<br />

imagens do Ocidente, as pinturas a óleo sobre tela, são<br />

“terrenas e carnais”. Caracterizadas pela “máxima suculência<br />

sensível”, elas constituem o “testemunho mais clamoroso de<br />

si próprias”. A essa secularização e laicização da imagem implícita<br />

no catolicismo romano, Florenski até parece preferir a<br />

iconoclastia: pelo menos, os iconoclastas, embora negando um<br />

nexo ontológico entre os arquétipos e as imagens, entre Deus<br />

e o ícone, guardam a dimensão ontológica do original, do arquétipo,<br />

de Deus.<br />

O ponto de vista da iconoclastia religiosa, ao contrário,<br />

é afirmado com toda a energia pela ala extremista da Reforma<br />

protestante na primeira metade do século XVI, para a qual<br />

Deus, o original, o espírito, é absolutamente diferente e outro<br />

em relação à imagem, à figura, ao mundo. A preocupação fundamental<br />

dos iconoclastas é a preservação da pureza do conceito<br />

de Deus e do ser; ela implica a recusa de toda representação<br />

sensível, imediatamente qualificada como ídolo. Em conformidade<br />

com a tradição bíblica, eles contrapõem aos ídolos,<br />

às falsas imagens de Deus, a visão profética do porvir. Essa<br />

visão é fundamentalmente diferente do ícone — é a revelação<br />

de Deus, que se manifesta àqueles que o amam e que se afastaram<br />

do mundo idolátrico. “O eleito”, escreve Thomas Müntzer,<br />

“deve prestar atenção à ação da visão a fim de que ela não<br />

brote de preparativos humanos, mas verdadeiramente da vontade<br />

imutável de Deus, e deve providenciar com muito cuidado<br />

para que não se perca nem a mínima parte daquilo que viu,<br />

uma vez que ela deve ser posta em ação eficazmente.” 3 Deriva<br />

daí o caráter sectário do iconoclasmo; as visões são, por definição,<br />

privilégio de poucos. Elas são muito diferentes das<br />

129


imagens e das experiências comuns e cotidianas e apresentam<br />

um caráter excepcional e extraordinário: “Aquilo que o olho não<br />

viu e o ouvido não escutou é o que Deus preparou para aqueles<br />

que o amam”. A postura iconoclasta implica uma rejeição da<br />

realidade mundanal; a esta não se reconhece relação alguma<br />

com o original divino — é um mero espetáculo, uma encenação<br />

sem valor ontológico algum, uma enganosa mentira de<br />

poderes diabólicos. A visão profética é essencialmente moralista,<br />

escatológica e messiânica: ela reivindica a iminência de um<br />

dever ser que ilumina e revela o destino último da humanidade<br />

e anuncia o advento de uma era final de salvação e a instauração<br />

do reino de Deus na terra.<br />

Iconofilia e iconoclastia renascem em nossos dias nas<br />

discussões em relação à imagem social. Os iconófilos contemporâneos<br />

são os realistas e os hiper-realistas dos meios de comunicação;<br />

os iconoclastas são os hiperfuturistas da autenticidade<br />

e da verdade alternativa. Em ambos permanecem<br />

operantes, a seu malgrado, as premissas filosóficas e metafísicas<br />

de seus predecessores religiosos.<br />

A iconofilia moderna consiste em defender a necessidade<br />

de um nexo íntimo, de uma relação de estreita afinidade<br />

entre a notícia publicada no jornal e o fato ao qual ela se<br />

refere, entre a imagem oferecida pela publicidade e a mercadoria<br />

anunciada, entre a propaganda do partido político e sua<br />

realidade social, entre a transmissão televisiva e seu objeto;<br />

em suma, entre a imagem e o original. Assim como o arcipreste<br />

Florenski, os realistas modernos querem ver a realidade;<br />

eles estão cheios de santa indignação contra a manipulação<br />

das notícias, a persuasão oculta, as promessas eleitorais<br />

não mantidas, a tendenciosidade televisiva. Exigem uma informação<br />

honesta e completa, um controle da publicidade,<br />

130


uma propaganda feita através dos fatos, uma televisão que<br />

transmita ao vivo. Acreditam que os meios de comunicação<br />

de massa devam ser subtraídos ao uso partidário e sectário<br />

que deles faz o poder, que sejam potencialmente democráticos<br />

e constituam um instrumento essencial de progresso e<br />

crescimento cívico. Acreditam que a verdade possa e deva ser<br />

comunicada, difundida, divulgada e transmitida sem que a sua<br />

natureza seja alterada.<br />

Qual é o resultado dessas exigências? O que é que os<br />

meios de comunicação de massa oferecem em resposta a tais<br />

expectativas? Uma imagem o mais realista possível, uma imagem<br />

que é vendida como sendo idêntica à realidade, ao conteúdo,<br />

ao original, mas que é tão manipulada, predeterminada<br />

e pré-formada quanto qualquer outra, isto é, uma imagem<br />

hiper-realista que reflete fielmente uma hiper-realidade préimaginada.<br />

Pertencem ao gênero do hiper-realismo social as<br />

notícias relativas a pseudo-acontecimentos sensacionais,<br />

truculentos ou dramáticos, criados para influir sobre a opinião<br />

pública, a publicidade que anuncia a própria autolimitação<br />

e o próprio autocontrole em nome do progresso, a<br />

política de austeridade econômica que pretende restaurar a<br />

distinção entre útil e inútil e a concretude do valor de uso dos<br />

objetos, os programas televisivos que alteram e confundem<br />

personagens reais com atores que os imitam. Esse hiper-realismo<br />

social proporciona uma imagem real só com a condição<br />

de criar uma realidade inteiramente subordinada à imagem<br />

— ele atua como aquela quadrilha produtora de filmes<br />

pornográficos que torturava até a morte as atrizes para obter<br />

imagens de sadismo realistas ao extremo.<br />

A exigência de uma imagem intimamente ligada à realidade<br />

apenas amplia o âmbito da manipulação, que se es-<br />

131


tende até envolver o original. Quanto mais a iconofilia reclama<br />

a visão da realidade, mais essa realidade perde a sua<br />

dimensão real, se torna “alucinante semelhança do real consigo<br />

mesmo”. 4 Os pseudo-acontecimentos ocorrem de verdade,<br />

mas o status de “notícia” que assumem é infinitamente<br />

mais importante do que a sua realidade; a publicidade que<br />

se autolimita é uma publicidade mais eficaz; a restauração<br />

política do útil e do valor de uso possui apenas um valorsigno,<br />

é uma imagem de propaganda; a confusão entre documentação<br />

e teatro, entre verdade e ficção, torna teatral e<br />

fictícia toda a realidade.<br />

A iconoclastia moderna, como a religiosa, está ligada à<br />

visão profética da sociedade futura. Ela se apresenta por isso<br />

como revolucionária em relação ao mundo atual, negando-lhe<br />

o caráter de realidade e qualificando-o como aparência, espetáculo.<br />

O jornalismo, a publicidade, a propaganda política, os<br />

meios de comunicação de massa constituem precisamente, segundo<br />

os iconoclastas modernos, uma sociedade do espetáculo<br />

que deve ser rejeitada em bloco, em nome de uma realidade,<br />

de um original que se expressa na subjetividade radical<br />

de quem se rebela contra as instituições e na organização autônoma<br />

do proletariado revolucionário. A moderna iconoclastia<br />

reproduz todas as características da velha: a pureza do<br />

moralismo monoteísta torna-se a coerência do indivíduo ou<br />

do grupo revolucionário; o desprezo para com os modos idólatras<br />

de viver transforma-se em crítica da vida cotidiana e da<br />

chamada “sobrevivência”; a experiência da revelação divina e<br />

a entrada na história sacra é chamada “superação da pré-história”<br />

e advento da sociedade comunista.<br />

O iconoclasmo moderno resolve-se num hiperfuturismo<br />

visionário que dilui o original na imagem mais original, na mais<br />

132


inédita, insólita, surreal. A ostentação de uma realidade mais<br />

substancial da aparência conduz unicamente a uma forma mais<br />

ruidosa e chamativa de espetáculo. À medida que a imagem<br />

do futuro vai se tornando mais próxima e iminente, perde o<br />

seu caráter de realidade alternativa e qualifica outra categoria<br />

de imagens, que se apresentam, por definição, como mais novas<br />

e eficazes. A revolução que destrói todos os espetáculos reduz-se<br />

à imagem fotográfica da guerra civil; a publicidade consegue<br />

exercer a sua função de estímulo somente sob a condição<br />

de tornar-se surreal e hiperfuturista; os meios de comunicação<br />

de massa são obrigados a oferecer um maravilhoso social<br />

que introduz na vida cotidiana a emoção do excepcional e o<br />

choque do futuro.<br />

No passado, iconofilia e iconoclastia eram posturas<br />

opostas; entre os defensores dos ícones e os defensores das<br />

visões não havia compromisso possível. Ainda em 1968, os<br />

apologistas dos meios de comunicação de massa e os iconoclastas<br />

revolucionários pareciam inimigos irreconciliáveis.<br />

Hoje, porém, entre o hiper-realismo, que oferece realidades visionárias,<br />

e o hiperfuturismo, que proporciona profecias já realizadas,<br />

existe apenas uma diferença de tom: a hiper-realidade<br />

é uma imagem demasiado alucinada para ser de fato real, e a<br />

hipervisão é uma realidade visual demasiado cotidiana para ser<br />

de fato profética. Hiper-realidade e hipervisão assemelhamse<br />

porque têm a pretensão de ser algo mais do que imagens, de<br />

representar uma substância presente ou futura, um original.<br />

Iconofilia e iconoclastia convergem na pretensão metafísica<br />

de estabelecer uma relação entre a imagem e o original; quer<br />

essa relação seja de identidade, como na iconofilia, quer de diferença,<br />

como na iconoclastia, pouco importa: o importante é<br />

o pressuposto metafísico, comum a ambas, que afirma a exis-<br />

133


tência de um original, materializado no ícone ou revelado na<br />

visão. No entanto, a imagem produzida pelos meios de comunicação<br />

de massa não possui original — trata-se de uma construção<br />

artificial que não possui protótipo. Por isso, quando as duas<br />

posições tradicionais em relação às imagens são estendidas à imagem<br />

contemporânea, resultam evidentes sua inadequação e sua<br />

impotência. Elas procuram reagir à falta de dimensão metafísica<br />

da imagem contemporânea mediante a afirmação exagerada e extremista<br />

de uma realidade presente ou futura. Dessa forma, porém,<br />

conseguem gerar apenas um hiper-realismo e um<br />

hiperfuturismo que são a representação caricatural do ícone e<br />

da visão, e que acabam confundindo-se um com o outro.<br />

2 A imagem como simulacro<br />

O simulacro não é ícone nem visão; ele não mantém<br />

uma relação de identidade com o original, com o protótipo,<br />

nem implica a laceração de todas as aparências e a revelação<br />

de uma verdade pura, substancial. O simulacro é uma imagem<br />

que não possui protótipo, é a imagem de algo que não<br />

existe. Iconófilos e iconoclastas consideram-no sinônimo de<br />

ídolo e, como tal, prope nihil – quase nada. Essa avaliação depreciativa<br />

depende inteiramente da pretensão metafísica de<br />

capturar uma realidade absoluta presente ou futura. Por essa<br />

razão, os iconófilos condenaram a idolatria tanto quanto os<br />

iconoclastas; para eles, fixar uma linha de demarcação precisa<br />

entre imagens verdadeiras e falsas, entre ícones e ídolos, constituiu<br />

uma premissa essencial, uma garantia de identidade.<br />

A avaliação positiva da imagem enquanto imagem é<br />

uma perspectiva moderna que implica o fim da metafísica e a<br />

134


completa aceitação do mundo histórico. O conceito de simulacro<br />

só pode nascer num contexto que tenha superado definitivamente<br />

tanto a teoria platônica da idéia e de sua cópia<br />

sensível (sobre a qual se fundamenta a iconofilia oriental)<br />

como o profetismo visionário da Bíblia (sobre o qual se fundamenta<br />

a iconoclastia protestante). Tais condições existem<br />

na Itália do século XVI: a teoria das imagens de São Roberto<br />

Bellarmino, exposta em sua obra De controversiis christianae<br />

fidei, marca precisamente o surgimento de uma nova posição,<br />

irredutível à iconofilia ou à iconoclastia tradicionais.<br />

Bellarmino opõe-se tanto àqueles que, como sãoTomás<br />

de Aquino, sustentavam que se devia a mesma veneração à imagem<br />

e ao exemplar (ao original, por causa dele próprio; à imagem,<br />

por causa do original) como àqueles que, como o teólogo<br />

medieval Durando, afirmavam que a imagem não é propriamente<br />

objeto de culto, constituindo apenas uma ocasião, um<br />

convite à veneração do original. Ao contrário, Bellarmino defende<br />

um cultus imagini per se et proprie debitus, isto é, uma<br />

consideração positiva da imagem que não depende diretamente<br />

do protótipo, mas que é dotada de uma autonomia própria<br />

(per se) e de uma especificidade própria (proprie). Enquanto<br />

para são Tomás de Aquino se deve prestar à imagem de<br />

Cristo o mesmo culto de latria que é devido ao próprio Cristo<br />

e às imagens dos santos, o mesmo culto de dulia devido<br />

aos próprios santos, para Bellarmino, as imagens sacras devem<br />

ser veneradas alio atque alio modo, de um modo diferente<br />

daquele como é venerado o original. 5 Dessa forma, ele rompe<br />

a relação direta entre imagem e original que constitui o<br />

fundamento da iconofilia sem, no entanto, cair na iconoclastia<br />

ou simplesmente numa desvalorização das imagens. O importante<br />

é que o valor das imagens não mais depende da realida-<br />

135


de e da dignidade do protótipo metafísico, e sim de sua dimensão<br />

intrínseca, concreta, histórica.<br />

Ao comparar as teses de Bellarmino sobre as imagens<br />

com aquelas sobre o mesmo assunto defendidas cinqüenta<br />

anos antes por Calvino, em seu Institutio christianae religionis,<br />

não se podem deixar de notar, por um lado, a grande hipoteca<br />

metafísica que pesa sobre o texto iconoclasta do reformador<br />

e, por outro, a aberta aceitação da mundanalidade implícita<br />

nas palavras do cardeal jesuíta. Segundo Calvino, as imagens<br />

sacras são nocivas porque diminuem o temor a Deus e tornam<br />

mais familiar a sua presença, 6 mas, nas páginas de Bellarmino,<br />

Deus está distante. A relação entre imagem e Deus, segundo<br />

ele, é tão indireta e mediata quanto a relação que existe<br />

entre o pobre a quem se dá esmola e Cristo, em cujo louvor<br />

a esmola é dada: “At quando imago honoratur per se et<br />

proprie, ita ut in ipsam vere terminetur honor, tunc honor<br />

eius transit ad exemplar non immediate, sed mediate, et quasi<br />

consequenter”. 7 Em Calvino, a ligação entre Deus e o mundo<br />

é restabelecida mediante os conceitos de signo e de sacramento;<br />

toda a sociedade, portanto, é investida por uma intervenção<br />

constante, embora oculta e misteriosa, de Deus. Em<br />

Bellarmino, ao contrário, não há espaço para uma hermenêutica<br />

sacra que distinga o signo do ídolo, porque o mundo<br />

das imagens em sua totalidade possui um valor próprio que<br />

não depende estritamente de Deus.<br />

As premissas para uma avaliação das imagens como simulacros<br />

fundamentam-se na espi<strong>ritual</strong>idade inaciana, na experiência<br />

vivida por santo Inácio de Loyola na primeira metade<br />

do século XVI e transmitida nos Exercícios espirituais. Trata-se<br />

de uma experiência muito original que está afastada tanto<br />

da teologia visual quanto do profetismo visionário. O que pa-<br />

136


ece caracterizá-la psicologicamente é, por um lado, a extrema<br />

pobreza das imagens que se apresentam espontaneamente<br />

à consciência e, por outro, a vivacidade das cenas históricas<br />

que ela consegue evocar. 8 A posição de santo Inácio em<br />

relação às imagens, na verdade, parece apoiar-se em duas atitudes<br />

aparentemente opostas e irreconciliáveis: a indiferença<br />

e a aplicação dos sentidos. Enquanto a iconofilia teológica favorece<br />

o entusiasmo natural diante da beleza da Criação, santo<br />

Inácio prescreve, antes de mais nada, “tornar-se indiferente a<br />

respeito de todas as coisas criadas”, 9 esforçando-se por estar<br />

disposto a tomar ou deixar qualquer coisa. Ao mesmo tempo,<br />

entretanto, ele se move em direção oposta à renúncia ao<br />

mundo e ao seu espetáculo, o que é típico da iconoclastia visionária,<br />

porque prescreve expressamente “ver com os olhos<br />

da imaginação o lugar real onde está aquilo que se quer contemplar”<br />

(Ex., 47) e aplicar os sentidos com a finalidade de<br />

ter uma experiência o mais concreta possível, porque não há<br />

progresso espi<strong>ritual</strong> se as coisas não forem sentidas e apreciadas<br />

interiormente (Ex., 2).<br />

Estão presentes, assim, as duas condições constitutivas<br />

do simulacro: por um lado, a renúncia à afirmação metafísica<br />

da identidade das coisas e do mundo; por outro, o reconhecimento<br />

de seu valor histórico. Nenhuma imagem é teofânica,<br />

muito embora todas as imagens possam ser condição necessária<br />

do exercício espi<strong>ritual</strong>, isto é, da experiência. A esse propósito<br />

concorrem tanto as imagens do inferno como as da história<br />

de Cristo.<br />

A concepção platônica da beleza como aspecto da verdade<br />

é alheia à espi<strong>ritual</strong>idade da Companhia, assim como é<br />

alheio um êxtase místico que sublime a sensualidade natural.<br />

A aplicação jesuítica dos sentidos é inseparável da indiferen-<br />

137


ça, e o significado de sua ligação paradoxal reside na disponibilidade<br />

para aceitar, para escolher e para querer qualquer forma<br />

histórica, sem atribuir-lhe um valor absoluto ou definitivo.<br />

O conceito de simulacro implica, assim, a presença conjunta<br />

de disposições opostas: ele é o resultado de uma experiência<br />

interior que aceita e mantém os opostos, recusando<br />

as soluções metafísicas de seu conflito.<br />

É lugar-comum na história da arte estabelecer uma ligação<br />

entre os jesuítas e o estilo barroco — por certo, a Companhia<br />

contribuiu direta e indiretamente para a formação e a<br />

difusão da arte barroca. No entanto, já se observou que não<br />

existe um “estilo dos jesuítas” e que eles construíram as suas<br />

igrejas por todo o mundo seguindo, em cada ocasião, cânones<br />

arquitetônicos, artísticos e decorativos extremamente diferentes.<br />

10 Isso confirma, porém, que o importante não é tanto o<br />

estilo barroco, entendido como unidade formal, quanto o fim<br />

do valor metafísico do figurativismo e a inauguração da dimensão<br />

histórica, isto é, a possibilidade de utilizar como simulacro<br />

qualquer imagem e qualquer estilo. É justo essa abertura<br />

o dado que emerge com clareza, tanto da experiência<br />

jesuítica como do mundo barroco. Em ambos, opera-se essa<br />

secularização sem resíduos, alheia a toda perspectiva<br />

escatológica, que Benjamin pôs em evidência. 11<br />

O emblema é a produção figurativa barroca que mais<br />

ostenta as características do simulacro. De fato, o emblema,<br />

que foi amplamente utilizado no decorrer do século XVII pelos<br />

jesuítas para ilustrar os seus livros, é uma imagem acompanhada<br />

de um mote ou de uma sentença, sem nenhuma preocupação<br />

realista ou visionária. Trata-se, ao contrário, de uma<br />

construção artificiosa que deixa à mostra o seu caráter con<br />

ceituoso, arguto, engenhoso. Além disso, a sua própria rea-<br />

138


lização técnica por meio da impressão gráfica não permite o<br />

desenvolvimento de um interesse fetichista em relação a ele,<br />

similar àquele do qual são objeto as obras únicas, os quadros.<br />

O livro Imago primi saeculi Societatis Iesu, publicado pelos jesuítas<br />

em Antuérpia em 1640, por ocasião do primeiro centenário<br />

da Companhia, não só oferece um exemplo esplêndido<br />

do uso jesuítico da imagem emblemática, como também constitui<br />

ele próprio um simulacro: expressamente comparada pelos<br />

seus autores aos troféus, às estátuas, aos arcos de triunfo<br />

dos antigos romanos, a obra aspirava a ser apreciada independentemente<br />

do assunto tratado.<br />

O triunfalismo do simulacro é inseparável da experiência<br />

do vazio. Benjamin atribuiu precisamente à emblemática<br />

seiscentista um enorme poder de “esvaziamento” (Entleerung):<br />

a partir do momento em que o objeto é incapaz de irradiar<br />

um significado ou um sentido unívoco, ou seja, é privado de<br />

sua identidade, “qualquer coisa pode significar qualquer outra<br />

coisa”. 12 Contudo, a procura diligente de uma intenção<br />

oculta ou secreta por trás dessa emblemática, que jamais chega<br />

a manifestar-se, cega para aquilo que ele mostra; o essencial<br />

é a sua exterioridade vazia, que a procura de um significado<br />

oculto, ao contrário, esconde.<br />

A acusação de idolatria lançada contra a Companhia,<br />

que constitui um lugar-comum da polêmica antijesuítica, 13<br />

revela a perturbação que a apreciação histórica da imagem provoca<br />

nos pensadores metafísicos: para estes, é inconcebível<br />

reconhecer à imagem e à criatura, pensada como “imagem de<br />

Deus”, uma validade imediatamente dependente do ser, da<br />

substância, do protótipo. Ora, o simulacro é justamente a afirmação<br />

do valor da imagem enquanto imagem. O fato de que<br />

o próprio homem possa ser considerado simulacro demons-<br />

139


tra a distância entre o chamado humanismo jesuítico e o<br />

humanismo clássico.<br />

A independência do simulacro, no entanto, não guarda<br />

relação alguma com a autonomia da arte. Nesta, a imagem<br />

repudia um original externo para afirmar a si própria como original,<br />

como entidade meta-histórica universalmente válida; a<br />

concepção da arte como criação não extingue a metafísica,<br />

apenas desloca o seu âmbito de aplicação do protótipo externo<br />

para a obra. A teoria da arte pela arte — como afirmava<br />

Benjamin — é uma “teologia artística”, 14 e a atribuição do<br />

ser à arte não indica em absoluto uma superação da metafísica;<br />

pelo contrário, na teoria da arte pela arte, a imagem justificase<br />

unicamente sob a condição de que seja ela própria o ser!<br />

O conceito de simulacro, aliás, implica a negação tanto<br />

de um protótipo externo como da tentação de considerar a<br />

imagem um protótipo; ele está, por isso, relacionado com as<br />

técnicas de reprodução industrial da imagem, a começar pela<br />

impressão. O interesse jesuítico pela imagem jamais foi de natureza<br />

artística; 15 o simulacro, porém, apresenta uma relação<br />

de estreitíssima afinidade com a espi<strong>ritual</strong>idade e até com a<br />

organização dos jesuítas. 16<br />

O conceito de simulacro, entendido como construção artificiosa<br />

que não possui original e que é incapaz de ser, como a<br />

obra de arte, ela mesma um original, encontra as condições para<br />

uma plena realização nos meios de comunicação de massa contemporâneos.<br />

Estes podem propor uma imagem que é enormemente<br />

mais complexa e construída do que aquela oferecida<br />

por qualquer realidade e que, não obstante, não adquire — como<br />

a obra de arte — um caráter prototípico, uma originariedade<br />

própria. A televisão, por exemplo, pode oferecer uma variedade<br />

incomparavelmente maior de imagens de um dado aconte-<br />

140


cimento do que aquela que o indivíduo poderia ver se estivesse<br />

presente no local, sem com isso adquirir um status artístico.<br />

Os meios de comunicação de massa, até o momento, têm<br />

em geral negado o seu caráter de simulacro. Ao considerar a si<br />

próprios como “espelho da realidade” ou do futuro diante de<br />

um público ainda profundamente impregnado de nostalgias<br />

metafísicas, chegaram às aberrações hiper-realistas e hiperfuturistas.<br />

Mas o seu valor não consiste na satisfação de pretensões<br />

metafísicas; ao contrário, ele implica precisamente o abandono<br />

de tais pretensões. Os meios de comunicação não podem<br />

ser a representação da realidade ou do futuro, porque são, antes<br />

de tudo, condições da experiência social presente e futura.<br />

Hoje, o patrimônio estilístico, formal e cultural da humanidade<br />

pode ser objeto de uma simulação que se apresenta<br />

como tal, de uma ficção que oferece, além de si mesma, os<br />

sinais da própria irrealidade. Boorstin observa que, em toda<br />

a história do homem, se trata da primeira grande sedução na<br />

qual o fascínio do sedutor é reforçado pela revelação de seus<br />

artifícios. 17 Isso depende do fato de que a escolha não se dá<br />

— como nas idades metafísicas — entre verdade e mentira,<br />

mas entre uma imagem que se vende como realidade presente<br />

ou futura e uma imagem que é dada como imagem, entre<br />

a imagem hiper-realista—hiperfuturista e o simulacro.<br />

O simulacro, portanto, é a imagem sem identidade: ele<br />

não é idêntico a nenhum original exterior e não possui uma<br />

originalidade autônoma própria. O seu valor não possui valor<br />

algum; o seu engano é patente; o seu caráter conflituoso<br />

é indolor. Ele marca o momento no qual a ficção deixa de<br />

ser niilista sem, no entanto, restaurar a metafísica, no qual o<br />

conflito deixa de ser dissolvente sem restabelecer a unidade.<br />

141


Notas<br />

1. D. J. Boorstin, The Image. Nova York, Harper, 1964.<br />

2. P. Florenski, Ikonostas (1922), in Bogolovski Trudi (Moscou), 1972, IX.<br />

3. T. Müntzer, Ausslegung des andern unterschyds Danielis dess propheten gepredigt auffm<br />

schlos zu Alstet vor den tetigen thewren Herzcogen und vorstehern zu Sachssen (1524).<br />

4. J. Baudrillard, L’échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard, 1976, p. 112.<br />

5. R. Bellarmino, De controversiis christianae fidei (1586-93). Paris, 1608, t. II, Quarta<br />

Controversia, livro II, cap. XX e seguintes.<br />

6. J. Calvino, Institution de la réligion chrétienne (1541). Paris, 1957-60, livro I, cap. XI.<br />

7. R. Bellarmino, op. cit., cap. XXI.<br />

8. J. De Guibert, La spi<strong>ritual</strong>ité de la Compagnie de Jésus. Roma, Institutum<br />

Historicum Societatis Iesu, 1953, p. 13 e pp. 43-4.<br />

9. Inácio de Loyola, Exercícios espirituais (1548), 23.<br />

10. C. Galassi Paluzzi, Storia segreta dello stile dei Gesuiti. Roma, Mondini, 1951.<br />

11. W. Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928), in op. cit., I, 1.<br />

12. Ib., p. 259.<br />

13. Repetido, por exemplo, por V. Gioberti, Il gesuita moderno. Lausanne, Bonamici,<br />

1846-7, t. II, p. 509.<br />

14. W. Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit<br />

(1939), op. cit.<br />

15. E. Kirschbaum, La Compagnia di Gesù e l’arte, in Quarto centenario della<br />

costituzione della Compagnia di Gesù. Roma, Vita e Pensiero, 1941.<br />

16. J. Baudrillard, op. cit., p. 80.<br />

17. D.J. Boorstin, op. cit.<br />

142


Capítulo V<br />

Fenômeno e simulacro<br />

1 A recusa do conceito metafísico de aparência<br />

O primeiro capítulo de A vontade de poder — livro que<br />

Nietzsche não conseguiu terminar de escrever — devia tratar<br />

(como pode deduzir-se de alguns esboços bastante detalhados<br />

que ele redigiu nos primeiros meses de 1888) de uma crítica<br />

genealógica dos conceitos opostos e complementares de<br />

“mundo verdadeiro” e “mundo aparente”. A maioria dos numerosos<br />

fragmentos dedicados ao assunto propõe-se justamente<br />

a mostrar a gênese metafísico-moral dessa distinção<br />

que, por um lado, se baseia na negação sistemática do conflito,<br />

do devenir, do múltiplo — numa palavra, do mundo —,<br />

por outro, na sub-reptícia e injustificada atribuição de realidade<br />

à identidade, ao eterno, ao uno, à idéia; por um lado, se<br />

baseia no descrédito, na condenação do que muda, por outro,<br />

na apologia e na valorização do que é colocado acima de<br />

toda dimensão mundana. Essa reviravolta, da qual nasce a<br />

metafísica ocidental — pois o que é mundanamente real é con-<br />

143


siderado “aparente” e, vice-versa, o que é pura e eticamente<br />

ideal torna-se “real” —, está ligada, segundo Nietzsche, ao<br />

nome e à obra de Platão, que mediu “o grau de realidade com<br />

base no grau de valor”, atendo-se ao princípio de que, quanto<br />

mais “idéia”, tanto mais ser. 1 O cristianismo teria herdado<br />

tal hostilidade para com a aparência e o mundo, empurrando<br />

a verdade para um além inalcançável por definição. Ele seria,<br />

assim, uma espécie de platonismo para o povo, que envenena<br />

toda a concepção do mundo, obstrui o caminho do conhecimento,<br />

dissolve e mina todos os instintos reais. 2 Enfim,<br />

Kant, ao reafirmar a distinção entre aparência e “coisa-em-si”,<br />

teria voltado a propor uma realidade que não pode ser alcançada,<br />

demonstrada, prometida, à qual é possível ter acesso só<br />

através da moral.<br />

Efetivamente, embora possa censurar-se a Nietzsche o<br />

fato de ele ter considerado, na sua análise da aparência, apenas<br />

a concepção moral que contrapõe a aparência à realidade<br />

— sem levar em consideração nem a tradição neoplatônica,<br />

que considera a aparência uma manifestação do mundo<br />

inteligível, nem a tradição empírico-científica, que estabelece<br />

uma relação de semelhança ou de identidade entre<br />

aparência e realidade, nem, enfim, a teoria hegeliana que<br />

identifica aparência e essência —, tem-se, no entanto, que<br />

todas essas diversas reavaliações da aparência, as quais revelam<br />

a preocupação de “salvar os fenômenos” de uma condenação<br />

radical, são remissíveis ao horizonte conceitual aberto<br />

por Platão, seja porque formuladas por ele próprio, seja<br />

porque somente podem ser pensadas no âmbito de uma<br />

metafísica idealista.<br />

Num trecho de Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche recapitula<br />

as várias fases através das quais o chamado “mundo ver-<br />

144


dadeiro” instituído por Platão acabou por transformar-se em<br />

fábula (Fabel). Depois de ter acenado à sua completa desmistificação<br />

por parte dos espíritos livres, ele conclui que junto<br />

com o mundo verdadeiro se expulsou (abgeschafft) também o aparente<br />

(scheinbar). 3 Essa afirmação constitui o ponto de chegada<br />

de sua reflexão sobre o aparecer, uma vez que as notas<br />

posteriores não trazem nenhuma contribuição nova nem esclarecem<br />

as conseqüências da sua recusa dos conceitos<br />

metafísicos de realidade e aparência.<br />

Neste século, Heidegger e Klossowski realizaram a tarefa<br />

de repensar o problema do aparecer, movendo-se por<br />

caminhos completamente diferentes daqueles indicados por<br />

Platão. Ambos recusam o conceito metafísico de aparência<br />

e opõem-lhe uma nova problemática, que, no caso de Heidegger,<br />

gira em torno de uma nova interpretação da palavra<br />

fenômeno e, no caso de Klossowski, em torno do conceito<br />

de simulacro. O pensamento heideggeriano mantém relação<br />

muito complexa com Nietzsche, fazendo questão de<br />

apresentar-se, em geral, como alternativo relativamente a<br />

ele. 4 A reflexão klossowskiana a respeito do simulacro nasce,<br />

por sua vez, de uma leitura de Nietzsche que mantém<br />

com o texto uma relação de consonância e de afinidade. 5<br />

Entretanto, apesar desses posicionamentos conceituais diferentes<br />

com relação a Nietzsche, ambos abrem horizontes<br />

conceituais nos quais a eliminação simultânea dos conceitos<br />

metafísicos reciprocamente complementares de mundo verdadeiro<br />

e de mundo aparente é inteiramente assumida e pensada<br />

muito além de Nietzsche, em dois sentidos diferentes<br />

e até mesmo opostos.<br />

145


2 Fenômenos e simulacros<br />

Já em Ser e tempo, Heidegger situa-se além dos conceitos<br />

metafísicos de “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”,<br />

mediante a adoção do método fenomenológico que se propõe<br />

a restituir a palavra às coisas mesmas (zu den Sachen selbst).<br />

Divide a seguir a palavra fenomenologia nos dois termos gregos<br />

que a compõem (fainómenon e lógos) e considera-os separadamente.<br />

6 A referência “às coisas mesmas” leva Heidegger<br />

à procura do significado originário de aparência (Erscheinung).<br />

Ele distingue, assim, três conceitos: 1. o fenômeno (Phänomenon),<br />

definido como aquilo que se mostra em si próprio<br />

(das Sich-am-ihm-selbst zeigende); 2. o parecer (Scheinen), entendido<br />

como aquilo que tem a aparência de..., mas que, “na<br />

realidade”, não é o que aparenta ser; 3. a aparência ou pura<br />

aparência (Erscheinung ou blosse Erscheinung), que designa o<br />

anunciar-se de algo que não se mostra através de algo que se<br />

mostra (Sichmelden von etwas, das sich nicht zeigt, durch etwas,<br />

was sich zeigt). Heidegger privilegia o fenômeno e acredita que<br />

o segundo termo deva estar compreendido no primeiro. De<br />

fato, o parecer é apenas a modificação privativa do fenômeno.<br />

Quanto à pura aparência, ela designa precisamente o velho<br />

conceito metafísico segundo o qual a aparência oculta o<br />

ser e este nunca pode nem sequer aparecer. A tal estatuto pertencem<br />

indícios, representações, sintomas e símbolos. A pura<br />

aparência possui vários significados: a. o anunciar-se como<br />

não-mostrar-se (Sichmelden als Sich-nicht-zeigen); b. o próprio<br />

anunciante que, no seu mostrar-se, atesta alguma coisa como<br />

não se mostrando (das Meldende selbst das in seinem Sichzeigen<br />

etwas Sich-nicht-zeigendes anzeigt); e, finalmente, c. a irradiação<br />

que anuncia (meldende Ausstrahlung) algo que permane-<br />

146


ce oculto, não revelado e jamais revelável — essa é, precisamente,<br />

a relação estabelecida por Kant entre o que ele denomina<br />

“fenômeno” e a coisa-em-si. Todos esses significados de<br />

pura aparência implicam uma relação de remissão (Verweisungsbezug)<br />

ao próprio ente, de modo que — segundo Heidegger<br />

— o remetente poderá desempenhar a própria função somente<br />

se configurar-se como fenômeno, entendido em seu significado<br />

originário: aquilo que se mostra em si próprio, ou seja,<br />

um modo particular de ir ao encontro de algo (eine<br />

ausgezeichnete Begegnisart von etwas).<br />

A abordagem dada por Klossowski a esse problema,<br />

desde o início, é, por sua vez, o oposto. 7 O retorno às coisas<br />

mesmas é impossível porque, a partir do momento em que<br />

Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte<br />

de Deus, que é definida por Klossowski como “o acontecimento<br />

dos acontecimentos”, está estritamente ligada à “necessidade<br />

circular do ser”, expressa na teoria nietzschiana do<br />

eterno retorno. As “coisas mesmas” já são desde sempre cópias<br />

de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de<br />

Deus dissolveu para sempre; trata-se de simulacros, não de fenômenos.<br />

Ao monoteísmo sucede o politeísmo; e esse<br />

politeísmo redivivo, no entanto, é fundamentalmente diferente<br />

da antiga devoção para com a pluralidade dos deuses. As estátuas<br />

dos deuses são vistas com os olhos da Antiguidade em<br />

declínio, como a aparência de algo que não existe. Os conceitos<br />

metafísicos de aparência e de realidade, portanto, são<br />

recusados tão radicalmente quanto em Heidegger, mas não<br />

em nome de algo que, ao mostrar-se em si mesmo, assimila<br />

até o aspecto e a aparência, mas, ao contrário, em nome de<br />

algo que anuncia e remete infinitamente a uma cópia. Enquanto<br />

em Heidegger aquilo que se mostra em si mesmo absorve<br />

147


até a mera aparência, aqui a mera aparência deixa de ser tal<br />

porque absorve cada “em si mesmo”, cada originariedade. Se,<br />

para Heidegger, o movimento em direção às coisas mesmas<br />

implica a busca daquilo que é mais próprio (eigen), inversamente,<br />

para Klossowski, o problema contempla a relação com<br />

aquilo que é mais estranho, com qualquer momento vivido da<br />

história. Essa estranheza caracteriza a própria história, que,<br />

por isso, está “fora de si”, é repetição, simulacro.<br />

Na Introdução à metafísica, 8 Heidegger retoma o problema<br />

da relação entre ser e aparência, resolvendo a segunda<br />

no primeiro de modo ainda mais radical do que o fizera em<br />

Ser e tempo. Nessa obra, ele afirma a unidade recôndita de ser<br />

e aspecto (Schein), destacando principalmente o significado<br />

fundamental de Schein (“luz”) e scheinen (“resplandecer”). Diferencia<br />

a seguir três espécies diversas de aspecto: 1. o aspecto<br />

como esplendor (Glanz) e como reluzir (leuchten); 2. o aspecto<br />

como um aparecer (Erscheinen), como um vir-a-ter aspecto<br />

(Vor-schein); 3. o aspecto como puro aspecto (als blossen<br />

Schein). Dentre essas acepções da palavra Schein, Heidegger<br />

privilegia a segunda, que designa precisamente o mostrar-se<br />

(Sichzeigen) de algo, na medida em que ela constitui o fundamento<br />

da possibilidade das outras duas. A íntima conexão<br />

entre ser e aspecto confirma-se etimologicamente também pela<br />

afinidade da raiz grega phy (phýsis, “natureza” e, portanto,<br />

“ser”) com a raiz pha (phaínesthai, “aparecer”). Remetendose<br />

às origens da língua e da filosofia gregas, Heidegger afirma<br />

que “ser significa aparecer” (Sein heisst Erscheinung). Dessa<br />

forma, ele rejeita completamente a perspectiva metafísica<br />

introduzida por Platão, que menospreza a aparência, considerando-a<br />

o oposto do ser. Essas considerações são confirmadas<br />

pela análise da palavra dóxa, que significa, além de “opi-<br />

148


nião”, “aparência” e “glória”. A dóxa, para Heidegger, não é<br />

o contrário do ser, mas a modalidade do ser mais excelso. Isso,<br />

no entanto, não exclui o terceiro significado de aparência, o<br />

aspecto como puro aspecto que produz a ilusão de algo.<br />

“Mas”, afirma Heidegger, “onde o ente se encontra no aspecto<br />

(Schein) e lá se mantém por longo tempo e seguro, o aspecto<br />

sempre poderá despedaçar-se e cair.” Mesmo o aspecto<br />

(Schein) pertence ao próprio ser; ele é história (Geschichte).<br />

A pretensão de livrar-se de seu poder histórico constitui justamente<br />

uma das características da metafísica. O aspecto, ao<br />

contrário, é uma flexão, uma declinação do ser — ele pertence<br />

ao próprio ser, entendido como aparecer (Erscheinen). A<br />

via do aspecto, que está entre a do ser e a do nada, implica<br />

um risco sempre à espreita que deve ser corajosamente enfrentado.<br />

A palavra grega tólma indica bem qual a atitude com<br />

que é necessário responder a esse desafio. O ser ama esconder-se;<br />

ele provém da latência e tende a retornar a ela, seja na<br />

ocultação e no silêncio, seja no fingimento (Verstellung) e na<br />

dissimulação (Verdeckung).<br />

Em Klossowski, porém, realiza-se um movimento oposto:<br />

é a aparência, entendida como puro aspecto, que se estende<br />

até recobrir inteiramente o ser. A supressão da separação<br />

metafísica entre mundo real e mundo aparente é pensada<br />

referentemente à língua latina. Para Nietzsche, o mundo verdadeiro<br />

tornou-se fábula (Fabel), do latim fabula, que deriva<br />

do verbo fari (“falar”, “predizer”). O particípio passado é<br />

fatum (“fado”, “destino”). 9 Essas conexões etimológicas confirmam<br />

a ligação existente entre a fabulação do mundo, o processo<br />

através do qual as “coisas reais” se desrealizam, se tornam<br />

simulacros, e o eterno retorno, que dissolve a identidade<br />

do real, que retira da história qualquer significado ou di-<br />

149


eção. O mundo, longe de marchar em direção a uma salvação<br />

final qualquer, “encontra-se, a todo instante da sua história,<br />

completo e em seu término, 10 não porque consista no próprio<br />

ser, mas, ao contrário, porque é a cada momento a repetição,<br />

o simulacro de coisas que já aconteceram infinitas vezes.<br />

O amor fati consiste justamente no amar e no querer a<br />

dimensão fortuita, extremamente relativa e sem importância,<br />

que essa repetição institui. Ele não é, portanto, de forma alguma,<br />

a interiorização de uma necessidade cega e desconhecida;<br />

é, ao contrário, a perda de identidade e a exteriorização<br />

do próprio homem: “Aceitar como a própria sorte” qualquer<br />

evento e “decidir-se em favor da existência de um universo<br />

que não tem outro propósito além de ser aquilo que é” significa<br />

transformar a própria humanidade numa simulação, disposta<br />

a jogar qualquer jogo, a desempenhar qualquer papel,<br />

a ser feliz e a vencer, aconteça o que acontecer. A vertigem<br />

desse modo de ser, no qual coincidem a máxima desesperança<br />

e a máxima esperança, dissolve o próprio conceito de ser.<br />

Não porque pense o ser como devenir, segundo a objeção que<br />

Heidegger faz a Nietzsche, 11 mas porque elimina a própria<br />

possibilidade de uma originariedade do ser — a simulação é<br />

a irrupção de uma potência incompatível com a identidade<br />

pessoal. Prosseguindo na indagação etimológica de Klossowski,<br />

pode-se observar que também fama provém do mesmo<br />

verbo fari do qual derivam fábula e fado; entendida no<br />

sentido de dissolução da identidade da pessoa na sua reputação<br />

— como se deduz do uso que dela fazem os clássicos latinos<br />

12 —, ela possui um significado oposto à dóxa de que<br />

fala Heidegger: não esplendor do fenômeno, mas repetição<br />

que transforma e dissolve.<br />

150


3 Lógos e eterno retorno<br />

Retomando a definição aristotélica da função do lógos<br />

como apofaínesthai (“mostrar-se”, “aparecer”), Heidegger, em<br />

Ser e tempo, 13 afirma que a função do discurso consiste em<br />

“deixar ver, mostrando” (aufweisende Sehenlassen), aquilo sobre<br />

o que se fala. Assim, ele rejeita o conceito metafísico de<br />

verdade como adequação entre aparência e realidade, como<br />

concordância entre o sensível e o inteligível, e revela a íntima<br />

conexão existente entre os conceitos de fenômeno e de lógos.<br />

O fenômeno originário da verdade consiste no ser-descobridor<br />

(entdeckend-sein), no deixar ver o ente no seu não-estaroculto.<br />

Diferentemente, portanto, da metafísica, que considera<br />

o aparecer o contrário da verdade, Heidegger define a própria<br />

verdade como um mostrar-se, como um não-ocultar-se,<br />

de acordo com a etimologia da palavra grega alétheia (alétheia,<br />

não permanecer oculto). Dessa forma, a aparência,<br />

reconduzida ao seu significado originário de fenômeno, resulta<br />

solenizada como verdade: toda descoberta, afirma<br />

Heidegger, é realizada “partindo do pôr a descoberto o aspecto<br />

(Schein)”. 14 O que não exclui, no entanto, que ela corra<br />

sempre o risco de mergulhar de novo na contrafação, na<br />

ocultação, no olvido. A verdade, por conseguinte, é comparável<br />

a um furto (Raub). Heidegger opera, assim, uma reforma<br />

do conceito de verdade mediante a qual esta pode apropriar-se<br />

até mesmo daquilo que a metafísica lhe havia oposto<br />

por definição. De fato, a distinção metafísica entre “mundo<br />

verdadeiro” e “mundo aparente” é suprimida em favor de uma<br />

refundação da verdade, que herda todo o páthos dos discursos<br />

que se apresentam como revelação da verdade, que a entendem<br />

como revelação. O fato de que essa manifestação seja<br />

151


também encobrimento e contrafação só faz ampliar o âmbito<br />

e o alcance dessa reforma, sem mudar-lhe a orientação fundamental,<br />

que consiste no apelo à origem.<br />

No mesmo sentido, Heidegger, ao rejeitar em sua Introdução<br />

à metafísica a falsa oposição metafísica entre ser e pensar,<br />

afirma que phýsis e lógos, natureza e discurso, são a mesma<br />

coisa, já que a palavra lógos não significa “palavra” ou “doutrina”,<br />

mas, em conformidade ao seu étimo léghein (“recolher”),<br />

indica “aquilo que está constantemente junto, o que foi colhido<br />

junto”, ou, de forma ainda mais detalhada e precisa, “o que<br />

foi recolhido junto, originariamente recolhedor, que constantemente<br />

se impõe”. Nessa definição, faz-se referência aos três<br />

aspectos fundamentais do pensar (e do ser): em primeiro lugar,<br />

à sua originariedade; em segundo lugar, ao recolhimento<br />

(Sammlung); por fim, ao afirmar-se no “parecer que se abre”<br />

(aufgehendes Scheinen). Nenhuma contraposição, portanto,<br />

pode existir entre o ser e a aparência, entre o ón e o phainómenon;<br />

a separação entre esses dois termos é posterior e depende<br />

da doutrina platônica das idéias, que, ao definir a idéia como<br />

determinação de uma estabilidade que se oferece à vista, separa<br />

protótipo de imagem, modelo de cópia, mundo verdadeiro<br />

de mundo aparente. O parecer acaba rebaixado, assim,<br />

a “mera aparência”, e separado do ser por um abismo. A concepção<br />

da verdade como adequação é justamente conseqüência<br />

disso. Um aprofundamento posterior de “o que significa<br />

pensar” leva Heidegger a considerar o pensamento memória<br />

(Gedächtnis) e a definir esta como o recolhimento do pensamento.<br />

15 Pensar (Denken) é para Heidegger pensar originariamente,<br />

isto é, Andenken (“memória”). De forma análoga, o<br />

ser (Wesen) é Anwesen (“presença”), entendido não como representação,<br />

duplicação de algo que está em outro lugar, e sim<br />

152


como parecer (Scheinen), chegar ao mais vistoso parecer ou<br />

resplandecer (das erscheinendste Scheinen). 16<br />

Esses problemas encontram em Klossowski uma solução<br />

diametralmente oposta. Enquanto o ponto de chegada de<br />

Heidegger é a memória, que recupera e revela a originariedade<br />

das coisas, a premissa de Klossowski é o olvido, o qual, ocultando<br />

o eterno retorno das coisas, permite a vida e a ação.<br />

Klossowski pergunta-se, da mesma forma que Nietzsche: se<br />

o olvido não ocultasse ao homem o caráter simulatório de todas<br />

as ações, teria este força para continuar vivendo? 17 O olvido<br />

proporciona ao homem a ilusão de viver e levar a cabo<br />

de um modo original e autêntico aquilo que, ao contrário, é<br />

simulacro, cópia de uma cópia. Portanto, aqui também o<br />

dualismo da representação é suprimido, não porque se apresente<br />

e mostre algo de originário, mas, ao contrário, porque a<br />

imagem remete vertiginosamente a uma outra imagem, sem<br />

que jamais se consiga encontrar um protótipo. O conceito de<br />

cópia é abolido porque não existe modelo. No mito platônico<br />

de Er, objeto das reflexões de Klossowski, impressiona a conexão<br />

entre nascimento e olvido: só se nasce depois de se ter<br />

bebido a água do rio Letes, que corre pelo vale de Lete, cuja<br />

função é precisamente a de fazer esquecer à alma o caráter replicado,<br />

repetitivo, da vida que se escolheu e que se dispõe a<br />

viver. Seguindo o exemplo de Heidegger, que filosofa sobre<br />

as etimologias, pode-se notar que o verbo latino obliviscor é,<br />

de acordo com Cícero, metáfora derivada da escrita que se apaga;<br />

ademais, o verbo latino lego (que, como o grego légo, quer<br />

dizer “recolher”) adquire em seguida o significado de “ler” (enquanto<br />

o verbo grego deriva para o significado de “dizer”).<br />

Essas etimologias latinas mostram justamente a dimensão não<br />

originária, derivada, “recopiada” do recordar e do pensar.<br />

153


Nem a revelação do eterno retorno do mesmo é uma<br />

verdadeira revelação, um Entdeckung, um dévoilement, isto é,<br />

a revelação de uma verdade, um momento privilegiado e autêntico<br />

em cuja aceitação e em cuja vontade possa constituirse<br />

uma identidade subjetiva. Ele é um fato fortuito, que já<br />

aconteceu infinitas vezes, um simulacro. Por isso, o eterno retorno<br />

é um círculo vicioso: eu não posso recordar o eterno retorno<br />

a não ser esquecendo que ele já me foi “revelado” infinitas<br />

vezes. Tornar a querer-me uma vez mais denuncia o fato<br />

de que nada nunca chega a constituir-se num sentido, de uma<br />

vez por todas. 18 O ponto de chegada não é o recolhimento; ao<br />

contrário, é a dissolução da identidade subjetiva. Tornar a querer<br />

o passado-não-desejado (revouloir le révolu-non-voulu) quer<br />

dizer estar aberto, não a tudo, mas à repetição de tudo. A novidade<br />

está, justamente, numa duplicação vertiginosa que envolve<br />

também aquele que afirma o eterno retorno, duplicação<br />

que, no entanto, jamais pode ser verificada e confrontada<br />

com o uno, com o idêntico, com o exemplar, porque estes<br />

se situam além das possibilidades históricas, no âmbito da<br />

metafísica e da teologia. Klossowski introduz, dessa forma,<br />

uma noção positiva do falso, estendendo-a a todos os problemas<br />

da existência. Resulta extinta a pretensão de ir além do<br />

simulacro: ele não é um meio, é uma potência cuja irrupção<br />

põe fim à identidade, irremediavelmente.<br />

4 Fenomenologia hermenêutica e semiótica pulsional<br />

A íntima conexão entre os conceitos de fenômeno e de<br />

lógos, que encontram seu ponto de convergência na determinação<br />

comum a ambos do mostrar (Zeigen, Aufweisen), leva<br />

154


Heidegger a definir a indagação fenomenológica como um<br />

direto “fazer ver” (Aufweisung) e um direto “de-mo(n)strar”<br />

(Auswiesung), em oposição à metafísica, a qual faz referência<br />

a um ente que não se mostra, não se manifesta em si próprio,<br />

que não aparece, que é estranho e oposto à aparência.<br />

A condição sine qua non da investigação fenomenológica é,<br />

portanto, a supressão da distinção entre “mundo verdadeiro”<br />

e “mundo aparente”. “Por trás dos fenômenos da fenomenologia<br />

não pode existir, absolutamente, nada mais.” 19 O<br />

automostrar-se do fenômeno é o ser do próprio ente: “A<br />

fenomenologia é a ciência do ser do ente, isto é, ontologia”.<br />

A descrição fenomenológica, contudo, não é, de forma alguma,<br />

ingênua ou casual — é hermenêutica. E assim é não porque<br />

seja interpretação (Interpretation) de uma linguagem dada<br />

mas, mais profundamente, porque ela mesma é interpretação<br />

(Auslegung), isto é, um expor, um pôr à mostra, uma explicitação<br />

da compreensão. Desse modo, “todo ver já é sempre<br />

compreendente-interpretante”. 20 A asserção (Aussage) é um<br />

modo derivado da interpretação, que tem como aspecto primeiro<br />

a manifestação (Aufzeigung), o mostrar, o fazer ver. O<br />

ponto de chegada de Heidegger é, portanto, a linguagem, cuja<br />

essência é justamente aquela de “fazer com que o ente se faça<br />

ver por si próprio”. 21 A fenomenologia é hermenêutica por<br />

estar inseparavelmente ligada à linguagem.<br />

Para Klossowski, entretanto, existe uma conexão íntima<br />

entre o simulacro e a teoria do eterno retorno. Não se trata<br />

de uma verdadeira teoria, uma teoria da verdade, mas um simulacro<br />

de teoria. A filosofia do simulacro torna-se um simulacro<br />

de filosofia: sendo a simulação o atributo do próprio<br />

ser, ela vem a ser também o princípio do conhecimento”. 22 O<br />

eterno retorno não é uma verdade e menos ainda uma lei his-<br />

155


tórica, mas sim uma prova em cuja base têm lugar a educação<br />

e a seleção. O problema da hierarquia, que pareceu preocupar<br />

Nietzsche no final da sua vida, não é resolvido mediante<br />

a restauração dos valores metafísicos (cognoscitivos ou morais),<br />

tampouco através da violência, e sim mediante uma prova,<br />

uma experiência, um exercício ao qual todos possam, indistinta<br />

e incondicionalmente, submeter-se. Essa prova consiste<br />

precisamente na capacidade não só de suportar o pensamento<br />

do eterno retorno, como também de desejá-lo. Superar<br />

a prova significa desejar com a máxima energia o eterno<br />

retorno do mesmo, ou seja, não considerar mais o passado e<br />

seu possível retorno um obstáculo à ação do filósofo. Este é<br />

— nota Klossowski — Versucher, no duplo sentido da palavra,<br />

ou seja, o que experimenta e o que tenta. Essa segunda<br />

dimensão, voltada para a operatividade, para a eficácia, é evidente<br />

no caráter de maquinação que assume o filosofar, o qual<br />

“abandona a esfera propriamente especulativa para adotar,<br />

quando não simular, os preliminares de um complô”. 23 Torna-se<br />

essencial para o filosofar uma dimensão militar, tática e<br />

estratégica, a qual não diz respeito simplesmente aos modos<br />

ou às formas da comunicação, mas à própria substância do<br />

pensar. O filósofo, através da eliminação da distinção entre<br />

mundo verdadeiro e mundo aparente, dispõe-se a levar a cabo<br />

um “golpe de mundo”.<br />

A superação da distinção entre mundo verdadeiro e<br />

mundo aparente, que se realizou em Heidegger com a introdução<br />

do conceito de fenômeno, desenvolve-se na reflexão sobre<br />

a linguagem que ele leva a efeito na obra Pelos caminhos<br />

da linguagem. 24 Nela, Heidegger não examina a hermenêutica<br />

com base na interpretação — como se seguisse o ponto de<br />

vista metafísico-humanístico que procura a adequação da le-<br />

156


tra com o espírito, do sensível com o supra-sensível, da escrita<br />

com o significado —, ao contrário, examina a interpretação<br />

com base no “hermenêutico” (das Hermeneutische). Referindo-se<br />

ao significado originário da palavra, ele entende o<br />

hermenêutico como aquilo que se manifesta, aquilo que<br />

“aflora cada vez mais abertamente” e, em conseqüência, como<br />

o fenômeno, o aparecer daquilo que aparece (das Erscheinen<br />

der Erscheinung), o próprio ser presente pensado como aparecer<br />

(das Anwesen selbst als Erscheinen gedacht). A aparência é<br />

a própria essência do ser presente e da linguagem. Fica assim,<br />

de forma categórica, excluída a concepção da linguagem<br />

como expressão de algo espi<strong>ritual</strong>, supra-sensível ou<br />

supralingüístico — a linguagem não é o aspecto exterior, meramente<br />

aparente, de um mundo verdadeiro, caracterizado por<br />

um status não lingüístico, mas a própria essência do ser. Não<br />

é signo que remete a um referente, mas diretamente sinal<br />

(Wink); não é cifra ou símbolo de algo, mas gesto (Gebärde).<br />

Para destacar esse aspecto essencial da linguagem, Heidegger<br />

introduz a palavra Sage (dizer originário), derivada do verbo<br />

sagen, que, na sua acepção arcaica, possui o mesmo significado<br />

que zeigen, isto é, “mostrar”, “deixar aparecer”, “deixar resplandecer”<br />

(Erscheinen-und scheinenlassen), “revelar iluminando-velando”,<br />

“oferecer aquilo a que chamamos de mundo”.<br />

Em Sage encontra-se a essência da linguagem. A linguagem,<br />

enquanto linguagem, é mostrar: todo aparecer ou não<br />

aparecer apóia-se no mostrar do Sage. Somente a palavra faz<br />

com que uma coisa se mostre, seja aquilo que é. Os conceitos<br />

tradicionais de verdadeiro e de aparente, articulados em<br />

sua oposição, dissolvem-se ambos em favor de uma terceira<br />

dimensão que absorve, incorpora, detém a essência do ser.<br />

Uma vez mais, a solução heideggeriana é, no fundo, uma re-<br />

157


forma da concepção que privilegia o espírito sobre a letra, o<br />

ser sobre a aparência, o supra-sensível sobre o sensível — ela<br />

se realiza atribuindo ao primeiro termo, ao Lógos, à verdade,<br />

à presença, algumas características do segundo. Ermeneuein<br />

em grego quer dizer — afirma Heidegger — o trazer “mensagem<br />

e anúncio” (Botschaft und Kunde). Na linguagem, o<br />

próprio ser se manifesta, ela é a morada do ser.<br />

Klossowski também vê na linguagem o âmbito da superação<br />

da distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente,<br />

embora a conceba de modo oposto ao de Heidegger:<br />

não é dizer originário, mas corpo. A premissa e o complemento<br />

imprescindível dessa materialização da linguagem consistem<br />

na semantização do corpo, que Klossowski estuda muito detalhadamente<br />

no caso de Nietzsche, traçando as linhas de uma<br />

semiótica pulsional oposta à interpetação, que entende o corpo<br />

como expressão de uma dinâmica interior ou, ainda, de<br />

um inconsciente considerado motor oculto. Os signos do corpo<br />

não querem dizer nada: o esforço interpretativo da pessoa<br />

é apenas uma tentativa inútil que objetiva preservar a sua<br />

identidade individual. O êxito desse esforço é a hipocondria,<br />

a doença filosófica por excelência. “Suprimir o mundo verdadeiro<br />

é suprimir também o mundo das aparências — e, com<br />

eles, suprimir uma vez mais as noções de consciência e de inconsciência<br />

— o lado de fora e o lado de dentro.” 25 A semantização<br />

do corpo é importante, não por si mesma ou pelo fantasma<br />

que veicula, mas pela imitação de que pode ser objeto<br />

na linguagem, pelo simulacro lingüístico que pode ser<br />

construído sobre ela. Se o corpo é linguagem, então a linguagem<br />

pode tornar-se corpo. Entre corpo e linguagem estabelece-se<br />

uma relação de concorrência pela qual, lá onde falam<br />

os corpos — na pantomima —, a linguagem cala e, vice-ver-<br />

158


sa, lá onde fala a linguagem, devem os corpos calar. 26 A equivalência<br />

entre linguagem e corpo admite a possibilidade de<br />

uma estratégia, de um jogo, de uma astúcia que instaura uma<br />

troca entre o “caso singular” do fantasma individual e o ambiente<br />

social. Essa troca, segundo Klossowski, se mostra sempre<br />

vantajosa; de fato, “o nosso fundo não pode ser trocado”,<br />

não porque tenha um valor inestimável, mas porque<br />

“nada significa”. A possibilidade de uma autenticidade pessoal<br />

acaba, assim, destruída desde a raiz. No fantasma não falam<br />

as nossas pulsões profundas, e sim os signos do ambiente,<br />

que não se cansam de “comunicar a nós mesmos aquilo<br />

que a pulsão pode querer”.<br />

5 A meditação reveladora e a operação simuladora<br />

Esses dois caminhos opostos, abertos por Heidegger e<br />

Klossowski, implicam uma transformação profunda da dimensão<br />

tradicional do pensar. A recusa da distinção entre mundo<br />

verdadeiro e mundo aparente, sobre a qual tais caminhos foram<br />

construídos, os leva a uma ruptura radical em relação às<br />

formas habituais da atividade intelectual. Mais uma vez, no<br />

entanto, essa ruptura apresenta uma orientação claramente<br />

distinta em cada caso: Heidegger opõe a meditação reveladora<br />

do pensador à metafísica tradicional e à técnica que é a sua<br />

culminação; Klossowski, porém, opõe a operação simuladora,<br />

realizada pelo que supera a prova do eterno retorno, ao<br />

moralismo metafísico do filósofo tradicional e à histrionice<br />

moderna que é a sua culminação.<br />

Um aspecto fundamental da metafísica é, segundo<br />

Heidegger, a distinção e a separação entre mundo verdadeiro e<br />

159


mundo aparente: o real, no sentido daquilo que “está de fato”,<br />

constitui “o oposto daquilo que não resiste a uma verificação e<br />

que se apresenta como puro aspecto (als blosser Schein) ou como<br />

simples opinião”. 27 Essa concepção factual (tatsächlich) da realidade,<br />

que considera o real objeto e o conhecimento representação,<br />

perpetua-se na técnica moderna e na sua pretensão de subordinar<br />

tudo ao cálculo, à avaliação tranqüilizadora, à planificação<br />

universal. A técnica não pode deixar de relegar à categoria<br />

de inessencial aquilo que resiste à sua redução, isto é, os aspectos<br />

que não se podem alcançar, representar ou abranger daquilo<br />

que se mostra em si mesmo. Inversamente, a meditação<br />

(Besinnung) não se propõe a chegar a resultado algum e não produz<br />

efeito algum. Ela satisfaz a sua essência na medida em que<br />

é, em que “olha em direção ao puro resplandecer (scheinen) das<br />

coisas presentes” e redescobre o sentido originário da palavra grega<br />

tíchto (pro-duzir) como “fazer aparecer”. Fazer resplandecer<br />

aquilo que está presente enquanto tal, torná-lo manifesto na sua<br />

revelação, consentir que o ser se mostre, significa “trazer à linguagem”<br />

(zur Sprache bringen) a palavra do ser. A linguagem,<br />

portanto, é por si própria evento (Ereignis), revelação reveladora,<br />

em uma palavra, história (Geschichte). O evento entendido em<br />

seu sentido mais profundo significa mais uma vez o mostrar-se<br />

(sich zeigen) da essência do ser, por um caminho que não é nem<br />

“real”, nem “aparente”, nem teórico, nem prático, nem factual,<br />

nem subjetivo. 28 O ponto de chegada da reflexão heideggeriana<br />

não é, no fundo, mais do que um enésimo repensar do seu ponto<br />

de partida, exposto no propósito formulado em Ser e tempo, que<br />

consiste em voltar-se para as coisas mesmas, para o fenômeno,<br />

para aquilo que se mostra em si mesmo.<br />

Da mesma forma, o caminho aberto por Klossowski não<br />

é teórico nem prático: não existe mais nada que separe o simu-<br />

160


lacro do ato do próprio ato. A filosofia ocidental, ao contrário,<br />

baseou-se na separação entre realidade e aparência. A sua defesa<br />

de uma realidade espi<strong>ritual</strong> ocultou a gênese “humana, demasiado<br />

humana”, de todos os valores — os filósofos — afirma<br />

Nietzsche — pretendem falar da verdade, quando somente<br />

falam de si próprios. 29 A culminação da filosofia é o histrionismo,<br />

do qual Wagner — essa espécie de Cagliostro filosófico — é uma<br />

encarnação. O que caracteriza os Cagliostros filosóficos é “a mais<br />

total inconsciência do falso”, isto é, a pretensão de fazer-se passar<br />

por portadores de uma nova fé, de novos valores, de apresentar-se<br />

como reformadores e profetas. Segundo Klossowski,<br />

contra a filosofia e o histrionismo é preciso estender a todos os<br />

aspectos da vida a boa consciência do falso implícito no simulacro;<br />

este não pretende ser algo diferente daquilo que é, mas<br />

expõe e potencia o seu próprio caráter de aparência. A introdução<br />

da dimensão do simulacro subverte profundamente a própria<br />

natureza da atividade intelectual: ela implica um aspecto<br />

operacional, histórico, “uma práxis” — diz Klossowski 30 — que<br />

subverte as relações entre cultura e poder político-econômico e<br />

mina a própria gestão da realidade que este pretende controlar.<br />

Os dirigentes do poder político-econômico “trabalham sem<br />

sabê-lo” para os mestres ocultos do eterno retorno; a planificação<br />

universal, tentada por aqueles, obtém um resultado contrário.<br />

De fato, a sociedade não está mais em condições de formar<br />

seus membros como “instrumentos” adequados aos seus fins;<br />

uma parte cada vez maior das suas forças está disponível para a<br />

operação oculta do simulacro. Essa operação é levada a cabo<br />

através da linguagem; esta, no entanto, não é mais literária, artística<br />

ou filosófica — ela é acontecimento e gesto.<br />

161


Notas<br />

1. F. Nietzsche, Nachgelassene Fragmente 1887, 7 [2], in Kritische Gesamtausgabe.<br />

Berlim, De Gruyter, 1967 e seguintes, VIII, 1.<br />

2. Ib., 1888, 14 [154].<br />

3. Representam, aliás, um retrocesso, já que valorizam o mundo aparente da arte<br />

em relação ao pretendido “mundo verdadeiro” da moral. Cf. Nachgelassene Fragmente,<br />

1888, 15 [20], em que Nietzsche rejeita a sua própria equiparação entre mundo verdadeiro<br />

e mundo aparente e afirma que este não deve ser “denegrido”.<br />

4. O esclarecimento da complexidade de tal relação implicaria uma comparação detalhada<br />

entre a interpretação historiográfica de Nietzsche que Heidegger oferece (na<br />

obra Nietzsche, Pfullingen, Neske, 1961, e também em Holzwege, Frankfurt,<br />

Klostermann, 1950, em Was heisst Denken, Tübingen, Niemeyer, 1954, e em Vörtrage<br />

und Aufsätze, Pfullingen, Neske, 1954) e sua elaboração autônoma de algumas problemáticas<br />

de evidente origem nietzschiana (por exemplo, a rejeição do pensamento<br />

instrumental e da filosofia dos valores, a concepção de história, etc.). A respeito da<br />

interpretação que Heiddeger oferece dos passos nietzschianos no exame da relação<br />

entre mundo verdadeiro e mundo aparente, cf. Nietzsche, op. cit., I, p. 543.<br />

5. Essa leitura de Nietzsche é levada a cabo em dois ensaios: Sur quelques thèmes<br />

fondamentaux de la “Gaya Scienza” de Nietzsche (1956) e Nietzsche, le polytheisme et la<br />

parodie (1957), publicados respectivamente em Un si funeste désir, Paris, Gallimard,<br />

1963, e no volume Nietzsche et le cercle vicieux, Paris, Mercure de France, 1969. Finalmente,<br />

não é desprovido de significado o fato de que Klossowski tenha sido o<br />

tradutor francês do Nietzsche heideggeriano.<br />

6. M. Heidegger, Sein und Zeit., Halle, Niemeyer, 1927, par. 7.<br />

7. P. Klossowski, Un si funeste désir, op. cit.<br />

8. M. Heidegger, Einfübrung in die Metaphysik. Tübingen, Niemeyer, 1953.<br />

9. P. Klossowski, op. cit. p. 194.<br />

10.Ib., p. 18.<br />

11. M. Heidegger, Nietzsche, op. cit., I, p. 548.<br />

12. Por exemplo, Ovídio, Metamorfoses, XII, 39-63.<br />

13. M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., par. 7 B.<br />

14. Ib., par. 44 B.<br />

15. M. Heidegger, Einfübrung in die Metaphysik, op. cit., IV, 3.<br />

16. M. Heidegger, Was heisst Denken?, op. cit. Cf. também Vorträge und Aufsätze, II,<br />

op. cit.<br />

17. P. Klossowski, Un si funeste désir, op. cit., p. 22 e seguintes.<br />

18. P. Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux, op. cit., p. 101. Grifos do autor.<br />

19. M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., par. 7 C.<br />

20. Ib., par. 32.<br />

21. Ib., par. 33.<br />

22. P. Klossowski, op. cit., p. 201.<br />

23. Ib., p. 12.<br />

162


24. M. Heidegger, Unterwegs zur Sprache. Pfluffllingen, Neske, 1959.<br />

25. P. Klossowski, op. cit., p. 69.<br />

26. Essa alternância entre linguagem impura e silêncio puro é um dos temas fundamentais<br />

dos romances de Klossowski. Cf. G. Deleuze, Logique du sens. Paris, Minuit,<br />

1969.<br />

27. M. Heidegger, Vorträge und Aufsätze, op. cit., I, p. 43.<br />

28. Sobre a unidade originária dos aspectos contemplativo e ativo na filosofia de<br />

Heidegger, cf. L. Pareyson, Ultimi sviluppi dell’esistenzialismo, in V. Verra, org., La<br />

filosofia dal’45 ad oggi, Roma, E. R. I., 1976.<br />

29. P. Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux, op. cit., p. 20.<br />

30.Ib., p. 195.<br />

163


Capítulo VI<br />

O ser-para-a-morte e<br />

o simulacro da morte<br />

1 Diversão e recalque da morte<br />

Uma das aquisições fundamentais de Ser e tempo consiste<br />

em ter posto de lado a concepção metafísica da morte.<br />

Não se trata apenas da idéia teológica da morte, entendida<br />

como entrada em uma outra vida, mas também da idéia<br />

humanista, que considera a morte uma simples-presença estranha<br />

à vida humana ou extrinsecamente ligada a ela.<br />

Heidegger escreve: “A morte é um modo de ser que o ser-aí<br />

(Dasein) assume a partir do momento em que é”. 1 Isso significa<br />

que a definição naturalista, ao entendê-la como óbito,<br />

não é apenas extremamente redutora, como também solidária<br />

com uma concepção da existência entendida ela mesma<br />

como simples-presença, excluindo todo ser-possível, e portanto<br />

derivada da metafísica. A concepção teológica da morte<br />

como ingresso na eternidade fundamenta-se numa teoria<br />

metafísica do homem, entendido como imagem de Deus. Da<br />

mesma forma, a concepção humanista da morte, entendida<br />

164


como óbito (antropológica, psicológica ou biologicamente<br />

considerada), fundamenta-se numa teoria também metafísica<br />

do homem enquanto constante permanência, enquanto constante<br />

simples-presença. 2 Poder-se-á subtrair a morte à metafísica<br />

somente se o homem for subtraído à metafísica, isto é,<br />

se no conceito de ser-aí estiver implícito o poder-ser. Desse<br />

modo, segundo Heidegger, a morte torna-se o poder-ser mais<br />

peculiar e autêntico do ser-aí.<br />

Assim como Heidegger, Baudrillard evidencia a substancial<br />

conexão existente entre o ponto de vista teológico e o humanístico.<br />

A preocupação de ambos consiste em manter a vida<br />

e a morte cuidadosamente separadas uma da outra: “A vida<br />

é vida, a morte é sempre morte”. 3 Teologia e humanismo coincidem<br />

em pensar a vida como uma identidade que nada tem<br />

a ver com a morte, como uma positividade absoluta que se<br />

mantém rigorosamente diferente do nada. Ambos têm a pretensão<br />

de abolir a morte, a primeira pela eternidade do espírito,<br />

o segundo pelo desenvolvimento indefinido do processo<br />

científico. Na base de ambos encontra-se um conceito de<br />

tempo ligado à economia política e moldado na acumulação<br />

ilimitada.<br />

A teologia e o humanismo podem ser considerados<br />

como a formulação teórica de uma atitude cotidiana extremamente<br />

difundida, que consiste em não pensar na morte, em<br />

fazer de conta que a morte não existe, em levar adiante um<br />

trabalho de “constante tranqüilização” (ständige Beruhigung)<br />

em relação à morte. 4 A alienação (Entfremdung) 5 consiste,<br />

para Heidegger, exatamente numa fuga diante da morte que<br />

lança o Dasein num auto-emaranhamento capcioso que pode,<br />

ainda, ser interpretado de modo errôneo como “perfeição” ou<br />

“vida concreta”. A ostentação de uma tranqüilidade indiferente<br />

165


diante da realidade (Tatsache) de que se morre é a “diversificação<br />

encobridora” (verhüllendes Ausweichen) em relação ao<br />

ser-para-o-fim do ser-aí. Ela oculta o fato (Faktum) de que<br />

“o ser-aí próprio de cada um desde sempre, efetivamente, morre”.<br />

A fuga do ser-aí diante de si mesmo, diante de sua possibilidade<br />

mais peculiar, isto é, diante da morte, está estreitamente<br />

ligada à situação afetiva da angústia. Esta, ao contrário<br />

do medo, não implica a ameaça de algum ente intramundano<br />

determinado, mas é totalmente indeterminada: “O que angustia<br />

a angústia é o próprio ser-no-mundo”, 6 isto é, o nada<br />

e o em-lugar-nenhum que a caracterizam fenomenologicamente.<br />

A angústia está ligada ao sentir-se “deslocado”, ao não “sentir-se<br />

em casa”. Esse sentir-se deslocado persegue o ser-aí e<br />

ameaça-o, mesmo que de modo implícito: a cotidianidade realiza<br />

uma constante ação diversiva na tentativa de eliminá-lo.<br />

Mas essa fuga é inútil: “A angústia pode surgir na mais tranqüila<br />

das situações”, ela é a situação afetiva fundamental da<br />

cotidianidade.<br />

Baudrillard também revela que na raiz da cotidianidade<br />

ocidental existe uma rejeição da morte: “Pouco a pouco, os<br />

mortos deixam de existir. Eles são expulsos para fora da circulação<br />

simbólica do grupo”. 7 A cotidianidade contemporânea<br />

proscreve rigorosamente a morte; para ela, o fato de estar morto<br />

“não é normal”, é uma anomalia impensável. Distinguindo-se<br />

das culturas primitivas, que se instituem com base em<br />

uma intensa relação de reversibilidade simbólica entre a vida<br />

e a morte, a civilização ocidental moderna lança um verdadeiro<br />

interdito contra a morte, excluindo-a da própria experiência.<br />

Essa pretensão de apagar a experiência da morte está<br />

ligada à ação de acumulação e de produção material da economia<br />

capitalista. É por essa razão que na sociedade moder-<br />

166


na a morte se torna pulsão de morte, exatamente na medida<br />

em que é recalcada, repelida e mantida no inconsciente.<br />

Baudrillard oferece assim uma interpretação histórico-social<br />

do conceito freudiano de pulsão de morte, subtraindo-o à<br />

perspectiva metafísica na qual a psicanálise o insere. A morte,<br />

tornada pulsão recalcada, retorna a qualquer momento na<br />

vida cotidiana como angústia de morte, e a ausência de canais<br />

que permitam o intercâmbio simbólico com a morte e o<br />

seu reconhecimento no seio da sociedade faz crescer enormemente<br />

a sua força e a transforma numa potência psicológica<br />

oculta e subterrânea, tanto mais obsessiva quanto menos evidente<br />

for. “Se o cemitério não existe mais, é porque as cidades<br />

modernas assumem por inteiro a função deste: são cidades<br />

mortas e cidades de morte”, porque nelas a morte está<br />

simbolicamente ausente, mas reina subterraneamente.<br />

Daí conclui-se que as análises de Heidegger e de Baudrillard,<br />

embora construídas a partir de referências conceituais<br />

diferentes, 8 convergem na recusa tanto da consideração metafísica<br />

da morte (teológica ou humanista) como da atitude<br />

cotidiana de tranqüilização, de diversão, de recalque, que é a<br />

premissa da metafísica. Ambas, além disso, estabelecem uma<br />

conexão entre a cotidianidade, secretamente oprimida ou<br />

ameaçada pela morte, a situação afetiva da angústia e a experiência<br />

do deslocamento. Elas, no entanto, divergem profundamente<br />

quanto à solução que oferecem para o problema de<br />

quem efetivamente leva a cabo essa atividade de diversão e<br />

recalque da morte. Para Heidegger, é o Se (das Man), a cotidianidade<br />

impessoal e inautêntica; para Baudrillard, é o eu que<br />

se constitui em sua identidade precisamente com base nesse<br />

recalque da morte. O itinerário traçado por Heidegger em Ser<br />

e tempo vai da inautenticidade, do Se impessoal do mundo ao<br />

167


autêntico poder-ser da consciência (Gewissen), através do serpara-a-morte.<br />

9 O itinerário delineado por Baudrillard, ao contrário,<br />

vai da identidade do sujeito e da consciência à dissolução<br />

de ambos numa multiplicidade de dimensões sociais, através<br />

da experiência simbólica da morte. O ser-no-mundo, que<br />

para Heidegger está ligado ao esquecimento da possibilidade<br />

da morte e do poder ser si-mesmo, para Baudrillard, ao contrário,<br />

é o ponto de chegada de uma reconquistada intimidade<br />

com a morte; enquanto a evocação de si próprio implicada<br />

pelo ser-para-a-morte de Heidegger é, para Baudrillard, solidário<br />

com o recalque da morte.<br />

Na realidade, trata-se de duas dimensões completamente<br />

diferentes da morte: o ser-para-a-morte e a morte como<br />

simulacro.<br />

O ser-para-a-morte é antecipação (Vorlaufen) da morte:<br />

ser-aí (Dasein) significa para Heidegger “ser-para-o-fim”. A<br />

morte não é uma simples-presença que ainda não se tornou<br />

realidade, mas uma iminência sobranceira que constitui existencialmente<br />

o ser-aí. Ela é o ser-possível mais próprio do seraí,<br />

irrestrita, insuperável, certa, indeterminada. É por essa razão<br />

que a sua antecipação “o situa diante da possibilidade de<br />

ser ele mesmo, numa liberdade apaixonada, livre das ilusões<br />

do Se, efetiva, certa e cheia de angústia — a liberdade para a<br />

morte”. 10 O ser-aí enquanto tal é chamado à sua autenticidade<br />

na decisão (Entschlossenheit) de ser culpado e de ser-para-ofim.<br />

A idéia de culpa em Heidegger nada tem a ver com a<br />

violação de uma lei ou a fuga a um dever — ela designa a nulidade<br />

essencial do ser-aí. A decisão é, precisamente, “o tácito<br />

e angustioso autoprojetar-se no mais específico ser-culpado”; 11<br />

é, portanto, decisão antecipadora da morte, que faz desta senhora<br />

da existência. Só mediante tal decisão antecipadora da<br />

168


morte, o ser-aí assume a dimensão da totalidade, ou, como<br />

diz Heidegger, de um autêntico poder-ser-um-todo. 12<br />

A concepção da morte como simulacro é diametralmente<br />

oposta àquela heideggeriana. Ela implica uma simulação da<br />

morte, uma “morte simbólica” que ocorre no rito da iniciação.<br />

Essa prática, extremamente difundida nas sociedades primitivas,<br />

consiste “na instauração de uma troca lá onde havia<br />

apenas o fato bruto: da morte natural, aleatória e irreversível,<br />

passa-se a uma morte dada e recebida, portanto reversível na<br />

troca social. 13 A iniciação é justamente uma morte simulada<br />

que assinala o ingresso da criança na sociedade, que o transforma<br />

em um verdadeiro ser social. Distinguindo-se, portanto,<br />

da sociedade contemporânea, que se baseia no recalque da<br />

morte, é justamente nela que as culturas primitivas fundam a<br />

própria sociabilidade, no estabelecimento de uma troca simbólica<br />

entre a vida e a morte. A conseqüência mais importante<br />

dessa perspectiva consiste em considerar a morte um ponto de<br />

partida: ela não constitui o poder-ser iminente do ser-aí, mas<br />

o seu passado, o seu fundamento, a sua realidade transcorrida.<br />

A existência social, portanto, é inocente em sua nulidade<br />

essencial. De fato, a função da iniciação consiste na expiação<br />

do crime original, o do nascimento: ela apaga “o acontecimento<br />

separado do nascimento”, a pretensão de ter uma identidade<br />

autônoma, independente, subjetiva. Portanto, a sociabilidade<br />

que a simulação da morte institui é irresponsável; ela se<br />

situa no extremo oposto da iniciativa individual e da ética profissional,<br />

bases do nascimento e desenvolvimento do capitalismo<br />

moderno. O ser nada, o ser ninguém que a morte<br />

iniciatória realiza, permite a seu modo uma estranha experiência<br />

da totalidade, que consiste no poder ser tudo, em uma<br />

disponibilidade aberta a todos os papéis da vida social.<br />

169


Concordes na recusa da metafísica, do humanismo e da<br />

cotidianidade banal, Heidegger e Baudrillard propõem a seguir<br />

duas dimensões da morte opostas entre si, que se enraízam<br />

em contextos culturais antitéticos. O ser-para-a-morte<br />

heideggeriano pode ser considerado um repensar, em nível<br />

ontológico, da experiência ôntica da morte, típica da espi<strong>ritual</strong>idade<br />

luterana e jansenista. O próprio Heidegger remete<br />

explicitamente a Lutero e à tradição que sempre considerou<br />

a vida uma meditação sobre a morte. 14 Inversamente, o simulacro<br />

da morte de que Baudrillard fala remete não só às<br />

sociedades primitivas, como à tradição jesuítico-barroca que<br />

fez da experiência simulada da morte e da visão da morte a<br />

condição de ingresso no grande teatro da vida. Baudrillard<br />

evoca a respeito disso a solidez da sociedade barroca, “capaz<br />

de exumar os seus mortos, de conviver com eles a meio caminho<br />

entre a intimidade e o espetáculo, de suportar sem pavor<br />

nem curiosidade obscena [...] o teatro da morte”. 15 Trata-se<br />

de duas grandes tradições que devem ser examinadas<br />

detalhadamente.<br />

2 O ser-para-a-morte<br />

É no final da Idade Média que vamos encontrar a experiência<br />

ôntica que está na origem do ser-para-a-morte. O<br />

seu nascimento corresponde à passagem de uma concepção<br />

mais antiga, segundo a qual todos os mortos pertencentes à<br />

Igreja ressuscitariam juntos no final dos tempos, para a concepção<br />

do juízo particular imediatamente posterior à morte<br />

do indivíduo. 16 A nova concepção está amplamente documentada<br />

nas Artes moriendi da segunda metade do século XV, opús-<br />

170


culos dedicados à arte de bem morrer, constituídos de meditações<br />

e orações acompanhadas por gravuras que representam,<br />

na maioria das vezes, a cena da agonia e a luta entre anjos e<br />

demônios pela posse da alma do moribundo. 17 O verdadeiro<br />

ingresso na dimensão do ser-para-a-morte ocorre, porém, nas<br />

Artes moriendi de finais desse século (1488-1500), que se propõem<br />

não tanto a garantir a salvação ultraterrena, mas a ditar<br />

normas de vida. De fato, nestas, a atenção desloca-se do<br />

momento privilegiado e altamente dramático da agonia e da<br />

prova extrema à qual o moribundo é submetido para a vida<br />

cotidiana, entendida como contemplação e preparação da<br />

morte. Aquele que deseja bem viver deve aprender a bem<br />

morrer. A boa morte é apenas conseqüência de uma boa vida,<br />

passada na constante espera da morte ou, como dizia<br />

Savonarola, “vivida com os óculos da morte”. O Tractatus de<br />

arte bene moriendi, de Jacob de Jüterbogk, apresenta a morte<br />

como inspiradora direta de toda uma série de regras que devem<br />

ser observadas no dia-a-dia: quem vive com o pensamento<br />

constantemente voltado para a morte nunca está seguro da<br />

própria sorte, e por essa razão permanecerá incansavelmente<br />

a serviço de Deus. Nessas Artes moriendi aparecem todos os<br />

aspectos fundamentais do ser-para-a-morte heideggeriano: o<br />

privilégio conferido à angústia entendida como abertura da<br />

existência autêntica, a meditação sobre a morte considerada<br />

o momento no qual o homem adquire consciência de si mesmo,<br />

a certeza de que o homem não é mais que “un mort en<br />

sursis” (Ariès), um morto diferido, remetido a outro tempo,<br />

bem como a aceitação da própria culpabilidade radical.<br />

Contudo, é com Lutero que todos esses temas encontram<br />

uma síntese extremamente vigorosa e fecunda. A angústia<br />

(angustia), considerada por ele o estado afetivo fundamen-<br />

171


tal da vida cristã, constitui a premissa imprescindível do processo<br />

de salvação. 18 De fato, ela está estreitamente ligada à<br />

condição humana, a qual se encontra essencialmente viciada<br />

pelo pecado original. A angústia, portanto, não é um sentimento<br />

acidental, mas deriva da perda irremediável e definitiva<br />

da integridade original.<br />

A teologia de Lutero foi definida como uma “teologia<br />

da cruz”, 19 em contraposição à “teologia da glória”, característica<br />

de Loyola e do jesuitismo, justamente por causa do papel<br />

fundamental que nela têm os estados de desesperança. O<br />

reformador “ensina que as penas, as cruzes e a morte são o<br />

tesouro mais precioso dentre todos” 20 e considera a meditação<br />

sobre elas o único modo de subtrair-se à soberba e à concupiscência<br />

que derivam do amor e da afirmação de si. A vida<br />

do cristão — escreve Lutero —, nada mais é do que um morrer<br />

do batismo ao túmulo, um estar preparado a qualquer hora<br />

para a morte, um ir ao encontro da morte. 21 Esses mesmos<br />

conceitos encontram-se no sermão expressamente dedicado a<br />

esse tema em 1519, Da preparação para morrer, no qual destaca<br />

a extrema importância de preparar-se para a morte através<br />

da constante e cotidiana reflexão sobre ela.<br />

A liberdade para a morte de que fala Heidegger tem as<br />

suas raízes existenciais na desvalorização das ações, típica da<br />

prédica de Lutero. De fato, enquanto possibilidade, ela não<br />

oferece ao homem nada “para realizar”, nada que ele possa<br />

ser como realidade atual, mas implica o abandono da dimensão<br />

da “utilização” e da “satisfação”. Ora, ninguém mais do<br />

que Lutero deplorou a orientação que subordina cada coisa à<br />

utilidade e que liga o mérito às ações. Ninguém mais do que<br />

ele fez da renúncia de si mesmo a condição imprescindível da<br />

vida cristã. Em Lutero como em Heidegger, essa renúncia ja-<br />

172


mais possui o aspecto de uma adquisição, de uma conquista,<br />

de uma vitória — revela apenas o nada da possível impossibilidade<br />

da existência. Para Lutero, quem faz da humildade<br />

(humilitas) um mérito cai profundamente na auto-idolatria.<br />

Humilhar-se não quer dizer ser humilde, mas tão-somente “rebaixar-se”<br />

e “anular-se”, 22 ou, melhor ainda, saber ficar na nulidade<br />

da própria condição.<br />

Por mais que Heidegger queira diferençar o seu conceito<br />

de consciência (Gewissen) daquele proposto pela teologia,<br />

as afinidades que ele apresenta com o que Lutero designa<br />

com a mesma palavra são profundas. Em primeiro lugar,<br />

para ambos, ela nada tem a ver com o simples conhecimento,<br />

nem com a acepção que entende a consciência como<br />

auto-evidência do sujeito. Lutero condena expressamente<br />

esse significado em seu comentário ao Magnificat — para<br />

ele, a humildade é ótima só se não for sabedora de si. Os<br />

verdadeiramente humildes nunca vêem a si próprios como<br />

tais. O conhecimento da própria humildade transforma-a em<br />

soberba, em fruição, em auto-afirmação. A vida cristã não é<br />

autoconsciência da própria nulidade, e sim mera nulidade,<br />

cuja consideração cabe eventualmente apenas a Deus. “A cognição”,<br />

diz Lutero, “não é uma força, nem proporciona força,<br />

mas ensina e mostra a nulidade da força e a extensão da<br />

debilidade do homem.” 23 Analogamente, a consciência heideggeriana<br />

é justo o contrário de uma simples presença do<br />

eu para si próprio: a recusa da res cogitans cartesiana constitui<br />

uma das premissas fundamentais sobre as quais se construiu<br />

Ser e tempo. Para Heidegger, não se trata de fundamentar<br />

a ontologia no cogito: a consciência não fundamenta nada,<br />

porém evoca a possibilidade mais própria do ser-aí, isto é, a<br />

morte. O caráter de chamamento (Ruf ) que Heidegger atri-<br />

173


ui à consciência não deixa de ter afinidade com a vocatio*<br />

luterana; em ambos os casos, primeiramente se é chamado<br />

a uma condição comum a todos, que em Lutero constitui a<br />

premissa do sacerdócio universal e, em Heidegger, implica<br />

a referência ao ser-aí. Não se trata, de modo algum, de estabelecer<br />

uma relação íntima consigo mesmo. Em Lutero, a<br />

profissão (Beruf) à qual se é chamado independe de uma escolha<br />

individual. 24 Em Heidegger, o chamamento não é projetado,<br />

nem preparado, nem voluntariamente realizado por<br />

nós mesmos.<br />

É, enfim, na culpabilidade essencial da existência que o<br />

ser-para-a-morte heideggeriano encontra o seu antecedente<br />

mais profundo em Lutero. Essa culpabilidade é completamente<br />

independente da referência a um dever moral ou a uma lei:<br />

o ser-aí é culpado pelo simples fato de existir. A justiça de<br />

Lutero não é retributiva, mas “passiva”. Ela não consiste em<br />

dar segundo os méritos e as culpas, e sim em atribuir aquilo<br />

que não se tem direito algum de pedir, identificando-se, portanto,<br />

com a graça. Conseqüentemente, o princípio de toda<br />

justiça é, para Lutero, a acusação de si próprio, a culpabilidade<br />

radical do homem ou, como diz Heidegger, o ser fundamento<br />

nulo de uma nulidade. Embora Heidegger se preocupe<br />

em diferençar o ser-culpado do ser-aí do conceito teológico<br />

de pecado, 25 a concepção luterana de pecado é tão independente<br />

de uma culpabilidade moral ou legal que constitui,<br />

quando menos, a premissa ôntica e existencial da consideração<br />

ontológico-existencial de Heidegger.<br />

No âmbito do catolicismo, pode-se encontrar um modo<br />

de ser próximo ao ser-para-a-morte no jansenismo, que é afim<br />

* Chamado. (N. do T.)<br />

174


com o luteranismo não só pela teoria da graça, do pecado original<br />

e da culpabilidade humana, pela experiência da vocação,<br />

do chamado, da escuta, mas também pela importância que essa<br />

doutrina atribui ao “sentir”, ao “coração”, todos eles temas cujas<br />

origens podem ser buscadas, provavelmente, na inspiração<br />

agostiniana comum a ambos os movimentos. O jansenismo está<br />

em total oposição à concepção humanista, segundo a qual a<br />

morte é meramente um deixar de viver, cinicamente resumível<br />

no “vixit”* dos romanos. Para Pierre Nicole, a morte deve ser<br />

o objeto de meditações mais importante para um cristão. “Nunca<br />

é cedo demais para dedicar-se a ela. Mesmo que não fizéssemos<br />

outra coisa durante todo o resto de nossa vida [...]. É<br />

loucura deixar esse pensamento para mais tarde.” 26 O problema<br />

da morte está estritamente ligado ao do tempo: tempo algum<br />

parece-lhe longo demais para preparar-se para a morte;<br />

ela dissolve o conceito vulgar de tempo. Esse viver para a morte<br />

não deixava de propiciar uma satisfação análoga à “laetitia in<br />

tristitia”** luterana. “É mais fácil, para um verdadeiro cristão”,<br />

escreve Quesnel, “amar a morte e fazer dela a sua delícia do<br />

que amar a vida e nela encontrar prazer e alegria. Posto que,<br />

para os homens carnais [...], o simples pensamento da morte é<br />

[...] um suplício [...]. Mas aquele que compreender o que deve<br />

à justiça de Deus como pecador e o que deve odiar em si próprio<br />

como filho de Adão [...], este não terá dificuldade em dizer<br />

como são Paulo: Et mori lucrum.*** A morte é o meu bem,<br />

a minha vantagem e a minha delícia.” 27 Da mesma forma,<br />

Heidegger escreve que a decisão antecipadora não é nunca um<br />

estratagema para derrotar a morte; ao contrário, se trata da-<br />

* Vive. (N. do T.)<br />

** Alegria na tristeza. (N. do T.)<br />

*** Morrer é lucro. (N. do T.)<br />

175


quela compreensão que provém do chamado da consciência, o<br />

qual oferece à morte a possibilidade de apoderar-se da existência<br />

do ser-aí e destruir até a raiz toda ocultação evasiva de si.<br />

3 O simulacro da morte<br />

As Artes moriendi da primeira metade do século XVI<br />

acusam profundamente o influxo do humanismo e invertem,<br />

por essa razão, os termos do problema: quem quiser bem<br />

morrer deve aprender, em primeiro lugar, a bem viver. Por<br />

exemplo, o tratado De doctrina moriendi, de Josse Clichtove,<br />

publicado em 1520, afirma que não se deve temer a morte e<br />

que o homem honesto não precisa se preocupar com ela. As<br />

citações dos clássicos latinos estão lado a lado com as referências<br />

à Bíblia e aos pais da Igreja e, às vezes, as substituem.<br />

Também Erasmo defende, em seu De praeparatione ad mortem<br />

(1534), a tranqüilidade do justo diante da morte e procura<br />

conciliar o problema da salvação não só com a fama humanista<br />

do indivíduo, como também com a glória de Deus. 28<br />

Apenas os tratados jesuítas do século XVII irão abrir<br />

uma perspectiva aparentemente semelhante à desses tratados<br />

já citados, mas substancialmente oposta a uma visão humanista<br />

da vida e da morte. A obra De arte bene moriendi, de<br />

Roberto Bellarmino, testemunha à perfeição a nova postura,<br />

que, no seu conjunto, é irredutível tanto à digressão humanista<br />

da morte como ao ser-para-a-morte de Lutero. O primeiro<br />

preceito da arte bellarminiana de bem morrer é idêntico àquele<br />

humanista: quem desejar bem morrer, procure primeiramente<br />

bem viver, “porque, não sendo a morte senão o fim da vida,<br />

quem viver bem até o fim decerto morrerá bem; nem poderá<br />

176


morrer mal quem jamais viveu mal. Da mesma forma, aquele<br />

que viveu mal, morre também mal, nem pode deixar de<br />

morrer mal quem jamais viveu bem”. 29 Não obstante, o conceito<br />

jesuíta de viver bem é radicalmente diferente do<br />

humanista: se para os humanistas a vida boa coincide com a<br />

negação da morte, enquanto inexistente, para Bellarmino não<br />

se pode bem viver se já não se estiver morto, isto é, se não se alcançou<br />

aquela pequena morte, aquela simulação da morte que<br />

é a indiferença inaciana, final da primeira semana dos Exercícios<br />

espirituais e condição sine qua non de todo progresso subseqüente.<br />

Já São Francisco de Borja, que foi prepósito-geral da<br />

Companhia de Jesus de 1565 a 1573, tinha por hábito dizer<br />

que era necessário pôr-se pelo menos quatro vezes ao dia em<br />

estado de morte mediante um total desinteresse e desprezo pela<br />

vida, e que jamais se pode ser mais feliz do que quando se diz<br />

com são Paulo: “Eu morro todos os dias”. Essa simulação da<br />

morte será mais tarde um lugar-comum da literatura jesuíta que<br />

trata do assunto nos séculos XVII e XVIII. Valha como exemplo<br />

o jesuíta Jacques Nouet, que, em seu Retraite pour se préparer<br />

à la mort (1684), convida a adiantar-se à morte, a morrer antecipadamente<br />

com relação a si mesmo, a viver como mortos. 30<br />

Os jesuítas introduzem assim uma experiência da morte<br />

tão arraigada na existência quanto a luterana. Para eles, não<br />

se trata, de forma alguma, de não pensar na morte ou de afastar<br />

o pensamento da morte, mas, ao contrário, de torná-la uma<br />

base imprescindível sem cair na angústia, transformando-a em<br />

premissa de felicidade. O “ser no mundo e não do mundo”,<br />

o “viver na carne quase sem carne” que Bellarmino propõe<br />

não é a reedição do ascetismo medieval, e sim a condição de<br />

uma felicidade verdadeira e estável. Porque “não são os bens<br />

177


deste mundo, as riquezas, as honrarias e os prazeres que estão<br />

de todo vetados aos cristãos”, 31 mas apenas um determinado<br />

modo de fruí-los, como se pertencessem exclusivamente<br />

àqueles que deles gozam. Quem deseja bem viver deve, portanto,<br />

estar “absolutamente disposto a renunciar a tudo”, isto<br />

é, deve estar disponível para experimentar qualquer tipo de vida<br />

que o futuro lhe reservar. Essa simulação da morte não é insensibilidade;<br />

ela introduz um novo tipo de sensibilidade que prescinde<br />

de toda simples-presença. Segundo Bellarmino, o apóstolo<br />

Paulo exorta os fiéis “a amar as próprias mulheres, sim, mas<br />

com um amor tão moderado como se não as tivessem; se for<br />

preciso chorar a perda dos filhos ou da fortuna, chorem pois,<br />

mas tão moderadamente como se não estivessem aflitos ou não<br />

chorassem; se surgir motivo de alegria devido a ganhos e honrarias<br />

obtidos, goze-se com eles tão pouco como se não se gozasse,<br />

isto é, como se aquela alegria não lhes pertencesse”.<br />

No seio da própria Companhia, nem sempre essa pequena<br />

morte foi interpretada e vivida de maneira tão original.<br />

Às vezes propõem-se concepções da morte e da arte de<br />

morrer que não estão distantes da mentalidade luterana, como<br />

no Horologium de Drexelius; 32 ou prevalecem influências que<br />

consideram a indiferença inatividade, como em Richêome e<br />

em Binet; ou então impõe-se a herança mística que vê na indiferença<br />

a absoluta conformidade à vontade de Deus, como<br />

em Achille Gagliardi e em Rodríguez.<br />

Nessas interpretações quietistas perde-se a ratio instituti,*<br />

o espírito da Companhia, que é essencialmente apostólico,<br />

voltado para a atuação no mundo, não contemplativo<br />

por definição. Escapa assim o essencial: o fato de que a si-<br />

* O princípio da instituição. (N. do T.)<br />

178


mulação da morte não é uma meta, mas um ponto de partida<br />

que nos introduz em uma operatividade efetiva mas não<br />

factual. 33 Ela se diferencia radicalmente da ação que cria méritos,<br />

objeto da crítica de Lutero, e que possui o caráter do<br />

factum brutum, isto é, daquela atividade que pretende transformar<br />

o mundo em sentido ético-metafísico. A efetividade<br />

jesuíta opera no plano da situação afetiva, seja porque faz com<br />

que o eu e os outros consolados em qualquer estado ou condição<br />

de vida sejam lançados do futuro, seja porque propõe<br />

todo “fato bruto” como um êxito ad majorem gloriam Dei.*<br />

Em seu sentido mais profundo, o otimismo jesuíta não<br />

é ético-metafísico, mas operativo-existencial: este é o melhor<br />

dos mundos possíveis, não porque do ponto de vista do valor<br />

seja de fato tal, e sim porque é possível agir de modo a tornar<br />

feliz e satisfeita qualquer tipo de existência. É por essa razão<br />

que a virtude jesuíta não é a esperança, que implica a transformação<br />

ético-metafísica do mundo (e está, portanto, ligada<br />

ao milenarismo escatológico), mas, quando muito, a confiança<br />

para encontrar consolo e saída, aconteça o que acontecer.<br />

Mesmo na hora da morte, mesmo na agonia. O <strong>Morte</strong>s illustres<br />

do padre Alegambe vem justamente demonstrar que quem já<br />

está morto, quem já conheceu a pequena morte da indiferença,<br />

pode viver qualquer agonia com consolo interior e êxito notório:<br />

34 mesmo a agonia é vida e história, é um último papel<br />

teatral que deve ser bem interpretado. Todavia, só pode ser<br />

bem interpretado por quem já estiver morto. “De fato”, escreve<br />

Bellarmino, “daqueles que tiveram a ventura de morrer<br />

pelo menos duas vezes ou mais [...] sabe-se que morrerão de<br />

bastante bom grado.” 35 Assim, pode escapar ao ridículo até<br />

* Para maior glória de Deus. (N. do T.)<br />

179


mesmo a tradição existente entre os jesuítas segundo a qual, a<br />

partir do generalato de são Francisco de Borja, ao longo de<br />

trezentos anos, ninguém, de todos aqueles que tivessem vivido<br />

na Companhia, teria perecido se tivesse morrido em seu<br />

seio. 36 O interesse que essa tradição apresenta vai além da história<br />

da edificação. Um pensamento semelhante dissolve completamente<br />

o juízo de Deus e deixa o homem numa inocência<br />

independente da lei e da consciência, tão radical quanto a culpabilidade<br />

de Lutero e de Heidegger. No fundo, quem conheceu<br />

a pequena morte da indiferença já está predestinado à salvação<br />

e à felicidade, aconteça o que acontecer.<br />

O escritor seiscentista espanhol Francisco de Quevedo,<br />

que foi educado pelos jesuítas, cria em Sueños uma figura engraçadíssima,<br />

coberta com extravagantes atavios e dotada de<br />

características contraditórias. Ela se apresenta como a <strong>Morte</strong>,<br />

e fala desta guisa: “E aquilo a que chamais morrer é o acabar<br />

de morrer, e aquilo a que chamais viver é morrer vivendo. E<br />

os ossos são o que de vós deixa a morte e o que sobra à sepultura”.<br />

37 Nessa apresentação, portanto, a morte não é, como<br />

em Lutero ou em Heidegger, algo que se espera, a possibilidade<br />

mais certa, mas algo que é desde o início o fundamento<br />

nulo da existência e sobre o qual está construído o grande teatro<br />

do mundo. Essa <strong>Morte</strong> não está ligada ao despertar (o<br />

Aufruf heideggeriano), e sim ao sonho, porque o produto<br />

onírico é — como sabia Calderón — aquilo que se assemelha<br />

mais à sociedade e à história. Só os que já estão mortos, isto<br />

é, indiferentes, podem agir sobre a história, porque esta é movimento<br />

contínuo, devenir que dissolve todas as certezas, todos<br />

os pontos fixos, todas as identidades.<br />

180


O modelo do sonho permite a passagem da simulação<br />

jesuíta ao simulacro barroco da morte. Se no luteranismo e<br />

em Heidegger o ser-para-a-morte está ligado ao caráter de chamado<br />

da consciência, na tradição jesuítico-barroca impõe-se a<br />

visibilidade da morte. Ela não é ouvida — é vista. Não é voz<br />

— é simulacro. Atuar no mundo quer dizer, no fundo, criar<br />

sonhos, imagens oníricas, simulacros da morte.<br />

Os historiadores da arte contrapuseram a “serenidade”<br />

dos monumentos sepulcrais humanistas do século XV e da<br />

primeira metade do século XVI ao inquietante e convulsionado<br />

espetáculo oferecido pelos túmulos barrocos. De fato,<br />

na segunda metade do século XVI aparece e torna-se cada<br />

vez mais freqüente a representação de uma ou mais caveiras,<br />

desenhadas ou esculpidas. Essa tendência afirma-se e<br />

consolida-se no século seguinte, ampliando-se para a representação<br />

do esqueleto inteiro, mostrado freqüentemente no<br />

ato de abrir o sarcófago ou de sustentá-lo. 38 Os túmulos<br />

berninianos nas igrejas de São Pedro ou de San Francesco a<br />

Ripa, em Roma, oferecem uma imagem que pode parecer,<br />

à primeira vista, um triunfo da morte sobre o mundo, da<br />

eternidade sobre o tempo. Entretanto, essa interpretação peca<br />

por envolver uma ilusão. Não existe, na sociedade barroca,<br />

inconciliabilidade entre morte e mundo, porque o grande<br />

teatro do mundo se ergue justamente sobre o fim de todas<br />

as fés metafísicas — o maravilhoso do aparelho social funda-se<br />

no nada.<br />

Essa troca entre a vida e a morte está simbolicamente<br />

representada no monumento sepulcral do arquiteto Giovan<br />

Battista Gislenus, na igreja de Santa Maria del Popolo, em<br />

Roma: no alto, há um retrato do defunto e, embaixo, um busto<br />

em tamanho natural que representa um esqueleto, com a<br />

181


inscrição: “Neque hic vivus, neque illic mortuus”,* que se refere,<br />

respectivamente, à imagem e ao simulacro. A sua vida<br />

não foi verdadeira vida, mas simulação da morte. Sobre a sua<br />

morte, no entanto, eleva-se o simulacro que o torna partícipe<br />

do decoro do grande teatro do mundo.<br />

Como intuíra Huxcley, 39 a participação ativa na sociedade<br />

e na história não impede, de modo algum, que se erijam<br />

grandes e dispendiosos monumentos cujo tema é a queda<br />

das grandezas terrenas e a inanidade dos desejos humanos;<br />

ao contrário, honrarias, riquezas e pompas são apreciáveis<br />

justamente porque sentidas e vividas como sendo nada. Simulacros<br />

da morte, portanto, são não apenas os túmulos,<br />

mas também as igrejas, os palácios, as instituições, as obras,<br />

toda a sociedade.<br />

A grandeza do barroco reside precisamente nessa ligação<br />

entre a morte e a história, entre o nada e as ações. A morte<br />

não põe fim à história, mas está na origem de toda historicidade.<br />

A experiência da finitude não aterroriza nem paralisa, mas é garantia<br />

de consolação e oficina de ações. Que essas ações sejam<br />

inaturais, artificiais, artificiosas, sem correspondência com um<br />

modelo, isso deriva precisamente do fato de que elas nada têm<br />

a ver com a vida como simples-presença, com a vida sem morte<br />

dos humanistas, com a vida pensada metafisicamente: em relação<br />

a elas não há retorno nem remorso.<br />

Simulacro da morte é o próprio homem. O esqueleto,<br />

diz a <strong>Morte</strong> em Sueños, de Quevedo, não é a morte, e sim o<br />

que resta dos vivos: “Os seus ossos nada mais são do que o<br />

arcabouço sobre o qual se constrói o corpo do homem. A<br />

morte, vós não conheceis e sois vós mesmos a vossa morte:<br />

* Nem este está vivo, nem aquele está morto. (N. do T.)<br />

182


ela tem a cara de cada um de vós e todos sois a morte de vós<br />

mesmos. A caveira é o morto e a cara é a morte”. O corpo<br />

do homem é, no fundo, uma imagem, um disfarce, uma máscara<br />

da morte, porém atrás dessa máscara não há uma realidade<br />

mais substancial da morte. A morte não é um ente, uma<br />

simples-presença. É por isso que ela possui tantos aspectos<br />

quantos são os modos de existência, que acolhe todas as possibilidades,<br />

todas as apostas, todos os papéis. A sua disponibilidade<br />

é total, desde que se permaneça no âmbito daquilo<br />

que aparece, da história. Se, ao contrário, o homem abandonar<br />

o terreno da história e sair à procura de fés, de identidades<br />

metafísicas ou teológicas, nada poderá livrá-lo da desolação<br />

e do fracasso.<br />

4 <strong>Morte</strong>, tempo, história<br />

À dimensão existencial da morte está estritamente ligada<br />

a dimensão do tempo: se não houvesse morte, não haveria<br />

tempo. O ser-aí toma conhecimento do tempo com base em<br />

seu saber a respeito da morte. Essa conexão entre morte e tempo<br />

é um aspecto fundamental, tanto do ser-para-a-morte como<br />

do simulacro da morte. O problema do tempo encontra, contudo,<br />

soluções opostas nas duas tradições.<br />

Em Heidegger, a antecipação da morte revela-se como<br />

decisão, isto é, projeção e clara determinação da única possibilidade<br />

própria e certa da existência. Na tradição jesuíta, a<br />

mesma função é exercida pela eleição, com a qual termina a<br />

segunda semana dos Exercícios espirituais propostos por<br />

Loyola. A eleição também é, ao mesmo tempo, escolha e resolução<br />

extrema. Como no caso da decisão, não se trata, po-<br />

183


ém, de uma escolha arbitrária ou subjetiva: a eleição impõese<br />

ao exercitante com imperiosa necessidade. A diferença entre<br />

decisão e eleição reside, ao contrário, na orientação em relação<br />

à morte — a decisão vai em direção à morte, enquanto<br />

única possibilidade da existência, e encontra a temporalidade;<br />

a eleição provém da morte, enquanto estado de completa indiferença<br />

e humildade, e encontra a história.<br />

Heidegger diferencia em Ser e tempo três determinações<br />

distintas do tempo: a temporalidade (Zeitlichkeit), a historicidade<br />

(Geschichtlichkeit) e a intratemporalidade (Innerzeitlichkeit). A<br />

temporalidade é a dimensão do tempo encontrada de forma<br />

originária no fenômeno da decisão antecipadora: esta temporaliza-se<br />

a partir de um porvir finito, isto é, caracterizado<br />

por um limite insuperável. Heidegger diferencia a temporalidade<br />

autêntica do ser-para-a-morte — caracterizada pela<br />

antecipação, pelo instante, pela repetição, pela angústia e pela<br />

projeção na perdição — da temporalidade inautêntica da Preocupação<br />

— caracterizada pelo esperar, pela apresentação, pelo<br />

olvido, pelo medo e pela curiosidade dispersiva. À temporalidade<br />

inautêntica da Preocupação está ligada a dimensão existencial<br />

do comércio e da ciência.<br />

Sobre a temporalidade do ser-aí fundamenta-se a sua<br />

historicidade, a qual proporciona a elucidação ontológica da<br />

“continuidade” do ser-aí, ou seja, de sua extensão, mobilidade<br />

e permanência: ela tem o seu centro de gravidade no ter-sido.<br />

A historicidade, segundo Heidegger, nada tem a ver com o conceito<br />

vulgar de história (Historie), objeto da historiografia (que<br />

considera o ser-aí simples-presença passada), mas traz o ser-aí<br />

à presença de seu destino (Schiksal), através do qual é transmitida<br />

uma possibilidade herdada e, no entanto, escolhida. É necessário<br />

distinguir entre o destino, entendido como historicidade<br />

184


autêntica, e a historicidade inautêntica do ser-aí, que designa o<br />

historializar-se do ser-no-mundo, isto é, o movimento temporal<br />

daquilo com o que o anônimo Se se preocupa.<br />

A intratemporalidade é, enfim, a determinação temporal<br />

do ente intramundano, isto é, dos entes entendidos como<br />

simples-presenças. Ela nasce de um nivelamento do tempo<br />

mundano, caracterizado ainda pela databilidade e pela significatividade.<br />

A intratemporalidade constitui a base da elaboração<br />

do conceito vulgar e tradicional de tempo enquanto<br />

mera série de instantes (Jetzt), que com freqüência são simplesmente-presentes<br />

e, mesmo assim, transcorrem e avançam.<br />

Isso, portanto, não pode encontrar em absoluto nenhum fim<br />

e nenhum princípio, e é, por conseguinte, abstratamente infinito.<br />

A intratemporalidade é, portanto, o mais completo desconhecimento<br />

da finitude da existência e da morte. Contudo<br />

— observa Heidegger —, é preciso não esquecer que ela emana<br />

do tempo mundano, que é um modo essencial, embora<br />

inautêntico, de temporalização da temporalidade originária.<br />

Se essa complexa articulação do tempo que deriva do<br />

ser-para-a-morte for confrontada com as determinações do<br />

tempo implícitas na experiência da simulação e do simulacro<br />

da morte, é possível encontrar, junto com alguma afinidade<br />

profunda, divergências radicais. Primeiramente, o movimento<br />

que vai da indiferença e da disponibilidade à eleição parece<br />

introduzir de um só golpe uma dimensão histórica, sem passar<br />

pela temporalidade do instante. Ou seja, o conceito<br />

heideggeriano de temporalidade (Zeitlichkeit) parece inadequado<br />

porque está ligado à possibilidade mais própria e autêntica<br />

do ser-aí, à antecipação da morte. Todavia, a pequena morte<br />

da indiferença e o estado de disponibilidade não permitem detectar<br />

uma possibilidade que seja mais própria do que qual-<br />

185


quer outra: a morte entendida como a possibilidade por vir<br />

não possui nenhum caráter privilegiado com relação às outras<br />

infinitas possibilidades. Ser disponível significa estar disposto<br />

a viver de qualquer modo que for e a morrer, qualquer<br />

que seja a maneira, com igual consolação. Isso implica uma<br />

equivalência abstrata de todas as possibilidades. A determinação<br />

de uma escolha pode ocorrer somente com base na situação<br />

concreta, fenomênica, isto é, histórica. Essa situação<br />

histórica da qual emerge a escolha, porém, nunca é uma simples-presença:<br />

se o fosse, não seria possível escolha alguma.<br />

O resultado seria o quietismo. A disponibilidade para ser lançado<br />

para qualquer futuro não é a resignação em aceitar qualquer<br />

futuro no qual se tenha sido lançado, mas a premissa para<br />

escolher e tornar própria qualquer situação na qual se tenha sido<br />

lançado. A situação torna-se própria somente depois da eleição.<br />

Enquanto em Heidegger ela é decidida porque própria,<br />

autêntica, em Loyola ela é própria somente a partir do momento<br />

em que é escolhida. A diferença entre ambas as perspectivas<br />

parece sutil à primeira vista; no entanto, é fundamental<br />

também pelas conseqüências na concepção do tempo. De<br />

fato, no caso de Heidegger, a decisão antecipadora da única<br />

possibilidade autêntica põe diante da situação e encontra a<br />

temporalidade. No caso de Loyola, a situação impõe-se à eleição<br />

e faz-se escolher como única possibilidade própria, justamente<br />

porque ela é a única possibilidade que é histórica.<br />

Em Heidegger, decide-se aquilo que é mais próprio; em<br />

Loyola, torna-se próprio aquilo que é mais outro. Essa alteridade<br />

é exatamente o modo de ser da história, a sua diferença. Essa<br />

concepção da história é, portanto, diametralmente oposta à<br />

Historie, à historiografia, à ciência histórica propugnada pelo<br />

historicismo, o qual tem uma concepção homogênea e<br />

186


niveladora do devir histórico e, geralmente, tem a pretensão de<br />

descobrir leis que expliquem o seu movimento. Mas não pode<br />

tampouco ser confundida com a historicidade (Geschichtlichkeit)<br />

heideggeriana, que está arraigada na temporalidade (Zeitlichkeit)<br />

do ser-aí. Quando muito, ela tem alguma afinidade com o que<br />

Heidegger chama Temporalität, isto é, a temporalidade do Ser,<br />

que, como se sabe, não foi discutida em Ser e tempo.<br />

Ainda não foi bem esclarecido, no entanto, o processo<br />

que permite passar da pequena morte da indiferença à eleição<br />

da diferença. Como se faz para eleger, isto é, para tornar próprio<br />

algo, sendo-se nada, tendo-se anulado na simulação da<br />

morte? Na realidade, o que leva ao nada da indiferença é também<br />

o que determina a eleição. É um mesmo movimento aquele<br />

que, antes, libera de toda emoção desordenada e, depois, leva<br />

a escolher uma situação: é o movimento em direção à consolação,<br />

em direção à alegria que imprime a toda a experiência<br />

um caráter profundamente eudemonístico. É por isso que a indiferença<br />

da primeira semana dos exercícios não fecha o caminho<br />

da eleição da segunda, mas constitui a sua premissa fundamental.<br />

De um ponto de vista abstrato, não existe uma situação<br />

que seja mais própria do que outra — é preciso estar disposto<br />

a tornar própria qualquer situação. A decisão de tornar<br />

própria uma determinada situação cabe exclusivamente a quem<br />

a vive e só vale para aquele único caso concreto. Nesse processo,<br />

contudo, nada há de subjetivo: é a diferença da história a<br />

impor que seja escolhida. Assim, acaba caindo por terra a própria<br />

distinção heideggeriana entre autêntico (eigentlich) e<br />

inautêntico (uneigentlich), entre o que é próprio da existência e<br />

o que, ao contrário, está ligado à perda de si. Na perspectiva<br />

jesuíta, tudo pode ser próprio e nada o é, a título de privilégio<br />

e separado da situação concreta. Embora em Heidegger a dis-<br />

187


tinção entre autenticidade e inautenticidade não implique um<br />

juízo de valor e ambas façam parte da estrutura do ser-aí, a tal<br />

ponto que a existência autêntica nada mais é do que “uma apreensão<br />

modificada” (ein modifiziertes Ergreifen) da cotidianidade<br />

projetiva, entretanto toda a analítica existencial baseia-se na tensão<br />

entre uma dimensão “mundana”, caracterizada pela<br />

cotidianidade anônima, e uma dimensão “própria”, caracterizada<br />

pela perfeita identidade do si-mesmo. Ora, na experiência<br />

que se inspira em Loyola, o mundo histórico e a eleição<br />

não se opõem de modo algum; ao contrário, é justamente o<br />

mundo histórico, sentido como diferença, descontinuidade,<br />

novidade emergente, que constitui o critério da eleição. Caso<br />

surgisse conflito entre a história e o indivíduo, isso significaria<br />

que não se alcançou a indiferença, que se permaneceu ligado à<br />

identidade do eu e que, portanto, não se pode escolher.<br />

Já nas primeiras páginas de Ser e tempo, Heidegger estabelece<br />

uma diferença radical entre o seu conceito de existência e<br />

a idéia tradicional de sujeito, caracterizado pela substancialidade,<br />

pela personalidade e pela simplicidade, redutível, por conseguinte,<br />

a uma simples-presença. Como conseqüência da determinação<br />

da existência autêntica enquanto chamado ao próprio si-mesmo<br />

(em relação ao esquecimento da existência inautêntica perdida<br />

no anonimato do Se), o problema da unidade e da substância<br />

do ser-aí impõe-se à sua consideração. De fato, por um<br />

lado, essa constância do ser-aí não pode ser pensada como permanência<br />

(Beharrlichkeit) do si-mesmo, uma vez que isso implicaria<br />

uma recaída na teoria do eu como sujeito; por outro, deve<br />

haver, quer uma constância do si-mesmo, um seu manter-se continuamente<br />

num estado, quer uma relação deste com a existência<br />

inautêntica do Se. Para resolver esse problema, Heidegger<br />

introduz um par de conceitos complementares: a estabilidade<br />

188


(Ständigkeit) da Ipseidade (Selbstheit), que expressa a capacidade<br />

de manter-se num certo estado a partir de si-mesmo enquanto<br />

decisão resolutiva, e a instabilidade (Unselbstandigkeit) da Preocupação,<br />

que expressa a dispersão do Se no mundo e, portanto,<br />

a incapacidade de manter uma estabilidade.<br />

Na tradição jesuítico-barroca, esse problema apresentase<br />

de forma muito mais grave, porque o seu movimento não<br />

vai do anonimato do Se para o si-mesmo, mas da pequena<br />

morte da indiferença para o mundo. Como é possível eleger,<br />

isto é, escolher algo, quando se é nada? Ou, melhor, como se<br />

pode tornar próprio o algo se a dimensão do si-mesmo é secundária<br />

e está subordinada à história? É este, sem dúvida, o<br />

ponto mais delicado e sutil da espi<strong>ritual</strong>idade inaciana: os êxitos<br />

opostos do quietismo e do ativismo, aos quais historicamente<br />

deu lugar, demonstram a extrema dificuldade dessa posição.<br />

No entanto, é verdade que a sua originalidade e a sua<br />

força residem justamente na ligação inseparável entre indiferença<br />

e eleição. Nada melhor do que a definição de Loyola<br />

como um contemplativus in actione para destacar a vinculação<br />

entre esses dois aspectos, à primeira vista incompatíveis.<br />

Uma resposta a essa interrogação talvez pudesse ser oferecida<br />

pela teoria freudiana do inconsciente: a indiferença, a simulação<br />

da morte recalca a vontade do sujeito, transformando-a<br />

em pulsão inconsciente, sem objeto e sem alvo determinado,<br />

porém dotada de um poder que é tanto maior quanto<br />

menor for a sua identidade. Ela constituiria um enorme reservatório<br />

de energia, destinada a sustentar a escolha histórica concreta,<br />

a qual, desprovida de uma dimensão própria e autêntica,<br />

vem a ser, antes, um papel a ser interpretado, um jogo a ser<br />

feito. A eleição inaciana estaria, assim, estreitamente ligada àquela<br />

transformação onírica e àquela teatralização da vida que cons-<br />

189


titue um dos aspectos essenciais da sociedade barroca. O motor<br />

dessa encenação emanaria precisamente desse recalque da<br />

vida implícito na indiferença, na simulação da morte.<br />

É verdade que a eleição introduz uma temporalidade distinta<br />

da história — não depende do homem a escolha das cartas<br />

que lhe são dadas, contudo ele pode estabelecer em que<br />

ordem jogá-las. Sem dúvida, ele não pode escolher o próprio<br />

papel, mas pode interpretá-lo de muitos modos. Admitir isso,<br />

porém, não significa recair no humanismo e no livre-arbítrio.<br />

Essa admissão não implica que existam infinitas possibilidades<br />

de vitória, e sim que há de existir uma em qualquer situação;<br />

ou, como dizem os jesuítas, que qualquer papel possa<br />

ser interpretado “ad majorem Dei gloriam”. O grande mestre<br />

dessa temporalidade foi, sem dúvida, Baltasar Gracián, que, em<br />

seu Oráculo manual, escreve: “Saiba-se fazer triunfo do próprio<br />

fenecer [...] aposente a tempo o advertido ao corredor<br />

cavalo e não espere que, caindo, provoque o riso em meio à<br />

corrida; quebre o espelho a tempo e com astúcia a beleza, e<br />

não com impaciência depois, ao ver o seu desengano”. 40 A<br />

relação entre temporalidade e historicidade apresenta-se na tradição<br />

jesuítico-barroca, portanto, em termos opostos com relação<br />

à formulação heideggeriana. Não é a temporalidade que<br />

constitui fundamento da historicidade; ao contrário, é a história<br />

que constitui fundamento da temporalidade.<br />

5 A intratemporalidade e a economia política<br />

A terceira determinação temporal heideggeriana, a intratemporalidade,<br />

entendida como sucessão de “agoras” simplesmente-presentes,<br />

é antes um desconhecimento e uma oculta-<br />

190


ção do tempo do que um seu aspecto. Heidegger destaca o<br />

caráter intemporal (unzeitlich) dessa dimensão, na qual o fator<br />

puramente aritmético e abstrato da numeração se afirma<br />

como determinante e essencial. O tempo assim concebido é<br />

apenas o número dos instantes por vir: inexiste inteiramente<br />

toda compreensão da finitude da existência. Desse modo, o<br />

tempo torna-se algo de que podemos nos apropriar, “que está<br />

ao alcance de todos como algo que qualquer um toma e pode<br />

tomar”. 41 O tempo, não mais sendo “próprio” de alguém,<br />

pode ser acumulado por quem quer que seja. A intratemporalidade<br />

é, portanto, o tempo da economia política, uma das<br />

condições fundamentais para a formação do capital.<br />

No entanto, a importância das considerações heideggerianas<br />

sobre a intratemporalidade não consiste na ligação entre<br />

esta e a medição quantitativa e publicamente acessível do<br />

tempo pelo relógio. A dimensão quantitativa do tempo é sempre<br />

óbvia na temporalidade inautêntica da Preocupação. “Com<br />

a temporalidade do ser-aí, lançado, abandonado ao mundo,<br />

dando tempo a si próprio, descobre-se sempre algo como o<br />

‘relógio’, isto é, um dispositivo que em seu retorno regular<br />

se tornou acessível, numa apresentação esperada”. 42 O aspecto<br />

original e relevante da intratemporalidade não é, por conseguinte,<br />

a sua dimensão quantitativa, e sim a sua eternidade:<br />

dado que ela vê o fenômeno fundamental do tempo no simplesmente-presente<br />

do agora, no fundo não consegue pensar<br />

nem o porvir, nem o passado, mas apenas o “agora presente”<br />

(nunc stans), isto é, o eterno. Não por acaso Platão, que entende<br />

o tempo como constituído por uma série de agoras, define-o<br />

como “a imagem da eternidade”, e Hegel, cuja concepção<br />

de tempo permanece no âmbito da intratemporalidade,<br />

afirma que “o verdadeiro presente é a eternidade”.<br />

191


A intratemporalidade, que é a concepção do tempo da<br />

produção capitalista, é uma perspectiva estranha, tanto ao<br />

ser-para-a-morte luterano como à simulação da morte<br />

jesuítico-barroca. Ela apresenta, ao contrário, estreitas ligações<br />

com o calvinismo. Em Calvino há uma negação da morte<br />

que é mais extremista e radical que a da metafísica tradicional.<br />

Esta, na verdade, negava a morte porque, no fundo,<br />

concebia a vida ultratumular como uma continuação da vida<br />

terrena, em conformidade com a relação de analogia que ela<br />

estabelecia entre o ser de Deus e o ser das criaturas. Mas,<br />

para Calvino, entre Deus e o homem não pode estabelecerse<br />

nenhuma medida comum, pois Deus é incompreensível<br />

em sua essência. Por isso, a morte não é negada a partir da<br />

vida, que é em si infinitamente miserável e mortal, mas a<br />

partir da eternidade de Deus. A intratemporalidade é uma<br />

conseqüência da doutrina calvinista da predestinação, segundo<br />

a qual Deus já escolheu com absoluta liberdade de arbítrio<br />

aqueles que deseja salvar. “Quando atribuímos uma presciência<br />

a Deus”, escreve Calvino, “entendemos que todas as<br />

coisas sempre estiveram e permanecem eternamente no seu<br />

olhar, de tal modo que não há nada de futuro ou de passado<br />

em seu conhecimento, mas todas as coisas estão-lhe presentes<br />

e de tal maneira presentes [...] que ele as vê e as contempla<br />

verdadeiramente, como se elas estivessem diante dele.<br />

Nós dizemos que essa presciência se estende por todo o<br />

mundo e sobre todas as criaturas. Chamamos de predestinação<br />

ao decreto eterno de Deus pelo qual ele determinou<br />

aquilo que queria fazer de cada homem. 43<br />

Calvino não propõe, portanto, uma reflexão sobre a<br />

morte, mas uma Meditação sobre a vida futura, isto é, sobre a<br />

eternidade, 44 e, a partir dessa meditação, toda a vida terrena<br />

192


adquire a dimensão intratemporal. Diferentemente de Lutero,<br />

Calvino procede assim a uma reavaliação das ações e da atividade<br />

humanas enquanto obra, não dos homens, mas de Deus:<br />

nós não somos justificados sem as ações, embora não o sejamos<br />

por causa delas. Em verdade, somos instrumentos da glória<br />

de Deus. Enquanto a atenção de Lutero permanece ainda<br />

centrada na consciência e a de Loyola, na eleição do exercitante,<br />

para Calvino jamais é o homem quem escolhe o que<br />

quer que seja — é Deus quem escolhe os homens a serem<br />

salvos ou abandonados à morte eterna. Disso deriva esse<br />

ativismo ascético, em singular contraste com o eudemonismo<br />

ativo dos jesuítas, que Max Weber e Ernst Troeltsch definiram<br />

com o termo ascetismo intramundano (innerweltliche<br />

Askese). 45 Ele consiste em restringir a vida sensitiva à pura necessidade,<br />

num rigorismo utilitarista orientado para o além,<br />

num legalismo entendido como fim em si próprio.<br />

As considerações weberianas a respeito da ligação entre<br />

o calvinismo ascético e a economia capitalista mostram<br />

claramente que a negação da morte implícita na intratemporalidade<br />

é ao mesmo tempo negação da vida, absoluto repúdio<br />

do “bem viver”, e severa e inapelável condenação de<br />

toda apreciação autônoma do mundo. 46 Para o calvinismo,<br />

o corpo jamais vive por si próprio. O momento da morte<br />

não possui, no fundo, muita importância, porque as almas<br />

dos eleitos já vivem e atuam desde sempre no âmbito da eternidade.<br />

O verdadeiro fiel é aquele que, estando absolutamente<br />

certo de sua salvação, pode insultar a morte e não preocupar-se<br />

com ela.<br />

Não é este o lugar para examinar a maneira pela qual a<br />

intratemporalidade calvinista se vincula ao racionalismo<br />

humanista; importa antes pôr em evidência o fato de que nas<br />

193


origens da economia capitalista se encontra uma perspectiva<br />

ultrametafísica do tempo como eternidade que é profundamente<br />

diferente e antitética com relação à concepção jesuíticobarroca<br />

do tempo como história. É justamente essa incompatibilidade<br />

entre intratemporalidade e mundo, entre eternidade<br />

e história, que escapa a Heidegger. Para ele, a intratemporalidade<br />

baseia-se no tempo público mundano (Weltzeit),<br />

no próprio ser do ser-aí inautêntico, por ele interpretado como<br />

Preocupação, como cotidianidade impessoal. 47 Dessa forma,<br />

a intratemporalidade (e a economia política capitalista) torna-se<br />

uma dimensão estrutural da existência que não pode ser<br />

superada no plano histórico. Uma vez mais, Heidegger reproduz<br />

a posição de Lutero, que estava disposto a conceder<br />

à economia uma legitimidade secundária, mas de forma alguma<br />

a atribuir-lhe — como Calvino — uma função divina.<br />

A perspectiva jesuítico-barroca é, ao contrário, estranha<br />

à dimensão da intratemporalidade, tanto quanto ao ser-paraa-morte:<br />

a pretensão de mergulhar toda a sociedade numa dimensão<br />

eterna, ritmada pelos prazos de um trabalho metódico,<br />

de uma acumulação constante e de uma indefectível renúncia,<br />

é sentida como uma coisa absurda, de fanáticos que<br />

não sabem bem viver nem bem morrer. A ambição de programar<br />

o futuro mediante o emprego de métodos de previsão<br />

que pressuponham um desenvolvimento homogêneo e regular<br />

é tachada como uma ingenuidade que ignora a diversidade<br />

da história. Enfim, o legalismo é exatamente o contrário<br />

daquele usus rerum* que é premissa de toda ação eficaz.<br />

Tudo isso, obviamente, não exclui o modo de ser do caráter<br />

utensiliar, a Zuhandenheit que Heidegger considera o fun-<br />

* Uso das coisas. (N. do T.)<br />

194


damento existencial da economia e da ciência. Mas o âmbito<br />

jesuítico-barroco da utilidade é amplo o suficiente para abranger<br />

também e principalmente o seu contrário, o inútil, e para<br />

dissolver, portanto, a sua identidade. Na “ajuda às almas”, que<br />

constitui o objetivo precípuo sobre o qual foi fundada a Companhia<br />

de Jesus, o aspecto material e o aspecto espi<strong>ritual</strong> estão<br />

unificados e são indistinguíveis. O mesmo acontece com as<br />

outras determinações heideggerianas do mundo ambiente<br />

(Umwelt): o signo (Zeichen) e a satisfação (Bewandtnis). A estrutura<br />

comunicativa barroca dissolve todo referente porque ocorre<br />

entre um emissor que se vale do código da ostentação e um<br />

receptor cujo código é o da complacência. 48 Enfim, o princípio<br />

repetido ininterruptamente por Loyola e Gracián, de ser feliz<br />

em qualquer estado ou condição, lança as bases do erotismo total<br />

que Sade irá expor detalhadamente. Caráter utensiliar, signo e<br />

satisfação perdem completamente o caráter inautêntico e criptoeconômico<br />

que Heidegger lhes atribui. O “mundo” jesuíticobarroco<br />

não abre a perspectiva da produção, mas a do simulacro.<br />

Disso deriva justamente a sua profunda afinidade com a<br />

situação contemporânea, caracterizada, segundo Baudrillard,<br />

pelo fim da economia política clássica e pela sua reprodução<br />

hiper-realista como modelo de simulação: “Todos os signos agora<br />

trocam-se entre si, sem jamais trocar-se com o real, e eles não<br />

se trocam bem, eles não se trocam perfeitamente entre si a não<br />

ser com a condição de não trocar-se mais com o real”. 49<br />

Notas<br />

1. M. Heidegger, Sein und Zeit. Halle, Niemeyer, parágrafo 48.<br />

2. Heidegger, op. cit., parágrafos 20 e 21.<br />

3. J. Baudrillard, L’échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard, 1976, p. 225, nota 1.<br />

4. Heidegger, op. cit., parágrafo 51.<br />

195


5. Ibid., parágrafo 38.<br />

6. Ibid., parágrafo 40.<br />

7. Baudrillard, op. cit., p. 195.<br />

8. Fenomenológicas e ontológicas as heideggerianas; históricas e psicoanalíticas as<br />

de Baudrillard.<br />

9. A identidade do si-mesmo autenticamente existente, de que Heidegger fala, não<br />

tem, no entanto, nada a ver com a concepção metafísica da identidade do eu.<br />

10. Heidegger, op. cit., parágrafo 53.<br />

11. Id., parágrafo 62.<br />

12. No exame desse aspecto do problema, detém-se particularmente U. M. Ugazio.<br />

Il problema della morte nella filosofia di Heidegger. Milão, Mursia, 1976.<br />

13. Baudrillard, op. cit., p. 203.<br />

14. Heidegger, op. cit., parágrafo 40, nota 4, e parágrafo 49, nota 6.<br />

15. Baudrillard, op. cit., p. 276.<br />

16. P. Ariès, Essai sur l’histoire de la mort en Occident du Moyen Âge à nos jours. Paris,<br />

Seuil, 1975.<br />

17. A. Tenenti, A. La vie et la mort à travers l’art du XV siècle. Paris, Colin, 1952.<br />

18. E. De Negri, La teologia di Lutero. Florença, La Nuova Italia, 1967, p. 52 e seguintes.<br />

19. W. von Loewenich, Luthers Theologia crucis. Bielefeld, Luther Verlag, 1967, V.<br />

20. Apud G. Miegge, Lutero giovane. Milão, Feltrinelli, 1977, p.138.<br />

21. M. Lutero, Ein sermon von den heiligen hochwürdigen Sacrament der Taufe. (1519).<br />

In: Werke in Auswahl. Berlim, De Gruyter, 1959, vol. I.<br />

22. M. Lutero, Das Magnificat (1520-21). In: Lutero, op. cit., vol. II.<br />

23. Apud E. De Negri, op. cit., p. 70.<br />

24. Miegge, op. cit., p. 327.<br />

25. Heidegger, op. cit., parágrafo 62, nota 2.<br />

26. P. Nicole, Essais, IV. Apud H. Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux<br />

en France. Paris, Bloud et Gay, 1915, t. IX, p. 362.<br />

27. R. P. Quesnel, Le bonheur de la mort chrétienne, prefácio. Apud Brémond, op.<br />

cit., t. IX, pp.378-9.<br />

28. Tenenti, op. cit.<br />

29. R. Bellarmino, De arte bene moriendi (1621), livro I, cap. I.<br />

30. Apud M. Volvelle, Mourir autrefois. Paris, Juillard, 1974, p. 58.<br />

31. Bellarmino, op. cit., livro I, cap. II.<br />

32. H. Drexelius, Opera. Londres, 1658.<br />

33. Empregaremos aqui os termos heideggerianos “efetividade” isto é, o modo de<br />

ser do Dasein, e “factualidade”, isto é, o modo de ser das coisas, num contexto cujo<br />

significado geral é, em muitos pontos, oposto às teses de Heidegger.<br />

34. Pe. Alegambe, <strong>Morte</strong>s illustres et gesta eorum de Societate Iesu. Roma, 1657.<br />

35. Bellarmino, op. cit., livro II, cap. I.<br />

36. G. Terrien, Recherches historiques sur cette tradition que la mort dans la Compagnie<br />

196


de Jésus est une gage certaine de prédestination. Poitiers, Oudin, 1874.<br />

37. F. de Quevedo y Villegas, Los sueños (1626). In: Obras Completas. Madri, Aguilar,<br />

1958, vol. I.<br />

38. E. Male, L’art religieux après le concile de Trente. Paris, Colin, 1932.<br />

39. A. Huxcley, Variations on a baroque tomb. In: Themes and variations. Londres, Chatto<br />

and Windus, Londres, 1950.<br />

40. B. Gracián, Oráculo manual y arte de prudencia (1647). In: Obras completas. Madri,<br />

Aguilar, 1967, aforismo 110.<br />

41. Heidegger, op. cit., parágrafo 81.<br />

42. Ibid., parágrafo 80.<br />

43. J. Calvino, Institution de la religion chrétienne (1560). Paris, Vrin, 1957 e seg.,<br />

livro III, cap. XXI, parágrafo 5.<br />

44. Ibid., livro III, cap. IX.<br />

45. M. Weber, Wirtschaft und Gessellschaft. Tübingen, Mohr, 1922. E. Troeltsch, Die<br />

Soziallehren der cristlichen Kirchen. Tübingen, Mohr, 1912.<br />

46. M. Weber, Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus. Tübingen, Mohr,<br />

1922. Sobre a controvérsia a que deu lugar, cf. P. Besnard, Protestantisme et capitalisme.<br />

Paris, Colin, 1970.<br />

47. Heidegger, op. cit., parágrafo 81.<br />

48. G. Conte, La metafora barocca. Milão, Mursia, 1972, p.156. Cf. também: S. Sarduy,<br />

Barroco. Paris, Seuil, 1975; O. Paz, Conjunciones y disyunciones. México, Mortiz, 1969.<br />

49. Baudrillard, op. cit., p. 18.<br />

197


Capítulo VII<br />

O reino intermédio<br />

1 Ser-para-a morte ou renascer?<br />

A energia com a qual Heidegger, em Ser e tempo, 1 chamou<br />

a atenção da cultura contemporânea para o problema da<br />

morte tem certamente uma justificativa teórica ainda válida, na<br />

recusa da postura humanística, segundo a qual a morte é algo<br />

completamente estranho à vida, algo que se pode eludir facilmente<br />

não se falando dela ou procurando esquecê-la. Entretanto,<br />

o propósito — comum a outros filósofos contemporâneos<br />

— de considerar a morte o fato mais significativo e fundamental<br />

da existência parece uma pretensão muito menos convincente,<br />

porque implica uma dramatização enfática da vida<br />

humana, a qual se revela dilacerada entre o ser-para-a-morte e<br />

o ser no mundo, entre o autêntico e o inautêntico, entre aquilo<br />

que é “próprio” e “originário” e o que é impróprio e derivado.<br />

Particularmente o ser-para-a-morte parece ligado a uma<br />

perspectiva que sempre considera a morte a possibilidade capaz<br />

de tornar-se mais própria que qualquer outra, como a an-<br />

198


tecipação que ameaça e paira sobre o nosso presente, segundo<br />

uma concepção do tempo que, mesmo não tendo nada de cronológico,<br />

é contudo inexoravelmente unidirecional e irreversível.<br />

No pólo oposto a Heidegger e à filosofia contemporânea,<br />

Mircea Eliade propôs em numerosos textos, baseado<br />

numa ampla documentação extraída da história das religiões<br />

arcaicas, uma perspectiva da vida e da morte muito mais serena,<br />

fundada na concepção circular e reversível do tempo e<br />

na fé nas infinitas possibilidades de regeneração do homem<br />

e do mundo. Em particular, ao examinar um fenômeno religioso<br />

de importância fundamental nas sociedades arcaicas<br />

— a iniciação —, Eliade mostra que a experiência existencial<br />

da morte iniciática é sempre seguida de um renascer, que<br />

garante o acesso a uma dimensão sacra e meta-histórica. 2<br />

Nessa ótica, a morte, entendida como condição de palingenesia,<br />

pertence, portanto, sempre ao passado, mesmo que<br />

tal determinação temporal obviamente não tenha significado<br />

cronológico: o fato mais significativo e fundamental da<br />

existência não é a morte, mas o renascimento. Porém, também<br />

a teoria da morte iniciática de Eliade suscita enormes<br />

perplexidades. É difícil compreender como é que de uma<br />

morte simulada no rito da iniciação possa emergir um “verdadeiro”<br />

renascimento, uma origem, isto é, uma nova atuação<br />

do mito primigênio e arquetípico. Entre a simulação da<br />

morte e o ingresso em uma dimensão que tem pretensões<br />

de absoluto ontológico, há um salto que dificilmente parece<br />

justificável. Além disso, existe uma profunda diferença<br />

entre a concepção da iniciação como fim da história e ingresso<br />

na meta-história e a concepção da iniciação como fim<br />

da natureza e ingresso na cultura, que o próprio Eliade empresta<br />

dos estudos antropológicos: a identificação entre his-<br />

199


tória e natureza, de um lado, e de meta-história e cultura,<br />

de outro, mostra-se forçada e sub-reptícia. Por isso, a morte<br />

iniciática de Eliade parece se revestir das características daquela<br />

concepção teológico-metafísica da morte entendida<br />

como ingresso na eternidade que Heidegger julga tão insustentável<br />

quanto a concepção humanística.<br />

Da insatisfação, seja diante do ser-para-a-morte, seja<br />

diante do nascimento e do renascimento iniciático, nascem algumas<br />

questões: é possível pensar o vínculo morte-renascimento,<br />

que subverte a unidirecionalidade do ser-para-a-morte,<br />

sem cair na metafísica? A reflexão sobre a morte e a sua<br />

experiência simulada comportam necessariamente a recusa e<br />

o abandono da ação histórica? Entre a experiência da derrota<br />

e do fracasso, ao qual parece necessariamente destinado o serpara-a-morte,<br />

e a felicidade meta-histórica do mito revivido,<br />

é possível encontrar uma dimensão da vida e da morte que<br />

garanta ao mesmo tempo consolação e resultado prático? Serão<br />

o sagrado e a história, a experiência interior e a ação política,<br />

a reflexão sobre a morte e a atividade do mundo realmente<br />

inconciliáveis e opostos?<br />

2 <strong>Morte</strong> e renascimento no pensamento <strong>ritual</strong><br />

Se a fonte histórica do ser-para-a-morte heideggeriano<br />

é constituída pelo pensamento cristão (de santo Agostinho a<br />

Lutero) e pelos trágicos gregos, se a fonte histórica da morte<br />

iniciática de Eliade foi fornecida pela religião da Índia e pelas<br />

culturas primárias, o ponto de referência histórico de quem<br />

pretende procurar uma resposta positiva às questões levantadas<br />

anteriormente é a religião da Roma antiga.<br />

200


Essa escolha pode parecer estranha à primeira vista, por<br />

muitas razões. Em primeiro lugar, a religião romana, à diferença<br />

da grega, não goza de crédito filosófico. Hegel a definiu<br />

“uma religião da dependência e da ausência de liberdade”,<br />

na qual a superstição é soberana, sendo destituída de qualquer<br />

doutrina e conteúdo espi<strong>ritual</strong>.<br />

Pode ocorrer aí a perda completa de toda idéia, o perecimento<br />

de toda verdade [...]; pode-se chegar a conceber o espírito<br />

só com a pressuposição de que está inteiramente no finito,<br />

marcado pelo útil imediato, que em sua dependência só tem<br />

consciência da sua finitude, esquecendo toda interioridade,<br />

toda universalidade do pensamento. Ele só é usado para e na<br />

prosa em circunstâncias determinadas, e a elevação não é senão<br />

a inteligência de todo formal, que capta condições, espécies<br />

e modos de ser em uma imagem e não conhece nenhum<br />

outro tipo de substancialidade. 3<br />

De uma forma mais sintética e eficaz, Hegel diz que<br />

Roma “despedaçou o coração do mundo”. 4<br />

Em segundo lugar, a religião romana não parece ter elaborado<br />

uma concepção particularmente original ou significativa<br />

da morte. O que se entrevê nas crenças romanas antes da<br />

influência etrusca e grega é “gasto e confuso”. 5 O culto dos<br />

mortos, ao qual eram dedicadas as Parentalia* de fevereiro e<br />

as Lemuria** de maio, não exerceu em Roma um papel essencial;<br />

6 ao contrário, era na maioria das vezes confinado ao<br />

culto privado. Toda família tem os seus Manes,*** e os reverencia<br />

com oferendas e sacrifícios.<br />

* Festas anuais em honra dos mortos, em Roma. (N. do T.)<br />

** Festas em honra dos lêmures (alma dos mortos). (N. do T.)<br />

*** Espírito dos mortos. (N. do T.)<br />

201


No entanto, os historiadores da religião romana observam<br />

que os Manes fazem pesar sobre toda a vida um vago<br />

mal-estar. 7 Hegel observa na história romana uma propensão<br />

a entender a morte na sua dimensão mais exterior e absurda,<br />

como um massacre sem conteúdo, ou seja, como um extermínio<br />

que tem por conteúdo apenas a si mesmo. Um profundo<br />

conhecedor das religiões clássicas, Karl Kerényi, afirma<br />

que, diferentemente do conceito grego de ieron,* o conceito<br />

latino de sacer** indica uma esfera particular do divino<br />

que coincide com o reino da morte. 8<br />

Tudo isso leva a suspeitar que há na religião romana<br />

uma relação com a morte mais profunda e mais substancial<br />

do que as fontes dizem explicitamente. Tal relação não diz respeito<br />

a este ou aquele aspecto particular da religião romana,<br />

mas à sua característica fundamental: a desmitificação, o rito<br />

sem mito. Ela recobre a própria essência da romanidade.<br />

Se — como salienta Dumézil 9 — o pensamento dos<br />

antigos romanos merece atenção e estima, o problema<br />

conceitual do rito desmitificado deve ser pensado nos seus aspectos<br />

filosóficos. De fato, ele representa uma orientação completamente<br />

diferente, seja da concepção trágica da existência<br />

que Heidegger apreende dos gregos, seja da morte iniciática<br />

e do eterno retorno que Eliade lê nas sociedades arcaicas. O<br />

que quer dizer a observância extremamente escrupulosa, quase<br />

obsessiva, de ritos dos quais se ignora o sentido, ou nos quais<br />

este se cala? O que quer dizer o sacrifício a deuses cujos nomes<br />

mal conhecemos e a respeito dos quais não nos preocupamos<br />

em saber se são homens ou mulheres? Pode-se explicar<br />

isso apenas recorrendo a uma deficiência de imaginação,<br />

* Santo, sagrado, de origem divina. (N. do T.)<br />

** Sagrado. (N. do T.)<br />

202


uma deficiência na representação figurada da divindade? Ou<br />

é suficiente atribuí-lo, como faz Dionísio de Halicarnasso, ao<br />

respeito aos deuses e à sua pureza?<br />

O aspecto mais inquietante de tal desmitificação é que<br />

ela não está acompanhada de uma secularização ou laicização<br />

completas — o desaparecimento do mito não prejudica a<br />

sacralização do rito. A interpretação dos que sustentam que<br />

em Roma o mito se tornou história das origens não explica<br />

a permanência do caráter sagrado do rito. O que parece caracterizar<br />

a religião romana é antes a tentativa de estabelecer<br />

um trânsito entre sagrado e profano. No mundo romano,<br />

de fato, não existe um verdadeiro segredo sacerdotal; as<br />

mesmas pessoas ocupavam, concomitantemente, às vezes as<br />

magistraturas civis, outras vezes o sacerdócio ou ainda cargos<br />

civis e religiosos.<br />

A repetição <strong>ritual</strong> não se apóia no arquétipo mítico, no<br />

modelo originário, nem pretende proporcionar o acesso a experiências<br />

existenciais ou a conteúdos de vida privilegiados ou<br />

autênticos: o rito desmitificado é um procedimento vazio,<br />

porém eficaz e sagrado. Exatamente essa coincidência entre<br />

eficácia e sacralidade constituía para Hegel o aspecto menos<br />

apreciável da religião romana. “Trata-se do sucesso e da existência;<br />

mas essa existência é uma realidade imediata, que,<br />

como tal [...] é contingente. O nocivo, o fracasso, opõem-se<br />

ao útil, à prosperidade”. Segundo Hegel, isso leva os romanos<br />

a venerarem tanto o poder do bem como o do mal, com<br />

a mesma indiferença, apenas porque se trata de poder: “Eles<br />

tinham consagrado um altar à peste, à febre, à fome, assim<br />

como veneravam a ferrugem do trigo.” 10<br />

Contudo, essa disposição para sacralizar o presente na<br />

sua dimensão mais empírica e contingente implica uma rela-<br />

203


ção com a morte não desprezível e digna de reflexão. Se no<br />

ser-para-a morte heideggeriano a morte é um futuro iminente,<br />

se na iniciação de Eliade ela é sempre um passado, no rito<br />

romano a simulação da morte parece coincidir com a criação<br />

da vida, que não é, entretanto, a vida eterna e absoluta do<br />

mito, e sim a vida simulada, artificial, jurídica — em uma palavra,<br />

cultural. Assim, a função do rito desmitificado é, por<br />

um lado, a de dissolver o dado natural, e, por outro, a de tornar<br />

o presente um dado cultural, dando-lhe acesso ao mundo<br />

fas*.<br />

Diz a tradição que os pontífices, que acumulavam entre<br />

as suas funções três tarefas fundamentais — o conhecimento<br />

dos procedimentos jurídicos, a determinação do calendário<br />

e a redação histórica dos anais —, não deviam participar<br />

dos funerais, nem ver cadáveres; tal prescrição torna-se ainda<br />

mais rígida para o sacerdote de Júpiter, o flamen dialis.** A<br />

sua vida era tão minuciosamente condicionada que ele parecia<br />

a Plutarco “quase uma estátua vivente” de Júpiter: não podia<br />

tocar nada morto, nem visitar nenhum lugar onde houvesse<br />

um túmulo. Essa proibição estendia-se também às coisas<br />

móveis e germinantes, conforme uma associação freqüente<br />

no mundo romano entre o culto dos mortos e as idéias de<br />

fecundidade. O significado de tais prescrições não deve ser<br />

procurado em uma exclusão da morte e do nascimento do<br />

mundo sagrado. 11 Ao contrário, morte e nascimento escapavam<br />

inteiramente à sua dimensão natural para transitarem um<br />

no outro. O Estado romano não conferia caráter sagrado aos<br />

* O que é direito ou permitido por lei divina; o que é normalmente correto, o que<br />

está de acordo com a lei natural. (N. do T.)<br />

** Sacerdote de Júpiter. Flamen: sacerdote que se consagrava a um deus em particular.<br />

Dialis: deus do dia (Júpiter). (N. do T.)<br />

204


itos funerários privados (confinando-os no âmbito do<br />

religiosus), porque eles estavam ligados ao âmbito natural-biológico<br />

da família. Somos, por isso, levados a supor que a partir<br />

do momento em que o Estado se constitui, dissolvendo a organização<br />

gentilícia anterior, ele se apropria do nexo morte—<br />

renascimento, estabelecendo entre os dois termos um trânsito<br />

do mesmo para o mesmo.<br />

No rito sem mito, morte e vida passam uma para a outra.<br />

Isso, por um lado, assinala a morte do dado natural e do<br />

dado mítico; por outro, o ingresso em uma dimensão que, entretanto,<br />

não é mais que a confirmação <strong>ritual</strong> do que já está presente.<br />

Se, como diz Lévi-Strauss, a morte simulada do pensamento<br />

mítico garante um suplemento de vida real, 12 a morte<br />

simulada do pensamento <strong>ritual</strong> sacraliza o presente à custa da<br />

sua desrealização. Em Roma, o conceito de começo nunca tem<br />

o significado de origem ou de retorno ao original. 13 O deus<br />

do início, Jano (deus omnium initiorum*), que olha ao mesmo<br />

tempo para o passado e para o futuro, está, todavia, solidamente<br />

ancorado no presente. Deus dos inícios simulados, e por isso<br />

deus do tempo que retorna no calendário! Mas o eterno retorno<br />

do calendário romano é profundamente diferente do eterno<br />

retorno do qual fala Eliade: não a reatualização de um passado<br />

mítico, e sim estrutura formal de dias fastos e nefastos,**<br />

profestos e festivos,*** grade, rede apta exatamente a conter o<br />

diferente, o imprevisível, a novidade histórica. O retorno do tempo<br />

formal do calendário não é o repetir-se natural das estações,<br />

mas a própria <strong>ritual</strong>ização do tempo, transformado em cultura.<br />

* Deus de todos os inícios. (N. do T.)<br />

** Fasti: no calendário da antiga Roma, os dias nos quais se podiam fazer negócios.<br />

O contrário de nefasto. (N. do T.)<br />

*** Profesti: dias úteis; festi: festivos. (N. do T.)<br />

205


A indeterminação da religião romana, a tendência a<br />

deixar cair, a calar, a esquecer as identidades e as funções de<br />

cada deus e o significado mítico dos ritos, tudo isso responde<br />

assim a uma precisa orientação filosófica, cultural e política,<br />

de cautela e de extrema prudência para com o dado histórico<br />

emergente, a uma vontade do relativo, a um medo<br />

de dimensões absolutas: a morte e o nascimento também<br />

pertencem ao relativo. A morte na religião romana não é a<br />

verdadeira morte, tragicamente presente a cada dia da vida,<br />

mas não é também a morte simulada e sempre superada da<br />

palingenesia iniciática. Quando muito, é uma negação dos<br />

fundamentos absolutos, uma disposição sagradamente autorizada,<br />

a mover-se como um cadáver vivente, seja qual for a<br />

direção que as circunstâncias exijam. Isso explica o encontro<br />

entre a religião romana e o estoicismo, entre a falsa morte<br />

<strong>ritual</strong> e a indiferença, a apátheia.* De forma análoga, o nascimento<br />

romano não é o verdadeiro nascimento do eterno<br />

retorno, mas a aprendizagem de uma propensão a acolher o<br />

acontecimento histórico no tempo sagrado do calendário.<br />

Exatamente como diz Kerényi, a religiosidade romana consiste<br />

na capacidade de escutar atentamente o fatum,** adaptando-se<br />

com obediência a ele. Poder-se-ia acrescentar, não<br />

só se adaptando a ele, mas desejando-o. Dessa vontade, muito<br />

mais que da previsão do futuro, eram justamente tutores<br />

os sacros colégios dos sacerdotes. <strong>Morte</strong> e nascimento como<br />

determinações absolutas e irreversíveis não encontram lugar<br />

no mundo romano, porém a sua reversibilidade temporal implica<br />

a possibilidade de ter acesso ao eterno. Ao contrário, a<br />

* Calma estóica, apatia. (N. do T.)<br />

** Fatum: Destino traçado pelos deuses. (N. do T.)<br />

206


eversibilidade temporal do calendário serve para acolher<br />

aquilo que nasce; todavia, exatamente por isso, o novo não<br />

deve ter pretensões de originalidade. Até os mortos eram<br />

considerados nem mortos nem vivos, mas pertencentes a um<br />

reino intermédio, a um Zwischenreich, a um setor intermediário<br />

que lhes consentia manifestarem-se durante as<br />

Parentalia e as Lemuria, embora de maneira não muito evidente,<br />

nem muito exata. 14 A incerteza e a indeterminação revestem<br />

também os Manes, ora pensados como “bons”, ora<br />

vistos como espectros (larvae*). Não só o além, mas a própria<br />

vida era um Zwischenreich suspenso entre o ser e o não<br />

ser. O estado emocional que a distingue não é a angústia diante<br />

da morte, nem a alegria diante do renascimento <strong>ritual</strong>,<br />

e sim uma hesitação diante do futuro unida a uma profunda<br />

confiança na sacralidade do presente.<br />

3 O “Troiae lusus”<br />

Como ter acesso ao reino intermédio do rito sem mito?<br />

Como tornar-se cidadão romano? Como aprender a conhecer<br />

a morte, a vida, o tempo?<br />

Mediante um <strong>ritual</strong>, o “Troiae lusus”,** que era celebrado<br />

por ocasião da fundação das cidades. 15<br />

A fonte antiga mais importante é uma longa passagem<br />

do quinto livro da Eneida, no qual Virgílio ilustra o seu desenrolar-se.<br />

Ele descreve um torneio realizado por jovens a<br />

cavalo, os quais fazem evoluções incessantes e rápidas seguin-<br />

* Espíritos malignos, fantasmas dos mortos que não conseguiam descanso. (N. do T.)<br />

** O jogo de Tróia. (N. do T.)<br />

207


do aproximadamente o esquema do labirinto. Esse jogo está<br />

ligado a uma ocasião fúnebre: ele faz parte das festas com as<br />

quais Enéias presta homenagem aos Manes de seu pai, um ano<br />

após sua morte.<br />

Os intérpretes modernos do Troiae lusus identificaram<br />

nesse jogo, além das duas ligações declaradas por Virgílio —<br />

as exéquias e a fundação de cidades —, um terceiro significado<br />

mais profundo e essencial, que lança uma nova luz sobre<br />

toda a cerimônia. O Troiae lusus seria nada menos que<br />

um rito de passagem, uma cerimônia de iniciação à vida pública<br />

semelhante à conhecida por tantas culturas primárias. 16<br />

Esse aspecto é confirmado por uma leitura atenta do trecho<br />

virgiliano, por outros testemunhos antigos (sobretudo por<br />

um trecho das Troades de Sêneca, em que o tornar-se adulto<br />

parece estar estritamente ligado com a participação no Troiae<br />

lusus) e também por uma vasta pesquisa comparativa entre<br />

alguns aspectos da religião romana e a tipologia dos ritos<br />

iniciáticos da antropologia moderna. Ele faz parte, portanto,<br />

de um projeto hermenêutico mais amplo, que visa<br />

reconduzir a religião romana ao âmbito de uma tipologia<br />

religiosa comum a todos os povos da terra e a resolver o escândalo<br />

que ela representa. 17<br />

Entretanto, ainda uma vez fica evidente toda a singularidade<br />

da religião romana. O que surpreende o leitor moderno<br />

de Virgílio é exatamente o conteúdo dessa iniciação que<br />

não ensina uma luta pela vida e pela morte, mas uma política<br />

de alternâncias na qual choques e fugas, enfrentamentos e<br />

armistícios, guerra e paz se sucedem com a máxima rapidez.<br />

208


Diz Virgílio:<br />

De repente, com vivo movimento<br />

Separam-se em três pelotões iguais<br />

E cada um dos três em dois coros se divide.<br />

Depois, a um novo comando, voltam sobre seus passos, a lança<br />

em riste.<br />

Empreendem então outras carreiras, para lá e para cá enfrentando-se<br />

a distância.<br />

Entreveram-se quando se voltam, fazendo simulacros de um<br />

combate.<br />

Ora descobrem o dorso, fugindo, ora em ataque voltam seus<br />

dardos,<br />

Ora a paz é feita e cavalgam lado a lado. [v. 580-7]<br />

Se compararmos o Troiae lusus às iniciações militares das<br />

quais fala Mircea Eliade, 18 torna-se muito evidente a diferença:<br />

enquanto as iniciações militares descritas por Eliade pedem<br />

aos jovens a aquisição de uma força irresistível, de um<br />

Wut, de um furor capaz de paralisar e de encher de terror o<br />

adversário, o Troiae lusus quer antes ensinar um comportamento<br />

político baseado na habilidade de alternar amizade e inimizade<br />

para com as mesmas pessoas, sem que esse fato implique<br />

o dispêndio de grandes energias emocionais. Os<br />

iniciandos são comparados por Eliade a lobos selvagens, a animais<br />

ferozes, mas os jovens descritos por Virgílio, ao contrário,<br />

são semelhantes a delfins que, “pelo Jônio brincando e<br />

pelo Egeu, fazem correrias e danças, e dão cambalhotas”<br />

(v. 594-5). No relato de Virgílio não há, portanto, nada do<br />

chamado ardor iniciático, da cólera que cria um guerreiro<br />

impiedoso e invencível. Virgílio destaca, se tanto, o esplen-<br />

209


dor, a beleza, o charme dos pequenos cavaleiros, os quais<br />

“avançam em boa ordem, sob os olhares de seus maiores, resplandecem<br />

em seus cavalos...” (v. 554-5). Quanto às qualidades<br />

que o Troiae lusus implica, elas realmente não são as proporcionadas<br />

por uma superexcitação patológica, por uma embriaguez<br />

que ofusca; ao contrário, a execução de um movimento<br />

tão complicado como o labiríntico exige perspicácia,<br />

prudência, discriminação. No desfile labiríntico, “os filhos de<br />

Teucrus entreviram seus passos, entrevêem muito facilmente<br />

fugas e combates...” (v. 593-4). A dissimulação dos próprios<br />

rastros parece a Virgílio a dimensão labiríntica por excelência,<br />

a que cria a ambigüidade falaz do labirinto de Creta. A<br />

tentativa de reconstruir visivelmente a figura do movimento<br />

dos cavaleiros não deu até agora resultados persuasivos. 19 Se,<br />

entretanto, nos ativermos ao desenho clássico do labirinto<br />

cretense, perceberemos rapidamente que só se pode chegar ao<br />

centro sob a condição de invertermos a direção do movimento<br />

a cada círculo e de nos distanciarmos da meta no mínimo três<br />

vezes. Trata-se, portanto, de um movimento que implica extrema<br />

sagacidade, cujo objetivo é esconder do inimigo as próprias<br />

intenções. O caminho que leva ao centro nunca é o mais<br />

curto, nem o mais direto.<br />

Ao contrário das teorias modernas, como, por exemplo,<br />

a de Carl Schmitt, 20 que vêem a essência da política na<br />

determinação permanente de um amigo e de um inimigo real,<br />

a mentalidade romana parece considerar amigo e inimigo determinações<br />

provisórias. A iniciação na vida pública é exatamente<br />

iniciação nessa relatividade das concordâncias e das<br />

discordâncias, no caráter não absoluto das guerras e das pazes<br />

que se desenvolvem no interior da urbs. A vida política<br />

não é pensada em Roma como uma luta pela vida e pela morte<br />

210


que implica uma decisão tomada de uma vez por todas; a vida<br />

da cidade é labiríntica porque pressupõe uma infinidade de<br />

escolhas realizadas dia a dia, a cada passo, por assim dizer. Isso<br />

não significa que tais escolhas estejam sempre isentas de perigos<br />

ou conseqüências: ao contrário, o Troiae lusus ensina justamente<br />

a mover-se “no labirinto [de Creta] que ocultava em<br />

seus muros cegos um emaranhado de corredores, a ambigüidade<br />

enganosa de mil trajetos....” (v. 588-9). De resto, as fontes<br />

se detêm sobre a periculosidade e a rudeza do Troiae lusus:<br />

quedas de cavalos e fraturas deviam ser muito freqüentes, pois<br />

Augusto foi obrigado a suspender as suas celebrações por algum<br />

tempo. 21<br />

O fato de os romanos oporem o hostis* (o inimigo externo)<br />

ao civis** e o amicus ao inimicus leva a crer que, enquanto<br />

a primeira distinção se referia à relação com os inimigos<br />

externos à cidade e, portanto, determinava a relação polêmica,<br />

a segunda distinção se referia ao conflito interno entre<br />

cives, e, portanto, determinava a relação política. Ora, só a segunda<br />

é uma relação labiríntica — a primeira implica uma<br />

contraposição simples e linear como nenhuma outra. A desvalorização<br />

da relação amicus/inimicus em favor da relação civis/hostis<br />

implícita na identidade que Clausevitz estabelece entre<br />

a política e a guerra, que é abertamente teorizada por Schmitt,<br />

talvez seja um erro fatal da modernidade. A política à qual o<br />

Troiae lusus iniciava não pode ser reduzida a “uma política de<br />

passos de valsa”, segundo a expressão usada no século passado<br />

para defini-la: ela tem uma dignidade teórica e uma sabedoria<br />

prática próprias. A sua dignidade teórica consiste no fato<br />

* Originariamente “estrangeiro”. Mais tarde, metaforicamente, “inimigo” (de guerra<br />

ou público). (N. do T.)<br />

** “Cidadão”, especialmente cidadão romano (civis romanos). (N. do T.)<br />

211


de ela reconhecer o caráter mutável, sempre diferente, da realidade<br />

histórica; a sua sabedoria prática consiste no fato de<br />

se adequar à ocasião e dela se apropriar. Entre as ocasiões fundamentais<br />

para a celebração do Troiae lusus, as fontes mencionam<br />

a fundação de cidades. Ora, que relação existe entre a<br />

fundação de uma cidade e o labirinto? Há na própria idéia<br />

do fundar, do construir, do instituir ex novo, uma violência<br />

ontológica, uma arrogância, uma soberba, que era bem conhecida<br />

dos antigos: os gregos a chamavam hýbris,* para os<br />

romanos era o contrário da pietas.** O temor de expor-se à<br />

inveja dos homens e, mais ainda, à inveja dos deuses prescrevia<br />

toda uma série de precauções rituais muito complexas que<br />

deviam ser seguidas escrupulosamente. A celebração do Troiae<br />

lusus inclui-se nesse quadro que considera a dissimulação, a<br />

indeterminação e a não-identidade cuidados indispensáveis ao<br />

sucesso de qualquer empreendimento. 22 Na literatura antropológica<br />

existem numerosos exemplos de danças labirínticas<br />

de caráter apotropéico, isto é, destinadas a proteger do mauolhado.<br />

23 O próprio termo Troia não deriv aria a sua<br />

etimologia da cidade da Ásia Menor, mas da palavra truia, que<br />

significava exatamente “labirinto”; dela deriva o verbo<br />

amptruare, “dançar a truia”, mover-se alternadamente para a<br />

esquerda e para a direita. 24 É com tal palavra que é definida<br />

pelas fontes a dança sagrada dos sálios, os sacerdortes criados<br />

por Numa Pompílio para cuidar e guardar os doze escudos<br />

(ancilia), que eram o pignus imperii*** de Roma, o talismã<br />

* Violência injusta provocada pela paixão. (N. do T.)<br />

** Cumprimento do dever para com os deuses, o pai e a mãe, os benfeitores, a pátria,<br />

etc. Sentido de dever. Metaforicamente: “doçura”, “indulgência”, “bondade”,<br />

“clemência”. (N. do T.)<br />

*** Garantia do império. (N. do T.)<br />

212


ligado à sorte da cidade e ao seu destino histórico, obra de<br />

enorme importância política, comparável ao templo de Júpiter<br />

capitolino e ao fogo perpétuo de Vesta. Era dever dos sálios<br />

sair carregando esses escudos sagrados por ocasião de uma cerimônia<br />

que ocorria no mês de março. Segundo Plutarco<br />

(Numa, 13), eles derivavam o seu nome “exatamente da dança<br />

que executavam, saltando, quando percorriam a cidade com<br />

os escudos sagrados”. Essa dança, que outras fontes definem<br />

com a palavra tripudium (Tito Lívio, I, 20, 4), é absolutamente<br />

análoga ao Troiae lusus descrito por Virgílio. Ao som da<br />

flauta — diz Dionísio de Halicarnasso (II, 70) —, eles executam<br />

ritmicamente o passo da dança guerreira, “ora todos<br />

juntos, ora com movimentos opostos, acompanhando suas<br />

danças com coros ancestrais”. Esses cantos terminavam com<br />

a invocação de Mamúrio Vetúrio, o primeiro artista da história<br />

de Roma, o autor dos escudos guardados e transportados<br />

pelos sálios.<br />

Mamúrio, portanto, é um ferreiro, e é conhecida a relação<br />

entre os ferreiros, os guerreiros e os mestres de iniciações.<br />

Segundo Eliade, há em diferentes níveis culturais uma<br />

ligação íntima entre a arte do ferreiro, a iniciação e a arte da<br />

canção, da dança e da poesia. 25 Essa tradição apresenta características<br />

marcadamente prometéicas, em que o ferreiro é<br />

o herói civilizador, o senhor do fogo, o guerreiro animado<br />

pelo calor divino. Mas o ferreiro dos romanos apresenta características<br />

completamente diferentes: está subordinado a<br />

Numa, não é um criador original, mas autor de uma ação<br />

dissimuladora que faz desaparecer o único escudo mandado<br />

pelos deuses, numa ostentação da multiplicidade, numa espécie<br />

de jogo que multiplica por doze o exemplar.<br />

213


Por tudo isso fica claro o significado do labirinto na<br />

fundação da cidade — a cidade pode ser fundada desde que<br />

se torne ao mesmo tempo invisível, mediante um <strong>ritual</strong> protetor:<br />

a criação implica ao mesmo tempo um desaparecimento.<br />

De um lado, presta-se homenagem ao ferreiro Mamúrio,<br />

recordando o seu nome no canto dos sálios; de outro, em<br />

14 e 15 de março, leva-se em procissão um homem coberto<br />

de peles que é golpeado com longas varas brancas, enquanto<br />

é chamado Mamúrio (Lídio, Mens. 4, 49). Daí vem a expressão<br />

“tòn Mamóurion paízein” (“bancar o Mamurio”), que<br />

quer dizer “levar uma surra”. A indeterminação, a não-identidade<br />

é atribuída pelos romanos à própria Roma, cujo verdadeiro<br />

nome — segundo uma antiga tradição referida por<br />

Macróbio (Sat. III, 9, 1-9) — era desconhecido. A cidade<br />

era posta sob a custódia de um deus igualmente ignorado,<br />

que exercia a própria proteção exatamente porque<br />

indeterminado. De fato, essa dupla ocultação tinha a função<br />

de impedir que os povos inimigos se apropriassem da<br />

identidade espi<strong>ritual</strong> e cultural de Roma, mediante o <strong>ritual</strong><br />

da evocatio. 26 Quanto a Mamúrio, não é sem razão que a tradição<br />

lhe atribui uma outra obra, tão singular quanto a fabricação<br />

dos escudos: a estátua do deus Vertumno, o qual,<br />

segundo Propércio (IV, 2), era capaz de assumir todas as<br />

identidades — rapaz, ceifeiro, guerreiro, bacante, poeta, caçador,<br />

cocheiro, escudeiro, pescador, pastor, jardineiro, e até<br />

non dura puella, isto é, moça de vida fácil!<br />

A terceira ocasião fundamental para a realização do<br />

Troiae lusus, os funerais, ilumina o significado profundo das<br />

duas primeiras, a iniciação e a fundação de cidades. É conhecida<br />

a tese de Kerényi, segundo a qual o labirinto está ligado<br />

à experiência da morte e do renascimento, e, portanto, a uma<br />

214


idéia de vida nova. Segundo ele, o labirinto conduz ao reino<br />

da morte e, entretanto, no final, reconduz à vida. 27 Essa ligação<br />

também deve ser entendida de maneira totalmente especial<br />

no caso da religião romana antiga.<br />

Em Roma, o labirinto não tem de modo algum a função<br />

de estabelecer uma separação absoluta entre a vida e a<br />

morte, mas, bem ao contrário, a de torná-las reversíveis, de<br />

estabelecer um trânsito entre uma e outra. O Troiae lusus garante<br />

seguramente uma ressurreição simbólica do morto, porque<br />

o torna presente na recordação dos vivos, porém, de<br />

modo ainda mais essencial, introduz o iniciando em um reino<br />

da morte, que coincide perfeitamente com o da vida civil,<br />

do rito sem mito, do comportamento político. Isso faz o iniciando<br />

passar da dimensão natural das paixões subjetivas à dimensão<br />

cultural da política, na qual ele deve ser como um<br />

cadáver vivente, pronto ora para a paz, ora para a batalha, ora<br />

para a amizade, ora para a inimizade, conforme a situação objetiva.<br />

Não se trata, portanto, de uma ressurreição que acontece<br />

após a passagem pelo labirinto, e sim de um permanecer<br />

no trânsito do labirinto, de um permanecer naquela vida-morte,<br />

naquele reino intermédio que é a vida civil.<br />

Mamúrio Vetúrio seria, segundo alguns estudiosos, a<br />

própria personificação do ano, 28 e o número dos escudos por<br />

ele criados corresponderia aos meses nos quais o ano se estrutura.<br />

A sua obra, a estátua do deus Vertumno (de vorti, “virar-se”,<br />

“transformar-se”), com efeito evoca a idéia da mudança,<br />

da passagem das estações. Georges Dumézil procurou demonstrar<br />

que na história de Mamúrio não há nada de novo<br />

em relação a relatos escandinavos ou indianos análogos, no<br />

que se refere à divisão do tempo. 29 Não obstante, não podemos<br />

nos furtar à impressão de que aqui também — como em<br />

215


todos os outros aspectos da religião romana — há um jogo<br />

de repetições e de dissimulações em relação aos modelos indoeuropeus,<br />

votado a privá-los de significado, a deixá-los vazios,<br />

indeterminados, mesmo conservando-lhes, ou melhor, exacerbando-lhes<br />

o rigor cerimonial. É interessante observar que<br />

Mamúrio está ligado à passagem de um ano para o outro (a<br />

sua festa, os Mamuralia — considerada por Oto uma festa dos<br />

mortos 30 —, era celebrada exatamente em março, que, no antigo<br />

calendário romano, era o primeiro mês do ano); os sálios<br />

estavam encarregados de fechar e abrir o ano; Vertumno recebia<br />

as primícias de todos os produtos agrícolas. Todos esses<br />

dados se ligam estritamente à noção de iniciação e à noção de<br />

trânsito. Mas, se perguntamos no quê, em quais conteúdos Mamurio<br />

iniciava, a resposta é tautológica: Mamúrio inicia a<br />

Mamúrio, à atividade multiplicadora e dissimuladora, ao rito<br />

sem mito, à repetição que desconstrói e faz desaparecer aquilo<br />

que repete, ao trânsito do mesmo para o mesmo. A concepção<br />

romana do tempo não é nem cíclica como a tradicional,<br />

típica das sociedades agrícolas, nem unidirecional e sempre<br />

inovadora, como a moderna. No calendário, os ritos sempre<br />

retornam, mas, não obstante sejam indiscerníveis daqueles<br />

realizados no ano anterior e daqueles que serão realizados<br />

no ano seguinte, não são idênticos. Há uma passagem do mesmo<br />

para o mesmo que dissolve a identidade do tempo.<br />

4 O rito do rito<br />

De tudo quanto foi dito emerge um paradoxo. De um<br />

lado, os romanos estão bem atentos à dimensão cerimonial,<br />

aos signos, aos gestos; de outro, esquivam-se de toda signifi-<br />

216


cação unívoca e irrevogável destes. O Troiae lusus, como todos<br />

os ritos romanos, de um lado, implica uma rigorosa determinação<br />

dos espaços, dos tempos, dos movimentos; 31 de<br />

outro, inicia a uma mentalidade que torna fluidas, ambíguas<br />

e incertas todas as determinações. A compreensão de tal paradoxo<br />

é decisiva para o entendimento do pensamento <strong>ritual</strong><br />

romano, cujo charme está justamente no saber unir a regra<br />

mais rigorosa com a interpretação mais pragmática.<br />

Até do ponto de vista lingüístico o Troiae lusus une a<br />

máxima indeterminação com a máxima precisão e revela-se<br />

uma obra-prima de sutileza. À primeira vista, Troiae lusus quer<br />

dizer o “jogo de Tróia” e, por extensão, já que Tróia era a cidade<br />

por excelência, “o jogo da cidade”. Entretanto, como já<br />

foi dito, a palavra Tróia não deriva da cidade da Ásia Menor,<br />

e sim do termo truia, que quer dizer “labirinto” — por isso,<br />

Troiae lusus significa “o jogo do labirinto”. Mas, temos certeza<br />

de que lusus quer dizer simplesmente “jogo”? E, em todo<br />

caso, o que era o jogo na mentalidade romana arcaica? A resposta<br />

não é nada simples; nem os estudos comparativos indoeuropeus<br />

podem vir em nosso auxílio, porque não existem termos<br />

indo-europeus para essa noção, que não tem nada a ver<br />

com o certamen,* com o agón** grego 32 . Segundo estudos<br />

recentes, lusus é sinônimo de “rito”, com algumas particularizações:<br />

ele implica referência ao movimento rotatório-oscilante-pendular,<br />

análogo justamente ao movimento labiríntico<br />

executado na dança dos sálios. 33 Os significados fundamentais<br />

da palavra (“jogo”, “burla”, “jogo sexual”, “engano”, “se-<br />

* Combate, na medida em que encerra a idéia de dois partidos medindo forças.<br />

(N. do T.)<br />

** Assembléia para jogos públicos; daí, lugar para a realização desses jogos; os próprios<br />

jogos. (N. do T.)<br />

217


dução”, “escola”, “iniciação”) abrem, a esta altura, um campo<br />

semântico extremamente rico e sugestivo. Lusus torna-se,<br />

assim, sinônimo de labirinto, e o Troiae lusus poderia ser traduzido<br />

como “rito do labirinto” ou “iniciação do labirinto”,<br />

ou ainda “sedução do labirinto” e, por extensão, “labirinto do<br />

rito”, “rito do rito”, “labirinto do labirinto”.<br />

Nessas últimas formulações, <strong>ritual</strong>idade e labirinto coincidem:<br />

ambos são intensificados, potencializados, tomados na<br />

sua autonomia conceitual e positividade ilimitada. O rito do<br />

rito é o rito sem mito, o rito desmitificado que confere à religião<br />

romana um caráter totalmente especial em relação às outras<br />

religiões indo-européias. A respeito disso, Dionísio de<br />

Halicarnasso já escrevia: “Quanto aos mitos [...] Rômulo os<br />

recusou todos [...]. Não ignoro absolutamente que entre os<br />

mitos gregos alguns são úteis aos homens [...] e, entretanto,<br />

estou seduzido pela concepção divina dos romanos” (II, 18-<br />

20). O labirinto do labirinto é o labirinto sem entradas nem<br />

saídas, o labirinto que vale por si mesmo, não como prova a<br />

ser superada, nem como obstáculo a ser vencido. 34 “Labyrinthus<br />

sicut vita. Vita sicut labyrinthus.”* Mas, como também<br />

se disse, “Labyrinthus sicut mors. Mors sicut labyrinthus”,** vida<br />

e morte são o reino intermédio no qual o cidadão romano<br />

aprende a transitar tão logo se torna adulto, como do mesmo<br />

para o mesmo.<br />

* O labirinto é como a vida. A vida é como o labirinto. (N. do T.)<br />

** O labirinto é como a morte. A morte é como o labirinto. (N. do T.)<br />

218


Notas<br />

1. M. Heidegger, Essere e tempo. Turim, Utet, 1969.<br />

2 M. Eliade, Il mito dell’eterno ritorno. Milão, Rusconi, 1975; La nostalgia delle origini.<br />

Brescia, Morcelliana, 1972; Initiations, rites, sociétés secrètes. Paris, Gallimard, 1959.<br />

3. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della religione. Bolonha, Zanichelli, 1973, vol.<br />

II, p. 203.<br />

4. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della storia. Florença, La Nuova Italia, 1963,<br />

vol. III, p. 161.<br />

5. G. Dumézil, La religion romaine archaique. Paris, Payot, 1973, p. 369.<br />

6. K. Latte, Römische Religionsgeschichte. Munique, Beck, 1960, p. 100.<br />

7. J. Bayet, Histoire politique et psychologique de la religion romaine. Paris, Payot, p. 76.<br />

8. K. Kerényi, Die antike Religion. Munique, Lagen-Müller, 1969.<br />

9. G. Dumézil, Ilées romaines. Paris, Gallimard, 1969.<br />

10. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della religione, op. cit.<br />

11. De fato, Tito Líivio (I, 20) lembra que o pontífice sabia aplacar os espíritos dos<br />

defuntos.<br />

12. C. Lévi-Strauss, La pensée sauvage. Paris, Plon, 1962, p. 46.<br />

13. J. Bayet, op. cit., p. 5.<br />

14. K. Kerényi, op. cit.<br />

15. É importante sublinhar a conexão entre a concepção romana de cidade e o labirinto.<br />

Tal ligação é evidente na representação do labirinto em mosaicos, testemunhada<br />

por cerca de cinqüenta pavimentos encontrados seja em Roma, seja nas províncias<br />

em que era mais forte a influência romana. O labirinto dos mosaicos romanos tem<br />

sempre o aspecto de uma cidade fortificada subdividida em quatro setores. Quando<br />

a representação gráfica do labirinto passa a outras culturas, como no caso das múltiplas<br />

ilustrações medievais da cidade de Jericó, a idéia romana da cidade como labirinto<br />

se transforma na idéia de uma cidade circundada por muros labirínticos. Cf.<br />

H. Kern, Labirinti. Forme e interpretazioni. Milão, Feltrinelli, 1981.<br />

16. G. Piccaluga, Elementi spettacolari nei <strong>ritual</strong>i festivi romani. Roma, Edizioni<br />

dell’Ateneo, 1965, p. 126 e seguintes.<br />

17. Penso principalmente na obra de Georges Dumézil.<br />

18. M. Eliade, Initiations, rites, sociétés secrètes, op. cit.<br />

19. H. von Petrikovits, “Troiae lusus”, in Klio, 32 (1939), p. 209 e seguintes. Quanto<br />

às críticas, cf. H. Kern, op. cit., p. 87.<br />

20. C. Schmitt, Teoria del partigiano. Milão, Il Saggiatore, 1981.<br />

21. G. Piccaluga, op. cit., p. 141.<br />

22. W. L. Hildburgh, “Indeterminability and confusion as apotropaic elements in<br />

Italy and in Spain”, in Folk-Lore, 55 (1944), pp. 133-49.<br />

23. W. L. Hildburgh, “The place of confusion and indeterminability in Mazes and<br />

Maze-Dances”, in Folk-Lore, 56 (45), pp. 188-92.<br />

219


24. P. Lambrechts, “Mars et les Saliens”, in Latomus, 5 (1946), pp. 111-9.<br />

25. M. Eliade, Forgerons et alchimistes. Paris, Flammarion, 1966.<br />

26. Permito-me remeter à conclusão do meu trabalho, La società dei simulacri. Bolonha,<br />

Cappelli, 1980.<br />

27. K. Kerényi, Nel labirinto. Turim, Boringhieri, 1983.<br />

28. J. Loicq, “Mamurius Veturius at l’ancienne representation de l’année”, in Latomus<br />

40 (1964), pp. 401-25.<br />

29. G. Dumézil, Mamurius Veturius, in Tarpeia. Paris, Gallimard, 1947, pp. 207-46.<br />

30. Apud A. Illuminati, “Mamurius Veturius”, in Studi e Materiali di Storia delle<br />

Religioni, 32 (1961), pp. 41-80.<br />

31. H. Kern, op. cit., p. 91.<br />

32. A. Ernout-A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris,<br />

Klincksieck, 1967, p. 369.<br />

33. G. Piccaluga, op. cit., p. 57.<br />

34. Permito-me remeter ao meu ensaio “Appunti per una storia dell’urbanistica<br />

labirintica”, in Rivista di Estetica, 1968, nº 2.<br />

220


1 A arte como “opus”<br />

Capítulo VIII<br />

A arte de Mamúrio<br />

Se o mundo grego parece oscilar entre um conceito de<br />

arte como verdade e um conceito de arte como mentira, o<br />

mundo romano situa-se desde o início além da oposição entre<br />

verdadeiro e falso, entre originário e cópia. Mamúrio<br />

Vetúrio, o primeiro artista de quem se fala na história de<br />

Roma, é autor de uma operação que dissolve o próprio conceito<br />

de verdadeiro e falso, exemplo de um comportamento<br />

labiríntico por excelência, ponto de confluência de toda a problemática<br />

da relação entre cidade e labirinto em Roma, uma<br />

das chaves para entender a essência da mentalidade romana.<br />

“No oitavo ano do reinado de Numa”, escreve Plutarco, 1<br />

a peste que se difundia pela Itália atingiu também Roma. Diz<br />

a história que, enquanto a população era vítima do sofrimento,<br />

um escudo de bronze caiu do céu e foi parar nas mãos de<br />

Numa. A respeito dele, o rei divulgou uma história sensacio-<br />

221


nal, que afirmou ter ouvido de Egéria* e das Musas: o escudo<br />

tinha sido mandado pelos deuses para a salvação da cidade,<br />

e era necessário guardá-lo fazendo outros onze do mesmo<br />

tipo, tamanho e forma, para tornar impossível a quem<br />

quisesse roubá-lo adivinhar qual era o que caíra do céu, sendo<br />

todos iguais [...]. Assim anunciou Numa, e dizem que as<br />

suas palavras foram confirmadas pelo cessar imediato da peste.<br />

Mas, quando apresentou aos ferreiros o escudo, todos se recusaram,<br />

com exceção de Mamúrio Vetúrio. Esse autêntico<br />

mestre da sua arte conseguiu uma tal precisão e os fez todos<br />

tão iguais que nem mesmo o próprio Numa podia mais distinguir<br />

o original.<br />

A arte do ferreiro Mamúrio não é, portanto, uma criação<br />

original, independente e autônoma, nem a imitação falsificadora<br />

do modelo divino, mas uma repetição tão exata que<br />

anula o protótipo ao mesmo tempo que o preserva. A sua arte<br />

não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem<br />

aceita um papel subordinado ou dependente; ela se põe ao<br />

lado de tudo o que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o,<br />

introduzindo-o num trânsito do mesmo para o mesmo. O<br />

triunfo da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado<br />

pelos deuses, porque nenhuma variação é admitida; no<br />

entanto, essa fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa<br />

do exemplar único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso<br />

da atividade humana é por isso destituído de arrogância<br />

e de orgulho, é sem culpa, inocente.<br />

* Egéria, segundo Ovídio, foi cortejada por Numa e tornou-se sua esposa. Esse rei<br />

visitava-a freqüentemente e, para implantar com maior êxito suas leis e as novas regras<br />

do Estado, declarava solenemente diante do povo romano que elas haviam sido<br />

de antemão aprovadas e santificadas pela ninfa Egéria. (N. do T.)<br />

222


Tal trabalho — afirma Dionísio de Halicarnasso 2 —<br />

foi-lhe encomendado porque Numa temia que o escudo que<br />

lhe havia sido dado pelos deuses pudesse ser-lhe tirado pelas<br />

maquinações dos seus inimigos ou pelo furto de alguém que<br />

quisesse fazê-lo desaparecer. Ao propor a operação ao artista,<br />

Numa quer alcançar, portanto, um duplo objetivo: prevenir<br />

as tramas ocultas e a apropriação privada, a fraude e o furto.<br />

De fato, se o verdadeiro é pouco visível, indiscernível,<br />

indistinguível (ásemos*) do falso, a própria possibilidade do<br />

engano diminui. Logro e engano têm necessidade de referirse<br />

à verdade. Os impostores nascem à sombra dos profetas.<br />

Quem esconde aquilo que teme que lhe seja roubado age<br />

como um ladrão, tirando o objeto do alcance da vista. Numa,<br />

ao contrário, quer que o escudo “seja honrado e transportado<br />

pela cidade, nos dias de festa, pelos melhores jovens e receba<br />

sacrifícios anuais”. Por isso multiplica a sua visibilidade<br />

e desafia a rapacidade ocultadora com uma exteriorização excessiva<br />

que rompe a identidade e a unidade do objeto. Enfim,<br />

estabelece uma relação essencial entre a arte entendida<br />

como opus e a cidade. Opus deriva do sânscrito ápah, que significa<br />

“obra”: está aparentado com o védico apah, que significa<br />

“ação religiosa”, logo, “cerimônia”, “rito”. 3<br />

A energia que os autores da latinidade clássica, de Cícero<br />

a Lívio, empregam ao descrever e ao celebrar as origens de<br />

Roma não consegue esconder o inquietante passado da cidade,<br />

a qual não teve uma verdadeira origem, apenas um início.<br />

Não obstante os esforços de Catão, o Censor — que foi<br />

o primeiro a unir um irado moralismo restaurador a uma política<br />

cultural que faz do apelo à origem o critério fundamen-<br />

* Sem marca, diz-se do ouro ou da prata não cunhados; ininteligível, indistinto.<br />

(N. do T.)<br />

223


tal de todo juízo e a própria base do processo histórico —, nenhuma<br />

autoctonia legitima a fundação de Roma: nenhum<br />

Tages* de aspecto infantil e cabelos brancos surgiu de repente<br />

nesse lugar para revelar os segredos da tradição religiosa,<br />

como na Etrúria; nem nenhuma ánodos, nenhuma ascensão<br />

das profundezas da terra aludiu, como na Ática, à existência<br />

de uma comunhão entre o território e o povo que o habita.<br />

Em Roma, todos são estrangeiros, começando por Rômulo,<br />

que vem de Alba Longa, por Tito Tácio e por Numa, que<br />

são sabinos, por Mamúrio Vetúrio, que é osco. Até mesmo<br />

os aborígines,** que segundo Catão teriam tentado impedir<br />

a chegada de Enéias às costas do Lácio, têm sangue grego. A<br />

nova cidade não nasce de laços tribais já existentes, e sim da<br />

reunião dos sem-pátria que se congregam no refúgio aberto<br />

por Rômulo. O próprio rito da fundação da cidade é ensinado<br />

a Rômulo por especialistas etruscos chamados expressamente<br />

para a ocasião. Contudo, entre a fundação das cidades<br />

etruscas e a cidade de Roma, intui-se a mesma relação de trânsito<br />

do mesmo para o mesmo que existe entre o escudo caído<br />

do céu e aqueles reproduzidos pela arte de Mamúrio. Roma<br />

é desde o início uma cidade simulada, que, no entanto, é<br />

indiscernível de uma cidade verdadeira. A interpretação dos<br />

auspícios, a determinação de um decumanus que percorre a<br />

cidade de leste a oeste e de um cardo que a percorre de norte<br />

a sul, os rituais de delimitação do território realizados com<br />

um arado puxado por um touro e por uma novilha, a demarcação<br />

simbólica dos muros e das portas — tudo isso não basta<br />

para fazer de Roma a iusta urbs*** etrusca: Rômulo e seus<br />

* Divindade da Etrúria, que ensinou aos etruscos a arte da adivinhação. (N. do T.)<br />

** Nome dos primeiros habitantes do Lácio. (N. do T.)<br />

*** Legítima cidade. (N. do T.)<br />

224


sucessores, se comparados com o corpo sacerdotal etrusco, são<br />

diletantes do sagrado que repetem os gestos do rito com o<br />

máximo escrúpulo porque não conhecem o seu significado.<br />

Diz Plutarco que, em um fosso redondo chamado<br />

mundus, foram jogadas “as primícias de todas as coisas consagradas<br />

pelo hábito como úteis e pela natureza como necessárias<br />

à vida humana”, bem como um punhado de terra do<br />

lugar do qual cada um provinha. 4 Que eles pretendessem deixar<br />

aos deuses ou ao reino dos mortos (com o qual — acreditava-se<br />

— o fosso se comunicava) os protótipos originais<br />

de todas as coisas e de todas as pátrias, essa é uma interpretação<br />

maliciosa; mas certamente o início de Roma marca o fim<br />

da primazia etrusca da necrópole sobre a cidade dos vivos.<br />

Contra Catão, que, à medida que prosseguia na redação da<br />

sua obra, se viu obrigado a estender a toda a história e até a<br />

si mesmo e aos próprios discursos a qualificação de “origem”,<br />

impõe-se a irrenunciável repetição dos inícios.<br />

Entre o artista como opifex* e a cidade sem origem há<br />

uma íntima relação, não porque ambos compartilhem da mesma<br />

fonte, do reconhecimento comum do mesmo princípio,<br />

mas porque uma cumplicidade tácita se insinua, remetendo a<br />

uma intenção de duplicação honesta, de devoção sagaz, buscada<br />

por ambos. Isso exclui tanto a relação orgânica entre o<br />

artista e a cidade quanto o conflito: Mamúrio não é o intérprete<br />

da identidade cultural de Roma, porque esta não tem<br />

identidade — e, entretanto, mesmo sendo um estrangeiro, na<br />

medida em que todos o são (pois em Roma todos vêm de<br />

fora), não é um estranho, um ser marginalizado, mas o autor<br />

de um pignus imperii, 5 ** de um talismã ligado à sorte da ci-<br />

* Autor, aquele que faz uma obra; trabalhador. (N. do T.)<br />

** Garantia do império. (N. do T.)<br />

225


dade e ao seu destino histórico, de uma obra de enorme importância<br />

política, semelhante ao paládio troiano e às estátuas<br />

helênicas das divindades protetoras.<br />

Paládio, a estátua milagrosa de Atenas que Ulisses e<br />

Diomedes roubaram, estabelecendo com essa ação as premissas<br />

míticas da ruína da cidade, igualmente tinha caído do céu,<br />

segundo a crença popular; e Atenas, a deusa com o escudo,<br />

era também ergáne,* operadora, protetora dos ferreiros e da<br />

metalurgia, representante simbólica da métis,** da astúcia técnica.<br />

6 Mas todas essas semelhanças, que mostram a existência<br />

de uma herança mitológica comum, trazem à luz exatamente<br />

a diferença de orientação religiosa, política e filosófica<br />

de Roma em relação às outras cidades da Antiguidade. Em<br />

Atenas e nas outras cidades gregas, há — como sustentou<br />

Hegel — uma relação orgânica entre religião, arte e política:<br />

na estátua da divindade protetora, no símbolo da cidade, concretiza-se<br />

o espírito da comunidade. O talismã de Roma, ao<br />

contrário, é o resultado de uma operação que adquire uma<br />

dimensão política eminente exatamente porque anula todo<br />

dado originário, autêntico, étnico.<br />

2 A arte como “artus”***<br />

Enquanto a palavra grega téchne**** remete ora à dimensão<br />

enfática da produção entusiástica, ora à dimensão as-<br />

* Trabalhadora, industriosa, venerada como padroeira das artes e ofícios. (N. do T.)<br />

** Muitas vezes plano, plano hábil; mais freqüentemente sabedoria, hábil e eficaz.<br />

(N. do T.)<br />

*** Artüs, artuum — símbolo poético de nenhum. Do grego árthra, possuía um<br />

sentido primitivo de “articulação”. (N. do T.)<br />

**** Conhecimento de um ofício. (N. do T.)<br />

226


tuta do fazer técnico, o termo latino ars se liberta de tais determinações.<br />

Ele deriva da raiz indo-européia *ar-, que designa<br />

“a ordem” e da qual derivam artus e ritus. 7 Essa etimologia<br />

ilustra bem a operação de Mamúrio, que é estranha tanto à<br />

inspiração do artista como à engenhosidade mecânica em luta<br />

com a natureza, tanto à criação que traz a obra do nada à presença,<br />

ao ser, ao esplendor do fazer aparecer, como à invenção<br />

artesanal que resolve uma dificuldade prática — ela se limita<br />

a pôr uma multiplicidade articulada onde havia um único<br />

objeto.<br />

“Singulari numero artus non dicimus”,* sentenciam os<br />

gramáticos da língua latina. 8 A articulação implica uma<br />

pluralidade de objetos em uma relação ordenada entre eles, mas<br />

tal ordem, à qual a operação artística está ligada, não tem conteúdo<br />

mítico, nem mera funcionalidade técnica; ela consiste<br />

quando muito na construção de um sistema de referências articulado<br />

em partes capazes de assumir várias determinações.<br />

Os ancilia de Mamúrio Vetúrio são de fato escudos? Ou são<br />

antes os doze meses do ano do calendário de Numa? O significado<br />

eminentemente político da operação mamurial reside<br />

exatamente no fato de essa determinação ser secundária. O que<br />

importa é antes de tudo a aceitação do dado, do escudo caído<br />

do céu, ou da unidade temporal do mês, e depois a sua transformação<br />

em fato cultural, a sua articulação, a preparação de<br />

uma rede no interior da qual ele possa transitar.<br />

À distância lingüística que existe entre a pólis e a urbs<br />

corresponde uma distância conceitual: enquanto a palavra grega<br />

designa a cidade-estado, a comunidade política, uma realidade<br />

espi<strong>ritual</strong> mítica da qual os cidadãos extraem o seu modo<br />

* Não se diz artus no singular. (N. do T.)<br />

227


de ser e que por isso não se encarna em um edifício, em uma<br />

assembléia, em uma entidade espacial — mas se tanto, na divindade<br />

protetora —, a palavra latina remete a um princípio<br />

de organização espacial mais abstrato e indeterminado nos<br />

seus conteúdos. Se pólis se traduz em latim por civitas,* não<br />

existe uma palavra grega para indicar urbs.<br />

O conceito de urbs parece remeter à articulação dos decumanos<br />

e dos cardos, à forma do tabuleiro de xadrez, a uma<br />

geometria de ruas que se entrecruzam regularmente, a um funcionalismo<br />

ante litteram,** mas, paradoxalmente, Roma — a<br />

Urbs por excelência — foi, pelo menos nos primeiros sete séculos<br />

de sua existência, mais semelhante a um labirinto do que<br />

a um tabuleiro de xadrez. “Forma urbis [...] occupatae magis<br />

quam divisae similis”, diz Lívio, 9 e tal ordem não foi radicalmente<br />

alterada nem sob o Império. O fato é que a intenção<br />

da qual nasce a urbs ultrapassa em muito o projeto de uma<br />

cidade funcional: ela emerge da afinidade etimológica com<br />

orbis.***<br />

Inicialmente cidade-mundo: o gesto do áugure que, segundo<br />

a regra etrusca, divide idealmente o horizonte com o<br />

bastão recurvo, o lítuo, delimitando assim o templum e determinando<br />

o decumanus e o cardo, funda cosmicamente a cidade,<br />

tornando-a uma imagem do mundo antes mesmo que ela<br />

exista materialmente, estabelece correspondências exatas entre<br />

o todo e o lugar que se decide habitar, repete em dimensões<br />

reduzidas uma ordem cósmica. Porém, mesmo com a inversão<br />

romana, acima de tudo, mundo-cidade: não tanto (ou não<br />

* No sentido abstrato, Estado, direitos do cidadão; no sentido concreto, reunião de<br />

cidadãos para formar-se uma comunidade-Estado. (N. do T.)<br />

** Precoce, “avant la lettre.” (N. do T.)<br />

*** Círculo, globo terrestre. (N. do T.)<br />

228


apenas) enquanto metrópole, mediante a formação de colônias<br />

que sejam repetições de Roma, mas de modo mais essencial<br />

mediante a construção de estradas que, sulcando em várias direções<br />

todo o território conhecido, estabeleçam uma trama de<br />

percursos repetidos até o infinito, introduzam em qualquer canto<br />

da natureza o esquema vazio e indeterminado da referência<br />

cultural, dissolvam a distinção entre cidade e campo, consentindo<br />

a realização de vontades ilimitadamente diferentes só sob<br />

a condição de aceitar e tornar a percorrer um traçado rigorosamente<br />

determinado de uma vez por todas.<br />

Por isso, não Holzwege,* não trilhas cobertas por relva<br />

que se confundem no bosque umas com as outras e terminam<br />

de repente, mas estradas penosa e definitivamente marcadas,<br />

pavimentadas e respeitadas pela voracidade das ervas,<br />

pela lama, pelos bosques. No entanto, essa visibilidade permanente<br />

do percurso, indiferente para com a qualidade de<br />

cada lugar, contém em si mesma uma infinita multiplicidade<br />

de conteúdos, é indeterminada em sua direção e leva, a todos<br />

os territórios que sulca, uma alteridade, uma diferença bem<br />

maior com relação ao tescum,** à selvagem e desconhecida<br />

natureza que atravessa. Se, como diz Ovídio, “romanae spatium<br />

est urbis et orbis idem” 10 *** se a intenção mais profunda da urbs<br />

é a urbanização do mundo, é porque a própria urbs não é,<br />

como a pólis, igual a si mesma, dotada de uma identidade, mas<br />

diferente em relação a si mesma, cópia indiscernível de uma<br />

cidade verdadeira, originária, autêntica, que permaneceu estranha<br />

à experiência romana. Assim, planificação geométrica<br />

* Caminho no bosque, no mato; figurativamente, desvio, atalho. (N. do T.)<br />

** Lugar ermo, desolado e inóspito. (N. do T.)<br />

*** Para Roma, Cidade e Universo têm a mesma extensão.<br />

229


e formação labiríntica, direção e deriva, se confundem uma<br />

com a outra. Jano é ao mesmo tempo mundo e caos, “rector<br />

viarum”* e protetor das encruzilhadas, porque deus dos inícios<br />

e não das origens, deus do trânsito e não da estagnação.<br />

As estradas romanas levam, a todo lugar, as intenções,<br />

os ritos, os costumes da cidade labiríntica, e, vice-versa, as cidades<br />

conquistadas, mais que cópias da urbs, são a própria<br />

urbs, tão indeterminadas e ambíguas quanto Roma. “Urbem<br />

fecisti quod prius orbis erat”** — com essas palavras Rútilio<br />

Namaciano se dirige a Roma no século V d. C. 11 A urbanização<br />

do mundo está completa: cidade e campo transitam um<br />

no outro.<br />

3 A arte como “ritus”<br />

Ars e urbs, operação artística e ordem política, têm seu<br />

ponto de encontro no rito, que é o eixo da religião e da sociedade<br />

romana arcaica. Contrariamente à concepção mais difundida<br />

na antropologia cultural e na história das religiões,<br />

que considera o rito dependente do mito, a religião romana<br />

oferece o exemplo de um rito sem mito, de uma repetição extremamente<br />

precisa e escrupulosa de atos culturais cujo significado<br />

originário é calado, esquecido, ignorado.<br />

A orientação que está na base de tal desmitificação, tão<br />

diferente da desmitificação realizada pelo judaísmo, que considera<br />

a história o âmbito no qual se desenvolve a ação de<br />

Deus, aspira à instauração de uma “ordem” suscetível de múl-<br />

* Senhor dos caminhos, o que preside aos caminhos. (N. do T.)<br />

** Em cidade transformaste o que outrora era inverno. (N. do T.)<br />

230


tiplas determinações. O esvaziamento, a separação entre rito<br />

e mito é a própria condição da “ordem”, que é tal apenas se<br />

reproduz tão bem o protótipo a ponto de dissolvê-lo. A eficácia<br />

não está ligada com a <strong>ritual</strong>ização de uma ação<br />

primigênia, mas com o seu desaparecimento, com a sua supressão.<br />

A etimologia ciceroniana de religio, que faz derivar a<br />

palavra de relegere (“reler”), refere-se exatamente a esse aspecto<br />

do culto romano: 12 ele não está de modo algum orientado<br />

para a interpretação do texto, para a explicação do seu conteúdo,<br />

mas, ao contrário, para uma repetição exteriormente<br />

perfeita que anula o seu significado. O fato de as palavras de<br />

muitos ritos redundarem incompreensíveis aos próprios sacerdotes<br />

que as pronunciavam mostra o exercício de uma memória,<br />

cujo dever não é o de comemorar, e sim o de esquecer!<br />

A religião romana está bem longe de ser um fenômeno<br />

primitivo, o produto de uma mentalidade animista que atribui<br />

à palavra uma eficácia mágica; ela é antes uma releitura<br />

desmitificada de um patrimônio mítico não só indo-europeu,<br />

mas também etrusco e mediterrâneo, uma repetição que é eficaz<br />

exatamante porque rompe os laços entre a coisa e a palavra,<br />

entre a realidade do mundo mítico e a sociedade.<br />

A eficácia do rito romano não provém de uma ação<br />

direta sobre o mundo natural ou sobrenatural; ela se origina<br />

da construção de um sistema de relações sociais independente<br />

da estrutura mítica da estirpe, da gens, da família. Certamente<br />

o culto das pessoas e das famílias, que remetiam a<br />

uma origem comum, a um ancestral comum, continuou a<br />

ser praticado, contudo tornou-se justamente “privado”, de<br />

todo diferente das sacra publica* desmitificadas. A paz da urbs<br />

* Cerimônias ou ritos religiosos públicos. (N. do T.)<br />

231


não se baseia em um modelo unitário, arquetípico, no qual<br />

todos os cidadãos se reconhecem assim como a gens se identifica<br />

com o antepassado mítico. Numa Pompílio, segundo<br />

a tradição, rompe as unidades gentilícias, que eram causa de<br />

contínuos choques e lutas internas, e, subdividindo o povo<br />

em ofícios, “atribui a cada ordem lugares de encontro, assembléias<br />

e cultos divinos apropriados”. 13 A coesão da urbs<br />

é comparável não a um monolito ou à articulação de duas<br />

partes, de duas cidades inconciliáveis e rígidas, mas ao mosaico<br />

de “minúsculos pedacinhos”, seja porque — como diz<br />

Plutarco — as pequenas porções aderem melhor uma à outra,<br />

seja porque a composição mosaica consente uma possibilidade<br />

de extensão e de ampliação ilimitadas. Essa multiplicação<br />

e disseminação de sacra incide profundamente no<br />

próprio conceito de rito: ela evidencia antes de tudo a ligação<br />

etimológica entre ritus, artus e ars, entre repetição, articulação<br />

e arte. A unidade do mundo mítico está despedaçada<br />

em uma pluralidade de rituais, a sua totalidade é pulverizada<br />

e relativizada em uma multiplicidade de atos que devem<br />

ser repetidos com a máxima precisão, exatamente porque<br />

necessitam de um exemplar com o qual confrontar-se. Quanto<br />

à ligação estabelecida por Numa entre os ritos e as profissões,<br />

ela sublinha a relação entre ação <strong>ritual</strong> e ação social,<br />

ao mesmo tempo em que eclipsa e obscurece a relação entre<br />

ação <strong>ritual</strong> e mito.<br />

A ação mítica dos deuses se manifesta em prodígios, em<br />

milagres, em eventos excepcionais que não possuem nenhuma<br />

ordem e regularidade, como a queda do escudo do céu.<br />

Tais acontecimentos, porquanto salvadores — o escudo na versão<br />

plutarquiana põe fim a uma pestilência que tinha infestado<br />

a Itália e Roma, levando sofrimento à população —, são<br />

232


considerados pelos romanos com a maior suspeita: deverão,<br />

pois, ser expiados e tornados inócuos. A procuratio prodigiorum*<br />

que Numa inscreve entre os deveres do pontífice 14 se<br />

propõe a anular os efeitos danosos e a dissolver o sentimento<br />

de horror que a intervenção dos deuses provoca. O prodigioso,<br />

o maravilhoso, em uma palavra, o mítico, é sentido pelos romanos<br />

como o contrário da repetição <strong>ritual</strong>. Nenhuma “ordem”<br />

política e civil, nenhuma ordenação urbana, nenhuma<br />

possibilidade de ação histórica é consentida aos homens até<br />

que o maravilhoso e o prodigioso irrompam e perturbem a<br />

trama, a rede que forma a sociedade.<br />

Portanto, diferentemente de outros povos da Antiguidade<br />

e de outras sociedades primitivas, em Roma, a relação entre<br />

mito e rito é alternativa: a intervenção do divino no mundo<br />

torna impossível a ação histórica dos homens. O mito, a narração<br />

fabulosa da ação divina, impede a ação humana; por isso,<br />

em Roma, o <strong>ritual</strong> não tem de modo algum um caráter e um<br />

significado anti-histórico, mas, ao contrário, instaura a possibilidade<br />

da história, porque introduz uma ação repetida, que os<br />

deuses não são capazes de executar, estranha ao mundo mítico.<br />

Se o mito é o âmbito do originário, do arquétipo, do fato excepcional<br />

que acontece uma única vez por todo o sempre, isto<br />

é, do milagre, o rito, ao contrário, é o âmbito da repetição, do<br />

fato repetido e repetível até o infinito, isto é, da história. A operação<br />

de Mamúrio pode ser considerada justamente a expiação<br />

do prodígio, a sua aprovação incondicional enquanto teofania,<br />

mas também a sua supressão enquanto monstrum,** anomalia<br />

irrepetível, excepcionalidade funesta. O escudo é preci-<br />

* “Conjuração dos prodígios” — que conjura o efeito dos prodígios e dos relâmpagos.<br />

(Ao bloquear os prodígios, Roma tranqüilizava os cidadãos) (N. do T.)<br />

** Prodígio que avisa da vontade dos deuses. (N. do T.)<br />

233


samente phármacon no duplo significado do termo, remédio e<br />

cura da peste, mas também veneno e perigo para a sociedade.<br />

Na história não acontecem milagres: a diferença do processo<br />

histórico não está na irrupção do maravilhoso na continuidade,<br />

e sim em uma continuidade que é diferente e outra<br />

em relação a si mesma, no processo pelo qual ações diferentes<br />

passam pelos mesmos esquemas rituais. Disso emerge uma<br />

concepção da história completamente diferente, seja da concepção<br />

cíclica do mundo mítico, seja da concepção linear do judaísmo,<br />

as quais pressupõem a concordância e a íntima fusão<br />

entre o mundo divino e o mundo humano. A história romana<br />

parece proceder, por assim dizer, como uma espiral: a forma<br />

<strong>ritual</strong> é sempre a mesma para quem a olha perpendicularmente,<br />

de cima ou de baixo, contudo, para quem a observa lateralmente,<br />

parece evidente que os círculos são sempre diferentes.<br />

4 A arte como “ops”<br />

A concepção de Mamúrio da ars como trânsito do mesmo<br />

para o mesmo, como repetição perfeita do original, como<br />

experiência labiríntica, não se limita à atividade humana —<br />

ela estende-se até mesmo à natureza. O estudo do dossiê referente<br />

à deusa Ops e à dimensão abstrata correspondente, que<br />

abrange as noções de abundância, de prosperidade, de ajuda,<br />

de completitude, é revelador. Ops não é de modo algum uma<br />

divindade tribal estritamente ligada à agricultura, à vida no<br />

campo, ao trabalho na terra. Como observa Pierre Pouthier,<br />

autor de uma obra extremamente completa, rica e sugestiva<br />

sobre o assunto, 15 a sua vida transcorre desde o início no interior<br />

da cidade e, mesmo sendo a deusa da abundância da<br />

234


colheita agrícola, ela não pode ser reduzida a uma mera<br />

deificação de fatos ou de coisas empíricas.<br />

Nas origens de Ops não há nada originário e primário;<br />

mesmo etimologicamente, ela remete à raiz indo-européia *op-<br />

*ep-, que se desenvolveu apenas na língua latina. Ops é afim<br />

com opus: designa a atividade produtora, a abundância considerada<br />

enquanto força ativa que cria prosperidade e bem-estar<br />

através de uma repetição. As colheitas, as frutas, os produtos<br />

naturais já seriam simulacros, repetições perfeitas, cópias<br />

produzidas por uma força que nunca cria nada de absolutamente<br />

novo e original. A obra da natureza se revelaria assim<br />

semelhante à obra de arte humana. A suposta origem<br />

sabina da deusa, que, junto com outras divindades, teria sido<br />

introduzida em Roma por Tito Tácio, não contradiz essa concepção.<br />

Não só porque — como afirma Pouthier — a Sabina<br />

designa, de fato, mais uma parte interna da própria Roma do<br />

que o território externo habitado pelos sabinos, mais a assimilação<br />

do campo na urbs do que a sua experiência efetiva,<br />

mas sobretudo porque ela talvez constitua um exemplo extremamente<br />

significativo de evocatio, de apropriação de uma<br />

divindade alheia através da reprodução do seu culto em Roma.<br />

Um jogo de duplicações e de multiplicações, semelhante à reprodução<br />

dos escudos, parece ligado à primeira intuição de<br />

Ops. Um jogo, ao que parece, difícil de deter, uma vez que<br />

— como mostra Pouthier — Ops não se manifesta como uma<br />

divindade coerentemente unitária, mas até mesmo como duas<br />

divindades ligadas a lugares e a tempos diferentes: a Ops<br />

Consiva in Regia e a Ops ad Forum, a primeira ligada com a<br />

abstenção, os tabus, as interdições mais rigorosas e mais sagradas,<br />

a segunda com o consumo, o desregramento, a transgressão.<br />

A primeira, de fato, tem o seu culto na Regia, o lugar<br />

235


mais austero e solene da vida religiosa arcaica, em estreita relação<br />

com o templo de Vesta, o colégio das vestais, o sumo<br />

pontífice e a flaminica dialis, e tem a sua festa (as Opiconsivia)<br />

em 25 de agosto, no momento em que a atividade agrícola<br />

se volta para a conservação, a constituição de reservas de trigo<br />

para a sobrevivência alimentar da cidade; a segunda tem<br />

o seu culto no Forum, numa zona profana, caracterizada pela<br />

vizinhança do mercado e pelos cultos de Saturno e de Vulcano,<br />

e talvez da famigerada Diana de Nemos, e tem a sua festa (as<br />

Opalia) em 19 de dezembro, no momento em que prevalecem<br />

o consumo e a orgia, em significativa coincidência com<br />

as Saturnais, a festa mais transgressiva e desregrada do calendário<br />

romano.<br />

Contudo, entre essas duas Ops, a Ops frugal e abstinente<br />

da Regia e a Ops orgiástica e tripudiante do Forum, há<br />

um trânsito do mesmo para o mesmo. A abundância é ao mesmo<br />

tempo abstinência e consumo. A cautela religiosa dos romanos<br />

não pensa esses dois aspectos como harmoniosamente<br />

complementares, nem como dialeticamente contraditórios,<br />

mas sim como duas soluções possíveis, duas ocasiões, duas<br />

manifestações de uma essência divina que não é nem uma nem<br />

outra; que é essencialmente indeterminada, que pode ser solene<br />

como uma divindade protetora (segundo uma tradição,<br />

Ops seria nada menos que a deusa secreta de Roma, cujo<br />

nome devia manter-se oculto para evitar toda evocação por<br />

parte de cidades inimigas) e dissipada como uma divindade<br />

ctônia da fecundidade (a proximidade com Saturno evoca banquetes<br />

e lautas refeições). Ops, no fundo, representa na alimentação<br />

o mesmo papel que Vênus desempenha na sexualidade,<br />

oscilando entre castidade e libidinagem, entre proteção<br />

da virgindade e proteção da prostituição. Ops é igualmente<br />

236


propícia e complacente para com quem já se move em um<br />

horizonte de propiciações e complacência.<br />

Nesse caso também, a religião romana revela uma fineza<br />

e uma sagacidade inacreditáveis; como observa Puthier, ela quase<br />

nunca segue um único caminho. Nela “discerne-se uma<br />

simbologia sutil de numerosas intenções e de leis não escritas,<br />

que fazem da festa não um acontecimento bem circunscrito, mas<br />

o anel de uma cadeia que ilustra os diversos aspectos de uma<br />

atividade humana assumida sob a proteção da divindade”. 16<br />

Para os romanos, abstinência e consumo não se excluem mutuamente,<br />

não são opostos contraditórios, porque não se relacionam<br />

como um negativo e um positivo, e sim como dois positivos<br />

que transitam um no outro. Ambos são abundância, ops<br />

e prosperidade. A abundância não tem um único aspecto, e além<br />

disso cada aspecto não é idêntico a si mesmo. A Ops abstinente,<br />

por exemplo, tem relações ocultas com Vulcano, deus do fogo<br />

que destrói, cuja festa (as Vulcania) precede em dois dias as<br />

Opiconsivia, e, vice-versa, junto ao lugar onde se praticava o culto<br />

da Ops consumidora se elevava o simulacrum Silvani, cujos cuidados,<br />

parece, eram confiados às vestais!<br />

Essa indeterminação da abundância e da prosperidade<br />

aumenta enormemente se, ao examinar o dossiê arcaico, se<br />

passa a considerar a história de Ops na época republicana. Um<br />

dos momentos decisivos dessa história é a transferência do<br />

culto da Ops abstinente da Regia para o Capitólio, por ocasião<br />

da construção de um templo da deusa situado exatamente<br />

na colina capitolina, tradicionalmente reservada ao culto de<br />

Júpiter. Nessa nova sede, Ops se emancipa das relações com<br />

Consus* e Saturno e acaba assimilada a Fides e a Spes; a abun-<br />

* Antigo deus latino da terra e da agricultura. (N. do T.)<br />

237


dância assume então uma dimensão ainda mais abstrata e<br />

indeterminada, disposta a recobrir toda presença, onde quer<br />

que se queira localizá-la. Nessa nova disponibilidade é sobretudo<br />

o aspecto político que emerge: a descoberta da essencial<br />

qualidade política da abundância é no fundo a continuação<br />

de uma orientação teórica que antes se manifestava na sua dimensão<br />

religiosa. A disponibilidade, a indeterminação de Ops<br />

não implica o virar o seu contrário, uma não-Ops, uma negação<br />

da abundância. O otimismo e o triunfalismo religiosopolítico<br />

dos romanos não é cegueira ou indiscriminação! A<br />

partir do momento em que Ops se ergue como a protetora<br />

do poder e da continuidade do Estado romano, ela tende a<br />

abranger em si, além das noções de abundância e prosperidade,<br />

também a de ajuda. Essa ampliação está implícita na reflexão<br />

ciceroniana, na qual o conceito de auxilium parece prevalecer<br />

sobre o de copia — Ops é aquela que leva ajuda e assistência<br />

à cidade no momento do perigo. Ops opulenta torna-se<br />

Ops opifera, desempenhando a mesma função da arte de<br />

Mamúrio.<br />

Todavia, a própria noção de ajuda deve ser entendida<br />

num sentido bem amplo e geral, que vai muito além da mera<br />

utilidade funcional e do desejo subjetivo. De fato, o encontro<br />

entre a religião romana e a filosofia estóica produz, acima de<br />

tudo, a equiparação e a fusão entre ajuda material e ajuda espi<strong>ritual</strong>,<br />

e, portanto, amplia enormemente as competências da<br />

deusa, aumentando ainda mais sua indeterminação; em segundo<br />

lugar, inquire a respeito do que serve mesmo de ajuda em<br />

uma determinada situação, dando início à interminável problemática<br />

dos casos, das ocasiões, das estratégias, dos êxitos.<br />

Na idade de César e de Augusto, que marca a última<br />

fase do desenvolvimento de Ops, a disponibilidade da deusa<br />

238


torna-se completitude, plenitude, em uma acepção que, entretanto,<br />

parece profundamente diferente, seja do significado testamentário,<br />

que designa a realização de um fato anunciado<br />

por um profeta e a irrupção da ação salvadora na história, seja<br />

do significado metafísico de plenitude e homogeneidade do<br />

mundo, de grande cadeia do ser. Esses dois significados fundamentais<br />

do conceito de plenitude são alheios à mentalidade<br />

romana, cuja perspectiva não é escatológica nem metafísica,<br />

mas histórico-<strong>ritual</strong>.<br />

O importante para Roma é a permanência de estruturas<br />

rituais que não têm um ponto de referência mitológico<br />

seguro e explícito, e que, exatamente em virtude de tal<br />

indeterminação, podem adquirir sempre novas dimensões, de<br />

acordo com cada ocasião. Ops parece permanecer fiel a essa<br />

condição que inicialmente diz respeito a todo o panteão romano:<br />

a sua fabulação como mãe dos deuses é paupérrima;<br />

ela está ausente até da grande poesia da idade augusta e do<br />

mito da Idade de Ouro. Não obstante, a política religiosa da<br />

época lhe confere um papel de grande importância: César deposita<br />

no seu templo um tesouro de seiscentos mil sestércios<br />

tirados na Espanha aos partidários de Pompeu, e Augusto lhe<br />

dedica numerosos testemunhos de piedade e lhe atribui o<br />

epíteto de augusta.<br />

Se, como diz Benveniste, a cada categoria da língua<br />

corresponde uma categoria do pensamento, o conjunto das<br />

palavras que em latim indicam a atividade produtora e operadora<br />

— entendida em todos os seus aspectos, do religioso<br />

ao natural, do artístico ao político — mostra a existência de<br />

uma estrutura teórica coerente, que é, pela sua flexibilidade e<br />

sutileza, surpreendentemente atual.<br />

239


Notas<br />

1. Plutarco, Vita di Numa, 13.<br />

2. Dionisio di Alicarnasso, Antichità romane, II, 71.<br />

3. A. Ernout e A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris,<br />

Klincksieck, 1967, vol. 4, p. 466.<br />

4. Plutarco, Vita di Romolo, 11.<br />

5. Floro, Epitome, I, 2.<br />

6. M. Detienne e J.-P. Vernant, Le astuzie dell’intelligenza nell’antica Grecia. Bari,<br />

Laterza, 1977.<br />

7. E. Benveniste, Il vocabolario delle instituzioni indoeuropeu. Turim, Einaudi, 1976,<br />

vol. II, p. 358.<br />

8. Charisius, Ars grammatica, I, 45.<br />

9. Tito Lívio, V, 55.<br />

10. Ovídio, Fasti, II, 684.<br />

11. Rutilio Namaziano, De reditu suo, I, 66.<br />

12. Cícero, De natura deorum, II, 72.<br />

13. Plutarco, Vita di Numa, 17.<br />

14. Tito Lívio, I, 20.<br />

15. P. Pouthier, Ops et la conception divine de l’abondance dans la religion romaine jusqu’à<br />

la mort de Auguste. Roma, École Française de Rome, 1981.<br />

16. Ib., p. 71.<br />

240


1 O resplandecente<br />

Capítulo IX<br />

Decoro e cerimônia<br />

Qual a relação existente, na Antiguidade clássica, entre beleza<br />

e efetividade, entre forma e ação, entre estética e política?<br />

Essa ligação parece implícita em dois conceitos: o greco-romano<br />

de prépon-decorum* e o tipicamente romano de caerimonia.**<br />

A história do primeiro conceito é bastante complexa e<br />

tortuosa. Da visão de uma beleza efetiva que aparece distintamente<br />

aos olhos, que se distingue pela sua perspicuidade, que<br />

se sobressai, se mostra, brilha, se impõe ao olhar e resplandece<br />

na sua realidade singular, deriva, na Grécia antiga, a palavra e<br />

o significado originário de tò prépon.*** O herói homérico, por<br />

exemplo, possui essa qualidade: a sua virtude é visível, está à<br />

* Prépon: fazer-se notar, distinguir-se especialmente em relação às roupas; Decorum:<br />

etiqueta, protocolo. (N. do T.)<br />

** Reverência aos deuses mediante atos de veneração. (N. do T.)<br />

*** Aquilo que convém, que está conforme às regras (caráter daquilo que convém dizer,<br />

conduta particular de acordo com os usos e costumes numa sociedade). (N. do T.)<br />

241


vista de todos, destaca-se, sobressai, distingue-se sem ocultações<br />

nem dissimulações, afirma-se, independentemente e antes de<br />

toda distinção entre aparência e substância, entre parecer e ser. 1<br />

É bastante significativo que, das palavras gregas que designam<br />

o belo, somente tò prépon esteja relacionada etimologicamente<br />

com uma raiz indo-européia cujo significado fundamental remete<br />

ao aparecer, à visão. 2 Não ocorre o mesmo com tò kalón,<br />

termo no qual a idéia de beleza parece estar relacionada<br />

etimologicamente com o ser sadio, com a justa proporção dos<br />

membros, nem com tò agathón — cujo sentido originário parece<br />

estar relacionado com a força e o poder e, conseqüentemente,<br />

com a coragem e a nobreza —, nem, finalmente, com<br />

o substantivo ho kósmos, que significa “ordem”. Tampouco tò<br />

ágalma — que designa o ornamento e, mais tarde, a estátua<br />

dos deuses, em contraposição a eikón, a estátua dos homens —<br />

parece estar estreitamente ligada à visão. 3<br />

O primeiro significado do verbo prépein é, ao contrário,<br />

resplandecer. Nele, a experiência do belo une-se à visualidade<br />

festiva que caracteriza a antiga religião grega, que foi<br />

justamente definida como um saber vidente do homem festivo,<br />

4 na qual ver não é menos importante do que ser visto e<br />

o conhecimento do divino adquire o aspecto de uma epifania,<br />

de uma manifestação radiosa da realidade. Não é por acaso<br />

que Heidegger identificou na aparência como esplendor e brilho,<br />

no desvelador e permanente impor-se do fenômeno, daquilo<br />

que aparece e se mostra em si próprio, a experiência do<br />

ser mais originária e essencial do Ocidente. 5<br />

O verbo prépein remete à união inseparável entre o ser<br />

e o aparecer, entre aquilo que é e aquilo que resplandece, entre<br />

a efetividade e a beleza. Os poetas usam esse verbo em<br />

versos que unem solidamente a beleza com a decisão e o êxi-<br />

242


to. Para Píndaro, por exemplo, “o ouro reconhece-se (prépei)*<br />

pela pedra de toque e as almas retas revelam-se nas provações”<br />

(Pít., X, 67). No centro do escudo de Tideu, descrito por<br />

Ésquilo, “a lua, rainha dos astros, olho da noite, brilha (prépei)<br />

radiante” (Os sete contra Tebas, 390). Finalmente, a única vez<br />

em que Platão, no início de A República, utiliza o verbo prépein<br />

com o significado de resplandecer, o faz em referência à bela<br />

procissão com a qual o povo do Pireu celebrava a festa.<br />

2 O conveniente<br />

A união originária entre ser e parecer, entre efetividade<br />

e beleza, é rompida, no entanto, pela experiência histórica:<br />

esta mostra como aquilo que resplandece e aquilo que efetivamente<br />

triunfa nem sempre coincidem. O prépein, o resplandecer<br />

em sua autonomia originária, não mais é suficiente para<br />

assegurar a vitória, o êxito histórico. A beleza que quiser manter<br />

o seu vínculo com a realidade deve “adaptar-se”, “convir”<br />

com aquilo que é outro em relação a ela. É esse, precisamente,<br />

o segundo significado de prépein, que se afirma e se mantém<br />

na língua grega e no qual se insere a problemática do tò<br />

prépon, entendido como aquele tipo específico de belo que se<br />

adapta, que convém e é, portanto, o oposto — justamente em<br />

virtude da relação com o outro que o constitui — do conceito<br />

absoluto e universal de belo implícito no cânon.<br />

Os poetas líricos ainda conseguem furtar-se à experiência<br />

trágica desse rompimento, reservando para a poesia o esplendor<br />

autônomo do belo: “Não consentem os deuses lágri-<br />

* Fazer-se distinguir, destacar-se, mostrar-se. (N. do T.)<br />

243


mas de dor”, diz Safo. “Numa casa consagrada às Musas/ não<br />

nos convém (ou ... prépoi)/ o luto” (Lobel-Page, 150). Entretanto,<br />

a partir do momento em que, como diz Tucídides, “os<br />

bons conselhos, sinceramente dados, dão margem a suspeitas,<br />

tanto quanto os maus” (Tuc., III, 43), o divórcio entre aquilo<br />

que resplandece e aquilo que vence se consuma totalmente. O<br />

resplandecente vê-se combatendo uma batalha na qual não dispõe<br />

de vantagem alguma, na qual, aliás, é muito provável que<br />

sucumba; só se se adaptar às circunstâncias melhor do que seu<br />

adversário, só se souber melhor do que ele o que é e o que<br />

não é prépon, o que é conveniente e o que não é, “o que se<br />

deve fazer no momento devido” e o que não, poderá continuar<br />

sendo resplandecente. A noção de prépon une-se, assim, àquela<br />

mais antiga de kairós,* de ocasião. Embora essa ligação já estivesse<br />

implícita em Pitágoras — especialmente quando sustentava<br />

a oportunidade de manter discursos infantis com as crianças,<br />

para mulheres com as mulheres, para arcontes com os<br />

arcontes, para efebos com os efebos — 6 é somente em Górgias<br />

que a ligação entre conveniente e ocasião se emancipa daquele<br />

significado místico, referido à harmonia do cosmo, que a palavra<br />

kairós possuía originariamente. Em Górgias, desaparece a<br />

vantagem fundamental que advinha ao sábio pitagórico do fato<br />

de conhecer a essência do ser, do qual provinha exatamente a<br />

sua polytropía lógou**, a sua capacidade de expressar a mesma<br />

coisa de muitos modos. O belo — entendendo a palavra no<br />

sentido grego, que implica também o verdadeiro e o bom — é<br />

levado, por essa razão, a adotar as mesmas armas que seu inimigo:<br />

“Ao ponto em que se deve claramente, para persuadir o<br />

* Medida conveniente com a idéia de tempo — momento oportuno — e com a idéia<br />

de lugar — ambiente conveniente para algo. (N. do T.)<br />

** Habilidade no uso das palavras; facilidade de expressão. (N. do T.)<br />

244


povo das piores idéias, seduzi-lo mediante artifício e, quando<br />

se quer aconselhá-lo melhor, se deve inspirar-lhe confiança mentindo”<br />

(Tuc., III, 43).<br />

Com Górgias, o problema do tò prépon é, essencialmente,<br />

o problema da linguagem e de seu poder de sedução<br />

(apáte*). 7 “A palavra, como o pregão que é proclamado em<br />

Olímpia, convida quem quer, coroa quem é capaz.” 8 Mas por<br />

que o resplandecente deve ter mais apáte, maior poder de sedução<br />

e, portanto, maior êxito? A resposta de Górgias é drástica:<br />

não existe prépon, não existe resplandecente que não seja<br />

conveniente, isto é, que não tenha essa adequação à ocasião,<br />

essa força de sedução para impor-se e triunfar. O resplandecente<br />

parece, assim, totalmente esmagado sob o calcanhar do efetivo,<br />

a ponto de identificar-se inteiramente com este. Tudo aquilo<br />

que é real é também belo, porque conforme à ocasião, e é em<br />

virtude dessa conformidade que pôde tornar-se real. Embora a<br />

postura de Górgias tenha podido parecer trágica, pela impossibilidade<br />

de aceitar a existência de identidade entre o que é<br />

belo e o que é real, 9 no entanto, pensando bem, essa identidade<br />

para ele é sempre mediada pela apáte, pela sedução da palavra.<br />

O resplandecente será efetivo e, vice-versa, o efetivo será<br />

resplandecente só onde houver pessoas que forem sensíveis ao<br />

fascínio da palavra, só onde, como na Grécia, existiu uma experiência<br />

— justamente a grande tradição trágica — em que<br />

foi possível “um engano, no qual quem triunfa se amolda melhor<br />

à realidade do que quem não triunfa, e quem se deixa enganar<br />

é mais sábio do que aquele que não se deixa”. 10<br />

Porém em um país onde, por exemplo, as pessoas não<br />

têm o hábito de ouvir com atenção os discursos, ou então es-<br />

* Engano, mais raramente artifício. Sentido helenístico: ilusão, daí passatempo, prazer.<br />

(N. do T.)<br />

245


quecem facilmente aquilo que ouviram, ou, ainda, como os<br />

habitantes da Tessália, são demasiado toscas, demasiado desprovidas<br />

de uma experiência sensata (amathésteroi*) para poder<br />

ser enganadas pela palavra, por esse poderoso soberano<br />

que, com “um corpo diminuto e de todo invisível, realiza<br />

obras profundamente divinas”, 11 será que num país desses ainda<br />

é possível identificar o resplandecente com o conveniente,<br />

o belo com o efetivo? No Sócrates xenofôntico, do uso do<br />

adjetivo prepódes** deriva-se uma acepção muito mais próxima<br />

de adequado e útil do que de belo: “Para os templos e<br />

para os altares, a posição mais adequada é um lugar aberto e<br />

completamente isolado” (Xen., Mem., III, 8). A beleza de um<br />

edifício é totalmente identificada, no Sócrates xenofôntico,<br />

com a sua utilidade, com o seu ser krésimos*** ou, melhor,<br />

armostós (de armózo, que quer dizer “adequar”). O Sócrates<br />

xenofôntico inaugura assim uma concepção funcionalista da<br />

beleza que já é inteiramente alheia à identidade originária entre<br />

beleza e efetividade implícita no tò prépon. O termo grego<br />

armostós corresponde ao latino aptus**** e é precisamente<br />

como adequação à finalidade que o decoro é entendido por<br />

toda uma tradição de pensamento que se desenvolve sobretudo<br />

na Idade Média.<br />

Ainda mais radical é a negação de prépon levada a cabo<br />

por Platão. É com ele que se inaugura a separação completa<br />

entre substância e aparência, entre parecer e ser. Contra<br />

Hípias, que defende a identidade entre belo e conveniente,<br />

* Ignorantes, não civilizados, grosseiros, que precisam aprender praticamente, por<br />

experiência. (N. do T.)<br />

** Conveniente. (N. do T.)<br />

*** Qualifica aquilo em que se busca e se encontra recurso. (N. do T.)<br />

**** Apto, adequado, conveniente. (N. do T.)<br />

246


entre kalón e prépon, o Sócrates platônico separa claramente<br />

kalón de efetividade contingente e propõe-se a buscar “um<br />

belo tal que não possa parecer feio nunca, de nenhuma forma,<br />

a ninguém” (H. M., 291 d), isto é, “o belo em si, o<br />

belo que, unindo-se ao que quer que seja, torne isso belo,<br />

trate-se de uma pedra ou de um pau, de um homem ou de<br />

um deus, de uma ação ou de uma ciência” (H. M., 292 cd).<br />

Em nome, portanto, do eîdos* do belo, Platão lança uma<br />

crítica radical à sofística — acusando-a de fazer os objetos<br />

parecerem mais belos do que realmente são e, conseqüentemente,<br />

de enganar os seus ouvintes — e conclui: “Ora, não<br />

pode [o belo] ser o conveniente, porque este [...] faz os objetos<br />

parecerem mais belos do que realmente são e dissimula<br />

o seu verdadeiro caráter” (H. M., 294 b). De resto, a concepção<br />

do belo enquanto belo oposto a prépon nada mais é<br />

do que um aspecto daquela redução mais ampla e geral do<br />

ser a ente, que inaugura a metafísica ocidental; nesta, não<br />

há lugar para um belo que seja também efetivo, de um resplandecer<br />

histórico que vença enquanto tal. Segundo Platão,<br />

“parecer e ser não podem ser fruto de uma mesma e única<br />

causa, e não apenas em relação ao belo, mas em relação a<br />

qualquer coisa” (H. M., 294 e). O belo é sempre tal, independentemente<br />

do fato de que vença ou não.<br />

A negação metafísica do conveniente é confirmada por<br />

Platão em Íon, a propósito da poesia. A Íon, que se vangloria<br />

de saber quais são as coisas que convém que o homem<br />

diga, quais a mulher, quais o servo e quais o homem livre,<br />

quais quem manda e quais quem obedece, o Sócrates platônico<br />

opõe a necessidade de distinguir a palavra que provém<br />

* Aspecto, forma. (N. do T.)<br />

247


de um verdadeiro saber da palavra poética, que, por graça divina,<br />

embora sem nada saber, pode dizer tantas coisas belas<br />

sem culpa (Íon, 542 a).<br />

Uma defesa da noção de prépon, de conveniente, encontra-se,<br />

no entanto, em Isócrates, mas de tal forma que o<br />

afasta da atividade oratória praticada na assembléia ou nos<br />

tribunais e confere um novo sentido à sua relação com o<br />

kairós, com a ocasião. Isócrates, discípulo de Górgias, reforça<br />

o fato de que “os discursos não podem ser belos se não<br />

estiverem de acordo com as circunstâncias, se não forem adequados<br />

ao assunto e não estiverem cheios de novidade” (Sof.,<br />

13). De fato, ele censurava tanto a Sócrates e aos socráticos<br />

quanto aos mestres da improvisação, como Alcidamante de<br />

Eléia, o prescindirem da mobilidade e variedade das situações<br />

humanas, de sua diversidade, sobrepondo a elas formas<br />

esquemáticas fundamentais que, para os socráticos, consistem<br />

precisamente nas idéias e, para os oradores, nos artifícios<br />

retóricos. Isócrates compara tais esquemas às letras do<br />

alfabeto. Ele tenta, assim, subtrair a problemática do prépon<br />

aos riscos que advinham fosse da formulação excessivamente<br />

empírica dada por Górgias, fosse das críticas implacáveis<br />

lançadas por Platão. Isso é feito mediante duas inovações<br />

fundamentais: a ligação do prépon com a problemática da<br />

paidéia, da educação, e a adoção do ponto de vista panhelênico.<br />

Nascem assim uma interpretação humanista do<br />

prépon e a constituição do orador em sujeito. Enquanto para<br />

Górgias o orador tanto mais convence e triunfa quanto mais<br />

se torna nada e ninguém para poder adequar-se às ocasiões<br />

sempre diversas, em Isócrates, ao contrário, o orador, ao tornar-se<br />

não só mestre de oratória mas também mestre de vida,<br />

faz a persuasão originar-se do fato de ele ser digno de con-<br />

248


fiança, isto é, da aquisição de uma condição moral que o eleva<br />

acima dos políticos e dos escritores forenses. 12 Não é sem<br />

motivo que Isócrates se autodefine como filósofo e considera<br />

sofistas Sócrates e os socráticos. O pan-helenismo, a<br />

unidade de todos os gregos contra os bárbaros para além das<br />

lutas locais entre as cidades isoladas, confere um conteúdo<br />

político a essa solenização e autopromoção do orador e permite-lhe<br />

apresentar-se como defensor de um conveniente situado<br />

acima da efetividade cotidiana, mas que mantém com<br />

esta uma relação muito mais estreita que o “belo enquanto<br />

belo” platônico.<br />

Com Aristóteles, o redimensionamento das pretensões<br />

da retórica em busca de meios que, em torno a cada assunto,<br />

possam levar à persuasão, e a determinação de seu objeto de<br />

estudo no provável ou naquilo que aparece como tal rompem<br />

a vinculação do prépon, seja com o belo — ao qual Aristóteles<br />

atribui uma dimensão autônoma —, seja com a efetividade,<br />

porque, para Aristóteles, “a verdade e a justiça são, por natureza,<br />

mais fortes que os seus contrários” (Ret., 1355 a 21).<br />

Entretanto, dado que a maioria não está em condições de<br />

aprender os princípios da ciência mediante o ensino e, devido<br />

à sua baixeza moral, é persuadida por coisas alheias à pura<br />

e simples demonstração, é preciso, na elocução, levar em consideração<br />

o fator do conveniente.<br />

O conveniente manifesta-se como propriedade, isto é,<br />

adequação da elocução às paixões, aos caracteres, aos assuntos<br />

de que estiver tratando (Ret., III, 7, 1408 a 10). Principalmente,<br />

a representação adequada dos caracteres (éthe*) é<br />

* Moradia habitual, ninho dos animais. Desde Hesíodo, forma habitual do ser, costume.<br />

(N. do T.)<br />

249


importante para a conceituação de prépon; com efeito, ela inaugura<br />

uma terceira via, diferente quer da indeterminação absoluta<br />

do kairós de Górgias e Isócrates, quer da abstração<br />

esquemática dos retores, destinada a determinar tantos convenientes<br />

quantas forem as categorias de pessoas detectadas<br />

concreta e historicamente a partir de seu éthe, de seus costumes.<br />

De fato, afirma Aristóteles: “A elocução expressará os<br />

caracteres se, em virtude daquilo que diz, demonstrar que cada<br />

grupo e cada disposição é acompanhado pela linguagem apropriada.<br />

Entendo por grupo ou pessoas da mesma idade, por<br />

exemplo, crianças, homens ou velhos; ou homens ou mulheres,<br />

ou ainda gregos ou tessálios; entendo por disposições as<br />

que conferem uma certa particularidade à vida. Portanto, o<br />

orador, se empregar também termos apropriados à disposição,<br />

expressará o caráter” (Ret., III, 1408, 25-30). Nessa interpretação<br />

aristotélica, a noção de prépon perde o significado<br />

originário de resplandecente efetivo, porque é retomada no<br />

âmbito de uma problemática da representação. Não é por acaso<br />

que essa noção encontra outra importante aplicação implícita<br />

na Poética, quando Aristóteles fala do caráter dos personagens<br />

da tragédia e de sua qualidade (Poét., 1454 a 16).<br />

Ela perde também a tensão estético-política que caracterizava<br />

as posições de Górgias e Isócrates. Para Aristóteles, o conveniente<br />

é, no fundo, algo acessório: “Se por acaso alguém<br />

encontrar os princípios primeiros, não mais haverá então<br />

dialética nem retórica, mas a própria ciência da qual os princípios<br />

foram emprestados” (Ret., 1358 a 25). O conveniente<br />

aristotélico poderá, assim, constituir o ponto de partida daquela<br />

estética do característico que, através de Teofrasto e<br />

Horácio, irá desenvolver-se, em oposição à estética classicista<br />

do cânon, até o Romantismo.<br />

250


A última tentativa de pensar conjuntamente o belo e<br />

o efetivo que o pensamento grego realiza é levada a cabo<br />

por Panécio de Rodes. Nesse pensador, no entanto, a palavra<br />

prépon é eclipsada por kathékon — derivada da tradição<br />

estóica —, que indica a ação conveniente, contraposta ao<br />

katórthoma, a ação virtuosa em termos absolutos. Enquanto<br />

esta última se origina unicamente do lógos, sendo, portanto,<br />

na Antiga Estoa, patrimônio exclusivo do sábio, o<br />

kathékon, que é entendido por Zenão no sentido etimológico<br />

daquilo que diz respeito, acontece, baixa até alguém, pode<br />

ser praticado até pelo insensato. Em relação a essa tradição,<br />

Panécio introduz uma correção fundamental, destacando a<br />

importância do kathékon, do conveniente circunstancial, em<br />

comparação com o katórthoma, o dever absoluto. Além disso,<br />

ele interpreta num sentido mais específico e pessoal o<br />

preceito de Zenão de viver segundo a natureza, e considera<br />

o kathékon precisamente a ação que convém, que está de<br />

acordo com a natureza pessoal de cada um. A noção de conveniente<br />

— que em Zenão é, antes, algo que surge de repente<br />

e que acontece — é interiorizada, permitindo a<br />

Panécio atribuir-lhe aquela beleza que os estóicos mais<br />

rigoristas reconheciam exclusivamente à virtude.<br />

No entanto, a relação entre belo e efetivo, que constitui<br />

o cerne conceitual da noção de prépon, parece em Panécio<br />

pender em favor de uma realidade social que deve a própria<br />

razão de ser a fatores que nada têm a ver com a virtude nem<br />

com o belo, de tal modo que a bela aparência da personalidade<br />

individual, o estilo de vida harmonioso e elegante, 13 mais<br />

parece algo acessório a uma efetividade, que se tornou de tal<br />

modo totalmente independente, do que a causa ou um elemento<br />

inseparável dela: o que, de resto, se harmoniza com a<br />

251


afirmação de Panécio segundo a qual a felicidade requer não<br />

apenas a virtude (como afirmam Zenão e Crisipo), mas também<br />

a saúde, a riqueza (koreghía) e a força (Diógenes Laércio,<br />

VII, 128).<br />

3 O decoro<br />

No mundo latino, Cícero é o grande intérprete e divulgador<br />

das teorias gregas do prépon, especialmente da versão<br />

oratória de Isócrates e da versão moral de Panécio. Sem entrar<br />

na vexata questio da originalidade de Cícero diante dos<br />

modelos gregos, importa deter-se na palavra latina com a qual<br />

ele traduz o termo grego e nas conseqüências teóricas que essa<br />

escolha implica. Depois de alguma hesitação, 14 essa palavra é<br />

traduzida, tanto no Orator como no De officiis, por decorum.<br />

Ora, pela etimologia, decorum não tem nada a ver com prépon.<br />

Enquanto prépon remete originariamente à unidade entre visão<br />

e efetividade, a palavra latina decorum pressupõe, ao contrário,<br />

a ligação entre comportamento e efetividade. De fato,<br />

decorum vem do verbo impessoal decet,*afim com o védico<br />

dasti, cujo significado é “prestar homenagem a”, e cuja origem<br />

pode ser buscada na raiz indo-européia *dek- (“receber”,<br />

“acolher”, “saudar”, “honrar”). Ele também, portanto, faz<br />

referência a uma experiência religiosa, mas essencialmente diferente<br />

da grega, isto é, baseada não na visualidade festiva do<br />

divino, mas no acolher e tornar própria a vontade dos deuses,<br />

no estar à escuta para captar os signos do fatum, na repetição<br />

e na veneração. De resto, em latim, também em ou-<br />

* Convir, parecer decoroso, ficar bem, combinar com. (N. do T.)<br />

252


tras palavras, a idéia do belo está muito mais associada ao rito<br />

religioso do que à visão: pulcher*, por exemplo, possui um<br />

valor especificamente religioso na linguagem dos áugures e<br />

designa todo presságio feliz obtido na observação dos pássaros<br />

ou no exame de suas vísceras; o termo aplica-se, além disso,<br />

às forças divinas propícias, qualifica o ser favorecido pelos<br />

deuses, aquilo que resulta da vontade divina, e evoca, em<br />

todo caso, uma prosperidade devida aos deuses. 15 Coisa análoga<br />

pode ser dita de venustus.** Depreende-se daí que na língua<br />

latina existe — como na língua grega — uma inseparabilidade<br />

originária entre o belo e o efetivo. No entanto, se a<br />

ligação grega entre o que aparece e o que é efetivo não pôde<br />

ser mantida e, ao chocar-se com a experiência histórica, produziu<br />

a saída metafísica, que separa por completo a aparência<br />

da realidade, radicalmente diferente é o êxito romano. A<br />

identificação entre beleza e comportamento <strong>ritual</strong> torna mais<br />

sólida, em Roma, a relação entre conveniente e efetivo.<br />

Isso evidencia-se, principalmente, no modo como Cícero<br />

desenvolve no Orator a noção de decorum. O problema do que<br />

convém e do que não convém (quid deceat et quid dedeceat) não<br />

é submetido a nenhuma apreciação externa e é considerado em<br />

si mesmo. O importante nas causas é convencer, agradar, comover;<br />

depende do discernimento do orador saber avaliar o que<br />

é necessário em cada caso e como cada causa deve ser conduzida.<br />

O êxito não é, de forma alguma, separável daquilo que é conveniente<br />

(decet). “As condições de fortuna, posição, hierarquia<br />

e idade, o momento, o lugar e o auditório não permitem que<br />

se utilizem sempre o mesmo estilo e os mesmos pensamentos;<br />

* Belo, nobre, famoso, ilustre, glorioso, feliz, venturoso, próspero. (N. do T.)<br />

** Venusto, gracioso, amável, espirituoso. (N. do T.)<br />

253


sempre, em oratória como na vida, é preciso ter em conta aquilo<br />

que convém” (Orator, XXI). O decorum é determinado por três<br />

elementos: pela “re de qua agitur”,* pelas pessoas que falam e<br />

por aquelas que ouvem. Por isso, o orador deve dominar todos<br />

os três gêneros de oratória: o ático, que é simples, sem ornamentos,<br />

caracterizado por uma negligentia diligens;** o médio,<br />

rico em metáforas e metonímias, mas plácido e sereno; e, finalmente,<br />

o solene, ornamentado, opulento e magnificente. Fere<br />

o decorum, sem dúvida, aquele que, diante de um público<br />

despreparado, começar a falar com muito ardor; o seu comportamento<br />

terá efeitos contrários aos desejados. “Furere apud sanos<br />

et quasi inter sobrios bacchari vinolentus videtur” (“Parecerá um<br />

louco enfurecido aos sãos e um ébrio vociferante aos sóbrios”)<br />

(Orator, XXVIII). Cícero declara admirar especialmente aquele<br />

que sabe o que convém em cada caso — a qualidade essencial é<br />

saber adequar as palavras às pessoas e aos momentos, porque<br />

não se deve falar da mesma maneira nem sempre, nem diante<br />

de todos, nem para todos.<br />

Uma parte fundamental do De officiis, que requereria um<br />

estudo detalhado e específico, é dedicada ao conceito de<br />

decorum. Nessa obra, é importante destacar pelo menos quatro<br />

elementos de reflexão. Em primeiro lugar, mostra-se evidente<br />

a dificuldade de Cícero em determinar o que é que diferencia<br />

o decorum do honestum:*** tal distinção é “facilius intelligi<br />

quam explanari potest”**** (De officiis, I, XXVII, 93). De resto,<br />

remonta a Cícero a formulação da noção do “nescio quid”,<br />

do “não sei o quê”, que tanta importância teve no desenvolvi-<br />

* Assunto que se trata. (N. do T.)<br />

** Cuidadosa negligência.(N. do T.)<br />

*** Honestidade, virtude, bem moral. (N. do T.)<br />

**** Mais fácil de intuir do que de explicar. (N. do T.)<br />

254


mento moderno da estética. Em segundo lugar, é importante<br />

destacar o desvio semântico-conceitual de Cícero na tradução<br />

do grego kathékon para officium*, que deriva da palavra opus,<br />

que, por sua vez, está estritamente ligada ao rito religioso. Isso<br />

mostra, em terceiro lugar, que a atitude dos romanos para com<br />

a realidade histórica é idêntica àquela que mantinham diante<br />

do divino: a intuição fundamental da qual nasce o decorum, quod<br />

decet nunca está em contradição com a experiência histórica, ao<br />

contrário do que ocorre no caso do prépon grego. Em quarto<br />

lugar, talvez seja possível detectar na história da cultura ocidental<br />

a influência da noção ciceroniana de decorum, que flui subterraneamente,<br />

mas, logo por isso, age de forma mais<br />

determinante e efetiva do que a tradição metafísica platônicoaristotélica,<br />

tida como a via mestra do pensamento ocidental.<br />

4 A cerimônia<br />

A ligação entre forma e efetividade, entre aparência e<br />

<strong>ritual</strong>ismo implícita no conceito latino de decorum é ainda mais<br />

estreita na noção tipicamente romana de caerimonia. Para compreender<br />

essa noção é preciso, primeiramente, livrar-se do preconceito<br />

espi<strong>ritual</strong>ista que considera a cerimônia um comportamento<br />

estereotipado, supérfluo, residual, idolátrico, patológico,<br />

maníaco, desesperado; formalismo e esclerose; ausência<br />

de profundidade e de substância. Esse preconceito revive cada<br />

vez que a caerimonia é pensada como mera carimonia (de careo<br />

= “privar-se”, “faltar”), conforme uma falsa etimologia formulada<br />

já na Antiguidade.<br />

* Ofício, obrigação, dever, obediência, submissão. (N. do T.)<br />

255


Baseado em algumas passagens de escritores da época clássica,<br />

Karl-Heinz Roloff, autor do mais amplo e exaustivo estudo sobre a<br />

palavra e o conceito latino de caerimonia, 16 mostra que, a par do significado<br />

de ação e de comportamento <strong>ritual</strong>, o termo designa o próprio<br />

ser do divino, o objeto da religião, isto é, o que muito aproximadamente<br />

pode ser traduzido por “sacralidade” (Heiligkeit). O fato de cerimônia<br />

significar muito mais do que santidade parece provado por uma<br />

passagem de Suetônio, que contrapõe à sanctitas do rei a caerimonia<br />

dos deuses, indicando com essa palavra precisamente o seu modo de<br />

ser, diferente daquele dos soberanos. A palavra não se refere, portanto,<br />

a uma falta, mas, bem ao contrário, à plenitude do sagrado; isso explica<br />

o fato de que seja, nessa acepção, sempre utilizada no singular, a ponto<br />

de ser tida por alguns gramáticos tardios como um plurale tantum.*<br />

Quando Cícero fala de uma caerimonia legationis e Tácito<br />

de uma caerimonia loci, estão pensando antes no ser da<br />

coisa em si do que na atitude ou no sentimento humano para<br />

com ela. Por fim, César, em De bello gallico (VII, 2), ao narrar<br />

a conjuração urdida contra ele pelos carnutes e outros povos<br />

da Gália, diz que estes renunciaram a trocar reféns entre<br />

si, evitando assim revelar os seus planos, mas exigiram que,<br />

depois de agrupadas em feixe as respectivas insígnias militares,<br />

todos empenhassem a palavra e fizessem juramento de não<br />

abandonar os outros, uma vez iniciada a guerra. Esse ato é<br />

definido por César como uma gravissima caerimonia, porque<br />

as insígnias militares reunidas adquirem um poder sacrossanto,<br />

objetivo, independente da crença dos homens, a tal ponto<br />

que substituem eficazmente a troca de reféns.<br />

Portanto, se é preciso falar da qualidade cerimonial do<br />

sagrado, ela não pode ser entendida no sentido de festividade<br />

* Termo que tem um significado diferente no plural. (N. do T.)<br />

256


(Feierlichkeit), aquela contemplação festiva e festejadora que<br />

Kerényi atribuía à religião grega, considerada na sua ligação<br />

com a visão, com a manifestação, com o esplêndido aparecer<br />

do fenômeno. 17 No texto de César não há, de modo algum,<br />

referência a uma epifania do divino; toda a atenção dos<br />

carnutes concentra-se na ação que estão por empreender e na<br />

necessidade de fundamentar tal ação histórica, cheia de riscos<br />

e de incógnitas, na obediência à gravissima caerimonia das insígnias<br />

reunidas. Essa cerimônia não é uma festa celebrada por<br />

ocasião da aliança, mas sim a garantia objetiva, extremamente<br />

séria e compromissada, de tal aliança.<br />

Menos ainda poderá ser entendida a qualidade cerimonial<br />

como espetacularidade. Os ludi scaenici* são estranhos à religião<br />

romana arcaica, à qual a palavra empregada por César remete. 18<br />

É característica da religião romana a profunda indeterminação<br />

do aspecto das divindades, de quem, com freqüência, se ignora<br />

até mesmo se são masculinas ou femininas – muitas vezes, os<br />

deuses romanos reduzem-se a um mero nome. O Panteão romano<br />

foi justamente comparado por Dumézil a um mundo de<br />

sombras quase imóveis, a uma multidão crepuscular, no meio<br />

da qual é difícil perceber um vulto preciso. 19 Embora esteja escrevendo<br />

sobre os gauleses, é evidente que César lhes atribui,<br />

nessa ocasião, um modo de pensar tipicamente romano.<br />

Por último, também a caerimonia deorum,** em sua<br />

acepção mais profunda, não designa o culto que pertence aos<br />

deuses, do qual os deuses são os senhores, nem o culto que lhes<br />

é devido, mas antes a exterioridade do modo de ser do sagrado.<br />

Aqui, a reflexão sobre os romanos vai ao encontro da teoria do<br />

* Espetáculos cênicos. (N. do T.)<br />

** Cerimônia dos deuses. (N. do T.)<br />

257


sagrado enquanto “completamente outro”, enquanto diferença, enquanto<br />

negação radical de toda concepção antropomórfica do<br />

divino. Tal convergência entre uma teoria do sagrado, que lança<br />

suas raízes no monoteísmo mais radical, e o paganismo romano,<br />

que Hegel considerou uma das formas mais prosaicas de superstição,<br />

é, de fato, surpreendente. Contudo, apesar da distância<br />

que separa a qualidade cerimonial romana de Jeová, causa<br />

perplexidade a convergência objetiva entre a iconoclastia judaica<br />

e o aniconismo da religião romana das origens, a qual, segundo<br />

a tradição, não conheceu imagens sagradas durante os primeiros<br />

cento e setenta anos de sua história. Em todo caso, o essencial<br />

é compreender que a exterioridade cerimonial é exatamente<br />

o contrário de um existir panorâmico e decorativo.<br />

Tão importante quanto o significado objetivo atribuído<br />

às “coisas em si” é o significado subjetivo de cerimônia, entendida<br />

como operação e comportamento rituais. Todavia, essa segunda<br />

acepção do termo, a mais difundida e usual, está estritamente<br />

ligada à primeira. Por exemplo, na já referida cerimônia<br />

relatada por César, não teria havido sacralidade objetiva alguma<br />

se não tivesse sido realizado o ato — visando a um objetivo<br />

bem determinado — de reunir todas as insígnias militares. “Nesse<br />

sentido, o ato, portanto”, escreve Roloff, “é ele mesmo<br />

sacralidade; sem ele, não haveria nada sagrado, mas, por outro<br />

lado, somente onde estão reunidos os signa há o sagrado.” 20<br />

Assim, a exterioridade não é apenas o aspecto fundamental<br />

do ser divino, mas, também e ao mesmo título, o caráter essencial<br />

do rito religioso, o qual não tem, de modo algum, necessidade<br />

de basear a própria validade em uma crença, em um<br />

mito, em uma experiência interior. Aqui aparece claramente a<br />

distância que se interpõe entre a religião romana e a teologia<br />

da diferença de origem judaica: na primeira, à exterioridade do<br />

258


sagrado corresponde a exterioridade do rito; na segunda, ao<br />

contrário, à exterioridade de Deus responde a interioridade do<br />

culto. 21 Isso não significa que a cerimônia romana rompa —<br />

como afirma Hegel — a individualidade de todos os espíritos,<br />

sufoque toda vitalidade, ou seja, esteja ligada a uma total insensibilidade<br />

emotiva e espi<strong>ritual</strong>. Nela, a relação entre interior<br />

e exterior é invertida: não é a interioridade que funda e justifica<br />

o culto, mas é a cerimônia — isto é, a repetição extremamente<br />

precisa e escrupulosa dos atos rituais — que abre caminho<br />

a um tipo de sensibilidade não sentimental e não intimista,<br />

mas nem por isso menos articulada e complexa. No relato de<br />

César, a cerimônia faz nascer nos conjurados uma solidariedade<br />

mais sólida do que a que teria sido garantida pela troca dos<br />

reféns. O caráter dessa solidariedade não é exclusivamente religioso<br />

— ele é, ao mesmo tempo, também jurídico e político.<br />

Não se apreende plenamente o significado romano de<br />

caerimonia prescindindo dessa dimensão jurídico-política<br />

que, porém, não deve ser entendida no sentido de lex, isto<br />

é, de ato voluntariamente vinculante, mas no sentido de ius,<br />

isto é, de rito de caráter rigorosamente técnico, de procedimento,<br />

no qual o magistrado e as partes desempenham<br />

um papel que já foi rigorosamente determinado. A obrigatoriedade<br />

da cerimônia, portanto, não dependia do consenso<br />

subjetivo dos participantes aos seus conteúdos, mas sim da<br />

capacidade dos magistrados de vincular o caso particular<br />

com a forma geral e abstrata do rito. O ius é justamente<br />

uma ars que “in sola prudentium interpretatione consistit”.*<br />

O comportamento cerimonial é determinado, assim, em<br />

relação a dois termos, ambos objetivos e externos: a situação<br />

* Consiste unicamente na interpretação prudente. (N. do T.)<br />

259


específica e a forma <strong>ritual</strong>. A prudentia consiste precisamente<br />

na capacidade de harmonizá-las. Por um lado, a obediência à<br />

ocasião, ao dado específico, à oportunidade, não se dissolve em<br />

mero oportunismo, porque é exercida com referência a um quadro,<br />

a um esquema geral herdado do passado; por outro, a obediência<br />

ao <strong>ritual</strong> não é mera esclerose, porque objetiva a solução<br />

de uma questão, de um problema concreto. Essa concordância<br />

entre ocasião e forma constitui precisamente um tema<br />

recorrente na grande obra dedicada por Jhering, no século passado,<br />

ao espírito do direito romano, 22 que ele define justamente<br />

como “o sistema do egoísmo disciplinado”. O instinto prático<br />

dos romanos — observa o autor — havia criado regras e<br />

instituições tão elásticas que, mesmo se escrupulosamente observadas,<br />

se adaptavam sempre às necessidades do momento.<br />

O conceito de exterioridade referido ao mundo romano<br />

não significa transcendência de uma lei que se imponha incondicionalmente<br />

à interioridade humana; a cerimônia não é<br />

a execução de um dever-ser eterno e imutável, nem a atualização<br />

de um mistério metafísico: os termos sobre os quais ela<br />

se funda são todos objetivos, mas imanentes à história. O sagrado<br />

romano não apresenta nenhum caráter panteísta ou místico;<br />

ele existe principalmente — observa Roloff — só no caso<br />

particular, no acontecimento particular, em plena conformidade<br />

com a atitude “casuísta” do modo romano de pensar. 23<br />

A cerimônia situa-se no extremo oposto da decoração,<br />

do espetáculo, da encenação: ela se revela precisamente como<br />

condição de efetividade, de operatividade, de história. Isso é<br />

particularmente evidente no conceito romano de tempo, diferente<br />

tanto do eterno retorno das sociedades primitivas —<br />

com seu ciclo de mortes e renascimentos rituais — como da<br />

história linear do judaísmo, com a sua tensão messiânica em<br />

260


direção a uma redenção final. Em Roma, a qualidade cerimonial<br />

do tempo é o calendário, uma estrutura formal de dias,<br />

meses e festas, que retorna sempre, sem impedir, no entanto,<br />

a atividade histórica dos homens; aliás, ela fornece o indispensável<br />

ponto de referência para localizar cronologicamente<br />

no ato e na memória cada ação particular.<br />

No tempo cíclico das sociedades primitivas, — o que<br />

importa é a reatualização do arquétipo mítico originário, enquanto<br />

o tempo linear do judaísmo considera os feitos de Israel<br />

feitos do próprio Deus. Ambos são, embora sob aspectos<br />

opostos, tempos mitológicos, isto é, tempos nos quais existe<br />

um vínculo inseparável entre a dimensão cronológica e o<br />

seu conteúdo, e é precisamente esse vínculo que institui a<br />

sacralidade dessas experiências do tempo. O calendário romano,<br />

ao contrário, funda um tempo desmitificado, mas nem por<br />

isso dessacralizado ou insignificante: ele fornece um quadro,<br />

uma rede de referências, um tecido cujos elementos são sagrados,<br />

mas não diz a priori o que estes devem conter, nem<br />

transforma a posteriori o seu conteúdo em uma história sagrada.<br />

A estrutura cerimonial do calendário romano apresentase<br />

como condição da história: primeiro, ela deixa indeterminado<br />

o caráter concreto do acontecimento; depois, quando<br />

este se realiza, não lhe anula a especificidade — inserindoo<br />

num processo cujo significado último é a redenção final —,<br />

mas preocupa-se em mantê-la, fazendo dela um “precedente”.<br />

A qualidade cerimonial do tempo é, no fundo, um trânsito<br />

do mesmo para o mesmo — não há nada para ensinar nem<br />

para aprender além dos procedimentos, das cerimônias, dos movimentos<br />

de rotação, no âmbito dos quais a ocasião, a particularidade<br />

mais empírica, a situação específica deve ser exercida. É<br />

inútil escapar ao “jogo de Mamúrio”: o essencial é continuar, ape-<br />

261


sar das pauladas. O ensinamento do ferreiro Mamúrio é oposto<br />

ao dos outros “senhores do fogo” da área indo-européia: não o<br />

Wut, o furor religioso, a cólera que aterroriza os inimigos, mas<br />

a calma, a indiferença, o mimetismo; em uma palavra, a<br />

caerimonia.<br />

Notas<br />

1. Por exemplo, em Homero (Ilíada, XII, 104). Remeto ao estudo mais amplo que<br />

existe: M. Pohlenz, Tòó prépon. Ein Beitrag zur Geschichte der grieschischen Geistes<br />

(1933). In: Kleine Schriften. Hildescheim, Olms, 1965, pp. 100-39.<br />

2. A raiz indo-européia *prep- quer dizer “cair sob os olhos”, “aparência”, “forma”.<br />

Cf. J. Pokorny, Indogermanisches etymologisches Wörterbuch. Berna/Munique, 1959,<br />

vol. I, p. 845.<br />

3. P. Chantraine, Dictionnaire éthimologique de la langue grecque. Paris, Kliencksieck, 1968.<br />

4. K. Kerényi, Die antike Religion. Munique/Viena, Lagen-Müller, 1969.<br />

5. M. Heidegger, Introduzione alla metafisica. Milão, Mursia, 1968.<br />

6. A. Rostagni, “Un nuovo capitolo nella storia della retorica e della sofistica”. Studi<br />

Italiani di Filologia Classica. N. S., II, 1-2, 1922, pp. 148-201.<br />

7. Q. Cataudella, “Sopra alcuni concetti della poetica antica, I, ‘Απατη. Rivista di<br />

filosofia classica, 59, 1931, pp. 382-7.<br />

8. M. Untersteiner, (org.), Sofisti. Testimonianze e frammenti, II. Florença, La Nuova<br />

Italia, 1967, p. 87.<br />

9. Id., I sofisti. I. Milão, Lampugnani Nigri, 1967, p. 251.<br />

10. M. Untersteiner, Sofisti. Testimonianze e frammenti op. cit., p. 147.<br />

11. Id., p. 99.<br />

12. W. Jaeger, Paideia. La formazione dell’uomo greco. Florença, La Nuova Italia, 1959,<br />

vol. 3.<br />

13. M. Pohlenz, Antikes Führertum. Cicero de officiis und das Lebensideal des Panaitios.<br />

Leipzig/Berlim, Teubner, 1934, p. 55 e seguintes.<br />

14. M. Pohlenz, Tò prépon, p. 107, nota 2. Num trecho de Orator, Cícero traduz<br />

prépon por aptus.<br />

15. P. Monteil, Beau et laid en latin. Étude de vocabulaire. Paris, 1964, p. 72 e seguintes.<br />

16. K.-H. Roloff, “Caerimonia”. Glotta. Zeitschrift für Griechische und Latinische<br />

Sprache, vol. XXXII (1953), pp. 101-38.<br />

17. K. Kerényi, op. cit.<br />

18. G. Piccaluga, Elementi spettacolari nei <strong>ritual</strong>i festivi romani. Roma, Edizioni<br />

dell’Ateneo, 1965, p. 64.<br />

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19. G. Dumézil, La réligion romaine archaïque. Paris, 1974, p. 50.<br />

20. K.-H. Roloff, op. cit., p. 111.<br />

21. A esse respeito, remeto às teses de E. Levinas: Totalita e infinito. Saggio<br />

sull’esteriorita. Milão, Jaka Book, 1980.<br />

22. Von Jhering, R. Lo scopo del diritto. Turim, Einaudi, 1971.<br />

23. K.-H. Roloff, op. cit., p. 121.<br />

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